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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL LAURENT AZEVEDO MARQUES DE SAES A Société des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a Revolução francesa (1788-1802) VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2013

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    LAURENT AZEVEDO MARQUES DE SAES

    A Socit des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a

    Revoluo francesa (1788-1802)

    VERSO CORRIGIDA

    So Paulo

    2013

  • 2

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    A Socit des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a

    Revoluo francesa (1788-1802)

    Laurent Azevedo Marques de Saes

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria Social do Departamento de Histria da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    da Universidade de So Paulo, para a obteno do

    ttulo de Doutor em Histria

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron

    VERSO CORRIGIDA

    So Paulo

    2013

  • 3

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer

    meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a

    fonte.

  • 4

    Nome: SAES, Laurent Azevedo Marques de

    Ttulo: A Socit des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a Revoluo

    francesa (1788-1802)

    Tese apresentada ao Programa de Histria Social do Departamento de Histria da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para

    obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

  • 5

    Agradecimentos

    Aos meus pais, Michle e Dcio, e ao meu irmo, Guillaume, a quem dedico esta tese.

    Aos professores Dr. Rafael de Bivar Marquese, Dr. Maximiliano Mac Menz, Dra.

    Maria Cristina Cortez Wissenbach, Dr. Modesto Florenzano, Dr. Carlos Ziller

    Camenietzki e Dr. Rodrigo Faustinoni Bonciani por seus comentrios, crticas e

    sugestes. Sua contribuio foi preciosa para que este trabalho tenha chegado a bom

    termo.

    Aos colegas de graduao e ps-graduao, em especial todos os participantes do grupo

    de discusso organizado por nosso orientador, que contriburam com suas perguntas e

    observaes para o desenvolvimento de nossa reflexo.

    A Flvio, Sylvia e Alexandre Saes, pelo apoio constante manifestado ao longo da

    pesquisa.

    Aos Archives Dpartementales de Loire Atlantique (ADLA), aos Archives Nationales

    de France (stio de Paris) e Bibliothque Nationale Franaise (stio Franois

    Miterrand), que nos receberam durante nossas estadias em Nantes e Paris.

    A Maria de Ftima S. G. Morashashi e todos os responsveis pela coordenao do

    Programa de Aperfeioamento de Ensino (PAE FFLCH).

    E, acima de tudo, ao Prof. Dr. Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, nosso

    orientador, mentor e amigo. Devemos s suas virtudes como professor, pesquisador e

    leitor as eventuais qualidades deste trabalho.

    O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - Brasil.

  • 6

    Resumo

    No final do sculo XVIII, o poderio econmico da Frana repousava

    essencialmente sobre o comrcio que o pas realizava com as suas colnias. Graas,

    principalmente, ao acar e ao caf de So Domingos, a "prola das Antilhas", o

    comrcio colonial francs atingia o seu auge no mesmo momento em que o pas rumava

    para um processo violento de transformao de suas instituies. Ao mesmo tempo,

    havia, na metrpole, questionamentos a respeito da gesto de colnias cada vez mais

    povoadas de escravos, arrancados de seus lares para exercer o cultivo nas plantations.

    Nesse contexto, em 1788, formou-se a primeira organizao antiescravista francesa, a

    Sociedade dos Amigos dos Negros. Sob a liderana de alguns dos principais

    personagens do perodo revolucionrio, como Brissot, Clavire, Mirabeau, La Fayette e

    Condorcet, essa sociedade de nobres, homens de letras e financistas procurou introduzir

    a questo do trfico negreiro na ordem do dia dos debates polticos que marcaram a

    Revoluo francesa. Procuramos, no presente trabalho, retraar a atividade desses

    homens, cuja moderao contrasta com o rumo que a questo colonial tomou, a partir da

    grande insurreio dos escravos em So Domingos, de agosto de 1791. Acreditamos

    que o estudo dos limites do discurso antiescravista do final do sculo XVIII e da poltica

    colonial das assembleias revolucionrias traz consigo ensinamentos sobre os limites da

    prpria Revoluo francesa.

    Palavras-chave: Revoluo francesa, escravido, antiescravismo, comrcio colonial,

    revolta escrava

    Abstract

    At the end of the 18th century, France's economic power relied foremost on

    trade with its colonies. Thanks to the sugar and coffee produced in Saint-Domingue, the

    "pearl of the Antilles", French colonial commerce reached its peak at the very moment

    the country was moving toward a violent process of radical institutional transformation.

    At the same time, it was a moment of interrogations about the administration of colonies

    whose slave population was in continuous increase. In this context, in 1788, the first

    French antislavery organization was created, the Society of the Friends of the Blacks.

    Under the leadership of some of the key-characters of the revolutionary period, like

  • 7

    Brissot, Clavire, Mirabeau, La Fayette and Condorcet, this society of nobles,

    intellectuals and financiers endeavored to bring the issue of slave trade to the political

    debate that marked the French Revolution. We intend, with this study, to retrace the

    activities of those men, whose moderation of principles was in contrast with the turn of

    events that marked the colonial space, with the slave insurrection of August 1791, in

    Saint-Domingue. We hope that, by approaching the limits of the antislavery program of

    the late-18th century and of the colonial policies of the revolutionary assemblies, this

    study might offer teachings on the limits of the Revolution itself.

    Keywords: French Revolution, slavery, antislavery, colonial commerce, slave revolt

    Rsum

    la fin du XVIIIe sicle, la puissance conomique de la France reposait avant

    tout sur le commerce qu'elle entreprenait avec ses colonies. Grce, notamment, au sucre

    et au caf produits Saint-Domingue, la "perle des Antilles", le commerce colonial

    franais avait atteint son apoge, alors que le pays avanait vers un processus violent de

    transformation de ses institutions. En mme temps, on se posait, en mtropole, des

    questions propos de l'administration de colonies de plus en plus peuples d'esclaves,

    arrachs de leur sol pour cultiver le sol des habitations coloniales. Dans ce contexte, en

    1788, s'est forme la premire organisation anti-esclavagiste franaise, la Socit des

    Amis des Noirs. Sous la direction de certains des personnages-cls de la priode

    rvolutionnaire, comme Brissot, Clavire, Mirabeau, La Fayette et Condorcet, cette

    socit, compose de nobles, hommes de lettres et financiers, a tent d'introduire la

    question de la traite ngrire l'ordre du jour des dbats politiques qui ont marqu la

    Rvolution franaise. Dans ce travail, nous chercherons retracer l'activit de ces

    hommes, dont la modration des ides contraste avec la tournure qu'a prise la question

    coloniale, partir de la grande insurrection des esclaves Saint-Domingue, en aot

    1791. Nous esprons que l'tude des limites du discours anti-esclavagiste de la fin du

    XVIIIe sicle et de la politique coloniale des assembles rvolutionnaires soit rvlateur

    des limites de la Rvolution elle-mme.

    Mots-cls: Rvolution franaise, esclavage, anti-esclavagisme, commerce colonial,

    rvolte d'esclaves

  • 8

    ABREVIATURAS

    ADLA: Archives Dpartementales de Loire Atlantique (Nantes, Frana)

    AP: Archives Parlementaires

    BFEA: Biblioteca da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da USP

    BFF: Biblioteca Florestan Fernandes (FFLCH-USP)

    BN: Bibliothque Nationale Franaise

    Observao: as citaes includas no texto foram livremente traduzidas por ns.

    Inclumos, para as citaes mais extensas, o texto original nas notas de rodap.

  • 9

    Sumrio

    Introduo...................................................................................................................p.14

    Parte I A Revoluo francesa diante da escravido negra (fevereiro de 1788

    setembro de 1791).......................................................................................................p.46

    I.1) A Sociedade dos Amigos dos Negros..................................................................p.47

    I.1.1) Uma sociedade antiescravista s vsperas da Revoluo.......................p.47

    I.1.1.1) O comrcio colonial no quadro da economia francesa.............p.47

    I.1.1.2) Um contexto poltico favorvel................................................p.58

    I.1.1.3) Brissot e o problema da escravido..........................................p.67

    I.1.1.4) A fundao...............................................................................p.71

    I.1.1.5) Um novo tipo de sociedade......................................................p.77

    I.1.1.6) Uma sociedade de elite.............................................................p.81

    I.1.1.7) Composio..............................................................................p.84

    I.1.1.8) Os financistas...........................................................................p.87

    I.1.2) Um programa antiescravista moderado...................................................p.96

    I.1.2.1) Condenao moral, cautela poltica: uma herana das Luzes..p.98

    I.1.2.2) A crtica econmica escravido na Frana..........................p.123

    I.1.2.3) As reflexes de Condorcet sobre a escravido.......................p.130

    I.1.2.4) O programa da Sociedade dos Amigos dos Negros...............p.134

    I.1.2.4.1) Abolio do trfico: uma luta internacional............p.134

    I.1.2.4.2) Abolio gradual da escravido...............................p.138

    I.1.2.4.3) Suavizao da condio dos escravos.....................p.141

    I.1.2.4.4) Um novo projeto colonial........................................p.146

    I.1.2.5) Variaes de um mesmo programa........................................p.153

    I.1.2.6) Um incio pouco promissor....................................................p.161

    I.2) Os Amigos dos Negros e a Revoluo..............................................................p.164

    I.2.1) Os Estados Gerais: uma nova perspectiva............................................p.164

    I.2.1.1) As consideraes de Brissot sobre os Estados Unidos..........p.164

    I.2.1.2) A causa dos negros nos cadernos de queixas........................p.166

    I.2.1.3) A campanha junto aos deputados...........................................p.170

    I.2.2) O primeiro debate: a questo da representao colonial.......................p.175

    I.2.3) Formao do bloco antagonista.............................................................p.185

  • 10

    I.2.4) A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado...........................p.192

    I.2.5) A campanha contra o trfico.................................................................p.195

    I.2.5.1) O trfico negreiro: um comrcio ruinoso para a Nao.........p.195

    I.2.5.2) O discurso de Mirabeau..........................................................p.200

    I.2.5.3) O debate de maro de 1790....................................................p.206

    I.3) O combate pelos homens de cor livres.............................................................p.215

    I.3.1) O movimento antiescravista na luta contra o preconceito....................p.215

