DOUGLAS, Mary. Como as Instituições Pensam. EDUSP

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COMO

AS

INSTITUIES

PENSAM

MARY DOUGLAS

Copyright @ 1986 by Syracuse University Press

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do __________________________________________________________ Douglas, Mary Como as Instituies Pensam / Mary Douglas ; (traduo Carlos Livro, SP, Brasil)

Eugnio Marcondes de Moura). - So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1998. (Ponta, 16)

Ttulo original: How Institutions Think Bibliografia ISBN 85-314-0455-X 1. Cognio e cultura 2. Comportamento organizacional 1. Ttulo.

3. Instituies sociais Aspectos pedaggicos 98-1938

____________________________________________________________ 1. Instituio: Pensamento: Sociologia ndices para catlogo sistemtico: 306

CDD-306

Mary Douglas, antroploga, pesquisadora e professora, lecionou nas Universidades de Oxford e de Londres, na Northwestern University e atualmente professora visitante na Princeton University.

Digitalizado a partir de software HP OCR I.R.I.S.

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SUMRIO

Apresentao ... ....................................................................6 Prefcio .. ............................................................................10 Introduo ... .......................................................................19

1. As Instituies No Podem Ter Opinies Prprias..........19 2. Dar um Desconto Pequena Escala...............................31 3. Como os Grupos Latentes Sobrevivem ...........................42 4. As Instituies se Fundamentam na Analogia.................57 5. As Instituies Conferem Identidade ...............................67 6. As Instituies Lembram-se e se Esquecem...................82 7. Um Exemplo de Esquecimento Institucional....................96 8. As Instituies Operam a Classificao.........................108 9. As Instituies Tomam Decises de Vida e Morte ........130

Bibliografia.......................................................................... 151

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APRESENTAO

Mary Douglas apresentou a sexta Conferncia Abrams na Universidade de Siracusa, durante as duas semanas de maro de 1985. O evento realizado mediante uma dotao da Fundao Exxon Education, em memria de Frank W. Abrams, que foi presidente do Conselho da Standard Oil Company (New Jersey), a qual antecedeu a Exxon, e presidente do Conselho de Curadores da Universidade de Siracusa. Durante toda sua vida o sr. Abrams liderou todos os esforos no sentido de oferecer apoio educao superior. Ele fundou o Conselho para Ajuda Financeira Educao, serviu como presidente do Fundo da Fundao Ford para o Avano da Educao e foi curador da Fundao Alfred E. Sloan. O sr. Abrams exerceu um papel fundamental ao despertar os empresrios americanos, por meio da educao e de precedentes legais, verdadeiros pontos de referncia para a necessidade de se prestar apoio financeiro educao superior privada. A Fundao Exxon Education continua a expandir inspirada no trabalho desenvolvido por Frank Abrams. O papel de liderana da Fundao no apoio educao superior certamente muito conhecido e respeitado. Somos gratos Fundao por seu generoso apoio a vrios empreendimentos da Universidade e sentimo-nos particularmente orgulhosos da Conferncia Abrams, j que Frank Abrams formou-se em 1912 na Universidade de Siracusa. Um agradecimento especial devido aos membros da Comisso de Planejamento da Conferncia Abrams, frente da qual se encontra Guthrie S. Birkhead, reitor da Escola Maxwell Para a Cidadania e Negcios Pblicos. Com o reitor Birkhead trabalham Michael O. Sawyer, vice-chanceler da Universidade e professor de Direito Constitucional; Richard Oliker, reitor da Escola de Administrao; Richard D. Schwartz; Ernest I. White, professor de Direito; Chris J. Witting, presidente do Conselho de Curadores da Universidade de Siracusa e ~obert Payton, presidente da Fundao Exxon Education.

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Mary

Douglas

revelou-se uma

conferencista e

uma

convidada

extremamente obsequiosa. Realizou cinco magnficas conferncias, teve encontros regulares com os membros do corpo docente e os alunos dos cursos de ps-graduao, visitou classes de graduao e trouxe a marca toda especial de seu calor humano aos dias, algumas vezes enregelados, do incio da primavera em Siracusa.

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PREFCIO

Este livro o resultado de um convite feito pela Universidade de Siracusa para realizar o sexto conjunto de conferncias da srie que homenageia Frank W. Abrams. Em semelhante caso, o tema parcialmente indicado pela forma da ocasio. Um convite formulado pela Escola Maxwell para a Cidadania e Assuntos Pblicos exige temas com grande

desenvolvimento. Um convite para realizar conferncias requer que esses temas sejam compactados para ocupar pouco espao. O fato de ser escolhida como conferencista sugeria que uma sntese pessoal seria apropriada. Para mim esse convite era irresistvel, j que eu teria a oportunidade de voltar a dizer o que tentei colocar. Dirigir-me, dessa vez, a um auditrio crtico e atento na Universidade de Siracusa significava tentar abordar o tema sob novas luzes, torn-lo mais claro, mais convincente e, finalmente, transmiti-lo de maneira apropriada. Torna-se necessria uma teoria das instituies que modifique a atual viso no-sociolgica da cognio humana, bem como uma teoria cognitiva que oferea um suplemento s debilidades da anlise institucional. O tema suficientemente amplo, de interesse momentneo e pouco comentado para que se realize uma abordagem especulativa em torno dele. Este o primeiro livro que eu deveria ter escrito aps minha produo sobre a pesquisa de campo na frica. Em vez disso escrevi Pureza e Perigo (1966), numa tentativa de fazer generalizaes a partir da frica e em relao nossa prpria condio. Meus amigos disseram-me, naquela poca, que Pureza e Perigo era um livro obscuro, intuitivo e despreparado. Eles estavam corretos e, desde ento, venho tentando compreender os fundamentos tericos e lgicos de que necessitaria para apresentar uma argumentao coerente sobre o controle social da cognio. Este volume constitui, na verdade, uma introduo post hoc. como um prolegmeno a Risk Acceptability (1986), que aponta um dedo acusador para certa cegueira profissional e para uma resistncia arraigada ao tema. Risk Acceptability, por sua vez, como uma introduo em acrscimo a Risk and

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Culture (publicado em 1982, em colaborao com Aaron Wildavsky), um livro que demonstra como a anlise antropolgica das crenas pblicas pode ser aplicada ao nosso prprio caso. No entanto, Risk and Culture a argumentao que deveria ter vindo luz antes que lmplicit Meanings fosse publicado em 1970 com um ensaio intitulado O meio-ambiente corre riscos". Todos eles deveriam ter sido editados em ordem inversa, terminando com The Lele of the Kasai (1963). Se isto tivesse acontecido, a Comisso das Conferncias Abrams agora estaria acolhendo a primeira dessas publicaes nas sries que ela vem promovendo. Mas como que isto poderia ter acontecido se fiquei to endividada no decorrer de um tempo to longo? Muitos autores, jovens, velhos e alguns infelizmente mortos ajudaram-me em cada estgio. Espero que este livro possa ser to aceitvel a ponto de romper com o encantamento de tal forma que eu agora possa escrever para diante e no para trs. Este livro comea com a hostilidade dispensada a Emile Durkheim e aos durkheimianos quando se referiram s instituies ou grupos sociais como se eles fossem indivduos. A prpria idia de um sistema cognitivo suprapessoal provoca um sentimento profundo de insulto. A ofensa indcio de que, acima do nvel do indivduo, outra hierarquia de "indivduos" est influenciando os membros que se situam num nvel mais baixo a reagirem violentamente contra essa ou aquela idia. Presume-se que um indivduo que contenha em si seres humanos pensantes seja algum detestvel, totalitrio, que constitua uma ditadura altamente centralizada e eficaz. Por exemplo, Anthony Greenwald recorre a Hannah Arendt e a George Orwell tendo em vista modelos totalitrios daquilo que ele classifica como os domnios do conhecimento extrapessoal (1980). No entanto, a reflexo deixa bem claro que, em nveis mais elevados de organizao, os controles sobre os membros que a constituem, situados em nveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais difusos. Muitos pensadores sutis e capacitados ficam de tal forma nervosos devido crua analogia entre a mente individual e as influncias sociais que preferem descartar o problema. Os antroplogos, entretanto, no podem descart-lo. Emile Durkheim, E. Evans-Pritchard e Claude Lvi-Strauss so grandes lderes que devem ser seguidos. O estudioso cuja marca se faz sentir de maneira mais intensa no 7

tema coberto por este escrito Robert Merton. A ele, com respeito e afeio, dedico este livro, confiando que sua generosidade passar por cima de suas deficincias. Meu marido merece um tributo especial. Quando dois problemas parecem insolveis, nossa longa experincia da vida domstica tem sugerido uma abordagem enviesada. Em vez de atacar de frente cada questo separadamente, pode-se trabalhar com um conjunto de problemas para confrontar os demais. Tal estratgia, que produz novas definies sobre aquilo que deve ser solucionado, que fornece a estrutura deste livro. Durante duas deliciosas semanas gozei da afetuosa hospitalidade do chanceler e da sra. Eggers, bem como de muitos programas e departamentos na Universidade de Siracusa. O trabalho se fez menos penoso devido boa acolhida e ao apoio de Guthrie Birkhead, reitor da Escola MaxwelI, aos sbios conselhos de Manfred Stanley (e no me esqueo das crticas construtivas e slidas de sua famlia) e perfeita organizao de James G. Gies. Sob uma forma ou outra diferentes segmentos do livro foram objeto de algumas tentativas. Os captulos um e dois foram apresentados na Conferncia sobre as Categorias Corretas, patrocinada pela Fundao WennerGren, em honra de Nelson Goodman, na Universidade Northwestern em 1985 e agradeo a todos seus participantes pelas discusses suscitadas. Agradeo tambm a Kai Erikson pela oportunidade de ensaiar partes do captulo trs durante a Hollingshead Memorial Lecture, na Universidade de Yale. Uma primeira verso dos captulos seis e sete foi apresentada no painel sobre "A Ordem Social Possvel?", no encontro da Associao Americana de Sociologia, realizado em San Antonio em 1983. Agradeo ao presidente, James Shorter, a permisso de publicar este estudo alentado sobre a memria pblica. Parte do captulo nove foi divulgada no seminrio de RusselI Hardin sobre a tica, realizado na Universidade de Chicago. Meus agradecimentos a Russell Hardin e a Alan Gewirth por suas valiosas crticas. David Bloor, Barry Barnes e Lawrence Rosen tambm contribuiram com crticas importantes. Muitos, na Universidade Northwestern, fizeram indagaes e criticaram diferentes passagens. Reid Hastie proporcionou o equilbrio necessrio e uma pilha de referncias, a partir de escritos psicolgicos. Robert Welsch leu todo o manuscrito e formulou crticas que muito me ajudaram. Andrew Leslie trabalhou na bibliografia e Richard Kerber pesquisou as classificaes relativas ao 8

comrcio do vinho. Helen McFaul foi a secretria ideal com que todo escritor sonha e ela foi muito alm da execuo de um dever profissional.

