24
1 CURSO PROFISSIONAL DE TÉCNICO DE ANIMADOR SOCIOCULTURAL DISCIPLINA: Português MÓDULO 9- Textos Líricos Fernando Pessoa Ortónimo e Heterónimos PROFESSORA: ELISABETE TAVARES ÁLVARO DE CAMPOS: o filho indisciplinado da sensação Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde …). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. (…)Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. (…)Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. (…) Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre. Álvaro de Campos surge quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. Fernando Pessoa, Correspondência 1923-35, ALVARO DE CAMPOS E OS OUTROS HETERÓNIMOS: O próprio Pessoa considera que Campos se encontra no «extremo oposto, inteiramente oposto, a Ricardo Reis», apesar de ser como este um discípulo de Caeiro. Campos é o “filho indisciplinado da sensação e para ele a sensação é tudo. O sensacionismo faz da sensação a realidade da vida e a base da arte. O eu do poeta tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir. Este heterónimo aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a «sensação das coisas como são»: procura a totalização das sensações e das percepções conforme as sente, ou como ele próprio afirma “sentir tudo de todas as maneiras”. Engenheiro naval e viajante, Álvaro de Campos é configurado “biograficamente” por Pessoa como vanguardista e cosmopolita,

Dossier_ Alvaro de Campos_def

Embed Size (px)

Citation preview

1

CURSO PROFISS IONAL DE TÉCNICO DE ANIMADOR SOCIOCULTURAL

D I S C I P L I N A : P o r t u g u ê sMÓDULO 9-Textos Líricos

Fernando Pessoa Ortónimo e HeterónimosP R O F E S S O R A : E L I S A B E T E T A V A R E S

ÁLVARO DE CAMPOS: o filho indisciplinado da sensação

Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde …). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. (…)Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. (…)Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. (…) Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Álvaro de Campos surge quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê.Fernando Pessoa, Correspondência 1923-35,

ALVARO DE CAMPOS E OS OUTROS HETERÓNIMOS: O próprio Pessoa considera que Campos se encontra no «extremo oposto, inteiramente oposto, a Ricardo Reis», apesar de ser como este um discípulo de Caeiro.

Campos é o “filho indisciplinado da sensação e para ele a sensação é tudo. O sensacionismo faz da sensação a realidade da vida e a base da arte. O eu do poeta tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir.

Este heterónimo aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a «sensação das coisas como são»: procura a totalização das sensações e das percepções conforme as sente, ou como ele próprio afirma “sentir tudo de todas as maneiras”.Engenheiro naval e viajante, Álvaro de Campos é configurado “biograficamente” por Pessoa como vanguardista e cosmopolita, espelhando-se este seu perfil particularmente nos poemas em que exalta, em tom futurista, a civilização moderna e os valores do progresso.

carta astral de Álvaro de Campos

Cantor do mundo moderno, o poeta procura incessantemente “sentir tudo de todas as maneiras”, seja a força explosiva dos mecanismos, seja a velocidade, seja o próprio desejo de partir. “Poeta da modernidade”, Campos tanto celebra, em poemas de estilo torrencial, amplo, delirante e até violento, a civilização industrial e mecânica, como expressa o desencanto do quotidiano citadino , adoptando sempre o ponto de vista do homem da cidade.

2

Poeta sensacionista e por vezes escandoloso (qualificativos da carta de Pessoa a Casais Monteiro), Campos é o primeiro a retratar-se e a referir circunstâncias biográficas, o que reforça a simulação e daria ao próprio Fernando Pessoa estímulos para se manter na pele de heterónimo. Descreve-se «de monóculo e casaco exageradamente cintado», «franzino e civilizado», «pobre engenheiro preso/A sucessibilíssimas vistorias». Escreve, febril, «à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica», ou, no seu cubículo, ouvindo o «tic-tac estalado das máquinas de escrever».

Dos vários heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva.

