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Revista Seqüência, n o 55, p. 151-174, dez. 2007 151 Tutela coletiva: crítica às propostas de sua codificação processual no brasil José Isaac Pilati * Sumário: Introdução; 1. O sistema político romano à época da nascente república; 2. A base política e de direito material do processo civil romano; 3. O processo civil romano clássico; 4. Movimento e anteprojetos de codificação do direito processual coletivo no Brasil; 5. Considerações críticas ao modelo de codificação proposto. Conclusão. Referências das fontes consultadas. * Professor (Dr.) do CPGD/UFSC. Texto proposto à discussão em Seminário sobre Tutelas Coletivas no Programa de Doutorado, no 2 o Tri de 2008. Resumo: Partindo do direito romano clássico como contraponto, criticam-se as propostas de codificação do direito processual coletivo, em debate no Brasil, posto limitarem-se à categoria dos interesses transindividuais, sem romper, verdadeiramente, com a dicotomia público/pri- vado e sem transpor o âmbito do processo civil tradicional. Propõe-se o desenho do direito co- letivo da pós-modernidade, mediante o resgate da lide real (em oposição à lide formal e frag- mentada do processo da modernidade), o que implica a dimensão: de direito material, com o reconhecimento da autonomia dos direitos co- letivos (tais como ambiente, saúde e cultura em determinados contextos); da subjetividade co- letiva (em contrapartida às limitações da cate- goria de interesses transindividuais); do pro- cesso coletivo, em termos de ágora (no lugar do processo legalista e formalista e competitivo tradicional). Palavras-chave: Direito processual coletivo; in- teresses difusos; processo civil romano; tutelas coletivas; ação civil pública. Abstract: Starting from the classic Roman right as counterpoint, coding proposals of the procedural collective right, which are under deba- te in Brazil, are criticized, since they are limited within the transindividual interests category, without breaking, in fact, with the dichotomy public/private, and without transposing the scope of the traditional civil process. It is proposed the drawing of the collective right from the post- modernity, through the recovery of the real deal (in opposition to the formal and fragmented deal from the modernity process), which means the dimension: of material right with the recognition of the autonomy of collective rights (such as environment, health and culture in certain contexts); of the collective subjectivity (in return to the limitations of the transindividual interests category); of the collective process, in terms of Agora (in legalistic and formalistic process’s and traditional competitive process’s place). Keywords: Procedural collective right; Diffuse interests; Roman civil process; Collective guardianships; Public civil action.

Doutrina Tutela Coletiva

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crítica ás propostas de codificação processual no Brasil

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  • Revista Seqncia, no 55, p. 151-174, dez. 2007 151

    Tutela coletiva: crtica s propostas de sua codificao

    processual no brasil

    Jos Isaac Pilati*

    Sumrio: Introduo; 1. O sistema poltico romano poca da nascente repblica; 2. A basepoltica e de direito material do processo civil romano; 3. O processo civil romano clssico; 4.Movimento e anteprojetos de codificao do direito processual coletivo no Brasil; 5.Consideraes crticas ao modelo de codificao proposto. Concluso. Referncias das fontesconsultadas.

    * Professor (Dr.) do CPGD/UFSC. Texto proposto discusso em Seminrio sobre Tutelas Coletivasno Programa de Doutorado, no 2o Tri de 2008.

    Resumo: Partindo do direito romano clssicocomo contraponto, criticam-se as propostas decodificao do direito processual coletivo, emdebate no Brasil, posto limitarem-se categoriados interesses transindividuais, sem romper,verdadeiramente, com a dicotomia pblico/pri-vado e sem transpor o mbito do processo civiltradicional. Prope-se o desenho do direito co-letivo da ps-modernidade, mediante o resgateda lide real (em oposio lide formal e frag-mentada do processo da modernidade), o queimplica a dimenso: de direito material, com oreconhecimento da autonomia dos direitos co-letivos (tais como ambiente, sade e cultura emdeterminados contextos); da subjetividade co-letiva (em contrapartida s limitaes da cate-goria de interesses transindividuais); do pro-cesso coletivo, em termos de gora (no lugar doprocesso legalista e formalista e competitivotradicional).

    Palavras-chave: Direito processual coletivo; in-teresses difusos; processo civil romano; tutelascoletivas; ao civil pblica.

    Abstract: Starting from the classic Roman rightas counterpoint, coding proposals of theprocedural collective right, which are under deba-te in Brazil, are criticized, since they are limitedwithin the transindividual interests category,without breaking, in fact, with the dichotomypublic/private, and without transposing the scopeof the traditional civil process. It is proposed thedrawing of the collective right from the post-modernity, through the recovery of the real deal(in opposition to the formal and fragmented dealfrom the modernity process), which means thedimension: of material right with the recognitionof the autonomy of collective rights (such asenvironment, health and culture in certaincontexts); of the collective subjectivity (in returnto the limitations of the transindividual interestscategory); of the collective process, in terms ofAgora (in legalistic and formalistic processs andtraditional competitive processs place).

    Keywords: Procedural collective right; Diffuseinterests; Roman civil process; Collectiveguardianships; Public civil action.

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    Introduo

    A aprovao de um Cdigo-Modelo de Processos Coletivos para Ibero-Amrica1,em 2004, estimulou processualistas brasileiros, idealizadores do movimento, aelaborarem dois anteprojetos2 para o Brasil um sob coordenao de Ada PeregriniGrinover3 e outro de Aluisio Gonalves de Castro Mendes. 4 Ambos visam codificao do direito processual coletivo brasileiro, abrangendo doismicrossistemas: o da tutela jurisdicional coletiva comum (Lei da ao civil pblicano 7347/85 e Cdigo de Defesa do Consumidor Lei n o 8.078/90) e o da tutelajurisdicional coletiva especial, pertinente ao controle da constitucionalidade (Leino 9868/99 e 9882/99).

    Essas propostas representam inegvel avano no Direito brasileiro, especial-mente nessa poca em que comea o declnio do petrleo, toma-se conscincia docolapso ambiental iminente e necessita-se retomar o equilbrio do coletivo frente aoindividual privado, pela efetividade do Direito.

    Mas, no momento em que se inaugura a TV digital interativa no Brasil,5 necessrio avanar mais. Ir um pouco alm do microssistema dos interessestransindividuais, pois o desafio muito maior, exigindo o resgate de todo umparadigma, que remonta ao direito romano clssico.

    Observa-se na sala de aula, nos cursos de Graduao e Ps-graduao emDireito, um crescente interesse pelo direito romano clssico, pelo estudo do latim,pelo direito eleitoral, pela histria do direito, pelas tutelas coletivas e isso muito

    1 Disponvel em , como anexo do artigo: MENDES, ALUISIO Gon-alves de Castro. O cdigo modelo de processos coletivos do Instituto Ibero-americano de DireitoProcessual. Acesso em 10: de dezembro de 2007. Segundo a Exposio de Motivos, segue o modelodo Cdigo de Defesa do Consumidor brasileiro, incluindo pequenas alteraes: estende a legitimaoa qualquer interessado, torna expresso o controle sobre representatividade e consagra a coisa julgadaerga omnes, salvo insuficincia de prova. BERIZONCE, Roberto; GRINOVER, Ada Peregrini; SOSA,Angel Landoni. Cdigo Modelo de Processos Coletivos para Ibero-Amrica: exposio de motivos.Disponvel em: . Acesso em: 11 dez. 2007.2 ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Codificao do direito processual coletivo brasileiro. BeloHorizonte: Del Rey, 2007. p. 2-3.3 GRINOVER, Ada Peregrini. Anteprojeto de cdigo brasileiro de processos coletivos: janeiro de2007: Ministrio da Justia: ltima verso. Disponvel em: . Acessoem: 10 dez. 2007.4 MENDES, Aluisio Gonalves de Castro. Anteprojeto de cdigo brasileiro de processos coletivos.Disponvel em: . Acesso em: 10 dez. 2007.5 Em 2 de dezembro de 2007, as transmisses comearam por So Paulo. Com a TV digital, ainteratividade permitir o restabelecimento da dimenso de gora, da Grcia Antiga, milnios depois.Com isso, a transformao das instituies jurdicas e polticas ser inevitvel.

