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Estou convencido de que pouca comida e muita atividade cerebral garantem longa vida. LUIZ A.B.C.

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Estou convencido de que pouca comida e

muita atividade cerebral garantem longa vida.

LUIZ A.B.C.

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RIO DE JANEIRO - RJ - 2012

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Lauro Xavier-Filho – Presidente do Conselho

Ada Augusta – UnitÁlvaro Silva Lima – UnitÂngelo Roberto Antoniolli – UFSBeijamim Fernadez Ruiz – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – EspanhaCarla Carvalho – Lisboa – PortugalCarlos Vicente Córdoba – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – EspanhaClaudia Moura de Melo – UnitCleide Mara Farias Soares – UnitClélia Albino Simpson – UFRNCristiane Cunha Oliveira – UnitDaniel Pereira da Silva – UnitDenise Santos Ruzene – UnitEdna Aragão Farias Cândido – UnitEugênio Scalise Júnior – INPEFrancine Padilha – UnitFrancisco Prado Reis – UnitJaime Aguirre Ceballos – Universidad Nacional de ColômbiaJoão Lúcio de Azevedo – Manaus – AmazonasJosé Ferreira Nunes – UECE/RENORBIOLaise de Holanda Cavalcanti – UFPELaiza Canielas Krause – UnitLenilde Duarte de Sá – UFPB

Lista de Professores do ConseLho editoriaL da CoLeção “Saiba MaiS Sobre”

Capa e Diagramação: Jorge Henrique de M. Santos

Tel 21- 2554 [email protected]

Castro, Luiz Antonio Barreto de História sobre a ciência que vivi / Luiz Antonio Barreto de Castro. - Rio de

Janeiro : Âmbito Cultural, 2012. 208p. : il. ; 21 cm

ISBN: 978-85-86742-21-7

1. Castro, Luiz Antonio Barreto de. 2. Engenheiros agrônomos - Brasil - Biografia. 3. Agronomia - Brasil. I. Título.

12-4994. CDU: 926.3 CDU: 929:631

13.07.12 23.07.12 037217

Copyright © 2012

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei de direitos autorais. Proibida a duplicação ou reprodução deste livro ou parte dele, sob quaisquer meios, sem autorização expressa dos editores.

Ficha Catalográfica na Fonte:

C35h

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– Sumário –

– Apresentação 11

– Prefácio 15

– Nota do Autor 19

PARTE IA HISTÓRIA DA CIÊNCIA 23

1 – Os primeiros anos na escola 25

2 – A universidade que encontrei 30

3 – Os primeiros anos na pesquisa 37

– 3.1 - A genética brasileira 42

– 3.2 - A ditadura militar e a rural de 1964 45

– 3.3 - A pós-graduação no Brasil 48

– 3.4 - A EMBRAPA 64

– 3.5 - A biotecnologia brasileira 82

PARTE IIA GESTÃO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA 87

4 – Os anos do Padct 89

5 – O novo milênio - a ciência dos

fundos setoriais 108

Manuel Odorico de Morais – UFCEMara Sacristán San Cristóbal – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – EspanhaMargarete Zanardo Gomes – UnitMaria de los Angeles Herreira-Campos – Universidade Nacional do México – MéxicoMaria Estrella Legaz – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha Marlizete Maldonado Vargas – UnitMyres Hopkins – New ZelândiaNeli Kika Honda – Universidade Federal do Mato Grosso do SulOnélia Aparecida Andreo dos Santos – Universidade Estadual de MaringáPaula Lenz Costa Lima – UECE/RENORBIOPierre Basmaji – Innovatec – São Carlos – BrasilPiter H. Raven – Missouri Botanical Garden – USAPlácia Barreto Prata Góis - UnitQiu-Yun Chen – Jiangsu University – ChinaRenato Medeiros Costa – UFRNRicardo Luiz Cavalcanti de Albuquerque Júnior – UnitRoberto Berlinck – Universidade de São CarlosRoberto Rodrigues de Souza – UFSRoman Turk – Salzburg University – ÁustriaRubens Riscala Madi – UnitRui Figueira – Universidade de Lisboa – PortugalSheyla Alves Rodrigues – UnitSônia Oliveira Lima – UnitTemisson José dos Santos – UnitTeuvo Ahti – Helsinki University - FinlândiaVânia Fonseca – UnitVerônica Sierpe Jeraldo – UnitWanda Quilot – Universidade Valparaíso - ChileWilson Treger Zydowicz de Sousa – Unit

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6 – As políticas 114

6.1 - A Lei de Patentes 115

6.2 - A Lei de Cultivares 125

6.3 - A Lei de Biossegurança 112

6.4 - Acesso à Biodiversidade 131

7 – Os programas de ciência e tecnologia

e seus grandes desafios 135

7.1 - A Indústria Farmacêutica 138

7.2 - Desenvolvimento Regional e as Redes 140

7.3 - O Renorbio 146

8 – Reflexões finais 152

9 – Anexos 156

9.1 - A balança da justiça 156

9.2 - Liberação da soja transgênica 159

9.3 - A verdade sobre a campanha: por um

brasil livre de trasgênicos 193

9.4 - Alcides Carvalho - (1913 - 1993) 199

9.5 - Hartwig gifts memorialize ‘Mr. Soybean’ 205

– Apresentação –

Prof. dr. Lauro Xavier-fiLho *

Tarefa árdua que me foi conferida pelo Prof. Dr. Luiz Antonio Barreto de Castro, ou simplesmente Luiz ABC, quando me solicitou a apresentação do seu livro “Histórias sobre a ciência que eu vivi”. Ho-mem voltado à ciência, principalmente a genética, que nasceu durante a segunda guerra mundial, no Rio de Janeiro. Este livro fala sobre o desenvolvimento da ciência no Brasil, porém na realidade é uma auto-biografia de um verdadeiro cientista brasileiro.

Ingressou na Escola de Agronomia da Universidade Federal Ru-ral do Rio de Janeiro onde teve o privilégio de ter excelentes professo-res propiciando um curso de agronomia de alto nível.

Em 1960, Ganhou bolsa de Iniciação Científica para trabalhar em Genética de Hortaliças com Dalmo Giaccometti que concluíra re-centemente mestrado na Universidade da Flórida. No final de 1964, no IPEACS – Instituto de Pesquisa e Experimentação Agropecuária do Centro-Sul, estabeleceu o Laboratório de Análise de Sementes, o qual não chefiou por que foi aprovado para magistério superior na Universi-dade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Conta o Luiz ABC, que de 1964 à 1968 foram os anos mais difí-ceis da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro por ação da dita-dura militar. Em 1968, realizou o seu Master of Science na Universida-de do Estado do Mississipi. Em 1970, de volta ao Brasil, participou do

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12 Uma História sobre a CiênCia brasileira 13lUiz antonio barreto de Castro

Conselho de Pesquisa e do Conselho Universitário da UFRRJ até 1973. Em 1974, voltou aos Estados Unidos para iniciar o Ph.D na Universi-dade da Califórnia, em Davis, trabalhando com Fisiologia de Plantas. Por sua vez, a EMBRAPA foi a responsável pelo financiamento de sua bolsa de Ph.D, mesmo não sendo pertencente a esta empresa. Segun-do Luiz ABC, “a EMBRAPA foi estabelecida no período da ditadura, por isso fomentava projetos através de bolsas, o que possivelmente não ocorreria em outra época”.

Antes de voltar ao Brasil, realizou estágio em Los Angeles, para poder ampliar os seus estudos de biologia molecular na área de isola-mento de RNAs mensageiros de proteínas de reserva de sementes. Dez anos mais tarde, voltou aos EEUU como bolsista da “Rockfeller Foun-dation” para realizar o seu pós-doutoramento em biologia molecular. Com esta visão de Sistema de Pós-Graduação, Luiz ABC utilizou este modelo norte-americano para criação em 2005 da RENORBIO, já com ajuda da INTERNET.

Voltando ao Brasil em 1977, com seu Ph.D, verificou que com seu salário não dava para sustentar sua família, foi quando foi contra-tado pela Companhia Brasileira de Armazenamento para melhoria das macieiras, pois o Brasil era importador de maçã da Argentina e aí tudo mudou com o crescimento da produção de maçãs em Santa Catarina, passando a ser um estado exportador deste produto.

Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro foi promovi-do à professor-adjunto. A partir de 1981, desligou-se da UFRRJ e foi contratado como pesquisador III da EMBRAPA. Ainda nesse ano foi admitido como membro da Academia Brasileira de Ciências.

Quando voltou ao CENARGEN, em 2000, conseguiu identificar e expressar dois genes de plantas, um da castanha do Pará (Bertholletia excelsa) e o segundo do tubérculo do inhame (Colocasia esculenta). Em janeiro de 2004, Luiz ABC tentou e aceitou participar de um Cen-tro Universitário particular em Brasília denominado UniCEUB, onde a direção acadêmica acenou com a possibilidade em desenvolver uma

Pós-Graduação em Biologia e criou um núcleo de Pesquisa e Desen-volvimento em Ciências Biológicas, por problemas mais variados ele achou que a sua experiência nesse tipo de IES foi decepcionante.

Em maio de 2009, foi a Biotecnology Industry Organization na Georgia – USA, traçando um paralelo entre o desenvolvimento da Ge-órgia e o Brasil nos aspecto da biotecnologia. Conhecedor dos modelos norte-americanos, participou de vários processos para o desenvolvi-mento da biotecnologia brasileira, à exemplo da criação da RENOR-BIO, sendo este o primeiro programa brasileiro em rede com visão de promover o Desenvolvimento Biotecnológico do Nordeste, seguido do BIONORTE, CONCERRADO e PROCENTROESTE, todos com in-tuito de promover áreas do Brasil com carência em desenvolvimento científico nas mais diversas áreas.

Depois de séria enfermidade, o querido Luiz ABC diz sempre que “voltei da minha luta contra a morte e ganhei como presente a ex-pulsória (compulsória) já que fiz setenta anos” e afirmando “que pouca comida e muita atividade cerebral garantem longa vida”.

* Presidente do Conselho Editorial da “Série Saiba Mais Sobre”

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– Prefácio –

isaaC roitman *

O livro “Histórias sobre a cência que eu vivi”, autobiografia comentada de Luiz Antonio Barreto de Castro, também conhecido no meio científico por Luiz ABC, é acompanhada de um rico relato do panorama científico brasileiro nas últimas décadas, graças à sua larga experiência vivida como gestor de Ciência, Tecnologia e Inovação, no âmbito do Ministério de Ciência e Tecnologia, MCT.

Nesse sentido, o livro vem preencher uma lacuna na literatura, em que são raras as obras que falam sobre importantes projetos e pro-gramas governamentais de C&T, sob a ótica de um observador pesqui-sador, ao mesmo tempo um gestor protagonista da história recente da nossa ciência e tecnologia.

O texto é permeado por um humor refinado como ilustrado pelo comentário de um recente concurso para Professor Titular, onde o autor confessa que perdeu por velhice. As reflexões e comentários apresenta-dos com riqueza de detalhes, na análise de erros e acertos nas políticas de C&T, certamente enriquecerão o acervo de informações e poderão servir como fonte de referência para se entender melhor os caminhos do desenvolvimento da ciência brasileira.

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16 Uma História sobre a CiênCia brasileira 17lUiz antonio barreto de Castro

A leitura do livro com que nos brinda esse septuagenário jovial é recomendada a todos os que se interessam pela a história do desen-volvimento da ciência brasileira nas últimas décadas, em especial aos jovens que pretendem abraçar a carreira científica.

A descrição com detalhes da sua trajetória de vida, desde a edu-cação básica no Rio de Janeiro, vale como confirmação da importância de alguns requisitos na formação do bom cientista, tais como: uma boa educação básica, iniciação científica quando ainda bem jovem, formação acadêmica em centros de pesquisa de excelência, oportunidade de traba-lhar sob a orientação de alguns mentores altamente qualificados, capazes de exercer forte influência na vida sua profissional e pessoal.

Não sem motivo, o autor reconhece a influência marcante em sua vida científica, de dois de seus mentores: Robert Goldberg (Uni-versidade da Califórnia de Los Angeles) e Maury Miranda (Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro) com quem trabalhou durante 02 anos.

Luiz ABC teve a sorte do pleno acesso a todos esses fatores, e talento para usufruir com vantagens dessas oportunidades. Em 1965, logo após sua graduação em Agronomia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, em 1965, foi admitido no quadro de professores da Instituição, de onde se afastou por um período para completar a sua formação, com mestrado e doutorado nos Estados Unidos. Em 1981, deixou a UFRRJ e aceitou o convite de seu antigo orientador de Iniciação Científica, Professor Dalmo Giacometti, para trabalhar na EMBRAPA, em Brasília, com o desafio de implantar a área de Biotecnologia Vegetal no Centro Nacional de Recursos Genéticos, CENARGEN. Dez anos após sua criação, o CENARGEN foi credenciado como Centro de Excelência pelo ICGEB (Centro Internacional de Engenharia Genética e Biotecnologia) de Trieste/Nova Déli.

Em 1991, Luiz Antonio aceitou o convite para integrar o quadro do Ministério da Ciência e Tecnologia, na Coordenação de Políticas e Programas, de onde comandou, por nove anos, o Programa de Apoio

ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do País, PADCT, um dos mais importantes programas de fomento à Ciência e Tecnologia im-plantados no País até então . Segundo ele, foi a melhor escola de gestão de C&T que poderia frequentar. Em sua atividade de gestor no MCT, o autor teve oportunidade de participar da formulação e implementação de importantes políticas, projetos e programas.

De 2005 até o final de 2010, Luiz ABC esteve à frente da Secre-taria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento (SEPED) do MCT, e foi presidente dos comitês gestores de 03 Fundos: Biotec-nologia, Saúde e Agronegócios. Durante sua gestão na SEPED, Luiz ABC colaborou de maneira decisiva na elaboração de mecanismos de incentivo à inovação como a lei de patentes e a consolidação e controle dos marcos legais, como a implantação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO) e do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA).

Mais recentemente, ainda no MCT, Luiz ABC, que sempre com-bateu a desigualdade regional na área de C&T, comandou a implantação de um programa importante e de grande sucesso, a Rede Nordeste de Biotecnologia (RENORBIO). Como ele bem descreve no livro, “tudo começou quando Sergio Rezende, então Secretário de C&T de Pernam-buco, no governo de Miguel Arraes, me fez um desafio: “ Por que você não traz toda esta biotecnologia que vocês produziram no CENARGEN para o Nordeste?” Esse desafio não era trivial e só poderia ser aceito e concretizado por alguém com sólida formação e experiência científica aliada a uma grande capacidade de trabalho.

A missão principal do RENORBIO seria a formação e o estabe-lecimento de massa crítica de profissionais, com competência em bio-tecnologia e áreas afins, para executar projetos de importância para o desenvolvimento da região. Um dos pilares do projeto é o Núcleo de Pós-Graduação que atualmente conta com mais de quatrocentos dou-tores vinculados a mais de quarenta instituições nos nove estados do Nordeste, além do Espírito Santo, que também integra esta iniciativa.

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18 Uma História sobre a CiênCia brasileira 19lUiz antonio barreto de Castro

– Nota do autor –

Luiz antonio Barreto de Castro*

Sempre quis escrever um livro sobre ciência, que é a minha agenda diária há cinquenta anos. Não um livro científico que fica ob-soleto quando sai do prelo. Um livro sobre histórias da ciência que eu vivi. Esta decisão ficou mais fácil quando encontrei o livro do Feynman – Surely you are joking Mr Feynman. Este livro publicado em 1985 pelo nobelista de Física de 1965 e vendeu mais de 500 mil cópias, não contando a sua experiência em Los Alamos, mas pelo senso crítico e de humor com que abordou vários assuntos importantes, incluindo uma análise sobre o sistema educacional brasileiro. Não tenho outra inten-ção senão contar com humor histórias sobre a ciência brasileira. Não vou vender 500 mil cópias nem ganhar um prêmio Nobel. Aliás, mais de uma vez me perguntaram porque o Brasil não tem um nobelista. A última vez foi em um concurso para Professor Titular de Genética que eu perdi por velhice. Respondi que certamente temos vários Prêmios Nobel no Brasil. Eles estão no interior do País e ainda não os conhece-mos porque o Brasil é grande e a ciência só agora começa a chegar no interior. As olimpíadas de matemática vão ajudar. Esta pergunta foi fei-ta para o Feynman em uma de suas últimas conferências na CALTECH, por um jovem, não mais de dezesseis anos: “como se faz para ganhar um Prêmio Nobel?” Ele disse sério: primeiro você deve descobrir uma

A visão que se descortina a partir do Programa, é que o Nor-deste gradativamente consolidará núcleos de excelência em Biotecno-logia, fazendo convergir sua competência no sentido da utilização plena dos recursos que certamente estimulará o desenvolvimento da indústria de Biotecnologia no Nordeste, consolidado nos padrões de competitivi-dade global.

O livro nos brinda ainda com dois anexos. O primeiro abordan-do a introdução de organismos transgênicos no Brasil e o segundo que trata do desequilíbrio regional brasileiro e as redes de pesquisa e pós-graduação.

Tive o privilégio de trabalhar por três anos ao lado de Luiz ABC no MCT. Acompanhei o dia a dia desse personagem inquieto, com in-crível capacidade trabalho, criativo em todos os momentos e com um espírito patriota de sonhar com um Brasil desenvolvido e justo. Acom-panhei de perto, sua vontade de viver, em 2008, quando foi desengana-do pela Medicina. Sua espantosa recuperação certamente foi inspirada na vontade de continuar sua saga na luta para o desenvolvimento cien-tífico brasileiro. O exemplo de perseverança, a construção de legados na vida científica de Luiz ABC registrada no livro, pode e deve ser um exemplo para as novas gerações de cientistas brasileiros.

* Professor emérito da UNB, professor aposentado da Universidade de Brasília e

Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências.

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20 Uma História sobre a CiênCia brasileira 21lUiz antonio barreto de Castro

teoria nova. Depois deve comprová-la experimentalmente. O que nos separa dos Prêmios Nobel do mundo é a segunda parte que custa muito caro. Depois deste depoimento otimista, já entenderam que este livro não será repleto de ressentimento como alguns dos livros que falam da ciência do Brasil; o que não seria justificável se olharmos a ciência que eu encontrei no final da década de cinquenta e a ciência de hoje. Este livro, espero, suscitará polêmicas o que é o principal cardápio da ciência. Todos os que me conhecem quando souberem que escrevi este livro vão esperar a polêmica como seu tempero principal. Polêmica é a ciência desde Galileu ou mesmo antes. Espero que este livro aponte caminhos, não para os velhos como eu, mas para os mais jovens, para que encontrem tanto entusiasmo para ingressar na ciência como eu en-contrei quando o contexto era muito mais desafiador e desalentador.

História sobre a ciência que eu vivi é um livro que marca o fi-nal da minha vida em instituições públicas de ciência. Como as ICTs privadas não valem a pena, pensei que estava na hora de escrever este livro antes de morrer, o que quase aconteceu em 2008. Não escolhi este caminho por vontade própria. Quando se faz setenta anos no Brasil se recebe um cartão vermelho. Curioso verificar que isto não acontece nos Estados Unidos onde o meu amigo Aron Kuppermann da CALTECH continua ativo na ciência com dez anos a mais do que eu. Este livro não pode deixar de ser um tanto autobiográfico. Só posso contar a história que vivi, o que se reveste de uma dificuldade que espero conseguir ven-cer. Eu ainda estou vivo e vivos a maioria dos personagens com quem convivi ao longo desta história. Como resolver este problema? No mo-mento em que escrevo estas primeiras linhas não sei. Vou tentar ser elegante com as pessoas, mas cáustico com os fatos, se for necessário. Binômio difícil de exercitar

Um velho filósofo brasileiro: José Duarte, que provavelmente poucos conhecem, disse duas coisas que influenciaram muito a minha vida: No Brasil o que vale é a descarada coragem de afirmar. Afirmar somente; mesmo sem conhecimento dos fatos. Verão que durante esta história, esta ”mágica” é frequente. A segunda coisa foi: é preciso optar muito cedo entre ter e ser. É óbvio que ambas as afirmações não podem

ser atribuídas em sua origem ao velho Duarte, pai de um grande amigo, Raul Duarte Ribeiro, com quem brigo sempre por causa dos transgêni-cos. Somadas, as duas afirmações tem implícitas uma grave crise, que nos acompanha desde o descobrimento: a crise de caráter. Todos os dias abrimos os jornais e encontramos exemplos desta crise que como diria Estanislau Ponte Preta, assola o País. É lugar comum afirmar que ela se apóia na impunidade diante da corrupção. Uma medusa que sobre-vive embora algumas poucas cabeças ao longo da história tenhamos eliminadas. Espero que este livro aos olhos dos mais eruditos apareça como um livro revestido de certa ingenuidade. Ter esperança obriga ao exercício de uma boa dose de ingenuidade. Prefiro isto ao cinismo ou ao sarcasmo quase sempre de mãos dadas com a desesperança e o desanimo. Espero que seja um livro alegre em que vou misturar um pouco de muitas coisas que estão fora da ciência para que os jovens ao passarem por experiências semelhantes tenham facilitada sua escolha e sejam estimulados para seguir a carreira científica. É um livro para os jovens, repito. Hoje aos setenta anos ainda me sinto como um estudante de biologia que tem a ingênua esperança de morrer sabendo como fun-ciona o processo de diferenciação celular. Como é um livro de história não vou citar referências, o que seria cansativo para o leitor. Entretan-to tudo o que cito pode ser encontrado no meu Currículo Lates. Vivi nos meus quinze anos como Secretário do MCT, momentos engraçados com personalidades importantes da história política brasileira. Às vezes as cito principalmente para evidenciar que estas personalidade, mesmo nos momentos mais delicados e difíceis, não perdem o senso de humor, ingrediente indispensável aos brasileiros diante de tantos desafios que teimam em perdurar sem solução à vista. Não perder o senso de humor merece elogios. Nem sempre consegui esta ventura. Tenham paciência com esta história e com a ingenuidade do seu autor.

*Engenheiro agrônomo - UFRRJ - 1962; M.Sc. (Agronomia/Tecnologia de Sementes) - Mississippi State University - 1970; Ph.D. (Fisiologia de Plantas) - University of California-Davis - 1978; Pos-doc (Biologia Molecular) - University of California - L. A. 1986-1988.

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A HISTÓRIA

DA CIÊNCIA

Parte I

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Nasci durante a segunda guerra mundial no morro de Santa Tere-sa, bairro do Rio de Janeiro que, nos anos de 1940 e 1950, era uma es-pécie de Montmartre do Rio, atraído por pintores e pelos nazistas. Santa Teresa era um bairro de castelos e pintores. Djanira, Gotuso e outros me-nos famosos pintavam nas ruas. Os castelos davam festas como as daria Scott Fitzgerald, superavançadas mesmo para os dias de hoje. Era um bairro de aristocratas no topo e de marginais nas franjas, hoje, comple-tamente dominadas pelo narcotráfico. Naquela época, não havia crime organizado e maconheiro era palavrão. Cresci soltando pipa, roubando manga, jogando pelada na rua e vendo blocos de sujo nos carnavais, que, quando passavam, os pais colocavam as crianças para dentro.

A guerra marcou minha vida de duas maneiras: a primeira, acor-dando-me de madrugada com o barulho de uma família francesa que fu-gia da guerra e da França, e se mudava para a nossa vizinhança. Era um exemplo de que a guerra desgraçadamente move as pessoas. A segunda foi verificar que muitos brasileiros eram simpáticos ao Eixo, mesmo na minha família que, de ariana, só tem a metade. Da outra metade, tive um tio que foi à guerra e voltou; e outro, que era simpático ao Eixo. O meu pai lembrava a ele: “você de ariano não tem nada, tome cuidado”.

1

– Os primeiros anos na escola –

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26 Uma História sobre a CiênCia brasileira 27lUiz antonio barreto de Castro

O meu primeiro colégio, Menino Jesus, na década de 1940, era numa casa lúgubre. Estudava-se em um porão, onde havia sempre um cachorro precariamente preso. Todos temíamos que ele, um dia, se sol-tasse. A minha primeira professora, Dona Irene, me ensinou a escrever com a mão direita, a única coisa que faço com esta mão até hoje. Não consigo mais escrever com a esquerda. Os canhotos do meu tempo so-friam. O dono do colégio, seu Milton, era profundamente mal-humo-rado e brigão, mas, todo o dia, na década de 1940, enfileirava os alu-nos, tocava o Hino Nacional e hasteava a bandeira brasileira. Sabíamos todos os hinos, além do Nacional, que eram impressos nas capas dos cadernos dos grupos escolares. Curiosamente, décadas depois, quando comecei a estudar nos Estados Unidos, verifiquei que aquilo era um hábito corriqueiro naquele país. Tocava-se o Hino Nacional americano antes de qualquer partida de qualquer esporte. No final dos anos de 1980, fui fazer um pós-doutorado na UCLA e minha filha Luiza, de quatro anos, aprendeu a jurar a bandeira dos Estados Unidos, em dois dias, sem saber o significado das palavras. Conto esta história porque, durante as seis décadas em que vivi, no século passado, os brasileiros não tinham nenhum orgulho da sua origem e ser honesto era burrice. As piadas sobre o brasileiro eram sempre depreciativas, como a de Deus que, chamado à ordem por não nos ter reservado nenhuma dificuldade geográfica, desculpou-se: “Esperem, porque vocês vão ver o povo que vai viver lá”. Os brasileiros tinham vergonha de si mesmos, de suas origens. Os mais escurinhos, para jogar no Fluminense, só com pó de arroz. Como diria mais tarde Nelson Rodrigues, o brasileiro tinha um complexo de vira-lata que só agora, no novo milênio, parece que vai nos deixar. Hoje, ouço hinos antes de partidas de futebol.

O velho Colégio Menino Jesus não tinha estrutura para preparar ninguém para o chamado exame de admissão ao ginásio. Quando fui para o Colégio São Bento não consegui passar na prova de admissão, depois de três meses, e tive que fazer um quinto ano, antes de entrar no ginásio. O Brasil tem um perverso exercício de reprovação impos-

to mesmo a jovens como eu, à época, que experimentei esta decepção aos dez anos. Quando se reprova um aluno transfere-se para ele toda a responsabilidade de um contexto, que resultou em fracasso. Quase sempre, o aluno é apenas parcialmente responsável pelo fracasso: devia tirar cinco em matemática e tirei quatro. A decepção que senti quando vi a minha nota está ainda viva na minha mente. Lembro-me, depois de sessenta anos, dos mínimos detalhes: da minha roupa molhada e da chuva que tive que enfrentar para contar esta “desgraça” em casa. Pais compreensivos, como eu tive, ajudam. Podia ter sido muito pior.

O São Bento era um bom colégio em Letras e Filosofia, naquela época, mas, na minha visão de hoje, fraco quando lá estudei em Ma-temática e Química. O professor de Matemática intimidava os alunos fazendo contas ao contrário para se exibir. Isso não estimulava os ado-lescentes para o estudo da matemática, o que me fez muita falta no fu-turo. O de Química era míope quase cego. Tinha o apelido de CaCO3, menos pela relação deste sal com a química e mais porque os seus óculos eram muito grossos. Nas Letras, o São Bento era diferente. O colégio ensinava Filosofia, de São Tomaz de Aquino aos mais modernos como Immanuel Kant; aprendi Inglês e Francês em casa com a minha mãe e no São Bento; e Português com o Mario Barreto, coautor da Antologia da Língua Portuguesa. Ele chegava com um terno branco impecável; dava aulas cronometradas e, de repente, tirava um relógio de ouro do bolsinho do terno e dizia “por hoje é só”; saía tão impecável quanto havia entrado. Incomparável com os cursos ginasiais de hoje, nos quais os professores, que ganham seiscentos reais por mês, não podem comprar relógio al-gum, quanto mais de ouro. No São Bento, nunca tive aulas práticas de Química e Física. Talvez, uma ou duas por ano. Por esta razão, até os dezessete anos a Ciência não havia entrado em minha vida. A Literatura, sim. Ainda longe da Ciência, ouvia do meu pai, Oscar Gomes de Castro, médico, escritor de romances e jogador de xadrez, o mais significativo conselho que recebi desde cedo, e que teve importância na minha carrei-ra em Ciências no futuro. Ele estudava sempre e dizia: “o tempo perdido

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28 Uma História sobre a CiênCia brasileira 29lUiz antonio barreto de Castro

é o tempo que se passa sem estudar”. Ele estudava tudo, mas principal-mente Psicologia e Psicanálise. Desde cedo, eu conheci, por seu inter-médio, personagens importantes dessa área do conhecimento, de Freud a Carl Jung. Gomes de Castro tinha o hábito da leitura, que rapidamente incorporei, começando pelos portugueses, como Eça de Queiroz; por seu contemporâneo francês Émile Zola e pelo pai da literatura brasileira, Machado de Assis, para lembrar apenas alguns. Destes, passei para os russos, Tolstoi e Dostoievski, sob o estímulo de outra importante in-fluência na minha juventude, que foi a de Laércio Ribeiro, bancário, meu vizinho em Santa Teresa, comunista, que não sei se ainda está vivo. Tenho saudade do tempo em que a literatura me consumia quase todo o tempo. Líamos até a noite, sentados na porta de casa, em Santa Teresa.

Quando me mudei para Copacabana, nos anos dourados, fui para o Colégio Andrews. O meu professor de Química era nada mais nada menos que Ernesto Tolmasquim, depois Presidente do CNPq. O de Fí-sica, Raymond Hebert, e não me lembro do nome do de Matemática. Só me lembro de que ele deu zero a todos os alunos da turma em uma pro-va parcial do segundo ano científico, o que me fez repetir o ano. Nova-mente, fui apenas parcialmente responsável pelo meu fracasso. Pode-se argumentar que São Bento e Andrews eram colégios caros e pagavam bem aos seus professores. Ocorre que os mesmos professores ensina-vam no Colégio Pedro II, que era federal e público. Temos um longo caminho a recuperar na formação dos nossos jovens. Defendo que um programa estadual deve ser financiado em parceria com o Governo Fe-deral, destinando recursos para que recém-doutores tenham maior en-volvimento com o ensino médio, recebendo, como contrapartida, recur-sos para as suas pesquisas e bolsas, de maneira que os jovens possam iniciar sua formação científica nos laboratórios desses recém-doutores. Formamos 11 mil doutores por ano em todo o país. Com salários de seiscentos reais, entretanto, não é possível. A que distância estamos da percepção pelos dirigentes públicos estaduais da importância de um professor de ensino médio?

Posso dizer que comecei a me interessar pela Ciência quando fui para o Andrews. Era uma atmosfera interessante. Na década de 1950, ti-vemos um debate, à noite, preparado por alunos do curso científico, em que, de um lado, se defendia a energia nuclear como potencial substitu-ta da energia fóssil, que terminaria um dia. Do outro lado, estavam os do petróleo é nosso. Em junho de 2006, cinquenta anos depois, compa-reci, em nome do Ministro da Ciência e Tecnologia, a um debate entre Ministros da OCDE, em Paris, com a mesma agenda, e, por mais que eu defendesse uma terceira possibilidade (energias renováveis), ouvi de todos os Ministros de países desenvolvidos que eles iriam até a última gota de petróleo e a última pedra de carvão. O que fazer com o CO2 emitido? Não é surpreendente que não tenhamos avançado nessa área até agora. Voltarei a este assunto mais tarde.

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Entrei para a Escola Nacional de Agronomia da Universidade Rural em 1959. Egresso de bons colégios, passei direto no vestibular, sem cursinho, que já existia na época, mas que eu não tinha como pagar. Gosto mais do sistema que gradualmente vem se instalando no Brasil, o PAS e o Enem, em que os alunos se preparam durante os anos de se-cundário e, se tiverem aproveitamento superior, não precisam fazer ves-tibular. Acho o vestibular uma invenção desastrosa que, espero, acabe um dia. Promove uma inversão de valores. Os professores de cursinho só andam de carro importado.

Sair de Copacabana, nos anos dourados e em plena bossa nova para viver na Universidade Rural, significou várias rupturas e mudan-ças de hábito. Ninguém sabia o que era Agronomia. Quando eu dizia “Agronomia”, as pessoas perguntavam sempre: “Economia?” Quando eu insistia na palavra “Agronomia”, a segunda e invariável pergunta era: “Seu pai tem fazenda?” Ninguém entendia, naquela época, final dos anos de 1950, que, escolhendo Agronomia, casei-me com a Biologia mais do que seria possível, se escolhesse qualquer outra profissão. Na Rural, cada um vivia por sua conta. Ninguém o acordava de manhã e o restaurante, que era muito barato, fechava cedo e na hora certa. Quando íamos para a aula de Mecânica Racional, eu e o Raul Ribeiro, nas segundas-feiras à

tarde, passávamos pelo campo de futebol e o Geraldo estava preparando o material para o treino. Perdíamos a aula batendo bola, o que nos causou uma dependência nesta disciplina. A Rural que encontrei exigia responsa-bilidade de alunos ainda jovens, mas tinha tudo a oferecer, e foi extrema-mente importante na minha formação científica. Embora houvesse pouca Ciência na Universidade, e poucos doutores, os professores eram exce-lentes, com poucas exceções, e tínhamos aula o dia inteiro. Havia cien-tistas. Conheci alguns. Ângelo Moreira da Costa Lima era um deles; em minha opinião, o pai da Entomologia brasileira. Não aguentava o calor e, nas férias de verão, trabalhava seminu, para o espanto de alguns visitan-tes, que resolviam olhar pela janela do Departamento de Entomologia, no prédio da Biologia. A Rural não tinha uma biblioteca decente e o Costa Lima tinha que ir à Fiocruz para estudar, o que ele fazia regularmente. Vou me esquecer de alguns nomes porque os cientistas da Rural eram poucos. Quero fazer justiça ao Charles Frederick Robbs, de quem fui bol-sista em 1960. O Charles formou os principais fitopatologistas brasilei-ros e a importância desse fato nunca teve o reconhecimento plenamente devido. Aprendi com ele os postulados de Koch e a percepção de que o sucesso na Ciência é exceção da rotina e não a regra. Em uma conferên-cia a que assisti, muito mais tarde, ministrada pelo César Milstein - que ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1984, com a desco-berta dos anticorpos monoclonais - ouvi algo semelhante: “entre as boas ideias e o Prêmio Nobel, temos que fazer os experimentos”. Apresentei meu primeiro trabalho científico em um Congresso Nacional organizado, inteiramente, por Diretórios de estudantes de Agronomia, em 1961, como bolsista do Charles Robbs.

Tive o privilégio de assistir às aulas do Otavio Domingues que, há cinquenta anos, falava na importância das raças nativas ou adaptadas no Brasil como o ovino deslanado de Morada Nova, décadas depois recuperado pela Emprapa Caprinos, em Sobral. Bons professores de Química: Roberto Alvahydo, Paulo Costa Pereira; e de Solos, Petzval-Lemos e Abeilard de Castro. Eugenio Izeckson da Zoologia. Cincinato Gonçalves da Entomologia. Américo Grosszamnn da Genética, Roberto

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– A universidade que encontrei –

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Meireles de Miranda e Sabugosa da Zootecnia. Vou fazer injustiça es-quecendo muitos. A Rural era a elite na formação geral de agrônomos, em minha opinião, embora não houvesse, na Genética, uma escola tão forte como a da Esalq. O Américo Grossmann preconizava que tería-mos espécies adaptadas para todas as regiões do Brasil, como se pode ver hoje, com a uva do Vale do São Francisco e o trigo do Cerrado, que está no Washington Post.

A universidade brasileira na década de 1950 era precária. Na ver-dade, havia pouca Ciência em Universidades no Brasil, na década de 1950, não era “privilégio” da Rural. Isto é diferente de dizer que não havia Ciência no Brasil, na década de 1950. A Ciência no Brasil tem uma história de muitos séculos. Formalmente, mais de cem anos, nos Institutos como o Agronômico de Campinas, o Museu Goeldi, o Instituto Oswaldo Cruz, e o Instituto Biológico de São Paulo. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro foi criado por D.João VI há mais de duzentos anos. Havia muita influência de cientistas estrangeiros na ciência brasileira. O Goeldi era suíço. Expedições de estrangeiros, principalmente botânicos, que aqui vieram para coletar plantas, remontam há mais de três séculos. A flora brasileira está espalhada na Europa e nos Estados Unidos, no Kew Garden e em Nova York. Agora, estamos fazendo um esforço para repatriar a nossa biodiversidade. Como teria sido a Mata Atlântica nos idos de 1500, que, mesmo protegida pela corte portuguesa, no inicio do século dezenove, com a lei conhecida popularmente como “madeira de lei”, só nos oferece hoje 6% do que era no descobrimento? Alguns cientistas vieram para o Brasil mais recentemente fugindo do nazismo. Outros, muito antes. Franceses, alemães como Kramer e o Silberschmidt contribuíram muito para a biologia brasileira, no Instituto Biológico de São Paulo no IAC e na Esalq. Cientistas japoneses foram extremamente relevantes para o desenvolvimento da agricultura brasileira. Hiroshi Iku-ta, Shinobu Sudo, Hiroshi Nagai, entre outros. A presença dos japoneses no Brasil é antiga. Em anos mais recentes, infelizmente, a influência estrangeira vem se diluindo. Enquanto, para trabalhar na ciência ame-ricana basta fazer sucesso científico em qualquer lugar do mundo, no

Brasil, fui uma vez procurado por um excelente bioquímico, nascido na Ucrânia, que tentava se naturalizar brasileiro. Dizia: “Estou no Brasil, há muito tempo. Casei com uma brasileira, tenho uma filha brasileira. Infe-lizmente, não consigo a minha certidão de nascimento, que foi emitida pela União Soviética, porque ela não existe mais”. A exigência era do Ministério das Relações Exteriores. No fim deu certo, mas tive que in-terceder no MRE, como Secretário do MCT. Uma vez, estava assistindo, nos Estados Unidos, a um documentário sobre o programa nuclear ame-ricano. De repente, na tela da TV, uma fotografia com todos os físicos da Universidade de Leipzig. Uma seta em cima de um deles. Disse o locu-tor: “Todos foram ou para os Estados Unidos ou para a União Soviética, menos o da seta.” Se a nossa bandeira é verde e amarela, deveríamos dar um “green card” para os excelentes cientistas que, mesmo poucos, querem vir para o Brasil; e não um cartão vermelho.

Quando fizemos a opção de consolidar um sistema Universitário no âmbito federal, copiamos da França, que é do tamanho do estado da Bahia, e, por esta razão, nunca deu certo. Não me surpreende que não tenhamos uma Universidade Federal Brasileira entre as cento e cinquen-ta melhores Universidades do mundo. As duas mais bem colocadas são estaduais: a USP e a Unicamp. As Universidades não são federais por-que resolvem problemas nacionais, mas para garantir verbas federais. A UFRJ, para citar uma das melhores, não resolve nem os problemas da Favela da Maré e da poluição da Lagoa Rodrigo de Feitas e da Baía da Guanabara. As Universidades são federais para ter recursos do Gover-no Federal. Neste sentido, deveríamos seguir o modelo americano que, no século dezenove, fez as “land grants”, e garante verbas federais até hoje para as Universidades com base nos Morrill Acts de 1862 e 1890, reconhecendo muito cedo a dificuldade de neutralizar as desigualdades do desenvolvimento regional americano. O sistema Universitário ameri-cano é muito mais antigo, é verdade. Harvard tem 364 anos. O leste dos Estados Unidos se desenvolveu muito mais cedo. Vejam a classificação das Universidades da Ivy League, abaixo. As Land Grant Universities, é fato, não estão entres as líderes do mundo, mas o sistema americano,

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que é estadual, insere as Universidades americanas entre as melhores do mundo. Qual é a principal diferença? As Universidades estaduais ame-ricanas favorecem financeiramente os nascidos nos estados onde elas se situam, que pagam um “tuition” (matrícula) muito baixo. Os estados, mesmo os mais pobres, por esta razão, apoiam fortemente suas Univer-sidades estaduais. Têm orgulho delas. Todos os anos, as Universidades abrem suas portas para mostrar à sociedade o que estão fazendo. É pre-ciso ver o orgulho estampado nas fisionomias dos visitantes. Isto sempre acontece no dia do “home coming”, quando o time de futebol america-no, depois de passar muitos jogos fora, volta para jogar em casa. É ver-dade que os Estados Unidos exercitam liberdade e independência legal e política para os estados. Vivi muitos anos na Califórnia. Sempre que há eleições é possível, reunindo assinaturas suficientes, fazer uma “pro-position” que, se aprovada no voto, vira lei estadual. Exemplo: legalizar a maconha, como propõem sempre os da ”Bay Area”. Limitar o salário dos professores da UC equiparando-os ao maior salário do judiciário. Esta última perde sempre porque o californiano sabe que, se limitar o salário dos professores do UC System, eles vão para Boston. Aqui, os salários das universidades federais são todos iguais. Como atrair profes-sores para as regiões mais carentes? Por esta razão, entre as cinquenta melhores Universidades do mundo, só sete estão fora dos Estados Uni-dos. Nenhuma na França. Uma vez, almoçando com o José Goldemberg, em 1991, quando cheguei ao MCT pela primeira vez, contei esta histó-ria e ele me disse: “É constitucional, meu caro.” Não consegui tirar do Goldemberg mais do que isto. Minha filha Elisa discorda frontalmente. “Pelo menos o pobre não tem que pagar na Universidade Federal”, diz ela. Na verdade, o pobre, via de regra, tem que pagar a uma Universi-dade privada, porque não entra em uma Universidade Federal. Agora temos cotas e outros artifícios. Qual foi o fruto desta escolha? Hoje, me-nos de 5% dos alunos de graduação estão em Universidades Federais. A maioria é de classe média alta ou superior. Na UNB, basta ver os carros importados no estacionamento na frente do “minhocão”. Maior elitiza-ção do que ocorre no nível médio, também extremamente elitizado. A seleção na UNB permite o ingresso apenas para os candidatos que estão

a dois desvios padrões para a direita na curva de Gauss, que distribui os alunos dos menos aos mais preparados.