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INTRODUO

Escrever sobre cooperao e solidariedade significa escrever, ao mesmo tempo, sobre rejeio e desconfiana. A solidariedade envolve indivduos prontos para sofrer em benefcio de um grupo mais amplo e sua expectativa de que cada membro desse grupo faa o mesmo por eles. difcil falar sobre essas questes com distanciamento. Elas tocam em sentimentos ntimos de lealdade e sacralidade. Qualquer pessoa que tenha aceito a confiana, solicitado sacrifcios ou os tenha praticado voluntariamente conhece o poder do lao social. No caso de um compromisso com a autoridade, dio tirania ou algo que se situe entre esses dois extremos, o lao social encarado como algo que se coloca acima da questo. H resistncias s tentativas de o expr luz do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado. Toda pessoa afetada pela qualidade da confiana que a cerca. Algumas vezes uma firmeza simplria leva os lderes a ignorarem as necessidades pblicas. Algumas vezes a confiana tem breve durao e frgil, dissolvendose facilmente e resultando em pnico. Algumas vezes a suspeita to profunda que a cooperao toma-se impossvel. Um exemplo contemporneo ajudar a esclarecer questes abstratas. No campo da medicina nuclear h um registro magnfico de confiana e cooperao mtuas. Os cientistas dispem de meios aceitveis de conferir reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus mtodos e tm f nos resultados, do mesmo modo que os pacientes e os mdicos confiam um no outro. Se a fora da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das realizaes, ento dispomos de um exemplo eloqente. Rosalyn Yalow apresentou recentemente (1985) um relatrio sobre a histria da subdisciplina qual dedicou sua vida profissional. O relatrio foi inspirado por indcios de que o trabalho est para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao temor dos efeitos negativos da radiao nuclear. Nada do que os cientistas possam dizer em sua defesa conseguir dissipar a desconfiana.

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Rosalyn Yalow comeou a trabalhar no Hospital Administrativo dos Veteranos, no Bronx, nos anos de 1940, a fim de implantar um Servio de Radioistopos que usaria detectores radioativos para investigar a doena. Desde ento as realizaes do Servio tm suscitado admirao. Inicialmente os mdicos usaram o iodeto de rdio para investigar a fisiologia da tiride e trat-la. Ao mesmo tempo empregaram-no para medir o volume do sangue em circulao no corpo. Isto os capacitou a desenvolver mtodos experimentais de avaliao das taxas de sntese e degradao das protenas de soro no sangue. Aplicar essas tcnicas circulao da insulina no corpo levou a uma ampla reviso do que at o momento se conhecia sobre a diabetes. A partir do sucesso obtido no tratamento da tiride e da diabetes, o trabalho acabou resultando no princpio do radioimunoensaio (RIE). um modo de tipificar processos fisiolgicos administrando radioistopos a pacientes e

acompanhando seu comportamento no corpo. As aplicaes do RIE so inmeras em todos os campos da medicina. empregado em amplos programas que objetivam detectar a baixa atividade das glndulas tirides no recm-nascido. Trata-se de um distrbio que no perceptvel pelos mtodos clnicos e afeta um em 4000 nascimentos nos Estados Unidos e quatro em 100 nascimentos no denominado "cinturo do bcio", na regio sul dos Himalaias. Se no for tratado rapidamente aps o nascimento, resultar em retardo mental irreversvel. Desde a deteco e terapia do cncer maligno s doenas cardacas, parece no haver limite para a aplicao do RIE A outra face desse impressionante registro da medicina que milhes de pessoas foram expostas a baixas doses de radiaes nucleares e algumas centenas de milhares a doses moderadas. O acmulo de evidncias demonstra que uma exposio profunda a altas doses pode tomar-se rapidamente mortfera e que a exposio crnica a doses mais moderadas pode resultar em tumores malignos ou em morte prematura. As atuais crticas que ameaam as aplicaes mdicas do RIE levam tais perigos em considerao. Como medir o que uma baixa radiao? O que uma exposio curta ou prolongada? O medo justificado? So indagaes a que o relatrio de Rosalyn Yalow procura dar uma resposta. O assunto altamente tcnico. Desde a alvorada da humanidade nossos ancestrais foram expostos radiao da radioatividade natural do solo 11

e do alimento, bem como dos raios csmicos extraterrestres. Eles constituem os nveis da radiao do meio natural, que variam de uma regio para outra. Em mdia, a exposio radiao produzida pela medicina significa um acrscimo quase igual radiao do meio natural. Para saber se isso perigoso para a sade, factvel realizar pesquisas em regies do mundo onde a radiao do meio natural particularmente elevada e ento se verificar se aqueles que foram expostos a ela apresentam taxas mais elevadas de ocorrncia de cncer. Nos Estados Unidos, sete estados apresentam radiao do meio natural mais elevada do que os demais, porm neles a taxa de ocorrncia de cncer mais baixa do que a taxa mdia da doena em todo o pas. Altitudes elevadas implicam elevada exposio radiao, mas nos Estados Unidos nota-se uma relao inversa entre a elevao e as leucemias e linfomas. Um estudo cuidadoso realizado na China examinou 150 mil camponeses da etnia han, que apresentavam essencialmente o mesmo estilo de vida e a mesma composio gentica. Metade deles viviam em uma regio de solo radioativo, onde recebiam uma exposio quase trs vezes maior do que a outra metade. A pesquisa avaliou um grande nmero de possveis efeitos da radiao sobre a sade, mas no conseguiu detectar quaisquer diferenas entre os habitantes das duas regies. Assim, essa e outras investigaes levam concluso de que a exposio radiao em nveis trs ou at mesmo dez vezes maiores do que a do meio natural no afeta adversamente a sade. Este livro no se preocupa em julgar se aquilo que Yalow denomina "um temor fbico radiao" correto ou no. Um exemplo esclarece vrios outros pontos que sero discutidos nas pginas que se seguiro. A profunda discordncia entre os cientistas que praticam a medicina nuclear, de um lado, e um setor do pblico, de outro lado, ilustra a surdez seletiva, na qual nenhum dos dois interlocutores conseguem, por ocasio de um debate, ouvir o que o outro est dizendo. Em captulos posteriores atribuiremos a inabilidade da converso a argumentos racionais ao domnio exercido pelas instituies em nossos processos de classificao e de reconhecimento. Os praticantes da medicina nuclear declaram que no correm riscos, em se tratando da vida de seus pacientes, ou que esto expondo o restante da populao ao perigo. Os fbicos nucleares negam essa afirmao, pois sabem que toda medicina acarreta um risco. Simplesmente ignorar a questo seria desonesto. O 12

conhecimento e a capacitao mdicas jamais podem bastar. Ao rejeitarem a alegao de que nenhum perigo se encontra presente, eles tero de enfocar a situao do doente que foi salvo e de toda uma populao que foi colocada em perigo. Ningum tem o direito de decidir quem ser sacrificado pelo bem dos outros. O argumento contrrio que os fbicos nucleares se arrogam o direito de tomar essa deciso, j que fazem os direitos das pessoas saudveis vir antes das vidas das vtimas do cncer, do diabetes, das doenas do corao e da tiride, alm dos recm-nascidos beira do retardo mental, que seriam salvos por novas tcnicas de diagnose e de tratamento. A resposta estratgica consiste em declinar da honra de escolher entre as vtimas a serem sacrificadas. Isto implica insistir que a medicina alternativa e uma dieta equilibrada melhorariam, tanto quanto a medicina nuclear, nossas chances de vida, caso lhes fosse dada a mesma oportunidade. O debate entre os que so favorveis medicina nuclear e os que tm fobia a ela constitui um exemplo relevante a favor e contra a solidariedade, expresso sob forma contempornea e sensvel, pois a solidariedade no passa de um gesto, quando no envolve sacrifcio algum. No ltimo captulo sero tecidas consideraes sobre semelhantes escolhas. Com o intuito de preparar o leitor, os captulos anteriores insistiro laboriosamente na base compartilhada do conhecimento e dos padres morais. A concluso a que se chegar que os indivduos em crise no tomam sozinhos decises relativas vida e morte. Para dar nfase ainda maior nossa colocao, diremos que o raciocnio individual no consegue resolver tais problemas. Uma resposta s parece ser correta quando apia o pensamento institucional que j se encontra na mente dos indivduos enquanto eles procuram chegar a uma deciso. Recorreu-se a um exemplo fictcio, "O processo dos exploradores espelelogos", para ilustrar precisamente as respostas divergentes dos filsofos ao problema de se saber se uma pessoa deve ser sacrificada em benefcio das vidas alheias (Fuller 1949). A histria passa-se no Supremo Tribunal de um lugar chamado Newgarth, no ano de 4 300. Quatro homens foram condenados por homicdio em um tribunal de instncia inferior e o processo subiu ao Supremo, em grau de apelao. O presidente do Tribunal resume o acontecido. Cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiram explorar uma caverna; a queda de uma enorme rocha bloqueou a nica 13

entrada; uma grande equipe de resgate comeou a cavar um tnel atravs da rocha, mas o trabalho era rduo e perigoso. Dez membros da equipe morreram na tentativa de salvao. No vigsimo dia do desabamento foi estabelecido contato pelo rdio e os homens aprisionados perguntaram quanto tempo demoraria para serem resgatados. Estimou-se que o mnimo necessrio seriam mais dez dias. Eles solicitaram conselhos mdicos sobre a insuficincia de suas raes e ficaram sabendo que no poderiam esperar sobreviver por mais dez dias. Indagaram ento se teriam chances de sobreviver se consumissem a carne de um de seus companheiros e, com muita relutncia, lhes foi dito que sim, mas ningum sacerdote, mdico ou filsofo se dispunha a aconselhlos sobre o que fazer. Depois disso cessou a comunicao pelo rdio. No trigsimo-segundo dia do desabamento o bloqueio da entrada foi rompido e quatro homens saram da caverna. Eles disseram que um deles, Roger Whetmore, havia proposto a soluo de comer a carne de um dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita por meio de um lance de dados. Mostrou ento um dado que, por acaso, trouxera. Os outros acabaram concordando e estavam para pr o plano em ao quando Roger Whetmore recuou, dizendo que preferia esperar mais uma semana. Eles, no entanto, foram em frente, jogaram o dado quando chegou a vez dele, e sendo Roger Whetmore indicado como vtima, mataram-no e comeram-no. Iniciando a discusso, o presidente do Tribunal expressou a opinio de que o jri havia agido corretamente ao declar-los culpados, pois, segundo a lei, no havia a menor dvida quanto aos fatos; eles, por vontade prpria, haviam tirado a vida de outra pessoa. Ele props que o Supremo Tribunal confirmasse a pena e solicitasse clemncia mais alta autoridade do Poder Executivo. Seguiram-se as declaraes de voto dos quatro outros juzes. O primeiro deles afirmou que seria uma iniqidade conden-los por homicdio. Em vez de um pedido de clemncia, propunha que fossem inocentados. Sua argumentao invocava dois princpios distintos. Os homens, encurralados, haviam sido geograficamente subtrados da fora da lei; separados por uma slida muralha de pedra, seria o mesmo que estar em uma ilha deserta, em territrio estrangeiro. Em circunstncias desesperadoras, encontravam-se moral e legalmente no estado da natureza, e a nica lei a que 14