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    sintomtico, pois o jovem o primeiro a intuir a mudana. Enquanto os meios decomunicao parecem centrar o debate em velhas e esgotadas contradies, o jo-vem percebe que o Direito ps-moderno chega a um beco sem sada: cumpre retornarna histria e identificar onde foi que se desviou e a partir de onde se deve iniciar odesenho das instituies de defesa do planeta e de um mundo ecologicamente justo.

    No centro do problema, sem nenhuma dvida, est a questo da tutela coletiva,que h muito reclama, em novo contexto, novo processo. Como superar o modelotradicional e identificar o perfil desse processo coletivo, que sem deixar de ser judicialtenha caracterstica de gora? Responde-se: resgatando a experincia do DireitoRomano clssico, assim entendido o perodo que vai do fim da repblica at Diocleciano.Por que Roma e no a Grcia? Porque o sistema romano manteve a estabilidade dasinstituies na incorporao e assimilao de transformaes sociais radicais.

    Surpreende ao jovem dar-se conta de que o velho sistema da ordo iudiciorumprivatorum, como o prprio nome est dizendo, no foi obra de um ente estatalseparado dos cidados, como hoje se faz, porm, uma grande construo arbitral,entre particulares, em contexto de participao direta da populao. De modo geral,os manuais no do destaque a esse fato histrico na sua real dimenso poltica eprocessual. E a omisso ajuda a incutir e fortalecer uma cultura jurdica resistente aqualquer tentativa de ruptura com o publicismo e o voluntarismo estatal,6 que for-mam trip com certo individualismo predatrio, hoje contestado.

    Essa a primeira questo, portanto, para quem busca projetar a perspectivado processo coletivo como instrumento diferenciado tutela dos interesses da cole-tividade. No se diga que o retorno s fontes romanas seja um ato romntico, pois o contrrio. O modelo clssico romano o contraponto o nico possvel ao becosem sada da linearidade histrica publicista.

    Recuperar o perfil poltico e jurdico da ordo iudiciorum privatorum para con-trapor s modernas teses pandectistas e juspublicistas possibilita, em segundo passo,abrir caminho elaborao de uma nova proposta para inserir a tutela coletiva,rebatizada e com outra cara, no sistema jurdico vigente. uma tentativa de suprir alacuna que a modernidade cavou para o processo coletivo, ao criar categorias e con-

    6 Com essas expresses, publicismo e voluntarismo estatal pretende-se caracterizar o modelo indivi-dualista que coloca nas mos do Estado (pelo Direito Pblico) os interesses coletivos, sob a forma depoder de polcia, cuja atuao ou omisso fica ao alvedrio das autoridades e agentes pblicos. Nesseparadigma, o ambiente, por exemplo, no um bem coletivo autnomo e sim um rol de proibies e demultas e uma aspirao a polticas pblicas de iniciativa estatal, desenvolvidas em espaos institucionaisde acentuado dficit democrtico conforme LEITE, Jos Rubens Morato. Sociedade de risco,danos ambientais extrapatrimoniais (morais) e a jurisprudncia brasileira . Florianpolis,2007. Digitado. Trabalho defendido no Seminrio Derecho y Riesgos: instrumentos jurdicos para elgobierno de los riesgos, miradas desde dispostivos del derecho pblico y privado. Universidad Naci-onal del Litoral, Rosario, Argentina, out. 2007.

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    ceitos, como: direito subjetivo; direito objetivo; ao em sentido abstrato; pretenso todos prprios do sistema publicista, e que os clssicos romanos no conheceram.

    O que se procura fique bem claro nada mais do que elevar o coletivo aomesmo status do privado individualista e com isso redefinir em novo equilbrio oprocesso e os sujeitos da lide e o prprio direito material, para alm do pblico e do privadooitocentista. No para ser anti-individualista, ressalte-se tambm. Muito ao contrrio. Oque se busca a consagrao definitiva da concepo individualista da Sociedade, na linhaapontada por Bobbio,7 mas incluindo nessa esfera e condio, com igual fora e status o interesse coletivo desses condminos (em dimenso de gora, tal e qual na Antigidade).

    De fato, no que se v substituir o indivduo pessoa por povo, esse conceitoto ambguo do qual se serviram tambm todas as ditaduras modernas, comodiz o mesmo Bobbio. Ao contrrio, o mais liberal dos pontos de vista, pois alm esem prejuzo da esfera privada, a proposta restabelecer para o indivduo a dimen-so de gora, no pice da organizao social, colocando-o em situao de igualdadeuniversal perante os direitos e interesses de todos os homens e de toda a vida doplaneta. Hoje, [diz ainda Bobbio] todo indivduo foi elevado a sujeito potencialda comunidade internacional, cujos sujeitos at agora considerados eram,

    eminentemente os Estados soberanos.

    O movimento pela codificao do direito processual coletivo no Brasil com oreconhecimento da autonomia metodolgica do direito coletivo,8 bem demonstraque essa preocupao imposio natural dos tempos e da magnitude dos proble-mas que se est a vivenciar na ps-modernidade. Como disse Savigny,9 nessashoras os autores digladiam-se, concordam apenas quanto importncia do tema,porm, todos mostram uma tendncia aproximao e conciliao.

    Procurando colocar novos elementos na discusso, comea-se traando operfil poltico da repblica romana, desde as reformas de Srvio Tlio e a expulsode Tarqunio Soberbo,10 para em seguida tratar da questo processual propriamente

    7 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Traduo de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:Campus, 1992. p. 103.8 ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Codificao do direito processual coletivo brasileiro: anlise crticadas propostas existentes e diretrizes para uma nova proposta de codificao. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.9 SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema do direito romano atual. Traduo de Ciro Mioranza. Iju:Uniju, 2004. p. 24. Vol. 8. O clebre jurisconsulto alemo referia-se construo do Direito Interna-cional Privado, especialmente no estabelecimento de limites locais do domnio das regras do Direitosobre as relaes jurdicas.10 MAYNS, Charles. Cours de droit romain. 5. ed. Bruxelles: Bruylant, 1891. p. 69. As reformas deSrvio Tlio, por terem cunho mais popular, indispuseram-no com a aristocracia, do que se aproveitouTarqunio; este, como rei, opera o retrocesso dos direitos da plebe, mas logo tambm tiraniza o senado e ospatrcios. Eclode uma revoluo, o rei expulso e a abolio da realeza decretada pelas crias e ratificadapelas centrias. Era a repblica: o poder supremo antes pertencente ao rei agora atribudo a dois cnsules.

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    dita, no perodo clssico. Depois que se vai discutir a referida proposta de codificaodo processo coletivo, nos tempos atuais.

    1 O sistema poltico romano poca da nascente repblica

    A singeleza da constituio poltica dos romanos, poca da realeza e da repblicanascente, mais uma prova do gnio daquele povo, e explica por que construram umimprio universal e por que deixaram to suntuoso legado nas instituies jurdicas. Aexcelncia das instituies polticas que garantiu a efetividade do Direito na assimilaodas conquistas e da pujana social, sem perder a identidade como populus e como civitas.

    A forma de governo , inicialmente, a monarquia11 e o sistema funciona base de trs instituies: povo, magistratura e senado.

    O povo (gentes) organizado em trinta crias detm a soberania atravs do comitium(de cum ire, ou seja, reunir-se em assemblias com poderes legislativos, eleitorais, judi-cirios e outros). Mas s h comitium quando a reunio se d por convocao de ummagistrado. O aglomerado de pessoas turba multa, no ato poltico oficial.