Nos Estados Unidos, ocorre o oposto: alunos até a Universidade não pagam nada. Depois, os nascidos em um dado estado pagam muito menos na Universidade Estadual do estado onde nasceram. Todos sabem o que eu acabo de relatar. São louváveis os esforços recentes para dimi-nuir esta elitização das Universidades Federais, mas o problema está na origem. O que fazer? Estamos caminhando no sentido inverso, mas, esta-belecendo Universidades Federais no interior, há pelo menos a esperança de que gradualmente transformemos estas Universidades em Universi-dades Estaduais. O “land grant” brasileiro do século vinte e um, cento e vinte anos depois do americano. Se os estados adotarem as Universidades Federais, podemos democratizar as Universidades, mas é preciso liberar os salários. Como estimular professores a ir para a Amazônia? Pagan-do mais, como fizeram comigo na década de 1980, quando vim para a EMBRAPA, em Brasília. Já houve esforços neste sentido. O Darcy Ribeiro mais de uma vez. O Linaldo Cavalcanti, em Campina Grande. O Warwick Kerr, na época do Geisel, no Inpa. Ficaram pelo caminho porque tais decisões exigem que a ciência passe a ser uma prioridade no Estado, e o eleitor vote no candidato que fizer esta escolha, e não no que constrói estádio de futebol. Repito: é necessário estabelecer a ciência como prioridade. Quem deu prioridade à ciência no Brasil? São Paulo. A Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo (Fapesp) foi criada há cinquenta anos (Lei Orgânica n.º 5.918, de 18 de outubro de 1960 e Decreto n.º 40.132, de 23 de maio de 1962), e destina 1% do seu imposto para a pesquisa de São Paulo. Isto não aconteceu da noite para o dia. Desde a Constituição Estadual de 1947, a Fapesp já tinha sido pre-vista. A Fapesp é uma vitória da Academia Paulista, liderada na época por um grupo de cientistas, tendo à frente Adriano Marchini e Luiz Meiller. Nos outros estados, o apoio às Faps quase sempre é espasmódico, com al-gumas exceções: Ceará, Minas Gerais, Amazonas e, mais recentemente, Rio de Janeiro. Por quanto tempo? Quando este livro for publicado esse quadro pode ter mudado. Um Governador apoia, mas o próximo pode

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não apoiar e até fechar a FAP, como quase aconteceu em Brasília recen-temente. O que diferencia a Fapesp das outras é a sua independência de gestão, imune às alternâncias de poder político, o que não ocorre com nenhuma outra FAP no Brasil. Sei que vou, no mínimo, desagradar a mui-tos, mas esta é a verdade aos meus olhos. Por isso, São Paulo é um país dentro do outro. Hoje, é lamentável dizer, a maior prioridade brasileira indiscutivelmente é o futebol. A prova irrefutável desse fato é que quando foi decidido que a Copa do Mundo de 2014 ia ser no Brasil, a maioria dos estados, não se sabe como, encontrou dinheiro para construir ou adaptar estádios, para ter pelo menos uma partida da Copa entre os afortunados que sediarão o evento. Alguns desses estados não têm Fundação de Am-paro à Pesquisa.

W O R L D RANK UNIVERSITY COUNTRY SIZE VISIBILITYRICH

FILES SCHOLAR1 Harvard University 2 3 20 1 2 Massachusetts Institute of Technology 1 1 1 5 3 Stanford University 6 2 5 17 4 University of California Berkeley 7 4 28 27 5 Cornell University 4 5 14 33 6 University of Washington 12 7 3 68 7 University of Minnesota 9 12 4 16 8 Johns Hopkins University** 40 21 42 2 9 University of Michigan 8 8 32 21 10 University of Wisconsin Madison 3 9 12 53 11 California Institute of Technology Caltech** 10 15 13 19 12 University of Texas Austin 13 13 6 62 13 University of Illinois Urbana Champaign* 26 11 9 61 14 University of Pennsylvania 27 10 29 20 15 Carnegie Mellon University 5 31 2 98 16 Columbia University New York 20 16 15 86 17 University of California Los Angeles 15 17 22 82 18 University of Maryland* 30 27 18 37 19 Purdue University 23 32 11 47 20 Texas A&M University 41 35 8 29 21 Pennsylvania State University** 113 14 17 106 22 University of North Carolina Chapel Hill 33 18 21 163 23 Michigan State University 19 28 19 114 24 Indiana University* 14 23 41 154 25 University of Florida 21 37 16 88 26 University of California San Diego 22 33 24 92 27 University of Cambridge 28 20 61 123 28 University of Arizona 25 40 10 108 29 Rutgers University 32 39 7 132 30 Yale University 24 19 72 159 31 New York University 39 22 46 147 32 University of Southern California 16 42 53 54 33 University of Virginia 38 24 31 278 34 Duke University 33 36 25 153 35 University of British Columbia 66 43 30 52 36 University of Toronto 67 45 37 38 37 University of Oxford 48 30 40 137 38 University of Tokyo 17 63 59 35 39 University of Pittsburgh 87 41 48 42 40 Princeton University 74 25 66 136 41 Virginia Polytechnic Institute and State University 46 49 74 44 42 Swiss Federal Institute of Technology ETH Zürich 44 59 81 30 43 North Carolina State University 77 60 34 51 44 Georgia Institute of Technology 70 71 33 32 45 University of Colorado Boulder 65 47 27 168 46 University of Chicago** 83 26 68 269 47 University of California Irvine 71 46 38 143 48 University of Utah 11 53 60 272 49 Norwegian University of Science & Technology 111 73 64 22 50 University of Edinburgh 89 66 49 69

A Rural tinha uma vantagem adicional. Em frente, do outro lado da estrada, funcionava o Instituto de Ecologia e Experimentação Agríco-la – IEEA, vinculado ao Ministério da Agricultura. Muitos professores da Rural, como o Roberto Alvahydo, por exemplo, faziam suas pesqui-sas no IEEA e moravam na Rural. Outros só iam à Rural para lecionar e voltavam no mesmo dia ou no dia seguinte. No IEEA, encontrei o pri-meiro ambiente institucional que discutia ciência. A Johanna Dobereiner começou sua pesquisa na década de 1950, no IEEA: o melhor exemplo do que preconizava Milstein. Desacreditada pela maioria, com perseve-rança, escreveu uma das principais histórias de sucesso na agricultura brasileira, com a fixação biológica de nitrogênio em Leguminosas e, mais recentemente, em Gramíneas, que seus discípulos desenvolvem hoje. Um deles, ex-aluno meu e monitor da disciplina que eu lecionava na UFRRJ, Paulo Cavalcanti Gomes Ferreira, e Adriana S. Hemerly têm o projeto mais avançado de fixação biológica de nitrogênio em Gramí-neas, combinando o sequenciamento do genoma de Acetobacter, que fizeram com o Sucest de cana de açúcar. As ferramentas moleculares de hoje não estavam disponíveis para a Johanna naquela época. Levei anos para financiar esse projeto pela Finep. Uma burocracia interminável na

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– Os primeiros anos na pesquisa –

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Finep e na UFRJ. Esse é o projeto científico mais importante para a agricultura mundial e nunca teve o apoio que deveria.

O Dalmo Giacommetti, pesquisador do IEEA, tinha concluído um MSc na Universidade da Flórida, em Gainesville, e contribuiu signi-ficativamente para a citricultura brasileira. Um dos seus trabalhos, publi-cado no California Citrograph (GIACOMETTI, D.C., Stem-pitting thre-at of Brazil citrus. California Citrograph, v.46, p.243-244, 1961.), foi, à época, revolucionário. Dalmo mostrou que era possível proteger uma planta de citrus de uma virose severa com uma estirpe fraca deste vírus e assim assintomática. Muitos seguiram essa linha de pesquisa, em par-ticular o Guerd Muller, meu contemporâneo na Rural, e o Álvaro Santos Costa, do Agronômico de Campinas. Naquela época, estávamos amea-çados por várias doenças viróticas importantes (a Tristeza entre elas) e a alternativa que acabou prevalecendo, sob a batuta do Silvio Moreira do IAC, foi trocar os clones da época por clones novos sem doença. Hoje, a engenharia genética, sem se lembrar do Dalmo Giacommetti, faz plantas resistentes a vírus, expressando proteínas virais que, de alguma forma, protegem a planta de infecções pelo vírus provavelmente bloqueando receptores necessários para possibilitar a infecção viral. Atualmente, a saúde humana pode pensar em bactérias modificadas que expressem moléculas com grande afinidade para os receptores de H5N1. É preciso identificar que bactérias podem executar essa tarefa em humanos, como as endofíticas fazem em plantas. Elas existem em humanos. É preciso usar modelos de plantas para encontrar soluções para a saúde humana. Quando o Steward, na década de 1950, mostrou que havia células totipo-tentes em plantas, os médicos não deram muita bola. Hoje, se sabe que quatro genes fazem uma célula somática humana perder essa memória e funcionar como uma célula embrionária; e se fazem rotineiramente, no Brasil, clones de animais, a partir de células somáticas.

Em 1961, ganhei uma bolsa de Iniciação Científica do CNPq para trabalhar com o Dalmo Giacommetti. Era um projeto que eu achava ini-cialmente despretensioso do ponto de vista científico: caracterizar co-

leções de espécies olerícolas. Queria ir para Genética. Todos queriam ir para a Genética, depois que Watson e Crick descobriram, em 1953, o código genético. Achava a Fitopatologia da época muito centrada no controle químico. Visitávamos lavouras de tomate e recomendávamos um coquetel de agrotóxicos, mesmo se o tomate não estivesse doente. O coquetel incluía no mínimo dois inseticidas (um para mastigadores e outro sistêmico para sugadores), um fungicida e um espalhante adesivo, um óleo mineral para proteger o coquetel de uma lavagem pela chuva. A planta de tomate ficava azul. Muitos anos depois, ouvi do Marcos Ko-gan - também contemporâneo da Rural, um dos maiores entomologistas brasileiros, hoje, ao que saiba, trabalhando no Departamento de Crop Protection da Universidade de Oregon - em um Congresso Internacio-nal, no Brasil, a informação de que, desde a década de 1940, despejamos dezenas de milhares de toneladas de inseticidas clorados nas plantas para diminuir as perdas causadas pelas pragas. Essas perdas não diminuíram. Então, está claro: quanto mais agrotóxico pior. As pragas se tornaram resistentes. Ainda assim, gastamos mais de sete bilhões de dólares/ano em agrotóxicos no Brasil: líderes mundiais e a conta sobe a cada ano.

Em 1960, lendo um Yearbook de Agricultura do USDA, publi-cado em 1953, Plant Diseases, verifiquei que plantas podiam ser ge-neticamente resistentes a doenças. Infelizmente, não a insetos. Aceitei a bolsa do CNPq e o projeto porque minha intenção era atuar na área de melhoramento genético para obtenção de variedades de hortaliças portadoras de resistência genética a doenças. Esta atividade, que abra-cei mais tarde, tornou necessário estabelecer, inicialmente, coleções de germoplasma de hortaliças, introduzidas principalmente dos estados da Flórida e do Havaí, situados na mesma latitude do Rio de Janeiro, em-bora no hemisfério norte, nos Estados Unidos. As doenças que ocorriam lá, ocorriam no Rio de Janeiro. Esses recursos genéticos foram utiliza-dos como fonte de resistência às doenças mais importantes no estado do Rio de Janeiro, o que mais tarde conseguimos fazer com certo sucesso com a participação decisiva de outros pesquisadores da Rural, sob a

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liderança do Raul de Lucena Duarte Ribeiro. Foi a minha primeira rela-ção direta com os recursos genéticos, em 1961. Vinte anos mais tarde, o mesmo Dalmo Giacometti convidou-me para construir a engenharia genética de plantas no CENARGEN da EMBRAPA. Graduei-me em 1962 e fui convidado para trabalhar com o Dalmo Giacometti na área de Olericultura do IEEA – Instituto de Ecologia e Experimentação Agrí-cola. Depois de nove meses sem receber salários, fui contratado, em outubro de 1963, como engenheiro agrônomo do Ministério da Agri-cultura, lotado no IPEACS - Instituto de Pesquisa e Experimentação Agropecuária do Centro-Sul, que sucedeu ao IEEA. Nos meses sem salário, pendurávamos, no único restaurante de estrada que concordava com isto. Antes da EMBRAPA, que só seria criada dez anos depois, a ciência agropecuária era realizada por Centros de Pesquisa regionais, sendo o IPEACS o Centro da Região Centro Sul, com sede no Km 47. Com o Dalmo, velho amigo já falecido, por sua relação com a Flórida e com o Havaí aprendi, além do trabalho de coleção de germoplasma de olerícolas, que já desenvolvia como bolsista do CNPq, alternativas para o controle químico de pragas: o controle biológico que, por meio de um inimigo natural trazido da Flórida, funcionava muito bem para contro-lar a Orthezia praelonga, praga dos citrus. É difícil entender como essa área de tanto potencial para a agricultura é tão fraca, na EMBRAPA; Rose Monnerat à parte.

As instituições interagiam muito, particularmente do ponto de vista internacional, antes do mundo da propriedade intelectual que te-mos hoje. Nos anos de 1963 a 1965, ainda no IPEACS, estava conven-cido de que o projeto de melhoramento genético, que prenunciava certo sucesso, não chegaria aos agricultores porque não tínhamos uma lei de sementes. Iniciei estudos na área de Tecnologia de Sementes em 1963. O grupo mais forte nessa área estava localizado na Escola de Agrono-mia Eliseu Maciel, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Fiz outros cursos e quando voltei ao IPEACS, no final de 1964, estabeleci o primeiro La-boratório de Análise de Sementes, que não cheguei a chefiar porque fui aprovado, em junho de 1965, para ingressar na carreira de magistério superior da UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Convenci-me, nesses anos de estudos em Tecnologia de Sementes, que o Brasil estava no caminho errado ao “estatizar” a produção de semen-tes por influência do estado de São Paulo. A produção de sementes era estatizada nesse estado e, com a de algodão, a estatização funcionava com exclusividade: só o estado de São Paulo podia produzir sementes de algodão. Quando o estado de São Paulo produzia mais semente de algodão do que conseguia armazenar, carregava vagões ferroviários e passeava com a semente para cima e para baixo. Em 1965, o Brasil aprovou a sua primeira Lei de Sementes e tenho orgulho de ter partici-pado desse processo com o Ney Araújo, então Presidente da Agroceres, e Clovis Wetzel, da Universidade Federal de Pelotas, ambos já faleci-dos. Antes desta lei, se um saco de sementes fosse aberto e se encon-trasse terra misturada com a semente, não se podia fazer nada. Leis são importantes. A história da primeira lei de sementes é interessante. Todos queriam contribuir, estabelecendo níveis de germinação e pureza de sementes a serem reguladas por lei para cada espécie e região. Rapi-damente, a lei cresceu e se tornou de exercício que se avizinhava com-plexo para não dizer impossível. Parecia uma lista telefônica. Estava claro que estávamos no caminho errado. Resolvemos procurar um es-pecialista americano, que tinha longa experiência na elaboração de leis de sementes, nos Estados Unidos. Ele se chamava Al Carter e era pro-

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fessor da Universidade de Iowa. Mostramos a nossa lei. Ele riu e disse: “Uma lei de sementes só precisa de um parágrafo - o que está dentro da embalagem deve estar no seu rótulo”. Foi assim a primeira lei para regular o comércio de sementes no Brasil: dois parágrafos. O segun-do todos sabem: revogam-se as disposições em contrário. Uma dúzia de geneticistas construíra a agricultura brasileira: Romeu Kihl – soja; Ady Raul da Silva – trigo; Silvio Moreira e Dalmo Giacometti – citrus; Alcides Carvalho – café; Ernesto Paterniani e Ricardo Magnavacca – milho; Marcílio Dias e Flávio Couto – hortaliças; Clibas Vieira – feijão; Raul Moreira – banana; Frederico Menezes Veiga - cana de açúcar e Eleuzio Curvello – algodão. Eles, entretanto, só tiveram sucesso por-que o Brasil, há mais de quarenta anos, aprovou sua lei de sementes. Na base do sucesso da agricultura brasileira, está uma indústria de se-mentes construída a partir de 1965 e que tornou acessível, ao agricultor brasileiro, os avanços da ciência, particularmente da EMBRAPA, nas últimas quase quatro décadas. Aprendi que a genética não tem sucesso sem uma indústria de sementes que, infelizmente, falta na África. Todos os esforços internacionais nesse Continente esbarram nessa ausência e os financiadores do mundo não se dão conta dessa realidade.

– 3.1 - A genética brasileira

Disse antes que uma dúzia de geneticistas construiu a agricul-tura brasileira: a história brasileira não faz justiça, pelo trabalho que realizaram, a estes extraordinários cientistas que - a maioria, em um período de vacas magras, - conseguiram resolver problemas importan-tes, que constituíam ameaças para setores da agricultura, que sempre foram competitivos no Brasil. Não vou contar todas as histórias porque não cabem neste livro. Já falei na importância do Romeu Kiihl para a soja brasileira a qual, por suas mãos, saiu do Rio Grande do Sul para chegar ao Vale do Gurgueia, no Piauí, e ao norte do Mato Grosso, re-

solvidos, pela genética, os requisitos de foto, período que restringiam o plantio da soja no Rio Grande do Sul. Romeu felizmente continua ativo. Trouxe o conhecimento da genética de soja da Universidade do Estado do Mississippi, onde foi aluno de mestrado e doutorado, orientado por Edgard Hartwig, que morreu há três anos com 83 anos. É inacreditável e justo o que a Mississippi State University construiu sobre a memória de Hartwig, com justa razão (ver anexo). Eleuzio Curvello e Ricardo Maganvacca são da era EMBRAPA. Vou falar mais à frente sobre a incrível pessoa que foi Ernesto Paterniani. Alcides Carvalho trabalhou toda a sua vida, 52 anos, no IAC - Instituto Agronômico de Campinas. Sabia, antes de todos, que o Brasil teria que enfrentar a ferrugem do café. Foi para a Estação experimental de Oeiras, em Portugal, e fez todos os cruzamentos para obter variedades de café resistentes à fer-rugem. Quando ele chegou estava tudo pronto e o Brasil resolveu esse problema por causa do trabalho deste homem extraordinário. Carvalho nasceu em 1913 e foi agraciado com o Prêmio Nacional de Ciência e Tecnologia, em 1982. Em 1983, Alcides Carvalho recebeu, quando de sua aposentadoria compulsória, aos 70 anos, uma homenagem especial: o estado de São Paulo considerou-o “servidor emérito”, o que lhe per-mitiu continuar pesquisando e formando pesquisadores até 1993. Muito pouco, só mais dez anos para este homem que morreu pobre, porque os salários do IAC são ridículos. É importante ler um pouco da história deste homem em entrevista que ele deu, em 1987, à Ciência Hoje. Um homem como o Alcides Carvalho deveria viver no Copacabana Pala-ce, com uma Mercedes na porta e motorista, com assistência médica permanente, tudo pago pelo contribuinte ou pela indústria do café, que ele salvou da derrocada. Comparem o trabalho deste homem e o seu reconhecimento nacional com o do Hartwig.

A tristeza dos citrus entrou no Brasil na década de 1930. Conheci esta história com detalhes conversando com o Gerd Muller, meu con-temporâneo na Rural e braço direito do Álvaro Santos Costa, que tal-vez seja o maior virologista de plantas da história brasileira. O Dalmo

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Giacometti e o Silvio Moreira, não sozinhos, é verdade, encontraram as soluções que permitiram a sobrevivência da citricultura brasileira. Disse-me o Gerd: “a nossa citricultura está novamente ameaçada. Estou fora pela compulsória e não sei o que fazer. O problema do “greening” pode ser muito pior”. O Gerd está em casa. Uma enciclopédia sobre citricultura. Marcilio Dias e Hiroshi Ikuta são os pais da genética de hortaliças no Brasil. Trouxeram ou digeriram para o país toda a base ge-nética de macho esterilidade citoplasmática, o que possibilitou o desen-volvimento de híbridos das Brassicas e da cebola, no mundo. O Brasil, entretanto, nunca desenvolveu uma indústria de sementes de hortaliças de grande porte para utilizar esses avanços, já disponíveis na década de 1960. Ainda importamos quase tudo, e os excelentes trabalhos do Marcilio e do Ikuta não tiveram a capacidade de mudar o contexto que citei. Isto não significa dizer que não tenhamos avançado na genética de hortaliças, via ESALQ, em Piracicaba, e EMBRAPA Hortaliças, no Distrito Federal. Durante anos, pensei que o Distrito Federal seria uma região importante para a produção de sementes de hortaliças porque não chove de julho a setembro, como o Vale do São Joaquim, na Ca-lifórnia. De certa forma, isto me estimulou para vir para o Cerrado. Infelizmente, nada se desenvolveu no Cerrado comparável à Califórnia e, como vim tarde para Brasília, minha vida tomou outro rumo.

Nos Estados Unidos, conheci Charles Rick, em Davis, na Cali-fórnia. O pai da genética de tomate no mundo. O que mais impressio-nava no Charles Rick era a sua simplicidade. Quando morreu, como no caso do Hartwig, no Mississippi, a UCDavis fez uma Fundação com o seu nome com inteira justiça. O Bernard Fields, virologista de Harvard, teve a mesma deferência. Conheci o pai da cebola híbrida nos Estados Unidos, W. Jones, na década de 1960. Visitava uma empresa de pro-dução de sementes de cebola em El Centro, Califórnia, a Desert Seed Company, quando vi o Jones, que só conhecia de capa de livro. O dono da empresa confirmou, era ele mesmo. Perguntei o que ele, já aposen-tado, estava fazendo ali. Ele me disse: “aqui ele faz o que quer fazer e

ganha o que quer ganhar, desde que deixe o meu filho ir ao campo com ele, sempre que ele estiver disposto”. Nenhum dos geneticistas cita-dos que construíram a agricultura brasileira, tiveram este tratamento. O Brasil, de um modo geral, não trata seus cientistas como vi nos Estados Unidos. O que o Romeu Kihl, Silvio Moreira e Alcides Carvalho, para não falar dos outros, fizeram pela agricultura brasileira foi muito mais do que os cientistas americanos citados, fizeram pelo seu país. Não es-tou comparando a ciência de cada um, mas os resultados. A inteligência da genética brasileira, em algumas áreas como café, cana e citrus, que a EMBRAPA nunca abraçou, está nos Institutos como o Agronômico de Campinas, que tem uma política salarial pífia e não consegue atrair boas cabeças para ganhar salários de fome. Melhor que se integrassem à EMBRAPA e seus pesquisadores tivessem o mesmo nível salarial, para preservar as genéticas, que ainda não se perderam pelas mãos de algum governador tresloucado, como alguns que já passaram por São Paulo.

– 3.2 - A ditadura militar e a Rural de 1964

A Rural era uma Universidade fortemente politizada. Havia de-fensores do comunismo entre seus professores, como havia redutos ain-da simpáticos ao fascismo da década de 1940: professores que haviam estudado na Alemanha. Em 1963, havia uma aproximação dos estu-dantes com políticos cubanos, um deles convidado pelo Diretório dos estudantes para ministrar a conferência de abertura em um Congresso, organizado pelo Diretório. Os ânimos começavam a se acirrar. No fi-nal do ano, a turma da Agronomia escolheu como patrono o camponês brasileiro. Cheguei uma noite à Rural, já formado, e encontrei um forte movimento estudantil de apoio ao Brizola, que falava pela Emissora da Legalidade, nos primeiros dias da ditadura. Alguém tinha que levar uma carta de apoio ao Brizola. Ronaldo Coelho, meu amigo de infância, foi escolhido porque tinha uma motocicleta. Eu fui com ele, por soli-

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dariedade, com aquela carta no porta luvas, parando em cada quartel para revista. Quando chegamos ao Joá, o pneu da motocicleta furou e tivemos que dormir lá. A carta só chegou tardiamente, ao meio dia do dia seguinte. Um fracasso, a nossa missão subversiva.

Nunca tive nenhuma vocação comunista. Lia Bertrand Russel, filósofo, pai do trabalhismo da Inglaterra, que me ensinou que o real confronto será sempre entre o capital e o trabalho. Este confronto, que ainda persiste no cotidiano do mundo, teve, e ainda tem, variantes. En-tre elas, longos períodos em que o capital esteve inteiramente nas mãos dos governos, o que ainda ocorre em alguns países. Outras formas de forte opressão do trabalho pelo capital, como no século dezenove, fo-ram sendo gradualmente modificadas sempre pela reação do trabalho e nunca do capital. Não conheço nenhum caso na história em que o detentor do capital tenha chamado o trabalhador e oferecido um salário melhor. Há casos, entretanto, em que o trabalhador compra ações do ca-pital da empresa, o que é bom. Entretanto, está claro que a maior potên-cia mundial passa por uma revisão inevitável do seu capitalismo. Nos quase cinquenta anos em que acompanhei a história americana nunca imaginei que a classe média americana fosse dormir em barracas, como aconteceu na crise de 2008, e que os americanos defenderiam invadir Wall Street. Existem formas intermediárias de capitalismo em que o governo assume responsabilidades sociais importantes com os impos-tos que a sociedade transfere para ele; ou seja, existem formas em que os governos catalisam, com certo sucesso, a reação entre as duas partes sempre em confronto: o capital e o trabalho. Os melhores exemplos estão nos Países Nórdicos, onde o nível de corrupção é muito baixo. Di-fícil, no Brasil, onde se rouba até merenda escolar e seguro de defunto. Adolfo Barreto, meu irmão, diz uma coisa que nos deixa tristes, mas é verdade: o brasileiro se vende por um prato de comida.

Em 1964, estava convencido de que nada se poderia esperar de positivo de uma revolução de esquerda no Brasil, a exemplo do que já conhecíamos desde o início do século vinte, pela experiência de outros

países. Com o fim da União Soviética, a realidade se tornou ainda mais evidente mais tarde. Estava convencido, desde a minha juventude, por outro lado, que uma ditadura de direita seria também indesejável, como vimos durante o governo Vargas e de toda uma geração de ditadores, que “infestaram” o mundo durante algumas décadas. Aliás, o Brasil exorbitou com duas ditaduras que somaram quase quarenta anos. Am-bas diziam ser anticomunistas, mas trouxeram a estatização típica desse regime e não trouxeram benefícios para a saúde e educação, que eu vi em Cuba, por exemplo.

Quando a ditadura militar começou, em 1964, houve um confron-to não explícito entre as duas forças da Rural. O controle ficou nas mãos de um Coronel chamado Mendonça, que chefiava o quartel de Paracam-bi. Foi nomeado interventor, um professor de estatística da ESALQ. Nun-ca entendi porque ele, um bom e conceituado professor de estatística, aceitou esse cargo. Foram anos difíceis em que a Rural, que já era fraca perdeu, como várias outras Instituições científicas brasileiras, inteligên-cias importantes, que acabaram extraditadas, algumas como o professor Américo Grosszmann, um dos poucos PhDs da Rural, título que conse-guira em Cornell, e que de comunista não tinha nada. Perdemos outros como o Fernando Braga Ubatuba e o Hugo de Souza Lopes, entre outros. Era difícil ensinar na Rural na época da Ditadura. Todas as turmas tinham um informante que, no primeiro dia de aula, começava a fazer perguntas para descobrir a sua tendência política. Em pouco tempo, todos estavam identificados, e quando íamos almoçar no refeitório, a fila parava quando alguém tinha que sentar com um “dedo duro”. O exercício da ditadura, sob a tutela do Coronel Mendonça e de um interventor que não mandava, era apoiado por professores da ala anticomunista. Estes professores cos-tumavam acender as luzes do cinema durante um filme e retirar supostos subversivos. Voltei à Rural em 2010 e, para a minha alegria, vi alguns alunos contemporâneos meus que julgava mortos. Não vi todos. Um de-les, Presidente do Diretório Acadêmico, no início da ditadura, tinha um crachá com sua fotografia de 1963, que dizia: “acredite: eu sou o Marcio

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Biasoli”. Estava tão diferente, com uma longa barba branca, que nunca o reconheceria na rua. Ser professor da Rural, de 1965 a 1968, significa ter passado por anos difíceis. De bom, foi o início do tempo integral e a dedicação exclusiva, em 1965; poucos se lembram do Jarbas Passarinho como Ministro da Educação (o Reitor já era o Paulo Dacorso Filho), que possibilitaria a consolidação da ciência nas Universidades brasileiras nas décadas subsequentes. Se não fizemos mais foi pelas razões que já citei antes: a maldição do sistema federal. Nenhum financiamento.

– 3.3 - A pós-graduação no Brasil

nas décadas de 1960 e 1970

O contexto da década de 1960 era evidente: se, por um lado, havia um livre intercâmbio de recursos genéticos e uma evidente dis-posição de Universidades americanas em interagir com Universidades brasileiras - Universidades do Arizona com a Universidade Federal do Ceará; a Universidade Federal de Viçosa coma Universidade de Purdue; a Universidade de Wisconsin com a UFRGS, por outro lado, praticamente não havia nenhum financiamento para a pesquisa agro-pecuária, antes da criação da EMBRAPA. O orçamento do IPEACS, onde trabalhei de 1963 a 1965, ficava retido no MAPA até dezembro e quando chegava, era impossível executá-lo de forma adequada e sem “química”. Assim, ainda que tenha sido instituído o regime de tempo integral e dedicação exclusiva nas Universidades, em 1965, era um bom momento para consolidar a formação profissional, particularmente para os que trabalhavam com agropecuária. Ainda era fácil conseguir bolsas no exterior, mesmo para mestrado, por incrível que pareça. O regime de tempo integral e dedicação exclusiva, instituído em 1965, permitiu a construção de carreiras acadêmicas, por concurso, em Universidades e estimulava a pós-graduação, menos na Rural, que não tinha convênio com nenhuma Universidade americana.

Quando entrei na Rural, por concurso, para Instrutor de Ensino Superior, em 1965, a Universidade tinha poucos mestres e, no início da década de 1970, menos de cinco doutores. Em 1970, tínhamos somente cinquenta e quatro cursos de doutorado em todo o Brasil. O programa de pós-graduação brasileiro ganhou fôlego a partir da década de 1980.

Brasil: Evolução dos cursos dE mEstrado E doutorado,

dE 5 Em 5 anos, 1970/2005

Por esta razão, a produção científica de brasileiros, no início da década de 1980, era meros 0.4% da produção mundial. Em trinta anos, esse número foi multiplicado por seis. Nada no Brasil foi multiplicado por seis em quarenta anos, mesmo as copas do mundo: ganhamos a primeira em 1958 e a quinta em 2002.

Em 1965, a Universidade do Estado do Mississippi promoveu, com recursos da USAID, uma viagem aos Estados Unidos para que jovens pesquisadores brasileiros conhecessem a indústria de sementes no Brasil, que ainda não existia, a não ser o sistema estatizado de São Paulo, o que desestimulava o investimento privado. Fui a esta viagem e conheci o que era uma Crop Improvement Association, sem fins lu-

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crativos, que certificava a produção de sementes nos Estados Unidos. Semente certificada só podia ser multiplicada por quatro gerações, cada geração constituía uma classe com uma etiqueta colorida no saco: ver-melha, amarela, azul e verde. Quero ressaltar a importância da Univer-sidade do Estado do Mississippi na consolidação de uma indústria de sementes no Brasil. Sem uma indústria de sementes seria impossível, como já disse, fazer chegar a genética brasileira às mãos do agricultor. Uma geração de jovens cientistas brasileiros foi treinada na Universida-de do Estado do Mississippi para estabelecer a indústria de sementes no Brasil e foram lideres importantes no desenvolvimento da agricultura brasileira.

artigos BrasilEiros puBlicados Em pEriódicos ciEntíficos indExados na thomson/isi, Em rElação à

américa latina E ao mundo, 1981-2008

Fonte(s): Incites, da Thomson Reuters.

Elaboração: Coordenação-Geral de Indicadores - ASCAV/SEXEC - Ministério da Ciência e Tecnologia. Atualizada em 27/11/2009

Para realizar seu trabalho no Brasil, a Universidade do Estado do Mississippi fez um convênio com a Universidade Federal de Pe-lotas, sob a liderança do Clovis Wetzel, no Brasil, e do Dean Bunch, na Mississippi State University, uma Land Grant. A Universidade do

Estado do Mississippi, por meio do seu Laboratório de Tecnologia de Sementes, chefiado por James Delouche, estava anos à frente da reali-dade tecnológica utilizada pela indústria de sementes de qualquer país do mundo, mesmo a americana. Todas baseavam seu controle de quali-dade na germinação e pureza de seu produto, dando pouca importância à qualidade fisiológica da semente, particularmente aos conceitos de vigor e envelhecimento de sementes como uma característica inexorá-vel. Ambas as áreas estiveram na agenda do ”Seed Technology Labora-tory”, da MSU, durante décadas, e foram objeto de teses de dezenas de brasileiros, nessa área. Curiosamente, a indústria de sementes brasileira ainda não utiliza vigor como um atributo de qualidade de sementes. O Estado do Mississippi era um dos mais pobres dos Estados Unidos e os anos de 1960 tinham sido marcados pelo assassinato do John Kennedy, que havia ocorrido em novembro de 1963. Não queria ir para um estado pobre, conservador, racista, ainda que a fisiologia de sementes fosse boa. Estabeleci uma condição: iria para o Mississippi, mas a minha tese seria com sementes de hortaliças na Califórnia. O Dean Bunch topou. Fui com a Maria Lucia grávida da Elisa, que nasceu em maio de 1968, no Mississippi, quando eu fazia exame final de Seed Physiology. Reali-zei, como bolsista da AID, o ”Master of Science” na área de Tecnologia de Sementes, na Universidade do Estado do Mississippi, nos Estados Unidos, no período de 1968 a 1970, com ótimas notas. Não havia gran-de desafio em conseguir notas tão altas em uma Universidade como o Mississippi, onde a competição estudantil era menos acirrada. O desa-fio seria mais tarde, na Califórnia.

No período em que vivi no Mississippi, foram assassinados o Bob Kenedy e o Martin Luther King. Conheci os “red necks”. Na noite em que o Luther King foi assassinado, estava na biblioteca e ouvia gospel cantado pelos negros, que celebravam uma missa em um templo para todos os cultos, dentro da Universidade, em memória do Luther King. De repente, o gospel começou a se misturar com o Dixie, que os sulistas entoavam durante a guerra da secessão. A música foi aumentando e uma

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pequena multidão de “red necks” chegou à praça, na frente da biblioteca, onde a bandeira americana estava hasteada a meio mastro. Trocaram a bandeira e hastearam a dos confederados. Os mais exaltados queimaram a bandeira americana. Depois, os negros tiveram que terminar prematu-ramente o culto ante a violência dos manifestantes, que apedrejaram a igreja. A polícia assistia a tudo. Entrou no carro e se afastou do incidente. Quem falasse com preto era taxado de “negro lover”.

Embora no Mississippi, iniciei estudos sobre fisiologia de se-mentes de cenoura na Califórnia, com a assistência do Dr. John Atkins, da ”Keystone Seeds”, onde trabalhei para obter material para a tese, no período de julho a setembro de 1968. Desenvolvi experiência importan-te na rotina subjacente à produção de sementes de hortaliças do Estado da Califórnia. Conheci, então, o Dr. James F. Harrington, que mais tarde estimularia meus estudos na Universidade da Califórnia - Davis, em Fisiologia de Plantas. Minha tese em qualidade fisiológica de sementes de cenoura, realizada sob a orientação do Dr. James F. Hunter, da ”Mis-sissippi State University”, revelou o nível de perda de vigor que ocorre precocemente em sementes de cenoura antes da colheita, ainda no cam-po, e teve impacto na indústria de sementes da Califórnia. Relevantes modificações no processo de produção, colheita e beneficiamento de sementes desta Umbelífera, resultaram dessa simples tese. Na MSU, conheci o Romeu Kiihl, que realizou mestrado e doutorado em genética de soja com o Professor Hartwig, o qual, como já disse, é o maior ge-neticista dessa leguminosa em todo o mundo. Começa, nessa iniciativa, a ameaça que mais tarde o Brasil passaria a constituir para os Estados Unidos na produção de soja. Romeu Kiihl foi o pai da soja no Brasil.

De volta ao Brasil, em 1970, tudo parecia tranquilo. Emprestei um pouco do meu tempo para a administração superior da Rural, como membro do Conselho de Pesquisas da UFRRJ e, como tal, represen-tante dos pesquisadores da UFRRJ, no Conselho Universitário da Ins-tituição, até 1973. Depois de quase quatro anos dedicados ao ensino e à pesquisa na UFRRJ, voltei aos Estados Unidos para iniciar o PhD

na Universidade da Califórnia, em Davis, em Fisiologia de Plantas, a partir de setembro de 1973, com mulher três filhos e bolsa da EMBRA-PA, a única instituição brasileira que tinha uma estratégia robusta de pós-graduação. Mais de 1200 foram treinados no exterior. Financiava bolsas até para os que não eram da EMBRAPA, o que era o meu caso. Hoje, dez em dez falam bem da EMBRAPA por tudo que ela realizou nos últimos quase quarenta anos. Hoje, a EMBRAPA é uma unanimi-dade e nenhum acadêmico critica a EMBRAPA. Na década de 1970, os acadêmicos a chamavam “filha da ditadura”. Já encontrei Secretário no MCT que me disse que o único problema da EMBRAPA era não fazer parte da Academia. Até hoje, não entendo o que ele quis dizer com isso. Quando comparamos a nossa ditadura com a dos nossos “hermanos” é forçoso reconhecer que a nossa teve alguns méritos. A EMBRAPA foi uma dessas iniciativas que, se não fosse estabelecida na ditadura, difi-cilmente o seria em outra época.

O ano de 1973 marcou o início da engenharia genética nos Esta-dos Unidos e no mundo, com os resultados de Herbert Boyer relativos à expressão de insulina em Escherichia colli. Rapidamente, ele criou a GENENTECH e as ações na bolsa explodiram. Quando assistimos à conferência, no Departamento de Bioquímica de Davis, alguns se le-vantaram e protestaram, dizendo que os experimentos não poderiam ter sido realizados porque não havia regras de biossegurança nos laborató-rios. Todos vimos que o mundo da Biologia iria mudar radicalmente. Os primeiros dez anos da engenharia genética, nos Estados Unidos - e isto significa dizer no mundo - foram marcados por inúmeras controvérsias. O UCSystem não estava preparado para ver seus professores privatiza-rem a ciência e ficarem ricos da noite para o dia. A academia de Davis reagiu pela voz de um de seus mais renomados professores de Bioquí-mica: Paul Stumpf, que dizia que as teses estavam sendo defendidas a portas fechadas e os estudantes impedidos de publicar seus resultados. Foi a falta de biossegurança que provocou a Asilomar Conference on Recombinant DNA, em fevereiro de 1975, em San Diego, organizada

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por um dos pais da tecnologia, Paul Berg que, mais tarde, em 1980, dividiria o prêmio Nobel em química com Walter Gilbert e Frederick Sanger. A conferência tinha a intenção de discutir os possíveis prejuízos que poderiam advir do uso indiscriminado da tecnologia do DNA re-combinante em humanos. Embora não aberta ao público em geral, como os modestos alunos de doutorado, como eu, por exemplo, cerca de 140 pessoas se reuniram entre biologistas, médicos e advogados. A confe-rência teve o mérito de exigir que todos os laboratórios voluntariamente utilizassem protocolos para garantir o uso seguro da tecnologia do DNA recombinante. O tema foi parar no NIH – National Institute of Health - que produziu, em prazo curto, esses protocolos que estão em uso desde a década de 1970. Depois da conferência de Asilomar e dos protocolos do NIH os ânimos se acalmaram. Ainda assim, recentemente, houve um óbito na Pensilvânia, por recombinação viral em um experimento de terapia gênica. Na verdade, essa era a maior preocupação dos pais da tecnologia: uso de vetores virais em terapia gênica. Os problemas não acabaram nesse ponto. Muito foi prometido e muitas decepções se acu-mularam em função de falsas promessas. Vou citar algumas a que as-sisti mais de perto. Fui convidado, pelo Dr. William Breidenbach, para o recém-estabelecido PGL - Plant Growth Laboratory, que foi criado por estímulo da engenharia genética. Este laboratório fez convergir, de vários departamentos da UC Davis, inúmeros cientistas com interesse em Biologia Molecular; Fisiologia e Bioquímica Vegetais para fazer um grande projeto na nova área. Entre eles, Ray Valentine, que trabalhava em Fixação Biológica de Nitrogênio em Gramíneas, que veio de UC San Diego com toda a sua equipe e suas famílias e com recursos para desen-volver seu projeto, que tinha como modelo Klebsiella pneumoniae. Havia uma grande expectativa de inserir os genes NIF no genoma de cloroplas-tos ou no genoma cromossomal para permitir que Gramíneas fixassem ni-trogênio. O exemplo do Valentine com uma equipe grande de cientistas, com suas famílias, em um único projeto, nunca saiu da minha memória e tentei copiá-lo mais tarde no CENARGEN. Entretanto, a equipe do Valentine, ainda que extremamente competente em biologia molecu-

lar, nunca teve sucesso para obter Gramíneas fixadoras de nitrogênio; o que a Dobereiner, com brilhantismo, conseguiu com outros organismos mais tarde. Quando Dobereiner começou a mostrar seus resultados com Azospirillum foi uma decepção no laboratório do Valentine. Os genes NIF nunca funcionaram em Gramíneas, embora transferidos pelo Co-cking em Nottingham.

Johanna Dobereiner (esquerda), uma das maiores cientistas brasileiras aparece na foto recebendo uma comenda da Ordem do Mérito Judiciário. Modesta diante da extraordinária agenda de sucesso que realizou em Fixação de Nitrogênio em Leguminosas e Gramíneas na EMBRAPA , que começou antes da criação da instituição, e que mesmo depois da sua morte em 2002, continua dando frutos pelas mão dos seus discípulos.

Outras duas grandes decepções estavam reservadas para os la-boratórios de Davis. Entendia-se ser possível selecionar, em cultura de tecido, células resistentes a soluções salinas que dariam origem a plantas também resistentes à salinidade. Vi um grande experimento no

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Departamento de Agronomia, com plantas de alfafa potencialmente re-sistentes à salinidade, ser pulverizado com uma solução salina. Não sobrou uma planta. Essa expectativa demonstrava total desconhecimen-to de Biologia do Desenvolvimento. Uma falsa promessa retumban-te, que revelava também total desconhecimento dessa disciplina, veio do Peter Carlson, pai dos protoplastos, em Michigan, que entendia ser possível simplesmente pela remoção da parede celular de células vege-tais selecionar mutantes de células vegetais em cultura como se fossem bactérias. Cobrava quinhentos dólares por conferência e naquele tempo era muito dinheiro. Nunca se desenvolveu uma planta geneticamente modificada importante a partir de protoplastos, que hoje é uma tecno-logia quase esquecida. O Plant Growth Laboratory resolveu atacar um grande desafio da engenharia genética: não se conseguia regenerar soja a partir de cultura de tecidos. Como Davis tinha em seus muros os pais dos hormônios vegetais (com exceção do Frederick Steward de Cor-nell, que lançou o princípio da totipotência em células vegetais tendo cenoura como modelo), os cientistas do PGL se reuniram e desenharam um elegante experimento com um gradiente de todos os três principais hormônios vegetais (IAA, Giberellin e Citokinin) e submeteram soja em cultura de tecido a este gradiente. Postulavam que alguma combi-nação daria certo e “voilà”, eis que surge uma plantinha em certo gra-diente que foi saudada com entusiasmo. O próprio Steward, que dava uma conferência em Davis, foi olhar o resultado. Chamou os pais do experimento e disse: “pode ser que este experimento repetido dê certo, mas esta planta é de fumo”. Correria para cancelar a ”press release” que tratava esse experimento como o primeiro grande feito do PGL. Que me lembre, o experimento nunca mais foi repetido. Da mesma forma, em Israel, me ofereceram vacina contra aftosa por engenharia genética há trinta anos. Nunca aconteceu.