estavam sujeitos era o acordo ou contrato que firmaram entre si. J que a vida de dez trabalhadores havia sido sacrificada para salv-Ios, quem quisesse condenar os acusados deveria preparar-se para processar, pela morte daqueles homens, quem organizou o socorro. Ele insistiu finalmente na diferena entre o texto da lei e a interpretao de seus objetivos. No fazia parte dos propsitos da lei definir o homicdio para condenar aqueles homens famintos, que poderiam ter sido movidos por uma atitude de autodefesa. O prximo juiz discordou veementemente dessa colocao,

perguntando: "Baseados em que autoridade nos investimos em um Tribunal da Natureza?", Absteve-se em seguida de tomar uma deciso. O terceiro juiz tambm no concordou com o primeiro, insistindo que todos os fatos demonstravam que os acusados haviam tirado a vida de seu companheiro por vontade prpria. Discordou igualmente da deciso do presidente do Tribunal quanto ao pedido de clemncia. No cabia ao Poder Judicirio refazer a lei ou interferir em outros departamentos do governo. O ltimo juiz concluiu que os acusados eram inocentes no em relao aos fatos ou lei, mas porque "os homens so regidos no por palavras escritas numa folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens". Nesse caso preciso, as pesquisas de opinio mostraram que 90% dos entrevistados estavam a favor do perdo. Ele, entretanto, no apoiou a recomendao do presidente do Tribunal por saber que o chefe do Executivo, entregue a si mesmo, recusaria o perdo e estaria menos inclinado a conceder a clemncia caso uma recomendao nesse sentido partisse do Supremo Tribunal. Assim, ele no fez recomendao alguma para o perdo, mas favoreceu uma absolvio. Somente o presidente do Tribunal se mostrava favorvel no sentido de solicitar clemncia. Dois juzes favoreceram a absolvio; dois eram a favor da condenao; um dos juzes se absteve. Estando o Supremo Tribunal igualmente dividido, foi confirmada a condenao do tribunal de primeira instncia. Os homens foram sentenciados e condenados a morrer na forca. Ao relatar essa fbula, Lon Fuller nos apresentou o padro da opinio jurdica vigente desde a Era de Pricles at a poca em que esse texto foi escrito. Dois dos juzes demonstraram forte simpatia pelos acusados e recomendaram a reverso da condenao, mas por motivos diferentes. 15

evidente que o primeiro juiz no se importa absolutamente com estatutos, conforme se queixa um de seus doutos confrades. Sente-se pessoalmente atrado pela idia da natureza, limitada unicamente pelo contrato entre os indivduos. Exprime-se de maneira comovente, como se se imaginasse na caverna, estabelecendo um pacto e jogando para ganhar ou perder. Seus conceitos liberais so apropriados a uma forma de sociedade na qual sua inclinao a assumir riscos e sua prontido em negociar fariam sentido. to inerente a ele a idia de um contrato que deixa de levar em considerao que a vtima havia-se retirado do pacto estabelecido. Ao propor o argumento da autodefesa ele chega at mesmo a ignorar outro fato: o de que a vtima no apresentava ameaa alguma vida dos acusados. Os demais juzes no tiveram dificuldade em encontrar razes para discordar dele. O ltimo juiz, que tambm recomendou a absolvio, dificilmente parece estar raciocinando como um advogado. Quer deixar de lado as legalidades tolas. Sente que consegue ler os pensamentos dos acusados e considera que seria ultrajante conden-los depois dos horrores por que passaram. Os motivos e as emoes so o que contam para ele. Tambm consegue ler os pensamentos do presidente do Executivo, ao qual ligado por laos de famlia. Aquilo que ele preconiza destina-se precisamente a fazer malograr as motivaes negativas do chefe do Executivo. Este juiz, ardiloso e afvel, honra a verdade emocional. Sua postura corresponde aos conceitos expressos pelas seitas igualitrias fundadas para rejeitar um ritualismo desprovido de sentido e pregar diretamente ao corao dos homens. O terceiro juiz no se mostra nem simptico nem antiptico. Para ele o que importa a lei, a responsabilidade dos juzes em dispens-la e a alocao existente de diferentes funes em um estado complexo. um

constitucionalista e sente-se vontade em uma sociedade baseada na hierarquia. Os trs julgamentos expressam trs filosofias jurdicas distintas. No por acaso que Lon Fuller escolheu temas recorrentes na histria da jurisprudncia. Esses temas surgem a cada momento por corresponderem a formas recorrentes da vida social. Em outro escrito, ns os descrevemos como individualistas, sectrios e hierrquicos (Douglas & Wildavsky 1982). Nada far com que esses juzes concordem diante de uma questo de vida e morte to 16

complicada. Eles recorrem a seus compromissos institucionais para chegar a uma reflexo. Este livro foi escrito precisamente para encorajar mais investigaes em torno do relacionamento entre as mentes e as instituies. Para enfocar ainda mais os princpios elementares da solidariedade e da confiana, voltemos histria no ponto em que os cinco homens ficam sabendo que no conseguiro o sobreviver com o alimento de que dispem. Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidria. Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do ltimo juiz com os princpios hierrquicos. Ento aceitariam a idia de que um deles poderia muito justamente ser sacrificado em prol da sobrevivncia dos demais. A idia de escolher a vtima por meio de um lance de dados pareceria irracional e irresponsvel. O lder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a honra do sacrifcio. Como o lder exerce um papel importante na comunidade onde vivem, os demais contestariam sua deciso. Eles jamais poderiam voltar a enfrentar a luz do dia aps matar e comer o juiz de paz, o proco ou o lder dos escoteiros. Ento o membro mais jovem e menos importante se proporia; os demais no concordariam devido a sua juventude e a toda vida que ele teria pela frente. Seria ento a vez do mais velho, sob o pretexto de que sua vida havia chegado ao fim e, ento, entraria em cena o pai de uma numerosa famlia. Durante os dez dias de seu cativeiro eles passariam o tempo todo procurando, com muita civilidade, um princpio hierrquico satisfatrio que designasse sua vtima, mas talvez jamais chegariam a encontr-la. Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna so membros de uma seita religiosa que esto passando juntos um feriado. Ao tomar conhecimento de que 500 toneladas de pedra bloquearam a sada eles se rejubilam, pois se do conta de que chegou o dia do julgamento supremo e que esto irrevogavelmente separados de Armagedon, para sua eterna salvao. Ento passam o tempo de espera entoando hinos de louvor. Somente os individualistas, a quem nenhum lao liga mutuamente, que no esto imbudos de nenhum princpio de solidariedade, acolheriam o jogo do canibalismo como soluo apropriada. Discutindo a partir de diferentes premissas, jamais poderemos aperfeioar nossa compreenso, a menos que examinemos e reformulemos nossos pressupostos. Os captulos que se seguem pretendem esclarecer at 17

que ponto o pensamento depende das instituies. Trata-se de uma argumentao complexa, que necessita quadros de referncia muito claros. Escolhi abordar a solidariedade e a cooperao por meio da obra de Emite Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente possvel na medida em que os indivduos compartilhem as categorias de seu pensamento. O fato desse compartilhar ser possvel algo inaceitvel para muitos filsofos. Ela contradiz os axiomas bsicos da teoria do comportamento racional, segundo os quais cada pensador tratado como um indivduo soberano. No entanto, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partir desta estrutura axiomtica, apresenta dificuldades insuperveis no caso da solidariedade. O plano desses escritos foi juntar essas duas abordagens, propondo que os conceitos de Durkheim e de Fleck sejam encarados com maior seriedade do que aconteceu precedentemente ao se discutir a natureza do lao social. H urna tendncia de descartar Durkheim e Fleck porque eles parecem estar afirmando que as instituies tm opinies prprias. claro que as instituies no podem ter opinies. Vale a pena dedicar um tempo compreenso do que esses pensadores realmente disseram.

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1 AS INSTITUIES NO PODEM TER OPINIES PRPRIAS

No qualquer nibus lotado ou um ajuntamento aleatrio de pessoas que merece o nome de sociedade. preciso que entre seus membros exista algum pensamento e algum sentimento que se assemelhem. Isto no quer dizer, porm, que um grupo que se associa possua atitudes prprias. Se ele possui algo, devido teoria legal que o reveste de uma personalidade fictcia. A existncia legal, entretanto, no basta. Os pressupostos legais no atribuem vezes emocionais ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser legalmente constitudo no se pode dizer que um grupo "comporta-se" e muito menos que ele pensa ou sinta. Se isso for literalmente verdade algo implicitamente negado por boa parte do pensamento social. A teoria marxista presume que uma classe social pode perceber, escolher e agir de acordo com seus prprios interesses grupais. A teoria democrtica baseia-se no conceito da vontade coletiva. No entanto, quando se trata de empreender uma anlise detalhada, a teoria da escolha racional individual s encontra dificuldades ao abordar o conceito de comportamento coletivo. axiomtico, para a teoria, que o comportamento racional se baseia em motivos de auto-referenciao. O indivduo calcula o que aquilo que melhor atende a seus interesses e age de acordo com isso. Este o fundamento da teoria sobre a qual se baseia a anlise econmica e poltica, e, no entanto, ficamos com a impresso contrria. Nossa intuio nos diz que os indivduos contribuem, sim, para o bem pblico com generosidade, at mesmo sem hesitaes, sem a inteno bvia de obter um benefcio prprio. Esmiuar o significado do comportamento auto-referenciado at que cada possvel motivo desinteressado seja includo apenas serve para tomar a teoria em algo ocioso, intil. Emile Durkheim tinha outro modo de pensar a respeito do conflito entre o indivduo e a sociedade (Durkheim 1903, 1912). Ele o transferiu para os