    O magistrado supremo, no incio, o rei, eleito vitaliciamente pelo comitium emunido de imperium (conjunto de poderes delegados pelo povo e que abrange o man-do militar, o direito de exigir tributos e obrigaes cvicas, a prerrogativa de convocaro povo e o senado para exercer as respectivas atribuies, o direito de ditar ordensobrigatrias aos cidados, de coagir e castigar os desobedientes, de ministrar a justiacivil e criminal e, bem assim, administrar os bens pblicos e praticar os demais atos deadministrao em geral);12 alm do imperium, a magistratura confere a potestas(direito de agir em nome do povo nos assuntos pblicos,13 conferindo ao magistrado amaiestas). A magistratura depois passaria aos cnsules e seria repartida entre diver-sos cargos,14 com destaque ao pretor, que seria o detentor da iuris dictio.

    11 COSTA, Emilio. Histria del derecho romano publico. Bologna: [...?] 1920(?), p. IX e 32 alertapara o fato de que no existe nenhum documento ou testemunho da poca, ou prxima, que nos dnotcia das instituies polticas dos tempos primevos de Roma. Mas tem sido comum torcer as coisas,por influncia de conceitos que foram de todo estranhos ao mundo romano, constitudo de qualquermodo fora viva e influente no direito de investigadores estrangeiros. PETIT, Eugene. Tratado elementalde derecho romano. Traduccin por Jos Ferrndez Gonzlez. Madrid: S. Calleja, 1926. p. 27 et seq.12 COSTA, Emilio. Histria del derecho romano publico. p. 78. Juntamente com o imperium, o rei,nos primeiros tempos, dirigia o culto pblico e os poderes religiosos.13 MENDIZABAL, C. Curso de derecho romano. Buenos Aires: Lacort, 1947. p. 52, dela decorreo ius contionem habendi, de convocar o povo e dirigir a palavra, permitindo a manifestao doscidados, assim como de convocar o senado ius agendi cum populo et cum patribus. Esses honoresatribuam-lhe verdadeira maiestas, por representar a maiestas populi romani.14 TITO LVIO. Histria romana. Traduccin del latn por Francisco Navarro y Calvo. Buenos Aires: El Ateneo.IV-8. p. 244. Os patrcios vendo-se obrigados a fazer concesses aos plebeus, foram criando novas magistraturas medida que aqueles as conquistavam. Assim foi com o tribunato militar, com a censura e outros cargos.

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    O senado, por seu turno, um conselho de ancies, escolhido pelo rei entre oschefes de famlias das gentes, que exerce a auctoritas (poder de rever e de vetar asdecises dos comcios)15, e controla o tesouro, podendo ser convocado pelo rei, sem-pre que entender necessrio.16 Seu poder cresceria muito nos perodos seguintes.

    Era um sistema perfeitamente equilibrado: o populus no abusava da sobera-nia porque s se reunia por convocao do rei e mediante pauta certa; o rei e oSenado exerciam plenamente o seu poder, porm no legislavam; e o comitium nopodia modificar os costumes sem a concordncia do senado, composto pelos velhospais de famlia, escolhidos no pelo povo e sim pelo rei.17

    Nesse quadro institucional foram eleitos e reinaram Numa Pomplio, TuloHostlio, Anco Mrcio, Tarqunio Prisco.18 Porm, com as conquistas e o aumentodo nmero de plebeus economicamente importantes, mas excludos da vida polti-ca, do exrcito e do pagamento de impostos instala-se a anttese e o modelocarece de reformas, tentadas sem sucesso por Tarqunio Prisco. A idia era incluiros plebeus no sistema poltico das crias, mas os patrcios vetaram-na.

    O rei Srvio Tlio vai por outro caminho; cria uma nova assemblia popular,por centrias, incluindo todos os livres, patrcios e plebeus, organizados em cincoclasses, de acordo com a riqueza apurada por recenseamento.

    Esses comcios por centrias tomariam espao das assemblias por crias e pas-sariam a ser o centro democrtico de manifestao da soberania popular. Eram convo-cados pela magistratura para votar as leis, eleger o rei e julgar certos casos.19 Porm, aeficcia da lex centuriata ficava dependendo da manifestao patrcia, mediante aauctoritas patrum do senado. Com isso se absorviam poltica e militarmente os plebeus,sem retirar o controle das mos dos patrcios e dos ricos cavaleiros plebeus, cujas centrias,alm de serem em maior nmero, votavam em primeiro lugar.

    A luta entre patrcios e plebeus dois estados distintos que a igualdade poltica nounificava como povo e em direitos acabou influenciando e transformando o papelmediador do rei, que passou a atuar com medidas que desagradaram os dois lados.

    15 MENDIZABAL, C. Curso de derecho romano. Buenos Aires: Lacort, 1947. p. 67.16 POLBIO. Histria. 6.13. O senado teria controle sobre todo o tesouro, com exceo dospagamentos feitos para os cnsules. Os qestores nada podiam gastar sem decreto dosenado.17 Tanto que ao votar uma lei, o pronunciamento da cria era feito em face da permanncia ouno dos costumes perante o pedido de mudana do magistrado: UR (uti rogas, como pedes)ou A (antiquo, permanece o antigo, ou seja, sem mudana).18 TITO LVIO, Histria romana. p. 38 et seq (1-18 et seq). Srvio Tlio e Tarqunio Soberbono passariam pelo crivo popular (1-39 e 1-48 e 49).19 Ibidem, p. 47 (1-26). O julgamento de um dos Horcio, que assassinara a irm, aps avitria sobre os Curicios, ao tempo de Tulo Hostlio revela essa prtica j anterior.

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    Por isso a aristocracia articulou a populao contra o rei, e em 245 de Roma,a monarquia foi derrubada, instalando-se a repblica, praticamente sem modificaras instituies. O rei substitudo por dois magistrados patrcios chamados cnsu-les; o senado passa a funcionar como centro executivo de governo; e a assembliapopular por centrias (reunindo patrcios e plebeus).

    Apesar das promessas dos patrcios, a situao dos plebeus no melhoroucom a nova forma de governo. Estropiados nas guerras que os afastavam dos neg-cios e empobrecidos pelos agiotas (patrcios aliados a plebeus ricos das classessuperiores), tomaram a medida extrema de sair da cidade, no episdio conhecidocomo seccessio plebis.20 Da negociao resulta nova conquista poltica dos ple-beus, aprovada por comcio centuriado e confirmado por comcio das crias (lexcuriata): criao dos tribunos da plebe ( tribuni plebis), como magistradosinviolveis, com poder de veto a qualquer deciso do senado, dos cnsules ou dasautoridades religiosas.

    Esses tribunos passam a tomar medidas muito importantes na defesa dos inte-resses da plebe. A primeira: comeam a reunir assemblias de plebeus para decidirassuntos de seu interesse (plebiscita) e a convocar os plebeus por tribo (concilia),costume que seria imitado pelos magistrados patrcios, que criariam os seus prprioscomitia tributa para deliberar sobre assuntos de interesse comum das populaes.Isso fortalecia os plebeus, sempre em maior nmero. A segunda: exigiram seguran-a jurdica para os devedores plebeus, mediante a consagrao por escrito do direitocostumeiro pertinente. Seria a lei das doze tbuas, que apesar do rigor para os olhosde hoje, ainda era prefervel situao anterior.

    Esse era, portanto, o quadro poltico-institucional da novel repblica. O povocom seus comitia como titular da soberania; os cnsules no gozo de imperium epotestas; e o senado com o poder de sano ou auctoritas. J o quadro social epoltico, era de intenso conflito, e esse fato determinaria a evoluo de cada umadessas instituies, a comear pelas magistraturas.