    I.3.1.1) Julien Raimond e a Sociedade dos Cidados de Cor..............p.216

    I.3.1.2) Os Amigos dos Negros na luta pela igualdade da epiderme..p.230

    I.3.1.3) O memorial de Grgoire e a resposta do campo colonial.......p.235

    I.3.2) Maro e outubro de 1790: reviravoltas no debate colonial...................p.242

    I.3.2.1) As Instrues de 28 de maro: uma vitria aparente..............p.242

    I.3.2.2) 12 de out. de 1790: consagrao da competncia colonial.....p.245

    I.3.2.3) Reaes do campo antiescravista...........................................p.248

    I.3.3) O martrio de Og e as novas investidas dos cidados de cor...............p.252

    I.3.4) O debate de maio de 1791: uma vitria momentnea...........................p.261

    I.3.4.1) Constitucionalizao da escravido, igualdade da epiderme.p.261

    I.3.4.2) Repercusses do decreto de 15 de maio.................................p.272

    I.3.5) Maio-setembro de 1791: o retrocesso...................................................p.279

    I.3.5.1) A ofensiva colonial contra o decreto de 15 de maio..............p.279

    I.3.5.2) O debate de setembro de 1791...............................................p.283

    I.3.5.3) Reaes lei de 24 de setembro.............................................p.286

    I.3.5.4) Duas ordens constitucionais distintas.....................................p.289

    Parte II A Revoluo na via abolicionista (outubro de 1791 julho de 1794).p.293

    II.1) A insurreio escrava no debate colonial (outubro de 1791 abril de

    1792)...........................................................................................................................p.294

    II.1.1) A Legislativa e a ascenso poltica dos Brissotinos............................p.294

    II.1.2) Insurreio geral em So Domingos....................................................p.297

    II.1.2.1) A Revoluo nas colnias.....................................................p.297

    II.1.2.2) So Domingos em chamas....................................................p.311

    II.1.2.3) A rebelio escrava na via revolucionria..............................p.315

    II.1.3) A Assembleia Nacional diante da insurreio negra...........................p.322

    II.1.3.1) O ceticismo perante o "impensvel".....................................p.322

  • 11

    II.1.3.2) Os Amigos dos Negros contra a parede................................p.331

    II.1.4) A igualdade da epiderme.....................................................................p.334

    II.1.4.1) Os cidados de cor e a preservao da ordem colonial.........p.334

    II.1.4.2) A lei de 24 de maro 4 de abril de 1792: maior e

    derradeira vitria dos Amigos dos Negros..........................................p.345

    II.1.4.3) Uma nova comisso civil......................................................p.351

    II.1.5) Fim do antiescravismo sob a Revoluo?............................................p.356

    II.1.5.1) O apagamento dos Amigos dos Negros................................p.356

    II.1.5.2) A guerra entre Girondinos e Montanheses: a tese de um

    deslize da esquerda..............................................................................p.357

    II.2) Insurreio escrava e impulso republicano: a superao do gradualismo.p.366

    II.2.1) A ascenso do abolicionismo radical...................................................p.366

    II.2.1.1) Alguns planos de abolio gradual.......................................p.367

    II.2.1.2) A insurreio negra na imprensa patritica: os primeiros

    sinais de uma evoluo.......................................................................p.371

    II.2.1.3) A popularizao da causa antiescravista...............................p.378

    II.2.1.4) Milscent: o modelo de uma evoluo...................................p.383

    II.2.1.5) Os homens de cor na luta abolicionista.................................p.389

    II.2.2) A Repblica radical.............................................................................p.393

    II.2.2.1) A petio de 4 de junho de 1793...........................................p.393

    II.2.2.2) A abolio das subvenes ao trfico...................................p.398

    II.2.3) A conquista da liberdade em So Domingos.......................................p.401

    II.3) A abolio (lei de 16 pluvioso do ano II 4 de fevereiro de 1794)...............p.410

    II.3.1) A deputao da igualdade e a supresso da escravido colonial.........p.410

    II.3.2) As reaes lei: sinais de uma adeso popular...................................p.423

    II.3.3) A guerra pela liberdade.......................................................................p.434

    II.3.3.1) A atitude dos robespierristas.................................................p.434

    II.3.3.2) A perseguio aos colonos....................................................p.439

    II.3.3.3) As medidas de execuo.......................................................p.445

    Parte III Do colonialismo assimilacionista ao restabelecimento da escravido

    (1794-1802)................................................................................................................p.453

    III.1) Emancipao dos negros e assimilao das colnias...................................p.454

    III.1.1) A aplicao da abolio: o problema dos regimes de trabalho..........p.454

  • 12

    III.1.2) A transio thermidoriana..................................................................p.463

    III.1.2.1) O fim da represso aos colonos...........................................p.464

    III.1.2.2) Uma nova ofensiva colonial................................................p.467

    III.1.2.3) Os representantes das ilhas Mascarenhas............................p.469

    III.1.3) A Constituio do ano III...................................................................p.474

    III.1.3.1) Ruma a uma nova poltica colonial.....................................p.474

    III.1.3.2) A nova Constituio............................................................p.478

    III.1.3.3) As tentativas de aplicao....................................................p.482

    III.1.4) Os escravistas no seio da reao monarquista....................................p.486

    III.1.4.1) Uma tendncia reacionria em matria colonial..................p.486

    III.1.4.2) As eleies da primavera de 1797 e a ofensiva

    antirrepublicana...................................................................................p.488

    III.1.5) O golpe de 18 fructidor do ano V (4 de setembro de 1797)...............p.497

    III.2) A Sociedade dos Amigos dos Negros e das Colnias...................................p.500

    III.2.1) Continuidade e renovao do movimento antiescravista...................p.500

    III.2.1.1) A fundao...........................................................................p.500

    III.2.1.2) Composio.........................................................................p.502

    III.2.2) O programa.........................................................................................p.508

    III.2.2.1) Linhas gerais........................................................................p.508

    III.2.2.2) Emancipao dos negros......................................................p.511

    III.2.2.3) Educao dos novos livres...................................................p.514

    III.2.2.4) Trabalho livre nas colnias e inovaes na cultura

    colonial................................................................................................p.516

    III.2.2.5) Expanso colonial sobre novas bases..................................p.519

    III.2.2.6) Projetos gradualistas............................................................p.527

    III.2.3) A organizao constitucional das colnias.........................................p.530

    III.2.3.1) A lei de 12 nivoso do ano VI (1 de janeiro de 1798).........p.530

    III.2.3.2) Aplicao da lei...................................................................p.533

    III.2.3.3) Os Amigos dos Negros e Toussaint Louverture..................p.537

    III.2.4) O fim da Sociedade............................................................................p.539

    III.3) O restabelecimento da escravido (novembro de 1799 maio de 1802)...p.544

    III.3.1) Um novo contexto..............................................................................p.546

    III.3.1.1) Bonaparte e seu crculo........................................................p.546

    III.3.1.2) A propaganda escravista......................................................p.552

  • 13

    III.3.1.3) O antiescravismo sob o Consulado......................................p.560

    III.3.2) Uma nova poltica colonial.................................................................p.566

    III.3.2.1) Relaes tensas com as colnias..........................................p.566

    III.3.2.2) A Constituio do ano VIII..................................................p.569

    III.3.2.3) A Constituio de So Domingos........................................p.573

    III.3.3) A revogao da abolio....................................................................p.578

    III.3.3.1) A paz com a Inglaterra.........................................................p.578

    III.3.3.2) A lei de 30 floreal do ano X (20 de maio de 1802).............p.584

    III.3.3.3) Resultado final.....................................................................p.591

    Concluso..................................................................................................................p.599

    Bibliografia................................................................................................................p.614

    Apndices..................................................................................................................p.654

  • 14

    Introduo

  • 15

    [...] a partir do momento em que as artes e o comrcio conseguem penetrar no povo e criam um novo meio de riqueza em proveito da classe laboriosa, prepara-se uma revoluo nas leis polticas; uma nova distribuio da riqueza produz uma nova distribuio do poder. Assim como a posse das terras elevou a aristocracia, a propriedade industrial eleva o poder do povo; ele adquire a sua liberdade, ele se multiplica, ele comea a influir nos seus assuntos.1 (grifo nosso)

    As palavras acima foram escritas no ano de 1792, por Antoine Pierre Joseph

    Marie Barnave, ento antigo deputado da Assembleia Constituinte. Antes de cair em

    desgraa na esteira da derrubada da realeza2, Barnave havia se afirmado como um dos

    mais populares e influentes oradores da Assembleia Constituinte e um dos principais

    protagonistas da primeira fase da Revoluo francesa. No texto em questo, ele, que

    tinha sido um dos fundadores do Clube dos Jacobinos e, posteriormente, dos Feuillants,

    refletia a respeito das origens da Revoluo. Manifestava a percepo segundo a qual

    esta marcava o fim de uma sociedade baseada na propriedade fundiria e dominada pela

    aristocracia feudal e o comeo de uma nova, baseada em outra forma de propriedade e

    tendente igualdade. Barnave afirmava que uma sociedade fundada na propriedade da

    terra, onde a produo agrcola era a nica fonte de riqueza, tendia desigualdade em

    favor da aristocracia, ao passo que "[...] a onde existe uma renda de comrcio e de

    indstria, o trabalho dos pobres consegue, pouco a pouco, atrair para si uma poro das

    terras dos ricos".3 Barnave identificava nessa "riqueza mobiliria" o marco do declnio

    da aristocracia feudal e, consequentemente, o fundamento de numa nova sociedade

    baseada na liberdade e na igualdade jurdica, uma sociedade que ele entendia por

    democrtica.4 A Revoluo se explicava, assim, pela necessidade de mudar as

    instituies polticas sobre as quais a aristocracia feudal se apoiava e, com isso, libertar

    o comrcio e a indstria de suas amarras.

    1 "[...] ds que les arts et le commerce parviennent pntrer dans le peuple et crent un nouveau moyen de richesse au secours de la classe laborieuse, il se prpare une rvolution dans les lois politiques; une nouvelle distribution de la richesse produit une nouvelle distribution du pouvoir. De mme que la possession des terres a lev l'aristocratie, la proprit industrielle lve le pouvoir du peuple; il acquiert sa libert, il se multiplie, il commence influer sur les affaires" (BARNAVE, Antoine. Introduction la Rvolution franaise. In: Oeuvres. Paris: J. Chapelle et Guiller, 1843, v.1, pp.13-14). 2 Barnave foi comprometido pela descoberta, aps a jornada de 10 de agosto de 1792, de documentos que o associavam Coroa. O trecho aqui reproduzido integra, alis, uma obra escrita na priso em 1792 e publicada somente em 1843, sob o ttulo Introduction la Rvolution franaise. O ttulo original dado por Barnave era De la Rvolution et de la Constitution. 3 "[...] l o il existe un revenu de commerce et d'industrie, le travail des pauvres parvient peu peu attirer lui une portion des terres des riches" (BARNAVE, Antoine. Introduction la Rvolution franaise, p.9). 4 Ibidem, p.31.