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elementos conflitantes na pessoa. Para ele o erro inicial est em negar as origens sociais do pensamento individual. As classificaes, as operaes lgicas e as metforas que nos guiam so dadas ao indivduo pela sociedade. Acima de tudo, o senso da correo apriorstica de algumas idias e a ausncia de sentido de outras so lidadas como algo que faz parte do entorno social. Durkheim era de opinio que a reao de indignao quando julgamentos estratificados so desafiados uma resposta visceral devida diretamente a um compromisso com um grupo social No seu modo de ver, o nico programa de pesquisa que explicaria como um bem coletivo criado seria trabalhar a questo da epistemologia. O pensamento de Durkheim muito adequado a nossa poca. Ele acreditava que o utilitarismo jamais seria responsvel pelas bases da sociedade civil. Na poca dele, muitos dos sofisticados problemas e paradoxos do utilitarismo no eram levados em conta. Ele, porm, estava convencido o tempo todo de que o modelo benthamita, segundo o qual uma ordem social produzida automaticamente devido a aes auto-interessadas de indivduos racionais, era por demais limitado, j que no explicava a solidariedade grupal. A epistemologia sociolgica de Durkheim suscitou considervel oposio e, at nossos dias, no se desenvolveu. Ao enaltecer o papel da sociedade na organizao do pensamento, ele amesquinhou o papel do indivduo. Por isso foi atacado como racionalista e radical. Como no explicou detaIhadamente os passos precisos de sua argumentao funcionalista, Durkheim suscitou a queixa oposta no ser racional demais, mas ser atraente para o irracionalismo. Parecia estar invocando uma entidade mstica, o grupo social, revestindo-o de poderes superorgnicos, auto-suficientes. Devido a isto foi atacado como um terico social conservador. Apesar dessas fraquezas, seu conceito ainda era bom demais para ser descartado. Os recursos

epistemolgicos podem ser capazes de explicar aquilo que no pode ser explicado pela teoria do comportamento racional. De acordo com Robert Merton, o interesse francs pela sociologia do conhecimento era grandemente independente das prolficas discusses sobre a ideologia e a conscincia social travadas na Alemanha naquela mesma poca. O ensaio de Merton sobre Karl Mannheim fornece elementos essenciais para essa questo (1949). Ele assinalava que os franceses, ao escolher 20

problemas, enfatizavam "a gama de variaes entre diferentes povos, no s no que se referia a estruturas morais e sociais, mas tambm no que dizia respeito orientao cognitiva". Por outro lado, a sociologia alem do conhecimento era profundamente marcada pelo hegelianismo de esquerda e pela teoria marxista. Em suas primeiras formulaes, a sociologia do conhecimento alem estava presa a problemas relativistas e era dominada por intenes propagandsticas. Na medida em que tais elementos foram gradualmente eliminados, o enfoque do assunto voltou-se muito mais para as relaes do indivduo com a ordem social em geral. Fazia-se e ainda se faz visla grossa em relao ao efeito da variao na ordem social. Todo o enfoque se direcionava para os interesses. A habitual tipologia do conhecimento, por exemplo, tendia a explicar diferentes pontos de vista de acordo com os interesses conflitivos de diferentes setores na moderna sociedade industrial. No havia uma tentativa de se comparar pontos de vista baseados em tipos de sociedade totalmente diferentes. Merton conclui seu ensaio listando as Calhas lgicas na argumentao de Mannheim e expe os estratagemas tericos empregados por este ltimo com o objetivo de as superar. Fica bem claro que nenhuma estrutura comparativa disciplinada poderia surgir de uma sociologia que no se mostrava interessada na gama de variedades existentes entre diferentes sociedades. Os conceitos durkheimianos franceses tm sido menos assimilados pela sociologia da cincia em comparao com a contribuio alem. Em primeiro lugar, eram menos impositivos devido ao fato de serem menos polticos, pois lidavam com exemplos referentes a povos distantes e exticos. Em segundo lugar, a sociologia, embora possa ter abordado inicialmente questes filosficas e temas polticos, recebeu grande impulso para seu desenvolvimento porque forneceu um instrumento indispensvel para propsitos administrativos. Assim, o programa intelectual de Durkheim extenuou-se. Felizmente o atual interesse pela obra de Ludwik Fleck em tomo da filosofia da cincia coincide com um vivo interesse pela teoria poltica, ao abordar as fontes do compromisso e do altrusmo. Em seu livro sobre a identificao da sfilis, The Genesis and Development of a Scientific Fact (1935), Fleck elaborou e ampliou a abordagem de Durkheim. Valeria a pena realizar uma comparao detalhada entre seus pontos de concordncia e suas 21

diferenas. Em vrias passagens FIeck foi muito alm de Durkheim; em outras faltou-lhe a idia central, sintetizadora. Ambos eram igualmente enfticos em relao base social da cognio. Em seu ataque to ctico s teorias causais, David Hume j havia colocado a questo para Durkheim. Ele afirmou que em nossa experincia encontramos apenas sucesso e freqncia, mas nenhuma lei ou necessidade. Somos ns que atribumos a causalidade. Citando Hume, Durkheim colocou a mesma questo para uma platia imaginria de filsofos apriorsticos, desafiando-os a nos demonstrar "se detemos esta surpreendente prerrogativa e como possvel ver certas relaes em coisas cujo exame nada nos pode revelar." Sua resposta era que as categorias de tempo, espao e causalidade possuem uma origem social.

Elas representam as relaes mais gerais existentes entre as coisas; ultrapassando em extenso todas as outras nossas idias, elas dominam todos os detalhes de nossa vida intelectual. Se os homens no concordassem com essas idias essenciais em qualquer momento, se no tivessem os mesmos conceitos de tempo, espao, causa, nmero etc., todo contato entre suas mentes seria impossvel e, com isso, toda vida em coletividade. Assim, a sociedade no poderia abandonar as categorias relativas livre escolha do indivduo sem abandonar a si mesma (...) Existe um mnimo de conformidade lgica que ela no pode ultrapassar. Devido a esse motivo, ela lana mo de toda a autoridade que exerce sobre seus membros para impedir tais dissidncias (...) A necessidade com a qual as categorias nos so impostas no o efeito de simples hbitos, um jogo de que podemos livrar-nos com pouco esforo; tambm no uma necessidade fsica ou metafsica, j que as categorias mudam em diferentes lugares e pocas; um tipo especial de necessidade moral, que representa, para a vida intelectual, aquilo que a obrigao moral representa para a vontade (Durkheim 1912, p.2930). Comparemos isto com o que escreve Fleck:

A cognio a atividade do homem mais socialmente condicionada e o conhecimento a suprema criao social. A prpria estrutura da linguagem apresenta uma filosofia impositiva, caracterstica daquela comunidade e at mesmo uma simples palavra pode representar uma teoria complexa (...) banal toda teoria epistemolgica que no leve em conta a dependncia sociolgica de lodo cognio, de maneira fundamental e detalhada (Fleck 1935, p. 42).

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Fleck foi mais longe que Durkheim ao analisar o conceito de um grupo social. Ele introduziu vrios termos especializados: a coletividade de pensamento (equivalente ao grupo social de Durkheim) e seu estilo de pensamento (equivalente s representaes coletivas de Durkheim), que conduz e treina a percepo e produz uma proviso de conhecimentos. Para Fleck, o estilo de pensamento estabelece as pr-condies para qualquer cognio e determina o que pode ser considerado uma questo razovel e uma resposta verdadeira ou falsa. Tal estilo propicia o contexto e fixa limites para qualquer julgamento relativo realidade objetiva, Seu trao essencial que ele est oculto dos membros da coletividade de pensamento.

O indivduo, no contexto do coletivo, nunca, ou quase nunca, tem conscincia do estilo de pensamento predominante que, quase sempre, exerce uma fora absolutamente compulsiva sobre seu pensamento, e com o qual no possvel discordar (Fleck, 1935, p. 41). O estilo de pensamento de Fleck est muito prximo da idia de um esquema conceitual, que, de acordo com alguns filsofos, limita e controla a cognio individual com tamanho rigor que exclui a comunicao transcultural. Para Fleck, o estilo de pensamento to soberano para o pensador quanto a representao coletiva o era na cultura primitiva, segundo defendia Durkheim. Fleck, porm, no estava se referindo aos primitivos. Para Durkheim, a diviso do trabalho responsvel pela grande diferena entre a sociedade moderna e a primitiva. Para compreender a solidariedade deveramos examinar aquelas formas elementares de sociedade que no dependem da troca de servios e produtos diferenciados, De acordo com Durkheim, nesses casos elementares, os indivduos passam a pensar da mesma forma, ao internalizar sua concepo de ordem social e ao sacraliz-la. O carter do sagrado ser perigoso e estar exposto ao perigo, convocando todo bom cidado a defender seus baluartes. O universo simblico compartilhado e as classificaes da natureza incorporam os princpios de autoridade e coordenao. Em um sistema como esse, problemas de legitimidade so resolvidos porque os indivduos carregam a ordem social no seu ntimo onde quer que vo, projetando-a na natureza. No entanto, uma diviso avanada do trabalho destri essa harmonia entre a moralidade, a

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sociedade e o mundo fsico, substituindo-a por uma solidariedade que depende do comportamento do mercado. Durkheim no era de opinio que a solidariedade baseada em smbolos sagrados fosse possvel na sociedade industrial. Na poca moderna a sacralidade foi transferida para o indivduo. Essas duas formas de solidariedade constituem a base da principal tipologia na teoria de Durkheim (Durkheim 1893, 1895). Fleck distinguia as comunidades de pensamento coletivo,

compreendendo os verdadeiros crentes, da comunidade de pensamento, anteriormente membros daquela primeira, mas no necessariamente sujeitos s coeres do estilo de pensamento. Admitia que as comunidades de pensamento coletivo variassem de acordo com sua persistncia ao longo do tempo, das formaes mais transitrias e acidentais s formaes mais estveis. Julgava o estilo de pensamento das formaes estveis mais disciplinado e uniforme, a exemplo do que ocorria nas associaes, sindicatos e igrejas. Fleck se deu ao trabalho de discutir a estrutura interna dos grupos. Uma elite interna, de iniciados hierarquizados, existe no centro e a massa se localiza nas bordas. O centro o ponto que pe tudo em movimento. As bordas adotam suas idias em um sentido literal e inquestionvel; a ossificao ocorre exatamente a. Fleck divisava muitos universos de pensamento, cada um com seu centro e suas bordas, interceptando, separando e se fundindo. Era algo paralelo densidade moral presente na teoria de Durkheim. Fleck reconhecia que a quantidade de interao podia variar; o grau de concentrao e energia no centro depende da presso da demanda por parte das bordas externas. Quando essa interao forte, a questo da divergncia individual mal se coloca. Fleck no estava interessado na sacralidade ou na evoluo social. Ainda assim ele aplicava sociedade moderna e at mesmo cincia a idia durkheimiana de um estilo de pensamento soberano, o que teria horrorizado Durkheim. Conforme disse Fleck, os durkheimianos ostentavam "um respeito excessivo, que chegava aos limites de uma reverncia pia, aos fatos cientficos" (p. 49-51). Ele ridicularizava essa atitude, achando que ela era um obstculo simplrio construo de uma epistemologia cientfica. As afirmaes de Durkheim evocam freqentemente uma mente grupaI, misteriosa e supra-orgnica. Fleck, com toda certeza, no pode ser acusado da mesma falha. Sua abordagem era inteiramente positivista. Ao lidarmos com as 24