    20 Tito Lvio. Histria romana, II, 23, descreve a situao. Um velho militar plebeu precipitou-se noFrum, mostrando as cicatrizes da guerra no peito e dos credores nas costas, dizendo ao burburinhoque enquanto lutava por Roma os inimigos tinham saqueado seu campo e levado seu gado; pobre notivera como pagar o imposto, obrigando-se a pedir dinheiro emprestado. O agiota t-lo-ia escravizadoe agora ali jazia desonrado, maltrapilho e doente, com marcas vergonhosas de chibata. Foi o estopimda revolta dos plebeus, que ento, passaram a perturbar os processos de execuo, comparecendo emgrande nmero para vaiar e gritar, de modo que o juiz no conseguia fazer-se ouvir pelas partes. Ossenadores foram cercados pelo povo e passaram por grande constrangimento. Os cnsules no seentendiam, um defendia medidas duras e o outro o dilogo. Nesse instante o inimigo chegou s portasda cidade e salvou os patrcios, que em troca da ajuda militar ofereceram uma trgua aos devedores,prometendo soluo definitiva to logo fosse conjurado o perigo. No cumprida tal promessa, osplebeus retiraram-se para o Monte Sagrado (II, 32).

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    O consulado aos poucos foi sendo desdobrado em outras figuras, menores, oque afetaria diretamente a administrao da justia. A iurisdictio seria transferidaa outra magistratura, no caso, um cnsul minus, chamado pretor. A concepo dodireito, a organizao judiciria e o desempenho desse magistrado, ao longo do di-reito clssico, seria decisivamente importante.

    2 A base poltica e de direito material do processo civil romano

    Com esse arcabouo institucional, os romanos do incio poca clssica doseu Direito, perodo que transcorre pelo Principado e vai at Diocleciano, conformedito. o esplendor mximo da jurisprudncia romana, embora sejam to precriasas fontes que chegaram modernidade. O que se tem, alm de fontes no tcnicas, a codificao de Justiniano, bastante descaracterizada pelas interpolaes deTriboniano e seus compiladores, sem falar na obra dos glosadores dos sculos XII eXIII e dos pandectistas do sculo XIX, muito mais preocupados com a criao deum direito prtico para sua poca do que com a investigao da jurisprudnciaromana no plano histrico.

    Fritz Schulz21 chega a lamentar a cegueira de Savigny com sua escola, quemesmo tomando contato com novas fontes prejustinianias, ento descobertas, comoas institutas de Gaio (em 1816),22 os Fragmenta Vaticana23 e o Epitome Ulpiani,impediu de um modo lamentvel o progresso da atividade investigadora , pre-ferindo uma soluo sofstica admisso de uma interpolao.

    Os humanistas, especialmente Cujcio (Jacques Cujas, 1522-1590) e AntoineFaber (1557-1624), ambos verdadeiramente geniais e o ltimo, particularmentedotado de um raro e seguro instinto para descobrir o Direito clssico,24 havi-am oferecido importante contribuio ao resgate histrico daquele perodo, mas suaobra foi desprezada e proscrita pelo pensamento jurdico da poca, inclusive dePortugal e das Ordenaes Filipinas, em que se preferiu, no ensino e na legislao,retornar a Brtolo.25

    21 SCHULZ, Fritz. Derecho romano clsico. Traduccin directa de la edictin inglesa por Jos SantaCruz Teigeiro. Barcelona: Bosch, 1960. p. 5.22 At o incio do sculo XIX s se conheciam fragmentos mutilados e interpolados das institutas deGaio, conservadas na coleo de Alarico II. Em 1816 Niebuhr descobriu, num palimpsesto, emVerona, texto com a maior parte da obra. RIBAS, Conselheiro Joaquim. Direito civil brasileiro. Riode Janeiro: Rio, 1977. p. 223.23 Vaticana Fragmenta uma miscelnea de escritos de jurisconsultos e trechos de Constituiesimperiais que foi descoberta na Biblioteca do vaticano em 1823. RIBAS, Conselheiro Joaquim.Direito civil brasileiro. p. 224.24 SCHULZ, Fritz. Derecho romano clsico. p. 4.25 RIBAS, Conselheiro Joaquim. Direito civil brasileiro. p. 243.

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    O segredo da jurisprudncia romana do perodo clssico ensina Teigeiro26 estriba-se na utilizao de escassos, mas claros, princpios jurdicos, mantidos porcuidadosa tradio, que permitem a apreenso completa dos matizes fticos docaso concreto e, bem assim, a deduo rigorosa e exata da soluo jurdica a seraplicada.

    O direito privado romano clssico, diferena do modelo das codificaes, direito de aes e de remdios para casos concretos e no um sistema de direitos edeveres que se possam enquadrar nas categorias modernas de direito objetivo, di-reito subjetivo, pretenso, direito de ao. Da a repugnncia de Savigny por talmodelo, que em pouco ou nada socorria as teses publicistas e de voluntarismo esta-tal das referidas codificaes.

    A ordo iudiciorum privatorum diferenciada, desde a natureza dos bens emdisputa, que no detinham, nem de longe, a autonomia jurdica que passaram a teraps a Revoluo Francesa. A actio in rem da Roma clssica no perseguia acoisa e sim o valor de uma espcie de aposta entre os litigantes. Isso conferia lideuma caracterstica prpria, de feio meramente arbitral. Na sentena, o juiz ourbitro expressava o seu sentire, donde a palavra sentena, e no tinha a naturezade decretum, o que s despontaria com a extraordinaria cognitio.

    A sentena heternoma, como decretum, imposta por autoridade politicamen-te separada das partes obra posterior. Mendizabal27 faz referncia a esse aspectoda autoridade judiciria eleita, autoridade que se amparava no respeito pelo aca-tamento e submisso as suas ordens e decises e no numa razo abstrata prvia,tal como o valor econmico dos bens ou o interesse de quem se tenha apropriado deum governo estatal, separado das partes. Prevalece a vontade arbitrria dessa au-toridade (rei, cnsul depois pretor), baseada na razo resultante dos sentimentos eidias da poca, tal como plasmados na relao com os meios de satisfao dasnecessidades sociais.

    Pelo prisma quiritrio, o Direito que se pratica (no se aplica) um Direitoentre iguais, rigorosamente iguais, pater famlias integrantes do populus, os quaisso to senhores e soberanos no privado como no pblico. A lide, assim como qual-quer testamento ou operao patrimonial, ao mesmo tempo coletiva, por afetar asegurana da urbe e de todas as famlias e no apenas o ncleo familiar envolvido.28

    26 TEIGEIRO, Jos Santa Cruz. Prlogo del traductor. In: SCHULZ, Fritz. Derecho romano clsico,p. V-VI. No original: El secreto de la jurisprudencia romana en el perodo clsico, estriba en la utilizacin de escasos y muy claros principios jurdicos conservados por uma cuidadosa tradicin, en

    la aprehensin completa de los matices fcticos del caso concreto y en la deduccin rigurosa y ceida

    de la solucin jurdica a ste aplicable.27 MENDIZABAL, C. Curso de derecho romano . p. 11.28 A unidade jurdica subjetiva no o indivduo, mas a famlia, o grupo patrimonial que ele representa.

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    Assim, com o aparecimento do estado plebeu e do estado dos peregrinos(regidos pelo direito das gentes), o pretor depara-se com novas razes motivadoraspara novas regras, porm, no perde de vista que o conflito se instala no s emdimenso privada como pblica, pois nesse meio que exerce a iuris dictio.

    Sendo esse o contexto, a categoria mais significativa e que melhor representao mbito e o campo de aplicao do Direito clssico, como instrumento gil incor-porao das mudanas sociais, a figura da aequitas.29

    Equidade hoje, em nosso idioma, um termo que no alcana o sentido romano.Simplesmente porque j no temos o contexto histrico da poca clssica, a qual jhavia desaparecido no espao que vai de Diocleciano a Justiniano. O conceito deequidade, hoje, aproxima-se do sentido de: justia para alm da legalidade estrita,como equilbrio sem pender para nenhum lado, ou como igualdade.30 No vai nempode ir alm desses limites porque falta a dimenso do coletivo, que em Roma intrnseca ao processo e lide. Justiniano j emprega aequitas como benignidade eindulgncia em geral, por parte do juiz, perante as circunstncias do caso concreto.31

    Para o direito romano clssico o conceito de aequitas atua num contextopoltico, civil, processual e social historicamente especfico, que hoje s pode servisualizado mediante resgate histrico; um contexto que permitia ao Direito apre-sentar-se em objeto, essncia e finalidade intrnseca com potencialidade deextrapolar o campo privado restrito, para colocar o conflito sempre em dimensocoletiva. por isso que no plano etimolgico a aequitas deriva de raiz (aequor) queevoca unidade e igualdade em planura, como superfcie de mar, ou seja, para almdo contexto isolado das partes do litgio.