Não quero minimizar a importância do estabelecimento do PGL. Outras coisas deram certo e o exercício de convergência, e outros que conheci na UC Davis, tiveram profunda influência em toda a minha car-

reira, percepção e atuação profissional posterior. Na verdade, na década de 1970, muito se prometia e pouco se entregava por falta de ciência. Em 1976, fui a Corvalis/Oregon apresentar os resultados da minha tese. À noite, houve um “simpósio” em que compareceram todos os especia-listas de engenharia genética de plantas, do mundo. Cabiam dentro de uma sala não muito grande. Depois de algumas horas de reflexões sobre o futuro, admitiram que tudo, no futuro, iria ser feito em tubo de ensaio. Nem uma indústria de sementes seria mais necessária. Nem mesmo o melhoramento genético. As plantas do futuro seriam obtidas por va-riação somaclonal em placas de Petri. Eu, ali sentado, provavelmente o único agrônomo, vi, com clareza, que faltava muita ciência, particu-larmente biologia do desenvolvimento, para que chegássemos àquelas metas. Um delírio que colocou a engenharia genética e o melhoramento genético em lados antagônicos. Na verdade, nada foi obtido por varia-ção somaclonal ou cultura de protoplastos. Essa conduta, repito, criou um abismo entre a genética clássica e a engenharia genética, que leva-mos anos para neutralizar. A genética passou a ver na engenharia gené-tica sua principal ameaça.

Sempre procuro aglutinar competências complementares para somar massa crítica ao conhecimento amplo em biologia, como faziam em Davis. A biologia deve convergir para obter os melhores resultados, como vou explicar mais tarde. Quando iniciei meus trabalhos de tese em biologia molecular: isolamento, caracterização e síntese ”in vitro” de globulinas 11S de sementes de soja (Glycine max L.), Davis oferecia exatamente isto. Verifiquei que tinha que aprofundar meus conhecimen-tos em imunologia, o que fiz com o Dr. Terence Murphy, do Departa-mento de Botânica da UC Davis, e em síntese “in vitro” de proteínas, a partir de polissomos, com o Dr. Richard Jones, do Departamento de Olericultura da UC Davis, recém-chegado do laboratório do Dr. Brian Larkins da Universidade de Purdue, pioneiro nessas pesquisas com mi-lho. Todos faziam parte do PGL e isso era superconfortável. Meu tra-balho de tese foi apresentado em Davis, em seminário que recebia, na

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audiência, o Dr. Robert B. Goldberg, que se transferira, recentemente, da Universidade de Wayne/Detroit, onde estudava complexidade de ge-nomas, para a UC Los Angeles.

Bob Goldberg resolveu adotar o modelo que utilizei na minha tese – “Seed Storage Proteins” – em suas pesquisas na UCLA, onde ele trabalhou, posteriormente, por mais de três décadas com extraordinário sucesso, o que o levou, com justiça, à Academia de Ciências dos Estados Unidos. Com o Dr. Goldberg, antes de voltar ao Brasil, realizei estágio em Los Angeles, em 1976, para ampliar meu treinamento em biologia molecular, na área de isolamento de RNAs - mensageiros de proteínas de reservas de sementes. Dez anos mais tarde, na década de 1980, voltei como bolsista da ”Rockfeller Foundation”, para realizar meu pós-dou-toramento no seu laboratório. Somos grandes amigos. Um dos maiores mestres, que já tive, que criou o Seed Institutte integrado por seus exce-lentes ex-alunos e ainda ativo. Minha tese foi defendida em 1977 e o UC System permitiu que William Breidenbach, Richard Jones (ex Purdue) e Robert B. Goldberg (UCLA) figurassem em meu comitê de tese, o que causou certo constrangimento à academia da UC Davis.

A experiência na Universidade da Califórnia consolidou dois conceitos na minha formação profissional: o primeiro, relativo ao mo-delo UC System de pós-graduação, um sistema aberto, composto de ”Graduate Groups” (grupos ou núcleos de pós-graduação) que envol-vem e promovem integração interdepartamental e interinstitucional já que todos os ”campi” da Universidade da Califórnia integram este sistema. Pós-graduação em rede, na década de 1970, mesmo antes do advento da informática e da Internet! O UCSystem tinha uma linha te-lefônica exclusiva que chamavam “tieline”: ligava-se para qualquer um no UCSystem, via tieline, e os cientistas de Davis diziam com orgulho “qualquer coisa que você queira fazer em ciência procure pela “tieline” que alguém está fazendo no UCSystem”. Utilizei esse modelo para criar o RENORBIO recentemente, em 2005, já com a ajuda da INTERNET, como vou detalhar mais tarde.

PLant moLeCuLar BioLogy (Junho 6 -11 - da esquerda Para direita)

Fila 1 - B. Ward, a. siegeL, r. fraey, frank Cannon, d. LonsdaLe, d. verma, B. Larkins, t. haLL, eLai-ne toBin, B. goLdBerg, h. sanger, W. Werr, m. freeLing, i. furner, a. garCiaruBio, r. BerLani, tom sims, e. mooz, P. CoLLins, L. LeutWiLer.

Fila 2 - J. harada, L. dure, g. heLmer, r. sChiLPeroort, a. handa, g. WuLLems, P. Peterson, m. van montagu, i. Potrykus WaLt ream, karen hoWard, r. hammond, donaLd miLes, J. mottinger, B. tayLor, andyJaCkson, r. fisCher, n. murai, L. tayLor, r. Johns.

Fila 3 - Luiz herrera-estreLLa, m. yeLton, k. kindLe, m. sChuLer, L. vodkin, s. sPiker, t. guiLfoyLe, r. nagao, L. CrossLand, J. hirsChBerg, CandaCe CoLLmer, C. somerviLLe, m. Wu, C. sChmidt, L. de Castro, Jeff Bennetzen, mary aLLeman, s. evoLa, r. quatrano, d. Bisaro.

Fila 4 - h. BaumLein, P. ConLey, r. PohLman, andreW hiatt, m.Byrne, t. PaLva, B. Boston, e. WurtzeL, B. hohn, J. PoLaCCo, a. simon, B. goodman, a. BranCh, BoB symons, a. rafaLski, W. BroWn, g. CoLLins, g. nester, steve rogers.

Fila 5 - george Bruening, n. nieLson, P. stasWiCk, marCi LiLLis, L. gehrke, Linda thomashoW, Barry CheLm, n. young, s. Poethig, g. gaLau, r. meagher, r. riedeL, Jan Leemans, L. Comai, a. hoWarth, W. Barnes, J. miksChe, s. misChe, roBin hightoWer, L. WiLLmitzer, k. maCky.

Fila 6 - n. yadav, diriCe, d. shattuCk-eidens, s. heinz, P. moses, f. nagy, J. siLverthorne, a. Cheung, m. shannon, P. Chourey, C. Basset, B. kottorn, d. kLessig, r. fLaveLL, fred auseBeL, B. staskaWiCz, d. Bourque, B. mattheWs, L. hoWard.

Fila 7 - June medford, s. geLvin, J. aLdriCh, P. quaiL, s. Curtis, a. Binns, J. kemP, diCk BaCker, r. Christofferson, n. Brisson, BoB iyer, r. Levin, P. goLdsBrough, J. okamuro, g. BroWn, C. reeves, d. roBertson . d. hiLdeBrand, david garfinkeL.

Em 1984 compareci a Gordon Conference, em New Hampshire. o mais importante Con-gresso sobre Biologia Molecular de Plantas, convidado pelo Bob Goldberg. Na foto apa-recem os mais importantes cientistas da área, que em 1977, quando defendi minha tese, cabiam em uma sala média. Sou o sexto na terceira fila da direita para a esquerda. Bob Goldberg é o décimo sentado na primeira fila da esquerda para a direita.

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O segundo exemplo que absorvi do ”Plant Growth Laboratory” foi sua estratégia voltada para promover integração interdisciplinar para o desenvolvimento da biotecnologia, somando massa crítica e comple-mentando competências, fórmula vitoriosa também para competir para a captação de recursos, o que também introduzi com avanços possíveis, agora, na era da WEB, no RENORBIO. A revista Science publicou, em 2008, uma comparação entre a produção científica de grupos que têm in-teração multi-institucional com grupos em que esta interação não existe. Verifica-se que, nos últimos trinta anos, a produção científica dos pri-meiros é ascendente e a do segundo grupo é descendente. Verifiquei que estamos no caminho certo.

Conclui o PhD na UC Davis com ”grade average A minus” (3.7) e regressei ao Brasil em 1977. Quando voltei para o Brasil verifiquei que o meu salário não dava para sustentar a minha família. Tive que trabalhar, pela primeira vez na minha vida, como consultor para o setor privado na área de fisiologia vegetal na Sociedade de Engenharia IMESTER Ltda. O projeto visava a estabelecer instalações de unidades frigoríficas para conservação de fruteiras de clima temperado, particularmente maçã, no estado de Santa Catarina, sob contrato, para a CIBRAZEM - Companhia Brasileira de Armazenamento. Esses estudos serviram de base para o desenvolvimento extraordinário que a produção de maçã representa hoje para o país. Fui seduzido quando visitei São Joaquim, em Santa Catari-na. Na época, as macieiras não tinham mais do que meio metro de altura. Na minha infância, maçã era importada da Argentina. Havia uma época no ano em que importávamos o que havia de pior. Tudo mudou com o crescimento da produção de maçã em Santa Catarina como profetizara o Americo Grossmann.

Na Rural, felizmente fui promovido a Professor-Adjunto da UFRRJ, mas não dispunha de recursos para estabelecer um laborató-

Robert B.Goldberg , com justiça pela trabalho relevante que prestou na formação de re-cursos humanos brasileiros em seu Laboratório na UCLA, recebeu do Governo Brasileiro pelas mãos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a Ordem Nacional do Mérito Cien-tífico. Na foto ele aparece durante o evento ao lado do Vice Presidente Marco Maciel.

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rio e realizar pesquisas, na área de engenharia genética de plantas, na UFRRJ, área, então, praticamente desconhecida no Brasil. Nenhuma planta havia, até 1977, sido geneticamente modificada. Quando con-vidado, em 1977, pelo Marcelo Barcinski para uma conferência sobre engenharia genética de plantas, encontrei uma audiência incrédula. Per-guntavam por que eu tinha tanta certeza que estas plantas seriam obti-das no futuro. Respondi que, se a engenharia genética havia chegado às bactérias e leveduras as plantas estavam no ”pipeline”. O Maury Miranda, que assistia em pé, na porta, me chamou e disse: “o pior que pode acontecer com você é não ter um laboratório para trabalhar”. Abriu o seu laboratório para que eu trabalhasse com proteínas de feijão, enquanto ele trabalhava com o complexo Bitorax de Drosophilla sp. Quando pareci assustado com o convite, ele, com a sua sabedoria, dis-se: “é tudo a mesma coisa”. Vinte anos depois, na era genômica, todos concordam com o Maury. Em 1977, antes do advento da era genômica, só o Maury enxergava essa evidência. Por dois anos, trabalhei no Ins-tituto de Biofísica da UFRJ - Universidade Federal do Rio e Janeiro, como professor-visitante, atendendo ao generoso convite do saudoso Professor Maury Miranda, um dos pioneiros da biologia molecular apli-cada ao conhecimento da biologia do desenvolvimento em organismos superiores no Brasil1.

Voltei à UFRRJ em 1979 e, com auxílio do CNPq, foi possível estabelecer condições laboratoriais mínimas no Departamento de Hor-ticultura da UFRRJ, para desenvolver pesquisas voltadas para a análise da variabilidade de proteínas de sementes em germoplasma de feijão (Phaseolus vulgaris L.). Passei a colaborar regularmente com os cursos de pós-graduação em Ciência do Solo e Tecnologia de Alimentos da UFRRJ, lecionando a disciplina Bioquímica Vegetal e correlata. Re-começava minha carreira de pesquisa e pós- graduação em bases um

1 O Professor Maury Miranda, já falecido, trabalhava desde o início da década de 1970 com genes homeóticos do complexo bitorax de Drosophilla sp. , como modelo para entendimento do processo de expressão dos chamados "Early Genes", o mesmo modelo que produziu recen-te Prêmio Nobel para um cientista da Caltech.

pouco melhores. Nessa ocasião, fui eleito representante dos professo-res-adjuntos da UFRRJ, no Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão da Universidade e, a partir de 1980, fui também indicado como professor credenciado pelo Conselho de Pós-graduação em Genética, do Instituto de Biologia da UFRRJ.

No início da década de 1980, houve uma longa mobilização de professores contra a Reitoria. O motivo: a morte do estudante George Ricardo Abdala, atropelado na rodovia que passa em frente ao campus. Quase imediatamente, os estudantes se mobilizaram, pedindo maior segurança no campus universitário, melhoria no atendimento médico e no Posto de Saúde. Olhando retrospectivamente, eram reivindica-ções banais, que poderiam ser resolvidas com relativa tranquilidade. Na noite do dia 20 de setembro de 1979, o estudante George Ricardo Abdala morreu vítima de um atropelamento na Rodovia Rio-São Paulo, no trecho entre a Rural (km 47) e o km 49, onde residia boa parte dos alunos não alojados da Universidade: trecho, à época, mal sinalizado e pouco iluminado. Os alunos, sob o impacto da morte do colega e incon-formados com os graves problemas de segurança, organizaram-se para reivindicar, junto à Reitoria, melhores condições de acesso à zona re-sidencial (ciclovia e iluminação), policiamento mais efetivo e aumento do número de médicos no ambulatório da Rural. Foram formadas várias comissões para irem às salas de aula explicar as propostas. No Instituto de Zootecnia, um grupo de alunos se encontrou com o jovem profes-sor Walter Motta Ferreira, quando ia entrar na sala do professor Edson de Assis Mendes, que ministrava a disciplina de Zootecnia II. Amigo particular do estudante morto, o professor, visivelmente em estado de tensão, após ter passado a noite no velório, prevendo a possibilidade de ocorrer algum tumulto, propôs transmitir pessoalmente o aviso. Em tro-ca, os alunos deveriam se retirar do Instituto. Porém, quando o profes-sor Walter estava fazendo a comunicação, um dos alunos da comissão entrou na sala de aula e criticou o Serviço Médico da Universidade. O clima era de tensão. Num gesto inesperado, os alunos da turma se reti-

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raram da sala de aula. O professor Edson comunicou o fato ao subchefe do Departamento de Produção Animal, professor José Alberto Baptista, que o aconselhou a permanecer em sala até o fim do período e lançar falta aos alunos que se retiraram. Na mesma tarde, procurou o professor Walter e o aconselhou a se manter distante dos desdobramentos que os fatos teriam. O professor Walter Motta Ferreira foi sumariamente de-mitido pelo Reitor, Arthur Orlando Lopes da Costa. O episódio tomou conta da Universidade por quase um ano e sobre ele todos os membros da comunidade foram chamados a se posicionar, assim como o próprio governo e a sociedade fluminense. Entramos em greve contra o Reitor e não demos as notas no fim do ano. Ninguém colou grau em dezembro. Fomos todos parar na Policia Federal para tocar piano. Os mais jovens, para quem direciono este livro, talvez não saibam que tocar pianos é deixar suas digitais na Policia. O delegado de plantão começou o inter-rogatório: nome? Geraldo Dusi. Profissão? Engenheiro agrônomo. For-mação? Ph.D. Ele parou e chamou o segundo: Nome? Jair Rocha Leal. Profissão? Engenheiro agrônomo, Formação? PhD. No quarto PhD, ele parou e disse: “todo o mundo embora. Tanto ladrão e eu prendendo um monte de PhDs. Fora todo mundo”. Acabamos dando as notas e foi um final feliz. Os alunos nunca estiveram contra nós. Muitos pais, sim.

– 3.4 - A EMBRAPA

A EMBRAPA foi criada em 1973, em plena ditadura, por cien-tistas principalmente das regiões Sudeste e Sul. Ao invés de centros re-gionais, como tínhamos anteriormente, a EMBRAPA se estruturou por culturas: soja, trigo, algodão. Pensei no que aprendi com o Grosszmann. Temos que fazer plantas para os diferentes climas e solos; um dia, a soja vai chegar ao Piauí. Como é possível ter um Centro de soja em Londri-na? Não vai dar certo. De fato, a soja chegou ao Piauí décadas depois. A EMBRAPA Soja perdeu vários dos seus cientistas em um desastre de

avião levando a soja para o Maranhão, onde fariam ensaios com novos cultivares. Algumas estratégias que a EMBRAPA utilizou durante a sua estruturação só funcionaram porque vigorava a ditadura. Hoje, seria impossível. Escolheram seus fundadores, para integrar a EMBRAPA, os que entenderam ser os melhores pesquisadores do SNPA - Siste-ma Nacional de Pesquisa Agropecuária; leia-se, o conjunto dos Insti-tutos Regionais. Os que não foram escolhidos ficaram no MAPA em atividades administrativas. Os ”excluídos” se sentiram pesquisadores de segunda classe. Muitos, durante suas atividades no MAPA, não fa-cilitavam a vida da EMBRAPA, por causa deste histórico incidente. A única compensação é que se aposentaram com salário integral. Os que optaram pela EMBRAPA têm um Fundo de Aposentadoria Privada, a CERES que, somada ao INSS, não chega à metade da aposentadoria dos que ficaram no MAPA. A EMBRAPA foi um sucesso, embora não tenha se transformado em uma verdadeira empresa, uma “holding”, capaz de criar outras empresas. Fugindo do sistema da CERES e em busca de uma aposentadoria integral a EMBRAPA esteve ameaçada de se transformar em um sistema que adotaria o regime jurídico único, o que seria uma lástima. Fiz uma proposta, ainda na década de 1980, que a EMBRAPA fizesse uma espécie de EMBRAPAPAR com ações na bolsa e direito de patentes efetivo aos inventores. Na PETROBRAS, quem desenvolve patentes, recebe ações. Eu sei: petróleo e agronegócio são muito diferentes, mas a EMBRAPA deve remunerar melhor seus cientistas mais produtivos ou eles vão deixá-la.

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Quando a EMBRAPA, pela mão do Dalmo Giacommetti, chefe do Cenargen, me convidou para ir para Brasília era uma proposta irrecu-sável, do ponto de vista financeiro, científico e logístico, particularmente depois do incidente do Walter Motta Ferreira. Eles financiaram uma casa para mim, via Caixa Econômica Federal. Se fizermos isto na Amazô-nia, muita gente aceita. Pedi licença na UFRRJ e fui para Brasília trinta anos atrás. A partir de 1981, desliguei-me da UFRRJ e fui contratado como pesquisador III da EMBRAPA. Pensei no que dizia o Jânio: “no Brasil, nem porteiro de cinema pede demissão”. Eu e ele pedimos. Em 1981, Marcelo, meu filho mais novo, foi atropelado no Rio e ficou em estado de coma por um ano. Isto equivale a um estado de guerra em que a morte pode chegar a qualquer momento por uma ligação telefônica. Na UTI, verifiquei que o Marcelo tinha infecções hospitalares com di-ferentes agentes infecciosos e resolvi introduzir na UTI uma capela de fluxo laminar, que a VECO me emprestou. Um filtro HEPA diminuiu as infecções e, coincidência ou não, o Marcelo saiu do coma e foi para casa no Natal de 1982. Foi uma luta que, entretanto, já estava perdida porque não sabíamos que, nas primeiras transfusões, ele havia contraído HIV. Provavelmente, um dos primeiros casos de HIV por transfusão de san-gue no Brasil. Morreu de insuficiência respiratória quinze anos depois. Este foi o único problema que eu tive na vida até 2008, quando tive o segundo que, talvez, conte mais tarde nas reflexões finais.

O estabelecimento da área de engenharia genética no CENAR-GEN, do zero, desde a construção do primeiro laboratório, sem equipe, resultou mais difícil do que antecipei. Como o Centro não dispunha de instalações nem recursos específicos para a área de engenharia ge-nética, resolvi visitar os Estados Unidos, que havia deixado em 1977. Visitei, na Califórnia, a UC DAVIS e a UCLA, e, na Costa Leste, prin-cipalmente, Harvard, onde conheci duas personalidades importantes: William Haseltine e Bernard Fields, ambos atuando na área da saúde humana com interesse na área de vacinas. Bernard Fields, virologis-ta brilhante, preconizava o uso de vacinas que bloqueariam receptores

celulares, diferentes das formas imunológicas, que nunca tiveram su-cesso com organismos complexos, como os protozoários causadores de importantes doenças no Brasil e no mundo, chamadas negligenciadas. Teria feito uma carreira ainda mais espetacular se não tivesse falecido precocemente vítima de um câncer de pâncreas.

Ainda se prometia muito com poucos resultados. Muitos proje-tos não prosperaram por falta de ferramentas mais avançadas, como as que temos hoje, e de conhecimentos mais aprofundados em biologia do desenvolvimento. Todo projeto de transferência de tecnologia custava um milhão de dólares Chegavam à minha sala e diziam “tenho vacina contra febre aftosa por DNA recombinante”, o que nunca aconteceu, como já disse. Como definir uma agenda para o CENARGEN? Eram poucos os especialistas em bioquímica e fisiologia vegetal no Brasil à época e, praticamente, não havia especialistas na área de biologia mo-lecular de plantas. Acresce que, em 1981, nenhuma planta transgênica havia sido desenvolvida no mundo, o que só ocorreria na Bélgica, na Universidade de Ghent, em 1983, quando Luiz Herrera Estrella enge-nheirou uma planta de fumo resistente a um antibiótico. Não havia re-cursos específicos para engenharia genética de plantas na EMBRAPA, que dependia muito de acordos internacionais com o BID. Procurei seus representantes que, elegantemente, tentaram me convencer de que não havia futuro para o Brasil em uma área tão competitiva mundialmente. Um deles me disse que apostar no Brasil, nessa área, seria como apostar em um ”azarão” em uma corrida de cavalos. O caminho de consolidar a engenharia genética no CENARGEN e depois na EMBRAPA foi, por todas as razões citadas, longo e difícil. Na minha viagem de volta dos Estados Unidos, essa dificuldade fica evidente, quando se verifica que, embora tivesse sido formalmente contratado em 1981 para estabelecer e coordenar a implantação e o desenvolvimento da área de engenharia genética de plantas no Centro Nacional de Recursos Genéticos, somen-te exerci essa função, formalmente, a partir de 21 de agosto de 1985, após quatro longos anos. Entretanto, não fosse a minha transferência

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para a EMBRAPA/CENARGEN, não seria possível estabelecer, facil-mente, no Brasil, naquela época, uma agenda que se desenvolveu por vinte e cinco anos posteriormente e que incluía a identificação, isola-mento, caracterização, clonagem, transferência e expressão de genes para a produção de plantas transgênicas, na qual fomos pioneiros no Brasil, desde a década de 1980. Os resultados profissionais de toda a equipe, nesse sentido, só foram possíveis em função do comprometi-mento e determinação do Dalmo Giacometti, chefe do Centro Nacional de Recursos Genéticos - CENARGEN, e do Eliseu Alves, então Presi-dente da EMBRAPA, para estabelecer a área de engenharia genética de plantas na EMBRAPA, tendo, no CENARGEN, o núcleo estratégico disseminador dessa iniciativa e no qual se situavam os recursos genéti-cos da EMBRAPA. O Eliseu, ainda vivo, diz, generosamente, sempre que me encontra, que eu fui o melhor recurso genético que ele trouxe para a EMBRAPA. Foi fundamental, também, escolher um, apenas um, grande projeto científico que, embora muito ambicioso na época, tinha foco e impediu a dispersão de esforços: obter plantas transgênicas de feijão, com melhor qualidade nutricional, a partir da transferência e ex-pressão de uma albumina 2S de castanha-do-pará rica em metionina. O que determinou a escolha e como foi que isto aconteceu? Três fatores: primeiro, o projeto tinha que ter a perspectiva de gerar um produto de interesse social. Feijão é base da alimentação das populações mais po-bres do Nordeste e sua proteína não tem mais do que 1% de metioni-na, aminoácido essencial para o desenvolvimento cerebral na primeira infância. Segundo, o projeto tinha que ser ambicioso para despertar o interesse de cientistas, que antes trabalhavam em doença de Chagas e Malária e vieram para o CENARGEN para trabalhar com plantas, e de jovens que vieram gradativamente para o CENARGEN, atraídos por esta nova área da ciência. Não podia ser mera repetição. Tinha que pro-duzir ciência nova. Finalmente, o projeto tinha que permitir o exercício de uma agenda completa em engenharia genética de plantas: identifica-ção, isolamento, caracterização, clonagem, transferência e expressão de genes para a engenharia genética de plantas.

John Fobes, meu colega em Davis, me apresentou ao Philip Filner, da Universidade de Michigan, que havia se transferido para a ARCO – Atlantic Rischfield Company, multinacional do petróleo. Ele havia lido um trabalho em uma revista científica de botânica que identi-ficava uma proteína da castanha com alto teor de metionina. Fobes disse a ele que eu estava tentando aumentar o nível de metionina na proteína de feijão. Ele me mandou uma carta: “send me the nuts”. Eu mandava as castanhas, ele publicava e incluía o nosso nome. Se seguisse esse ca-minho, nunca desenvolveríamos a engenharia genética na EMBRAPA. Ele mandou uma segunda carta já trabalhando com o timbre da ARCO, dirigida ao Dalmo Giacommetti, dizendo que eu estava obstruindo o caminho da ciência. Resisti à intimidação da ARCO. Começamos es-tudando, com detalhes, o produto da expressão do gene da 2S da casta-nha-do-Pará, porque tínhamos plantas de castanha-do-Pará enxertadas na EMBRAPA em Belém, que eram baixas, e permitiam que estudás-semos a acumulação da proteína em frutos de todas as idades. Não tí-nhamos tecnologia para sequenciar todas as proteínas e verificamos, rapidamente, que seria necessário estabelecer uma parceria internacio-nal. O projeto despertou o interesse do grupo do Marc Van Montagu, da Universidade de Ghent, justamente o que apresentava os resultados mais promissores em engenharia genética de plantas. Fizemos um gran-de e, posso dizer, financeiramente generoso acordo com a Universida-de de Ghent, que permitiu o estabelecimento da PGS – “Plant Genetic Systems”, empresa criada ao lado da Universidade de Gent e mais tarde vendida para a Merck, por muito dinheiro. Era o único caminho para o acesso aos avanços nessa área e os resultados foram compensadores. Mandamos gradativamente nossos jovens e não tão jovens cientistas para o exterior, muitos para a Bélgica, outros para laboratórios impor-tantes na Europa e nos Estados Unidos, como Nottingham, e UCLA. Perdemos alguns, mas a equipe de mais de quarenta PhDs, que hoje atua no CENARGEN, não fica nada a dever aos melhores centros de biologia molecular agropecuária. Podemos dizer que se consolidou, a partir da década de 1980, uma iniciativa científica institucional impor-

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tante nas áreas de biologia molecular de plantas e biotecnologia, nas quais o CENARGEN tem publicado, nos últimos anos, inúmeros traba-lhos científicos em revistas indexadas de alto impacto, além de patentes obtidas no país e no exterior. A iniciativa somente se materializou gra-ças à coragem e ao pioneirismo de Eliseu Alves e Dalmo Giacometti, que viram, na engenharia genética, precocemente, ainda no início da década de 1980, área que deveria merecer prioridade na EMBRAPA, dado à sua importância para o país, mormente no que se refere à agro-pecuária, onde o Brasil tem vocações indiscutíveis. Tiveram o discer-nimento de propor o CENARGEN como instituição-âncora para essa iniciativa, na EMBRAPA, pela convergência indiscutível entre recursos genéticos e biotecnologia, agora mais evidente do que nunca. O de-senvolvimento da biotecnologia no CENARGEN contou, inicialmente, com o João Batista Teixeira, um dos pioneiros da cultura de tecidos na EMBRAPA e, igualmente, com o esforço de alguns abnegados pes-quisadores, a maioria egressos da UNB, como Eugen Gander, Fátima Grossi, Mauro Carneiro, Genaro Paiva, Elibio Rech, Rodolfo Medina, Francisco Aragão e Carlos Bloch, para citar apenas alguns. Os últimos, praticamente foram formados no CENARGEN, já que para lá foram apenas com a graduação com exceção do Francisco Aragão. Rodolfo Aramayo Medina, que orientei no Mestrado, é hoje Associate Professor na Universidade do Texas A&M. Muitos outros chegaram depois e seria interminável citá-los. Técnicos de alto nível, como Carlos Rodrigues e Eliana Santana, também egressos da UNB, vieram para o CENARGEN que, também, na área de reprodução animal, fez a melhor escola do país, a partir dos trabalhos do Roberto De Bem, pioneiro dos avanços em reprodução animal no Brasil, já falecido, e cujos ensinamentos ti-veram sequência pelas mãos do Rodolfo Rumpf, pai da bezerra Vitória, da Lenda os primeiros bovinos clonados no Brasil. O Roberto De Bem criou um projeto com a cara do velho Otavio Domingues; chamava-se Arca de Noé. Nesta arca, ele colocou todas as raças de animais nativos e adaptadas do Brasil.

Roberto De Bem foi o precursor da moderna reprodução animal no Brasil.Tudo que acon-teceu depois da inseminação artificial. Nesta foto ele aparece com justiça recebendo comigo a Ordem do Mérito Judiciário da Suprema Corte do Trabalho. Entretanto ele não foi o pai da bezerra Vitória que foi feita por um dos seus discípulos, Rodolfo Rumpf. Roberto De Bem morreu precocemente de um câncer no pâncreas.

Vitória foi o primeiro clone de bovinos feito na América Latina .Eu era chefe do CENAR-GEN em 2000 e o Rodolfo Rumpf me ligou um domingo de manhã. Lá estava Vitria pro-tegida por uma vaca de aluguel que não deixava ninguém se aproximar da cria . A Vitória viveu muito, diferente da Dolly que morreu cedo. Depois dela vieram outras, Lenda foi a segunda. Hoje clonar bovinos é uma tecnologia de absoluto domínio do setor privado. Sem entender porque o Senado está propondo uma lei para regulamentar a clonagem animal.

Será um absurdo.

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O CENARGEN continua uma instituição atraente. Em recen-te concurso, isto ficou evidente pelo número de PhDs que ingressou na EMBRAPA para receber um salário inicial em nível de Mestrado. A partir de agosto de 1986, o CENARGEN recebeu, formalmente, a responsabilidade de atuar em biotecnologia, passando a se denominar Centro Nacional de Recursos Genéticos e Biotecnologia. O CENAR-GEN foi credenciado, em 1986, como Centro Afiliado do Centro Inter-nacional de Engenharia Genética e Biotecnologia - ICGEB, com sede em Trieste e Nova Délhi. O Programa Nacional de Pesquisas em Bio-tecnologia Agropecuária, agora denominado Desenvolvimento de Pes-quisas Básicas em Biotecnologia, financia projetos de pesquisa, nesta área, desde 1989 até o presente. O CENARGEN é atualmente o centro de pesquisa mais avançado em Biotecnologia Agropecuária do Brasil, tendo, recentemente, obtido, juntamente com a COPERSUCAR, as pri-meiras plantas transgênicas produzidas no país e os primeiros clones de bovinos do país. A equipe do CENARGEN conseguiu clonar e ex-pressar, em sistema heterólogo, o primeiro gene de plantas no Brasil: a proteína 2S de castanha do Pará (agora castanha do Brasil), bem como, em conjunto com a Plant Genetic Systems, obteve patentes na área de engenharia genética de plantas em cinco países, mesmo antes da nova lei de patentes promulgada no Brasil em 1996.

Foram dez anos de experiência como pesquisador da EMBRA-PA, no CENARGEN, que consolidaram, na minha formação profissio-nal, o conceito da necessidade de cooperação internacional adequada (não o que propôs a ARCO) com centros avançados como ferramenta indispensável para que centros de pesquisa do terceiro mundo possam produzir avanços em áreas de fronteira da ciência, como a engenharia genética de plantas. Vou enfatizar este conceito: grande parte do suces-so que tivemos se deve ao acordo que, em meados da década de 1980, o CENARGEN celebrou com a Universidade de Gent, na Bélgica, que tinha forte relação com a ”Plant Genetic Systems” e com o INRA, em Versailles, na França, em cultura de tecidos e, mais recentemente, com a UCLA em Biologia do Desenvolvimento. Conseguimos, por meio dessas cooperações, não somente formar grande parte dos nossos pro-fissionais em biologia molecular e cultura de tecidos, mas também pro-

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duzir cientificamente em nível internacional. A esses acordos outros se seguiram com o setor público e privado, mesmo diante do novo cenário de proteção intelectual. Nesse período, aprendi que existem cadeias do conhecimento, como o melhoramento genético, a biologia molecular, a tecnologia de sementes e, finalmente, a indústria de sementes. Essa cadeia foi responsável pelo sucesso da agropecuária brasileira. Na área farmacêutica, não há uma cadeia semelhante. O Brasil não faz inova-ções em fármacos, como a EMBRAPA faz em agricultura e, por esta razão, importa quase todos os nossos produtos farmacêuticos, fruto da tecnologia do DNA recombinante.

Hoje, seria impensável transferir dinheiro para a PGS, como fize-mos com o aval do Banco Central, na década de 1980. A atual ditadura da União diria que estávamos transferindo dinheiro para uma conta fan-tasma em nosso nome. Na verdade, a primeira Diretoria da EMBRAPA, na ”Nova República” cancelou a nossa cooperação com Ghent e a PGS foi vendida depois para a Merck por centenas de milhões de dólares. As plantas geneticamente modificadas se instalaram no mundo e o Marc Montagu, foi cotado, em 2010, para receber o Prêmio Nobel; recebeu um título de Professor Honoris Causa da UFRJ, por iniciativa do An-tonio Paes de Carvalho, em 1997. Convidou-me gentilmente para fazer um pronunciamento sobre a cooperação que tivemos e sua importância para o Brasil. Quando cheguei ao auditório lá estavam todos que com-pareceram incrédulos ao Seminário em que fui convidado pelo Marcelo Barcinski, em 1978. Antes de começar, olhei bem para eles e disse: “I told you”. Pena que o Maury lá não estivesse. Aliás, sobre o Maury tenho uma história importante para contar que envolve um dos personagens mais importantes da ciência agropecuária brasileira: Ernesto Paterniani, falecido recentemente. Ernesto era uma destas figuras extraordinárias que generosamente conduziu-me à Academia Brasileira de Ciências. Ines-quecível. Quando disse ao Maury que iríamos fazer um feijão mais rico em metionina ele disse ao Ernesto: “fácil, faz um poliMet: um pedaço de DNA que codifique para metioninas”. O Maury era um craque em Biologia do Desenvolvimento, mas não ligava muito para a Bioquími-ca de proteínas com suas enzimas proteolíticas que exigiam cuidado e reclusão de moléculas em células de armazenamento. O pior foi que ele

fez uma aposta com o Paterniani dizendo que eu ia conseguir esta proeza, que se revelou depois muito mais difícil do que antecipáramos. Quem ganhasse pagava um jantar de camarão para o outro. O Maury faleceu e a aposta se transferiu para mim. Um dia, o Paterniani me procurou e disse: “fiz esta aposta porque, como vários geneticistas, achávamos que a en-genharia genética estava no caminho errado e estava. Hoje, embora você não tenha este feijão, o CENARGEN fez outros, o que prova o conceito. Não precisa pagar a aposta”. Acho que a engenharia genética agora está no caminho correto. Gostaria que ele estivesse aqui para que eu pudes-se pagar aquele jantar, que ele generosamente não quis receber. Era um homem nobre e de caráter. O que escrevo neste livro sobre ele é pouco e não lhe faz justiça. Hoje, como não tenho mais laboratório, o Diogenes Santos, da PUC do Rio Grande do Sul, está me ajudando a terminar este projeto, o que quero fazer antes de morrer. Na verdade, o Carlos Bloch está sintetizando os peptídeos que serão testados pela Denise Cantarelli da PUC/RS para alergenicidade. Explico melhor: sabemos que a proteína é alergênica, embora tenha 17% de metionina. Pedi ao Diógenes Santos, da PUC-RS, para sintetizar o gene ou seus peptídeos componentes elimi-

Ernesto Paterniani, o pai da genética de plantas no Brasil que produziu os maiores avan-ços nos estudos fundamentais e aplicados no melhoramento genético do milho. Fez uma transição importante para a engenharia genética de plantas no Brasil quando se tornou membro da CTNBIO, um dois maiores estudiosos da lei de biosegurança brasileira durante a sua fase mais difícil.

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nando domínios de aminoácidos, que são conservados entre as proteínas alergênicas do tipo das albuminas 2S. É uma tentativa que não garante que a nova forma da proteína perderá a alergenicidade, mas é um “good shot”. Hoje, temos tecnologia para sintetizar genes, o que não tínhamos na década de 1980. Os primeiros resultados não deram certo como apren-di com o Charles Robbs. Temos que continuar tentando. O meu sonho é ver, na capa do NY Times: Feijão engenheirado melhora a qualidade nutricional da dieta dos pobres do semiárido. Feijão resistente a vírus, o Francisco Aragão e o Josias Farias fizeram de uma forma mais elegante do que pensaram em suas épocas Roger Beachy e todas as multinacionais que fizeram plantas resistentes a vírus. Eles usaram o silenciamento de genes que deu o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina a Craig Mello da University de Massachusetts e Andrew Fire da Stanford University, em Palo Alto, em 2006. O vírus não se replica nas plantas resistentes. A dife-rença entre uma planta resistente e uma suscetível e de zero de infecção pelo vírus para 100% nas susceptíveis, nas quais o vírus é transmitido por um inseto como vemos na foto abaixo. Hoje, o Elibio Rech e o Francisco Aragão são os líderes mundiais na engenharia genética de leguminosas. Na década de 1980, ninguém sabia fazer engenharia genética de legu-minosas, muito menos de feijão, que era comida de pobre. Diante deste problema, e das dificuldades que chegaram com a Nova República, a PGS pulou fora. Hoje, o preço do feijão subiu muito. O Francisco tem um financiamento para colocar o gene da 2S da castanha do Pará devida-mente modificado pelo Diogenes Santos, em Vigna, feijão de corda que é a principal fonte de proteína do semiárido.

Em 1986, recebi, da ”Rockfeller Foundation”, uma Biotechno-logy Career Fellowship para realização de pós-doutoramento na Uni-versidade da Califórnia, Los Angeles, onde atuei, no Departamento de Biologia, em pesquisas sobre Biologia Molecular voltadas para o con-trole da expressão gênica em espécies tuberosas, no período de setembro a dezembro de 1986-1988, sob a orientação inigualável do Professor Robert B. Goldberg. A partir de 1989, a bolsa foi renovada pela ”Rock-feller Foundation” e continuei, na qualidade de ”Visiting Schollar”, nos períodos de janeiro a março de 1989 a 1992, no Departamento de Biolo-gia da UCLA, continuei pesquisas sobre o tema citado. Nesse período,

identifiquei, caracterizei e estudei a expressão de genes de inhame, que, clonados, foram posteriormente expressados em sistema heterólogo por Genaro de Paiva, pesquisador do CENARGEN, e por outros pesquisa-dores do Centro; linha de pesquisa que deu frutos até 1995. O Robert Goldberg é sinônimo de excelência. Além do Maury, nenhum pesqui-sador teve influência mais importante na minha vida. Somos amigos há quase quarenta anos e pela minha mão ele recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico das mãos do Presidente Fernando Henrique Car-doso. Teve que comprar um terno e sapatos porque ele só anda de jeans e tênis.

Voltei à EMBRAPA em junho de 1999 para ser Titular da Secre-taria de Propriedade Intelectual. Essa experiência acrescentou ao meu currículo experiência intensiva nas negociações com o setor privado. Particularmente, celebramos pela EMBRAPA um acordo de coopera-ção internacional com a MONSANTO para inserir o gene RR no geno-ma de cultivares de soja, que resultam do melhor programa de melhora-mento desta leguminosa para os trópicos, liderado à época pelo Romeu Kiihl. O gene citado permite conferir resistência ao herbicida glifosato em soja. A MONSANTO não tinha um programa de melhoramento de soja à altura do da EMBRAPA. Foi uma longa e difícil negociação em que, na prática, demonstramos que as leis de cultivares e de patentes no Brasil são compatíveis. A EMBRAPA ficou com o direito garantido à proteção de seus cultivares e a MONSANTO a uma taxa tecnológica por força das patentes concedidas para esta tecnologia no país. Uma das cláusulas garante à EMBRAPA retorno pela taxa tecnológica cobrada pela MONSANTO. A primeira parcela, de R$ 8 milhões, foi transferida pela Monsanto que, entretanto, já ganhou com os royalties dessa tecno-logia mais de 300 milhões. Essa experiência me valeu alguns convites como experto da OMPI - Organização Mundial de Propriedade Intelec-tual, para demonstrar que as leis brasileiras de patentes e cultivares são compatíveis, o que publiquei mais tarde na revista da ABPI (Associa-ção Brasileira de Propriedade Intelectual).

A minha passagem pelo CENARGEN, no início deste século, foi muito difícil, particularmente quando Lula foi eleito para a Presidência.

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Tinha sido aprovado em dezembro de 1999, em Concurso Público, para exercer a Chefia Geral do CENARGEN, mandato que, em princípio, de-veria se estender de janeiro de 2000 a janeiro de 2004, quando o meu con-trato terminaria. Pela regra, eu poderia me candidatar para um novo perí-odo em concurso assim como o Presidente da República o faz por eleição também pública. Em 2002, fui entrevistado antes de o Lula tomar posse. O jornalista perguntou: “o senhor sabe que o Presidente da República é contra os transgênicos?” Respondi: “Não. Ele sabe que plantas resistentes a insetos reduzem o uso de agrotóxicos? Ser contra estes transgênicos estimula o uso de agrotóxicos”. No dia seguinte, o jornal afirmava: Che-fe do CENARGEN diz que o Presidente Lula é a favor de agrotóxicos. Começou uma campanha pelo SINPAF (Sindicato da Embrapa) que foi ao presidente da EMBRAPA. Por iniciativa própria ou motivado pelo SINPAF, ele me chamou. Perguntou–me, em seu gabinete: “Você não se sente desconfortável trabalhando com transgênicos na EMBRAPA, que é contra transgênicos?” Só faltou dizer como Luiz XIV, o rei sol: o Estado sou eu. Eu disse que trabalhava com transgênicos na EMBRAPA desde 1981. Ele insistiu: “Você não tem outros planos para o futuro?” Pensei: “ele vai me despedir.” Respondi: “Tenho, mas não passam por este gabi-nete, mas tenho um contrato com a EMBRAPA que pode ser rescindido”. Tenho certeza de que não fui despedido porque coincidentemente, na se-mana seguinte, fui admitido como membro da Academia Brasileira de Ciências. Era mais difícil despedir um membro da Academia.