crticas que afetam a ambos, a boa estratgia consiste em deixar que Durkheim e Fleck realizem uma defesa comum. Algumas vezes Fleck tem a melhor resposta, outras vezes, Durkheim. Lutando como aliados, de costas um para o outro, cada um, com sua fora, pode suprir a fraqueza do outro. Em seu prefcio, o organizador-tradutor do livro de Fleck compara a rejeio inicial que ele sofreu por parte dos resenhadores ao sucesso instantneo e ruidoso alcanado por Logic der Forschung, de Karl Popper, publicado quase na mesma poca (Trenn 1979, p. X). A diferena quanto receptividade pode ser explicada em boa parte pelo relativo vigor da coletividade de pensamento a que cada um desses escritores pertencia. Popper era uma personalidade bastante conhecida na prestigiosa confraria de filsofos vienenses e Fleck, um intruso em relao filosofia, mas gozava de considerao. Um esboo biogrfico descreve Fleck como "um humanista com conhecimento enciclopdico" (Fleck, p. 149-53). Mdico e bacteriologista, cujas publicaes e pesquisas se referiam serologia do tifo, da sfilis e de vrios organismos patognicos, ele no estava bem posicionado para impressionar os filsofos. Seria mais durkheimiano adotar o prprio conceito de Fleck, segundo o qual a coletividade de pensamento, isto , a organizao social, explica a falta de ateno com que ele foi acolhido inicialmente. Ainda assim, interessante seguir a idia do organizador da edio, segundo a qual seu fracasso inicial foi uma questo de estilos de pensamento incompatveis. Com efeito, parece que os primeiros resenhadores acusaram Fleck de uma minimizao reducionista do papel do cientista. Ele foi censurado por negligenciar as personalidades individuais na histria da cincia. Sua anlise sociolgica foi descartada por acrescentar pouco quilo que Max Weber j havia dito. No todo, foi criticado por toda sua mensagem global e no por quaisquer elementos incidentais. O vigoroso apelo que fez a favor da epistemologia sociolgica e comparativa foi rejeitado. Os organizadores das edies de seus livros acreditam que os tempos mudaram e que agora ocorreu uma mudana decisiva no estilo de pensamento. Existe certamente um novo interesse por distintos estilos de raciocnio na histria da cincia. Galileu introduziu um novo estilo de pensamento que tomou impossveis antigas indagaes. O captulo "Language, Truth and Reason" ("Linguagem, Verdade e Razo"), de Ian Hacking (1982), resenha 25

rapidamente inmeros ensaios recentes e influentes na histria da cincia sobre "novos modos de raciocnio que tm incio e trajetrias especficas de desenvolvimento" (p. 51). Na maioria dos casos, entretanto, a tendncia interessar-se pelo estilo de pensamento e no por sua relao com o pensamento coletivo. Se a mudana de direo, em Fleck, for criativa, ela no dever separar estilo de pensamento de coletividade de pensamento, o que, mais uma vez, levaria ao fracasso da parte sociolgica do . empreendimento. Thomas Kuhn foi o primeiro desde 1937 a chamar ateno para o livro de Fleck, fazendo uma referncia a ele (Kuhn 1962). Em seu prefcio traduo inglesa, ele exprime certas hesitaes que ainda sero amplamente compartilhadas. A posio de Fleck, afirmou, no est livre de problemas fundamentais.

(...) para mim eles se agrupam, conforme aconteceu na primeira leitura, em tomo do conceito de uma coletividade de pensamento (...) Considero este conceito intrinsecamente equivocado e uma fonte permanente de tenso no texto de Fleck. Colocado de maneira resumida, a coletividade de pensamento parece funcionar como a mente individual em larga escala, pelo fato de muitas pessoas o possurem (ou serem possudas por ele). Com o intuito de explicar sua aparente autoridade legislativa, FIeck recorre repetidamente a termos emprestados do discurso sobre os indivduos (Kuhn 1979, p. X). Resumindo: pensamento e sentimento so para as pessoas, enquanto indivduos. Pode, entretanto, um grupo social pensar ou sentir? Este o paradoxo central, incongruente. Kuhn aprecia no livro de Fleck inmeras percepes, mas no a principal argumentao deste autor. Ao rejeit-la, Kuhn compartilha um certo mal-estar com muitos liberais. A filosofia da justia de John Rawls fundamenta-se em total individualismo; na sua opinio, "a sociedade constitui um todo orgnico, com vida prpria, distinta e superior vida de todos seus membros em suas relaes mtuas" (Rawls 1971, p. 264). verdade que existem agora vrios movimentos de idias em cuja direo Fleck apontava com tamanha premncia. Por exemplo, podemos lidar mais facilmente com termos desconfortveis. Os tradutores refletiam e rejeitavam vrias alternativas para o termo denkkollectiv: "escola de pensamento" ou "comunidade cognitiva", antes de adotarem a traduo literal, "coletividade de pensamento". Agora, porm, o termo "universo" adquiriu um 26

sentido apropriado, embora universo (incluindo os universos distinguveis da teologia, da antropologia e da cincia), no lugar de coletividade de pensamento, seria um termo fiel ao conceito essencial de Fleck, ligando-o apropriadamente s obras Ways of Worldmaking, de Goodman (1978), e a Art Worlds, de Becker (1982). O tema de Fleck era a descoberta cientfica, o de Becker, a criatividade artstica, e o de Goodman, a cognio em geral. Cada um desses pensadores muito independentes tem notvel afinidade com os demais. Becker insiste que o esforo coletivo produz uma obra de arte, embora ela seja atribuda a determinado artista. Inclui no universo da arte, juntamente com o artista, a colaborao annima dos fornecedores, os fabricantes de telas e tintas, os moldureiros, os distribuidores, os designers grficos dos catlogos, as galerias e o pblico. um acaso histrico que faz com que uma classe de atores no mundo artstico da pintura ocidental seja designada individualmente e celebrada como "artistas". Em outros universos, em outras pocas e lugares, a coletividade do estdio ou a corporao de ofcios sobrepuja a fama do indivduo. Todos os universos da arte dependem da existncia de um pblico para a obra de arte. A interao com a solicitao do pblico constitui uma parte fundamental e criativa do universo da msica ou da pintura. Fleck adotou o mesmo partido, enfatizando o papel da prtica de laboratrio e o papel do apoio pblico.

Se no fosse o insistente clamor da opinio pblica a favor do teste de sangue de Wassermann jamais teriam gozado daquele respaldo social absolutamente essencial ao desenvolvimento da relao, sua "perfeio tcnica" e acumulao da experincia coletiva. Somente a prtica laboratorial explica com facilidade porque o lcool e, posteriormente, a acetona deveriam ser tentados, alm da gua, tendo em vista o preparo do extrato, e porque deveriam ter sido usados rgos saudveis, alm de rgos atingidos pela sfilis. Muitos investigadores realizaram essas experincias quase simultaneamente, mas a verdadeira autoria se deve coletividade, prtica do trabalho cooperativo e em equipe (FIeck, 1935, p. 77-78). Fleck chegou mesmo ao ponto de prescrever o anonimato e a modstia a todos os cientistas. Este ideal democrtico pode explicar em parte por que ele escolheu o modelo russo de uma fazenda coletiva para descrever os universos da cincia.

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Nelson Goodman coloca que a correo das categorias depende de como elas se adequam a um universo. A correo, com o significado de adequao ao e adequao a outras categorias, corre paralelamente ao conceito de harmonia, elaborado por Fleck, entre elementos pertencentes a um estilo de pensamento. Quase se equipara ao conceito de Fleck, segundo o qual a verdade, em certo sentido, feita de iluses (frase que perturbava Kuhn). O modo pelo qual FIeck explicava a construo da realidade objetiva por meio das experincias sociais da coletividade de pensamento est muito prximo da explicao de Goodman, segundo a qual a correo se adequa prtica.

Sem a organizao e a seleo de diferentes espcies, efetuada por uma tradio que se desenvolve, no existe correo ou erros de categorizao, validade ou invalidade da referncia indutiva, amostragem representativa ou no-representativa, uniformidade ou disparidade entre as amostragens. Assim, justificar testes tendo em vista a correo poder consistir basicamente em demonstrar, no que eles sejam confiveis, mas que sejam fundamentados (Goodman 1978, pp. 138-39). Os antroplogos tm empregado modos de pensamento para referir-se aos mesmos universos e idias fundamentalmente entrelaados (Horton & Finnegan 1973). Agora mais fcil empregar as expresses universo da cincia, das artes, da msica ou do pensamento no lugar de coletividade de pensamento para aquele agrupamento social que definido por seu estilo de pensamento prprio, pois invoca os contemporneos laos de apoio ao conceito bsico de Fleck. O cenrio poder estar bem preparado, mas o programa de DurkheimFleck relativo sociologia do conhecimento fracassar caso se baseie em um erro fundamental. Duas graves objees se levantam contra ele. A primeira delas diz respeito a explicaes funcionais imprecisas. A tese central de Durkheim, segundo a qual a religio mantm a solidariedade do grupo social, uma explicao funcional. FIeck tem sua prpria verso de um circuito funcional auto-sustentvel:

A estrutura geral de uma coletividade de pensamento implica que a comunicao de pensamentoa em uma coletividade, 28

independentemente de contedo ou justificativa lgica, deveria levar, por razes sociolgicas, corroborao da estrutura de pensamento (Fleck 1935. p. 103). Ambos eram funcionalistas. Coloca-se uma interrogao: suas argumentacoes falham ao no proporcionar os passos lgicos necessrios? Caso contrrio, poderia existir uma argumentao funcionalista melhor que justificaria as correlaes deles? A segunda objeo diz respeito base racional da ao coletiva. Se se presume que os indivduos sejam racionais e procurem seu prprio interesse, faro alguma vez sacrifcios em benefcio do grupo? E caso eles ajam contra seu prprio interesse, que teoria de motivao humana explicaria esse comportamento? Durkheim recorre religio para oferecer algumas

explicaes. Para Fleck, qualquer sistema de conhecimento uma espcie de bem pblico, conseqentemente, a prpria religio coloca os mesmos problemas. Para ambos, a verdadeira questo a emergncia da prpria ordem social. As pginas que se seguem no dizem respeito a quem quer que afirme que a ordem social nasce espontaneamente. A teoria da escolha racional probe que um engajamento espontneo se incorpore argumentao, sob o disfarce da religio. O engajamento que subordina os interesses individuais a um todo social mais amplo precisa ser explicado. Para muitos leitores de Durkheim, sua argumentao parece apoiar-se demais na religio e se, tendo em vista os propsitos da epistemologia sociolgica desses leitores, a crena religiosa deve equacionar-se com qualquer outro sistema de conhecimento, ento a assertiva de Fleck, segundo a qual um estilo de pensamento reina soberano sobre seu universo de pensamentos, tambm algo que parece suspeito. Como foi que surgiu essa soberania? isso que os tericos da escolha racional exigem que seja explicado. Por outro lado, a teoria da escolha racional apresenta grandes limitaes. As pessoas no parecem agir de acordo com os princpios dela (Hardin 1982). O programa de Durkheim e Fleck pode dar uma resposta crtica funcionalista e crtica da escolha racional apenas quando desenvolve uma dupla viso do comportamento social. Uma dessas vises cognitiva: a existncia individual de ordem, coerncia e controle da incerteza. A outra viso transacional: a utilidade individual maximiza a atividade descrita em um 29

clculo que envolve o custo-benefcio. Na maior parte deste volume pouco diremos a respeito desta ltima viso, que j se encontra muito bem representada nos escritos acadmicos. O exemplo mal representado o papel desempenhado pela cognio na formao do lao social.