  • 16

    A Revoluo no resultou somente da liderana de uma burguesia homognea,

    mas da ao de diferentes classes e fraes, cada uma na luta por seus prprios

    objetivos: nobres, grandes negociantes, pequenos artesos, camponeses abastados e

    diaristas, todos viram naquele momento de convulso social e poltica uma

    oportunidade de concretizar as suas aspiraes na nova ordem que estava sendo

    construda. Objetivamente, o processo revolucionrio como um todo resultaria no

    estabelecimento das condies institucionais necessrias para o desenvolvimento

    capitalista da Frana, o qual ocorreria essencialmente a partir da segunda metade do

    sculo XIX.5

    Barnave, entretanto, procurava apresentar a ascenso da classe detentora da

    propriedade mobiliria como o sinal do advento da democracia. Esse advogado de

    Grenoble poderia ser um dos "intelectuais" de que falava Karl Kautsky em suas

    reflexes sobre a luta de classes em 1789, isto , homens de letras que representavam os

    interesses de burgueses, apresentando-os sempre como o interesse social geral.6 Essa

    burguesia no apresentava a si mesma como classe, mas como representante da

    sociedade como um todo. Defensor do ideal de liberdade na metrpole, Barnave foi

    tambm, sob a Constituinte, o principal porta-voz dos grupos ligados ao comrcio com

    as colnias francesas, o que o levou a defender, por um lado, os termos do sistema

    exclusivo e, por outro, o trfico e a escravido negra. Para homens como ele, a riqueza

    gerada pelo comrcio de insumos coloniais, produzidos com base na explorao da mo

    de obra escrava, era uma das bases da nova sociedade democrtica em construo.

    Paradoxalmente, a liberdade que se proclamava na metrpole emanava da privao da

    liberdade de centenas de milhares de indivduos nas colnias.

    Ao longo dos anos que marcaram a Revoluo, a Frana viu a criao de um

    regime parlamentar, a proclamao da liberdade de imprensa e da liberdade religiosa, a

    abolio dos privilgios de ordem e dos direitos senhoriais, o estabelecimento de uma

    nova organizao judiciria e a instituio da liberdade no uso da propriedade. Na sua

    faceta mais radical, a Revoluo promoveu uma certa redistribuio da terra, por meio

    de medidas como a venda dos bens nacionais. Entretanto, nesse processo de construo 5 Nesse sentido, o que entendemos por revoluo burguesa no a revoluo planejada pela burguesia com vistas criao imediata de uma sociedade capitalista, mas aquela que estabelece as condies necessrias para o desenvolvimento ulterior do capitalismo. Por criao de condies, entendemos a transformao do Estado e de sua expresso normativa, o Direito, cujo papel na reproduo das relaes de explorao econmica fundamental. Christopher Hill desenvolveu semelhante linha de pensamento em Reformation to Industrial Revolution, 1530-1780 (Middlesex/New York: Penguin Books, 1969). 6 Cf. KAUTSKY, Karl. La lutte des classes en France en 1789. Traduo de douard Berth. Paris: Librairie G. Jacques & Cie, 1901, p.74.

  • 17

    de uma ordem jurdica burguesa, o fim da escravido nas colnias no seria, no final das

    contas, includo. A Declarao dos direitos do homem e do cidado de 1789 trazia, no

    seu artigo 1, o princpio segundo o qual "os homens nascem e permanecem livres e

    iguais em direitos". Mas a histria revolucionria mostrou que essa frmula clssica do

    liberalismo poltico foi capaz de gerar, de imediato, posturas contraditrias entre os

    diferentes atores histricos do perodo, que interpretavam os termos liberdade e

    igualdade luz de suas prprias aspiraes e interesses. Para a maioria dos homens nas

    assembleias revolucionrias, esses "princpios" encontravam uma fronteira, um limite

    ditado pela condio da Frana de potncia colonial.

    *

    Tradicionalmente, prevalecia no territrio francs o princpio da liberdade, isto

    , a noo de que qualquer escravo que pusesse os ps no solo francs seria considerado

    livre. Esse princpio, cujas primeiras manifestaes remontavam aos sculos XV e XVI,

    fortaleceu-se, ao longo do tempo, por conta da ao das cortes francesas. Sue Peabody

    aponta que, ao longo do sculo XVIII, quando intensificou-se a chegada de escravos nos

    portos franceses, ocorreram esforos por parte da Administrao, pressionada pelos

    meios ligados ao comrcio colonial e preocupada com a proliferao de uma populao

    negra livre na metrpole, em flexibilizar ou mesmo erradicar o princpio da liberdade.

    Essa tentativa foi, entretanto, neutralizada pelo Parlamento de Paris e o Amiraut de

    France, que continuaram libertando escravos durante a segunda metade do sculo

    XVIII, at a Revoluo.7 Assim, no final do Antigo Regime, centenas de escravos

    trazidos por seus senhores como serviais recorreram, com sucesso, s cortes soberanas

    francesas para obter, com base no princpio da liberdade, o reconhecimento da sua

    emancipao. Consagrava-se a noo de que no havia escravos na Frana.

    7 Um edito de outubro de 1716 autorizava senhores a trazer, sob autorizao e registro prvios, seus escravos metrpole para aprender um determinado ofcio ou receber educao religiosa, sem que sua propriedade fosse ameaada. Apenas se as condies no fossem respeitadas, os escravos seriam declarados livres. Uma declarao de 1738 reiterou essa medida, acrescentando somente que, caso as formalidades no fossem cumpridas, os escravos no seriam mais libertados, mas confiscados em nome do rei e devolvidos s colnias. Contudo, nem o edito de 1716, nem a declarao de 1738 foram registrados pelo Parlamento de Paris, corte mais poderosa do pas e cuja jurisdio cobria um tero do territrio. No geral, tais leis no tiveram aplicao. Uma lei de 9 de agosto de 1777, Dclaration pour la police des Noirs, proibia a entrada de todos os negros, mulatos e outras pessoas de cor no reino. A lei no falava em escravos, para evitar a rejeio do registro pelo Parlamento de Paris. Ela estabelecia a criao de depsitos nos portos franceses, onde ficariam detidos os escravos que acompanhassem seus senhores em viagens. As cortes soberanas de Paris mantiveram-se, entretanto, fiis ao princpio da liberdade e continuaram a julgar pedidos de liberdade, que chegaram ao auge nos anos 1780 (cf. PEABODY, Sue. "There Are No Slaves in France": The Political Culture of Race and Slavery in the Ancien Rgime (verso digital). New York: Oxford University Press, 1996, pginas no numeradas).

  • 18

    Mesmo a servido, que muitos viam como um estgio intermedirio entre a

    escravido e a liberdade8, era uma instituio em vias de extino, embora ainda

    subsistisse em algumas provncias, sobretudo no Nordeste do reino. Na noite de 4 de

    agosto de 1789, a Revoluo apagaria os seus ltimos traos. Contudo, o longo processo

    de erradicao das formas de submisso pessoal no continente europeu foi

    acompanhado pela introduo e a intensificao da explorao da mo de obra escrava

    nas colnias. Enquanto celebrava-se a liberdade na Frana, o pas tornava-se cada vez

    mais economicamente vinculado escravido colonial e ao trfico negreiro. No

    momento em que explodia a Revoluo, o dualismo entre "uma dedicao crescente

    liberdade, na Europa, e uma expanso do sistema mercantil baseado no trabalho do

    negro na Amrica"9 atingia o seu paroxismo, em razo do sucesso da produo colonial

    francesa.

    Apesar das perdas ocasionadas pela Guerra dos Sete Anos10, as colnias

    ocupavam um lugar primordial na organizao econmica da Frana do final do sculo

    XVIII. As suas posses ultramarinas podiam ser divididas em dois grandes grupos.

    Havia, em primeiro lugar, um domnio situado alm do cabo da Boa Esperana, que

    inclua cinco comptoirs (feitorias) nas ndias orientais (Pondichry, Chandernagor,

    Mah, Yanaon, Krikl), cuja importncia comercial era reduzida. No Oceano ndico, as

    posses mais importantes eram as ilhas Mascarenhas: a le-de-France (atual Maurcio) e a

    ilha Bourbon (atual Reunio), que possuam importantes plantaes escravistas.

    Podemos ainda incluir nesse grupo as posses francesas na frica, mais precisamente na

    ilha de Madagascar, estabelecimento destinado compra de escravos, e alguns

    territrios na costa ocidental do continente (Saint-Louis do Senegal, a ilha de Gore e

    Jud, no atual Benin).

    Contudo, consideravelmente mais importantes do que esses territrios orientais e

    africanos, eram as colnias da Amrica, ou ndias Ocidentais. Elas incluam,

    primeiramente, duas ilhas importantes, temporariamente perdidas para os britnicos,

    8 Ao contrrio do escravo, o servo era sujeito de direito, mas, por conta da mo-morta, ele sofria uma srie de limitaes que restringiam a sua capacidade de contratar. Assim como o ttulo de propriedade sobre o escravo, os direitos do senhor sobre o servo eram vistos como uma propriedade inviolvel (cf. BART, Jean. Esclavage et servage tardif. In: M. DORIGNY (org.). Les abolitions de l'esclavage, de L.F. Sonthonax V. Schoelcher 1793-1794-1848. Paris: Presses Universitaires de Vincennes / ditions UNESCO, 1995, p.28). 9 Cf. DAVIS, David Brion. O Problema da Escravido na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p.130. 10 Com o tratado de Paris, de 10 de fevereiro de 1763, a Frana havia cedido Dominica, Granada, Saint-Vincent e as Grenadines, a Louisiana, Tobago, Minorca, Acadie, as ilhas de Cap Breton e Saint-Jean e o Canad.