É impressionante a frequência com que os países usam caminhos políticos para prejudicar a ciência. Isto não é só no Brasil. Os irmãos Terrones, os melhores cientistas em Nanotecnologia, foram praticamen-te expulsos do México. Quando era chefe geral do CENARGEN, fomos invadidos por uma multidão de representantes da campanha “Por um Brasil Livre de Transgênicos”. Estavam desde os que são pagos pelo Príncipe Charles no Brasil até o MST. O mais enfurecido era um padre, que brandia o acordo da EMBRAPA com a MONSANTO, e pedia que eu o rasgasse porque havíamos vendido a EMBRAPA para a Monsanto. O dinheiro deste acordo permitiu ao Francisco Aragão pagar os estudos de biossegurança para que o feijão resistente a vírus chegue às mãos dos pequenos agricultores, que não têm dinheiro para pulverizar suas

lavouras com inseticida para matar o vetor do vírus.Quando voltei ao CENARGEN, em 2000, os cientistas tinham

agora, em um novo prédio, seus próprios laboratórios e seus próprios projetos. Foi uma dispersão de esforços desastrosa. Nos meus primei-ros dez anos no CENARGEN, identificamos e expressamos dois genes importantes de plantas. Um, da semente da castanha-do-Pará – Berthol-letia excelsa; outro, do tubérculo do inhame, Colocasia esculenta. Nos vinte anos subsequentes nenhum novo gene da EMBRAPA foi ainda expresso em plantas.

Trabalhamos com genes de multinacionais que ficam, por conta do patenteamento desses genes, com o maior pedaço dos lucros, como vemos na matriz acima: o que chamamos “technology fee”, que volta para a empresa dona do gene, incide sobre a produção da “commodity”e é muito mais do que recebe, por exemplo, a EMBRAPA pelo cultivar registrado, “royalty” que incide sobre a produção de sementes. Bem ou mal, outro acordo já foi feito pela EMBRAPA com a BASF usando este modelo. Não posso atribuir apenas a esse fato não termos encontrado novos genes. Parte do problema foi a lei de biossegurança e as campa-nhas contra transgênicos. Curioso que, vinte anos antes, tivesse sob os meus ombros a construção da engenharia genética na EMBRAPA e vin-te anos depois voltasse para construir sua área de genoma e proteoma. Entretanto, na minha volta, tive apoio do Ministro do MAPA, Pratini de Morais, a quem faço reconhecimento público.

Quando sai do CENARGEN em 2003, ambas as áreas estavam ativas e com a melhor infraestrutura laboratorial possível. Concurso

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público trouxe uma nova geração de jovens cientistas para o CENAR-GEN e rapidamente o Centro passou a atuar nos genomas funcionais de vassoura-de-bruxa (estrutural) café, banana, e eucalipto, para citar os mais importantes. Essa realidade mudou dramaticamente com o tempo. Os sequenciadores de hoje fazem uma bactéria em horas. Aliás, real-mente não faz sentido investir em máquinas caríssimas, que se tornam obsoletas rapidamente. Fiz isso na década de 1980. Todas as máquinas que eu havia comprado na década de 1980 estavam no estacionamento quando voltei: sucata. Ademais, não temos meios de fazer manutenção destas máquinas. No CENARGEN, o único laboratório que tem máqui-nas caras funcionando é o do Carlos Bloch que é por isso o pesquisador mais produtivo cientificamente de toda e EMBRAPA. Mais fácil e mui-to mais barato é pagar pelo serviço. As máquinas de sequenciamento do futuro vão permitir que, em um escritório médico, o paciente saia com o seu genoma na mão. Todos os SNPs que podem indicar e antecipar a possibilidade de problemas patológicos no futuro.

Quando voltei em 2000, o CENARGEN não era mais o mesmo. Não consegui, em um curto período, vencer divergências e a dispersão de esforços. Elaborei um grande projeto denominado INOVAGENE para neutralização da ação de nematoides (ver Trabalhos Técnicos nº 20, no meu currículo Lattes), tentando convergir um grande número em torno de um grande projeto. Considero este projeto um dos mais bem elaborados que já realizei até hoje. Não consegui financiamento nesta nova EMBRAPA que encontrei mais burocrática, com dirigentes menos corajosos e talvez menos competentes. Aprendi que, além dos ensina-mentos do César Milstein, dirigentes em C&T, além de perseverança, têm que ter competência e coragem. Foram somente quatro anos que não consegui prolongar, pelas razões citadas. Hoje, olho para o CE-NARGEN um pouco como o Rei Lear, da peça de Shakespeare.

Tentei voltar, depois de sair da EMBRAPA, ao convívio univer-sitário aceitando, pela primeira vez, atuar em um centro universitário privado em Brasília, denominado UniCEUB. A Direção Acadêmica

acenou com a possibilidade de desenvolver uma pós-graduação em bio-logia e criou um Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento em Ciências Biológicas – NPDCB, no Centro Universitário, onde comecei a traba-lhar em janeiro de 2004. Durante dois longos anos, tentei todas as fór-mulas possíveis para promover a pós-graduação em ciências biológicas, sem sucesso. Como a massa crítica de doutores era pequena, firmei um

Antonio Paes de Carvalho (o primeiro à esquerda), em um Congresso que organizamos pela Sociedade Brasileira de Biotecnologia, criado por ele no início da década de 90, foi um dos precursores da Biotecnologia brasileira. Criou empresas importantes que ainda preside.

Tenho a satisfação de ainda receber convites para fazer palestras de abertura de Congres-sos Científicos muito depois de ja ter saído da EMBRAPA , como este de Genética Molecu-lar de Plantas que me permitiu contar um pouco da história que está neste livro.

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Acordo de Cooperação com a EMBRAPA. As propostas foram na li-nha de um Mestrado Profissionalizante, um Curso de Aperfeiçoamento Modular em Biotecnologia e mesmo um Mestrado Acadêmico. Quais-quer das fórmulas esbarrou sempre em dois fatores: ou uma forte reação contra a EMBRAPA, entre os docentes do UniCEUB, ou uma falta de massa crítica para construir uma proposta sem a EMBRAPA, que fosse aceitável pela CAPES. Saí em Janeiro de 2006, quando já era Secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCT, na verdade, desde agosto de 2005.

A minha experiência em uma IES privada foi decepcionante. Não quero generalizar, mas, excluídas as Católicas e outras IES cor-relatas, de cunho religioso, não há, com poucas exceções pontuais que conheci, mentalidade científica nas IES privadas, o que é lamentável, porque mais de 90% do corpo discente no Brasil está nessas IES. Não tenho uma fórmula para resolver este assunto, que é preocupante na-cionalmente. Os alunos pagam caro, são, na maioria, pobres, trabalham e estudam, e não podem ser reprovados. São mal preparados educa-cionalmente porque os melhores e mais ricos conseguem espaço nas Universidades públicas. A minha proposta para o velho amigo Jorge Guimarães, formado comigo na Rural em 1962, como Veterinário, foi a de estabelecer um Aperfeiçoamento Tecnológico treinando por um ano graduados de Biologia para ingressar na indústria nascente de Biotec-nologia no Brasil, sobre a qual vou falar a seguir.

– 3.5 - A biotecnologia brasileira

O tema da biotecnologia brasileira, que tratarei a seguir, perma-nece como um grande desafio para o Brasil. Em maio de 2009, fui à Biotecnology Industry Organization, na Geórgia, EUA. A Biotecnolo-gia brasileira é do tamanho da Geórgia: mais ou menos trezentas em-presas. As da Geórgia têm faturamento muito maior do que as nossas.

Continuo achando que é uma área de grande potencial e vai dar certo. São quarenta anos de esforço ainda sem sucesso. O primeiro progra-ma de Biotecnologia no Brasil é da década de 1980. Nessa época, não tínhamos massa crítica. Não tínhamos um arcabouço legal adequado, nem de patente nem de biossegurança. Não tínhamos dinheiro privado; tínhamos inflação. Na verdade, o Brasil não tinha moeda. Quem che-gasse a Nova York não via a moeda brasileira porque os responsáveis pelo Banco Central inventavam acrobacias com a moeda. Tentavam controlar a inflação por decreto. Chico Lopes, em uma rápida passa-gem pela presidência do Banco Central em 1999, permitiu que o real se desvalorizasse. O câmbio flutuante sem bandas. Perdeu o emprego. Foi acusado de mau economista e corrupto. Houve uma crise aguda de desvalorização do real, que lhe custou o cargo e passou. Hoje, todos se queixam de uma supervalorização do real. As administrações posterio-res conseguiram manter a inflação sob controle, o câmbio livre flutuan-do chegou a uma posição de equilíbrio consistente; a taxa de juros mais baixa, embora ainda alta, foi fruto da curta passagem do Chico Lopes pelo Banco Central, em minha opinião. A consequência: temos moeda. Agora, chegamos a Nova York e lá está o Real. Devemos isto ao Chico Lopes, que disse que o rei estava nu. Não ganhamos nenhum prêmio Nobel em Economia. Francamente, sem trocadilho.

Por incrível que pareça, na década de 1980, logo após a criação do MCT, fizemos os melhores cientistas brasileiros em Biotecnologia, uma missão à Europa para negociar projetos de cooperação nesta área com a Bélgica, França, Alemanha. Quando me lembro, não posso deixar de comparar aquele exército, que incluía importantes líderes brasilei-ros, como Antonio Paes de Carvalho, Diógenes Santiago Santos, Jorge Guimarães Marcos dos Mares Guia, Isaias Raw, entre outros que depois contribuíram para avanços importantes da Biotecnologia no Brasil à Incrível Armata de Brancaleone da Nortia. Antonio Paes de Carvalho criou o Polo BioRio, que ainda vai nos dar muitas alegrias. Diogenes Santiago Santos e Jorge Guimarães criaram importante Polo de Bio-tecnologia na FURGS. Isaias Raw fez do Instituto Butantã a principal

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instituição brasileira na área farmacêutica. O Marcos dos Mares Guia? Sobre ele, escrevi e publiquei o seguinte texto:

PERDEMOS UM GUIA

No final de agosto, faleceu Marcos dos Mares Guia. Pro-fessor da UFMG, cientista de renome internacional, Marcos foi, antes de tudo, um semeador de conhecimento, de ciência. Fazia isto sem cessar em todos os níveis: dos estudantes mais jovens aos mais altos dirigentes do país e, o que é mais interessante, sempre com a mesma linguagem franca, simples, otimista, inteli-gente, energética, à frente do seu tempo, e de um senso de humor fino e levemente irônico, sutil, somente perceptível por aqueles que o conheciam mais de perto. Nos vinte anos em que tive o pri-vilégio de conviver com o Marcos, menos tempo do que gostaria, por circunstâncias profissionais que nos afastaram, deixei com ele uma dívida de aprendizado, não somente de ciência, mas de filosofia de vida, de coragem, diante dos maiores problemas pes-soais, que tivemos em comum, e principalmente de viver com a perseverança de construir, sempre indignado com a lentidão com que conseguíamos atingir nossos objetivos. Sem deixar, en-tretanto, que esta indignação abalasse a sua perseverança, nem sua diplomacia e elegância no negociar dos problemas.

Foi o fundador da Biotecnologia brasileira, com gran-de sucesso, desenvolvendo a ciência brasileira, a química, a bioquímica. Criando políticas, tecnologia, fundando empresas como a BIOBRAS, valente diante da competição internacional e hábil diante das oscilações políticas de C&T, que não permitem traçar rumos seguros em longo prazo; sem falar das invenções econômicas brasileiras que até recentemente revogavam a lei de oferta e procura. Nada o detinha. Não havia problema que não resolvesse. Marcos nos deixa em um momento em que ainda não conseguimos sequer comercializar um produto da biotec-nologia agropecuária no Brasil. Em que a EMBRAPA, como o país, passa por crises difíceis. Onde estiver, está indignado te-

nho certeza, mas perseverante pela ação dos que o conheceram. Sua ausência teria um efeito devastador, não fosse o que todos aprendemos com ele no exercício da ciência, da inovação, da coragem: um símbolo de resistência que a todos inspira e esti-mula. Marcos foi um daqueles homens, que, como dizia Exupéry em “Terra dos Homens”, tem vergonha de uma tragédia que não está ao seu alcance resolver e se orgulha de uma vitória feita por outros. Sua principal qualidade é de ter sido responsável por todos os problemas do mundo que, se tivesse tempo, teria contribuído para resolver. Perdemos um Guia, ganhamos uma responsabilidade a mais: não decepcioná-lo. À sua família, a nossa solidariedade e tristeza por ele ter nos deixado, sobretudo desta forma inexplicável.

Luiz Antonio Barreto de CastroChefe Geral do CENARGEN/EMBRAPA

POST-SCRIPTUM

Quando este livro já estava pronto, faleceu Ricardo Renzo Bren-tani, o mestre da oncologia e um dois pais da biotecnologia brasileira, foi quem primeiro expressou insulina em E.coli no final da década de setenta. Deixou um vazio na minha vida. Brentani reunia competência e coragem. Coragem sem competência é um desastre. Competência sem coragem é uma frustração permanente. Brentani tinha uma irreverência aliada a um fino senso de humor peculiar. Uma noite na Globo, teve que interagir com um padre gaúcho que curava câncer com babosa. Depois de falar, o jornalista virou-se para o Brentani: professor, o que o senhor acha destas pesquisas? O Ricardo ato continuo disse: chame a polícia, exercí-cio ilegal da profissão. O resto do seu discurso foi cada vez pior.

Que falta faz o Brentani!

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A GESTÃO DE

CIÊNCIA

E TECNOLOGIA

Parte II

A EMBRAPA visitou Cuba em 1990. Fiz parte da equipe. A foto mostra o dia em que fui escolhido para uma visita ao Fidel Castro. Cuba vivia uma crise por falta de recursos do Leste Europeu. No dia em que chegamos começou a Guerra de Golfo. Fidel fez investi-mentos importantes em Biotecnologia em Cuba mas que não a elevaram a uma indústria importante internacionalmente. Diante da crise que o país vivia, durante a qual não recebia pelo açúcar que vendia, porque a União Soviética estava em profunda modificação política, sugeri a ele que vendesse álcool de cana de açúcar para os Estados Unidos. Ele me falou: “Barreto, el problema de Cuba es alimentário”.

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O amigo Sergio Rezende costuma repetir com frequência: “a ci-ência brasileira é muito jovem”. Na verdade, a institucionalização fe-deral da ciência no Brasil é recente. A Academia Brasileira de Ciências é de 1916. A SBPC é de 1948. O CNPq foi criado no Governo Dutra em 1951. A ideia de estabelecer uma instituição com essas caracterís-ticas é mais antiga e emana de iniciativas de Acadêmicos da Ciência e Tecnologia das primeiras décadas do século vinte. A FINEP, empresa pública vinculada ao MCT, foi criada em 24 de julho de 1967. O Mi-nistério da Ciência e Tecnologia (MCT) foi criado pelo Decreto 91.146, em 15 de março de 1985. Para os jovens saberem, o MCT tem como competências os seguintes assuntos: política nacional de pesquisa cien-tífica, tecnológica e inovação; planejamento, coordenação, supervisão e controle das atividades da ciência e tecnologia; política de desenvolvi-mento de informática e automação; política nacional de biossegurança; política espacial; política nuclear e controle da exportação de bens e serviços sensíveis. As Agências, seus empregados e dirigentes, sem-pre olham o MCT como os sulistas que perderam a guerra da secessão nos Estados Unidos. A criação do MCT significou considerável perda de poder para as Agências que tratavam de suas questões diretamente com os Presidentes da República que, até hoje, os nomeiam. Tinham

4

– Os anos do PADCt –

A minha carreira na gestão de ciência e tecnologia que se estendeu de 1991 a 1999 teve o reconhecimento de me conferir duas legendas: a Ordem Natural do Mérito Científico e a Grã Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico durante o Governo do Presidente Fer-nando Henrique Cardoso. Ao meu lado, recebendo a mesma comenda no segundo evento, Luciano Coutinho, velho amigo dos idos do PADCT. Quando escrevia este livro, ele era presidente do BNDES.

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alto grau de autonomia. Fez sentido criar um Ministério para cuidar da Ciência e Tecnologia, no Brasil? Os Estados Unidos não têm este instrumento. São as Agências como o CNPq e a FINEP (eles não têm o equivalente a uma FINEP) que trabalharam seus interesses diretamente no Congresso e com os Presidentes. Penso que foi importante criar o MCT para cumprir uma ação catalisadora e coordenadora e diminuir os conflitos históricos, que sempre existiram entre as Agências; mas que as Agências choram até hoje, choram e, quando podem, não obedecem aos Ministros. É tenso. Digo isto depois de quinze anos de exercício como Secretário. O mais impopular que já passou pelo MCT.

Em 1991, fui convidado pelo então Ministro da Ciência e Tec-nologia, José Goldemberg, para a área de Coordenação de Políticas e Programas do MCT. Passava por uma fase bastante produtiva da minha carreira. Em 1992, publicamos um artigo na capa do Plant Cell. Por que decidi aceitar? Em 1991, o CENARGEN fez uma eleição para substituir o Chefe Geral que se afastava. Tive apoio da grande maioria: do porteiro ao mais graduado pesquisador do Centro. O Presidente da EMBRAPA, à época, escolheu outro para o comando do CENARGEN. Pensei: não sirvo para ser chefe do CENARGEN, mas sirvo para ser Secretário no MCT. Aceitei em um impulso e hoje me arrependo. Perdi o meu labora-tório e o meu vínculo com a ciência experimental para sempre.

Servi a cinco Ministros da Ciência e Tecnologia, de julho de 1991 a junho de 1999, em particular, ao Ministro Israel Vargas, de ou-tubro de 1992 a dezembro de 1998, de quem guardo boas lembranças. Na verdade, quando o Vargas começou a sua gestão como Ministro, não nos conhecíamos muito bem. Aprendi a respeitar e admirar o Vargas assistindo à sua luta incessante para construir uma nova realidade para a ciência e a tecnologia no Brasil, durante governos, particularmen-te o segundo da sua gestão, que não priorizavam ciência e tecnologia como deveriam e como faziam os países desenvolvidos. Seus pedidos se arrastavam nas mãos do Presidente Fernando Henrique. Com perse-verança, ele conseguiu mudar um paradigma com a criação do primeiro Fundo Setorial no âmbito do MCT, o Fundo Setorial do Petróleo e Gás Natural, que significava uma renúncia fiscal federal para ciência e tec-nologia, fato a que todos da área financeira de todos os governos sem-pre abominaram. Daí em diante, tudo ficou mais fácil e outros criaram dezesseis. Essa luta nos uniu e desenvolvemos uma amizade que ainda cultivo, embora, infelizmente, não nos vejamos com frequência.

A minha principal tarefa era cuidar do PADCT, um Programa que tinha recursos de empréstimos feitos pelo Brasil junto ao Banco Mundial. Encontrei um contexto complicado. O FNDCT, que tinha in-vestido o equivalente na moeda de hoje a 800 milhões de reais, em 1978, viu este valor cair para a metade em 1982 e para 200 milhões em 1984. Helio Barros é quem melhor conhece esta história. O PADCT fez seu primeiro empréstimo e começou a operar em 1986. Durante todo o período de funcionamento do PADCT, que acompanhei de 1991 até 1999, o sistema federal de C&T passou por uma fase de escassez de recursos que começou no início da década de 1980 e começou a melhorar com a criação dos Fundos Setoriais, em 1999. Já conhecia e atuava no PADCT, tendo participado de um dos seus Grupos Técnicos - Biotecnologia, constituído por cientistas que estabeleciam as priori-dades em cada área considerada estratégica; um conceito exercitado, pela primeira vez no país, pelos que conceberam o PADCT. Embora o programa tenha sido criado com o aval das Agências, o Presidente

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da FINEP, à época, disse, em reunião pública, a que assisti, na condi-ção de Secretário Técnico da Biotecnologia, quando o MCT começou a funcionar, que o PADCT era um programa inútil e que nunca deveria ter sido criado. Quando cheguei, em 1991, no governo Collor, fomos ao fundo do poço. Praticamente, não havia dinheiro para ciência e tec-nologia. O Goldemberg que me apelidou de Luiz ABC e disse: “vou conseguir dinheiro com o presidente, mas o sistema tem que funcio-nar”. Efetivamente, o dinheiro veio pelas mãos do Goldemberg que, em seguida, mudou de Ministério. Em 1991, o PADCT estava concluindo a sua primeira fase em que tinha realizado um investimento da ordem de 172 milhões de dólares, durante cinco anos. Uma média de 60 milhões de reais ao ano. De 1991 a 1999 conseguimos, graças principalmente ao PADCT, manter um nível de investimento da ordem de 200 milhões de reais ao ano. No total, o PADCT, em suas três fases, investiu cerca de 600 milhões dólares, cerca de 120 milhões de reais ao ano. Em 1991, concluímos o PADCT em sua primeira fase. E executamos toda a fase dois do PADCT, que investiu cerca de 280 milhões de dólares nas áreas chamadas estratégicas e, até hoje, tem com uma distribuição regional de recursos sofrível. Dois terços dos recursos para a região sudeste. Outra crítica séria que se fazia ao PADCT é que os resultados não chegavam à indústria. Muito C e pouco T.

Para avaliar o PADCT II, fizemos uma amostra de 6500 cientis-tas financiados e comparamos, utilizando como referência o “Citation Index”, suas performances de 1981 a 1996, final do PADCTII. Todos os que receberam recursos foram incluídos. Foi possível comparar suas performances em cada setor em um período em que não havia o PADCT com o período em que o PADCT funcionou. Os resultados foram positi-vos, como vemos abaixo, na maioria das áreas, mas não em todas. Não dá para mostrar todas as áreas porque são muitas.

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Em 1995, o Brasil decidiu negociar a terceira fase do PADCT para tentar fazer a ciência chegar à indústria. Havia realizado e tinha sido aprovado em Concurso Público para o cargo de Chefe-Geral do CENARGEN, em novembro de 1995, com o Plano de Trabalho intitu-lado USBIO - Uso Sustentável da Biodiversidade. Como negociava o PADCT III, não pude aceitar o cargo. Nunca avançamos nessa área no Brasil, até hoje, por razões políticas, ou falta de políticas, como vamos ver mais tarde.

AGREGATE VALUE TO THE PRO-DUCTS OF BIODIVERSITY – A STRA-TEGY TO REVERT THE TREND OF DEFORESTATION IN THE AMAZON

Fomos a Washington com um time de craques: Helio Barros, Ivan Rocha,Wladimir Longo, entre outros. Na primeira reunião, um Diretor do WB disse: “Não acredito na relação universidade-empresa abaixo do Equador. Aliás, a única experiência interessante é a da Fundação Chile”. Minha reação inicial, olhando para a turma, foi a de levantar e ir embora. Respirei e disse: “O Brasil nunca mais vai voltar ao Banco Mundial para negociar nenhum projeto em ciência. Este é o último. A Alemanha, o Japão e a Inglaterra não vêm, não é? Nós também não va-mos voltar”. A profecia ou maldição parece que perdura até os dias de hoje. Nunca mais voltamos. Mas conseguimos negociar o PADCTIII, que tinha a expectativa de ser um Programa em duas fases: 150 milhões de dólares para a primeira; se desse certo, mais 150 milhões. Começa-mos em 1997. O programa ia bem até janeiro de 1999 quando o Vargas saiu e o Fernando Henrique colocou o Bresser Pereira como Ministro. O PADCT teve algumas virtudes: criou o primeiro sistema em WEB para gestão de C&T, o REAACT. Quando o REAACT foi desenhado e começou a operar não sabíamos quantos pesquisadores existiam no Brasil. Era uma vergonha chegar no Banco Mundial, como fizemos para negociar o PADCT III, e dizer que não sabíamos exatamente quem fazia ciência no Brasil. Na verdade, antes do PADCT e do REAACT cada Agência tinha uma base de dados em papel, precariamente informatiza-da. Não havia um sistema único de currículos, como hoje é o LATTES. Quando criamos o CNCT- Cadastro Nacional de C&T, a primeira base curricular em WEB que precedeu o LATTES, foi uma grita geral nas Agências. Tínhamos que lançar editais do PADCT III e não tínhamos um sistema AdHoc informatizado, que era um módulo fundamental do REAACT.

Pasmem, o REAACT selecionava os AdHoc eletronicamente eliminando conflitos de interesse tanto quanto possível. Os AdHocs recebiam os projetos eletronicamente e apresentavam seus pareceres eletronicamente. Só nos reuníamos no final para bater o martelo sele-cionando os melhores projetos. O REAACT foi o melhor sistema de

Source: CASTRO, L. A. B. . Sustainable use of Biodiversity - Components of a Model Project for Brazil. Brazilian Jour-nal of Medical and Biological Research, v. 29, p. 687-689, 1996.

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gestão de C&T que eu já vi, incluindo os sistemas da NSF e NIH. No primeiro edital foi difícil, porque o sistema não permitia fazer o “down-load” dos formulários. Fui chamado ao CNPq. O Presidente olhou para mim e disse: “Quer dizer que você criou um sistema de currículos em que os próprios pesquisadores atualizam seus dados?” Eu disse: “Isso mesmo”. “Quer dizer”, perguntou o Presidente, “que se um garrafeiro quiser colocar seu currículo no seu sistema pode?” Eu disse: “Pode. Só que, Presidente, o dia em que um garrafeiro abrir o nosso sistema e colocar o seu currículo, o Brasil virou a Suíça”. Ele ficou me olhando e disse: “É, pensando bem...”. Oferecemos, eu e o Silvio Meira, o REA-ACT para a FAPESP na década de 1990. O Peres me disse que estava pensando em ver o que havia na NSF. Eu disse: “Não perca tempo, já estivemos lá.” Quinze anos depois, comprou uma versão “customiza-da” do REAACT do CESAR. Ainda brinquei com ele: “Vocês demoram a decidir.”

Informação no Brasil tinha dono. Cada Agência competia com a outra. Quando pedimos ao CNPq para ceder a base curricular deles para montar o CNCT tivemos que assinar um documento dizendo que aquele sistema era provisório. Quando recebemos a base de dados, to-dos os CVs estavam desatualizados. Derrubou o sistema de informática do MCT. O Silvio Meira, sutil como sempre, disse pra mim: “Isto é pa-

pel de enrolar peixe”. Um desastre. No segundo edital, tudo funcionou bem. Eu ficava em casa e via as propostas entrando eletronicamente. Um sucesso que fizemos na década de 1990 e nunca mais se repetiu nos quinze anos subsequentes.

Ser o Secretário Executivo de exercício mais longo na história do Programa PADCT - de julho de 1991 a junho de 1999 - foi a melhor escola de gestão de C&T que eu poderia frequentar. O PADCT investiu, como já disse, US$ 600 milhões, no período de 1986 a 1997, finan-ciando cerca de seis mil cientistas em mais de trezentas instituições brasileiras e deixou algumas contribuições importantes. A primeira foi o exercício de seleção de projetos pelos pares (“peer review”) que exis-te na ”Royal Society”, UK, desde o século dezoito, mas que, no Brasil, teve no PADCT seu mais importante instrumento de implementação. A segunda, cuja saga já contamos parcialmente, foi a construção do pri-meiro sistema em WEB de gestão de C&T, o REAACT, que, concebido conceitualmente pela equipe do PADCT, que eu coordenava, teve seu software engenheirado pelo CESAR - Centro de Estudos Avançados do Recife, vinculado à UFPE, e dirigido pelo Sílvio Meira (http://reaact. cesar. org. br ou www. cesar. org. br). A primeira base curricular de da-dos em WEB feita para o REAACT, denominada CNCT, rapidamente, estimulou a adesão de mais de quarenta mil currículos. Este módulo do REAACT permitiu que se estabelecesse um sistema completo de gestão de C&T para financiamento de projetos que, vou enfatizar, começava com o lançamento de editais e os projetos formulados eram virtualmen-te analisados por Comitês Ad Hoc extraídos do CNCT, sem conflitos de interesse, também virtualmente, os quais, depois de aprovados, o REA-ACT permitia um completo processo de acompanhamento e avaliação de cada projeto “on line”. À frente do seu tempo, este sistema, que nun-ca teve similar no Brasil, precedeu o LATTES e depois do surgimento desta base curricular, o REAACT perdeu seu contato com o CNCT e nunca conseguimos vinculá-lo ao LATTES, ou seja, voltamos à estaca zero: não temos mais um sistema de acompanhamento e avaliação de

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C&T no MCT. Nada contra o LATTES, mas perdemos o REAACT e não o substituímos por nada. A terceira lição, que o PADCT me ensi-nou, foi formular programas com uma definição clara de metas, objeti-vos, atividades e resultados com indicadores mensuráveis de avaliação. Esta metodologia, denominada ”Logical Frame Work – Log Frame” (ver Trabalhos Técnicos nº. 14, anexos no CV Lattes), foi utilizada para a elaboração do PADCT III, na década de 1990, e consta do seu ”Pro-gram Implementation Plan - PIP”, aprovado pelas partes (Banco Mun-dial/BIRD e Governo do Brasil, por meio do Senado Federal).

Em 2001, os recursos do PADCT III foram utilizados para finan-ciamento de projetos que se convencionou chamar Instituto do Milênio. Eu já havia saído do MCT, e nunca entendi como recursos formalmente aprovados pelo Senado, para um programa que tinha metas, fruto de um empréstimo governamental, que foi negociado com dificuldade, pode ser simplesmente desviado para outra finalidade não prevista no acordo. Interrompia-se um programa que tinha treze anos de funcionamento e substituía-se por outro que não era nada. Não tinha regras claras; não tinha metas definidas. Forjou-se, no edital, um Comitê Ad Hoc interna-cional (o único americano era uma antropóloga) imitando o GEA, cuja finalidade no PADCT era outra. O GEA, no PADCT, não tinha função AdHoc. Era um Comitê de Gestão Externa ao Programa que se reunia anualmente para avaliar seu andamento e o das Agências. O falso GEA do Milênio pagou oitocentos dólares /dia para este Comitê AdHoc que ficou duas semanas no Brasil para selecionar, aprovar e financiar proje-tos que nunca foram avaliados adequadamente. Nenhum para a agricul-tura. A EMBRAPA apresentou dezessete. Fiz um artigo que publiquei no Correio Brasiliense sob o título “Agricultura sem Ciência”. Neste artigo, disse que o país, no mesmo dia em que anunciava uma safra re-corde, anunciava um apoio a projetos de pesquisa sem nenhum projeto para agricultura. Sarcástico, afirmei: “Deve ser porque estamos seguin-do como estratégia a carta de Pero Vaz de Caminha: nesta terra, em se plantando, tudo dá”. Esta iniciativa foi uma página negra na história da

ciência. Escrita no vácuo do PADCT III, e antes do estabelecimento dos Fundos Setoriais, propôs uma relação Universidade Empresa que era exatamente a função do PADCT III. Não questiono a qualidade dos pro-jetos financiados. Alguns dos grupos têm sucesso e perduram com bom desempenho. Questiono a forma de desviar recursos sem uma política clara. Depois do PADCT, o Programa Milênio acabou, como é óbvio. Que consequência tiveram os projetos financiados? Encontrei uma tese que tenta avaliar os projetos financiados pelo Instituto do Milênio. Li a tese e retirei os seguintes comentários:

Extraído da Tese de Lucas Roberto da Silva Dias,

orientado por Ester Dal Poz

programa institutos do milênio 2001-2003

(padct iii – mct)

O Programa Institutos do Milênio (2001-2003) integrante do PADCT III

Plano de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico é um dos componentes para incentivo ao desenvolvimento científico tecnológico formulado pelo Governo brasileiro funda-do nas diretrizes gerais e específicas do PPA – Plano Plurianual de 1996-1999. O PADCT III tinha como objetivo geral aumen-tar a competitividade do setor produtivo e a melhor apropriação socioeconômica dos resultados dos esforços direcionados pelo programa. Para tanto, foram definidos três objetivos básicos (MCT;1998):

1. Criar ambiente para a cooperação tecno-científica en-tre o setor privado e o governamental, através do apoio à implementação de atividades de transferência científico-tecnológicas e geração de inovações;

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2. Capacitação de capital humano visando às demandas dos setores acadêmico e produtivo;

3. Financiar a PD&I para a aplicação de conhecimento científico e tecnológico em áreas selecionadas de relevân-cia para o desenvolvimento nacional.

Formulado pelo MCT – Ministério da Ciência e Tecno-logia e, executado pelo CNPq – Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico, o Programa Institutos do Milênio visou à interação entre universidades e empresas para ampliar a capacitação tecnológica do setor produtivo e o forta-lecimento da competência científica e tecnológica nacional em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país (MCT, 1998).

Planejado para integrar grupos de pesquisa em redes, ob-jetivou potencializar a base nacional instalada de laboratórios e favorecer a integração com centros internacionais de pesquisa, estendendo os padrões de excelência a um número crescente de instituições em diferentes regiões do país (CNPq, 2007). Em 2001, o Programa Institutos do Milênio contou com emprésti-mos do Banco Mundial para apoio a 17 projetos (apresentados no Quadro 4) sendo que, até 2003, foram investidos R$ 90 mi-lhões em pesquisas nas áreas da saúde, meio ambiente, agricul-tura, novos materiais, nanociências e estudos do potencial da área de Recursos do Mar e regiões como o Semiárido nordestino (MCT, 2007).Os dezessete projetos aprovados.

Quadro 4 – institutos do milênio:

projetos aprovados em 2001

Fonte: CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-fico e Tecnológico.

dEscrição informaçÕEsgruPo i

Institutos com excepcional nível científico e/ou tecnoló-gico em suas áreas de atividade, com papel decisivo para elevar a competência nacional nestes campos do conheci-mento.Recursos financeiros: R$ 60 Milhões.

1avanço Global e inteGrado da MateMática braSileira

Impulsionar o desenvolvimento da matemática, fortale-cendo a interação com áreas da C&T e sua aplicação no setor produtivo. Impactos nas áreas: petróleo, clima im-previsão do tempo, energia elétrica, transição de fase e linguística, bio-matemática e matemática financeira.

2inStituto do Milênio para evolução de eStrelaS e GaláxiaS na era doS GrandeS teleScópioS.Desenvolvimento de projetos instrumentais, formação e qualificação de pessoal na área de astronomia. Envolve mais de 80% dos astrônomos brasileiros e 17instituições de pesquisa.

3 Fábrica de o Milênio. Realizar atividades de pesquisa e desenvolver soluções para fortalecer a capacidade tecnológica e gerencial de pequenas e médias empresas do setor de autopeças.

4 inStituto do Milênio de MateriaiS coMplexoS.Compartilhar informações sobre a criação, aperfeiçoamen-to, conhecimento e aplicação de materiais com proprieda-des específicas como ópticas, elétricas e mecânicas, com grande potencial de aplicação científica ou tecnológica.

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5inStituto MultidiSciplinar de MateriaiS poliMéricoS.Rede de pesquisadores das áreas de química, física e en-genharias, coordenada em pesquisas e aplicações de pro-priedades elétricas e/ou ópticas de materiais poliméricos.

6 inStituto de inForMação Quântica.Estudos e métodos para caracterizar, transmitir, armaze-nar, compactar e utilizar computacionalmente a informa-ção contida em estados quânticos e transferência da in-formação quântica entre a matéria e a luz. Aplicações em algoritmos computacionais.

7 inStituto de nanociênciaS.Investigar sistemas nano estruturados, reconhecidos como prioritários para o desenvolvimento tecnológico em mi-croeletrônica, optoeletrônica, fotônica,telecomunicações e bioengenharia. Congrega 66 pesquisadores de várias especialidades e de 21 instituições brasileiras.

8rede de peSQuiSa eM SiSteMa eM chip, MicroSSiSteMaS e nanoeletrônica.Pesquisa e integrar os grupos de microeletrônica das uni-versidades e empresas. Impulsionar a pesquisa em micro-eletrônica no país, via esforços e experiências multidis-ciplinar.

9eStratéGiaS inteGradaS para eStudo e controle da tu-berculoSe no braSil.Novas drogas e vacinas, testes diagnósticos e avaliação clíni-co-operacional.Desenvolver novas tecnologias para contro-le e tratamento da Tuberculose e formar recursos humanos multidisciplinar e multi-institucional.

10 inStituto de inveStiGação eM iMunoloGia.Estudar aspectos genômicos, fisiopatológicos, farmacológi-cos e epidemiológicos de doenças como: alergia, transplan-te, câncer, infecção, autoimunidade e imunodeficiência.

11bioenGenharia tecidual: terapiaS celulareS para doençaS crônico-deGenerativaS.Introduzir, desenvolver e capacitar a nova área médica da Medicina Regenerativa, doenças crônico-degenerativas e traumáticas com terapias celulares e/ou teciduais.

12inteGração de MelhoraMento Genético, GenoMa Fun-cional e coMparativo de citruS.Mapeamento genético das frutas cítricas, identificando os genes resistentes a doenças, contribuindo às estratégias de controle de pragas.

13 áGua - uMa viSão Mineral

Integrar etapas da mineração com o meio ambiente, vi-sando à eficiência na recuperação da água por meio de processos de beneficiamento e de novas tecnologias de materiais para o tratamento da água utilizada.

14MudançaS de uSo de Solo na aMazônia: cliMáticaS e na reciclaGeM de carbonoS.Estudar os impactos do uso do solo amazônico no clima, na qualidade da água, no ciclo de carbono e nos ciclos biogeoquímicos essenciais à manutenção da floresta. In-tegração de 13 IPES e 95 pesquisadores.

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15 núcleo de eStudoS coSteiroS.Estudar a estrutura, o funcionamento e a história evolu-tiva dos manguezais e estuários da costa norte brasileira, importantes na economia da Amazônia.

gruPo ii

Institutos atuantes em áreas estratégicas, definidas segun-do as prioridades do programa de Ciência e Tecnologia do MCT.

Recursos financeiros: R$ 30 Milhões.

16SeMiárido: biodiverSidade, bioproSpecção e conSer-vação de recurSoS naturaiS.Unir IPES para soluções e melhorias das condições de vida no semi-árido (11,5% do território nacional). Pes-quisas nas áreas de: biodiversidade, bioprospecção, con-servação de recursos genéticos e conservação de recursos hídricos.

17oceanoGraFia: uSo e apropriação de recurSoS coS-teiroS.Formação de consórcio entre IPES na área da Ciência do Mar. Formação de rede para estudos de sistemas costeiros. Monitorar, compreender e predizer problemas relativos à pesca, maricultura, biodiversidade, qualidade ambiental, erosão e uso e ocupação costeira.

Existem poucos estudos de avaliação de C&T no Brasil. Essa in-felizmente não é uma cultura que se consolidou no país. Encontrei, en-tretanto, esta tese de mestrado que avaliou a iniciativa dos Institutos do Milênio. Talvez em um período curto a relação Universidade-Empresa não pudesse ser exigida, mas a tese faz um levantamento sobre todas as patentes obtidas no USPTO, no período de 2004 a 2008. Nenhuma tem relação com os projetos financiados. Mais tarde fui convidado pelo Banco Mundial para escrever o documento de conclusão do PADCT III. Recusei. O conceito de Instituto do Milênio foi inicialmente defendido pelo Chile, que convidou a todos no Governo Frey para responder a per-gunta: pode a ciência ser globalizada? A delegação brasileira era chefia-da pelo Ministro Vargas, mas, nessa discussão, começaram a aparecer sinais de interesse por esta iniciativa: Instituto do Milênio, que tinha defensores no governo brasileiro e curiosamente no “staff” do Banco Mundial. Como Secretário do Ministro Vargas, assisti a esta discussão, que teve como consequência a criação de Institutos do Milênio no Chi-le, único lugar onde eles ainda funcionam, pode-se dizer bem. Avaliei outros, por convite, no México, na Venezuela e na Colômbia. Não se fala mais neles. Muito menos no Brasil.

Em síntese, o PADCT III teve vida curta. Foi desativado na ges-tão do Ministro Bresser Pereira (1999). Em Janeiro de 1999, ninguém sabia que o PADCT ia acabar. O Bresser Pereira e o Carlos Pacheco convidaram todos os Secretários de C&T dos estados para propor uma parceria financeira. Não esqueço uma das frases do Bresser, na minha frente: “Dizem-me que tudo o que o Luiz ABC está fazendo está dando certo; mas vou mudar”. Na mudança, lá se foi o REAACT e depois o PADCT III, cujos recursos foram aplicados em Projetos do Milênio, como descrevi antes. O Banco Mundial, para minha surpresa, aceitou que o programa fosse mutilado em 90 milhões. Depois, eu fui embora de volta para a EMBRAPA. A experiência que vivi no MCT, nos anos 1990, e a frustração de ver um Programa bem-sucedido desaparecer no meio do caminho, substituído por outro mal estruturado, em uma

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alternância de ministros do mesmo partido político, colocou diante dos meus olhos o seguinte contexto:

Os países pobres não conseguem proteger o setor de C&T de •interferências de natureza políticas e /ou ideológicas, que provocam a interrupção de projetos de sucesso, como aconteceu com o PADCT, no MCT, em 1999, e com o desenvolvimento da engenharia genética de plantas, no CENARGEN, até 2002;

Não se conseguem convencer os Executivos responsáveis pela •política de finanças do país, que eles devem tratar C&T de uma forma prioritária e diferenciada de outros setores. Apesar da importância do PADCT, nunca fui recebido por Executivos do alto escalão da área fi-nanceira federal, mesmo sendo Secretário Nacional.

Estes fatos, que ocorrem com histórica frequência, provocam descontinuidade nos investimentos e no desenvolvimento da C&T nos países em desenvolvimento, o que nos diferencia dos países desenvol-vidos, menos afetados por problemas sociais, o que facilita sua mis-são de preservar com prioridade seus setores de C&T. O Brasil, como outros países em desenvolvimento, precisa proteger seus sistemas de C&T de influências que resultam de alternâncias de poder político; for-mular corretamente seus programas de C&T e avaliá-los com rigor.(Ver “Strategies to assure adequate scientific outputs by developing coun-tries – a scientometric evaluation - Brazilian PADCT as a case study – Cybermetrics Volume 9, 2005: issue 1, paper 1)”. A avaliação correta dos investimentos em C&Té a única estratégia capaz de permitir o es-tímulo de maiores investimentos na área. Muitos cientistas importantes dizem abertamente que, depois que recebem os recursos, ninguém do governo os procura para saber os resultados, só para receber a presta-ção de contas. A história da presença do PADCT na ciência brasilei-ra pode ser recuperada pelos “Informes PADCT”, que tive o cuidado de incluir no meu currículo para que, como sempre acontece, não se apague da memória da sociedade esta partitura de sucesso, a qual eu tive a honra de ser um dos seus regentes, por um longo período, mas

que teve outros regentes importantes: Wladimir Pirro e Longo, Antonio MacDowel, Helio Barros e foi, na verdade, construído pela academia brasileira. Hoje, estou convencido de que é possível para as Agências terem transparência, com um sistema em WEB que funcione como um observatório, com links para todas as bases de dados importantes, de modo a permitir diariamente um relatório sobre tudo que foi feito na Agência. Estou trabalhando nesse instrumento. Está tudo pronto. Para isso, as Agências têm que se comprometer com a transparência. Esta é a parte mais difícil.