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2 DAR UM DESCONTO PEQUENA ESCALA

As sociedades em pequena escala so diferentes. Muitos daqueles que so bem informados sobre a dificuldade de explicar a ao coletiva no bojo da teoria da escolha racional contentam-se em abrir excees. A pequena escala alarga o campo de ao dos efeitos interpessoais. Todo o campo da psicologia localiza-se aqui, juntamente com as emoes irracionais. Quando a escala das relaes suficientemente pequena para ser pessoal qualquer coisa pode acontecer e a teoria da escolha racional reconhece os limites de seus domnios. Em conseqncia, parece no existir um problema terico em relao ao altrusmo quando a organizao social muito pequena. Entretanto, um exame mais detido revela que isentar as sociedades de pequena escala da fora da anlise racional algo que no resiste bem a lima crtica. Elas no podem ser mais isentas do que as organizaes religiosas. O objetivo deste captulo ampliar os argumentos da escolha racional, de tal modo a abrir aquelas reas interditas onde no se supe que a teoria penetre. Ento a teoria se desnuda. Ela enfrentar inelutavelmente dificuldades agudas que no podem ser escamoteadas tomando como referncia a escala ou fatores religiosos, emocionais ou irracionais. Este passo necessrio para se confrontar o registro emprico inoportuno. Sabemos que os indivduos submetem seus interesses particulares ao bem dos outros, que o

comportamento altrusta pode ser observado, que os grupos exercem uma influncia sobre o pensamento de seus membros e at mesmo desenvolvem estilos de pensamento distintos. Sabemos isso sem dispormos de uma teoria do comportamento que leve tal fato em conta. Na seqncia aplicaremos a anlise da ao coletiva, realizada por Mancur Olson, s questes habitualmente disfaradas pelos efeitos da escala. Em The Logic Of Collective Action (1965), Olson parte da teoria econmica dos bens pblicos, mas termina por uma teoria geral da ao coletiva. Os bens

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pblicos constituem um conceito hbrido na teoria econmica. O termo foi adaptado para definir gastos governamentais legtimos. Se os impostos foram recolhidos para servir objetivos pblicos, estes devem se distinguir dos benefcios individuais e ser mantidos sob o controle legislativo pblico. Um bem pblico deve beneficiar a todos, conforme ocorre, por exemplo, com o ar nopoludo ou, pelo menos, deve ser acessvel a todos, a exemplo de uma autoestrada pblica. Comeando por exemplos escolhidos para ilustrar um determinado problema poltico, o conceito se baseou em trs formulaes complexas e distintas: primeiro, que o suprimento de um bem no diminudo pelo consumo individual; segundo, que um dos lados no pode reivindicar um reembolso pelo fato de o ter produzido, j que ele propiciado pela coletividade; e terceiro, que nenhum membro da coletividade pode ser excludo de seu uso. , essencialmente, um tipo de bem que escapa ao mecanismo dos preos e, assim, se esquiva da anlise econmica padro. Segundo a formulao geral de Olson, um indivduo que se comporta de acordo com o interesse prprio racional no contribuir para o bem coletivo e, do mesmo modo, no produzir o benefcio que deseja tendo em vista seu prprio interesse. Isto ocorre por dois motivos distintos. Uma argumentao depende da natureza dos bens pblicos, dos problemas que surgem da necessidade de cooperao para providenci-los e da impossibilidade de excluir quem quer que seja de goz-los, uma vez produzidos. A outra argumentao depende da diminuio dos retornos para cada pessoa que contribuiu para a produo medida que aumenta o nmero de pessoas que gozam do produto. O primeiro exemplo muito eloqente. O segundo, baseado em efeitos de escala, precisa ser qualificado. Separemos essas duas questes e comecemos apreciando o primeiro conjunto de problemas que surgem da natureza dos bens pblicos. Olson argumenta que, na medida em que a contribuio dele no for suficiente para produzir o bem coletivo e na medida em que, por definio, a produo desses bens depende de muitos contribuintes, o clculo racional do indivduo tender a lev-lo a deixar de proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua prpria contribuio tem conseqncias limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausncia de seu pequeno bolo no far diferena, poder tambm esperar pegar uma carona nas contribuies dos outros. "Pode deixar que fulano faz" o princpio do 32

teorema da inconseqncia formulado por Olson. Por outros motivos, ele pode esperar que os outros sucumbam mesma tentao de pegar uma carona e assim, se a contribuio deles no for acessvel, sua prpria contribuio se desperdiar. Nesses exemplos, a baixa probabilidade de uma colaborao nada tem a ver com a escala. Estas argumentaes explicam convincentemente muitas das

dificuldades enfrentadas pelas organizaes voluntrias. Embora as tenha analisado to bem, o prprio Olson d mais peso argumentao da escala. verdade que, em certos casos, o benefcio obtido por cada usurio diminudo por cada aumento do nmero total de usurios. Os parques e as estradas pblicas constituem ntidos exemplos de como o congestionamento, um obstculo fruio. Isto, porm, no se aplica a outros tipos de bens pblicos, corno a defesa nacional, a proteo de polcia, a iluminao pblica, ou os sindicatos que negociam em benefcio dos trabalhadores em determinada indstria. Talvez no possa aplicar-se educao, se concedermos que os benefcios resultantes de cada pessoa escolarizada so multiplicados por maiores oportunidades proporcionadas por um discurso escolarizado.

Certamente no se aplica criao de uma ordem social. Quanto mais pessoas puderem ser envolvidas no sistema de confiabilidade, mais vantagens resultaro para cada uma delas. Esta a sada mais eficaz que responde interrogao de como se pode explicar a ao coletiva. O exemplo de Olson vale com muito mais eloqncia para os problemas de confiana gerados pela possibilidade de se pegar uma carona e isto se aplica a instncias que so de escala verdadeiramente muito pequenas. De acordo com Olson, os problemas de ao coletiva tal como so colocados na teoria da escolha racional s podem ser resolvidos por meio da coero ou por uma atividade que um subproduto, de baixo custo, de aes empreendedoras direcionadas para benefcios individuais seletivos ou por uma mescla de ambas. Uma comunidade que no conta com nenhum desses estmulos atormentada pela indeciso e pela disseno. Cada indivduo racional que decida ser um membro, que saiba que sano alguma pode ser aplicada a ele e que no existem recompensas especiais no servio pblico, calcular se ele poderia sair-se melhor sozinho, contando apenas consigo. Quando este o caso para todos os membros, o grupo deve permanecer 33

latente. Enquanto tal, deve convocar um esforo combinado tendo em vista uma atividade a curto prazo levantamento de fundos ou protestos , porm no muito mais do que isto. Olson isentou a organizao religiosa de sua teoria geral. Vinte anos mais tarde, entretanto, a iseno da organizao religiosa constitui claramente um engano. A histria da religio corrobora sua teoria. Sempre que as organizaes religiosas tiveram acesso aos poderes coercitivos ou foram capazes de oferecer recompensas seletivas de riqueza ou influncia a seus membros mais dedicados, suas religies tiveram uma carreira estvel e florescente. E sempre que elas estiveram ausentes, quaisquer que fossem os motivos, ocorreu uma histria de frico e cismas contnuos (Douglas & Wildavsky 1982). No ajuda nossa compreenso da religio para proteg-la de um minucioso exame profano traando em torno dela uma fronteira respeitosa. A religio no deveria ser isenta de modo algum. Olson tambm se mostra disposto a isentar pequenos grupos das implicaes de sua teoria. Ele confere uma influncia decisiva escala da organizao (Chamberlin 1982) e espera que suas observaes no se apliquem a um determinado ponto de uma escala que decresce. Se as comunidades de pequena escala devem ser isentas assim como as comunidades religiosas, ento aquilo que Durkl1eim tem a dizer no seria relevante, j que baseou sua argumentao em ambas. Existe, alm disso, a crena de que em algo denominado "comunidade" os indivduos podem colaborar desinteressadamente uns com os outros e construir um bem comum. Em uma comunidade como esta as injunes da escolha racional no se aplicam. Trata-se de uma idia emotiva

extraordinariamente vigorosa. Estas isenes aparentemente melhores investigao analtica representam um territrio no demarcado pelo qual uma pessoa pode perambular conforme lhe agradar. Tal liberdade prejudicial ao projeto de Durkheim e de Fleck. As isenes no so de pouca monta ou carecem de importncia. Sua aceitao debilita a fora de toda a investigao. Em particular, as isenes desviam a ateno do interessante e pessimista conceito de Olson relativo ao grupo latente. Ningum que esteja empenhado em explicar a ao coletiva pode descartar superficialmente os formidveis 34

problemas enfrentados por uma pequena comunidade que tenta continuar existindo tal como . Pior ainda identificar as reas isentas da vida social como aquelas que so pequenas em escala. Isto implica afirmar que, na poca moderna, ela so poucas e carecem de importncia. Porm, esta colocao falsa. Estamos falando de coaes sistemticas colaborao, que se aplicam a uma extensa gama, que vai da Associao de Pais e Professores local aos sindicatos, aos representantes do Poder Legislativo e cooperao internacional (Olson 1965, pp. 66-131). vasta a escala dos grupos latentes na sociedade; as conseqncias de seu fracasso em se aglutinar so graves. Assim, deveramos nos encorajar e entrar naquela reserva toda cercada. A essa altura a religio pode ser parcialmente deixada de lado porque por demais bvio que a organizao religiosa no constitui exceo ao exemplo geral e porque algumas coisas especficas sero ditas sobre a religio e a sacralidade em captulos posteriores. Este o ponto em que se devem concentrar os efeitos de escala. A argumentao falha pode ser expressa da seguinte maneira: a escala pequena promove a confiana mtua; a confiana mtua a base da comunidade; a maior parte das organizaes, caso no se baseiem em benefcios individuais seletivos, tm seu incio sob a forma de comunidades pequenas e confiantes. Ento, as caractersticas especiais da comunidade resolvem o problema de como a ordem social pode aflorar. Muitos mantm que, aps o nascimento inicial, por meio da experincia comunitria, o restante da organizao social pode ser explicado pelo complexo entrelaamento de sanes e recompensas individuais. O prprio Olson parece adotar esta viso. As duas grandes dificuldades em aceit-Ias so de natureza emprica e terica. Na prtica, as sociedades de pequena escala no exemplificam a viso idealizada da comunidade. Algumas delas promovem a confiana e outras no. Algum j escreveu sobre este tema j viveu alguma vez em uma aldeia? J leu romances? J tentou levantar fundos claro que existem comunidades bem-sucedidas, mas vai contra o esprito da investigao racional selecionar apenas os exemplos que se adequam e negligenciar tantos outros. Pode-se indagar se isto uma forma de investigao, uma ideologia ou uma doutrina quase religiosa. Ela fornecer um exemplo pertinente de um conjunto de idias que adquirem sua validade e, portanto, seu poder mais pelos usos 35