  • 19

    mas devolvidas pelo Tratado de Paris: a Martinica at 1740, a mais prspera das

    colnias francesas e a Guadalupe, com suas dependncias (Marie-Galante, Les Saintes

    e La Dsirade). Havia ainda a ilha de Sainte-Lucie e o arquiplago de Saint-Pierre-et-

    Miquelon, recuperados com o mesmo tratado. No continente, encontrava-se a Guiana,

    uma pequena e pouco lucrativa colnia, marginalizada num momento em que as ilhas

    atingiam o seu pice comercial. Mas, acima de tudo, o imprio colonial francs girava

    em torno da "prola das Antilhas", So Domingos, no propriamente uma ilha, mas

    parte de uma ilha, a Hispaniola, cujo restante pertencia Espanha. Era essa colnia que

    havia projetado a Frana para o topo do mercado internacional de produtos coloniais. As

    perdas ocasionadas pela Guerra fizeram com que o comrcio martimo francs se

    voltasse quase que exclusivamente para as suas ilhas, iniciando uma fase de

    desenvolvimento vertiginoso. Contando com uma mo de obra de cerca de meio milho

    de escravos, So Domingos tornava-se a colnia mais produtiva do mundo.11 O sucesso

    da produo caribenha era a base da riqueza da burguesia dos portos franceses,

    detentora da "riqueza mobiliria" que, nos termos de Barnave, constitua o fundamento

    da sociedade que estava emergindo.

    *

    O sucesso da produo colonial no deixava, entretanto, de levantar questes na

    metrpole a respeito da manuteno da ordem em sociedades construdas em torno da

    escravido. Embora nunca tenha sido de fato aplicado, o Code Noir de 1685, a lei da

    escravido francesa, j era a traduo de preocupaes relativas ao aumento da

    populao escrava nas colnias, aos efeitos do tratamento cruel dessa populao e ao

    consequente crescimento de atos de resistncia escrava. Conforme desenvolvia-se o

    comrcio colonial e, consequentemente, aumentava a demanda por mo de obra nas

    colnias, essas preocupaes se intensificaram.

    Nas primeiras dcadas do sculo XVIII, as eventuais observaes crticas

    escravido e ao trfico tendiam ainda a ser contrabalanadas pela reiterao de

    determinadas justificativas que autorizavam essas prticas, tais como a guerra justa, a

    comutao de uma condenao pena de morte, a alienao da prpria pessoa em caso

    11 Cf. GAUTHIER, Florence. Triomphe et mort du droit naturel 1789-1795-1802. Paris: PUF, 1992, p.155; BNOT, Yves. La Guyane sous la Rvolution franaise. Kourou: Ibis Rouge ditions, 1997, p.15; TARRADE, Jean. L'esclavage est-il rformable? Les projets des administrateurs coloniaux la fin de l'Ancien Rgime. In: M. DORIGNY (org.). Les abolitions de l'esclavage, p.11.

  • 20

    de necessidade extrema e o nascimento na escravido.12 Assim, a escravido aparecia

    legitimada por razes religiosas e humanitrias, alm de cumprir uma funo econmica

    indispensvel. o que verificamos no seguinte trecho, de Jacques Savary des Brlons,

    extrado do seu Dictionnaire universel du commerce (1723-1730):

    difcil justificar totalmente o comrcio dos Negros; entretanto, verdade que esses miserveis escravos encontram ordinariamente a sua salvao na perda da sua liberdade e que a razo da instruo crist que lhes dada, associada necessidade indispensvel que se tem deles para a cultura dos acares, dos tabacos, dos anis, etc., suaviza o que parece desumano num negcio onde homens so os mercadores de outros homens e os compram como se fossem animais para cultivar as suas terras [...]. (grifo nosso)13

    O que era o princpio de uma condenao moral da escravido encontrava uma

    compensao imediata na ideia de que a escravizao do Negro vinha comumente como

    a comutao de uma pena de morte decretada em seu pas de origem. O autor citava

    ainda os benefcios da evangelizao dos Negros e o carter necessrio da mo de obra

    escrava para o cultivo das terras. O autor fazia apenas uma ressalva quanto aos excessos

    no tratamento dispensado aos escravos.

    Conforme avanamos no sculo XVIII, verificamos o desenvolvimento de uma

    crtica mais pronunciada ao sistema escravista. Marcel Dorigny afirma que a dcada de

    1740, em particular, foi marcada por uma "tomada de conscincia moral do carter

    criminoso do trfico e da escravido".14 Mas o que essa conscientizao mais ou menos

    generalizada expressava era menos a necessidade de abolir tais instituies do que

    atentar para os efeitos provveis das prticas desumanas existentes nas colnias. Ao

    denunciar o carter brbaro da escravido, pensadores como Montesquieu e Jaucourt

    indicavam a necessidade de reformar o sistema colonial. Houve, com isso, um

    deslocamento no debate sobre a questo colonial, com o recuo progressivo, no campo

    12 Como explica Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, esses ttulos foram extrados da tradio jurdica romana e acabaram sendo retomados pela jurisprudncia medieval (cf. ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de f. A Companhia de Jesus e a Escravido no Processo de Formao da Sociedade Colonial (Brasil, Sculos XVI e XVII). Traduo de Antonio de Padua Danesi. So Paulo: Edusp, 2011, p.109). 13 "Il est difficile de justifier tout--fait le commerce des Ngres; cependant il est vrai que ces misrables esclaves trouvent ordinairement leur salut dans la perte de leur libert et que la raison de l'instruction chrtienne qu'on leur donne, jointe au besoin indispensable qu'on a d'eux pour la culture des sucres, des tabacs, des indigos, etc., adoucit ce qui parat inhumain dans un ngoce o des hommes sont les marchands d'autre hommes et les achtent de mme que des bestiaux pour cultiver leurs terres [...]" (SAVARY DES BRLONS, Jacques. Un Ngoce o des hommes sont les marchands d'autres hommes. In: L'abolition de l'esclavage. Un combat pour les droits de l'homme. GEORGEL, Chantal (org.). Paris: ditions Complexe, 1998, p.48). 14 DORIGNY, Marcel, GAINOT, Bernard. La Socit des Amis de Noirs 1788-1799: Contribution l'histoire de l'abolition de l'esclavage. Paris: UNESCO, 1988, p.16.

  • 21

    escravocrata, das tradicionais justificativas morais, jurdicas e religiosas da escravido.

    Entre os adeptos da escravido, a invocao dos ttulos que constituam o fundamento

    de uma escravizao "legtima" foi, a partir de ento, dando lugar defesa de

    consideraes materiais ou econmicas. Doravante, embora as antigas justificativas

    continuassem a aparecer, a escravido comearia a ser defendida essencialmente como

    um "mal necessrio" conservao das colnias. Em resposta s acusaes de barbrie,

    o interesse dos colonos na conservao de seus escravos seria apresentado como a

    garantia material de um tratamento justo e humano. Nesse sentido, tornar-se-ia comum

    o argumento de que os camponeses na Frana eram mais miserveis do que os escravos

    nas colnias.15 O que estava em discusso era menos a legitimidade da escravido do

    que a boa ordem colonial.

    Aps a Guerra dos Sete anos, as questes coloniais ganharam nova urgncia.

    Durante o conflito, a Frana tinha dado prioridade total s colnias da Amrica do

    Norte, deixando o Caribe desprotegido. O bloqueio britnico havia cortado o comrcio

    francs com So Domingos em 70%. A Guadalupe tinha se rendido aos ingleses sem

    resistncia e a Martinica, embora tivesse repelido uma primeira tentativa britnica em

    1759, havia seguido o mesmo caminho em 1762. A Guerra suscitou suspeitas recprocas

    entre colonos e administrao metropolitana. Esta desconfiava da fidelidade dos

    colonos, enquanto estes projetavam, cada vez mais, libertar-se das amarras do sistema

    exclusivo.16 Ao mesmo tempo, os anos que seguiram a Guerra marcaram o incio do

    auge da produo antilhana, multiplicando a entrada de escravos africanos nas ilhas do

    Caribe. Nesse contexto, sentia-se a necessidade de repensar o sistema colonial.

    Dorigny entende que, a partir da dcada de 1770, teve incio, um novo perodo

    na evoluo do antiescravismo francs, com "a passagem de uma denncia moral da

    escravido a uma radicalizao espetacular do discurso".17 No fundo, a radicalizao

    talvez no tenha sido to espetacular assim, mas, de fato, houve, a partir dos anos 1770,

    o aparecimento de textos que no se limitavam a denunciar o carter abominvel da

    15 Em 1785, um autor annimo escreveu: "Os Negros das Colnias so muito menos infelizes que os Jornaleiros da Europa, que, no possuindo nada e no podendo contar com nada, existem apenas para temer e sofrer" ("Les Ngres des Colonies sont moins malheureux que les Journaliers de l'Europe, qui, n'ayant rien et ne pouvant compter sur rien, n'existent que pour craindre et souffrir"; Du commerce des Colonies, ses principes et ses lois. La Paix est de temps de rgler & d'agrandir le commerce. S.l: 1785, p.51). 16 Cf. GARRIGUS, John D. Before Haiti: Race and Citizenship in French Saint-Domingue. New York: Palgrave MacMillan, 2006, pp.111-112; BNOT, Yves. La Rvolution et la fin des colonies. Paris: La Dcouverte, 1987, pp.13-14. 17 DORIGNY, Marcel, GAINOT, Bernard. La Socit des Amis de Noirs, p.18.

  • 22

    escravido e do trfico, mas que se propunham a explicitar as consequncias da

    manuteno dessas prticas para as colnias e para aqueles que se beneficiavam dessas

    instituies. Novamente, o objetivo era menos pregar a abolio total da escravido do

    que alertar para a necessidade de medidas que atenuassem os seus aspectos mais cruis

    e destrutivos. Mas, nesse intuito, surgiram textos que, pela sua virulncia, permitiam

    conceber o "inconcebvel": uma insurreio geral dos escravos negros e a obteno da

    liberdade pela fora. Uma "profetizao" dessa insurreio apareceu em L'An deux mille

    quatre cent quarante, rve s'il n'en fut jamais (1771), de Louis-Sbastien Mercier, para

    ser retomada nas segunda e terceira edies da Histoire des deux Indes (1774 e 1780) do

    abade Raynal. Como veremos adiante, longe de conclamar os negros para uma rebelio

    geral, tratava-se antes de alertar para os perigos que poderiam ser eventualmente

    evitados caso reformas fossem promovidas no sistema escravista. Mas essas "profecias

    apocalpticas"18 permitiram tambm ampliar o campo argumentativo dos crticos da

    escravido, autorizando-os a pregar medidas de reforma ou abolio gradual como algo

    do interesse dos prprios colonos.