J. P. Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa(Editorial Verbo)

1ª FASE DE ÁLVARO DE CAMPOS – DECADENTISMO (“Opiário”)

- exprime o tédio, o enfado, o cansaço, a naúsea, o abatimento e a necessidade de novas sensações

- traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia

1.ª fase: decadentista

• sentimentos de tédio, enfado, náusea, cansaço, abatimento e necessidade de novas sensações;

• reflexo de uma falta de sentido para a vida recorrendo à fuga e à monotonia (feita normalmente através de estupefacientes –

2.ª fase: futurista e sensacionista

• poesia repleta de vitalidade;• predilecção pela ar livre e pelo belo feroz;• o elogio da civilização industrial, moderna, da velocidade e das máquinas, da energia e da força, do progresso;• um poeta virado para o exterior, que capta tudo através dos sentidos mas que rejeita o pensamento;

• irregularidade estrófica e métrica;• adoptou o verso livre;• adoptou um estilo esfuziante, torrencial, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos utilizando apóstrofes, enumerações, metáforas, comparações, anáforas a fim de realçar o sensacionismo;

• desfilar irónico dos escândalos da época: a desumanização, a hipocrisia, a corrupção, a miséria, os falhanços da técnica, a prostituição de menores

3.ª fase: intimista• incapacidade de realização – abatimento;• poeta vive rodeado de sono e cansaço, revelando revolta, desilusão, inadaptação • desânimo e frustração;• sente um vazio após uma caminhada heróica;• decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, incompreendido;• dor de pensar e saudades da infância (Pessoa ortónimo);• recusa a estética, a moral, a metafísica, as ciências, as artes, a civilização moderna;• apela ao direito à solidão;• infância como símbolo da felicidade perdida.

As três fases poéticas de Álvaro de Campos

3

- marcado pelo romantismo e simbolismo (rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens)

- abulia, tédio de viver

- procura de sensações novas

- busca de evasão

“E afinal o que quero é fé, é calma/ E não ter estas sensações confusas.”“E eu vou buscar o ópio que consola.”

Lê atentamente o poema Opiário e comprova a presença destas características:

OPIÁRIO

4

É antes do ópio que a minh'alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me. São dias só de febre na cabeça E, por mais que procure até que adoeça,já não encontro a mola pra adaptar-me.

(…)Ando expiando um crime numa mala, Que um avô meu cometeu por requinte.Tenho os nervos na forca, vinte a vinte, E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfinaPerco-me em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes,Ergue-se a lua como a minha Sina.

Perdi os dias que já aproveitara. Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente. Nasci numa província portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei inglês perfeitamente. (…)

Eu acho que não vale a pena terIdo ao Oriente e visto a índia e a China.A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédioSou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamentoE ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim, Muito a leste não fosse o oeste já! Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim?

(…)Volto à Europa descontente, e em sortes De vir a ser um poeta sonambólico. Eu sou monárquico mas não católico E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro, Ser vária gente insípida que vi. Hoje, afinal, não sou senão, aqui, Num navio qualquer um passageiro.

(…)E afinal o que quero é fé, é calma, E não ter estas sensações confusas. Deus que acabe com isto! Abra as eclusas — E basta de comédias na minh'alma!

5

Álvaro de Campos, Março de 1914, no Canal de Suez a bordo de um navio ( Orfeu, nº1, 1915)

6

PROPOSTA DE LEITURA:No poema Opiário, Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa) escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico, apresentando-se amargurado e insatisfeito.

Este é o único poema da primeira fase de Campos, a fase da morbidez e do torpor (Decadentismo). Exprime o tédio, o enfado, o cansaço, a naúsea, o abatimento e a necessidade de novas sensações. Traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. É marcado pelo romantismo e simbolismo (rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens).