reconhecveis, no interior das instituies, do que pela fora da razo. A atrao exercida pela comunidade pequena, idealizada, ntima forte na retrica poltica. Michael Taylor apresenta o mrito especial de ter tratado a ordem social como um bem pblico. Ele tambm se inclui entre muitos daqueles que acreditam que as comunidades pequenas so uma forma de sociedade na qual o autointeresse racional no impe o desfecho das decises (1982). Contanto que a comunidade seja suficientemente pequena e estvel, supe-se que seus membros tenham a liberdade de fazer contribuies que eles manteriam em aglomeraes maiores e mais fluidas. Esta frmula um tanto imprecisa, pois a questo consiste em saber como a comunidade consegue ser estvel. Taylor analisou trs espcies de comunidades. Em primeiro lugar, temos as comunas modernas (ou comunidades intencionais), estudadas por muitos. Em segundo lugar, existem as sociedades camponesas, que geraram toda uma indstria de pesquisa acadmica em torno da vida campestre. Seguem-se, finalmente, as sociedades tribais de pequena escala, descritas na literatura antropolgica. Todos os trs tipos de comunidade possuem uma documentao to vasta, variada, repleta de detalhes, que a maior parte dos filsofos, em uma atitude compreensvel, a evitam e assim, o conceito segundo o qual as pequenas comunidades so isentas da anlise do comportamento racional, tende a escapar aos constrangimentos impostos pela crtica. Taylor comea localizando a comunidade no extremo, em pequena escala, de um continuum de elementos, cada um deles vulnervel ao aumento da escala. Assim a comunidade , por definio, pequena, interage face a face e multiforme em seus relacionamentos. Em segundo lugar, a participao em seus processos de tomada de deciso ampla. Em terceiro lugar, os membros da comunidade apresentam crenas e valores em comum; seu exemplo mais perfeito seria o consenso total. Em quarto lugar, a comunidade se mantm enquanto tal devido a uma rede de trocas recprocas. Taylor afirma que tais disposies tornam inaplicvel a anlise da escolha racional. "Em muitas comunidades de pequena escala no se necessita de 'incentivos seletivos' ou de controles; racional cooperar voluntariamente na produo do bem pblico da ordem social" (Taylor 1982, p. 94). 36

Deixando de lado essa afirmativa to pouco matizada, segundo a qual os indivduos que se beneficiariam do bem pblico na verdade combinam para produzi-lo, precisamos saber quais so as etapas de suas negociaes uns com os outros. Qualquer ordem social envolve questes controvertidas de justia e moral. Taylor supe que elas so resolvidas, em comunidades muito pequenas, ao se instituir a igualdade econmica e a ampla participao nos negcios pblicos. A fim de manter essa posio em relao sociedade tribal, Taylor precisaria excluir o governo que opera pelas associaes secretas, panelinhas e intrigas, o que equivale a grandes e arbitrrias supresses de seus prprios exemplos de comunidade. Alm disso, ele sugere que, em uma comunidade real, a coero fsica inexiste. Isto depende do que ele considera coero. A menos que se d a este termo um significado muito restrito, seria sensato eliminar desta definio muitas sociedades tribais de pequena escala. verdade que em muitos bandos errantes de caadores, a igualdade e a participao esto bem exemplificadas. Nesses bandos, porm, no especificamente a escala diminuta, mas outros fatores, que criam as condies favorveis para uma vida comunitria no-coercitiva. A disperso da populao, a abundncia de recursos destinados a satisfazer as necessidades em um nvel baixo e a fcil movimentao entre os bandos de caadores permite que o conflito se tome difuso graas separao (Service 1966; Lee & DeVore 1968). Muito provavelmente so estas as condies que a teoria de Olson espera que os grupos latentes apresentem com abundncia: o indivduo no tem muito a ganhar ou a perder permanecendo com o grupo; sua lealdade muda facilmente e ele resiste prontamente a qualquer tentativa de coero, ameaando cindir-se. O baixo nvel do dispndio de energia por parte desses grupos e o baixo grau em que sua existncia pressionou os recursos do meio ambiente sugere que, pelo menos, seja corroborada a tese, segundo a qual, quando as condies so favorveis ao indivduo, no se obtm muita coisa em termos de colaborao. David Hume afirmou que o problema da ao coletiva pode ser melhor resolvido em comunidades muito pequenas, j que elas possuem muito pouca coisa que seja objeto de disputas. Isto tambm marca um ponto a favor de outro argumento: as comunidades pequenas fracassaram ao criar evidncias 37

muito visveis de um benefcio coletivo. Quando nos distanciamos do exemplo especial dos bandos de caadores, outras comunidades em pequena escala no so visivelmente bem-sucedidas ao criar uma ordem social que proteja efetivamente as poucas pessoas e seus modestos haveres. Na perspectiva da antropologia, os fatores favorveis tm menos a ver com a escala e mais com a proporo da populao que tem acesso aos recursos, juntamente com a possibilidade de satisfazer necessidades sem obrigar algum a executar aquele tipo de trabalho rduo, montono e contnuo que tenta alguns a coagir outros a prestar servio. Seria, entretanto, um grande erro qualificar essas comunidades como grupos latentes no sentido empregado por Olson. Elas, na verdade, constituem comunidades morais, persistentes e verdadeiras. Est ocorrendo algo que no desafia a anlise e nada tem a ver com a escala, mas que deixado de lado devido falsa plausibilidade dos efeitos da escala. Suponhamos que uma forma de ordem social tenha se realizado de certa forma; ento, no segundo estgio, Michael enumera quatro maneiras pelas quais a comunidade trabalha para manter essa ordem. Muitos outros escritores aderiram a essa lista. Nenhuma dessas formas constitui um exemplo convincente. A primeira dessas supostas formas extra-racionais de controle social se apia em ameaas e ofertas. Elas no passam de apelos ao interesse prprio do indivduo, Este processo , com efeito, muito bem documentado pelos antroplogos, porm sua anlise por demais compatvel com a teoria predominante da escolha racional para poder isentar as pequenas

comunidades de seu vigor. A socializao o segundo modo pelo qual se afirma, com freqnIcia, que a ordem social mantida. Os adultos so expostos ao vexame pblico e as crianas passam por iniciaes dolorosas que as ensinam a tomar as atitudes corretas. Podemos, entretanto, imaginar como os pais so induzidos a deixar seus filhos passar por esses tormentos e indignidades, que fazem parte de um padro. As sanes coletivas so uma forma de ao coletiva. Retrair-se do processo da socializao outra maneira de no cooperar. O que acontece quando uma me alega que seu filhinho por demais sensvel ou excessivamente jovem? O que a impede de afastar seu filho e todas as outras mes de afastar os seus, por meio de uma ao precipitada, que os subtrai 38

socializao? A resposta est em seu compromisso com determinada ordem social. Mas no essa escolha coletiva o que estamos tentando explicar? A terceira maneira pela qual a ordem social presumivelmente mantida nas sociedades primitivas se d pelas caractersticas estruturais daquelas sociedades. Trata-se de uma questo sutil. Essas caractersticas no constituem mecanismos especficos de controle social; no podem ser separadas daquilo que controlado, mas fornecem uma estrutura para os controles sociais. Elas so, essencialmente, os padres de reciprocidade, parentesco e casamento. Entretanto, tais padres de troca constituem a articulao da ordem social que, em si, apenas uma articulao do comportamento; assim, o argumento circular. Pode ser salvo unicamente por uma presuno funcionalista explcita de um sistema de atividades interligadas que mantm a si mesmo. A caracterstica mais amplamente demonstrada da sociedade primitiva que, segundo se diz, mantm a ordem social, a crena nas sanes sobrenaturais como o medo bruxaria, feitiaria ou aos ancestrais punitivos, Se outros argumentos falham e se essas crenas carregam o principal fardo naquele exemplo que separa a comunidade do resto do mundo, ento toda a argumentao submeteu-se a fatores irracionais, Ou a criao da comunidade algo que apenas os primitivos podem fazer graas a suas crenas supersticiosas na bruxaria e nos ancestrais, ou tais crenas precisam ser generalizadas de um modo que tambm se aplique sociedade moderna. A interpretao antropolgica ortodoxa, que foi aceita durante toda a dcada de 1960, assumiu um modelo auto-estabilizador, no qual cada item da crena exerce seu papel na manuteno da ordem social. Entretanto, algumas sublevaes interessantes neste ltimo quarto de sculo lanaram dvidas sobre a existncia de tendncias que contribuem para o equilbrio nas sociedades estudadas pelos antroplogos. Um fator o desenvolvimento terico do tema e o modo como ele lida com novas descobertas. Entre estas, a mais relevante o crescimento da antropologia marxista crtica, cujo materialismo histrico rejeita a nfase homoesttica da gerao anterior (Abramson 1974; Bailey & LIobera 1981; Sahlins 1976; Terray 1969). Outro fator importante o fim do colonialismo. Ainda outro o desenvolvimento da pesquisa de campo na Nova Guin, pas que no havia sido colonizado antes 39

da pesquisa antropolgica. Agora possvel pr-se de lado e avaliar o efeito do governo colonial sobre todos os incentivos individuais e sobre o emprego da fora. claro que nas condies coloniais costumava ser mais fcil imaginar uma comunidade no-coercitiva. J no se permitia mais s populaes sujeitas ao poder colonial prosseguir seu lucrativo trfico de armas, marfim e escravos. Tambm no Ihes era mais possvel competir pela glria na caada s cabeas humanas, nas ousadas expedies para o roubo do gado, j no podiam mais estender armadilhas, roubar esposas ou executar vinganas violentas. Na economia colonial, em que o nico incentivo econmico ao trabalho era um baixo rendimento proveniente dos pagamentos vista pelas colheitas, era fcil supor que a comunidade original no havia oferecido incentivos individuais ao lucro. Os registros antropolgicos atuais, mais sofisticados, mostram essas sociedades em pequena escala numa posio jamais esttica ou auto-estabilizadora, mas sendo continuamente estruturadas por um processo de negociaes e trocas racionais. As categorias do discurso poltico, as bases cognitivas da ordem social so negociadas. Em qualquer momento desse processo em que o antroplogo acione sua mquina fotogrfica e ligue seu gravador, habitualmente, conseguir registrar alguns equilbrios temporrios de satisfao, quando o indivduo se encontra momentaneamente constrangido por outros e pelo ambiente que o cerca. A anlise de custo-benefcio individual aplicava-se inexorvel e

esclarecedoramente menor das microtrocas, no que se refere tanto a eles quanto a ns. Os antroplogos testam mutuamente a credibilidade dos relatos etnogrficos examinando de perto o que eles relatam sobre o equilbrio das trocas recprocas. As evidncias obtidas demolem o exemplo de princpios extra-racionais que produzem uma comunidade, em um ponto no especificado de uma escala que diminui. E quando eles fazem ameaas e oferendas que os indivduos invocam com freqncia o poder dos fetiches, dos fantasmas e dos bruxos e bruxas para atender suas solicitaes. A cosmologia resultante no forma um conjunto separado de controles sociais. Na obra de Durkheim todo o sistema de conhecimento visto como um bem coletivo que a comunidade est em conjunto. este processo que precisamos enfocar particularmente nos prximos captulos. 40