    As discusses sobre a necessidade de reformar a escravido no permaneceram

    confinadas ao plano terico. Alimentadas por homens afeitos s novas ideias, elas

    inspiraram as ordenaes reais de 1784-85, destinadas a recuperar e complementar as

    medidas protetivas do Code Noir. nesse contexto de auge da economia escravista nas

    colnias, mas tambm de questionamentos a respeito do funcionamento das sociedades

    coloniais, que a Frana ganhou a sua primeira sociedade antiescravista organizada.

    *

    No ano de 1788, um grupo reduzido, porm seleto, de nobres, homens de letras e

    de finanas fundou, na capital francesa, a Sociedade dos Amigos dos Negros. Animada

    por alguns dos futuros protagonistas da cena poltica da Revoluo, como Brissot, La

    Fayette, Mirabeau, Condorcet e Clavire, a Sociedade se tornaria o smbolo da opinio

    antiescravista francesa, desenvolvendo suas atividades em duas fases distintas (1788-92

    e 1797-99). No vocabulrio da oposio colonial, ser antiescravista significaria ser um

    Amigo dos Negros.

    Os relatos e rumores sobre os trabalhos da Sociedade provocariam, alis, alarme

    nas colnias, onde tendia-se a exagerar as intenes e o impacto da propaganda

    antiescravista. Os Amigos dos Negros seriam vistos como os responsveis por todas as

    18 Ibidem, p.20.

  • 23

    perturbaes existentes no espao colonial. Conscientes da instabilidade das sociedades

    escravistas, os colonos viam o surgimento de uma sociedade antiescravista como uma

    fagulha capaz de detonar uma onda incontrolvel de insurreies escravas. No entanto,

    fomentar movimentos revolucionrios nas colnias estava muito longe das intenes

    dos Amigos dos Negros.

    A exemplo do movimento ingls fundado um ano antes e que lhe serviu de

    inspirao, a Sociedade dos Amigos dos Negros se situava numa linha antiescravista

    moderada, voltada essencialmente para a abolio do trfico negreiro. A supresso

    efetiva da escravido era concebida apenas num futuro mais ou menos distante,

    promovida por medidas de emancipao gradual da populao escrava. Na base desse

    programa, havia, ao lado da indignao quanto barbrie do trfico e da escravido, a

    preocupao fundamental com a capacidade das colnias de se adaptarem a um novo

    sistema de explorao e reposio da mo de obra, assim como uma preocupao com a

    insero produtiva dos negros num regime de trabalho livre. Havia tambm a projeo

    de uma ampliao do imprio colonial francs, a partir de um novo modelo colonial,

    sem escravido e voltado para novas relaes comerciais com os povos africanos.

    Os Amigos dos Negros estavam, portanto, longe de querer a subverso da ordem

    colonial. De certa forma, eles no estavam distantes da lgica que havia orientado a

    crtica escravido desde meados do sculo XVIII. Eles se pretendiam uma superao

    do mero reformismo, na medida em que concebiam, ainda que de forma um tanto vaga,

    o fim da escravido nas colnias, mas veremos que, no esforo de acomodar-se s

    complexidades do contexto revolucionrio, sua atitude diante do problema da

    escravido tendeu, em certos momentos, a cruzar a fronteira da crtica preservacionista

    do sistema. Para eles, no se tratava de eliminar o comrcio com as colnias, mas de

    repensar o sistema colonial de uma forma que fosse compatvel com a moral, com a

    estabilidade das sociedades coloniais e com os interesses gerais da Nao.

    Fundada s vsperas da Revoluo, a Sociedade procuraria levar a sua causa

    para a Assembleia Nacional, agora fundada em princpios constitucionais de liberdade e

    igualdade jurdica. Mas mesmo as intenes conciliatrias dos Amigos dos Negros no

    seriam capazes de superar os obstculos interpostos pelos representantes dos interesses

    das colnias e do comrcio francs. A histria da primeira sociedade antiescravista

    francesa seria a histria de um fracasso.

    *

  • 24

    primeira vista, poderamos pensar que o processo revolucionrio de derrubada

    das instituies do Antigo Regime e que poderamos, a posteriori, chamar de pr-

    capitalistas implicava ideologicamente a eliminao da escravido nas colnias.

    Politicamente, entretanto, a converso da oposio ideia da escravizao de seres

    humanos em tomadas de posio mais concretas sobre as colnias enfrentaria, ao longo

    do perodo, obstculos importantes, quando no intransponveis. Num momento de

    sucesso das ilhas do acar, poucos eram os que contestavam a importncia das colnias

    para a economia francesa e, para a maioria, no era possvel pensar a colonizao em

    outros termos que no os do escravismo. Assim, fazer a defesa da emancipao da mo

    de obra empregada nas plantations coloniais era algo muito problemtico. Num quadro

    de concorrncia com outras potncias europeias, especialmente a Gr-Bretanha, alterar a

    poltica colonial naquilo que ela tinha de mais essencial era, na prtica, pouco vivel.

    No entanto, com a Revoluo, os legisladores se viram imediatamente obrigados

    a definir as colnias em termos legais, o que levantava o problema de sua incorporao

    ou no nova ordem jurdica em construo. A Declarao dos direitos do homem e do

    cidado, base da Constituio francesa, implicava, em razo de sua vocao

    universalista, problemas ligados manuteno do escravismo nas colnias francesas.

    Em que medida os princpios nela contidos se aplicavam aos territrios ultramarinos?

    Essa foi a questo fundamental que orientou os debates sobre as colnias durante a

    Revoluo. No plano do discurso, a Revoluo era comumente apresentada como um

    movimento contnuo, destinado a disseminar o germe da mudana pelos quatro cantos

    do planeta. Essa percepo encontrava, entretanto, o seu primeiro limite na questo

    colonial, no argumento de que, aplicada s colnias, a Declarao dos direitos do

    homem produziria inevitavelmente a sua destruio.

    Os debates do perodo revolucionrio sobre a escravido remetem

    fundamentalmente ao problema da contradio ou no da ideologia liberal com a prtica

    escravista. As cidades martimas da Frana, como Nantes, Bordeaux, La Rochelle, Le

    Havre e Marselha, representavam perfeitamente a contradio entre a exaltao da

    liberdade e a defesa de um comrcio baseado na escravizao e na venda de seres

    humanos. No caderno de queixas de Bordeaux, produzido por ocasio da convocao

    dos Estados Gerais, o Terceiro Estado louvava "a liberdade do homem na disposio de

    sua pessoa, de seus bens e de todas as suas faculdades", pregava o fim dos privilgios e

    dos direitos senhoriais, ao mesmo tempo em que pedia encorajamentos e a eliminao

  • 25

    de quaisquer obstculos ao comrcio das colnias, o que significava proteger o trfico.19

    J para os colonos, a Revoluo francesa trazia a esperana de uma forma de liberdade

    de comrcio, com o fim ou a atenuao do sistema exclusivo. Ora, para eles, comrcio

    livre estava muito longe de implicar trabalho livre. Para negociantes e colonos, e mesmo

    para a maioria dos que compunham a Assembleia Constituinte, a concretizao da

    ideologia liberal na metrpole no implicava, ou at mesmo afastava, a sua extenso s

    posses ultramarinas. Cyril James afirmou que "o comrcio de escravos e a escravido

    foram a base econmica da Revoluo francesa".20 A questo da escravido era

    embaraosa para a maioria dos revolucionrios, que preferiam cobrir as realidades

    coloniais com um vu.

    *

    Apesar disso, a lei consular de 30 floreal do ano X (20 de maio de 1802), ao

    restabelecer o trfico e a escravido nas colnias francesas, falaria expressamente em

    restaur-los tal como eram praticados em 1789, o que era estranho visto que medidas

    abolicionistas s foram adotadas em 1793-94. A referncia a 1789 no faz sentido a no

    ser pelo fato de que, a despeito das intenes da maioria da burguesia revolucionria, a

    Revoluo francesa, ao entrar em contato com as realidades coloniais, desencadeou, de

    imediato, um curso de eventos cujos resultados superaram at mesmo as pretenses dos

    antiescravistas da metrpole.

    Ao chegarem aos territrios ultramarinos, as noes de liberdade e igualdade

    proclamadas na metrpole foram reinterpretadas e reformuladas pelos diferentes grupos

    sociais das sociedades crioulas. Para os ricos plantadores de acar e caf de So

    Domingos, impactados pela independncia dos Estados Unidos, a liberdade significava

    a possibilidade da restrio ou mesmo do fim do controle metropolitano sobre os

    assuntos internos e externos da colnia, isto , autonomia poltica e liberdade de

    comrcio. Por outro lado, os brancos mais pobres da sociedade colonial, os chamados

    petits blancs, viram na Revoluo uma oportunidade de subverter um quadro social que

    os mantinha numa posio humilhante nas colnias. Abraaram a causa patritica, mas

    redefinindo-a nos seus prprios termos, o que implicava reforar a segregao racial.

    Para um branco sem propriedade e sem talento, a cor branca da pele era o nico fator

    que lhe dava algum status. Inversamente, para os chamados "homens de cor livres", a

    19 Cf. AP, v.2, pp.397-405. 20 Cf. JAMES, C.L.R.. Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revoluo de So Domingos. So Paulo: Boitempo editorial, 2000, p.58.