O poema imita-lhe desde a nostalgia de além, a morbidez snob de um saturado de civilização, a embriaguês do ópio e dos sonhos de um Oriente que não o horror à vida, o realismo satírico de certas notações, até ao vocabulário entre precioso e vulgar, às imagens, símbolos, estilo confessional brusco, amimado e divagativo, ao ritmo dos decassílabos agrupados em quadras. Os estupefacientes surgem aqui como um escape à monotonia e um certo horror à vida, são um estimulante que, no entanto nada resolvem. http://www.passeiweb.com

7

2ª FASE DE ÁLVARO DE CAMPOS

-FUTURISTA/SENSACIONISTA “Ser tudo de todas as maneiras”

Nesta fase, Álvaro de Campos:

Nesta fase, Álvaro de Campos celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica

e da civilização moderna. Sente-se, nos poemas, uma atracção quase erótica

pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Campos apresenta a beleza dos

“maquinismos em fúria” e da força da máquina por oposição à beleza

tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação

metálica e dinâmica de Deus”. A “Ode Triunfal” ou a “Ode Marítima” são bem o

exemplo desta intensidade e totalização das sensações. A par da paixão pela

máquina, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da

vida moderna.

8

A título de síntese, Álvaro de Campos… celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina exalta o progresso técnico, a velocidade e a força procura da chave do ser e da inteligência do mundo torna-se desesperante canta a civilização industrial recusa as verdades definitivas estilisticamente: introduz na linguagem poética a terminologia do mundo mecânico citadino e cosmopolita procura a totalização das sensações: sente a complexidade e a dinâmica da vida moderna e, por isso, procura sentir a violência e a força de todas as sensações – “sentir tudo de todas as maneiras” cativo dos sentidos, procura dar largas às possibilidades sensoriais ou tenta reprimir, por temor, a manifestação de um lado feminino exprime a energia ou a força que se manifesta na vida usa versos livres, vigorosos, submetidos à expressão da sensibilidade, dos impulsos, das emoções (através de frases exclamativas, de apóstrofes, onomatopeias e oxímoros)

Discípulo embora de Caeiro, desde logo, porém, se coloca num terreno oposto ao dele. Enquanto Caeiro via tudo simples, nítido, positivo e sereno, dispensando toda a espécie de doutrinas e filosofias para fundamentar a sua felicidade e o seu optimismo, Álvaro de Campos desde logo se vê obrigado a recorrer a uma teoria que justifique a sua ética do dinamismo e da violência, da civilização e da força. Discípulo de Caeiro na aparência, reproduz a lição de Marinnetti e de Walt Whitman.

J.G Simões, in Prefácio à 1ª edição da Obra Poética de F. Pessoa,

Vamos agora analisar um excerto do poema “Ode Triunfal”. Com esta ode, publicada no 1º número da revista Orpheu, nasceu Álvaro de Campos futurista/sensacionista. A ode está escrita em 240 versos livres e em estilo profundamente inovador.

O que te sugere o título desta composição poética?

Lê agora, atentamente, o excerto do poema Ode Triunfal e identifica as marcas futuristas/sensacionistas atrás enunciadas:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

9

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! http://projecto-pessoa.blogspot.com

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força - Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, Porque o presente é todo o passado e todo o futuro E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Álvaro de Campos, Poesias, Edições Ática, Lisboa, 1997. (excerto)

LINHAS DE LEITURA: Tema; Espaço/cenário; Humanização das máquinas;Exaltação de uma estética não aristotélica (apologia da força e não do Belo)Sacrifício Sado-masoquista do sujeito poético; Erotização perversa e provocatória no desejo de fusão com as máquinas; Tentativa de unificação de todos os tempos (passado/presente/futuro)Marcas de futurismo; Marcas do Sensacionismo;