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A ciência brasileira começou a mudar dramaticamente com a criação dos Fundos Setoriais. Esse esforço começou ainda na gestão do Ministro Vargas. O primeiro Fundo Setorial foi criado em 1999: CT Petro Petróleo e Gás Natural. Com essa mudança de paradigma, o go-verno abria mão de recursos de impostos para ser aplicados em C&T. Uma renúncia fiscal aprovada pelo Governo Federal e endossada pelo Congresso. Em minha opinião, um gol de placa do Ministro Vargas. Isto permitiu, pela primeira vez, estabelecer por lei recursos para a C&T em áreas estratégicas. Passamos a saber que orçamento teríamos no ano seguinte. Qualquer iniciativa baseada em empréstimo com o Banco Mundial perdeu o sentido. O modelo PADCT ficou obsoleto. Ele só funcionou na década de 1980 e 1990 porque protegia os investimentos de C&T contra a inflação que, no governo Sarney, na Nova República, chegou a 1% ao dia. O PADCT permitiu, de 1986 a 1994, que os in-vestimentos em C&T resistissem a desvalorizações cambiais que cor-responderam a dezesseis dígitos (só perdeu para Alemanha de 1920) de 1965 a 1994 e quatro trocas de moedas seguidas. Isso porque o em-préstimo era em dólares. Curioso que essa circunstância, que vencemos com o PADCT, não tenha o reconhecimento devido. Aron Kuppermann, consultor do Banco Mundial e um grande amigo, dizia: “Este programa

5

– O novo milênio –

a ciência dos fundos setoriais

existe para que os recursos cheguem aos laboratórios em valor real e no tempo adequado”. A segunda parte era mais difícil, como já vimos, mas melhorou no governo Itamar e gestão do Ministro Vargas. Tudo isso perdeu o sentido primeiro com o Plano Real, que começou oficialmente em 27 de fevereiro de 1994, com a publicação da Medida Provisória nº 434, no governo Itamar, e com os Fundos Setoriais que começaram em 1999, no governo Fernando Henrique. Ainda assim, um dia, o Carlos Pacheco me convidou para uma reunião e disse: “Venha ver como ins-titucionalizamos o PADCT.”, e me mostrou o CGEE, que faria a gestão dos Fundos Setoriais. O PADCT tinha deixado uma marca. A marca da transparência. Na verdade, essa era a ideia. Na verdade, depois do PADCT, nunca mais tivemos transparência na gestão de C&T. O Pache-co realista dizia, com muita graça: “A três portas de distância do meu gabinete, ninguém mais me obedece.” Não poderíamos, como vaticinei, passar a história com empréstimos para C&T, no Banco Mundial. Hoje, fazem isto países que não têm Fundos Setoriais. A Uganda é um deles. O Carlos Pacheco e o Mauricio Mendonça, durante a gestão do Mi-nistro Sardenberg, criaram muitos, se não quase todos, os Fundos que temos hoje e têm um grande mérito de terem conseguido essa façanha.

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Com os Fundos Setoriais a C&T brasileira mudou dramatica-mente. Os Fundos garantem continuidade aos programas, como o PADCT conseguia, só porque tinha recursos aprovados pelo Senado. É fácil verificar graficamente que os investimentos em C&T aumentaram exponencialmente depois dos Fundos Setoriais, mas principalmente no governo Lula. A área financeira do governo Fernando Henrique achava que ciência era para país rico. Nem com todo o prestígio e esforço do Ministro Vargas, que ainda ficou o primeiro período do governo Fer-nando Henrique, os Ministro do dinheiro obedeciam ao Presidente. O Itamar nunca falou sobre ciência. Deixava tudo nas mãos do Ministro Vargas acertadamente. O Collor ficou pouco tempo. Uma vez, o Minis-tro Jaguaribe, que me chamava de meu cientista, levou-me para uma audiência com o Presidente. Ele chamou o Ministro Marcilio Marques Moreira e disse textualmente. “Tudo o que o Ministro Jaguaribe pedir, atenda. Tem o meu sinal verde”. O Jaguaribe queria recursos para o Projeto de Cooperação com a China, via INPE. Era um projeto caro, é verdade. Voltou exultante. Temos um Presidente de luxo. No dia se-guinte, ligou e ligou atrás do dinheiro, sem sucesso. Chamou o Ministro Marques Moreira. Eram amigos, e disse: “Marcilio, começou o balé da tergiversação”. O Ministro Jaguaribe não perdia o senso de humor, mesmo nos momentos mais difíceis. Uma vez, tivemos problemas na Amazônia com o Mestrinho que chamava o INPA de hotel de estrangei-ros. O governador nos recebeu com toda a pompa para um jantar e co-meçaram a falar de vinhos de redutos recônditos da França que o Mes-trinho, para surpresa do Jaguaribe, conhecia todos. Na saída, perguntei: “Então, Ministro, qual foi a sua impressão do Governador?” Ele disse: “É um primitivo inteligentíssimo”. Nunca ouvi definição melhor.

É verdade que a percepção governamental sobre C&T pode ter mudado devido ao esforço histórico, que fizemos, de forma consistente, de formar recursos humanos. Este esforço é ímpar e não existe igual na história contemporânea brasileira. Imune às alternâncias de poder político mais conflitantes, o Brasil treinou, literalmente, dezenas de mi-lhares de jovens cientistas, a partir do início da década de 1970, no país e no exterior. Em quarenta anos, como já dissemos, multiplicou por seis sua contribuição científica relativa no mundo. Esta contribuição

cresce no contexto mundial com uma velocidade tão grande quanto a dos Países do G7. Uma história de sucesso, que coloca o Brasil, nas ca-pas das melhores revistas científicas, particularmente na era genômica, em que tivemos contribuição relevante em muitas áreas. A história da EMBRAPA, estabelecida em 1973, na qual a engenharia genética de plantas começou em 1981, se confunde com o extraordinário sucesso da agropecuária brasileira. As notícias sobre o sucesso da EMBRAPA são publicadas a cada semana nas melhores revistas. A EMBRAPA é a maior empresa de pesquisa agropecuária do mundo. Com escritórios em todos os continentes. Maior do que o ARS americano, do que o CSIRO australiano e do INRA francês. Nunca, no Brasil, tivemos um momento tão adequado para mostrar à sociedade brasileira o que a ciência brasi-leira pode fazer em seu benefício. Temos a maior diversidade biológica, competência científica, a melhor genética para os trópicos e os genes dos quais precisamos podem ser facilmente identificados e caracterizados.

Por que esses avanços não impactam a qualidade de vida da so-ciedade brasileira? Por três razões principais:

A primeira dificuldade está na gestão de C&T de orçamentos de bilhões que crescem a cada ano, felizmente. A gestão centralizada no Governo Federal, mais especificamente na FINEP, está se tornando cada ano mais difícil. Os orçamentos crescem, mas o prédio e a equipe da FINEP não crescem. Dois caminhos são necessários: dividir a gestão fi-nanceira com Bancos, como faz a FAPESP, e aumentar as parcerias com Governos Estaduais, o que já vem acontecendo de forma crescente.

A segunda dificuldade eu chamei antes de “Ditadura da União e o exercício competente da legislação em vigor”. Por razões provavel-mente justificáveis conceitualmente, os Tribunais de Conta são cada dia mais rigorosos com o uso de dinheiro público. Isto, como é óbvio, não se aplica só para C&T e é intrinsecamente bom. Melhor do que avalizar a corrupção desenfreada que assola o país. Qualquer lei , aprendi, deve ser justa e viável no seu exercício. Leis cada dia mais rígidas e inviáveis no seu exercício estimulam a sua burla e, como se diz popularmente, não pegam. Como funcionam essas leis no mundo? São justas e exequí-veis no seu exercício. Impedem a corrupção? Claro que não. A corrup-

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veste nos países mais ricos, estaríamos em outro patamar. Leis recentes começam a atrair e estimular investimentos privados em C&T.

inveStiMentoS nacionaiS eM peSQuiSa e deSenvolviMento (p&d) FinanciadoS pelo Governo e pelo Setor eMpreSarial, eM relação ao produto interno bruto (pib), eM anoS MaiS recenteS.

ção é um fenômeno mundial. Como se age no exterior? Há um extra-ordinário sistema em ação para coibir o enriquecimento ilícito. A culpa não é da lei é do seu usuário. A lei 8666 de 1993, que cuida de contratos e licitações públicas, é boa? É claro que é boa. As leis mais novas que estimulam a inovação são boas? É claro que são boas. Quando alguém burla a lei deve ser preso. Não é culpa da lei. A lei 8666 é continuamen-te emendada porque alguém ou não quer seguir a lei; ou a interpreta erradamente; ou consegue burlar a lei. A EMBRAPA tinha total autono-mia quando foi criada. Eu contratei o Eugen Gander, quando ele estava fazendo um “Sabatical” na França, porque precisava dele na França. Hoje, o acordo que citei com a PGS, que fizemos na década de 1980, seria impossível, porque efetivamente dezenas desviaram dinheiro do Brasil para paraísos fiscais e não foram presos. Querem que indique alguns? Melhor não. Alguns até já morreram, mas em liberdade. Como é possível resolver as dificuldades atuais de financiamento nacional e internacional para atividades de C&T eminentemente voltadas para a pesquisa em nível internacional? Como é possível inserir o Brasil no cenário internacional? Muito difícil. Hoje, com a proibição generali-zada e a ditadura da União que, infelizmente, não coíbe a corrupção, porque sempre se vai burlar a lei, o Brasil está excluído dos grandes projetos internacionais de ciência. Temos Bancos no exterior, mas não podemos utilizá-los. O PADCT tinha conta no exterior e comprava a custo de catálogo. Hoje, pagamos o triplo por um equipamento ou re-agente porque não podemos comprá-lo em moeda local junto ao fabri-cante. A importação, que é fácil para alguns, de fato não é fácil. Como as regras de gestão são de exercício inviável, não conseguimos atrair o capital privado, como fazem os países desenvolvidos que paralelamente utilizam indicadores de desempenho confiáveis, como citei. O finan-ciamento às atividades de C&T, em todo o mundo, tem recebido, de forma crescente, a presença do setor privado, particularmente no novo século. No Brasil, estamos distantes desta meta. Melhoramos em anos mais recentes por causa dos Fundos Setoriais, que destinam legalmente recursos de impostos para C&T e em função dos investimentos de gran-des empresas: notadamente, a PETROBRAS. Ainda estamos longe dos países mais ricos. Se o setor empresarial investisse no Brasil o que in-

fontes: Organisation for Economic Co-operation and Development, Main Science and Technology Indicators 2009/2 e Brasil: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Extração especial realizada pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

Elaboração: Coordenação-Geral de Indicadores - ASCAV/SEXEC - Ministério da Ciência e Tecnologia. Atualizada em 05 /10/2010

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115lUiz antonio barreto de Castro

As leis recentes que estimulam a inovação estão chegando mais perto das expectativas dos empresários. O contexto dos marcos legais, entretanto, ainda é muito avesso para permitir grandes investimentos pelo setor empresarial. Os empresários brasileiros não são diferentes dos empresários estrangeiros (muitos acham que são). O Brasil tem uma circunstância diferente de países que têm inflação perto de zero. Mesmo hoje, que a taxa de juros já caiu muito, ainda é quase o dobro da inflação. Risco zero e rendimento duas vezes maior do que a inflação é um binômio difícil de bater. Quando a taxa de juros chegar perto da inflação o investimento empresarial em P&D&I vai aumentar. E até lá? Temos que encontrar caminhos atraentes para o investimento em-presarial. A Lei Rouanet de C&T, que o Jorge Guimarães e o Ronaldo Mota fizeram, no MEC, chegou perto. Falta uma definição ampla de ICT. Ora bolas, ICT é Instituição de Ciência e Tecnologia, pode ser pública ou privada. O Jorge me explicou que o parlamento está mu-dando a lei. Acho difícil. Mudar leis logo no início pode ser necessário. Nenhuma lei nasce perfeita. A outra lei, a do Bem, permite às empresas, que investem em P&D, deduzirem inteiramente impostos devidos ao Governo Federal. A dedução é automática, enfatiza o Ronaldo Mota.

Uma lei moderna. Os empresários ainda não se familiarizaram com ela. Uma vez visitei o CENARGEN da Coreia. Gostei de uma tecnologia de controle de pragas por bactérias. No dia seguinte, recebi a visita de um coreano que me deu um cartão no qual se lia: Insect Biotech. Perguntei quantos empregados tinha a empresa. Respondeu: Um, o CEO, que sou eu. Criou a empresa de um dia para o outro. Ainda estamos longe disto. É preciso entender que tempo é a variável mais cruel. Quando visitei a CELERA, empresa do Craig Venter, ganhei um boné que dizia: “Time matters. Discovers cannot wait”.

– 6.1 - A LEI DE PATENTES

A circunstância de ser o Secretário de Políticas Programas do MCT, por quase nove anos, na década de 1990, colocou-me à frente de importantes debates para o estabelecimento de marcos legais, sem os quais seria ou será impossível desenvolver as aplicações da Biologia no Brasil. Já falei de passagem na lei 8666, que não ajudei a construir. É óbvio que só legislações não bastam, mas sem legislações adequa-das é impossível. Quero, entretanto, enfatizar os marcos legais que se relacionam com a revolução da biologia ou, como chamam alguns, a revolução gênica. Na década de 1960, a biologia não tinha chegado ao mercado. O intercâmbio de recursos genéticos era intenso, como já disse. A engenharia genética começou na década de 1970. A biologia chegou rapidamente ao mercado e com ela as discussões sobre o paten-teamento da vida, que se estendem até hoje. O Brasil tinha uma lei de patentes de 1973. Proibia o patenteamento de produtos químicos, mas de biologia nem se cogitava. Com a experiência de Herbert Boyer, que já contei, a lei ficou obsoleta no ano em que foi sancionada. Na década de 1980, mais especificamente em dezembro de 1980, os Estados Uni-

6

– As políticas –

a construção dos marcos legais

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116 Uma História sobre a CiênCia brasileira 117lUiz antonio barreto de Castro

dos estabeleceram a Bahy Dole ACT ou University and Small Business Patent Procedures Act, que tratava de patentes resultantes da atividade de instituições federais de pesquisa. Birch Bahy era um Senador de In-diana e Bob Dole do Kansas, estados que não estão entre os mais ricos. Não é mais possível fazer intercâmbio de material genético, como an-tigamente. Para tudo que se recebe temos que assinar um MOU – Me-morandum of Understanding. No governo Collor, fomos “estimulados” a assinar o acordo de TRIPS – Agreement on Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights. Essa decisão nos levou a rever inúmeras leis e criar outras que não tínhamos. A primeira, como é óbvio, foi a Lei de Patentes 9279 de 1996. Longas discussões no Congresso. Os mais exaltados diziam que uma Lei de Patentes, que incluísse química e biologia destruiria, pela ordem, a FIOCRUZ e a EMBRAPA. Afinal, em que inovava a lei de patentes na área da Biologia?

art. 18. não são Patenteáveis:

I - o que for contrário à moral, aos bons costumes e à se-gurança, à ordem e à saúde pública;

II - as substâncias, matérias, misturas, elementos ou pro-dutos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de ob-tenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico; e

III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os micro-or-ganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de paten-teabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, micro-organismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana

direta em sua composição genética, uma característica normal-mente não alcançável pela espécie em condições naturais.

o artigo 10º deiXa CLaro:

Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utili-dade:

IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.

Portanto a lei permite o patenteamento de microorganismos (não de genes) transgênicos e não permite o patenteamento de plantas cul-tivares que não constituem atividade inventiva. Para plantas adotamos modelo sui generis que veremos mais a frente. Na verdade comparada a outras leis é uma lei tímida. Não porque não aceite a patente de desco-berta, mas porque considera descoberta a identificação, caracterização, estudo de funcionalidade e aplicação industrial de uma molécula obtida da natureza. A biodiversidade brasileira é vazia de patentes de produtos, embora seja possível a patente de processos que envolvam produtos da biodiversidade. Patentes de produtos e processos da biodiversidade exige anuência do CGEN, orgão que legalmente domina há dez anos o acesso da ciência a biodiversidade brasileira que vem gradualmente diminuindo. O CGEN exige que o depósito de patente ateste que teve autorização para coletar o material biológico , para muitos recursos ge-néticos. A lei que regula o acesso a biodiversidade é uma escrecência e o CGEN está sendo processado pelo Ministério Público, acusado de improbidade administrativa por facilitar, segundo acusa o MP, a biopi-rataria de espécies da biodiversidade brasileira em favor de ONG inter-nacional Natural Source Internacional Ltda. (Inquérito Civil Público no 1.15.000.000.240/2009-72), como veremos a seguir.

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118 Uma História sobre a CiênCia brasileira 119lUiz antonio barreto de Castro

A lei de patentes sofre com dois instrumentos que afetam seu desempenho. Em 2000, quando José Serra era Ministro da Saúde e em um momento em que Antonio Carlos Magalhães estava no exercício da Presidência, a lei de patentes foi modificada para exigir que a concessão de patentes, na área farmacêutica, dependesse de anuência prévia da ANVISA. Não existe no mundo dispositivo semelhante. Seria o mesmo que vincular a concessão de patentes pelo USPTO à anuência prévia do FDA ou o EPO depender de anuência prévia do EMEA. Impensável. Em 2010, como Conselheiro da ANVISA, disse que reconhecia a exis-tência da lei, mas que ela não fazia sentido. Concordaram em fazer um painel para discutir o assunto. Com dificuldade, incluí, entre os pales-trantes, o Presidente do INPI, que, acreditem, não estava convidado, e de um representante do EPO, para o qual tivemos que pagar a passagem e estadia. O painel foi uma farsa. Os que citei, foram os únicos que ana-lisaram, com objetividade, o instrumento patente como fator importante no contexto da indústria farmacêutica. Os oito demais palestrantes, para minha surpresa, foram contrários a patentes de um modo geral e com veemência na área farmacêutica. Verifiquei que todos os que militam na área pública da saúde são contrários a TRIPS e a patentes na área farmacêutica. No painel, o Presidente do INPI foi vilipendiado, na sua ausência, por um deputado que não entende do tema e nunca deveria ter sido convidado. Reconheço que a possibilidade de patenteamento de organismos vivos trouxe um complicador para o instrumento de patentes, que jamais deveria ter sido antecipado quando celebramos a Convenção de Paris, no século dezenove. Assisti a uma mesa redonda na BIO, em Chicago, há três meses, no ano de 2010, oferecida pelos maiores especialistas na área de patentes em todo o mundo. Reconhe-cem que há uma crise. Ações judiciais intermináveis na área de patentes de organismos vivos. Por outro lado, sem patentes, ninguém se arrisca a fazer investimentos de longo prazo na área farmacêutica, por exem-plo, para desenvolver produtos que nem sempre chegam às farmácias. Publiquei um artigo sobre essa problemática no Nature Biotechnology explicando que a indústria farmacêutica brasileira só será consolida-

AnosBrasil Argentina México Coréia do Sul

Pedidos Concessões pedidos concessões Pedidos concessões Pedidos concessões

1980 53 24 56 18 77 43 33 81981 66 23 55 25 99 45 64 171982 70 27 35 18 70 43 68 141983 57 19 35 21 73 34 78 261984 62 20 40 20 77 43 74 301985 78 30 39 11 81 35 129 411986 68 27 56 17 69 37 162 461987 62 34 42 18 70 54 235 841988 71 29 32 16 74 45 295 971989 111 36 32 20 77 41 607 1591990 88 41 56 17 76 34 775 2251991 124 62 59 16 106 42 1.321 4051992 112 40 59 20 105 45 1.471 5381993 105 57 56 24 82 50 1.624 7791994 156 60 75 32 105 52 1.354 9431995 115 63 65 31 99 45 1.820 1.1611996 145 63 78 30 97 46 4.248 1.4931997 134 62 77 35 110 45 1.920 1.8911998 165 74 119 43 141 57 5.452 3.259

1999 186 91 96 44 147 76 5.033 3.562

2000 240 122 138 65 180 107 5.882 3.699

2001 247 127 146 58 220 95 6.792 3.783

2002 288 113 109 54 167 93 7.757 3.755

2003 333 150 123 68 213 93 9.614 4.198

2004 287 192 118 57 211 113 13.388 4.590

2005 340 93 92 37 217 88 16.643 4.811

2006 333 152 133 39 229 93 21.963 5.835

2007 385 112 166 52 216 89 23.589 6.882

2008 499 131 139 46 269 78 25.507 8.410

2009 - 146 - 47 - - - 9.401

concessão de patentes pelo instituto nacional de propriedade industrial (inpi), segundo origem do depositante, 1995-2006

pedidos e concessões de patentes de invenção junto ao escritório norte-americano de patentes (uspto), segundo países de origem selecionados, 1980-2009

fonte: Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).Elaboração: Coordenação-Geral de Indicadores - ASCAV/SEXEC - Ministério da Ciência e Tecnologia. Atualizado em 04/09/2007

fonte: U.S. Patent and Trademark Office (USPTO).Elaboração: Coord. Geral de Indicadores - ASCAV/SEXEC - Ministério da Ciência e Tecnologia.

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120 Uma História sobre a CiênCia brasileira 121lUiz antonio barreto de Castro

da se conseguir unir as empresas de capital nacional com empresas de capital internacional. As empresas farmacêuticas, que são menores e têm raízes no Brasil, só têm um instrumento para fazer parcerias com as empresas multinacionais: patentes, que refletem sua inteligência e competência inovadora. Visitei essas empresas. Elas têm estas patentes. Por que as parcerias são importantes? Para que as empresas de capital nacional cheguem ao mercado global da indústria farmacêutica, que é de uma ordem de grandeza de trilhões de dólares. Hoje, as empresas de capital nacional não estão capitalizadas para realizar os testes clíni-cos, principalmente em sua fase III, que custa centenas de milhões de dólares. Parcerias entre empresas brasileiras e grandes empresas mul-tinacionais aproveitam a inteligência da empresa brasileira e impedem que elas, sem capacidade de competir, sejam compradas por multina-cionais, como vimos no traumático caso da BIOBRAS e muitos outros. Empresas brasileiras têm mercado e marca, além de inteligência. Um exemplo não tão recente, a SEMP (Sociedade Eletro Mercantil Paulis-ta), fundada em 1942, na cidade de São Paulo. No início, sua principal atividade foi a fabricação de rádios. No ano de 1951, a SEMP lançou o mais sofisticado rádio da época, o AC431, que ganhou o carinhoso ape-lido de “capelinha” e atingiu grande sucesso de vendas até meados da década de 1970, já na versão transistorizada PT-76, mas com o mesmo design. Confirmando mais uma vez seu pioneirismo, em 1972, a SEMP deu grande passo no mercado e lançou o primeiro televisor 20” em co-res do país. O ano de 1977 foi de grande importância para a SEMP, pois nessa época, a empresa celebrou um acordo de participação acionária e tecnológica com a Toshiba Corporation do Japão que originou a SEMP TOSHIBA.Uma parceria de vinte e três anos. O que tinha a SEMP que atraiu a Toshiba Corporation do Japão? Credibilidade, história, compe-tência, marca, mercado.

A arrecadação de royalties pela EMBRAPA, em função de suas atividades, principalmente relacionadas às leis de patentes e cultivares, ainda é pequeno, mas vem crescendo nos últimos anos. O oposto do que

pregavam os cavaleiros do apocalipse. Os números não indicam que a Lei de Patentes tenha produzido as consequências que foram antecipa-das pelos mais pessimistas embora, como todos sabem, o desempenho do Brasil, comparado com o da Coreia, em termos de patentes conce-didas no USPTO, seja pífio. Isto, entretanto, não pode ser atribuído à nova lei de patentes, porque o Brasil já tinha perdido a corrida para a Coreia de 1980 a 1995, ou seja: antes da nova lei de patentes, que foi promulgada em 1996. Embora o número de depósitos brasileiros seja muito pequeno, ele cresceu em 12 anos depois da lei de 1996, por um fator de 3.44. Nos quinze anos anteriores à lei de patentes, esse fator foi 2.16; da mesma forma, o desempenho da EMBRAPA melhorou depois de 1995. Poderia ter crescido, se não tivesse que conviver com o arca-bouço legal, que citei.

Não é possível competir com a Coreia. A Coreia patenteia no mesmo diapasão dos europeus e americanos. Vou enfatizar dois produ-tos que não patenteamos pela lei brasileira, que são fundamentais para a parceria que estamos propondo: extratos de plantas e biofarmacêuti-cos. O INPI revelou que não consegue patentear nestas áreas por falta de autorização do CGEM; lembram? Aquele que está recebendo um processo do Ministério Público. Em biofarmacêuticos, 200 produtos já foram aprovados. Apenas dois não são proteínas. Vamos competir com o mundo fora das proteínas.

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122 Uma História sobre a CiênCia brasileira 123lUiz antonio barreto de Castro

– 6.2 - A LEI DE CULTIvARES

Como admitimos que adotaríamos um modelo “sui generis” para proteção intelectual de plantas que, no Brasil, não podem ser patentea-das, tivemos que criar a Lei de Cultivares.Lei Nº 9.456, de 25 de abril de 1997. Uma cultivar, diferente das patentes, pode ser uma descoberta. Tem que ser nova, ou seja: distinta de variedades existentes, estável por muitas gerações homogênea e caracterizada por um número de descri-tores, que varia com a espécie e a distingue das demais. Outra revolta geral. Como proteger intelectualmente o trabalho dos melhoristas, que devia ser livre, porque era feito com dinheiro da sociedade? TRIPS exi-gia alguma forma de proteção. O que a princípio não entendia, era por que muitos melhoristas eram contra uma lei que dava direito a eles. De-pois, entendi que muitos melhoristas achavam melhor fazer as varieda-des e levar para suas fazendas, antes de lançá-las no mercado. O Brasil vem exercendo, durante os anos aos quais sucederam a lei de cultivares, liderança, até certo ponto confortável, sobre as cultivares brasileiras, que eram desviadas para outros países, sem que tivéssemos como recla-mar. Criamos o SPC – Serviço de Proteção de Cultivares no MAPA e

entramos para a UPOV que é um serviço semelhante de alcance interna-cional para impedir que nossas cultivares fossem levadas impunemente para outros países. A UPOV foi criada em 1961 e seus estatutos revistos várias vezes. Adotamos a UPOV modelo 1971, que garante o direito da melhoria a sobre o material propagativo, mas não sobre as lavouras. Este princípio foi revisto em 2008 porque a lei brasileira de sementes é muito permissiva quanto ao direito do agricultor de conservar sementes para uso próprio. O direito foi introduzido na lei para proteger o peque-no agricultor, mas chegou a um ponto que produtores de milhares de soja usavam esse princípio e não precisavam comprar sementes.

A EMBRAPA perdeu muito espaço recentemente em milho e soja, que estão sob o controle de empresas privadas. Temos que reagir.

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124 Uma História sobre a CiênCia brasileira 125lUiz antonio barreto de Castro

– 6.3 - A LEI DE BIOSSEGURANçA

Para promover o desenvolvimento científico e tecnológico da Biotecnologia, uma das leis mais importantes foi a Lei de Biosseguran-ça, que regula todos os aspectos de construção, uso e liberação de orga-nismos geneticamente modificados. A minha familiaridade com o tema resulta de, mesmo antes de me transferir para o MCT, ter sido consultor do Banco Mundial para elaborar ”Biosafety Guidelines for the PADCT/Biotechnology”, primeiras diretrizes na área de biossegurança, adota-das oficialmente por um programa de governo no Brasil, sem o qual o Banco Mundial não celebraria o contrato com o governo brasileiro, que regeu o PADCT II, em 1986. A Lei de Biossegurança, aprovada em 2005, foi precedida de longas discussões, mas sua aprovação terminou de forma tranquila. Fui eleito Presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBIO, por três mandatos consecutivos, de julho de 1996 a julho de 1999, e participei por mais um ano na CTNBIO, por convite do Ministro Ronaldo Sardenberg. A engenharia genética que construímos no CENARGEN teria sido muito mais relevante para a agricultura brasileira, não fosse o Brasil vítima de uma campanha “Por um Brasil livre de transgênicos”, que tem assolado o país nos últimos dez anos (sete dos quais uma verdadeira moratória) e que ainda está viva e ativa. As instituições brasileiras, só em 2009, conseguiram libe-rar um produto da engenharia genética brasileira sem cooperação com empresas multinacionais. Até recentemente, poucas plantas transgêni-cas foram liberadas em geral, para não dizer somente duas (ver análise sobre a soja RR em anexo), de 1995 a 2005. De 2005 em diante, depois da lei que o Lula aprovou, melhorou muito este obscurantismo, que nos assolou e teve influência europeia. Lamentavelmente, condenaram-se os melhores centros de pesquisa científica da Europa: o Laboratório do Jeff Schell, no “Max Planck Institute”, na Alemanha, parceiro do Marc Van Montagu, que, com ele, construiu a tecnologia de engenharia gené-tica de plantas (via Agrobacterium tumefasciens, pela engenharia gené-

A cada ano o Ministro da Ciência e Tecnologia fazia a abertura do calendário da CTN-BIO que se reunia mensalmente. Na foto, o Ministro Sérgio Rezende faz a abertura do calendário da CTNBIO que precedeu a eleição do Presidente Walter Colli, que fez trabalho importante durante a sua gestão.

Quando ainda era Chefe do CENARGEN fui visitar a soja geneticamente modificada resis-tente a glifosato que se cultivava no Rio Grande do Sul e que chegou a Tupaceretã e outras cidades do Estado oriunda da Argentina, antes que aprovássemos a soja RR na CTNBIO em 1998. Uma das críticas que se fazia a soja resistente à herbicida é que ela não fixava N2, o que se vê facilmente na foto que não era procedente. A soja chamada “maradona” salvou o produtor de soja do Rio Grande do Sul que não tinha meios de controlar as ervas daninhas de sua lavoura.

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126 Uma História sobre a CiênCia brasileira 127lUiz antonio barreto de Castro

tica de plasmídeos Ti), mas desapareceu sem recursos. Jeff Schell fale-ceu em seguida. Pensei que havia falecido por depressão ou outra doença do gênero. Disse-me o Montagu, quando nos encontramos em 2010, que o Jeff Schell foi vítima de doença neurodegenerativa. O ”Plant Breeding Institute”, na Inglaterra, perdeu seus cientistas para os Estados Unidos. Perdeu também expressão, o Laboratório do Professor Cocking, em Nottingham, ”pai” dos métodos balísticos, onde o Elibio Rech, do CE-NARGEN, fez seu doutorado para ser o “pai” dos métodos balísticos no Brasil, com várias patentes nesta área. A engenharia genética, na Euro-pa, foi destruída tal como a genética moderna de Morgan no Stalinismo. Fiz um discurso neste sentido na WIPO, em 2002, (ver no CV Lattes, Comunicações e Resumos Publicados em Anais de Congressos ou Peri-ódicos, item 3). Esta campanha, de origem europeia, liderada pelo Prín-cipe Charles e pelo ‘Greenpeace’, começou quando o primeiro produto geneticamente modificado chegou ao mercado agrícola mundial, em 1995, e não apresentou ao mundo, em mais de quinze anos, nenhuma evidência científica que justificasse a condenação aos transgênicos que apregoam. No Brasil, ela teve o efeito inverso do que pretendia, porque, proibida a soja RR, liberada pela CTNBIO, em1997, aumentou desor-denadamente o uso da soja contrabandeada da Argentina, ao ponto de chegarmos a um momento a 50% de soja considerada “pirata” pela in-dústria de sementes, na medida em que não sofria qualquer fiscalização pelos órgãos federais. Em audiência pública, fui inquirido pelo Senador Capiberibe do Partido Comunista: “O Senhor era Presidente da CTN-BIO quando a soja RR entrou ilegalmente no Brasil?” Disse que sim. Continuou: “A que o Senhor atribui este fato?” (tenho notas taquigráfi-cas). Respondi, sarcástico: “À geografia: como o Brasil faz fronteira com a Argentina, os agricultores brasileiros viram a soja RR na Argen-tina e trouxeram para o Brasil”. Visitei os municípios produtores da soja denominada “Maradona” em Cruz Alta, Passo Fundo e Tupãceretã, en-tre outros. Lavouras absolutamente limpas, sem nenhuma erva daninha. Um agricultor me mostrou um boleto de rifa. Disse: “Estava rifando a minha propriedade para pagar ao Banco do Brasil. A RR me tirou do

buraco”. A soja RR, que entrou pela Argentina, teve muitos problemas. Os agricultores do Rio Grande do Sul não queriam comprar soja con-vencional, que se acumulava nos armazéns. A China disse, com razão, que não importaria soja do Brasil porque a soja não tinha fiscalização nem era legal. O Presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, decidiu corajosamente liberar a soja resistente ao herbicida glifo-sato no país e, em seguida, com a nova lei de biossegurança de 2005, o número de plantas GM liberado comercialmente, aumentou, como citei. Centenas de milhões de toneladas de alimentos transgênicos são consu-midas por bilhões de seres humanos e pela pecuária mundial, nos últi-mos quinze anos, sem ter provocado danos à saúde humana ou ao meio ambiente. A Organização Mundial da Saúde afirmou que os transgêni-cos liberados mundialmente não apresentam riscos para a saúde huma-na maior do que seus parentes convencionais. O Presidente Luiz Inácio

Em 1997 a CTNBIO aprovou a liberação comercial da soja RR tardiamente porque esta soja já havia entrado no Brasil oriunda da Argentina. No dia em que, como Presidente da CTNBIO, anunciei a liberação da Soja RR, a sala do MCT no térreo foi invadida pelo Gre-enpeace com coroas de flores de defunto anunciando que a Biodiversidade brasileira seria destruída. Quinze anos depois foi a Convenção da Diversidade Biologica que provocou a destruição da biodiversidade em todo o mundo.

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128 Uma História sobre a CiênCia brasileira 129lUiz antonio barreto de Castro

Lula da Silva ficou do lado da ciência e da EMBRAPA, a quem ouviu, por meio dos cientistas do CENARGEN. Queriam os ambientalistas queimar mais 1 milhão de ha da soja RR que vieram da Argentina, e que valiam perto de 1 bilhão de dólares. Na apresentação da EMBRAPA, ao final, o Presidente Lula perguntou: “Esta soja fez mal a alguém?” Silên-cio na audiência. Perguntou, então: “Algum problema ambiental gra-ve?” Silêncio de novo. Finalmente, disse: “Sempre fui contra transgêni-cos. Na verdade, me diziam que os transgênicos eram uma mal. Diante da apresentação da EMBRAPA, tenho que mudar de opinião. Não pos-so queimar 1 bilhão de dólares sem uma razão forte que o justifique”. Fez bem o Presidente. Tem ao seu lado, também, as Academias de Ci-ência do Terceiro Mundo, Reino Unido, Estados Unidos, China, Índia, México e a do Brasil. Quando este assunto estava nas mãos do Fernan-do Henrique Cardoso, ele o evitou para não “prejudicar” a campanha do José Serra. A justiça, com exceção da Juíza Celene Almeida, ficou sem-pre do lado do Greenpeace. Os juristas falam sobre este assunto com o maior desembaraço. Profeticamente, preveem efeitos irreversíveis ao ambiente. Afirmam que as sementes de soja transgênica não germinam. Resolveram condenar a competência da ciência brasileira, segundo eles, sem possibilidades de competir com as multinacionais. São douto-res em economia; vaticinam o fracasso econômico do Brasil com a transgenia, sem olhar para a agricultura da Argentina, que está chegan-do aos nossos calcanhares com essa tecnologia, na soja, no milho e no algodão. Propõem estudos de impacto ambiental que, na prática, já fo-ram feitos em todo o mundo, incluindo o Brasil. Mais de trinta países já liberaram comercialmente a soja resistente ao glifosato. Os juízes des-consideraram sistematicamente as Leis de Biossegurança. Legalmente, não aprenderam com o sábio voto da Juíza Celene Almeida, um marco na história jurídica mundial relativa a OGMs, que encerrou sete anos de moratória sobre o uso de transgênicos no Brasil.O Juiz Prudente, que interrompeu o desenvolvimento da Biotecnologia agropecuária no Bra-sil, por este caminho que acabo de descrever, refere-se aos transgênicos em sua “sentença” como: “organismos que darão origem a uma esqui-

sita civilização de aliens hospedeiros com fisionomia peçonhenta, a comprometer definitivamente, em termos reais, e não fictícios, a so-brevivência das futuras gerações de nosso planeta.” Escreveram esses juízes, na história brasileira, o primeiro caso, desde o descobrimento, em que uma tecnologia é proibida, e condenaram todo o esforço de trinta anos da ciência brasileira que, nesta área, viu os recursos desapa-recerem com a sentença judicial contrária à engenharia genética de plantas, em 1997. Proferida pelo Juiz Prudente, esse é o contexto da biossegurança no Brasil, mesmo depois que uma nova lei foi aprovada em 2005, dez anos depois da primeira, e regulamentada no mesmo ano. A campanha por um Brasil livre de transgênicos, repito, continua viva. Durante trinta anos, construímos, na EMBRAPA, uma rede avançada de biotecnologia agropecuária, sendo o CENARGEN, que chefiei de 2000 a 2003, o principal centro de desenvolvimento de organismos ge-neticamente modificados no Brasil e, certamente, um dos mais compe-tentes da América Latina. Fomos submetidos, repito, a uma verdadeira moratória judicial de 1997 a 2005, que causou o completo desapareci-mento dos recursos para as pesquisas na área da engenharia genética de plantas. As ações do Ministério do Meio Ambiente; das ONGs, apoia-das pelos sindicatos e pela Justiça, paralisaram a ciência e politizaram o seu cenário no Brasil. Ciência e política não se misturam. A política não pode obstruir o fluxo do conhecimento, como aconteceu na Rússia, de Stalin que ficou a favor de Lixento e contra a genética moderna do Mor-gan; e está acontecendo no Brasil, na Europa e em outros países da América Latina, como o México. Laboratórios foram queimados na UFRGS e o fato não foi devidamente apurado pela administração. Essa obstrução favorece os nossos competidores internacionais, como os Es-tados Unidos, e as empresas multinacionais, produtoras de agrotóxicos, que custam à agricultura brasileira mais de US$ 7 bilhões/ano e milha-res de vidas. No mundo, mais e mais países adotam a biotecnologia com o objetivo de incrementar o agronegócio e promover o desenvolvimen-to científico e socioeconômico. Segundo a ISAAA, um recorde de 14 milhões de agricultores grandes e pequenos, em 25 países, plantaram

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130 Uma História sobre a CiênCia brasileira 131lUiz antonio barreto de Castro

134 milhões de hectares de plantas geneticamente modificadas em 2009, 7 % ou 9 milhões de hectares a mais do que em 2008. O número cresce a cada dia. Foram registradas áreas recordes de cultivo para to-das as quatro principais culturas. Pela primeira vez, a soja GM ocupou mais de três quartos dos 90 milhões de hectares de soja mundialmente; o algodão quase metade de todos os 33 milhões de hectares plantados com algodão, no mundo; o milho, mais de um quarto dos 158 milhões de hectares mundiais de milho e a canola, mais de um quinto dos 31 mi-lhões de hectares de canola, no mundo. No Brasil, 21.4 milhões de ha são cultivados com plantas GM, quase a metade da área destinada à agricultura, no país. Criar impedimentos ao desenvolvimento das ativi-dades dos cientistas, nesta área, e impedir o livre acesso dos agricultores a esta tecnologia é um duro golpe contra a agricultura nacional e contra a competitividade internacional dos produtos agrícolas brasileiros.

– 6.4 - ACESSO à BIODIvERSIDADE

Na década de 1980, quando cheguei à EMBRAPA, o acesso à biodiversidade era absolutamente livre. No CENARGEN, havia um grande mapa do Brasil, todo espetado com alfinetes que assinalavam as expedições de coleta de plantas, que foram feitas, pelos botânicos do Centro a todos os ecossistemas brasileiros, desde 1974, quando o CE-NARGEN foi criado. O mapa ainda está lá. Foram literalmente cente-nas. Em 1990, no governo Sarney, foi promulgado o Decreto No. 98.830 que estabelecia regras para expedições em que participassem estrangei-ros. Um plano de trabalho era apresentado ao CNPq para aprovação. Do material coletado (para fins científicos), uma duplicata deveria ser deixada no Brasil, sob a responsabilidade da instituição parceira da ins-tituição estrangeira. A Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB é um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - CNUMAD (Rio 92), realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. A CDB criou um conceito novo em seu artigo 1º: o conceito de repartição de benefícios. Diz o artigo 1º da CDB, que trata dos Objetivos da Convenção:

Os objetivos desta Convenção, a serem cumpridos de acordo com as disposições pertinentes, são a conservação da diversidade bioló-gica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos ge-néticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financia-mento adequado.

A CDB, já no seu preâmbulo, estabelece que as partes contratan-tes da CDB são os Estados (países):

Reafirmando que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos.

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132 Uma História sobre a CiênCia brasileira

A princípio, a CDB foi entendida por todos como um instrumen-to que garantiria aos Estados (Parties) soberania sobre seus recursos genéticos, o que foi muito positivo para países megadiversos como o Brasil, que se apressou a assiná-la em primeiro lugar. Significava dizer que ninguém poderia fazer uso de recursos genéticos do Brasil sem repartir benefícios com o Brasil, onde estes recursos genéticos teriam sido obtidos. Na esfera do Executivo, entretanto, começou a prosperar um esforço de utilizar o Princípio da Repartição de Benefícios para que este princípio fosse incorporado a uma legislação nacional. Em um Congresso Internacional, na Dinamarca, fiz a proposta de estabelecer uma forma de direito aos que conservam a biodiversidade. Era um di-reito não exclusivo denominado “Biokeepers Right”. Entretanto, um anteprojeto, para garantir a repartição de benefícios para detentores de conhecimentos tradicionais, foi elaborado pela Senadora Marina Silva, com a intenção de assegurar às comunidades tradicionais estes direitos que, assim, teriam direito a benefícios derivados da utilização de re-cursos genéticos. A Casa Civil à época havia instituído um Grupo de Trabalho para elaborar uma legislação nacional que não contrariasse a CDB. Participei das discussões. Não havia discordância entre os inte-grantes do GT sobre os princípios da CDB, inclusive o de repartição de benefícios, mas uma lei nacional estabelece regras para serem seguidas entre pessoas físicas e jurídicas. A CDB estabelece regras para serem seguidas entre as Partes = Países. As discussões no GT seguiam com lentidão, até que uma Medida Provisória foi aprovada sob a liderança do MCT, à época, para contornar ação de uma OS denominada BIOA-MAZONIA, que celebrou com a NOVARTIS um acordo de prospecção de produtos de interesse industrial, a partir de micro-organismos. Este acordo provocou um grande clamor em setores da academia brasileira. Meus amigos comunistas me procuraram; diziam, indignados: “Vende-mos a Amazônia para a NOVARTIS”. Esta reação foi tão forte que o CEO mundial da NOVARTIS, que veio da Suíça para assinar o acor-do, voltou para a Suíça sem assiná-lo e a NOVARTIS nunca mais teve negócio com o Brasil. A pressão no MCT teve como consequência a

elaboração de Medida Provisória aprovada no governo Fernando Hen-rique, em 2000, e reeditada tantas vezes que transferiu para o Ministério do Meio Ambiente o controle do acesso à biodiversidade, mesmo para atividades científicas. Seu exercício, na última década, praticamente teve o efeito de proibir o acesso à biodiversidade para a identificação de substâncias bioativas de interesse farmacológico. A Medida Provisória é operada por um Comitê Gestor – CGEN, sediado no Ministério do Meio Ambiente, que já citei. Para coletar amostras da biodiversidade, é preciso licença do IBAMA, mas para identificar moléculas em material coletado, vivo ou morto, é preciso licença do Instituto Chico Mendes, criado pela Ministra Marina Silva, quando no exercício do MMA. A regra promove o absurdo de exigir que o Instituto Butantã peça licença ao Instituto Chico Mendes para identificar componentes moleculares importantes para a indústria farmacêutica, a partir de venenos de co-bras, que integram a coleção do Butantã. Todos os setores do Executi-vo entendem que é necessária uma nova lei. Entretanto, nunca conse-guimos promulgar, via Congresso, uma lei neste sentido. Ela esbarra principalmente no desentendimento entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e o Ministério do Meio Ambiente que infelizmente querem fazer leis separadas. Na verdade, estas pastas são as que têm menos a dizer sobre o assunto, que diz respeito, mais de perto, ao Ministério da C&T e da Saúde. Como se tudo não bastasse, está agora o CGEN sendo investigado pelo Ministério Público, acusado de favorecimento de Biopirataria a uma ONG internacional, como já citado.