  • 26

    Revoluo representava a possibilidade de pr fim segregao e reivindicar a

    igualdade com os brancos. A histria da Revoluo de So Domingos-Haiti no

    comeou com um levante de escravos, mas com lutas entre brancos em torno da questo

    da autonomia legislativa da colnia e lutas entre brancos e "pessoas de cor" a respeito

    da igualdade dos homens livres de todas as cores. As centenas de milhares de escravos

    que povoavam a mais rica colnia francesa observavam os acontecimentos e

    modificavam suas expectativas de acordo com as condies objetivas nas quais se

    encontravam. A Revoluo na metrpole e os seus efeitos na colnia ampliavam os seus

    horizontes e permitiam conceber uma alterao do estado de opresso no qual se

    encontravam. A historiografia tem questionado recentemente a existncia ou no de

    uma ideologia abolicionista entre os milhares de escravos que se revoltaram em agosto

    de 1791. Sabe-se que a atitude dos revoltosos no foi homognea ao longo da revoluo

    e que a supresso da escravido como sistema no estava necessariamente nos planos

    dos primeiros lderes da insurreio. Para alguns escravos, tratava-se de ampliar a

    margem de autonomia existente dentro da escravido; para outros, a revolta era a

    possibilidade de garantir a liberdade pessoal, sem, entretanto, que a emancipao geral

    fosse concebida. Como mostrou David Geggus em seus estudos sobre Toussaint

    Louverture21, a prpria atitude do grande lder negro no fcil de decifrar e sofreu

    variaes de acordo com o momento. O que se pode afirmar que cada reviravolta na

    histria da revoluo levava os revoltosos a alterar a sua percepo das coisas e seus

    objetivos luz dos acontecimentos. Objetivamente, a insurreio de agosto de 1791

    evoluiu, no espao de dois anos, para uma luta pela abolio e, mais tarde, pela

    independncia.

    Assim, se os conflitos entre as diferentes camadas da sociedade escravista j

    germinavam muito antes do perodo revolucionrio, um fator exgeno a Revoluo na

    Frana exacerbou as contradies existentes no seio dessa sociedade e abriu a via para

    a derrubada da ordem estabelecida.22 Da mesma forma, os eventos ocorridos no espao

    colonial alteraram a percepo que se tinha na metrpole da questo da escravido. A

    insurreio massiva dos escravos em So Domingos, um acontecimento visto como

    improvvel pelos antiescravistas moderados da Sociedade dos Amigos dos Negros,

    tambm abriu a via para que a Revoluo evolusse rumo abolio da escravido.

    21 Cf. GEGGUS, David Patrick. Haitian Revolutionary Studies: Blacks in the Diaspora. Bloomington, IN: Indiana University Press, 2002, pp.119-136. 22 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravido e capitalismo. 2 edio. Petropolis: Vozes, 1982, p.103.

  • 27

    Como veremos ao longo deste trabalho, no se deve, entretanto, ver as atitudes

    na metrpole diante da escravido unicamente como uma resposta evoluo dos

    acontecimentos na colnia. Fenmenos histricos so pluricausais e, no caso da histria

    colonial da Revoluo francesa, fatores internos e externos se combinaram

    constantemente para produzir reviravoltas na esfera poltica. Primeiramente, no se deve

    jamais esquecer que a histria da Frana revolucionria a histria de um pas em

    guerra e que as decises mais importantes tomadas durante o perodo traduziam, em

    parte, as flutuaes da situao militar. Da mesma forma, a situao poltica na

    metrpole um fator frequentemente desprezado pela historiografia dedicada aos temas

    coloniais e, no entanto, trata-se de um elemento fundamental para a compreenso da

    poltica colonial da Revoluo. Nesse sentido, a atuao do movimento popular, cuja

    influncia sobre as esferas de poder foi, em muitos momentos, capital, no pode ser

    esquecida. A abolio da escravido, proclamada em 16 pluvioso do ano II (4 de

    fevereiro de 1794), muitas vezes interpretada como "lei de circunstncia" ou como um

    "paradoxo histrico", deve ser compreendida luz das condies objetivas existentes

    nas colnias e na metrpole.

    *

    Apesar da enorme quantidade de panfletos e projetos produzidos durante o

    perodo sobre a questo colonial, esta foi praticamente omitida das grandes narraes da

    Revoluo francesa. Autores simpticos ao Antigo Regime, como Pierre Gaxotte ou

    Charles Maurras, decidiram ignorar o tema, talvez incomodados em explicitar a

    escravido colonial como uma das bases econmicas do Estado absolutista. Mas

    tambm autores republicanos, como o "dantonista" Jules Michelet e os da tradio

    marxista (Albert Mathiez, Georges Lefebrevre, Albert Soboul), dedicaram um espao

    nfimo aos eventos que marcaram a pgina colonial da Revoluo. Isso talvez traduza a

    dificuldade em acomodar as atitudes das assembleias revolucionrias diante do

    problema da escravido a uma determinada viso da revoluo liberal e burguesa.

    Apenas Jean Jaurs abordou o tema, destacando que, longe de ser um aspecto

    secundrio da Revoluo, o problema colonial era revelador de suas contradies: "A

    burguesia revolucionria ficou presa, na questo colonial, entre o idealismo da

    Declarao dos Direitos e os interesses de classe mais brutais, os mais tacanhos".23

    23 "La bourgeoisie rvolutionnaire fut prise, dans la question coloniale, entre l'idalisme de la Dclaration des Droits et les intrts de classe les plus brutaux, les plus borns" (JAURS, Jean. Histoire socialiste de la Rvolution Fra\naise. 2a edio. Paris: ditions de la Librairie de l'Humanit, 1927, v.2, p.209).

  • 28

    Contudo, o autor da Histoire socialiste de la Rvolution franaise inexplicavelmente

    silenciou a respeito da lei de abolio de 16 pluvioso do ano II. Para Carolyn Fick, o

    pequeno lugar que a questo da escravido e da abolio tradicionalmente ocupou na

    historiografia da Revoluo pode expressar:

    [...] a inabilidade dos prprios revolucionrios franceses em confrontar diretamente a questo da escravido nas assembleias legislativas, e faz-lo francamente em nome dos princpios que guiavam a revoluo isto , os princpios universalistas de liberdade e igualdade.24

    Como veremos, a atitude das assembleias no resultou apenas de uma mera

    "inabilidade", mas o fato que a questo da escravido mostrou-se, durante muito

    tempo, incmoda aos estudiosos da Revoluo francesa. Foi necessrio que se

    desenvolvesse, margem das grandes interpretaes da Revoluo, uma linha

    historiogrfica voltada especificamente para a questo colonial. Por muito tempo, as

    narrativas da Revoluo de So Domingos-Haiti constituram a principal fonte de

    reflexo sobre o problema colonial. A Histoire de la rvolution de Saint-Domingue

    (publicada em 1814), escrita por Antoine Dalmas, antigo colono do Norte de So

    Domingos, talvez seja o mais antigo relato da grande insurreio escrava. Apesar dos

    partis pris do autor, a obra mantm o seu interesse por ter sido supostamente composta

    no calor dos eventos.

    Em meados do sculo XIX, essa mesma histria foi objeto de importantes

    narraes por parte de pioneiros historiadores haitianos, como Thomas Madiou (cf.

    Histoire d'Hati, 1847-48) e Beaubrun Ardouin (cf. tudes sur l'histoire d'Hati, 1853-

    60). Suas contribuies se inscreviam numa tica nacionalista que procurava enfatizar o

    papel das grandes lideranas da Revoluo, apresentado-as como personagens

    portadores das aspiraes de liberdade de toda a raa negra.25

    No final do sculo XIX e no incio do sculo XX, outros autores dedicaram-se a

    analisar os efeitos da Revoluo francesa na questo colonial, caso de Herbert E. Mills

    24 "[...] the inability of the French revolutionaries themselves to confront the issue of slavery head on in the legislative assemblies, and to do so forthrightly in the name of those principles guiding the revolution that is, the universalists principles of liberty and equality" (FICK, Carolyn. The French Revolution in Saint-Domingue. A Triumph or a Failure. In: D.B. GASPAR (orgs). A Turbulent Time: the French Revolution and the Greater Caribbean. Bloomington: Indiana University Press, 1997, p.52). 25 A partir de meados da dcada de 1940, desenvolveu-se no Haiti uma outra vertente historiogrfico com maior conotao social. Um dos expoentes dessa nova corrente, Jean Fouchard, dedicou-se, por exemplo, ao estudo da resistncia marron desde antes da grande insurreio de 1791 (cf. HECTOR, Michel. L'historiographie hatienne aprs 1946 sur la Rvolution de Saint-Domingue. Annales historiques de la Rvolution franaise, Paris, n.293-294, 1993, pp.545-549. Disponvel em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ahrf_0003-4436_1993_num_293_1_3395. Acesso em: 4 de jun de 2013).

  • 29

    (cf. The Early Years of the French Revolution in San Domingo, 1892) e Pierre

    Boissonnade (Saint-Domingue la veille de la Rvolution franaise et la question de la

    reprsentation coloniale aux tats Gnraux, 1906). Victor Schoelcher, o homem da

    abolio de 1848, abordou o tema em sua biografia de Toussaint Louverture (cf. Vie de

    Toussaint Louverture, 1899), enquanto Adolphe Cabon dedicou Revoluo a maior

    parte dos quatro volumes de sua Histoire d'Hati (1895-1919). J Lothrop Stoddard

    dedicou The French Revolution in San Domingo (1914) a uma abordagem da Revoluo

    haitiana enquanto guerra racial. No mesmo ano, T.G. Steward, um militar, empreendeu

    nova narrativa da revoluo, com o mrito de destacar o protagonismo dos escravos no

    processo de emancipao e independncia (cf. The Haitian Revolution, 1791-1804).

    No que se refere especificamente atuao das assembleias revolucionrias da

    metrpole, pode-se mencionar trabalhos como Les colonies pendant la Rvolution

    franaise (1898), de Lon Deschamps, e The French Colonial Question, 1789-1791

    (1918), de Mitchell Bennett Garrett, ambos restritos aos debates coloniais da

    Assembleia Constituinte. Os volumes que compem La colonisation franaise pendant

    la Rvolution (1930), de J. Saintoyant, talvez tenham sido os primeiros a oferecer uma

    anlise mais ampla embora pouca profunda sobre o conjunto da poltica colonial da

    Revoluo.

    A reflexo sobre o tema ganhou um forte impulso, fora da Frana, com a

    publicao de Os Jacobinos Negros (1938), do marxista nascido em Trininad, e

    radicado na Inglaterra, Cyril Lionel Robert James. Trata-se, ainda hoje, da mais

    influente narrao dos eventos que marcaram a Revoluo haitiana e suas repercusses

    na Frana revolucionria. A despeito de alguns erros factuais e generalizaes que

    exigem certo cuidado por parte do leitor, a obra permanece incontornvel por sua

    qualidade literria e pela anlise consistente das foras histricas em especial, o

    embate entre as classes que pesaram sobre os agentes das revolues haitiana e

    francesa.