A esta altura o conceito comum de uma comunidade anrquica utpica pode ser deixado de lado como uma iluso acalentada. A evidncia antropolgica, obtida de sociedades de pequena escala, apia a vasta extenso da principal tese de Mancur Olson, segundo a qual, os indivduos so facilmente desencorajados de contribuir para o bem coletivo. Tal tese no sustenta o ponto de vista desse autor, o qual afirma que a escala o fator principal. Qualquer tentativa no sentido de investigar as bases da ordem social faz emergir as bases paradoxais do pensamento. A esse nvel de abstrao no a circularidade auto-referencial que est errada. Ao acreditar nos efeitos da escala, a argumentao foi derrotada. Ela deixou de dar aquele passo lgico anterior que questionaria como nascem os sistemas de conhecimento. H muito boas razes para acreditar que a teoria de escolha racional inadequada para explicar o comportamento poltico, Ocorre algo nos negcios cvicos que a teoria da escolha natural no apreende. De acordo com a posio de Durkheim e Fleck, o erro ter ignorado o problema epistemolgico. Em vez de supor que um sistema de conhecimento passa a existir mais fcil e naturalmente, a abordagem desses autores amplia o ceticismo quanto possibilidade de um conhecimento e de crenas compartilhados. Esta dvida mais abrangente sobre as bases da comunidade indica o caminho para uma resposta.

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COMO OS GRUPOS LATENTES SOBREVIVEM

Se a escala diminuta no d conta da origem das comunidades cooperativas, talvez algo mais o faa. Para explicar o fato, sem apoiar explicitamente a abordagem funcionalista intrnseca s colocaes de Durkheim e de Fleck, vrias sugestes psicolgicas e sociolgicas foram apresentadas. Entretanto, as explicaes psicolgicas precisam ser rejeitadas caso ultrapassem os quadros axiomticos nos quais o problema se coloca. Assim, podemos descartar qualquer invocao de processos que encorajem o auto-sacrifcio, pois isto satisfaz a necessidade psquica de manter a autoestima ou proporciona o prazer de dar prazer aos outros. Estas satisfaes psquicas em seu funcionamento no so suficientemente confiveis para carregar o peso da explicao. Se algumas vezes funcionam e algumas vezes no, a interrogao retrocede e ento indaga-se o que desencadeia as vigorosas atitudes emocionais pblicas. Outra forma de explicao coletiva faz com que a ao coletiva dependa do complexo entrelaamento das mltiplas trocas recprocas, diretas e indiretas. De acordo com a forma forte desta explicao, o indivduo racional est atado a um complexo conjunto de relaes, nas quais precisa agir munido de confiana j que no lhe resta alternativa. Na forma fraca, ele tem alguma escolha e se escolher no cooperar acabar estragando o espetculo. Surge ento a reao: as sanes sociais sero aplicadas a fim de penalizar o comportamento no-cooperativo. No entanto, aplicar sanes, conforme vimos no exemplo das sociedades de pequena escala, uma forma de ao coletiva e necessita igualmente de uma explicao. A objeo forma forte nasce do conceito de algum que se encontra em uma situao em que a escolha no possvel. Claro que possvel, e at mesmo acontece com freqncia, que uma pessoa se encontre sob uma coero to extremada que no lhe resta escolha, a no ser obedecer. Neste caso no existe uma questo que envolva confiana mtua e no h problema

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algum em tomo da livre cooperao. Quando no h escolha, j no nos deparamos mais com aquela situao qual se aplica a teoria da escolha racional. Alm do mais, estender este exemplo a uma amplo espectro de aes coletivas apenas serve para camuflar o problema. Isto tambm nos prope uma viso inaceitvel da ao humana. Apresenta-nos os seres humanos como agentes passivos, que atuam sob uma coero mais ou menos completa. Tal argumentao depende de uma forma de determinismo sociolgico que no confere iniciativa ou bom senso aos indivduos. em parte devido a essa falha que o funcionalismo sociolgico vem gozando de baixa reputao nos ltimos trinta anos. Ele no tinha lugar para a experincia subjetiva dos indivduos, no sentido do querer e da escolha. Supor que os indivduos esto enredados na armadilha de um mecanismo complexo que eles no ajudam a construir imaginar que eles sejam objetos passivos, como carneiros ou robs. O pior que, em semelhante teoria, no existe possibilidade de explicar a mudana, a menos que ela venha de fora, como uma fora coercitiva irresistvel. Presumir uma estabilidade como esta nas relaes sociais exige demais de nossa credulidade. Dada a pobreza das explicaes alternativas, cabe-nos procurar mais cuidadosamente uma forma de argumentao funcionalista que evite tais armadilhas e, ainda assim, satisfaa as necessidades do conceito de Durkheim e de Fleck relativo a um grupo social que gera sua prpria viso do mundo, desenvolvendo um estilo de pensamento que sustente o padro de interao. Jon Elster declarou provocativamente que quase impossvel encontrar exemplos de anlise funcional na sociologia em que seja demonstrada a presena de todos os traos logicamente exigidos de semelhante explicao (Elster 1983). Isto no acontece apenas porque os socilogos debatem desatentamente, mas porque acredita que a explicao funcionalista no apropriada ao comportamento humano. Sua argumentao comea por uma reviso de tipos de explicao. As explicaes causais e mecnicas se aplicam ao domnio da fsica. No domnio da biologia, aplicam-se as explicaes causais e funcionais. As explicaes funcionais so justificadas pela teoria da seleo natural. Nenhuma teoria geral, equivalente evoluo biolgica, se aplica ao comportamento humano. Devido a razes que Elster enumera sucintamente, os seres humanos podem fazer coisas que os organismos 43

biolgicos no conseguem fazer. Eles podem empregar estratgias de espera, podem dar um passo atrs a fim de dar dois passos frente e podem executar outros movimentos evasivos. O tipo explanatrio, exclusivamente apropriado ao comportamento humano, intencional. De acordo com Elster, a combinao de teorias causais e intencionais deveria ser suficiente para explicar tudo aquilo que precise ser explicado no comportamento humano. Existem teorias causais tomadas em considerao pelos seres humanos e eles podem estar mais ou menos equivocados. Existem tambm intenes dos seres humanos e decises baseadas em teorias causais, mais ou menos consistentes, contraditrias ou equivocadas. O tipo explanatrio, exclusivamente apropriado aos seres humanos, intencional, mas como Elster no abre espao para processos que se auto-sustentam ou para conseqncias inesperadas, que operam para fazer com que uma situao continue existindo, este autor no tem como acolher o conceito de Durkheim e de FIeck de um grupo social que gera, sem inteno de o fazer, pensamentos que mantm sua prpria existncia. Elster, de modo muito claro e proveitoso, enunciou as condies que devem ser preenchidas por uma anlise funcional, corretamente

fundamentada. Embora tais condies paream inicialmente obscuras, elas esclarecem imensamente as questes. Uma instituio ou padro

comportamental, X, explicado por sua funo, Y diz respeito a um grupo e Z, se e apenas se:I. Y for um efeito de X; 2. Y for benfico para Z; 3. Y no for levado em linha de conta por aes que produzem X; 4. Y ou a reao causal entre X e Y no for reconhecida por atores em Z; e 5. Y mantiver X por um circuito completo, causal, que proporciona feed-back e passa atravs de Z.

Esta lista foi compilada da anlise crtica de Merton ao funcionalismo (Merton 1949) e das sugestes de Arthur Stinchcombe (1968, pp. 82&3). Reportando-nos ao ensaio original de Merton e aos comentrios

subseqentes, surpreendente verificar a quantidade de argumentao funcionalista deficiente que existia naquele momento. No de surpreender 44

que ele se sentisse obrigado a operar com alguma cautela metodolgica. Algumas das citaes mais arrebatadas se devem aos antroplogos; alguns exemplos vvidos, a Karl Marx; algumas observaes imprudentes, a socilogos Influenciados pelo funcionalismo estrutural de Tallcott Parson. Segundo a viso de Elster, a principal explicao para o predomnio excessivo e indefensvel do funcionalismo nas cincias sociais de carter histrico. Ele se deve ao prestgio dos modelos biolgicos usados pela teoria evolutiva. Elster empenha-se em assinalar as diferenas essenciais entre as explicaes funcionais, biolgicas e sociolgicas. Ele, no entanto, jamais distingue entre colocaes funcionalistas, com inteno autenticamente explanatria, e aquelas que so mais retricas. Todos os vvidos exemplos citados por Merton e encontrados nos escritos dos antroplogos pertencem a esta ltima categoria. Eles foram usados para enfeitar o ataque que os antroplogos quiseram desfechar, na dcada de 1950, contra a etnologia antiquada (ou histria conjectural, como era pejorativamente denominada). No h como negar que eles propunham um modelo cmico, merecedor das zombarias de Merton e Elster. De acordo com estes antroplogos, absolutamente tudo o que acontece tem uma funo na manuteno do sistema social existente. O mtodo passo-a-passo, adotado por Elster, excelente, no sentido de que reduz uma argumentao ao essencial. Uma dessas argumentaes a seguinte: (I) Y (mais ateno produo de alimentos) um efeito de X (magia ligada horticultura): (2) Y benfico para toda a comunidade Z, que consome o alimento. Esta explicao funcionalista no tem xito porque ningum imagina que a magia, ligada horticultura, no tinha a inteno de aumentar o fornecimento de alimentos. Da mesma forma, demonstrar que a magia ligada pesca no tinha a pretenso final de agir como uma tecnologia aperfeioada uma explicao causal pura e simples. A argumentao preferida de A. R. Radcliffe-Brown, segundo a qual os rituais possuem funes que intensificam a solidariedade, poderia ser detalhada da seguinte maneira:I. Y (solidariedade da linhagem) um efeito de X (culto dos ancestrais). 2. Y mantm a paz interna e a defesa externa e assim boa para os devotos (Z):

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3. Assim, os produtores de X no pretendem manter Y: 4. Eles tambm no reconhecem qualquer ligao causal pela qual Y mantm X.

Esta tentativa de explicao funcional fracassa. Qual exatamente o fator causal oculto? Ele depende de fatores psicolgicos (aquilo que RadclliffeBrown denominava "atitudes rituais"). Supe-se que a realizao deste culto desperte aquele tipo de emoes que contribui para a solidariedade. O exemplo de rituais que estimulam emoes pobre. Existe algum que jamais no tenha se entediado numa igreja? importante observar que isto vai contra os princpios do mtodo sociolgico de Durkheim (Durkheim 1895), Os fatos sociais tm de ser explicados pelos