    Vale dizer, a aequitas, como princpio informador, estabelecia condies elimites ao de cada parte nos casos que envolviam interesses maiores, da urbe,ao mesmo tempo em que rebaixava as fronteiras entre ius civile, ius gentium e iusnatarale. Era o instrumento jurdico adequado, ento, a aequitas, para opor e criaruma dimenso processual especial, abrindo espao para atuar a conscincia e osenso de igualdade do povo, sopesando as razes de cada um na relao com osdemais.

    29 BONFANTE, Pedro. Instituciones de derecho romano. Traduccin por Luis Bacci y AndrsLarrosa. Madrid: Instituto Editorial Rus, 1959. p. 7-8.30 FARIA, Ernesto. Dicionrio escolar latino-portugus. 4. ed. Braslia: MEC, 1967, p. 44. Aequitas,tatis: igualdade, equilbrio (sem pender para nenhum lado). Justia, eqidade, imparcialidade. Emsentido figurado: moderao, tranqilidade de esprito. Aequor, oris tem o sentido de superfcie plana,plancie, donde superfcie do mar ou das guas em repouso.31 BONFANTE, Pedro. Instituciones de derecho romano. p. 8. O autor destaca que a aequitasno s indulgente como tambm severa. E arremata assim: Dada a normal anttese do conceito antigoe moderno, a traduo por quo, equidade, em geral um puro equvoco, que vicia o raciocnio.

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    Sendo um sistema de magistraturas em que o poder pblico no persona-lizado como pessoa jurdica separada dos cidados, dona do pblico eles, os cida-dos romanos, so condminos do coletivo e nisso consiste a res publica. essa adimenso que est presente em toda a lide e integra a prpria natureza da iurisdictio.Essa dimenso faz com que os atos de disposio dos chefes de famlia (testamen-tos, transferncias patrimoniais) sejam consagrados in comitia calata, na presenados demais paterfamilias reunidos, preservando, assim, o interesse superior decontinuidade da urbe.

    Os bens de tal universo jurdico, especialmente os que hoje so objeto dedireito real, no possuam identidade jurdica abstrata como hoje, nos cdigos civis.Quando um interesse era contrariado, avultava mais a afronta do que o valor dobem em si, cuja destinao econmica tambm era casustica; por isso a aoreivindicatria no perseguia, exatamente, a devoluo da coisa e sim uma quantiaem dinheiro, fruto de uma aposta processual.32 Esse aspecto determina e explicaem grande parte o casusmo inato do prprio processo romano clssico.

    Essa a base material em que o pretor romano maneja a aequitas, auxiliando,suprindo ou corrigindo o direito civil por causa de uma utilidade pblica33 e comstatus de: viva voz do direito civil;34 porm, o instrumento de que se vale a iurisdictio da ordo iudiciorum privatorum, cujo modelo no sobreviveu poca clssica.

    3 O processo civil romano clssico

    No perodo clssico a organizao judiciria romana estava baseada nessemagistrado civil, o pretor, que detinha imperium mixtum,35 ou seja, alm do poder deimpor sanes aos particulares, acumulava o poder de iurisdictio: ius dicere, dizer

    32 Da a frmula dizer: a menos que restitua, nisi restituat. Gaio, Institutas, 4,47. In: CORREIA,Alexandre et al. Manual de direito romano: institutas de Gaio e de Justiniano vertidas para oportugus, em confronto com o texto latino. So Paulo: Saraiva, 1955. p. 240. Vol. 2-2.33 D.1.17.1. MADEIRA. Hlcio Maciel Frana. Digesto de Justiniano: lber primus: introduo aodireito romano. 3. ed. Bilnge latim-portugus. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 20. Iuspraetorium est, quod praetores introduxerunt adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis

    gratia propoter utilitatem publicam. O direito pretoriano o que os pretores introduziram a fim deauxiliar, suprir ou corrigir o ius civile, por causa de uma utilidade pblica.34 D.1.1.8. MADEIRA. Hlcio Maciel Frana. Digesto de Justiniano. p. 21. Nam et ipsum ius honorariumviva vox est iuris civilis. Pois tambm o prprio direito honorrio a viva voz do direito civil.35 PETIT, Eugne. Tratado elemental de derecho romano. Traducido por Jos Ferrndez Gonzlez.Madrid: Saturnino Calleja, 1926. p. 639. Em sentido amplo o imperium mixtum o poder do magis-trado que une ao imperium merum a administrao de justia, vale dizer, a jurisdictio. Em sentido maislimitado, a autoridade necessria ao exerccio da jurisdictio.

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    o direito. No era dado aos particulares, refora Ccero,36 constituir-se em juzo ourbitro sem a chancela de um magistrado eleito pelo povo.37

    A jurisdio ius dicere importava em propor regras novas e aplicar regrasj existentes. Tais atributos eram resumidos em trs palavras: dico, do, addico.

    Dicere significava que o pretor, uma vez eleito para gesto de um ano, podiapublicar uma regra geral em forma de edito ou regular uma contenda mediante uminterdictum. Foi com tal atributo que tais magistrados puderam criar excees pro-cessuais e novas aes ditas pretorianas e assim introduzir as mudanas necessri-as no direito civil.38

    Addicere era o poder de reconhecer um direito em beneficio de uma parte,como, por exemplo, no caso de revelia do ru ou de execuo de sentenacondenatria.

    Dare era dar um juiz, ou rbitro(s), para julgar a lide instalada. Vale dizer, opretor era o detentor da jurisdio, mas no julgava, sendo obrigado a delegar o seupoder to logo tivesse formado ou composto a lide em sua presena. Com isso,controlava-se o magistrado e evitavam-se abusos, retirando-lhe o poder de julgar ocaso concreto.

    Assim, o procedimento corria em duas fases: uma in jure, perante o pretor,que recebia as partes, ouvia as alegaes, delimitava a lide e nomeava o juiz ourbitro encarregado da deciso; e a outra apud iudicem ou in iudicio, em que a(s)autoridade(s) nomeada(s), pessoa(s) do povo, produzia(m) as provas e dava(m) asentena de sentire. Sentenciado o feito, a execuo corria sob a presidncia dopretor.

    Foi nesse contexto que atuou o direito clssico, aplicando a aequitas. Aps aLei Ebcia (por volta de 130 a.C.), implanta-se o processo per formulas ou formu-lar, e o magistrado, eleito pelo povo, tem no edito de maneira geral e na elaboraoda frmula in iure, em particular, o espao jurisdicional adequado realizao e

    36 CCERO, Marco Tlio. Da republica. Traduo de Amador Cisneros. Rio de Janeiro: Ediouro, sd., p. 113 (V-2). Exalta a aplicao da eqidade no direito privado, como herana dos reis da Grcia, de forma que: Nenhum particular podia constituir-se em juzo ou rbitro de um litgio; porque tudo issoera reservado ao poder real. Assim como o populus embora detentor da soberania no podia se reunir em comcio sem convocao de magistrado, tambm a justia no se pronunciava sem a presidncia do magistrado detentor da jurisdio. Com isso se garantia a estabilidade das instituies.37 Sem prejuzo de outros magistrados menores, como os edis, e fora de Roma, como os duumviri ouquatuorviri iudicando nos municpios da Itlia, e nas provncias o respectivo presidente e outros, queno mbito desse livro no tm relevncia.38 SCHULZ, Fritz. Derecho romano clsico. p. 27. As aes civis eram baseadas no direito civil,mas aes honorrias foram criadas por magistrados, pretores ou edis. A ttulo de exemplo, a lei dasdoze tbuas sancionava com dureza o furtum manifestum, porm o pretor substituiu a pena capitalpor multa em qudruplo do valor do dano.