    Nessa mesma poca, o francs Gabriel Debien esforou-se em renovar os

    estudos sobre o Caribe com abordagens quantitativas sobre as plantations escravistas de

    So Domingos antes da Revoluo. Suas concluses seriam posteriormente reunidas na

    sua principal publicao, L'esclavage aux Antilles franaises (XVIIe-XVIIIe sicles)

    (1974). Antes disso, entretanto, ele ofereceu uma importante contribuio ao estudo da

    poltica colonial do perodo revolucionrio com Les colons de Saint-Domingue et la

    Rvolution: Essai sur le Club Massiac (1953), obra bastante detalhada sobre o

  • 30

    movimento de presso dos colonos pela defesa do escravismo num contexto de agitao

    poltica.

    Mais tarde, o encontro das revolues na Frana e em So Domingos foi o

    objeto de reflexo do poeta e militante poltico martinicano Aim Csaire, em Toussaint

    Louverture: la Rvolution franaise et le problme colonial (1962), obra em que a

    questo colonial aparece como o problema crucial da Revoluo francesa. Ao mesmo

    tempo, Csaire procurou apresentar a Revoluo em So Domingos como uma fora

    autnoma e no como uma mera decorrncia dos eventos da metrpole: uma ideia

    importante para estabelecer a especificidade da insurreio dos escravos, mas que no

    deve levar ao desprezo da relao dialtica existente entre as duas revolues, a da

    metrpole e a da colnia. Charles Frostin, por outro lado, pouco escreveu sobre o

    perodo que nos interessa, mas ofereceu um importante estudo sobre as tendncias

    secessionistas da populao branca de So Domingos nos dois sculos que precederam

    a Revoluo (cf. Les rvoltes blanches Saint-Domingue aux XVIIe et XVIIIe sicles,

    1975), aspecto relevante para a compreenso do quadro poltico e social no qual se deu

    a insurreio escrava. J o historiador norte-americano Eugene Genovese dedicou a sua

    obra From Rebellion to Revolution: Afro-American Slave Revolts in the Making of the

    Modern World (1979) a uma reflexo sobre o carter inovador do caso haitiano na

    histria das rebelies escravas. Genovese desenvolveu a ideia de um salto qualitativo na

    ideologia da resistncia escrava, sob o impacto da Revoluo na metrpole, passando do

    "restauracionismo" a uma ideologia revolucionria burguesa e democrtica.26 Embora a

    formulao tenha os seus limites, ela estabeleceu as bases para o debate, ainda atual,

    sobre a ideologia dos escravos em revolta.

    As contribuies citadas acima tornaram-se referncias para as discusses sobre

    a Revoluo e as colnias. Um verdadeiro fluxo de publicaes sobre o tema,

    entretanto, viria a partir da agitao em torno do bicentenrio da Revoluo francesa. A

    exaltao da primeira abolio da escravido, de 1794, foi inscrita na ordem do dia das

    celebraes, muito embora a lei tenha conhecido uma vida curta e uma aplicao pouco

    efetiva. Com isso, muitos autores dedicaram-se a refletir sobre a postura das

    assembleias revolucionrias diante do problema colonial. Yves Bnot, por exemplo,

    procurou, em La Rvolution franaise et la fin des colonies (1987), resgatar o papel das

    Luzes e dos antiescravistas no longo processo que levou abolio. Embora

    26 Cf. GENOVESE, Eugene. Da rebelio revoluo. So Paulo: Global, 1983, pp.14-18.

  • 31

    reconhecesse o papel fundamental da insurreio escrava no processo, Bnot sustentou

    que, para que a Conveno tomasse a deciso de abolir a escravido, sob o impacto dos

    eventos em So Domingos, era necessrio "um quadro de pensamento previamente

    constitudo, e que o papel daqueles que por muito tempo gritaram no deserto , nesse

    sentido, capital".27 Procuraremos mostrar, entretanto, que, se o papel das ideias no

    processo poltico no deve ser rejeitado, acima de tudo o exame das condies e das

    prticas (o peso econmico e poltico da burguesia mercantil, a situao nas colnias, os

    movimentos de revolta escrava, a guerra entre as naes europeias, a composio das

    assembleias, a presso do movimento popular parisiense) que deve nortear o olhar do

    historiador, na medida em que ora propulsionam, ora neutralizam a converso das ideias

    em ao poltica concreta.

    Numa outra linha, herdeiros da tradio jacobina, historiadores como Florence

    Gauthier, Jean-Daniel Piquet e Claire Blondet dedicaram-se a recuperar o papel da

    Conveno montanhesa e dos robespierristas no processo abolicionista. Muito bem

    documentado, L'mancipation des Noirs dans la Rvolution franaise (2002), de Jean-

    Daniel Piquet, teve o grande mrito de destacar a transio, durante a Revoluo, do

    antiescravismo moderado para o abolicionismo propriamente dito, com uma penetrao

    maior dos ideais abolicionistas nos meios populares. O autor exagera apenas ao querer

    identificar um abolicionismo militante entre a cpula do governo do ano II, sem

    perceber que talvez mais importante do que as convices desses homens era o conjunto

    de fatores em especial, a atuao das massas populares, coloniais e metropolitanas

    que informavam as suas aes. Nesse sentido, vale destacar o trabalho de Jean-Claude

    Halpern, que dedicou-se a estudar o envolvimento popular na questo colonial a partir

    das manifestaes de apoio lei de abolio.28

    Claude Wanquet e Bernard Gainot, por outro lado, dedicaram-se poltica

    colonial da Conveno thermidoriana e do Diretrio. Gainot destacou a ao das

    correntes republicanas (ou "neojacobinas") sob o Diretrio e seu combate contra os

    adeptos da restaurao da ordem escravocrata nas colnias. No caso de Wanquet, a

    nfase foi dada ao caso das ilhas Mascarenhas. Em La France et la premire abolition

    de l'esclavage 1794-1802: le cas des colonies orientales, o autor abordou a atuao dos

    27 Cf. BNOT, Yves. La Rvolution et la fin des colonies, p.18. 28 Cf. HALPERN, Jean-Claude. L'universel et le lointain. Les mondes exotiques dans la culture populaire, la fin du XVIIIme sicle. History of European Ideas, v.15, n.4-6, 1992, pp.767-772; Idem. Les ftes rvolutionnaires et l'abolition de l'esclavage en l'an II. In: M. DORIGNY (org.). Les abolitions de l'esclavage, de L.F. Sonthonax V. Schoelcher 1793-1794-1848. Paris: Presses Universitaires de Vincennes / ditions UNESCO, 1995, pp.187-198.

  • 32

    representantes da le-de-France e da Reunio (Bourbon) sob a Conveno, o Diretrio e

    os primeiros anos do Consulado, destacando a sua habilidade em usar as ambiguidades

    da poltica colonial revolucionria e as clivagens nas esferas de poder para impedir a

    aplicao da lei de abolio nesses territrios.

    Sobre a evoluo do problema colonial sob o Consulado e o Imprio, deve-se

    mencionar La dmence coloniale sous Napolon (1992), de Yves Bnot. O autor

    procurou caracterizar a poltica colonial de Bonaparte sob a tica da formao de uma

    ideologia racista, contrapondo-a a uma corrente antiescravista pouco incisiva e cujas

    ambiguidades prenunciavam uma segunda onda de colonizao. O que no fica claro na

    obra como a poltica colonial de Bonaparte se insere no quadro mais geral das bases

    polticas e econmicas do regime consular e de que forma ela se relaciona com a

    reconstituio de um grupo de interesse ligado ao comrcio colonial. Uma tentativa de

    elucidar essas questes foi empreendida em Napolon, l'esclavage et les colonies

    (2006), de Pierre Branda e Thierry Lentz, ainda que no de forma totalmente

    conclusiva.

    Recentemente, em The Old Regime and the Haitian Revolution (2012), Malick

    Ghachem trouxe novas perspectivas, ao aplicar questo colonial a ideia de Tocqueville

    de uma continuidade entre o Antigo regime e a Revoluo. O autor dedicou-se a mostrar

    a sobrevivncia da lgica precaucionria por trs do Code Noir no discurso sobre a

    escravido das Luzes, na legislao revolucionria e at mesmo na ideologia das

    lideranas negras. Ghachem bastante preciso na sua caracterizao da crtica

    preservacionista escravido, muitas vezes confundida pela historiografia com um

    abolicionismo autntico. Por outro lado, o autor talvez v um pouco longe nos paralelos

    traados entre o Code Noir, a Declarao dos direitos do homem e do cidado, a lei de

    abolio e a Constituio de Toussaint Louverture. Ainda que seja, de fato, possvel

    reconhecer traos da legislao do Antigo Regime nessas leis, os seus significados e

    finalidades essenciais guardam elementos de ruptura que no se pode negligenciar.

    No que se refere histria da Revoluo haitiana, o movimento de produo

    intelectual foi ainda mais intenso. Na Frana, Jacques Thibau trouxe, em Le temps de

    Saint-Domingue: l'esclavage et la Rvolution franaise (1989), uma interessante

    abordagem do processo que levou insurreio de agosto de 1791. Seu relato se inicia

    com a narrao do famoso caso Lejeune, senhor acusado pela tortura e morte de duas

    escravas na So Domingos dos anos 1780, espcie de prenncio dos eventos que

    marcariam a colnia durante a Revoluo. Thibau alterna o relato da insurreio com a

  • 33

    descrio do impacto desses eventos nas discusses parlamentares na metrpole. Com

    isso, pretende mostrar "o encontro entre a Revoluo francesa e a escravido

    francesa".29 Infelizmente, o autor no incluiu a abolio de 1794 na sua obra.

    Foi, entretanto, entre os historiadores da Amrica do Norte que os estudos sobre

    So Domingos e o Caribe em geral tiveram uma maior evoluo. A canadense Carolyn

    Fick dedicou-se, com The Making of Haiti (1990), a revisitar a grande insurreio

    escrava sob a tica da tradio do marronnage (fuga de escravos) nas colnias, numa

    linha semelhante adotada pelo haitiano Jean Fouchard na dcada de 1970 (cf. Les

    marrons de la libert, 1972). A abordagem possui alguns limites, cuidadosamente

    apontados por David Geggus30, mas a obra incontornvel pela sua anlise sempre

    lcida das posturas dos negros diante da revoluo e da abolio. A autora teve ainda o

    mrito de enfatizar a evoluo dos acontecimentos no Sul de So Domingos, provncia

    at ento pouco estudada pelos historiadores do perodo.