10

Acerca da Ode Triunfal… A ode pode ser dividida em três momentos:1ªparte (vv1-4)- introdução marcada pela vontade de “cantar”, mas confessadamente em situação de “não canto”, ataca-o uma espécie de delírio, “tenho febre e escrevo”.2ªparte (vv5-238) – desenvolvimento marcado pela busca de identificação com tudo –máquinas, pessoas e tempos; abertura para o exterior e anulação do “Eu” pelo excesso de sensações; cosmopolitismo (cidades, luzes, modernidade, Europa); exaltação de todas as grandes actividades da modernidade (comércio, indústria, agricultura, política, imprensa, bordéis, gente reles) à mistura com uma vontade de fusão com o moderno que vai até à perversão sexual (v72, 86-108 e 116-117) e à expressão de desejos sado-masoquistas.Este canto de triunfo vai em crescendo até ao final, mas com “quebras”: referência a escândalos e à corrupção (coexistente com a Modernidade exaltada) é, sobretudo, e, sobretudo, o discurso (enunciado entre parêntesis) dos versos 182 a 190 com a evocação nostálgica da infância e do mundo rural em desaparição. Estas quebras, à mistura com a referência à febre do 1º verso, à exaltação do Passado (vv.17-22) e à impotência manifestada na conclusão, afastam o poema dos preceitos estritos do futurismo de Marinetti. 3ªparte (239) – Um verso de conclusão “ah não ser eu toda a gente em toda a parte” que representa uma confissão do fracasso e um retorno ao ponto inicial, à febre.

11

In: www.escola virtual.pt

Ode Triunfal1. Orientações de Leitura do Poema

a) A estética não aristotélica (estética da força, em oposição à estética da

beleza) realiza-se em textos eufóricos, triunfalistas, sensacionistas, cantando

o espasmo da vertigem das sensações provindas das máquinas, das

realizações da técnica industrial e dos ruídos das multidões.

b) A. Campos pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, por isso

transporta para este poema toda a gama de sensações, mesmo as que

provêm de grupos marginais. Todavia, a sua atitude transbordante não

esconde a manifestação de uma crise, que é, de certa maneira, a doença da

civilização moderna. Daí os aspectos negativos ironicamente focalizados.

c) É necessário distinguir neste texto aspectos de sensacionismo e de

futurismo.

12

d) É possível distinguir neste texto, apesar da sua extensão, uma

introdução, um desenvolvimento e uma conclusão.

e) O tempo merece também uma atenção especial, já que são anuladas as

fronteiras entre passado, presente e futuro. O presente é o instante, a

concentração de todos os tempos.

f) Espírito do Poeta face ao mundo da grande técnica moderna –

influência de Pessoa-ortónimo

Ideal de A. Campos neste poema = “sentir tudo de todas as maneiras”;

sentir tudo numa “histeria de sensações”; sentir tudo e identificar-se com

tudo, mesmo com as coisas mais aberrantes [“Ah!, poder exprimir-me

todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma

máquina!/(...) / Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

/ Rasgar-me todo, abrir-me completamente, (...)/ A todos os perfumes

de óleos e calores e carvões(...), vv.26-31]

Todo o prazer do poeta está, pois, em revelar-se como um “monte confuso de

forças”, um “eu” universo donde jorra a volúpia sensual de ser tudo, uma

espécie de “prostituição febril às máquinas”. Este ideal é o oposto do

ideal da estética aristotélica, que punha toda a ênfase na ideia da

beleza, no conceito do agradável, no equilíbrio comandado pela

inteligência.

Na poesia de Campos, em vez da bela harmonia clássica saída da clara

inteligência, há a caótica força explosiva saída de um subconsciente em

convulsão. A sua poesia revela-se, assim, como um novo processo de

descompressão do subconsciente de Pessoa, sempre torturado pela

inteligência, pela “dor de pensar”.