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    incorporao das mudanas impostas pelas transformaes de ordem econmica,familiar e poltica.

    Com esse arcabouo jurdico o Direito Romano clssico preenchia as trscondies fundamentais da civilstica, de que falaria Wieacker:39 havia conscinciageral do Direito (sob instituies polticas estveis); elaborao do conjunto da rea-lidade social (desde o edito at a frmula e a sentena) e metodologia de passoacertado com o pensamento e os desafios da poca histrica. Em outras palavras,havia eficcia e efetividade do sistema jurdico, apto e habilitado que estava paraassimilar o crescimento da populao e o aumento da complexidade social, em forosde equidade.

    O fato de ser um direito casustico (e no lgico-dedutivo,40 como o sistemadas codificaes), permite colocar, na longa mesa da jurisdio, o episdio jurdicona sua inteireza e no de forma fragmentada ou abstrata, vale dizer, um modeloque estende a planura da aequitas, desde o dico (ou do ius edicendi). Permitesopesar tanto a dimenso das partes envolvidas, como a da coletividade e a dacivitas e a do prprio judicirio41 com a contnua projeo do porvir.

    O modelo, por ser casustico, permite colocar sobre essa mesa da jurisdiono s os aspectos jurdicos, mas tambm e principalmente os desgnios morais dascondutas: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. A separa-o entre Moral e Direito faanha posterior, quando o coletivo toma a feio depblico do sentido moderno, de legislao estatal separada da soberania popularexercida diretamente. Quando se fraciona o litgio entre os contendores, abduzindodos autos a dimenso coletiva, a dimenso moral e a prpria equidade no sentidoclssico do termo.

    A influncia da filosofia grega, sobretudo do pensamento de Aristteles naformao jurdica dos jurisconsultos clssicos, lembra Rolim,42 permitia-lhes, naaplicao ao caso concreto, anlise, tanto das circunstncias presentes como dastendncias naturais prprias da natureza humana: empregavam, pois, o mtodo

    39 WIEACKER, Franz. Histria do direito privado moderno. Traduo de A.M. Botelho Hespanha.2. ed. Lisboa: Golbenkian. 1993, p. 721-722.40 WIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Traduo de Trcio Sampaio Ferraz Jnior.Braslia: UNB, 1979. p. 33-36, tambm critica a dogmtica jurdica moderna, de natureza lgico-dedutiva e defende a concepo do Direito como problema, ou seja, base de um conjunto de juzosnormativos (topi) elaborados em cima dos problemas concretos. O jurisconsulto romano no tinhaesse tipo de preocupao, em face da natureza do sistema casustico em que operava, ainda que seservisse de brocardos jurdicos.41 A autonomia da posse em relao propriedade um exemplo. Ao invs de depositar a coisa emjuzo, at o pronunciamento judicial, o pretor preferiu, agindo extra ordinem, deixar a coisa com umdos contendores, soluo tecnicamente perfeita para desonerar o prprio judicirio.42 ROLIM, Luiz Antnio. Instituies de direito romano. So Paulo: RT, 2000. p. 78.

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    dialtico, prprio do direito natural, e, assim o fazendo, os romanos busca-

    vam aquilo que era justo, e no a aplicao pura e simples de qualquer regra

    j estatuda, que muitas vezes no se adequava realidade dos fatos exami-

    nados.

    Nesse contexto, a disputa entre patrcios e plebeus d-se mediante reivindica-es concretas, perante instituies estveis e aceitas. No plano poltico, o que osplebeus pretendem a igualdade de direitos na mesma repblica, sob as mesmasinstituies, e no a substituio do modelo poltico-institucional. E no plano jurdico,o que os magistrados fizeram foi incorporar ao Direito a nova complexidade socialtrazida pelas conquistas e pela sofisticao das relaes patrimoniais e familiares.

    Todavia, dando um salto at a Revoluo Francesa e a modernidade dascodificaes, observa-se que o modelo radicalmente outro. Na Modernidade ocoletivo j no a esfera condominial dos cidados, absorvido que foi por um enteseparado, personificado sob a forma de pessoa jurdica de direito pblico, qual seja,para usar a expresso de Grossi, o sujeito forte Estado.43 A jurisdio estatal eo Bem Comum tarefa a ser perseguida pela Administrao, mediante leis aprova-das por representantes eleitos. No aquela lei popular romana ou mesmo na acepovaga da lex de Santo Toms, inclinada a esfumar-se no ius, mas em sentido

    estritssimo de la loy, lei em sentido moderno, vontade autoritria do deten-

    tor da nova soberania e caracterizada pelos atributos da generalidade e da

    rigidez.44

    Esse o pecado original, para usar da expresso bblica e em sentido positivo,da Modernidade, que desterra o cidado do coletivo para ganhar o po com o suordo rosto da livre iniciativa ou o sob o regime de padrasto do Estado. No novo arranjoestrutural poltico-jurdico os bens da coletividade que em Roma estavam naesfera do ius naturale ou do direito divino, ou da ao popular de condmino, ago-ra, na Modernidade, ganham a natureza jurdica que lhes confere o poder de polcia,sob o crivo do voluntarismo estatal, seja na alada discricionria, seja na esferalegalista estrita do ato vinculado.

    Os romanistas modernos romperam habilmente com o Direito clssico e cria-ram as categorias jurdicas prprias do novo modelo. Sob a nova gide a civilizaoganhou grande impulso e inegveis progressos, at a crise do individualismo, que fo-mentou o surgimento da funo social e do constitucionalismo ps-moderno. Todavia,

    43 GROSSI, Paolo. Para alm do subjetivismo jurdico moderno. Curitiba, 2007. Texto digitado.Trata-se de trabalho apresentado por Grossi no III Congresso Brasileiro de Histria do Direito,promovido pela Universidade Federal do Paran.44 GROSSI, Paolo. En las orgenes de la modernidad jurdica. Florianpolis, 2007. Texto digitado.Trata-se de trabalho, conferncia de abertura, apresentado no Seminrio Direito e Poder: nascimentoe transformao do Direito moderno, promovido pela Universidade federal de Santa Catarina.

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    a grande dificuldade, na crise e recorrentemente, tem sido o resgate do coletivo nointerior do modelo e das suas categorias, sem abrir mo, por exemplo, da seguranajurdica e da prpria liberdade. nesse contexto e perante esse dilema que surge omovimento de codificao do direito processual coletivo, que se passa a abordar.

    4 Movimento e anteprojetos de codificao do direito

    processual coletivo no Brasil

    Processualistas brasileiros,45 preocupados com a questo da tutela coletiva,desencadearam movimento que culminaria com a aprovao de um Cdigo-Mo-delo de Processos Coletivos para Ibero-Amrica, em 2004. Em conseqncia,dois anteprojetos apareceram e merecem especial ateno. O primeiro sob coorde-nao de Ada Peregrini Grinover, elaborado junto ao curso de ps-graduao emDireito da Universidade de So Paulo (USP), que at tramita no Ministrio da Jus-tia. O segundo, coordenado por Aluisio Gonalves de Castro Mendes, teve a suaelaborao nos programas de ps-graduao da Universidade do Estado do Rio deJaneiro (UERJ) e da Universidade Estcio de S (UNESA).

    Almeida46 descreve e critica os trs trabalhos e realiza uma sntese das idiasque, no seu modo de ver, amparam e do sustentao terica a tal esforo. Suasidias so uma amostra interessante do pensamento jurdico atual, e merecem refle-xo vista do contraponto do processo romano que se acaba de descrever.