Devo admitir que a CDB não produziu nenhum benefício aos países que a ratificaram e o pior: o Protocolo de Cartagena, derivado da Convenção de Diversidade Biológica, é um dos maiores entraves ao desenvolvimento brasileiro. Aprovado em um fim de semana, por um acordo de lideres, passou a constituir política pública. Afirmo que o protocolo foi pensado como uma estratégia para minar a Lei de Bios-segurança de fora pra dentro, em um de seus momentos de vulnera-

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134 Uma História sobre a CiênCia brasileira

bilidade, quando o Embaixador Sardemberg era Ministro de Ciência e Tecnologia, com instrumentos denominados “legally binding”. Com base neste Protocolo, o Brasil poderá ter um dia que rotular seus navios quando exportarmos soja para a União Europeia, sob o pretexto de in-formar à sociedade europeia. Isto foi proposto com base no Protocolo de Cartagena pela Ministra Marina Silva, na COP da CDB, em Curitiba. O Protocolo de Cartagena não trouxe, repito, nenhum benefício para as partes que integram a CDB e ao Brasil só trouxe malefícios e nenhum beneficio. Por essas razões, quando o Fórum de Competitividade da Biotecnologia no Brasil produziu uma Política para Competitividade da Biotecnologia Brasileira, as questões relativas aos marcos legais adequados surgem como maior obstáculo ao exercício dessa política. A CDB não cumpriu suas metas nem no que diz respeito a diminuir a destruição da biodiversidade, no mundo, e inexplicavelmente quer agora celebrar um Regime Internacional para garantir a repartição de benefícios entre as partes (países). Que benefícios, se ninguém acessa a biodiversidade? A biodiversidade mundial segue sendo destruída acele-radamente e em Conferência das Partes continuam as discussões sobre repartição de benefícios. Em Nagoya, em novembro de 2010, chega-mos a esse interminável conjunto de reuniões sobre a CDB. A revista Science publicou um longo testemunho que demonstra que a CDB foi incompetente para impedir que a biodiversidade em todo o mundo fos-se gradualmente destruída, embora sob a vigência e responsabilidade da CDB, que nada conseguiu para impedir essa destruição gradual e crescente. No Brasil, como em todos os países em que se localizam flo-restas tropicais, a destruição foi devastadora. No Brasil, em vinte anos, só na Amazônia, uma área do tamanho da Alemanha. A Biodiversidade não teve seu valor agregado aumentado, o que poderia estimular o uso crescente da Biodiversidade para fins de Bioeconomia. A CDB passou quase vinte anos em discussões estéreis, sem consequência para o uso da Biodiversidade. Esperamos que ela desapareça. Seguros, estamos, todos, que ela não serviu à Biodiversidadede do planeta.

Na década de 1990, os programas tinham poucos recursos. Cos-tumo dizer: as instituições de C&T são pobres e os programas paupér-rimos. A maioria não produziu consequências de grande impacto para atingir metas que pretendiam atingir. De qualquer forma, destaco o Pro-grama Recursos Humanos para Áreas Estratégicas/RHAE, que ainda existe com tímidos recursos, mas vem gradualmente perdendo a sua força diante de novos instrumentos legais e programáticos, que surgi-ram a partir da metade da última década. O Programa Piloto para Con-servação das Florestas Tropicais surgiu de uma expectativa do Ministro Goldemberg de levantar com o G7 1.5 bilhões de dólares. Fomos com os melhores embaixadores brasileiros a Genebra e conseguimos trazer 250 milhões de dólares para a decepção do Goldemberg. Coordenei as ações do Programa Piloto das Florestas Tropicais, no que diz respeito aos seus componentes de Ciência e Tecnologia - Centros de Excelência e Pesquisas Dirigidas - desde a fase de negociação, com o Banco Mun-dial, de dezembro de 1991 a setembro de 1994, até a fase de implemen-tação, de setembro de 1994 a 31 de janeiro de 1995. Depois de mais de uma década de exercício, afirmo que este programa não teve nenhuma consequência de impacto para as florestas tropicais nem conseguiu im-pedir o desflorestamento, que ainda é o principal desafio da região.

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– Os programas de ciência e

tecnologia e seus grandes desafios –

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136 Uma História sobre a CiênCia brasileira 137lUiz antonio barreto de Castro

Hoje, considero que programas dessa natureza fazem mais mal do que bem. Os alemães só queriam utilizar seu dinheiro para demar-car terras indígenas. Muitas das missões internacionais, que chefiei ou integrei, não produziram avanços e infelizmente consumiram tempo e dinheiro dos dirigentes e do contribuinte. Cito duas que não têm tido consequências que justifiquem o custo e o tempo a elas devotados: o ”Codex Alimentarius” e a Convenção da Diversidade Biológica. Entre-tanto, como enfatizei antes, cooperação internacional constitui instru-mento importante para permitir competitividade e inserção internacio-nal. É importante, portanto, que se estabeleça uma agenda adequada e rigorosa de ações internacionais. Cito dois exemplos para enfatizar este contexto: acompanhei toda a trajetória do ICGEB – Centro Internacio-nal de Engenharia Genética e Biotecnologia, que tem sede em Trieste e Nova Délhi. Participei de várias missões internacionais como integran-te do ”Board of Governors”, do ICGEB. Antes do meu retorno ao MCT, como titular da SEPED, em agosto de 2005, fiz uma Exposição de Mo-tivos ao Secretário Cylon Gonçalves, a seu pedido, propondo que o Bra-sil abandonasse o ICGEB. Cylon não seguiu a minha posição. Voltei ao MCT e fiz uma proposta ao ICGEB de realizar um Seminário no Brasil para transferência de biotecnologias (ver no currículo Lattes, Organiza-ção de Eventos, item 1). O resultado foi bom, mas sem consequências. Não mudei de opinião. O segundo exemplo que vou citar é a COI, que o Brasil integra há duas décadas. Integra, mas não tem nenhum projeto

de relevância no Oceano Atlântico que desperte interesse internacio-nal. Em Junho de 2006, na reunião da COI, em seguida a uma reunião com Ministros da OECD, em Paris, à qual já me referi, verifiquei que o Brasil tem tudo para propor um grande projeto para avaliar os efeitos de emissão de CO2 na Costa Atlântica. Esse projeto vai dar visibilidade ao país, internacionalmente, e será fácil, internamente, congregar os esforços da Marinha do Brasil, da Petrobras (que tem um grande projeto nesta área) e de toda a comunidade oceanográfica brasileira, para que o Brasil tenha um grande projeto oceanográfico, que reflita os efeitos do CO2 no Atlântico Sul. Considero uma das mais preocupantes realidades mundiais as mudanças climáticas que resultam de emissões de CO2. Os avanços científicos recentes nesta área afirmam que será possível neutralizar os efeitos de emissões de CO2, simulando, artificialmente emissões de SO2 semelhante às erupções vulcânicas, como aconteceu com vulcão Pinatubo, em junho de 1991, que diminuiu a temperatura do planeta, o que se convencionou denominar geoengenharia. Propo-nho que o Brasil estabeleça florestas na Amazônia, cuja função é captar CO2, como alternativa ao que propõe a Petrobras de armazenar o CO2 em aquíferos. Baseio minha proposta nos avanços publicados na revista Science, de agosto de 2006, que mostra como é possível controlar o ciclo celular em leveduras tornando o processo mitótico mais lento pelo controle da expressão de proteínas especificas. Se isto é possível em levedura, é possível fazer o mesmo em espécies florestais. Como dizia o Maury Miranda, é tudo a mesma coisa. O que vamos fazer se não for possível controlar o nível de CO2 na atmosfera e o aquecimento global fizer com que o nível dos oceanos comece a subir? Temos que desanili-zar a água dos oceanos, como publiquei no Brazilian Journal em 2010. Falta água no mundo. Mais de um bilhão não têm acesso à água potável. Desertificação afeta ¼ do planeta.

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138 Uma História sobre a CiênCia brasileira 139lUiz antonio barreto de Castro

– 7.1 - A INDúSTRIA FARMACÊUTICA

Voltei ao MCT como Titular da SEPED, Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento, por convite do Ministro Sérgio Machado Rezende, o que aconteceu em agosto de 2005. Enfren-tei dois desafios com prioridade: promover o desenvolvimento de uma indústria farmacêutica e criar mecanismos para reduzir as desigualda-des regionais, que vou explicitar depois. Avancei muito pouco quanto ao primeiro, cuja política é da agenda do Ministério da Saúde. Procurei estimular a relação Universidade – Empresa com editais, que foram um fracasso, porque as empresas não estão preparadas para investir em pro-jetos de alto risco, como os que se relacionam ao desenvolvimento de fármacos e medicamentos. É um longo trajeto que termina na ANVISA, que tem uma diretoria que estabelece qual preço deve ser cobrado pelo novo fármaco ou medicamento. Procurei paralelamente criar melhores condições para a produção de animais de laboratório. Durante décadas, o MCT, por meio de suas agências, particularmente a FINEP, tentou, pelos de editais, convidar e financiar instituições para estabelecer bioté-rios de criação e experimentais para fazer frente a uma necessidade que tem impedido a consolidação de uma indústria farmacêutica no Brasil: criação, manejo e fornecimento de animais para ciência. Toxicologia pré-clínica, para avaliação de segurança e periculosidade de novas mo-léculas candidatas a uso terapêutico humano. Aos editais compareceram sempre instituições públicas em Universidades ou Instituições de Pes-quisa, que receberam recursos substanciais e a demanda persiste. Quan-do escrevo estas linhas ainda não produzimos animais de laboratório. Inúmeros exemplos de insucesso podem ser descritos. A USP tem um biotério exemplar e nunca produziu um camundongo para testes pré-clínicos. Os animais da FIOCRUZ não são sadios. A USP de Ribeirão Preto não produz animais de qualidade. Estabeleci, já como Secretário da SEPED, um grupo de trabalho com a participação de todas estas instituições para diagnosticar as causas de insucesso. Todas apontaram

para uma dificuldade de gestão necessária aos biotérios, incompatível com a rotina de instituições publicas que:

1- São obrigadas a operar exercitando legislações que impedem tomadas de decisão com base na qualidade;

2- Fazem greve e não trabalham em feriados. Animais precisam de atenção diária 365 dias /ano;

3- Seus pesquisadores não concordam em pagar pelos animais fornecidos pelas instituições nas quais atuam.

Procuramos conhecer a realidade dos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, poucas empresas, menos de cinco, garantem todos os estudos pré-clínicos e clínicos para a indústria farmacêutica america-na, tendo acesso a todos os animais necessários para o país. Visitei os stands destas empresas quando estava na BIO, em Atlanta, em 2009. Perguntei se não teriam interesse no mercado brasileiro. Responderam que o mercado, mesmo em conjunto com a Argentina, é muito peque-no. Aliás, a USP tentou trazer uma grande empresa para o Brasil sem sucesso. A empresa é a Jackson Laboratory em Maine. Procurei a Char-les Rivers. Preferiu a China. Em todos, os animais são fornecidos por instituições privadas. Na Bio, em 2010, em Chicago, visitei a MPI, no Michigan, que tem 14% do mercado de pré-clínicos e clínicos nos Es-tados Unidos. Vieram ao Brasil, em 2010, a meu convite. Não há, no exterior, um caso em que instituições públicas sejam responsáveis pelo fornecimento de animais para testes pré-clínicos. Procuramos, no Bra-sil, instituições com experiência na criação e fornecimento de animais de laboratório e competência em toxicologia pré-clínica, para avaliação de segurança e periculosidade de novas moléculas candidatas a uso te-rapêutico humano. Encontramos duas: o Instituto Royal e o BIOAGRI. Este último, localizado em Piracicaba, com instalações em Planaltina, que visitamos pessoalmente, realiza ensaios de toxicologia pré-clínica para avaliação de segurança de novas moléculas para uso agropecuá-rio, em geral, particularmente para a área de veterinária. É um biotério experimental privado que não cria, mas importa animais e não demons-

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trou, a princípio, interesse em ampliar seu portfolio de atividades, que atende a multinacionais, nunca tendo recebido qualquer financiamento público. O Instituto Royal foi responsável pelos estudos toxicológicos pré-clínicos de todos os produtos registrados na ANVISA que tiveram estes testes realizados no Brasil. Biotérios para a criação e uso de ani-mais de laboratório é um negócio. Biotérios experimentais para atuar com animais produzidos por outros podem e funcionam em instituições públicas no Brasil e no exterior. Na verdade, nos Estados Unidos, tudo funciona com 10 trilhões de PIB. Muitas são as variáveis que dificultam a consolidação de uma indústria farmacêutica no Brasil. Estamos len-tamente avançando nessa área na FINEP. Quando lerem este livro este tema poderá estar obsoleto, ou não, como diria Caetano.

–7.2 - DESENvOLvIMENTO REGIONAL E AS REDES

Garantir investimentos para P&D deveria ser a maior prioridade de cada estado, se pensarmos que a renda/capita do Nordeste é menos da metade da renda/capita da região Sudeste, que é um quarto da renda/capita da Suíça, que é a 17ª no mundo. É óbvio que, quando se observa a renda/capita dos estados, o Distrito Federal não pode contar, porque inclui o Legislativo e o Judiciário. É significativo, entretanto, verificar que dos dez estados de renda/capita mais baixa no Brasil nove são do Nordeste. Da mesma forma, quando se comparam os países, vários que estão no topo da lista são paraísos fiscais ou países árabes integrantes da OPEC, que não servem de referência para o Brasil. Grifei alguns que estão mais próximos da realidade brasileira. Estamos com esforço na faixa de dez mil dólares. A maioria dos países que podem servir de referência tem renda/capita na faixa de trinta a quarenta mil dólares. Não adianta ser a quinta economia do mundo como se propala, que é o destino reservado ao Brasil, se a renda/capita não for multiplicada por três. A fisiologia ensina que todos os organismos superiores crescem

e se diferenciam (growthanddevelopment). A diferenciação ocorre ao longo do crescimento desde o embrião. Crescimento sem diferenciação não funciona. Esta é a minha visão da economia. Diferenciação em fi-siologia é como desenvolvimento em economia. Não se podem tratar diferentes como iguais. Não se pode tratar o Nordeste como o Sudeste. O Brasil curiosamente já é a sexta economia do mundo, mas sua renda/capita é a centésima.

Seria o caso de criar FAPs, nos moldes da FAPESP, nos dias de hoje? Provavelmente, não. O maior desafio do país é promover maior equi-líbrio no seu desenvolvimento regional. Portanto, deveríamos rever as Leis e Decretos que criaram as FAPs, em outros estados, para que elas tivessem, na sua agenda P&D: Pesquisa e Desenvolvimento. Se o novo modelo da FAPS for de P&D a gestão poderia incluir especialistas em desenvolvi-mento, além de cientistas. Qual deveria ser o perfil destes especialistas em desenvolvimento? O fundamental é que eles tenham a convicção de que, quanto mais intensa for a relação entre C&T, maior o PIB/capita, como vemos abaixo, em estudo do IPEA de avaliação dos Fundos Setoriais.

REGIÕES US$ R$ SUDESTE 8. 141 15. 468 CENTRO OSTE 7. 686 14. 603 SUL 6. 951 13. 207 NORTE 3. 814 7. 247 NORDESTE 3. 552 6. 749

PRODUTO INTERNO BRUTO/POPULAÇÃORENDA PER CAPITA EM rEgiÕEs BrasilEiras:

PRODUTO INTERNO BRUTO/POPULAÇÃORENDA PER CAPITA EM Estados BrasilEiros:ESTADO US$ R$DISTRITO FEDERAL 21. 418,95 40. 696 SÃO PAULO 11. 930,00 22. 667 RIO DE JANEIRO 10. 128,95 19. 245 ESPIRITO SANTO 9. 475,26 18. 003 SANTA CATARINA 9. 386,32 17. 834 RIO GRANDE DO SUL 8. 783,68 16. 689 PARANÁ 8. 268,95 15. 711

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142 Uma História sobre a CiênCia brasileira 143lUiz antonio barreto de Castro

Fonte:http://www.indexmundi.com/g/r.aspx?c=xx&v=67&l=pt (CIA World Factbook - Janeiro 1, 2009)

SISTEMA NACIONAL DE INOVAÇÃO: DIFERENTES CORRELAÇÕES EM C&T

O BRASIL NO CENÁRIO INERNACIONAL

RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E PIB PER CAPITA

MATO GROSSO 7. 870,53 14. 954 AMAZONAS 6. 864,74 13. 043 MINAS GERAIS 6. 588,95 12. 519 MATO GROSSO SUL 6. 532,11 12. 411 GOIÁS 6. 077,89 11. 548 RORAIMA 5. 544,21 10. 534 RONDONIA 5. 431,58 10. 320 AMAPÁ 5. 396,84 10. 254 TOCANTIS 4. 695,26 8. 921 ACRE 4. 625,79 8. 789 SERGIPE 4. 585,26 8. 712 BAHIA 4. 098,42 7. 787 RIO GRANDE DO NORTE 4. 003,68 7. 607 PERNAMBUCO 3. 861,58 7. 337 PARÁ 3. 687,89 7. 007 CEARÁ 3. 236,32 6. 149 PARAÍBA 3. 208,95 6. 097 ALAGOAS 3. 083,16 5. 858 MARANHÃO 2. 718,42 5. 165 PIAUÍ 2. 453,68 4. 662

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144 Uma História sobre a CiênCia brasileira 145lUiz antonio barreto de Castro

A ciência tem que produzir desenvolvimento. É possível que a desconfiança maior dos dirigentes, quando pensam na absoluta auto-nomia da ciência como funciona no modelo da FAPESP, é que esta ciência não tenha consequência para o desenvolvimento nem para a qualidade de vida das pessoas. Acabam optando pelos estádios de fute-bol. Fiz esta proposta muitas vezes, discutindo o PAC da Amazônia. É óbvio que não existe este plano, mas a Amazônia nunca terá recursos para promover seu desenvolvimento, se continuarmos a transferir, para essa região, como fazemos, milhões de reais. A ordem de grandeza é de bilhões, como aconteceu com Brasília. O que agrada é ouvir do Luiz Hildebrando, de Rondônia, uma vida dedicada ao controle da malária, dizer que uma hidroelétrica vai investir 1 bilhão de reais /ano em C&T, durante dez anos no estado. Se a moda pega, vamos finalmente tratar a Amazônia com a prioridade devida, o que nunca aconteceu até hoje. É possível, se verificarmos que os estados recolhem 254 bilhões reais de impostos todos os anos, mais de 90% ISS. Embora a Amazônia re-colha de impostos cerca de ¼ do que recolhe São Paulo, 1% de 224 bi-lhões seriam recursos de um porte que a região nunca viu. O Brasil não vai reduzir as desigualdades regionais com os instrumentos que utiliza hoje. Atualmente, o Governo Federal se compromete a destinar 30% do investimento em PD&I nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oes-te, somadas. Em um exercício federal, que mostraremos abaixo, todo o investimento em PD&I do Governo Federal no Brasil é da ordem de R$ 3,5 bilhões, 30% deste total equivale a R$ 1,05 bilhão, o que é comparável ao orçamento da FAPESP. Há uma relação direta entre C&T e PIB regional como veremos abaixo. Já tínhamos mostrado que esta relação existe também entre os países. Os desafios da Amazônia são da ordem de bilhões, como publicou a Science recentemente. Só o desflorestamento pode custar, em dez anos, 18 bilhões de dólares. O exercício de uma política econômica austera, nesses últimos anos, tirou o Brasil de devedor para credor do FMI. Em plena crise, a dedução do IPI revigorou a indústria automotiva, a linha branca e a construção civil em plena crise, que se abateu na economia mundial. Se, com vontade

política, o governo reverter parte do imposto que recebe dos estados da Amazônia, estabelecer um fundo administrado pelas FAPs e en-tregar às instituições como EMBRAPA, INPA, GOELDI, FIOCRUZ, IPEPATRO, EVANDRO CHAGAS entre outras, a tarefa de propor e executar um programa para desenvolver a Amazônia, em oito anos esta iniciativa terá sucesso. Igualmente, o Brasil poderá negociar como novo credor do FMI um Endowment Fund para a Amazônia, para atrair, com liderança, aporte de recursos de outros países. Na hipótese de se tratar de um empréstimo inicial do Brasil, de 10 bilhões de dólares, 1% deste capital/ano corresponde a 100 milhões de dólares. Este montante pode-ria ser acrescido de renúncia fiscal de impostos dos estados da Amazô-nia e aporte de recursos de outros países.

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146 Uma História sobre a CiênCia brasileira 147lUiz antonio barreto de Castro

–7.3 - O RENORBIO

Tudo começou quando o Sergio Rezende, então Secretário de C&T de Pernambuco, no governo Miguel Arraes, me fez um desafio: “Por que você não traz toda esta biotecnologia que vocês produziram no CENARGEN para o Nordeste?” Eu era, então, Secretário do Mi-nistro Vargas, em 1998, e não do CENARGEN, mas resolvi começar a conceber um grande Programa de Biotecnologia para o Nordeste, nos moldes dos “Graduate Group do UC System”. Visitei diversas universi-dades no Nordeste e fiz várias conferências. Tive reuniões com reitores, em Brasília. Um dia, em Alagoas, em 1998, disse em público que a bio-tecnologia tinha que expressar, em caprinos, substâncias contra diarreia neonatal. Receptividade total, até que o já Ministro Bresser Pereira deu uma entrevista dizendo que investir no Nordeste era colocar o carro na

frente dos bois. Tive que interromper o esforço; deixei o Ministério e voltei para a EMBRAPA. Em 2003, os astros se alinharam: Jorge Gui-marães, na CAPES; Sergio Rezende na Presidência da FINEP; Hélio Barros, Rafael Luchesi e Cláudio Marinho nas Secretarias de C&T dos três maiores estados do Nordeste: Ceará, Bahia e Pernambuco. Come-cei de novo, ainda como Chefe Geral do CENARGEN. Sem apoio do Presidente da EMBRAPA, que dizia que eu não era da EMBRAPA, tinha que viajar sem recursos da EMBRAPA. Um dia em Fortaleza, em 2003, os nove Secretários de C&T do Nordeste se uniram e fui convidado a elaborar o Programa RENORBIO, eleito por eles como “o Programa de Biotecnologia do Nordeste”. Esta carta foi denominada a “Carta de Fortaleza”, assinada em agosto de 2003, que me outorgava o título de Coordenador do RENORBIO.

O meu mandato era precário, mas os Secretários vieram a Bra-sília e conseguiram do Ministro Roberto Amaral R$ 2.5 milhões para o RENORBIO. Consegui mais cinco milhões por emenda ao orçamento da bancada do Nordeste no Congresso Nacional. Contratamos, por edi-tal, cinco projetos com orçamentos de R$ 1.5 milhões cada, sendo um deles o de caprinos transgênicos. Com este investimento, conseguimos

CUSTEIO E INvESTIMENTO

PRODUçÃO CIENTIFICA MUNDIAL DE 1975 A 2005 EM FUNçÃO

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148 Uma História sobre a CiênCia brasileira 149lUiz antonio barreto de Castro

Não tenho nenhuma dúvida de que, um dia, teremos o MERCO-NORDESTE, que certificará todos os produtos da região. O RENOR-BIO pretende melhorar a renda/capita da região. Se não conseguirmos isto, o programa será uma frustação, pelo menos para mim.

Como Secretário do SEPED, já em 2005 e 2006, destinei mais vinte e cinco milhões para o RENORBIO, oriundos de Fundos Setoriais de Biotecnologia, Agronegócios e Saúde. Agora, o RENORBIO acaba de receber apoio da CAPES, na forma de bolsas e recursos para o mais revolucionário curso de pós-graduação já aprovado pela CAPES. Está tudo no portal do RENORBIO. (www. renorbio. org.br) Agradeço, tam-bém, os recursos que possibilitaram estabelecer os elementos de gestão do programa, oriundos do MCT, por iniciativa do então Ministro Eduar-do Campos, inicialmente, quando eu ainda não era Secretário do MCT, e depois dos Fundos Setoriais de Biotecnologia e de Saúde. O MCT fez nova portaria para o RENORBIO, mas sem dinheiro, em 2011. Temos que criar uma Associação de Amigos do RENORBIO para viabilizá-lo independentemente das alternâncias no poder político. O RENORBIO tem mais de quatrocentas teses de Doutorado, entre concluídas e em andamento, e depositou quase duzentas patentes.

os primeiros caprinos GM, expressando uma proteína modelo GCSF, que pretendemos levar ao mercado. Estamos agora próximos de expres-sar lisozima e lactoferrina em leite de caprinos, por meio de uma parce-ria com a UCDavis. James Murray e Elizabeth Maga já têm resultados promissores e não existe diarreia neonatal na Califórnia. Temos agora a possibilidade de realizar o que pensei ser possível em 1998.

Os recursos só foram transferidos no início da administração do Ministro Eduardo Campos, em 2004, que fez a portaria que criou o Programa, definindo sua Missão Institucional: acelerar o desenvolvi-mento da região Nordeste, integrando a formação de recursos huma-nos ao desenvolvimento científico e tecnológico em Biotecnologia, na geração de impactos socioeconômicos relevantes e ambientalmente sustentáveis, e na geração de contribuições para melhoria da qualidade de vida da população. O Programa RENORBIO definiu uma propos-ta científica caracterizada, conceitualmente, no estudo da biologia de maneira convergente, relacionando espécies biológicas geneticamente distantes pela funcionalidade de seus genes, partindo do pressuposto de que a utilização de tecnologias avançadas permitirá o estudo das bases moleculares que regulam as funções gênicas e os produtos da sua expressão, bem como dos mecanismos que as relacionam com a biolo-gia do desenvolvimento de plantas, animais e microorganismos. Essa abordagem no tratamento da Biotecnologia é a mais adequada diante do cenário científico internacional. Vejam que, no ápice da pirâmide, existe outra figura hipotética: o MERCONORDESTE.

Camila e Tinho: os primeiros caprinos transgênicos da América Latina.

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Criei outras redes nas regiões Norte e Centro Oeste. Este é o caminho adequado quando a massa crítica de P&D não é abundante. Não posso fazer qualquer crítica ao extraordinário trabalho da CAPES que, via pós-graduação, produziu o crescimento que vimos da ciência, ao longo das últimas três décadas. Entretanto, novos modelos são ne-cessários. Regiões de menor massa crítica em C&T devem fazer con-vergir seus cursos de pós-graduação para obterem melhores resultados. A Califórnia fazia isto na década de 1970. O curso de PhD, que fiz em Davis, em Fisiologia Vegetal, tinha um Graduate Group com 100 PhDs em Fisiologia, Bioquímica, Química, Biofísica, Botânica. Um currículo vasto. Exigia-se primeiro um número de créditos chamados básicos: “Core Curricullum” e depois o estudante podia escolher se queria Fi-siologia Celular, Molecular ou Ecossitemática. Se as disciplinas não fossem oferecidas em Davis o aluno podia, quase sempre no verão, procurar estas disciplinas em outros campi. Veremos, mais tarde, que hoje temos muitas outras razões para seguir um modelo semelhante. Os cursos de pós-graduação, no país, não podem continuar crescendo exponencialmente. Escrevi um capítulo para a CAPES sobre as Redes de Pesquisa e Pós-Graduação que saiu no PNPG-2011-2020.

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Já disse que tive dois problemas na minha vida. O primeiro foi quando sustentei uma longa luta para trazer o Marcelo de volta a uma vida normal, o que não foi possível. Foi uma luta de quinze anos e ao final ele faleceu. Contraíra HIV provavelmente em uma das primeiras transfusões de sangue, depois do acidente. Depois destes quinze anos, compreendi que tive um problema na minha vida e foi este. O segundo disse que talvez contasse. Em agosto de 2008, fui fazer uma cirurgia no ombro, para reduzir uma bursite; o médico disse que era uma ci-rurgia simples. Nunca vou saber exatamente o que aconteceu. Entrei em coma e fiquei 30 dias; desenvolvi uma rabdomiolise que afetou os rins. Todos os que me visitaram disseram que eu estava morto. Não ha-veria recuperação possível. Era tão improvável, que algumas pessoas, mais tarde, me encontraram na rua e ficavam me olhando, como se eu fosse um fantasma. Nestes casos, brincava: aquele morreu, eu sou um clone. Cláudia, minha mulher, me transferiu do “Prontomorte” para o Santa Luzia com a ajuda de meus amigos Hélio Barros e Genaro Pai-va. Um dia, abri o olho e ela me disse: “Agora está tudo bem, vamos voltar para casa”. Tentei mexer um dedo e não consegui. Não sabia o que havia acontecido. Pensei: estou paraplégico. Não conseguia falar. Ouvia o que me contavam. Tudo tinha parado de funcionar, menos o

coração, fiel, nenhuma parada cardíaca. Rim, uma lástima. Diziam que eu necessitaria de dois anos para voltar a falar. Cantar, nem pensar. Mi-nhas cordas vocais estavam piores do que as do Chet Baker depois que não pagou aos “drug dealers”. Aprendi uma coisa interessante: morrer é muito fácil. Dá trabalho para os outros. Comecei a me perguntar por que eu não morrera. O que faz um homem não morrer e continuar vivo? Lembrei-me do Guillaumet, da Terra dos Homens, escrito pelo Antoine Saint Exupéry. Já havia escrito este texto e colocado num quadro.

Naquele quarto de Mendoza em que passei a noite você adormeceu afinal - um sono de esgotamento. E eu pensava: Se alguém falar a Guillaumet de sua coragem ele dará de ombros. Mas seria traí-lo também celebrar sua modéstia. Ele está muito além dessa qualidade medíocre. Se dá de ombros é por sabedo-ria. Sabe que, uma vez no centro do perigo, os homens não se horrorizam mais. Só o desconhecido espanta os homens. Mas para quem o enfrenta ele cessa de ser o desconhecido. Sobretudo se é olhado com essa gravidade lúcida. A coragem de Guillau-met, antes de tudo, um efeito de sua probidade. Sua verdadeira qualidade não é essa. Sua grandeza é a de sentir-se respon-sável. Responsável por si, pelo seu avião, pelos companheiros que o esperam. Ele tem nas mãos a tristeza ou a alegria desses companheiros. Responsável pelo que se constrói de novo, lá, en-tre os vivos, construção de que ele deve participar. Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida de seu trabalho. Um desses seres amplos que aceitam o destino de cobrir largos horizontes com suas folhagens. Ser homem é precisamente ser responsável. É experimentar vergonha em face de uma mi-séria que não parece depender de si. É ter orgulho de uma vitória dos companheiros. É sentir, colocando a sua pedra, que contribui para construir o mundo. Querem confundir homens assim com os toureiros e os jogadores. Gaba-se o seu desprezo

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– Reflexões finais –

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da morte. Mas eu dou bem pequena importância ao desprezo da morte. Se ele não tem suas raízes em uma responsabilidade acei-ta é apenas sinal de pobreza ou excesso de mocidade. Conheci um suicida moço. Não sei mais que desgosto amoroso o levou a colocar cuidadosamente uma bala no coração. Não sei a que tentação literária cedeu calçando suas mãos de luvas brancas. Mas eu me lembro de ter sentido em face daquele triste espetá-culo uma impressão que não era de nobreza, mas de miséria. Ali, atrás daquele rosto amável, sob aquele crânio de homem, não havia existido nada. Apenas a imagem de alguma tola mocinha igual às outras. Pensando nesse destino magro eu me recordo também de uma verdadeira morte de homem. A morte de um jar-dineiro, que me dizia: “Você sabe, às vezes, trabalhando. com a enxada na mão, eu suava. Minha perna doía com o reumatismo, e eu praguejava contra aquela escravidão. Pois olhe, hoje, hoje, eu queria estar com a enxada na mão, trabalhando, trabalhan-do... Trabalhar com a enxada hoje me parece uma coisa bonita! A gente se sente tão bem, tão livre, quando está trabalhando a terra! E, além disso, quem é que vai cuidar de minhas árvores, agora?” Ele deixava uma terra a cultivar. Deixava um planeta a cultivar. Estava ligado pelo amor a todas as terras e a todas as árvores da terra. Era ele o generoso, o pródigo, o Grande Senhor! Era ele, como Guillaumet, o homem corajoso quando lutava, em nome de sua Criação, contra a morte.

In: “Terra dos Homens”,

Quando li pela primeira vez Terra dos Homens minha vida mu-dou, se justificou. Coloco este trecho de Terra dos Homens, aqui, neste livro, para que todos os jovens se lembrem de que ser homem é ser responsável. Não morri porque tinha a expectativa dos meus amigos que acreditavam que eu não morreria. Jorge Guimarães acreditava. O Sergio Rezende ficou otimista e disse “vamos tirar você daqui”. Come-

cei uma luta de volta: primeiro mexendo um dedo e agora, depois de um longo período, voltei a cantar como antes. Coloquei este trecho aqui para agradecer a todos os que acreditaram que eu não morreria. Resolvi não morrer porque tive uma enorme solidariedade dos amigos e quando isto acontece, como dizia Guillaumet, o que você faz, nem um bicho faz; só um homem faz. Voltei da minha luta contra a morte e ganhei de presente a expulsória, já que, em 2009, fiz setenta anos. Estas reflexões incluem este interessante instrumento que se chama expulsória. Já fa-lei como se tratam os cientistas nos Estados Unidos e como se tratam os cientistas no Brasil. Nos Estados Unidos não existe uma expulsória como no Brasil. Deve ser porque os Estados Unidos é um país muito pobre que não pode dispensar seus cientistas produtivos com mais de setenta anos. O Brasil, por outro lado, é um país muito rico, que pode se dar ao luxo de dispensar os que têm mais de setenta anos, bons ou não. Esta circunstância, parafraseando Guimarães Rosa, que diz que o sapo pula por precisão, nos obriga a montar uma nova estratégia de vida; é o que pretendo fazer. Alternativamente, poderia ficar em casa esperando a morte chegar. Disse antes que morrer e fácil, mas esta nova forma de esperar pela morte é muito difícil. A única atitude aceitável, diante da morte, é ser surpreendido por ela, com indignação diante de tudo o que falta por ser feito, como o jardineiro de Terra dos Homens. Estou convencido de que pouca comida e muita atividade cerebral garantem longa vida. Ainda não aprendi a cuidar da primeira parte. Entretanto, como para muitos sou um clone, posso surpreender nesta nova velha fase da minha vida. Vou trabalhar no setor privado.

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– Anexos –

– 9.1 - A BALANçA DA JUSTIçA

E OS TRANSGÊNICOS NO BRASIL

Luiz Antonio Barreto de Castro*

Não existe, na história contemporânea brasileira, iniciativa mais democrática e consistente do que o esforço brasileiro para construir a sua competência científica. Imune às alternâncias de poder político mais drásticas, o Brasil treinou literalmente dezenas de milhares de jovens cientistas, a partir do início da década de 1970, no país e no exterior. Em trinta anos, triplicou sua participação científica relativa no mundo. A contribuição científica do Brasil, no contexto mundial, cresce a uma velocidade tão grande quanto a dos países do G7. Uma história de sucesso, que coloca o Brasil, nas capas das melhores revistas cientí-ficas, particularmente na era genômica, em que estamos entre os mais avançados. A história da EMBRAPA, estabelecida em 1973, na qual a engenharia genética de plantas começou em 1981, se confunde com o extraordinário sucesso da agropecuária brasileira. Nunca no Brasil tivemos um momento tão adequado para mostrar à sociedade brasileira o que a ciência brasileira pode fazer. Temos a maior diversidade bio-

lógica, competência científica, a melhor genética para os trópicos e os genes que precisávamos. Vamos colocar este contexto em um dos pra-tos da balança da justiça.

No outro prato da balança, vamos colocar uma campanha eu-ropeia liderada pelo Greenpeace, que recrudesceu quando o primeiro produto geneticamente modificado chegou ao mercado agrícola mun-dial. Esta campanha não apresentou ao mundo, nos últimos oito anos, nenhuma evidência científica, que justifique a condenação aos trans-gênicos, que apregoam. Seu líder mundial é o Príncipe Charles que, convenhamos, é, no mínimo, irônico, quando se apresenta na defesa da sustentabilidade do planeta.

O Presidente da República não tem obrigação de entender as profundidades da ciência, mas antes de tomar a decisão recente de libe-rar a soja no Rio Grande do Sul, imagino, deve ter feito duas perguntas fundamentais: 60 milhões de hectares cultivados com plantas transgê-nicas, em todo o mundo, incluindo, há sete anos, a Argentina e o Rio Grande do Sul, provocaram algum impacto ambiental negativo? Res-posta: Nenhum impacto negativo constatado. Os impactos no Sul, ao contrário, são positivos. Centenas de milhões de toneladas de alimentos transgênicos consumidos por bilhões de seres humanos e pela pecuária mundial, nos últimos oito anos, podem ter provocado danos à saúde humana? Resposta da Organização Mundial da Saúde: os transgênicos liberados mundialmente não apresentam riscos para a saúde humana maior do que seus parentes convencionais. O Presidente ficou do lado da ciência e da EMBRAPA, a quem ouviu por meio dos cientistas do CENARGEN e tem o respaldo das Academias de Ciência do Terceiro Mundo, do Reino Unido, dos Estados Unidos, da China, da Índia, do México e do Brasil.

Para que lado pende a balança da justiça? Para o lado da ciência? Pasmem: para o lado do Greenpeace. Os juristas falam sobre transgê-nicos com o maior desembaraço. Profeticamente, preveem efeitos irre-

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versíveis ao ambiente. O primeiro que decretou a moratória contra os transgênicos, em 1998, disse literalmente em sua sentença: “a engenha-ria genética utiliza genes alienígenas, que darão origem a uma esquisita civilização de “aliens hospedeiros com fisionomia peçonhenta”, a com-prometer definitivamente, em termos reais, e não fictícios, a sobrevi-vência das futuras gerações de nosso planeta”. O último, para um jornal de Brasília, disse que as sementes de soja transgênica não germinam. Qual será o segredo dos gaúchos, que usam suas próprias sementes há sete anos? Teimam em condenar a competência da ciência brasileira, segundo eles, sem possibilidades de competir com as multinacionais, o que é curioso, porque competimos com o mundo com sucesso. São doutores em economia, vaticinam o fracasso do Brasil com a trans-genia, sem olhar para a agricultura argentina, que está chegando aos nossos calcanhares com esta tecnologia. Propõem estudos de impacto ambiental que, na prática, já foram feitos em todo o mundo, incluin-do o Brasil. Mais de trinta países já liberaram comercialmente a soja em questão. Desconsideram sistematicamente a lei de biossegurança e fazem coro com as ONGs contra a Comissão de Biossegurança, que foi intimada a comparecer à Polícia Federal, no dia 15 de outubro. Le-galmente, não aprenderam com o sábio voto da Juíza Selene Almeida, um marco na história jurídica mundial relativa a OGMs. Escreveram, na história brasileira, o primeiro caso, desde o descobrimento, em que uma tecnologia é proibida e condenaram todo o esforço de trinta anos da ciência brasileira que, nesta área, viu os recursos desapareceram com a primeira sentença judicial contrária à engenharia genética de plantas, em 1997. A sociedade vai perguntar algum dia porque a justiça seguiu este caminho. Espero que saibam responder.

* Membro da Academia Brasileira de Ciências

9.2 - LIBERAçÃO DA SOJA TRANSGÊNICA

PELA CTNBIO

Sobre o processo de liberação da soja transgênica pela CTNBIO, analisada tecnicamente em função dos argumentos que constituem a sentença do juiz Antonio Souza Prudente, que impediu a comercialização de plantas transgênicas no Brasil, desde 1998, e em resposta à campanha “por um Brasil livre de transgênicos”, que propõe a revisão da decisão da CTNBIO relativa à liberação da soja RR.

introdução

O advento da engenharia genética foi marcado pela experi-ência do professor Herbert Boyer da Universidade da Califórnia que, em 1973, conseguiu expressar o gene de insulina humana na bactéria Escherichia coli de ocorrência habitual no intestino dos seres humanos. Os primeiros resultados positivos com plantas transgênicas, entretanto, só ocorreram no início da década de 1980, com algumas espécies de solanáceas, cultivando-se a bactéria Agrobacterium tumefasciens com tecidos vegetais que, após a transformação genética mediada pela bac-téria, eram regenerados in vitro para produzir plantas adultas. Marco, neste sentido, foi o trabalho de Herrera Estrella, cientista mexicano, o primeiro a transformar uma planta de fumo com um marcador para re-sistência a antibiótico, em 1981, na Universidade de Ghent, na Bélgica. A empresa Plant Genetic Systems, da Bélgica, otimizou esta tecnologia modificando por engenharia genética a bactéria citada, para que ela não causasse tumores em plantas, como era característico da espécie. A téc-nica não teve sucesso com gramíneas e leguminosas em que se incluem as principais espécies de interesse agrícola, como a soja, o milho e o trigo. A regeneração da soja, a partir de cultura de células e protoplas-

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tos, perseguida por inúmeras instituições de pesquisa em todo o mundo, não foi obtida com sucesso após muitos anos de investigação. A trans-formação de gramíneas e leguminosas somente foi possível depois que universidades americanas e inglesas, entre elas Cornell e Nottingham, desenvolveram um método balístico (particle gun). Este método utiliza cultura de tecidos como meristemas, que são de fácil regeneração, para produzir plantas adultas transformadas, não sendo necessária a cultura de células e/ou protoplastos para obtenção de plantas adultas. O método exige um rigoroso exame molecular e fenotípico das plantas transfor-madas para determinação do modo de herança dos genes transferidos, para garantia de que as transformações, das quais resultam as plantas transgênicas, são estáveis, geração após geração, e livres de efeitos am-bientais (pleiotrópicos). A engenharia genética e os métodos molecula-res de análise e avaliação fenotípica, corretamente aplicados, como têm ocorrido com as plantas transgênicas, já liberadas para comercialização em vários países, permitem absoluta segurança quanto a estes requisitos, mas exigiram cerca de vinte anos de desenvolvimento científico.

as Primeiras PLantas transgêniCas, a soJa rr e as questões amBientais

Pelas razões citadas, as primeiras plantas transgênicas só co-meçaram a ser testadas experimentalmente no campo, em 1986, nos Estados Unidos. As empresas Calgene e Monsanto desenvolveram as primeiras cultivares transgênicas, respectivamente: o tomate com matu-ração retardada e a soja tolerante ao herbicida glifosate; princípio ativo de vários herbicidas liberados comercialmente entre os quais o Round Up, fabricado pela empresa citada. A análise pela CTNBIO, deste caso específico, levou em consideração anos de experimentação de campo nos Estados Unidos, que garantiram que as cultivares transgênicas, ob-tidas a partir de linhagens também transgênicas de soja, exibissem a necessária estabilidade para dar origem a outras cultivares transgênicas em outros países.