Análise semânticaExcesso de sensações

Sensação visual: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas” (v.1)

13

Sensação auditiva: “De vos ouvir demasiadamente de perto” (v.11)

Sensação táctil: “Tenho os lábios secos” (v.10)

Sensação olfactiva: “A todos os perfumes de óleos e calores de carvão” (v.31)

Global:- “Como eu vos amo de todas as maneiras,/Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto/E com o tacto (o que apalpar-vos representa para mim!)/E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!/Ah!, como todos os meus sentidos têm cio de vós!” (vv.87-91)

Paixão

“Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera./Amo-vos carnivoramente.” (vv.105-106)Violência“À dolorosa luz das lâmpadas eléctricas da fábrica” (v.1)

Erotismo e Sadomasoquismo- “Possuo-vos como a uma mulher bela” (v.116)

“Eu podia morrer triturado por um motor/Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída./Atirem-me para dentro das fornalhas!/Metam-me debaixo dos comboios!/Espanquem-me a bordo de navios!/Masoquismo através de maquinismos!/Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!” (vv. 134-140)

“Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.” (v.25)

“Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, / Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento / A todos os perfumes de óleos e calores e carvões / Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!” (vv.29-32)

Identificação/Fusão com os maquinismos“Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!Ser completo como uma máquina!” (vv.26-27)

Uso da ironia, para exprimir a face negativa da civilização industrial.— “escrocs exageradamente bem vestidos”: além da ironia, está aqui presente a antítese entrea compostura exterior (vestuário) dos escrocs e as suas intenções:— “Chefes de família vagamente felizes”: o advérbio “vagamente” projecta sobre a felicidadedos chefes de família a sombra do cansaço (fartos de viver);— “Banalidade interessante.../ Das burguesinhas.../ Que andam na rua com um fimqualquer”: de assinalar são a palavra “burguesinhas” e a expressão “com um fim qualquer”, já que

14

mostram a existência de uma antítese entre o aspecto exterior das burguesinhas (diminutivo irónico) e as suas obscuras intenções;— “A maravilhosa beleza das corrupções políticas, / Deliciosos escândalos financeiros ediplomáticos”: a adjectivação antitética assume aqui a forma de oxímoro.

_ outras antíteses presentes no poema são:— “tudo o que passa e nunca passa”: exprime a concentração do passado no presente, ou acontinuidade dos acontecimentos do dia-a-dia.;— “O ruído cruel e delicioso da civilização de hoje”: antítese que reflecte os sentimentoscontraditórios do poeta em relação à civilização industrial._ presença de metáforas e imagens expressivas, tais como:“Arde-me a cabeça de vos querer cantar”; “Grandes trópicos humanos de ferro, fogo e força” “Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável” “Nos cafés, oásis de inutilidade ruidosas” “Quilhas de chapa de ferro sorrindo Através destas imagens e metáforas, o sujeito poético mostra a forma como vibra com as coisas da civilização industrial (com a fúria do movimento das máquinas. Além disso, dá também uma imagem muito negativa dos cafés, com ruídos inúteis; apresentando, ainda, a imagem dos navios ancorados: “quilhas de chapa de ferro sorrindo”.

Análise fónica e morfossintácticaFrases exclamativas que sublinham a reacção emocional do sujeito poético

Interjeições que reforçam a importância conferida às emoções do sujeito poético. (espanto, alegria, animação, etc.)Ó!; Olá!; Eia!; Eh-lá!;Enumerações remetem para uma expressão pautada pela emoção e não pela razão.

Desvios sintácticos:Acentuam a ideia de espontaneidade do discurso emotivo do sujeito poético.“fera para a beleza de tudo isto”; “todos os nervos dissecados fora” (v.8)

“Ode Triunfal”: uma ruptura com a lírica tradicional portuguesaRuptura a nível formal: irregularidade estrófica, métrica e rítmica; uso excessivo da coordenação; catadupa de figuras de estilo (onomatopeias ousadas, apóstrofes e enumerações exageradas), discurso caótico...Ruptura a nível do conteúdo: o uso de palavras completamente prosaicas (comuns ou vulgares); o canto excessivo da civilização industrial; a ousadia de tocar em alguns aspectos negativos da sociedade, etc.

15

PARA SABER MAIS sobre a FASE FUTURISTA (também conhecida por mecanicista ou whitmaniana)

Esta fase da obra de campos é marcada pela inspiração de Walt Whitman e no futurismo de Marinetti através do Sensacionismo. Está marcada pela intelectualização das sensações ou pela desordem, pela integração da civilização da máquina, pela pressa mecanicista e pela inquietude.