    O movimento codificador colocado num paradigma que ope modernidade eps-modernidade. O primeiro representando o pensamento sistemtico, do individu-alismo e da subjetividade jurdica, personificado no monismo jurdico e sua dogmticalgico-dedutiva, que teriam reduzido o Direito norma e lei, tendo na seguranajurdica o valor fundamental.47

    A ps-modernidade representaria a superao desse modelo, substituindo o CdigoCivil pela Constituio Federal como centro da estatuio jurdica, no rumo da humanizaodo indivduo, que passa a titular de novos direitos e deveres. Corolrio disso seria o pluralismodas fontes e das solues no interior do sistema, este que no lugar da certeza e da seguran-a jurdica passaria a ter como eixo fundamental a justia.45 ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Codificao do direito processual coletivo brasileiro. BeloHorizonte: Del Rey, 2007. p. 86.46 Ibidem, p. 32-39.47 PALMEIRA, Marcos Rogrio. Dimenses do discurso jurdico na modernidade: a liberdade ea segurana jurdica no direito tributrio. Florianpolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.Tese de Doutorado defendida perante o CPGD, p. 173 et seq., um dos melhores trabalhos a respeitode segurana jurdica como princpio estruturante do direito tributrio, no seu conflito com a acumu-lao desigual de riquezas.

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    Assim, em detrimento do pensamento sistemtico, de natureza lgico-deduti-va (dos Cdigos), afirmar-se-ia o pensamento problemtico,48 o Direito como expe-rincia que se impe pela realidade social, resgatada pelo prprio Direito. Ao invsde um sistema hierrquico e axiomtico, prprio da cultura dos cdigos, passa-se atrabalhar com microssistemas jurdicos (como o Cdigo de Defesa do Consumidor,o Estatuto da Criana e do Adolescente), microssistemas que implicam a retomadada razo prtica e do saber pragmtico na realizao do Direito.49

    O Direito no visto como composto somente de normas, mas tambm devalores e princpios jurdicos, em sistema aberto, incompleto e mvel, em que asfontes dialogam em torno de valores fundamentais, permitindo a permeabilidadecom o meio social. Assim, a codificao do processo coletivo vai ser realizada nes-se contexto de diretrizes ps-positivistas, sob a luz do neoconstitucionalismo.

    Ps-positivismo destaca Almeida o novo paradigma para estudo doDireito, fundado no plano constitucional e de base principiolgica, valorativae transformadora. A expresso, reconhece, equvoca, porm a doutrina, nessediapaso de vis constitucional, identifica nela as concepes que procuram valori-zar e otimizar os princpios de uma ordem jurdica democrtica, pluralista eaberta de valores.

    O neoconstitucionalismo ou constitucionalismo social e democrtico inserenova hermenutica, incompatvel com o positivismo legalista, por afirmar sob agide do Estado Constitucional a hierarquia formal e material da Constituio; um paradigma novo, incompatvel com a metodologia do positivismo, que separadireito de moral expulsando esta do horizonte jurdico.50

    Uma citao de Bonavides 51 acrescenta outros aspectos dessa novahermenutica (ps-positivista, do neoconstitucionalismo): interpretao-

    48 VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Traduo de Tercio Sampaio Ferraz Jnior. Braslia:UnB, 1979. p. 33-36. Esta obra ponto forte de sustentao dessas idias.49 Essas idias so relacionadas por AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civilbrasileiro. Revista de Informao Legislativa. no 121. Braslia. 1994. p. 233-243.50 STRECK, Lnio. A hermenutica filosfica e as possibilidades de superao do positivismo pelo(neo)constitucionalismo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lnio Luiz (org). Constituio,sistemas sociais e hermenutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 155. A idia nadireo de ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Traduccin de Jorge M. Sea. 2.ed. Barcelona: Cedisa, 1997. p. 159-161: valores constitucionais no lugar da concepo meramenteformal da norma jurdica; ponderao no lugar da mera subsuno; fortalecimento do Judicirio e dosTribunais Constitucionais no lugar da autonomia inquebrantvel do legislador ordinrio.51 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo:Malheiros, 2006. p. 592 e 583-584. So corretas as proposies, mas onde est concepo em tornodo direito pblico deve-se entender: direito coletivo. Por outro lado, coletivo no sentido das propos-tas de codificao em discusso, pois se limitam ao campo estrito da ao civil pblica da verso emvigor no direito brasileiro.

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    concretizao; superao da viso meramente jusprivatista e juscivilista para umaconcepo em torno do direito pblico; insero do princpio da proporcionalidade;converso dos princpios gerais do direito em princpios constitucionais com eficcianormativa; elaborao de uma concepo de pluridimensionalidade dos direitos fun-damentais, antes concebidos no plano da subjetividade.

    Almeida52 arremata dizendo que a superao do paradigma meramentereprodutor da realidade d-se por um direito capaz de transformar a Sociedade[omissis] a partir do Estado Democrtico de Direito, de forma a proporcionar osurgimento e a implementao de ordenamentos jurdicos constitucionalizados.

    Sem dvida, trata-se de um avano, mas a proposta deve ser entendida no seulugar e real dimenso, sob pena de embaraar o verdadeiro processo coletivo queela no alcana.

    5 Consideraes crticas ao modelo de codificao proposto

    No se pretende entrar na discusso mida do aspecto processual das propos-tas, pois no o caso. Questiona-se o paradigma; melhor dizendo, discute-se o quea proposta no alcana, parecendo alcanar. A preocupao dos projetos com asaes (civis pblicas), efetividade e execuo dos provimentos jurisdicionais proferi-dos em torno das categorias de interesses e direitos transindividuais; no vai alm. um passo a frente, mas dentro do modelo tradicional de tutela jurisdicional, fragmenta-da, prpria do individualismo jurdico. Lide e processo coletivo outra coisa.

    A primeira pergunta esta: qual seria a base de direito material desse proces-so coletivo proposto? Quais so os bens em jogo?

    Conforme se observa, so os interesses transindividuais: difusos, coletivosstricto sensu e individuais homogneos que ganham um microssistema processu-al prprio, com aes e princpios de orientao constitucional e social.

    O pargrafo nico do art. 81 da Lei no 8.078/90 (Cdigo de Defesa do Consu-midor) define essas categorias. Interesses difusos so aqueles de naturezaindivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por cir-

    cunstncias de fato. Interesses ou direitos coletivos seriam aqueles de que sejatitular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte

    contrria por uma relao jurdica base. E interesses individuais homogneosos decorrentes de origem comum.

    Ora, tais categorias so perfeitas quando se trata de defesa do consumidor esua tutela tradicional por ao civil pblica. A situao muda de figura ao reconhe-

    52 ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Codificao do direito processual coletivo brasileiro. p. 38.

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    cer autonomia jurdica de bens coletivos em espcie, tais como ambiente, sadee cultura, em determinados contextos. Porque a se modifica a natureza da tutela ea natureza do processo coletivo, acrescentando-se uma dimenso que as propostaem tela no cogitam, apesar de se referirem a processo coletivo.

    Reconhecendo a autonomia do ambiente como bem jurdico sob titularidade no doEstado mas de todas as pessoas em sua dignidade humana e direito vida, o processo deixade ser restrito a grupos indefinidos. O titular a coletividade e a coletividade em juzo diferente de o consumidor em juzo ou o Ministrio Pblico em juzo ou uma ONG em juzo.

    A diferena radical. Colocar os bens coletivos, como o ambiente, sob aesfera de proteo da subjetividade coletiva significa dar a eles o mesmo status deproteo constitucional com garantia de liberdade e segurana jurdica53 que seoutorga ao contribuinte e propriedade, mas mediante processo e fontes normativasprprias. Reconhecer a autonomia e a titularidade coletiva, por um lado, tornar oambiente insuscetvel de apropriao privada, seja em face do fato consumado daleso, seja em decorrncia da tutela jurdica deficitria, como ocorre sob o voluntarismoestatal e o poder de polcia tradicional. Significa, enfim, dizer que qualquer leso ouconflito em torno de bem coletivo desencadeia processo coletivo.