Esta segunda fase do trabalho da empresa MONSANTO, realizada em outros países, comprovou a transferência mendeliana dos genes trans-feridos para tolerância à glifosate para cultivares adaptados para diver-sas condições edafo-climáticas, utilizando-se métodos convencionais de melhoramento genético, em que se incluem cruzamentos entre a cultivar ou linhagem transgênica e cultivares adaptados, seguida de retrocruza-mentos sucessivos, até que todas as características comerciais da cultivar adaptada sejam recuperadas, simultaneamente com o gene de interesse, doado pela cultivar ou linhagem transgênica transformada inicialmente.

Assim, foram obtidas as primeiras cultivares transgênicas da empresa MONSANTO, no Brasil, que utilizaram as cultivares adap-tadas para as diversas condições brasileiras oriundas da empresa FT, (iniciais de Francisco Terazawa geneticista egresso do Centro de Soja da EMBRAPA, em Londrina) tradicional no melhoramento genético de soja no Brasil, particularmente para as regiões do cerrado e sudeste brasileiros.

Por esta razão, é absolutamente improcedente a afirmação de que, para a liberação comercial das cultivares transgênicas da empresa Monsanto, a CTNBIO não observou as variações edafo-climáticas bra-sileiras, já que as cultivares denominadas MONSOY se comportam es-sencialmente como as antigas cultivares FT, apenas com a incorporação do gene de tolerância à glifosate. Tecnicamente, as cultivares MON-SOY podem ser vistas comoessencialmente derivadas das cultivares FT, segundo a terminologia definida na lei de cultivares.

Independente deste fato, as cultivares em questão foram experi-mentalmente testadas em Ponta Grossa, Cascavel, Palotina e Londrina, no Paraná; Goiatuba, Morrinhos, Vicentópolis e Itumbiara, em Goiás; Planaltina, no DF; Teresina, no Piauí; Boa Vista, em Roraima e Pas-so Fundo, no Rio Grande do Sul, antes do deferimento pela CTNBIO do pedido de liberação comercial da soja Round Up Ready, solicitado pela empresa MONSANTO, que ocorreu em setembro de 1998. Quin-

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ze testes de campo foram realizados previamente nas diversas regiões citadas, representativas dos principais ecossistemas em que se cultiva a soja no Brasil, para testar adaptabilidade das cultivares citadas.

Por esta razão, a CTNBIO afirma no seu comunicado de número 54, de 29 de setembro de 1998 (publicado no diário oficial da união, número 188, de 1º de outubro de 1998, seção 3, página 56), que contém o parecer conclusivo da CTNBIO, em resposta à solicitação da Mon-santo, para liberação comercial da soja round up ready, no item a1.3, no capítulo referente aos elementos ambientais analisados:

a.1.3. o evento de inserção do transgene está molecular-mente caracterizado e não foram observados efeitos pleiotrópicos decorrentes desta inserção, em estudos conduzidos em diversos am-bientes.

com efeito, este mesmo processo de introgressão do gene mutante de epsps, que causa nas plantas tolerância ao glifosate, foi utilizado por agricultores gaúchos provavelmente logo após a li-beração da soja rr, na argentina. como consequência, cultivares com o gene rr foram desenvolvidos e adaptados para as diversas regiões do rio grande do sul e são utilizados em escala comercial há seis anos, sem qualquer impacto ambiental negativo. ao contrá-rio, os impactos ambientais, segundo os agricultores, são positivos porque reduzem a erosão do solo em associação com o plantio di-reto e diminuem os efeitos dos herbicidas de pós-emergência, antes utilizados sobre a lavoura de trigo que sucede à da soja.

surpreende igualmente que a decisão nº 99 da ação cautelar inominada não mencione o comunicado 54 citado, o que fazemos abaixo, para restabelecer a verdade sobre a matéria, uma vez que, neste comunicado, estão, com todo rigor científico, respondidas to-das as questões suscitadas pelos cientistas de renome da sBpc, ci-tados na ação, bem como as questões que foram objeto de interesse de organizações governamentais, também interessadas na matéria,

em que se incluem o idEc e o greenpeace. transcrevemos o co-municado também para comprovar que, em nenhum momento, a ctnBio utilizou o termo desregulamentação que, na verdade, não existe no vernáculo. ao contrário, a decisão da ctnBio propõe, pela primeira vez na história da biossegurança mundial, um meca-nismo de regulamentação do uso comercial de plantas transgênicas pelo monitoramento científico de plantios comerciais de transgêni-cos, medida que recentemente vem sendo proposta pelos países da Europa, com base em sugestão da uK royal society, academia de ciências do reino unido e de outras academias de ciência inclusive a do Brasil.

Da mesma forma, não nos parece tecnicamente justificável in-cluir, na argumentação da ação, testemunhos da pesquisadora da Em-brapa, Dra. Eliana Fontes, apoiando uma das primeiras avaliações feitas pela Dra. Conceição Gama, no decorrer da análise pela CTNBIO da so-licitação da Monsanto, testemunhos que, naquele momento, foram con-trários aos argumentos acima apresentados. A Dra. Conceição Gama não acompanhou a análise da matéria até o seu final. Do contrário, não usaria, ela mesma, em seu parecer, a palavra “desregulamentação”. A Dra. Eliana Fontes, ao final da análise, votou de acordo com o pare-cer da CTNBIO. registre- se que o parecer conclusivo da ctnBio teve votação favorável de 19 membros da ctnBio, incluindo os representantes dos ministérios do meio ambiente e da agricultura e Abastecimento, que nunca contestaram a fiscalização dos ensaios de campo realizados com a soja transgênica em pauta. o voto con-trário foi da representante da procuradoria de defesa do consu-midor, instruída pelo ministério da Justiça a votar desta forma, em função de questão não resolvida do ponto de vista legal sobre rotu-lagem de produtos transgênicos que, a bem da verdade, a própria ctnBio, em seu parecer conclusivo, reconhece como tal.

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“ministério da ciência e tecnologia

secretaria Executiva

comissão técnica nacional de Biossegurança - ctnBio

comunicado n.º54, de 29 de setembro de 1998

o presidente da comissão técnica nacional de Biossegu-rança - ctnBio, no uso de suas atribuições legais, e de acordo com o artigo 2º, inciso xiii, do decreto n.º 1.752, de 20 de dezembro de 1995, torna público que a referida comissão, em reunião extraordi-nária realizada no dia 24 de setembro de 1998, apreciou e proferiu decisão no seguinte processo administrativo:

i-processo n.º 01200.002402/98-60.

interessado: monsanto do Brasil ltda.

cgc: 61.740.049/0001-75.

Endereço: rua paes leme, 524, cEp: 05424-904, são paulo - sp, telefone: (011) 817-6256, fax: (011) 817-6254.

assunto: solicita da ctnBio liberação comercial de soja ge-neticamente modificada tolerante ao herbicida round up ready.

Ementa: a interessada vem requerer a liberação comercial da soja round up ready, bem como de qualquer germoplasma de-rivado da linhagem “glyphosate tolerant soybean” (gts) 40-30-2 ou de suas progênies geneticamente modificadas para tolerância ao herbicida round up®. Esta solicitação compreende a livre prática de atividades de cultivo, registro, uso, ensaios, testes, transporte, armazenamento, comercialização, consumo, importação e descar-te da referida soja. a interessada colecionou informações sobre a caracterização molecular, desenvolvimento de genótipos, seguran-ça ambiental, segurança alimentar e dados bibliográficos da soja round up ready, submetidas juntamente com sua solicitação à co-

missão técnica nacional de biossegurança - ctnBio, que analisou o pedido e emitiu parecer técnico conclusivo. o presente pedido refere-se, apenas, à soja transgênica para o gene cp4-epsps (pro-motor 35s, região de peptídeo de trânsito para o cloroplasto, região de codificação para a enzima 5-enolpiruvato-chiquimato-3-fosfato sintase - epsps, região 3’ do gene nopalina sintase) que confere tole-rância ao referido herbicida.

decisão: a comissão técnica nacional de Biossegurança - ctnBio concluiu, em sua 5ª reunião Extraordinária, realizada no dia 24 de setembro de 1998, a avaliação de biossegurança (am-biental e alimentar) sobre o uso, em escala comercial, do cultivar de soja geneticamente modificada “round up ready”. o parecer técnico conclusivo refere-se aos genótipos derivados da linhagem de soja gts 40-3-2 ou de suas progênies, tolerantes ao herbicida glifosate, de acordo com a solicitação encaminhada à ctnBio pela empresa monsanto do Brasil ltda. (processo n.º 01200.002402/98-60).

a. análise do processo

a ctnBio concluiu que não há evidências de risco ambien-tal ou de riscos à saúde humana ou animal, decorrentes da utiliza-ção da soja geneticamente modificada em questão. Tal conclusão baseou-se nos seguintes elementos:

a.1. Elementos ambientais

a.1.1. a soja é uma espécie predominantemente autógama, cuja taxa de polinização cruzada é da ordem de 1,0%. trata-se de espécie exótica, sem parentes silvestres sexualmente compatíveis no Brasil. as-sim sendo, a polinização cruzada com espécies silvestres no ambiente natural não é passível de ocorrência no território nacional.

a.1.2. a soja é uma espécie domesticada, altamente depen-dente da espécie humana para sua sobrevivência. portanto, não há

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razões científicas para se prever a sobrevivência de plantas deri-vadas da linhagem gts 40-3-2 fora de ambientes agrícolas. além disso, na ausência de pressão seletiva (uso do glifosate), a expressão do gene inserido não confere vantagem adaptativa.

a.1.3. o evento de inserção do transgene está molecular-mente caracterizado e não foram observados efeitos pleiotrópicos decorrentes desta inserção, em estudos conduzidos em diversos am-bientes.

a.1.4. Existem, no Brasil, pelo menos três espécies conhecidas de plantas daninhas que são naturalmente tolerantes ao herbicida glifosate: poaia branca (richardia Brasiliensis); trapoeraba (com-melina virginica); erva quente (spermacoce latifolia). a utilização do glifosate no Brasil não ocasionou, nas últimas décadas, o apa-recimento de outras espécies de plantas daninhas a ele tolerantes. a introdução de cultivares tolerantes ao glifosate não aumentará a pressão de seleção sobre as plantas daninhas, em termos de concen-tração do glifosate (produto/área).

a.1.5. não há evidências de que a utilização rotineira do her-bicida glifosate nas lavouras de soja no Brasil tenha efeito negativo no processo de fixação biológica de nitrogênio. Esta observação está baseada em ensaios realizados por entidades governamentais e pri-vadas brasileiras, onde o uso continuado do herbicida não afetou a nodulação e a produtividade dos cultivares de soja. o gene marca-dor nptii, que confere resistência à kanamicina, não foi transferido para a linhagem gts 40-3-2.

a.1.6. não há indicação de que o uso de cultivares derivados da linhagem GTS 40-3-2 levará a alterações significativas no perfil e na dinâmica de populações de insetos associados à cultura da soja convencional.

a.2. Elementos da saúde humana e animal

a.2.1. a ctnBio concluiu que a introdução do transgene não altera as características da composição química da soja, com exceção da acumulação da proteína transgênica cp4 epsps. Esta conclusão de equivalência de composição química é baseada em avaliações realizadas através de metodologia científica, publicadas em revistas científicas indexadas e de circulação internacional. A segurança da proteína cp4 epsps, quanto aos aspectos de toxicidade e alergenicidade, também foi comprovada. é importante registrar que, após a utilização da soja geneticamente modificada e de seus derivados na américa do sul, central e do norte, na Europa e na Ásia, não foi verificado um só caso de desenvolvimento de reações alérgicas em humanos que não fossem previamente alérgicos à soja convencional. adicionalmente, é importante registrar que indivídu-os sensíveis à soja convencional continuarão sensíveis à soja trans-gênica e, portanto, não deverão fazer uso deste produto.

a.2.2. a análise dos resultados descritos na literatura não con-firmou um possível aumento, na soja geneticamente modificada, da concentração de proteínas que reagem com uma combinação de soros de pacientes alérgicos à soja convencional. De fato, os artigos científi-cos disponíveis e citados sobre a matéria mostraram que a expressão do transgene não resultou no aumento dos níveis de proteínas reativas, especialmente daquelas de peso molecular próximo a 30 kilodáltons, a uma combinação de soro de indivíduos sensíveis à soja comercial (Burks and fuchs, 1995, Journal of Allergy and Clinical Immunology, 96: 1008-1010). Os autores do artigo científico acima mencionado afir-maram que “nossos estudos demonstram que a introdução do gene codificador da proteína epsps, que confere tolerância a glifosate, não causou modificação discernível, qualitativa ou quantitativamente, na composição de proteínas alergênicas endógenas de soja em qualquer dos cultivares resistentes à glifosate analisados”.

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168 Uma História sobre a CiênCia brasileira 169lUiz antonio barreto de Castro

B. parecer técnico conclusivo

fica aprovada a solicitação encaminhada à ctnBio pela empresa monsanto do Brasil ltda. (processo 01200.002402/98-60), obedecendo às determinações abaixo:

B.1. a ctnBio determina que o monitoramento dos plan-tios comerciais dos cultivares de soja derivados da linhagem gts 40-3-2 deverá ocorrer por um período de cinco anos, com o objetivo de proceder a estudos comparados das espécies de plantas, insetos e micro-organismos presentes nas lavouras. A verificação de even-tuais alterações consideradas significativas para a biossegurança poderá resultar na suspensão imediata dos plantios comerciais.

B.2. a solicitante se comprometerá a viabilizar áreas de plan-tio e se responsabilizará pelo monitoramento científico, necessário para a geração de informações complementares, que serão super-visionadas por técnicos especializados nomeados pela ctnBio. as informações deverão ser obtidas concomitantemente ao plantio comercial da cultura. as áreas, suas localizações e dimensões, se-rão estabelecidas conjuntamente pela ctnBio e pela monsanto do Brasil ltda., e deverão localizar-se em regiões edafo-climáticas representativas da cultura da soja.

B.3. o monitoramento da área contemplará:

B.3.1. A variação da composição específica da comunidade de plantas daninhas da área, sendo necessário incluir a composição e magnitude da reserva de sementes no solo, como parte da avaliação;

B.3.2. a eventual incidência de plantas daninhas “escape” determinando se a resistência ao herbicida glifosate resultou da transferência do transgene;

B.3.3. a avaliação periódica da dinâmica populacional de or-ganismos indicadores: insetos, patógenos e microrganismos fixado-res de nitrogênio e solubilizadores de fosfatos;

B.3.4. o envio do relatório anual à secretaria Executiva da CTNBIO, até o dia 15 de junho seguinte ao ano agrícola específico.

B.4. as áreas de monitoramento serão franqueadas à audito-ria científica pela sociedade civil organizada interessada, mediante autorização prévia da CTNBIO e com a presença de fiscal do mi-nistério da agricultura.

B.5. a solicitante informará na embalagem do produto que, eventualmente, os usuários da nova tecnologia poderão receber vi-sitas técnicas da CTNBIO, nos termos definidos anteriormente.

c. a ctnBio reserva-se ao direito de rever, sempre que, jus-tificadamente, julgar necessário, as diretrizes listadas no item b.

d. a ctnBio entende que, por razões de natureza jurídi-ca relativas à rotulagem e à autorização de plantio, permanece pendente a utilização comercial da soja geneticamente modificada “round up ready”.

E. resulta do inciso iii, artigo 7º, da lei 8.974/95, e do seu de-creto regulamentador n.º 1752/95, que o ato da ctnBio constitui parecer conclusivo de caráter técnico do ponto de vista da biosse-gurança e não é autorizativo para determinar o plantio da soja em questão. Esta é uma prerrogativa legal de outros órgãos federais competentes.

informações complementares: solicitações de maiores infor-mações deverão ser encaminhadas, por escrito, à secretaria execu-tiva da ctnBio, ministério da ciência e tecnologia, esplanada dos ministérios, bloco e, salas t-15/t-17, cep 70067-900, Brasília - df, e-mail [email protected], ou através do fax (061) 317-7682. o

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170 Uma História sobre a CiênCia brasileira 171lUiz antonio barreto de Castro

processo encontra-se à disposição dos interessados, para consulta, na secretaria executiva da comissão.

luiz antonio Barreto de castro

presidente da ctnBio “

(publicado no diário oficial da união n.º 188 de 1º de outubro de 1998, seção 3 - página 56)

A este respeito manifesto-me como presidente da CTNBIO, à época, cientista que sou, pioneiro da engenharia genética de plantas no Brasil e edificador desta atividade no CENARGEM - Centro Nacional de Recursos Genéticos e Biotecnologia da EMBRAPA, onde atuei por quinze anos desde 1981, para citar documento público, extensiva-mente divulgado em várias audiências públicas, levado a efeito na câ-mara dos deputados e no senado federal, sob o título “considerações do presidente da CTNBIO sobre a soja transgênica tolerante ao glifosate”, que cito ao longo desta análise pelo seu caráter público, pela lógica da minha argumentação e para esclarecer aos que me têm vilipendiado, ig-norando os fatos e movidos por interesses que certamente não são com-patíveis com o interesse público, nos quais me pautei durante quarenta e um anos de profissão. Mais tempo do que a idade dos meus detratores.

“à ctnBio cabe por força da lei emitir parecer conclusivo a respeito da biossegurança do produto, ao final da análise de cada processo a ela submetido com o objetivo de comercialização de pro-dutos transgênicos. a ctnBio analisa as solicitações citadas caso a caso. a ctnBio considera todos os questionamentos interpos-tos, mas não tem no processo de avaliação da comercialização de produtos transgênicos, de acordo com a lei, que responder a cada interlocutor que apresenta estes questionamentos. ao interessado, no caso a monsanto do Brasil, coube, portanto, o ônus da prova de que o seu produto (soja round up ready) não teria efeito deletério

ao homem e ao meio ambiente. neste processo, todas as relevantes considerações tecidas pela sBpc, idEc e greenpeace foram en-caminhadas à monsanto, a quem cabe respondê-las na íntegra. as respostas da monsanto sempre estiveram disponíveis na ctnBio para exame destes signatários. Quando a ctnBio concluiu o seu exame do processo, ela emitiu seu parecer conclusivo no comuni-cado de nº54, publicado no Diário Oficial da União de 01/10/1998, que responde a todas as questões relevantes formuladas pela socie-dade”.

A primeira observação que compete fazer é que as decisões da CTNBIO são públicas, não estabelecem jurisprudência como afirma a decisão nº 99 do egrégio magistrado, juiz federal, Antonio Souza Pru-dente, já que a comissão analisa as solicitações dos interessados, caso a caso. A segunda observação é que de fato à Monsanto coube, por lei, o ônus da prova.

Por esta razão, todas as questões suscitadas pelas instituições que analisaram o documento da Monsanto como o IDEC o Greenpeace e a SBPC tinham que ser encaminhadas pela CTNBIO para serem respon-didas pela Monsanto e não pela CTNBIO. A CTNBIO, como citado no artigo do seu presidente, cabe, após completa análise da matéria, emitir um parecer conclusivo que, como vamos demonstrar, responde a todas as questões que são objeto desta ação.

Sobre a possibilidade de que espécies daninhas tolerantes ao herbicida se desenvolvam, a partir da espécie transgênica esclarece o comunicado nos itens 1.1 e 1.2 no capítulo referente às questões am-bientais:

“a.1.1. a soja é uma espécie predominantemente autógama, cuja taxa de polinização cruzada é da ordem de 1,0%. trata-se de espécie exótica, sem parentes silvestres sexualmente compatíveis no Brasil. assim sendo, a polinização cruzada com espécies silvestres no ambiente natural não é passível de ocorrência no território nacional.

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172 Uma História sobre a CiênCia brasileira 173lUiz antonio barreto de Castro

a.1.2. a soja é uma espécie domesticada, altamente depen-dente da espécie humana para sua sobrevivência. portanto, não há razões científicas para se prever a sobrevivência de plantas deri-vadas da linhagem gts 40-3-2 fora de ambientes agrícolas. além disso, na ausência de pressão seletiva (uso do glifosate), a expressão do gene inserido não confere vantagem adaptativa.”

A CTNBIO reconhece, em seu comunicado nº 54, que, de fato, existem espécies que, por razões genéticas, são naturalmente tolerantes ao glifosate. Entretanto, o uso do glifosate no Brasil, por mais de duas décadas, não ocasionou o aparecimento de novas espécies daninhas, como esclarece o comunicado:

“a.1.4. Existem, no Brasil, pelo menos três espécies conheci-das de plantas daninhas que são naturalmente tolerantes ao her-bicida glifosate poaia branca (richardia Brasiliensis); trapoeraba (commelina virginica); erva quente (spermacoce latifolia). a utili-zação do glifosate no Brasil não ocasionou, nas últimas décadas, o aparecimento de outras espécies de plantas daninhas a ele toleran-tes. a introdução de cultivares tolerantes ao glifosate não aumen-tará a pressão de seleção sobre as plantas daninhas, em termos de concentração do glifosate (produto/área).”

Da mesma forma, a utilização de glifosate em associação com o cultivar transgênico não aumentará a pressão de seleção sobre ervas daninhas suscetíveis ao herbicida. Quanto à possibilidade de que a uti-lização do herbicida em associação com a cultivar transgênica tenha efeito sobre a flora microbiana do solo, como suspeitam os cientistas da SBPC, esclarece o comunicado:

a.1.5. não há evidências de que a utilização rotineira do her-bicida glifosate nas lavouras de soja no Brasil tenha efeito negativo no processo de fixação biológica de nitrogênio. Esta observação está

baseada em ensaios realizados por entidades governamentais e pri-vadas brasileiras, onde o uso continuado do herbicida não afetou a nodulação e a produtividade dos cultivares de soja.

Da mesma forma, com respeito ao possível efeito da cultivar so-bre as populações de insetos, diz o comunicado em seu item 1.6:

a.1.6. não há indicação de que o uso de cultivares derivados da linhagem GTS 40-3-2 levará a alterações significativas no perfil e na dinâmica de populações de insetos associados à cultura da soja convencional.

A soja RR e as questões relativas aos riscos a saúde humana

Sobre as questões relativas à segurança alimentar, decorrentes da utilização das cultivares transgênicas tolerantes ao glifosate, parti-cularmente no que diz respeito à alergenicidade da soja transgênica, questão apresentada pelos cientistas da SBPC, também o comunicado da CTNBIO é peremptório em seu capítulo intitulado “elementos da saúde humana e animal”:

a.2.1. a ctnBio concluiu que a introdução do transgene não altera as características da composição química da soja, com exceção da acumulação da proteína transgênica cp4 epsps. Esta conclusão de equivalência de composição química é baseada em avaliações realizadas através de metodologia científica, publicadas em revistas científicas indexadas e de circulação internacional. A segurança da proteína cp4 epsps, quanto aos aspectos de toxicidade e alergenicidade, também, foi comprovada. é importante registrar que, após a utilização da soja geneticamente modificada e de seus derivados na américa do sul, central e do norte; na Europa e na Ásia, não foi verificado um só caso de desenvolvimento de reações alérgicas em humanos que não fossem previamente alérgicos à soja convencional. adicionalmente, é importante registrar que indivíduos

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174 Uma História sobre a CiênCia brasileira 175lUiz antonio barreto de Castro

sensíveis à soja convencional continuarão sensíveis à soja transgêni-ca e, portanto, não deverão fazer uso deste produto.

a.2.2. a análise dos resultados descritos na literatura não confirmou um possível aumento, na soja geneticamente modificada, da concentração de proteínas que reagem com uma combinação de soros de pacientes alérgicos à soja convencional. de fato, os artigos científicos disponíveis e citados sobre a matéria mostraram que a expressão do transgene não resultou no aumento dos níveis de pro-teínas reativas, especialmente daquelas de peso molecular próximo a 30 kilodáltons, a uma combinação de soro de indivíduos sensíveis à soja comercial (Burks and fuchs, 1995, Journal of allergy and clinical immunology, 96: 1008-1010). os autores do artigo cien-tífico acima mencionado afirmaram que “nossos estudos demons-tram que a introdução do gene codificador da proteína epsps, que confere tolerância à glifosate, não causou modificação discernível, qualitativa ou quantitativamente, na composição de proteínas aler-gênicas endógenas de soja em qualquer dos cultivares resistentes à glifosate analisados”.

Os cientistas da SBPC compararam o perfil eletroforético do cultivar transgênico com o da linhagem gts 40-3-2 doadora do gene epsps que não é uma linhagem comercial e não possui proteí-nas alergênicas.

por razões ainda não conhecidas, esta linhagem é de fácil transformação, o que não ocorre com linhagens e cultivares de soja; se tivessem comparado corretamente o perfil de linhagens comerciais não transgênicas, que incluem proteínas alergênicas de peso molecular variável, próximos de 30 kd, teriam verificado que a soja transgênica é tão alérgica quanto a soja convencional, posto que o nível de alergenicidade da cultivar transgênica é determinado pelos sucessivos retrocruzamentos realizados com as sojas comer-

ciais, após o cruzamento inicial realizado com a linhagem transgê-nica não comercial, para que a cultivar transgênica resultante rea-dquira as características comerciais desejáveis para sua utilização agrícola. Por isso, a conclusão dos cientistas Burks e Fuchs, publicada no Journal of Allergy and Clinical Immunology,96: 1008 -1010, (1995) transcrito no parecer conclusivo da CTNBIO:

“nossos estudos demonstram que a introdução do gene co-dificador da proteína epsps, que confere tolerância à glifosate, não causou modificação discernível, qualitativa ou quantitativamente, na composição de proteínas alergênicas endógenas de soja em qual-quer dos cultivares resistentes à glifosate analisados”. (o grifo é nosso.)

Este fato é evidenciado na prática pelo que afirma a CTNBIO em seu comunicado também sobre a mesma questão suscitada pela SBPC. Registre-se a preocupação da CTNBIO no sentido de esclarecer que os indivíduos que são alérgicos à soja convencional o serão igualmente à soja transgênica.

“é importante registrar que, após a utilização da soja geneti-camente modificada e de seus derivados na América do Sul, Central e do Norte; na Europa e na Ásia, não foi verificado um só caso de desenvolvimento de reações alérgicas em humanos que não fossem previamente alérgicos à soja convencional. adicionalmente, é im-portante registrar que indivíduos sensíveis à soja convencional con-tinuarão sensíveis à soja transgênica e, portanto, não deverão fazer uso deste produto.”

O parecer da CTNBIO escreve, em 1998, uma página nova na biossegurança mundial, que agora todos estão gradualmente adotando.

Sobre as críticas ao parecer da CTNBIO, mais uma vez citamos o documento público de autoria do presidente da CTNBIO, publicado na ocasião que, lamentamos, não tenha sido objeto de análise pelo autor da

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176 Uma História sobre a CiênCia brasileira 177lUiz antonio barreto de Castro

decisão judicial Antonio Souza Prudente nem dos deputados que, por in-competência má fé ou desespero, sistematicamente assinam agora cartas que procuram manchar a imagem do presidente da CTNBIO, à época.

“a análise explicitada no comunicado supracitado revela so-bejamente o tratamento prudente que a ctnBio dedicou à maté-ria, regulamentando o procedimento a ser exercitado nos plantios comerciais da soja em questão e não “desregulamentando-o”, como se afirma. Termina a CTNBIO informando que todo o processo está à disposição dos interessados no endereço da ctnBio, o que mais uma vez contraria as alegações que implicam não terem sido res-pondidas às relevantes considerações tecidas pelos signatários”.

Também se afirma que “inexistem estudos de impacto am-biental em solo brasileiro, bem como é completo o desconhecimento das consequências do consumo de alimentos geneticamente modifi-cados na saúde do consumidor”. a soja em questão foi repetidamen-te testada em solos brasileiros nos últimos três anos e é cultivada mundialmente em escala comercial nos Estados unidos, argentina e canadá, em uma área que é da ordem de 15 a 20 milhões de hec-tares. seria preciso raciocinar por absurdo e concluir que todos os países, principalmente desenvolvidos, que utilizam tal produto, e outros da engenharia genética em saúde, agricultura e na indús-tria de fermentações, estariam submetendo suas sociedades a riscos não avaliados. a produção mundial de soja transgênica tolerante ao herbicida glifosato e de seus derivados nos países citados é superior a toda produção de soja brasileira. não há qualquer caso documen-tado de prejuízo à saúde humana como consequência do consumo deste alimento geneticamente modificado.

apesar de todos os elementos analisados pela ctnBio indi-carem que, do ponto de vista da biossegurança ambiental e alimen-tar, a utilização da soja transgênica não apresenta risco ambiental ou à saúde humana, como explicitado em seu parecer conclusivo,

ainda assim, a ctnBio estabeleceu, como consta do comunicado supracitado, uma rigorosa estratégia de monitoramento dos plan-tios comerciais pelo período de cinco anos.

Este monitoramento que, na prática, verificará pari-passu qualquer possível efeito positivo ou detrimental de caráter ambien-tal (portanto, qualquer impacto ambiental negativo), decorrente do uso do produto transgênico, se relaciona ao que em biossegurança se denomina gerenciamento de risco ou risk management permitin-do, por intermédio deste acompanhamento, a qualquer momento, retirar o produto do sistema nacional de registro de cultivares e, por conseguinte, do mercado de sementes e da indústria de alimen-tos, através dos órgãos de fiscalização e controle do ministério da agricultura e do abastecimento. vários exemplos práticos deste procedimento, por razões outras que a utilização de transgênicos, ocorreram na agricultura em nível nacional e mundial. alguns exemplos no Brasil são a ferrugem do café, a tristeza dos citrus e o cancro cítrico. Em nível internacional, a helmintosporiose, fungo que incidiu sobre todas as linhagens utilizadas na produção de hí-bridos de milho, obrigou a uma substituição mundial da genética em uso e a phyloxera obrigou a frança a substituir todos os seus vinhedos por porta-enxertos resistentes ao fungo provenientes dos Estados unidos.

Tem sido também afirmado publicamente que a CTNBIO não tem regras atinentes à segurança alimentar, comercialização e rotulagem de transgênicos, o que não corresponde à verdade. os pedidos de liberação no meio ambiente de ogm são analisados com base na instrução normativa no3, da ctnBio, publicada no dou no221, seção 1, páginas 23.691 a 23.694, de 13.11.96. Estas normas aplicam-se à liberação planejada no meio ambiente de vírus, cé-lulas ou organismos multicelulares geneticamente modificados no Brasil ou no exterior. os impactos considerados nesta instrução

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178 Uma História sobre a CiênCia brasileira 179lUiz antonio barreto de Castro

normativa incluem possíveis efeitos sobre a saúde humana e ani-mal, impactos sobre outros organismos, sobre a segurança pública, e sobre a qualidade e sustentabilidade do meio ambiente. caso o ogm venha a ser produzido para o consumo humano ou animal, as questões da seção l da in nº3, referentes a “organismos consumidos como alimento”, são sempre consideradas. pareceres técnicos de outros países são sempre levados em consideração.”

Diante das considerações citadas, contestamos o raciocínio in-cluído no magnífico parecer do ilustre Procurador da República Dr. aurélio veiga rios, citado na sentença, parafraseando uma pesquisa-dora da open university na Grã-Bretanha, Mae-Wan-Ho, que nos con-duz à conclusão de que todos os países, principalmente desenvolvidos, que utilizam tal produto, e outros da engenharia genética em saúde, agricultura e na indústria de fermentações, estariam submetendo suas sociedades como cobaias, a riscos não avaliados.

Colocamos, no outro prato da balança, toda a comunidade cien-tífica de países como os Estados Unidos e o Canadá, que produzem 40% de toda a produção científica mundial, e da própria Organização Mundial da Saúde para formular a simples pergunta:

seriam os cientistas destes países irresponsáveis, omissos e incompetentes a ponto de permitir a livre comercialização da soja transgênica tolerante ao herbicida round up em seus países, subme-tendo suas populações aos riscos que se apregoam nesta decisão?

Acrescentamos, ao depoimento do presidente da CTNBIO, que o Brasil terá que substituir toda a área plantada com cacau na Bahia, particularmente em função da conhecida doença fúngica denominada “vassoura de bruxa”. Terá igualmente que substituir gradativamente toda a área cultivada com banana no país, em função de outra doença fúngica que igualmente dizimará a bananicultura brasileira (como a vassoura de bruxa, com relação ao cacau), denominada sigatoka ne-gra, oriunda da América Central, à qual todas as cultivares de banana,

em uso comercial no país, são susceptíveis. Louve-se o esforço extra-ordinário do Centro de Mandioca e Fruticultura da EMBRAPA, em Cruz das Almas, que já tem cultivares resistentes a ambas as doenças e já inicia o processo de substituição das lavouras citadas. Cabe ainda considerar que problemas como os citados não são provocados pela engenharia genética, como se argumenta na decisão com relação ao milho, em relação à susceptibilidade ao fungo helmintorporium, que causou grande prejuízo mundial, muito antes do advento da engenha-ria genética.

o PareCer ConCLusivo da CtnBio soBre a LiBeração da soJa rr e a oBrigatoriedade Prévia de estudo de imPaCto amBientaL

Gostaríamos de enfatizar que a argumentação citada pelo pre-sidente sobre a decisão da CTNBIO de fazer o monitoramento da soja RR, após a comercialização, faz sentido por razões que são confidencia-das pelo autor da sentença quando afirma:

“nos meus quinze anos de magistratura federal e mais de trinta de vida forense, posso testemunhar, por onde passei exercen-do jurisdição - acre, rondônia e pará (santarém onde instalei a justiça federal), a mais bárbara degradação ambiental de nossos rios, flora e fauna diante da impotência e irresponsabilidade dos órgãos governamentais”

Cabe à pergunta se, na experiência relatada, estudos de impacto ambiental, que em muitos dos casos certamente foram realizados, tive-ram o poder de impedir tal agressão ambiental.

O entendimento que motivou a decisão da CTNBIO é de que o monitoramento científico, que será feito após a comercialização, de forma absolutamente transparente, porque será realizado por especialis-tas “competentes e independentes”, como cita a decisão nº 99 (folha 33), corresponde a um verdadeiro e único possível estudo de impacto ambiental, como afirma o presidente da CTNBIO:

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Este monitoramento que, na prática, verificará “pari passu” qualquer possível efeito detrimental de caráter ambiental (portan-to qualquer impacto ambiental negativo) decorrente do uso do pro-duto transgênico se relaciona ao que em biossegurança se denomi-na gerenciamento de risco ou “risk management”, permitindo, por intermédio deste acompanhamento, a qualquer momento, retirar o produto do sistema nacional de registro de cultivares e, por conse-guinte do mercado de sementes e da indústria de alimentos, através dos órgãos de fiscalização e controle do ministério da agricultura e do abastecimento.

os exemplos citados anteriormente atestam esta efetiva pos-sibilidade. O monitoramento científico será realizado ainda que a ctnBio considere, com base na sua análise de risco preliminar e nos ensaios experimentais de liberação planejada da soja round up ready já realizados, que a “atividade não será potencialmente cau-sadora de impacto ambiental”. por esta razão, não solicita previa-mente estudo de impacto ambiental de acordo com o que estabelece a constituição federal de 1988, em seu artigo 225, parágrafo 1º, que somente estabelece a aplicação de Eia neste caso:

iv- Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou ati-vidade potencialmente causadora de significativa degradação am-biental, estudo prévio de impacto ambiental. (o grifo é nosso.)

A CTNBIO entende que não há dano provável, como claramen-te explicita no parecer conclusivo, objeto do comunicado nº 54, citado anteriormente; e, na fase experimental de liberação planejada do OGM no meio ambiente, procedeu exatamente como preconiza a decisão 99 (folha 34):

Determinou que fossem realizados, “antes do uso comercial do produto monitoramento fiscalizado, testes (quinze testes citados es-

pecificamente neste documento) para só depois considerar a solicitação da empresa Monsanto.

Obviamente que, se em qualquer dos testes houvesse dano significativo à CTNBIO,não teria analisado a solicitação da empresa Monsanto. Na verdade, a CTNBIO, neste particular, antes de examinar o pedido da empresa Monsanto de liberação comercial da soja round up ready, determinou procedimento experimental exatamente como o IDEC estabelece em seu pedido de reconsideração às fls. 498/526:

Deve “o plantio da soja transgênica ser restrito ao necessá-rio para realização de testes e do próprio Eia/rima em regime monitorado e em áreas de contenção delimitada e marcada com a vedação de que sejam comercializados os frutos obtidos com os testes (fls. 496)”.

Portanto, cabe esclarecer que a CTNBIO procedeu, em termos de biossegurança, exatamente como procedem todos os países do mun-do que realizam avaliação de risco (“risk assessment”) e em absoluta consonância com o que estabelece a sua Instrução Normativa nº 3, pu-blicada no DOU nº 221, seção 1, páginas 23.691 a 23694 de 13/11/1996 que, para transgênicos, possibilita cumprir fielmente a resolução do CONAMA nº 001/1986 ressalvadas apenas questões socioeconômicas, que não fazem parte da legislação de biossegurança. Senão, vejamos:

Previamente à autorização dos ensaios experimentais de libera-ção planejada, no meio ambiente da soja resistente ao round up ready, a CTNBIO realizou:

“uma análise dos impactos ambientais do projeto e de suas al-ternativas através da identificação, previsão da magnitude e interpre-tação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminan-do os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos, diretos e in-diretos imediatos e longo prazo temporários e permanentes, seu grau de reversibilidade: suas propriedades cumulativas e sinérgicas”.

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Esta análise, que norteou previamente cada experimento realiza-do com a soja round up ready, foi seguida da supervisão dos ensaios de campo até que a empresa Monsanto, tendo realizado ensaios genótipo/ambiente em diferentes regiões representativas da área de produção de soja no Brasil, solicitou liberação do transgênico em escala.

A CTNBIO interpretou esta solicitação como prenúncio de que a empresa caminhava para produção comercial. Esta solicitação, que correspondia à produção de sementes básicas de cultivares transgênicos em diversas regiões particularmente em Goiás, não foi autorizada pela CTNBIO, com se fosse mais um ensaio experimental, e deu margem a que a Monsanto desse entrada, em junho de 1998, ao seu pedido de aná-lise pela CTNBIO, com vistas à produção comercial da soja round up ready. Estas áreas de cultivo de transgênicos passaram, (posteriormente ao parecer favorável da CTNBIO), para a responsabilidade do Ministé-rio da Agricultura e do Abastecimento, para cumprir as formalidades da Lei de Cultivares nº. 9456 de 25/04/1997.

A CTNBIO entendeu, entretanto, que não poderia realizar uma verdadeira avaliação de impacto ambiental, em nível de cultivos comer-ciais, com base em avaliações experimentais e a partir da elaboração de um EIA, na forma como estabelece o IDEC, em sua reconsideração, ou à própria resolução nº 001 do CONAMA. Diga-se de passagem, que o CONAMA nunca estabeleceu, até o momento, qualquer especificação sobre como realizar estudos de impacto ambiental com plantas transgê-nicas. A CTNBIO entendeu, de acordo com a sua instrução normativa nº 3, que os ensaios experimentais, em pequena escala, não poderiam ser extrapolados para uma escala comercial. Daí, a proposta da CTN-BIO de realizar monitoramento científico de cultivos em escala comer-cial, embora em nenhum dos mais de dez países em que os cultivares round up ready foram liberados para comercialização, tal solicitação tenha sido apresentada a qualquer empresa, como pré-requisito para tal comercialização deste ou de qualquer dos seus cultivares transgênicos,

de um modo geral. Realmente, como diz a sentença 99:

“a simples realização do Eia, demonstrando os acertos de suas premissas ambientais, daria à monsanto e à ctnBio o argumento definitivo sobre o assunto, afastando qualquer dúvida sobre eventuais efeitos danosos decorrentes do descarte deste ogm no meio ambiente”.

A CTNBIO não entendeu desta forma. A nosso ver, considerou insuficiente a realização de um EIA no formato tradicional, o que, em grande parte, já teria sido satisfeito pela fase experimental de liberação comercial da soja round up ready, como descrevemos.

Assim, a Monsanto foi obrigada a atender a CTNBIO como de-terminado em seu parecer conclusivo, porque este parecer é cientifica-mente lógico e seguro, do ponto de vista da biossegurança da atividade. Diz o parecer conclusivo da CTNBIO, neste particular:

B.1. a ctnBio determina que o monitoramento dos plan-tios comerciais dos cultivares de soja derivados da linhagem gts 40-3-2 deverá ocorrer por um período de cinco anos, com o objetivo de proceder a estudos comparados das espécies de plantas, insetos e microrganismos presentes nas lavouras. A verificação de eventuais alterações consideradas significativas para a biossegurança poderá resultar na suspensão imediata dos plantios comerciais.

B.2. a solicitante se comprometerá a viabilizar áreas de plan-tio e se responsabilizará pelo monitoramento científico, necessário para a geração de informações complementares, que serão super-visionadas por técnicos especializados nomeados pela ctnBio. as informações deverão ser obtidas concomitantemente ao plantio co-mercial da cultura. as áreas, suas localizações e dimensões, serão estabelecidas conjuntamente pela ctnBio e pela monsanto do Brasil ltda., e deverão localizar-se em regiões edafo-climáticas re-presentativas da cultura da soja.

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B.3. o monitoramento da área contemplará:

B.3.1. A variação da composição específica da comunidade de plantas daninhas da área, sendo necessário incluir a composição e magnitude da reserva de sementes no solo, como parte da avaliação;

B.3.2. a eventual incidência de plantas daninhas “escape” determinando se a resistência ao herbicida glifosate resultou da transferência do transgene;

B.3.3. a avaliação periódica da dinâmica populacional de or-ganismos indicadores: insetos, patógenos e microrganismos fixado-res de nitrogênio e solubilizadores de fosfatos;

B.3.4. o envio do relatório anual à secretaria executiva da CTNBIO, até o dia 15 de junho seguinte ao ano agrícola específico.