O SENSACIONISMO

“A Arte, na sua definição plena, é a expressão harmónica da nossa consciência das sensações, ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que “criam um objecto que seja sensação para os outros”.“ O Sensacionismo prende-se à atitude energética, vibrante, cheia de admiração pela Vida, pela Matéria e pela Força”. Fernando Pessoa

Considera-se criador do Sensacionismo, Alberto Caeiro, poeta das sensações puras e verdadeiras.

“A única realidade da vida é a sensação. A única realidade da arte é a consciência da sensação”.“A sensação é tudo (…) e o pensamento é uma doença. “

Álvaro de Campos, seu discípulo, segue-lhe o passo…

“Afinal, a melhor maneira de viajar é sentirSentir tudo de todas as maneiras.Sentir tudo excessivamente. (…)”

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, (…)Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atentoEstiver, sentir, viver, for.Mais possuirei a existência total do Universo, Mais completo serei pelo Universo fora.”

…mas, tal como Walt Whitman, outro dos seus mestres, acrescenta-lhe o sentir tudo em excesso, fora da “justa medida” que era defendida pelos clássicos e pelo “mestre” Caeiro. Ele é “o filho indisciplinado da sensação”. Nisto se mostra o precursor de todas as vanguardas do século XX, introduzindo em Portugal o FUTURISMO…

Ah! Não poder exprimir-me todo como um motor se exprime…Ser completo como uma máquina.”

O binómio de newton é tão belo como a Vénus de milo.O que há é pouca gente para dar por issoÓóóó – óóóóóóóóóóóóóóóóóóóóó – óóóóóóóóóóóóóóóóóóóóó

16

(O vento lá fora)Álvaro de Campos

Álvaro de Campos defende um novo ideal de Beleza , uma estética não aristotélica. A arte, a poesia já não deve provocar apenas um prazer estético associado ao que é Belo, agradável… a arte deve promover a VIOLÊNCIA, a FORÇA da nova civilização moderna.

Campos, nesta exaltação da velocidade e da força, mostra-se impaciente, sente a força da realidade que lhe faz vibrar todo o corpo. Sente “uma sinfonia de sensações”. O sensacionismo de Campos começa com a premissa de que a única realidade é a sensação. Mas a nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna provoca-lhe a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável.

Campos busca, na linguagem poética, exprimir a energia ou a força que se manifesta na vida. Daí o surgimento de versos livres, submetidos à expressão da sensibilidade, dos impulsos, das emoções. Ele tentar a totalização de todas as possibilidades sensoriais e afectivas da humanidade, em todo o espaço, tempo ou circunstâncias, num mesmo processo psíquico individual.Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar – são os únicos mandamentos da lei de Deus. Para o sensacionista, a sensação é uma realidade da vida e base de toda a arte: “sentir tudo de todas as maneiras”, “ser toda a gente e toda a parte”.Fernando Pessoa considera-o amoral, pois ama “as sensações fortes mais do que as fracas, e as sensações fortes são, pelo menos, todas elas egoístas e ocasionalmente as sensações de crueldade e luxúria”.

FUTURISMOO Futurismo foi um dos movimentos de vanguarda do século XX. Iniciou-se em Paris, sob a égide do escritor italiano Marinetti, com a publicação do seu «1º Manifesto do Futurismo» datado de 1909. ~Do ponto de vista geral defendem a destruição do passado, em favor de arte arremessada para o futuro; a apologia da velocidade, do patriotismo nacionalista, do automóvel (“Um automóvel de corrida é mais belo do que a Vitória de Samotrácia”), da modernidade das fébricas, dos aviões, dos caminhos de ferro.