    Assim, o ambiente semelhana dos direitos da personalidade bemimprescritvel, indisponvel, insuscetvel de apropriao privada ou disposio esta-tal, que uma vez envolvido em conflito desencadeia processo prprio, que o pro-cesso coletivo; invoca princpios prprios, que se pautam pela construo comunit-ria da deciso sob o comando judicial e no pelo paradigma individualista da compe-tio; impe fontes prprias de direito, que se baseiam no pluralismo e no no legalismoestrito de causa e efeito (da Modernidade); pauta-se por processo em dimenso degora, desafiando todos os interesses, a integralidade do conflito e no pequenasilhas54 de discusso como hoje se faz (mesmo na ao civil pblica), em processosque no superam a dinmica individual das relaes.

    Quem o titular do direito coletivo? Eventuais grupos, eventuais vtimas deum ato lesivo? O Estado com seu poder de polcia? No no caso do ambiente, pois53 PALMEIRA, Marcos Rogrio. Dimenses do discurso jurdico na modernidade: a liberdadee a segurana jurdica no direito tributrio. p. 27. A liberdade ressalta a precedncia do indivduosobre a comunidade, culminando com a intangibilidade do direito de propriedade, ao passo que asegurana jurdica eficaz mecanismo de reduo da aleatoriedade do intrprete deixa a normajurdica mais previsvel e constante, notabilizado no princpio da estrita legalidade.54 PALMEIRA, Marcos Rogrio. Dimenses do discurso jurdico na modernidade: a liberdade ea segurana jurdica no direito tributrio. p. 13 e 14. Procura demonstrar a estrutura da ordem legaltributria centralizada, desigual, que mantm uma estabilidade intrnseca a partir da interpretao cumulativados princpios constitucionais. Uma ordem que atua mediante a norma estatal marcada pela atemporalidade,esvada de contedos morais e de historicidade. A atitude cientfica que a embasa de edificar um sistemajurdico assptico, orientado metodologicamente pela subsuno do fato social lei, caracterizando pequenasilhas cognitivas artificialmente reunidas no direito... no intuito de ressalvar somente a dinmica individual.

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    a segurana jurdica e a liberdade de todos, em termos coletivos, esto acima doprprio direito do consumidor. O lesado, freqentemente, no s um grupo, acoletividade em seu direito fundamental. E tudo o que envolve a coletividade , pornatureza, democrtico e plural, e deve ser resolvido em processo coletivo, em di-menso de gora. E no entre o Estado e o poluidor, simplesmente, pois se estarianegando a dimenso coletiva. O procedimento, ento, sempre ser um procedimen-to que busca construir coletivamente aberto a melhor soluo para todos osinteresses em xeque: dos particulares, da Sociedade, do Estado, do prprio Judici-rio, na perspectiva do porvir enfim, da eqidade no sentido romano clssico.

    O bem coletivo, focado dessa forma, desencadeia a lide real e no uma rela-o fragmentada, como se disse, entre o poluidor, por exemplo, e o Estado e oMinistrio Pblico ou alguma ONG. No pode ser decidido a portas fechadas, comono processo tradicional.

    As propostas de codificao, como se observa, restringem-se ao perfil e aoplano meramente processual, na esfera da defesa do consumidor, e apesar do dis-curso social e dos avanos inegveis que representa o campo dos interresses difusos,no transbordam os limites do modelo tradicional da lide formal inadequada aoprocesso coletivo da lide real.

    Magistrados brasileiros, felizmente, j comeam a dar tratamento diferencia-do aos conflitos coletivos propriamente ditos. Um exemplo o da implantao doParque Nacional do Campo dos Padres, na Serra Catarinense, em que o Juiz Fede-ral Zenildo Bodnar,55 em trs dias consecutivos reuniu e ordenou a oitiva de todos osenvolvidos: autoridades de Unio, Estado e Municpios, Ministrio Pblico Federal,representantes dos interesses econmicos, tcnicos especializados em todas as reaspertinentes e vista de laudos especializados que levantam as verdadeiras dimen-ses do problema agricultores, comerciantes, pecuaristas, especialistas, autorida-des locais, firmando ao final, um termo de acordo que encaminha diversos projetose providncias na implantao do parque.

    Assim, todos os interessados e os que tm poder de deciso poltica estopresentes na lide e juntos podem construir a melhor soluo para o problema que

    55 MPF/SC DEFENDE remanescentes de mata atlntica no Estado: procuradores da Repblica parti-cipam de vistoria, reunio e audincias conciliatrias. Disponvel em: . Acesso em: 11 dez. 2007. Em face do grande impacto ambientalda Usina Hidreltrica de Barra Grande, a Energtica Barra Grande S/A foi obrigada (lei 9985/2000) afinanciar a criao, pelo Ibama, do Parque Campo dos Padres (Municpios de Alfredo Wagner,Anitpolis, Bom Retiro, Gro Par, Rio Fortuna, Rio Rufino, Santa Rosa de Lima e Urubici, na SerraCatarinense). O Termo ento firmado alcanou trs aes civis pblicas: ACP n. 2000.72.00.009825-0; n. 2007.72.00.001075-4; n. 2004.72.00.013781-9, que questionam a preservao de espcies emextino no contexto do empreendimento. As aes podem ser acompanhadas em: (inserindo o nmero no campo Consulta Processual Unificada).

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    os afeta coletiva e individualmente, como coletividade ou como autoridade: nocampo aberto em plano de eqidade. O magistrado, a exemplo do pretor emRoma, preside o processo em dimenso de gora democrtica, em que o indivduono espoliado pelo coletivo nem se apropria, individualmente, do porvir regionalque no lhe pertence seno coletivamente.

    Concluso

    Do exposto, verifica-se que as propostas de codificao do processo coletivorestringem-se esfera dos interesses difusos, especialmente do consumidor, masno superam a dimenso do processo tradicional. uma grave omisso. Represen-tam um avano, mas no sero o instrumento adequado s lides coletivas da ps-modernidade, como essa, por exemplo, da implantao de um parque regional queenvolve interesses de toda a nao.

    Para poder realizar essa crtica sob embasamento cientfico, procurou-se res-gatar, como contraponto s propostas em debate, a sabedoria poltica e jurdica dares publica romana clssica. ali, naquele momento crucial de absoro de trans-formaes sociais radicais, que o romano ofereceu a grande lio de efetividade doprocesso, efetividade que ainda no se est vendo hoje, perante a ameaa do aque-cimento global. O modelo romano, em sua simplicidade, permitia captar a dimensodo porvir, transcendente s partes e lei: fosse pelo ius edicendi do pretor, fossepela feio casustica do processo, fosse pela dimenso superior da aequitas.

    Como resgatar hoje essa dimenso coletiva, no sistema processualconstitucionalizado da ps-modernidade? Ora, reconhecendo na Coletividade doscidados um sujeito de direito, emanado da soberania popular constitucional de-mocrtica e pluralista; reconhecendo autonomia aos bens jurdicos coletivos, taiscomo o ambiente, a cultura e a sade no contexto de grandes empreendimentosregionais ou nacionais. Isso possvel, desde que se queira cumprir a Constituio(que no pargrafo nico do art. 1o torna o brasileiro to participante quanto o cida-do romano da repblica) e preservar os direitos fundamentais; desde que d novafeio organizao judiciria, caracterizando ao lado do processo civil tradicionaldo CPC, o processo coletivo, sob a batuta de um magistrado (correspondente aopretor romano), com poder de instalar e presidir o processo em dimenso de gora,quando for o caso.

    Um magistrado que viabilize a lide real e no a lide formal, nos assuntoscoletivos; perseguindo a construo coletiva das decises e no uma disputa estritae fragmentada, no vis econmico autoritrio da velha dicotomia pblico/privado,esta que tem sido o reino do abuso do poder econmico e do poder poltico namodernidade.

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    O processo coletivo, nesse perfil, no buscar impor decises entre vitoriosose derrotados, mas aglutinar as foras sociais e polticas em torno da construo dasoluo que a todos satisfaa e a todos contemple e preserve. Solues que habili-tem os seres humanos a enfrentar com dignidade as grandes provaes que estopela frente, aps o comprometimento das condies de vida no planeta.

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