B.4. as áreas de monitoramento serão franqueadas a audito-ria científica pela sociedade civil organizada interessada, mediante autorização prévia da CTNBIO e com a presença de fiscal do mi-nistério da agricultura.

B.5. a solicitante informará na embalagem do produto que, eventualmente, os usuários da nova tecnologia poderão receber vi-sitas técnicas da CTNBIO, nos termos definidos anteriormente.

c. a ctnBio reserva-se ao direito de rever, sempre que, jus-tificadamente, julgar necessário, as diretrizes listadas no item b.

O Ministério da Agricultura e do Abastecimento e o da Ciência e Tecnologia, por meio da CTNBIO, são responsáveis pela aprovação das diretrizes que deverão ser seguidas pelos responsáveis, na realização do monitoramento e na sua supervisão. O monitoramento será realizado por profissionais competentes e independentes cujos currículos e experiên-cia pregressa serão examinados e previamente aprovados pela CTNBIO. A empresa MONSANTO viabilizara as áreas, como consta do parecer con-clusivo da CTNBIO, e arcará com os custos do monitoramento científico. Ficou entendido, na última reunião da CTNBIO, que os responsáveis pela

realização do monitoramento não poderão ser membros da CTNBIO, para garantir a independência do processo, já que os membros da CTNBIO se posicionaram quanto às possibilidades de risco da atividade.

a sentença judicial contesta, a nosso ver, uma das medidas mais importantes da ctnBio, em seu parecer conclusivo, no senti-do de regulamentar o uso comercial do cultivar transgênico round-up ready, que é o citado monitoramento científico de plantios co-merciais da soja transgênica, em questão. ressaltamos, mais uma vez, que nenhum dos países que utilizam comercialmente a soja transgênica round up ready fez esta exigência à empresa monsanto ou realizou tal monitoramento proposto pela ctnBio. propugna a sentença judicial de forma simples e reticente diante da comple-xidade da biologia que:

“se o produto é realmente seguro não há razão para submetê-lo a um monitoramento com regras que revelam o perigo do dano ambiental”.

Vamos rever os objetivos do monitoramento científico, conforme consta do parecer conclusivo da CTNBIO. O monitoramento tem:

“o objetivo de proceder a estudos comparados das espécies de plantas, insetos e microrganismos presentes nas lavouras. a ve-rificação de eventuais alterações consideradas significativas para a biossegurança poderá resultar na suspensão imediata dos plantios comerciais.

Já argumentamos anteriormente que a interrupção de plantios co-merciais é possível e viável, desde que alterações, que indiquem qual-quer possibilidade de dano, sejam verificadas. Por outro lado, como os estudos são comparados e, neste caso, aos métodos convencionais não se pode descartar a possibilidade de que ocorram impactos positivos,como estabelece a resolução do CONAMA. Estudo recente, divulgado pela AENDA - Associação das Empresas Nacionais de Defensivos Agríco-

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186 Uma História sobre a CiênCia brasileira 187lUiz antonio barreto de Castro

las, constatado por todos os agricultores gaúchos, reconhece que a uti-lização de tecnologia round up em associação com o plantio direto da soja transgênica resultará na eliminação de vários herbicidas utilizados habitualmente na produção tradicional da soja no Brasil, entre os quais, herbicidas de pré-emergência e seletivos de pós-emergência para ervas daninhas de folha larga e estreita. Esta eliminação poderá, sem dúvida, ser benéfica para a microbiota do solo.

É de interesse da CTNBIO verificar se há de fato fluxo significa-tivo do gene que confere tolerância ao glifosate para outras cultivares de soja, o que é indesejável para a empresa do ponto de vista comercial. Os efeitos sobre os insetos benéficos e insetos pragas são de baixíssima probabilidade de ocorrência bem como o fluxo gênico para outras ervas daninhas cuja probabilidade de ocorrência é praticamente nula, para não falar para as espécies silvestres de soja, que somente ocorrem na China, centro de origem da soja.

Ainda assim, os estudos cumprirão tudo o que foi determinado pela CTNBIO. As informações constituem um acervo científico im-portante do ponto de vista da biossegurança e mais que tudo oferece a oportunidade de um exercício efetivo de monitoramento cientifico com transgênicos em escala comercial, o que certamente estabelecerá uma experiência científica importante e inédita, colocando o Brasil na liderança das pesquisas em biossegurança. Por todas as razões citadas, a determinação da CTNBIO é mais estimulante do ponto de vista cien-tífico e de biossegurança. Entretanto, se for sentença do julgamento do mérito desta ação cautelar, que se proceda ao EIA tradicional, em lugar do monitoramento científico, simplifica-se, perigosamente, a responsa-bilidade da empresa Monsanto, a quem caberá cumprir tal determina-ção judicial.

Cabe ainda considerar que também incumbe ao Estado constitu-cionalmente promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas tendo, em vista o bem público

e o progresso das ciências bem como o desenvolvimento do sistema produtivo nacional (art.218 parágrafos 1o e 2o, CF).

a deCisão da CtnBio soBre a soJa rr, o PrinCíPio da PreCaução e a questão da rotuLagem de transgêniCos

Outra questão, objeto da sentença, diz respeito ao princípio da precaução. O documento do presidente da CTNBIO, citado anterior-mente sobre este assunto, convoca relatório dos representantes do Mi-nistério da Ciência e Tecnologia, quando este assunto foi objeto de um longo debate, na última reunião da conferência das partes relativa à convenção da diversidade biológica em Cartagena, e um dos motivos que resultaram em um impasse ao cabo do qual não houve consenso e todos os países voltaram de mãos vazias. Diz o presidente da CTNBIO, em seu documento:

“várias alegações são feitas contra a utilização de transgêni-cos em geral, por organizações não governamentais, com base no princípio da precaução. Este princípio, que não faz parte da legis-lação de biossegurança brasileira nem de nenhum dos artigos da convenção da diversidade Biológica- cdB, a não ser do seu pre-âmbulo. não é um princípio de aceitação de todos os países, pelas razões que se seguem. diz o princípio, como literalmente traduzido do preâmbulo da cdB:

“onde há uma ameaça de redução significante ou perda de diversidade biológica, a falta de total certeza científica não deveria ser utilizada como uma razão para adiar medidas para evitar ou minimizar tal ameaça”.

Uma das maiores dificuldades para adoção do princípio de precaução por instrumentos legais de todos os países é que a histó-ria da ciência, particularmente das ciências biológicas, não convive com o que se denomina total certeza científica – “full scientific cer-tainty”. Nunca houve absoluta certeza científica em ciência biológica

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e nunca haverá. Baseado neste princípio, os produtos transgênicos para a saúde ou para a agropecuária nunca seriam utilizados no mundo. a ciência biológica, em geral, e a engenharia genética, em particular, operam com níveis favoráveis de probabilidade quan-do atuam em atividades de risco e minimizam tais riscos com as estratégias de precaução(diferente do princípio de precaução) que foram adotados mundialmente em biossegurança, desde meados da década de 1970, após a conhecida conferência de azilomar na califórnia, que estabeleceu tais princípios através de instrumentos produzidos pelo high - National Institute of Health. são estes os ins-trumentos com que opera a ctnBio: “risk assessment”- avaliação de risco e “risk management” gerenciamento de risco. Exercitan-do-se tais princípios corretamente, como faz a ctnBio e muitos institutos semelhantes no mundo, nunca qualquer produto transgê-nico causou prejuízo ambiental ou à saúde humana. o único caso conhecido, e citado continuamente, de prejuízo à saúde humana, ocorrido no Japão, em decorrência da utilização comercial de trip-tofano, a partir de uma bactéria transgênica, ocorreu precisamente por causa da não observância destas estratégias de precaução. por-tanto, não há em ciência que possa contestar a assertiva apresenta-da pelas ongs:

“não é porque ainda não há prova de que ela (referindo-se à soja) possa comprometer a saúde humana no presente, que essa soja geneticamente alterada pode ser considerada inofensiva para o ser humano”.

Embora todos os argumentos de análise que a ctnBio utili-zou, em nível nacional e mundial, que se apoiam em sólida base cien-tifica quanto ao uso comercial da soja, sejam amplamente favoráveis à inexistência de risco ambiental ou humano, do ponto de vista proba-bilístico, não há qualquer cientista no mundo que possa afirmar que a soja venha a ser prejudicial a alguém no futuro ou o contrário.

Aplicado à Convenção da Diversidade Biológica, como estabelece a decisão judicial em sua argumentação, por todas as razões que constam do parecer conclusivo da CTNBIO, o princípio não foi agredido porque o risco da soja transgênica afetar a diversidade biológica brasileira foi considerado de baixíssima probabilidade, respeitadas as considerações de caráter filosófico/cientifico, feitas pelo presidente da CTNBIO.

“a ctnBio, por lei, tem a prerrogativa de decidir se deseja realizar qualquer estudo de impacto ambiental relativo a organis-mos transgênicos. diz o artigo 2o inciso xi do decreto 1752 que re-gulamenta a lei de biossegurança 8974/95: “compete à ctnBio: exigir como documento adicional, se entender necessário, Estudo de impacto ambiental (Eia) e respectivo relatório de impacto no meio ambiente (rima) de projetos e aplicação que envolvam a liberação de ogm no meio ambiente, além das exigências especi-ficas para o nível de risco aplicável”. Grifamos as palavras “do-cumento adicional e, se entender necessário” para que o público compreenda que a ctnBio pode, de acordo com a lei, decidir sem solicitar os documentos adicionais citados, e os solicitará se enten-der necessário. isto se aplica a situações em que a ctnBio não tenha elementos suficientes para chegar a uma conclusão com as informações disponíveis. a ctnBio entendeu que estes documen-tos não eram necessários, no caso da soja transgênica resistente ao herbicida round up e é perante a opinião pública, responsável por tal decisão. a ctnBio analisou a questão da soja transgênica resistente ao herbicida round up exaustivamente. acompanhou a sua evolução experimental e liberação comercial em todo o mun-do. analisou todas as evidências relativas à sua segurança para a alimentação humana e animal e liberação ambiental. não encon-trou nenhuma evidência real que justificasse a não aprovação do seu uso em escala comercial no Brasil. nenhum argumento apre-sentado pelo idEc, ou pelos cientistas que representaram, nesse

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episódio a sBpc, ou por qualquer outra organização interessada deixou de ser analisado criteriosamente. ainda assim, a ctnBio vai acompanhar, sobre diversos aspectos, o uso comercial da soja e de qualquer outro produto transgênico que venha a ser liberado comercialmente no Brasil, porque esta estratégia, como já dissemos anteriormente, faz parte da conduta correta de gerenciamento de risco do ponto de vista da biossegurança, embora nem todos os pa-íses adotem tal postura. a ctnBio não está sozinha nesta posição. da mesma forma, decidiram países como os Estados unidos, cana-dá, méxico, argentina, para citar apenas alguns que já liberaram a soja citada para plantio e que já ocupa cerca de 15 milhões de ha. a ctnBio tem absoluta convicção que sua decisão não fere nem a constituição, nem a Eco 92, simplesmente porque nenhuma degra-dação ambiental advirá do uso comercial da soja em questão pelo fato da soja ser transgênica. Não creio que a comunidade científi-ca brasileira, especializada no tema, discorde, em sua maioria, da decisão da ctnBio. como também não discordam as academias de ciências dos Estados unidos, do canadá e, por último, da ingla-terra (ver UK Royal Society em seu documento “Embargoed Until, 2 september 1998 – genetically Modified Plants”.); entretanto, há sempre opiniões conflitantes. Lembrem-se da saga de Galileu, de oswaldo cruz, quando fazia as primeiras campanhas para erra-dicar a febre amarela. cientistas renomados morreram no Brasil negando a existência dos genes. a realidade é que a comunidade científica dos países, em que esta soja está sendo utilizada comer-cialmente, não estaria silente se os que discordaram da decisão da ctnBio tivessem razão. a ctnBio opera de forma absolutamen-te pública. todos os processos e decisões da ctnBio são públicos. o que a opinião pública precisa também saber é que existe uma campanha mundial liderada pelo greenpeace, que não nega esta liderança, para impedir o desenvolvimento da biotecnologia e em

particular das plantas transgênicas de uso agrícola no mundo. Em-bora os primeiros produtos da engenharia genética de plantas se-jam plantas resistentes a herbicidas, os próximos produtos, que já estão sendo cultivados em áreas próximas de 10 milhões de há em alguns países do mundo, serão, em muito curto prazo, responsáveis pela redução de inseticidas, que hoje custam à agricultura mundial cerca de 10 bilhões de dólares, sem falar nos problemas ambien-tais decorrente do seu uso. a conta que o Brasil paga anualmente pelo uso de agrotóxicos é de cerca de 2.5 bilhões de dólares. não é possível competir desta forma. a biotecnologia será portanto res-ponsável por uma agricultura que resolverá os seus problemas pela via biológica e não química. muitas das grandes empresas multina-cionais, que sempre utilizaram produtos químicos para o combate a doenças e pragas da agricultura, adotam agora a via biológica. outras certamente seguirão a mesma trajetória em futuro próxi-mo. não há alternativa. a transformação da agricultura química em uma agricultura biológica, que substitui o nitrogênio químico pela fixação biológica do nitrogênio, como fez o Brasil com a soja, e que terá plantas resistentes a insetos e a fungos, ao invés de utili-zar inseticidas e fungicidas, para citar apenas alguns exemplos, não será instantânea. Ela está ocorrendo gradualmente, mas felizmente ocorrerá de forma inevitável. alguns ainda relutam. Que interesse os motiva? Espero que não sejam os mesmos adeptos da revolução verde que, no passado, incentivaram uma agricultura fortemen-te dependente de insumos químicos, produzidos em boa parte na Europa, precisamente agora o berço das principais reações con-trárias à biotecnologia aplicada agricultura, e que ainda pratica esta versão de agricultura do passado e por, esta razão, subsidiada e sem capacidade de competir internacionalmente. vai haver no mundo espaço para mercados diversos. Embora a ctnBio não tenha em seu mandato o direito de atuar em outra área, que não

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a que se relaciona com a biossegurança, não cabendo, portanto, à comissão analisar aspectos de mercado. é obvio que, se persistirem preferências por produtos não transgênicos em “mercados impor-tantíssimos” como afirma o IDEC em seu documento, certamente será tecnicamente possível atendê-los. Basta que os preços sejam compensadores; isto já ocorre em um crescente mercado, que é a chamada agricultura orgânica”.

Sobre a rotulagem, a CTNBIO observa com interesse a iniciativa do executivo no sentido de encontrar uma solução para a rotulagem de produtos transgênicos, que satisfaça o Código de Defesa do Con-sumidor particularmente quanto ao seu artigo nº 31, ponto de vista do presidente da CTNBIO, sobre este assunto em seu documento público, já citado.

Finalmente, motivados por estes argumentos, cabe contestar a expectativa absolutamente apocalíptica que consta da decisão de que a engenharia utiliza genes alienígenas,

“que darão origem a uma esquisita civilização de “aliens hos-pedeiros” com fisionomia peçonhenta, a comprometer definitiva-mente, em termos reais, e não fictícios, a sobrevivência das futuras gerações de nosso planeta”.

Onde estão no mundo estes seres? A prevalecer tal expectativa, compromete-se o futuro da biotecnologia tão necessária ao desenvolvi-mento do país. A afirmação revela um total desconhecimento da enge-nharia genética, que nunca utilizou um gene que não fosse meticulosa-mente caracterizado e conhecido, da mesma forma que o produto de sua expressão, as proteínas, cuja função bioquímica se apoia em décadas de estudos científicos. Diferente é o mundo da síntese química, que fabrica remédios e agrotóxicos, estes sim absolutamente desconhecidos dos or-ganismos vivos e seus metabolismos não sendo, portanto, surpreenden-te que, nas bulas dos remédios e agrotóxicos, estes sempre venenosos, sejam incluídas laudas e laudas de contraindicações o que, entretanto,

não impede o seu uso indiscriminado, particularmente recomendado e defendido por empresas europeias, que dominam estes mercados e são as maiores opositoras à engenharia genética, na área de plantas; e “curiosamente”, não na área da saúde, que utiliza a mesma engenharia genética, mas que neste caso constitui seu interesse comercial.

– 9.3 - A vERDADE SOBRE A CAMPANHA:

POR UM BRASIL LIvRE DE TRANSGÊNICOS

Luiz Antonio Barreto de Castro*

Existe uma campanha que se intitula “Por um Brasil Livre de Transgênicos” que tem como representante, no Legislativo, um deputa-do federal do PV, pelo estado da Bahia que recentemente liderou uma campanha: “Fora Barreto” para forçar a minha demissão do CENAR-GEN, EMBRAPA Recursos Genéticos e Biotecnologia, que dirijo desde janeiro de 2000. Sem apoio da Diretoria Executiva da EMBRAPA, que me hipotecou solidariedade, ele e mais dezessete deputados (alguns re-tiraram suas assinaturas) protocolaram ofício ao Presidente da Repúbli-ca, no início de julho, pedindo o meu afastamento do CENARGEN, sob o argumento de que sou uma ameaça à soberania do país. Com relação a esta última campanha, já manifestei o meu ponto de vista ao Presidente da República, em carta protocolada em seu Gabinete. Anexei o Anuário da Academia Brasileira de Ciências - Novos Membros 2003, no qual, nas páginas 70-73 há uma síntese do meu curriculum vitae, para que ele possa verificar que estudo biologia há quarenta e dois anos, dos quais trinta foram dedicados à biologia molecular e para que ele veja também a quem tenho servido todos esses anos.

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Esta resposta, entretanto, não é adequada, porque mais uma vez sou agredido no que tenho de mais precioso na vida: a minha honra e credibilidade profissional, e não na minha competência. O que o de-putado Edson Duarte, que não conheço, não relata quando fala nas tecnologias avançadas que o CENARGEN desenvolve, é que em 1980 vim para o CENARGEN exatamente para construir, nessa instituição, a biotecnologia agropecuária do país e, recentemente, nos últimos quatro anos, a sua área genômica, com sucesso. O meu primeiro projeto no CENARGEN, na EMBRAPA, foi melhorar a qualidade da proteína do feijão e a dieta das populações mais pobres do Brasil, transferindo um gene da castanha do Pará. Este produto nunca foi liberado por razões de biossegurança, porque existem pessoas alérgicas à proteína da casta-nha do Pará. Como consequência deste trabalho, entretanto, o CENAR-GEN, no qual exerço atualmente a posição de Chefe Geral, clonou e expressou o primeiro gene de planta no Brasil, em 1991.

Não existe uma frase verdadeira no que afirma o deputado contra mim e contra a CTNBIO. Todas as decisões da Comissão, cuja maioria dos seus integrantes é de cientistas com doutorado, são públicas e fo-ram apoiadas na melhor ciência, inteiramente em consonância com as decisões tomadas mundialmente. Não há um argumento de qualidade científica nas campanhas do Greenpeace do IDEC e da ASPTA, em suas críticas aos transgênicos liberados comercialmente, até hoje, em todo o mundo. Os argumentos foram desmoralizados com ciência e estes argumentos científicos nunca foram contestados. Em quase dez anos de uso absolutamente generalizado da soja RR no mundo, nunca houve qualquer efeito prejudicial à saúde humana ou ao meio ambiente, o que evidencia que a CTNBIO e o resto do mundo estavam certos. Para ve-rificar os impactos ambientais desta soja, no Brasil, é fácil: basta visitar 3 milhões de hectares no Rio Grande do Sul e verificar que os impactos são positivos. Durante oito anos no MCT, tentei afastar as ideologias políticas das decisões da Biotecnologia no Brasil e colocar no seu lu-

gar a ciência, sem sucesso. A minha posição a favor de transgênicos, quando avaliados positivamente pelas regras de biossegurança, não é radical, é científica, e pode mudar, se cientificamente for convencido do contrário. Gostaria que a campanha apontasse uma, apenas uma, con-sequência prejudicial ao meio ambiente ou à saúde humana decorrente das decisões da CTNBIO. Fui acusado de corrupção como todos os membros da CTNBIO exatamente por integrantes desta campanha que não serve aos interesses do país. Esta facção radical, que inclui o depu-tado autor da campanha, e que não existe somente no PV, acusa, julga e condena com base em ótica fascista própria. Se alguém contraria seus argumentos é corrupto e contra os interesses do país; uma ameaça à soberania do Brasil. Têm eles o privilégio e a exclusividade da hones-tidade? O Presidente Lula não perde por esperar. Se algum dia seguir pelo caminho que escolhi, de defender cientificamente os transgênicos, estará imediatamente a serviço das multinacionais. Os brasileiros têm que respeitar a competência científica de suas instituições. Particular-mente, a EMBRAPA, que tenho orgulho de ter servido por duas déca-das. É ofensivo ouvir sempre, quando os nossos cientistas negociam com multinacionais, que eles são corruptos e/ou incompetentes e ter o CENARGEN invadido pelo MST, como ocorreu ano passado.

O bom senso, que adotei por toda a vida, não deixa dúvida de que países como os Estados Unidos, Argentina, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, China e Índia, que produzem mais de 50% da ciência do mundo, não submeteriam suas populações a uma aventura. Portanto, quando decidimos sobre a questão de transgênicos na CTNBIO, tínha-mos clareza sobre as nossas decisões e não, como diz o deputado e a campanha “Por um Brasil Livre de Transgênicos”, submeteríamos a sociedade brasileira a experiências como cobaias. Se estávamos erra-dos, pelo menos temos o consolo de ver ao nosso lado vinte prêmios Nobel; oito Academias Nacionais de Ciência; a FAO e a Organização Mundial da Saúde. Se estávamos errados, mais uma vez, peço que me

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mostrem uma, somente uma vítima; um problema ambiental causado pelos transgênicos, que não são inerentemente seguros, mas que, após avaliação cuidadosa de risco, como fizemos na CTNBIO, podem ser liberados com segurança no nosso país; mais até do que o que observa-mos no mundo. Cegos à realidade, os adeptos da campanha “Por Um Brasil Livre de Transgênicos” preferem ignorar os milhões de hectares cultivados com a soja RR no Rio Grande do Sul e na Argentina, que só trouxeram benefícios econômicos para os agricultores e para o meio ambiente dessas regiões, reduzindo drasticamente o banco de sementes de ervas daninhas no solo, que não eram mais controladas pelos herbici-das de pós-emergência em uso, sem falar nos prejuízos que estes herbi-cidas causavam à cultura do trigo subsequente a da soja no Rio Grande do Sul e sem falar na redução da erosão do solo, que esta tecnologia possibilita em associação com o plantio direto.

Este desabafo, Senhor Presidente, não foi o que me estimulou a escrever esta carta. Se eu estivesse apenas diante de uma campanha pessoal trataria disto sozinho, sem buscar solidariedade onde quer que fosse, como sempre tenho feito na vida, responsável por minhas ati-tudes, segundo a visão de Exupéry em Terras dos Homens, segundo a qual ser homem é ser responsável.

O que me levou a escrever esta carta é a minha responsabilidade pública. Ficou evidente aos autores da Campanha “Por um Brasil Livre de Transgênicos” que destruir o ex-presidente da CTNBIO não possi-bilitaria a eles alcançar seus objetivos. Assim, eles mudaram de tática. Primeiro o site do Greenpeace recrudesce os ataques à minha pessoa, como ex-Presidente da CTNBIO (o que é irrelevante neste momento) mas relata, o que é importante, que o deputado Edson Duarte, no dia 22 de julho, em pronunciamento na Câmara, anunciou que estaria dando entrada a uma representação junto ao Ministério Público Federal e so-licitando abertura de investigação à Controladoria Geral da União, com

o objetivo de revisar a decisão da CTNBIO, favorável à liberação da soja transgênica resistente ao herbicida glifosate, em setembro de 1998. Com efeito, chegou ao meu conhecimento o Requerimento Nº 729/03, eivado de mentiras, de autoria do deputado Edson Duarte, apresentado à Câmara dos Deputados, sugerindo nova análise do processo de libe-ração. O documento corta e cola frases soltas de notas taquigráficas da última reunião (5a Extraordinária), sobre este tema, em 1998, para criar a mentirosa ilusão de que a CTNBIO tratou esse assunto de forma in-competente e irresponsável, sob minha coação totalitária .

Em cinco anos, aprendi como funcionam essas artimanhas jurí-dicas e advirto aos integrantes da CTNBIO, como farei no Legislativo e junto às autoridades do Executivo e do Judiciário, sobre a estratégia que a campanha supracitada pretende desenvolver, utilizando o depu-tado Edson Duarte. O mais alto escalão do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com sabedoria, decidiu tratar o assunto transgê-nicos sob a ótica da ciência, sem ideologismos e politicagens, o que conduzirá, estou certo, a uma decisão na forma de um projeto de lei que, aprovado, nos libertará desta moratória judicial que, há cinco anos, aprisiona a agricultura e mais recentemente a ciência.

Este entendimento entre o Executivo e o Legislativo precisa ser neutralizado pelos advogados das campanhas “Por um Brasil Livre de Transgênicos e Fora Barreto” que são, na verdade, a mesma campanha. Sabedores de que não há nenhuma argumentação científica consistente que possam utilizar para se opor às decisões da CTNBIO e da fraque-za de sua posição, diante da evidência clara de que não há qualquer efeito prejudicial que possam apresentar a respeito da soja em questão, em um gesto desesperado, vão tentar os artífices da campanha citada: neutralizar este consenso que se aproxima, via imprensa e Ministério Público, tentando reverter a decisão da CTNBIO que terá, assim, sua credibilidade questionada com a violência costumeira. O Ministério

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Público terá certamente um representante esperando de braços abertos esta iniciativa para endereçá-la a um Juiz que, como já aconteceu no passado, com uma liminar, poderá impedir o exercício do projeto de lei, que venha a ser aprovado pelo Legislativo , e estender a moratória por mais cinco anos.

No passado, o Juiz que interrompeu o desenvolvimento da Bio-tecnologia agropecuária, no Brasil, por este caminho que acabo de des-crever, refere-se aos transgênicos em sua “sentença” como organismos “que darão origem a uma esquisita civilização de aliens hospedei-ros com fisionomia peçonhenta, a comprometer definitivamente, em termos reais, e não fictícios, a sobrevivência das futuras gerações de nosso planeta”. É óbvio que esta visão apocalíptica e ridícula que, entretanto, tirou o sono de muitos, nunca se materializou. O objetivo maior, entretanto, foi alcançado: cinco anos de obscurantismo. A meta no curto prazo da campanha “Por um Brasil Livre de Transgênicos”, (curiosamente o Brasil não é com Z), neste momento, é impedir que o Rio Grande do Sul plante legalmente a soja RR. Para tal, basta suscitar a dúvida. Criar a falsa impressão de que todo o trabalho sério realizado pela CTNBIO foi na verdade uma grande conspiração para atender aos interesses das multinacionais, a serviço do que todos na CTNBIO deso-nestamente se curvaram sob a batuta diabólica do Presidente da CTN-BIO. Pinçando na 5ª Reunião Extraordinária, realizada em setembro de 1998, frases soltas, fora do contexto, tentam dar falsa impressão que tudo foi feito em três meses, enquanto, no mundo, este assunto levou até cinco anos. Assim, Senhor Presidente, como cidadão brasileiro, solicito formalmente, em nome do interesse público, cópia de todas as Atas, de todas as Reuniões Ordinárias e Extraordinárias, que constituem toda a história da CTNBIO, inclusive as que sucederam ao Comunicado rela-tivo à liberação da soja RR, publicado em Outubro de 1998, para que, sozinho, se for o caso, eu tente desmoralizar esta campanha sórdida, que procura comprometer, a mim principalmente, mas também àqueles

integrantes da CTNBIO, com quem tive a honra de trabalhar por quatro anos, que o fizeram, com grande sacrifício de suas carreiras profissio-nais, e, finalmente, a própria CTNBIO, com o objetivo claro de perpe-tuar a moratória que, sob a égide dessa campanha, abate a agricultura brasileira há cinco anos, com prejuízos incalculáveis para o país.

* Membro da Academia Brasileira de Ciências

9.4 - ALCIDES CARvALHO - (1913 - 1993)

Entrevista concedida a Vera Rita da Costa (Ciência Hoje). Publicada em julho de 1987.

Há 52 anos Alcides Carvalho se dedica ao estudo da genética, da evolução e do melhoramento do café. Em 1935, recém-formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba (SP), foi convidado para trabalhar no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), onde Carlos Arnaldo Krug organizava a Seção de Genética, concentrando esforços no estudo do cafeeiro e do milheiro. Alcides começou então a colaborar no “Plano geral de estudos do cafeeiro”, que previa o estudo das populações dessa planta e dos seus mecanismos de reprodução, análises genéticas e citológicas e pesquisas relacionadas à fisiologia, à química e à tecnologia do produto. Praticamente todos os cultivares plantados atualmente no Brasil tiveram origem na Seção de Genética do IAC, de que esse pesquisador foi chefe de 1948 a 1981. Doutor honoris causa pela Esalq, agraciado com o Prêmio Nacional de Ciência e Tecnologia em 1982, Alcides Carvalho recebeu, em 1983, quando de sua aposentadoria compulsória, aos 70 anos, uma homenagem especial: o Estado de São Paulo considerou-o “servidor emérito”, o que lhe permite continuar pesquisando e formando pesquisadores.

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Gostaríamos, inicialmente, que nos falasse sobre sua origem e contasse como nasceu sua vocação científica.

Na minha família ninguém trabalhava com pesquisa. Meu pai foi administrador de uma fazenda de café e posteriormente trabalhou num cartório de paz e registro civil, em São Pedro do Turvo (SP). Quando tinha seis anos fui morar em São Pedro e de lá voltei, aos doze anos, para Piracicaba, para trabalhar e estudar à noite. Como naquele tempo eram poucos os cursos secundários, o estudante fazia escola de comércio. Formado na Escola de Comércio Moraes Barros, resolvi entrar para a Esalq. Quando me graduei, o dr. Krug, que era chefe da Seção de Genética do IAC, me convidou para vir a Campinas, conhecer o Instituto e ver se me interessava em trabalhar com café. Vim, gostei e aqui permaneci. Tive a rara oportunidade de trabalhar com café a vida toda. Achei que era extremamente importante trabalhar com uma planta que tanta riqueza trouxe a São Paulo. Não tive uma vocação especial. Gostei da idéia, da planta, e continuei trabalhando até agora.

Como era o IAC quando o senhor começou a trabalhar? A Seção de Genética já existia?

A Seção de Genética estava sendo organizada. O dr. Krug fizera o curso secundário na Alemanha, a graduação na Esalq e a pós-graduação nos Estados Unidos. Ele organizou pessoalmente os planos de estudo de várias culturas de interesse para São Paulo, principalmente o café e o milho. Naquela ocasião, em 1932, estava-se começando a produzir milho híbrido, e o dr. Krug deu início aos estudos voltados para sua produção aqui. É interessante saber que São Paulo foi a primeira região, fora dos Estados Unidos, a produzir milho híbrido com linhagens selecionadas em instituições locais. Quando vim para cá, no início de 1935, os trabalhos com café estavam começando e, como não se conheciam as variedades de Coffea arabica, iniciou-se um estudo sobre taxonomia e sobre a biologia da reprodução do café, com o objetivo de ter informações sobre o modo como os cultivares dessa espécie se

multiplicavam na natureza. Deu-se início, também, à pesquisa sobre os métodos de melhoramento aplicáveis ao cafeeiro. Estudos básicos relativos à citologia, genética, biologia da reprodução, e mesmo os de sistemática e evolução, eram realizados tendo-se em vista sua aplicação ao melhoramento. A finalidade precípua era conseguir linhagens mais produtivas, para que o Brasil pudesse posteriormente melhor competir no mercado internacional. Todo o material coletado, tanto de variedades como de espécies de café, foi sendo conservado em coleção, no “banco de germoplasma”, mantido até hoje em Campinas, um dos mais completos do mundo.

Como era encarada essa busca de aumento de produção numa época de superprodução de café?

Na época parecia utópico, porque justamente em 1932/33 o Brasil não sabia o que fazer com o enorme volume de café armazenado. Milhares e milhares de sacas estavam sendo queimadas e só a cinza era aproveitada, usada como adubo nas lavouras. Falar em iniciar um trabalho de melhoramento para aumentar a produção parecia um absurdo. Mas o dr. Krug previa que, após a eliminação de tantos cafezais, chegaria o momento de implantar novas lavouras.Os lavradores, por essa ocasião, deveriam poder dispor de sementes de linhagens selecionadas, altamente produtivas e de boa qualidade. Valia a pena, então, começar a trabalhar, para que pudéssemos, dali a quinze ou vinte anos, dispor dessas linhagens. Tive a rara oportunidade de participar, com o dr. Krug, dos primeiros trabalhos de melhoramento genético do cafeeiro e desenvolvê-los até agora. O dr. Krug teve grande influência na formação técnica de todos os que trabalharam com ele no IAC. Além dos conhecimentos científicos, tinha rara capacidade de organização, orientando todas as pesquisas em andamento na Seção de Genética.

A partir de que momento as pesquisas sobre melhoramento de café começaram a ser reconhecidas, valorizadas?

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202 Uma História sobre a CiênCia brasileira 203lUiz antonio barreto de Castro

As pesquisas foram iniciadas em 1934. Uns dez anos depois começaram a aparecer os primeiros resultados de interesse para os cafeicultores. As primeiras seleções foram feitas com o café burbom-vermelho, porque era a variedade mais cultivada em São Paulo e diferente daquela que se plantava anteriormente, a arábica ou nacional. O burbom-vermelho era bem mais produtivo e as seleções realizadas chegaram a dar 100% a mais que as da variedade arábica. Em 1936, a Seção de Genética começou a estudar o café caturra, que veio do Espírito Santo. Era um café de porte baixo e muito produtivo. O porte baixo é valioso - facilita a colheita e os tratos fitossanitários. O caturra, por falta de vigor, não se adaptou bem às condições de São Paulo, mas foi aproveitado para agrupamento com o mundo-novo, dando origem ao catuaí, que é de excepcional valor. Tem porte pequeno, alta produtividade e rusticidade. Aliás, o aparecimento do caturra, de pequeno porte e produtivo, provocou verdadeira revolução na cafeicultura. Tanto assim que vem sendo usado até hoje em todos os centros experimentais de melhoramento cafeeiro para a obtenção de cultivares de porte reduzido.

Como foi feita a introdução dessas variedades na cafeicultura? Qual era a receptividade dos cafeicultores?

A introdução de novas variedades é sempre gradual, a cafeicultura vai sendo transformada aos poucos. O IAC tem estações experimentais em vários locais do estado, onde as linhagens de café em estudo são avaliadas. Quando se verifica que uma dada linhagem vai indo bem simultaneamente nessas diferentes estações, inicia-se a distribuição de pequenas quantidades de semente a lavradores de diversas regiões do Estado.As melhores linhagens são multiplicadas pela Seção de Café do IAC e também por agricultores interessados em estabelecer campos de multiplicação de sementes. Esses campos são orientados por técnicos da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), que fiscalizam também a venda direta de sementes aos lavradores. Em pouco tempo as linhagens mais promissoras chegam até eles.

Como é feita a seleção de variedades? Quais são as etapas do trabalho?

O café mundo-novo, por exemplo, começou a ser estudado quando se soube que, na região de Araraquara, uma plantação de café chamava a atenção pelo vigor e pela produtividade. Técnicos do IAC visitaram a fazenda, no município de Mundo Novo, hoje Urupês, e colheram sementes das melhores plantas, selecionadas como matrizes. Essas sementes foram plantadas nas estações experimentais do instituto onde, durante vários anos, suas produções individuais foram acompanhadas. Em geral, o período de avaliação das progênies se estende por vinte anos. No caso especifico do mundo-novo, depois de dez anos as sementes começaram a ser distribuídas, dado o imenso valor que o material apresentava.

O senhor se referiu às análises genéticas. Por que são feitas?

O objetivo primeiro de nossas análises genéticas do cafeeiro é determinar quais são os fatores genéticos responsáveis pela herança das principais características da espécie Coffea arabica. É um trabalho demorado, mas que, além do valor teórico, tem utilidade prática: quando se conhece o material do ponto de vista genético, tem-se a base para os trabalhos de melhoramento. É uma pesquisa empolgante, embora o cafeeiro não ofereça muitos fatores de fácil reconhecimento para essa análise. Talvez por ser uma espécie tetraplóide.

Como sente o fato de ter trabalhado, durante trinta anos, sem a certeza de chegar a resultados práticos? Como é fazer ciência básica?

Não se vê o tempo passar. Todos os anos fazemos numerosos cruzamentos, tentando conseguir combinações melhores. É evidente que, de todo o material analisado, apenas algumas combinações se mostram mais promissoras que as já existentes. Mas quando se consegue uma linhagem mais produtiva isso tem grande reflexo econômico, porque

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204 Uma História sobre a CiênCia brasileira 205lUiz antonio barreto de Castro

o café é uma planta perene.Em 1970, quando a ferrugem chegou ao Brasil, não fomos pegos de surpresa, porque havia anos estávamos trabalhando com material portador de resistência genética ao fungo. Havíamos previsto que a ferrugem chegaria a Campinas, uma vez que temos aqui um aeroporto internacional. Desde 1953 vínhamos estudando material com resistência ao agente da ferrugem, proveniente da África e da Índia. Como não tínhamos a ferrugem no país, contávamos com a colaboração dos técnicos do Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, em Oeiras, Portugal. Híbridos desse material resistente e dos nossos cultivares, bem como todas as principais seleções de C. arábica e de híbridos interespecíficos, foram para lá, para serem analisados. Quando a ferrugem chegou, já sabíamos qual era o material que melhor resistia a ela, que fatores genéticos poderiam ser transferidos para os nossos cultivares e o que deveria ser feito dali por diante.Os trabalhos foram ampliados consideravelmente com a realização de numerosos experimentos e pesquisas sobre os tipos de resistência que se optem ao agente da ferrugem. O impacto da chegada da doença ao Brasil foi, assim, bastante atenuado, e os lavradores foram persuadidos de que a cafeicultura não iria desaparecer, como de fato não desapareceu. A colaboração com Portugal foi valiosa.

O senhor sempre esteve ligado ao IAC. Nunca pensou em ir para a universidade?

Tive oportunidade de ir para a universidade, mas achei preferível continuar fazendo aquilo que sei fazer, isto é, trabalhar com o cafeeiro. Gosto muito do trabalho que executo. Acho ótima a colaboração com todas as universidades, ela é extremamente benéfica. Às vezes dou aulas em alguns cursos. Prefiro dar palestras, mostrando as plantas no campo, para que os alunos conheçam as variedades e espécies de café e as dificuldades existentes no estudo de uma planta perene, que leva quatro anos de semente a semente.

Ao cabo de 52 anos de trabalho no IAC, como o senhor avaliaria o instituto?

O IAC tornou-se uma instituto de prestígio internacional. O importante é que o governo sempre forneça verba suficiente para o prosseguimento e a ampliação das pesquisas. Para festejar condignamente esse aniversário de cem anos, o governo poderia admitir mais pesquisadores e técnicos, o que permitiria ampliar os trabalhos com o cafeeiro, que julgamos ser de muito interesse para nossa economia. Embora o café esteja se deslocando para outros estados brasileiros, acreditamos que São Paulo - que tem tradição no cultivo do cafeeiro, clima e solos apropriados para esse cultivo e propriedades dotadas das instalações necessárias à produção de café de boa qualidade - deve continuar a participar da produção brasileira com pelo menos 30%, como vem fazendo nestes últimos quinze anos.

– 9.5 - HARTwIG GIFTS MEMORIALIzE ‘MR. SOyBEAN’

University Relations News Bureau (662) 325-3442

February 04, 1997

A $208,000 contribution to Mississippi State from a Leland widow will establish an endowed fund to continue the research of her late husband, a longtime university employee and internationally recognized agronomist.

Winifred B. Hartwig of Leland has named Mississippi State as the beneficiary of the charitable gift annuity, which will establish the Edgar E. and Winifred B. Hartwig Endowed Fund for Excellence. The annuity also will provide Mrs. Hartwig with an income for life.

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206 Uma História sobre a CiênCia brasileira 207lUiz antonio barreto de Castro

agronomy and plant breeding from the University of Illinois.

He came to Mississippi States Delta Branch of the Mississippi Agricultural and Forestry Experiment Station in Stoneville in 1949 as a USDA research agronomist for soybean production research. He previously had worked with the Florida and North Carolina agricultural experiment stations.

Hartwig’s research is credited with making soybeans a viable crop in the Mid-South and a leading cash crop in the United States. A leading aspect of his work was the breeding of multiple-pest-resistant varieties. His collection of publications and papers, housed at the Delta Branch, will be made available for student instruction and research at Mississippi State.

Winifred Hartwig, also a native of Minnesota, received a bachelors degree in home economics from the University of Minnesota, where she met her husband. Through the years, she has been a teacher, a homemaker, a grower of roses, and an accomplished artist.

Weatherly said that the Hartwig Fund for Excellence has been the beneficiary of several memorial gifts from friends and associates of Edgar Hartwig, with additional memorial gifts anticipated.

Persons interested in contributing to the endowed fund can contact Weatherly in Mississippi States Office of Development at. (601) 325-3410.

Known in agronomy circles as “Mr. Soybean,” Edgar Hartwig died last May at age 83. During a career that spanned more than half a century, he is credited with developing 90 percent of the soybean varieties grown in the South. He was an adjunct professor of agronomy at Mississippi State at the time of his death.

The Hartwig Fund for Excellence primarily will support graduate assistantships in the department of plant and soil sciences.

In addition, Mrs. Hartwig is designating the university as the beneficiary of her estate, according to Charles Weatherly, director of development for the Division of Agriculture, Forestry, and Veterinary Medicine.

“When the university receives the bequest, it will substantially boost the Hartwig Fund for Excellence,” Weatherly said. It also will establish the proposed Edgar E. and Winifred B. Hartwig Endowed Chair in Plant Breeding, also in the plant and soil sciences department, he added.

Hartwig was a world-class research scientist whose work benefited many countries around the world, said university President Donald Zacharias.

“Dr. Hartwig’s name is synonymous with soybeans across the country and the world,” Zacharias said. “His work through the years brought great recognition not only to himself but to this university and this state. Through Mrs. Hartwig’s generosity and love, her husband’s important work will continue at Mississippi State for many years to come.”

In a separate tribute to the researcher, the Mississippi Soybean Promotion Board is pledging $200,000 to Mississippi State to establish the Hartwig Endowed Fund for Soybean Research at the Mississippi Agricultural and Forestry Experiment Stations Delta Branch in Stoneville.

A native of Minnesota, Edgar Hartwig received a bachelor’s degree from the University of Minnesota and master’s and doctoral degrees in

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