Em Portugal, o Futurismo constitui uma das facetas do chamado “Modernismo”. Esta corrente em Portugal aparece como um escândalo. Graças à estadia de Sá Carneiro em Paris, a partir de 1912, tornou-se conhecido dos seus amigos da geração de Orpheu. Na realidade, é nas páginas da revista “Orpheu” que o Futurismo toma forma com as Odes Triunfal e Ode Marítima de Álvaro de Campos.

Álvaro de Campos é o poeta vanguardista que, numa linguagem impetuosa, excessiva, canta o mundo contemporâneo, celebra o triunfo da máquina e da civilização moderna, da força mecânica e da velocidade. Integrado no espírito do modernismo e das vanguardas europeias, que rompem

17

as tendências e concepções artísticas e de cultura, na senda de uma nova visão estética, apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação metálica e dinâmica de Deus”. A Ode Triunfal e a Ode Marítima são bem o exemplo desta intensidade e totalização das sensações.

O Futurismo canta a civilização industrial e, estilisticamente, introduz na linguagem poética a terminologia desse mundo mecânico citadino e cosmopolita, contemporâneo das máquinas e da luz eléctrica.

O futurismo caracteriza-se pela exaltação da energia, da velocidade e da força até situações extremas. Procura um corte e mesmo o aniquilamento do passado para exaltar a necessidade de uma nova vida futura, onde se tenha a sensação da exaltação do poder e do triunfo.

3ª FASE DE ÁLVARO DE CAMPOS – PESSIMISMO (ver página 59-63) do Manual

Perante a incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento, que provoca “Um supremíssimo cansaço, /íssimo, íssimo, íssimo, /Cansaço…”. Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido. Sofre fechado em si mesmo, angustiado e cansado. (“Esta velha angústia”; “Apontamento”; “Lisbon revisited”).

O drama de Álvaro Campos concretiza-se num apelo dilacerante entre o amor do mundo e da humanidade; é uma espécie de frustração total feita de incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento, mundo exterior e mundo interior. Revela, como Pessoa, a mesma inadaptação à existência e a mesma demissão da personalidade íntegra., o cepticismo, a dor de pensar e a nostalgia da infância.

- caracterizada pelo sono, cansaço, desilusão, revolta, inadaptação, dispersão, angústia, desânimo e frustração

- face á incapacidade das realizações, sente-se abatido, vazio, um marginal, um incompreendido

- frustração total: incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento; e mundo exterior e interior

- dissolução do “eu”- a dor de pensar- conflito entre a realidade e o poeta- cansaço, tédio, abulia- angústia existencial- solidão

18

- nostalgia da infância irremediavelmente perdida (“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”, Aniversário)

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco. O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho... ) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo

Ver questionário na página 61 do Manual

19

do alçado, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . . Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

   

Álvaro de Campos propõe mostrar todos os seus sentidos ao mundo e à vida, procurando utilizar uma linguagem poética capaz de exprimir a sua intensa vontade sensacionista. Este poeta das sensações, tumultuoso e impulsivo, acreditava que a arte era um indício da força ou energia que se manifesta na vida. Pelo que os poemas que escreveu serem poemas fortes, vigorosos, energeticamente construídos em versos livres, soltos como a flutuação emocional do poeta. Campos submete tudo à sua sensibilidade, fazendo converter tudo em sensações que forcem os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força do inexplicável.

No poema Aniversário, Álvaro de Campos contrapõe o tempo da infância ao tempo presente. A época da infância é marcada pela inocência, pois a criança não tem noção do que se passa à sua volta: “Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma”. A passagem de criança para adulto é marcada por uma perda, pois se percebe que a vida não tem sentido. O poeta hoje “é terem vendido a casa”, ou seja, é um vazio, que perdeu a sensação de totalidade, de alegria, de aconchego dada pela vida em família na infância distante. Assim, a festa de aniversário toma o aspecto simbólico de um ritual familiar, dentro do qual a criança se torna o centro de um mundo que a acolhe e protege carinhosamente. No presente, não há mais aniversários nem comemorações: resta ao poeta