    Por falar em David Geggus, devemos a ele uma srie de reflexes crticas sobre

    diversos temas relativos a So Domingos-Haiti, muitas delas reunidas na coletnea

    Haitian Revolutionary Studies: Blacks in the Diaspora (2002), que permitem a

    superao de esteretipos e generalizaes reiteradas na historiografia, sobretudo no que

    se refere investigao das mentalidades e aspiraes dos negros insurretos. Por fim,

    preciso citar a obra de Laurent Dubois, autor de narraes importantes sobre a

    Guadalupe (A Colony of Citizens, 2004) e So Domingos (Avengers of the New World,

    2005) durante a Revoluo. Suas contribuies nos ajudam a compreender de que forma

    as diferenas fundamentais entre as duas colnias (grau de integrao ao mercado,

    dimenso e estrutura da populao escrava, importncia da populao de cor livre) esto

    relacionadas aos resultados nelas produzidos pela Revoluo.

    Parte importante da historiografia tem se dedicado ao tema dos homens de cor

    livres das colnias francesas, aspecto fundamental para a compreenso da dinmica da

    Revoluo haitiana. Inspirados pelo trabalho pioneiro de Yvan Debbasch, alguns

    autores tm direcionado seus esforos para a tese da racializao das relaes sociais e

    jurdicas em So Domingos, na segunda metade do sculo XVIII. John D. Garrigus

    trouxe, em Before Haiti: Race and Citizenship in French Saint-Domingue (2006), uma

    nova viso sobre o tema, ao abordar a construo de uma linha de cor entre brancos e os

    29 Cf. THIBAU, Jacques. Le temps de Saint-Domingue: l'esclavage et la Rvolution franaise. Paris: J.-C. Latts, 1989, p.7. 30 Cf. GEGGUS, David Patrick. Haitian Revolutionary Studies, captulos 2 e 5.

  • 34

    chamados mulatos da principal colnia francesa como forma de fortalecer os vnculos

    da populao branca com a metrpole, na esteira das tenses que marcaram a Guerra

    dos Sete Anos. A abordagem original e vlida, ainda que acreditemos ser necessrio

    aliar essa explicao a outras mais tradicionais, que encaram o preconceito como

    instrumento de controle ideolgico da populao escrava e de conteno da ascenso

    social dos proprietrios de cor num momento em que as colnias conheciam novas

    levas de imigrao branca. Essas teses, que encontram amparo na documentao da

    poca revolucionria, j eram defendidas por Gwendolyn Midlo Hall, em Social Control

    in Slave Plantation Societies (1971).31 A obra de Garrigus tem, entretanto, o mrito de

    destacar a particularidade da populao de cor do Sul de So Domingos, que se

    caracterizava por uma maior integrao elite crioula. Essa distino importante para

    caracterizar as atitudes de Julien Raimond, um importante quadraro do Sul da ilha, e

    seu movimento pelos direitos de cidadania dos livres de cor durante a Revoluo.

    Em L'aristocratie de l'piderme. Le combat de la socit des citoyens de couleur

    1789-1791 (2007), Florence Gauthier contornou essa distino e procurou descrever a

    atuao dos homens de cor livres na Frana revolucionria como uma luta pelo fim do

    preconceito e at mesmo da escravido. Embora bem documentada, a sua reflexo

    procura atribuir ao movimento liderado por Julien Raimond um combate pela totalidade

    dos homens de cor e negros livres da colnia. A histria do perodo mostra, ao

    contrrio, que havia entre a populao de cor livre diferentes atitudes diante de questes

    como preconceito e escravido.

    No que se refere ao antiescravismo propriamente dito, encontramos uma srie de

    estudos centrados na evoluo da crtica escravido na Era Moderna. A obra de David

    Brion Davis, O problema da escravido na cultura ocidental (1966), continua sendo

    uma referncia essencial sobre a evoluo intelectual do pensamento antiescravista.

    Demonstrando uma invejvel erudio, o autor procurou demonstrar o peso da religio

    forte no caso ingls e do Iluminismo na formao do pensamento antiescravista.

    Contudo, a abordagem proposta por Davis pode induzir a uma concepo puramente

    idealista da histria do antiescravismo, caso no seja completada pelo estudo das

    condies que fizeram com que determinadas ideias se difundissem em determinado

    tempo e espao. Verificamos esse problema em trabalhos dedicados a evidenciar a

    relao entre as Luzes e o antiescravismo, sem vincular a evoluo das ideias a uma

    31 Cf. HALL, Gwendolyn Midlo. Social Control in Slave Plantation Societies: a comparison of St. Domingue and Cuba. Baltimore, Londres: The John Hopkins Press, 1971, pp.136-148.

  • 35

    evoluo das prticas sociais. Tende-se, com isso, a apresentar, o movimento de ideias

    como um preldio formao de sociedades antiescravistas organizadas, o que no

    falso, desde que se entenda a formao desses movimentos como parte de uma evoluo

    condicionada por fatores conjunturais e estruturais.

    De resto, verifica-se, sobretudo na literatura de lngua francesa, uma tendncia

    exaltao da postura iluminista diante da escravido, apesar de todas as suas

    ambiguidades. Jean Ehrard, por exemplo, procurou resgatar o antiescravismo das Luzes,

    atribuindo as eventuais contradies diante do problema da escravido a uma dualidade

    do discurso, em que uma prudncia prtica viria contrabalanar a audcia da crtica

    escravido. Da mesma forma, autores como os j mencionados Jean-Daniel Piquet e

    Yves Bnot no questionam o antiescravismo das Luzes e chegam a reconhecer nele

    uma incontornvel postura anticolonialista.32 Tal interpretao bastante problemtica,

    visto ser difcil encontrar, at mesmo entre os abolicionistas mais radicais do perodo

    revolucionrio, um abandono da postura colonial. Alm disso, a distino entre a crtica

    preservacionista da escravido, o antiescravismo gradualista e o abolicionismo

    propriamente dito tende a se perder nessa linha de anlise.

    Louis Sala-Molins ofereceu uma viso mais crtica, questionando de forma

    virulenta o antiescravismo das Luzes (cf. Les misres des Lumires. Sous la raison

    l'outrage, 1992), ainda que fazer o julgamento moral dos Filsofos talvez no seja a

    melhor forma de situ-los no debate colonial. Nesse sentido, a citada obra de Malick

    Ghachem, ao ressaltar a reiterao de uma lgica precaucionria na crtica escravido,

    reveste-se de grande importncia para a compreenso da literatura antiescravista do

    final do sculo XVIII.

    Todos os temas mencionados acima ainda encontram-se, no momento em que

    escrevemos este trabalho, em pleno desenvolvimento. Um turbilho de novas

    publicaes tm, a cada ano, enriquecido o debate sobre a questo colonial, o que

    mostra que algumas questes ainda permanecem abertas. A Sociedade dos Amigos dos

    Negros, por exemplo, atraiu pouco interesse por parte dos historadores do perodo, que

    tenderam a desprez-la como uma fraca contrapartida da sociedade antiescravista

    inglesa surgida um ano antes. Tratados de forma marginal nas obras sobre as revolues

    francesa e haitiana, os Amigos dos Negros foram objeto de poucos trabalho especficos.

    32 Cf. BNOT, Yves. La Rvolution et la fin des colonies, pp.7-9, 12, 18. PIQUET, Jean-Daniel. L'mancipation des Noirs dans la Rvolution franaise (1789-1795). Paris: ditions Karthala, 2002, pp.24-26.

  • 36

    No incio do sculo XX, a Sociedade foi abordada em, pelo menos, dois artigos:

    "Condorcet et la Socit des amis des Noirs" (1906), de Lon Cahen, e "La Socit

    franaise des Amis des Noirs" (1916), de Claude Perroud. Dcadas mais tarde, o tema

    foi abordado em textos de Daniel Resnik (cf. "The Socit des Amis des Noirs and the

    abolition of Slavery", 1972), Serge Daget (cf. "A Model of the French Abolitionist

    Movement", 1980) e Franoise Thse (cf. "Autour de la Socit des Amis des Noirs:

    Clarkson, Mirabeau et l'abolition de la traite, aot 1789 mars 1790", 1983). J

    Seymour Drescher (cf. dois artigos, "Two Variants of Anti-Slavery: Religious

    Organization and Social Mobilization in Britain and France, 1780-1870"; "British Way,

    French Way: Opinion Building and Revolution in the Second French Emancipation")

    abordou o tema em estudos que procuraram contrapor os Amigos dos Negros a um

    modelo abolicionista "anglo-americano", abordagem problemtica, tendo em vista que

    os antiescravistas franceses e britnicos se inscreviam ambos numa mesma lgica

    gradualista e moderada. Quaisquer diferenas entre as duas correntes devem ser situadas

    na especificidade do momento histrico de cada pas.

    Devemos a Marcel Dorigny e Bernard Gainot a principal contribuio ao estudo

    da entidade, com a publicao de La Socit des Amis de Noirs 1788-1799:

    Contribution l'histoire de l'abolition de l'esclavage (1988), uma compilao do

    registro das sesses das duas fases dos Amigos dos Negros e outros documentos, com

    textos introdutrios produzidos pelos autores. Embora tenham empreendido uma breve

    e nem sempre convincente anlise do programa e do funcionamento da Sociedade, a

    partir de dados extrados do registro (atas das sesses, composio, frequncia), os

    textos no pretendem oferecer uma reflexo profunda sobre o antiescravismo da poca

    revolucionria. Dorigny, entretanto, voltou ao tema com um valioso artigo, "Mirabeau

    et la Socit des Amis de Noirs: quelles voies pour l'abolition de l'esclavage?" (1995),

    em que destacou a especificidade da argumentao de Mirabeau no seio dos Amigos

    dos Negros, aspecto que exploraremos na primeira parte da tese. Mais recentemente, a

    Sociedade foi finalmente objeto de um livro especfico, graas a Jean-Pierre Barlier, a

    quem devemos La Socit des Amis des Noirs, 1788-1791: Aux origines de la premire

    abolition de l'esclavage (2010). Infelizmente, pouco documentado, o estudo se limita

    primeira formao da Sociedade, destacando os principais aspectos de sua atuao. Se

    ele reconhece as contradies do discurso dos Amigos dos Negros sobre a escravido,

    Barlie