DOZENA_2009_Territórios Samba

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

AS TERRITORIALIDADES DO SAMBA NA CIDADE DE SO PAULO

Alessandro Dozena

So Paulo 2009

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

AS TERRITORIALIDADES DO SAMBA NA CIDADE DE SO PAULO

Alessandro Dozena

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Capuano Scarlato

So Paulo 2009

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Aprovado em 16/12/2009

Banca Examinadora

Prof. Dr. Francisco Capuano Scarlato (Orientador)

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Prof. Dr. Antnio Carlos Robert Moraes __________________________

Prof. Dr. Julio Cesar Susuki

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Profa. Dra. Bernadete A. C. Oliveira

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Prof. Dr. Paulo Cesar da C. Gomes

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Aqui jazz um doutorado repleto de samba, que fez danar meus pensamentos, reinventando minha imaginao geogrfica e mantendo viva minha verdade.

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NDICE INTRODUO ......................................................................................... .......... 19 1. O SAMBA NA CONSTITUIO DO PROCESSO DE URBANIZAO DA CIDADE DE SO PAULO .......................................... 47 1.1 Samba e cultura brasileira: Dos batuques s escolas de samba .................................................................................................... 51 1.2 As razes territoriais do samba paulistano ................................................... 60 1.3 As mudanas na dinmica do carnaval paulistano .......................................... 76 1.4 A expanso do samba na cidade de So Paulo .............................................. 91 1.5 O bairro no mundo do samba ....................................................................... 121 1.6 O samba na quebrada do Parque Peruche .................................................... 128 1.7 O samba na quebrada do Bexiga ................................................................ 140 1.8 O pertencimento comunitrio fludo no mundo do samba ................................................................................................ 153 2. A DIMENSO CULTURAL DO MUNDO DO SAMBA ....................... 158 2.1 O samba como discurso e prtica de Contra-Finalidade ............................................................................................ 159 2.2 A Contra-Finalidade em Adoniran Barbosa ..................................................... 168 2.3 O papel da corporeidade na conformao de territorializaes urbanas ....................................................................................... 183 2.4 Os movimentos de samba na cidade de So Paulo .......................................... 189 3. A DIMENSO POLTICA E ECONMICA DO MUNDO DO SAMBA ..................................................................................... 199 3.1 As negociaes polticas .................................................................................. 200 3.2 Gerao de empregos e de capital ................................................................... 216 3.3 Fbrica dos Sonhos: A criao de um territrio especializado ........................................................................................................ 230 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 236 REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................. 254

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LISTA DE ILUSTRAES Foto 1 Jongo em Pindamonhangaba So Paulo .............................................. 53 Foto 2 Barraco de romeiros em Pirapora do Bom Jesus So Paulo .............. 61 Foto 3 Samba-leno em terreiro de Rio Claro So Paulo ............................... 63 Fotos 4 e 5 Largo do Piques (atual Praa da Bandeira) ..................................... 67 Foto 6 - Desfile do Cordo Campos Elseos em 1935 .......................................... 78 Foto 7 Bloco Camponeses do Egito em 1920 ................................................... Foto 8 - Desfile de Blocos Carnavalescos no Memorial da Amrica Latina ..... Foto 9 Populao aguardando o desfile na Av. So Joo em 1935 ................. Foto 10 Primeiro desfile carnavalesco realizado no Vale do Anhangaba ........................................................................................ 88 Foto 11 - Final dos Jogos da Cidade de So Paulo .............................................. 134 Foto 12 - Roda de Samba na Escola de Samba Vai-Vai ....................................... 142 Foto 13 - Altar dedicado aos santos catlicos na Escola de Samba Unidos do Peruche ................................................................................................. 143 Fotos 14 e 15 Eventos sociais no Aristocrata Clube .......................................... 173 Foto 16 Cantinho do Peruche ............................................................................. 192 Foto 17 Samba da Vela ....................................................................................... 194 Foto 18 Projeto Rua do Samba Paulista ............................................................. 196 Foto 19 Quadra da escola de samba Nen da Vila Matilde ............................... 202 Foto 20 Quadra da Escola de Samba Prova de Fogo ........................................ 208 Foto 21 Loja de produtos carnavalescos na Rua 25 de Maro ......................... 219 Foto 22 Costureiro trabalhando no quintal de sua residncia ............................ 225 Foto 23 Carro alegrico com movimento sendo montado por profissional de Parintins ............................................. Foto 24 Carnavalesco organizando os trabalhos no Barraco da Escola de Samba Rosas de Ouro ...................................................................... 228 Foto 25 Terreno onde ser construda a Fbrica dos Sonhos ......................... 231 Fotos 26 e 27 Samba da Laje na Vila Santa Catarina ........................................ 244 Mapa 1: Territrios negros em So Paulo 1881 ................................................ 70 Mapa 2 Disperso dos sambistas em So Paulo ................................................ 99 Mapa 3: Expanso da rea urbanizada em So Paulo - 1881 a 2002 .................... 100 227 80 83 87

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Mapa 4 Escolas de Samba Paulistanas em atividade Cronologia das Fundaes ................................................................ 105 Mapa 5 Distribuio das Escolas de Samba ativas por Classes Econmicas nos Distritos de So Paulo ............................................................... 114 Mapa 6: Provenincia dos associados da Escola de Samba Unidos do Peruche ................................................................................................. 137 Mapa 7 Limite Hipottico do Bexiga ................................................................. 175 Mapa 8 Uso do territrio no Bexiga ................................................................... 176 Tabela 1 Escolas de Samba precursoras na cidade de So Paulo (em atividade) ..................................................................................................... 108 Tabela 2 - Distribuio das escolas de samba pelas regies da cidade de So Paulo Ano Base: 2009 .......................................................... 110 Tabela 3 - Distribuio das escolas de samba ativas por Classes Econmicas Ano Base: 2009........................................................ Tabela 4 Renda Mdia Familiar por Classes Econmicas Ano Base: 2003 .......................................................................... Tabela 5 Cortes do Critrio Brasil Ano Base: 2003 .................................... Quadro 1: Periodizao do samba paulistano ................................................... Imagens 1, 2 e 3 Planta da Fbrica dos Sonhos .............................................. 116 117 30 231 115

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LISTA DE SIGLAS ABBC ABEP CEABRA COHAB DER FAPESP FFLCH IBGE IBOPE LigaSP NERU ONG SASP SEBRAE SESC SPTuris UESP UNEGRO UNICAMP USP Associao das Bandas, Blocos e Cordes Carnavalescos do Municpio de So Paulo Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa Coletivo de Empresrios e Empreendedores Negros Conjunto Habitacional Departamento de Estradas e Rodagem Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica Instituto Brasileiro de Opinio Pblica e Estatstica Liga das Escolas de Samba de So Paulo Ncleo de Estudos Regionais e Urbanos Organizao No-Governamental Sociedade Amantes do Samba Paulista Sistema Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas Servio Social do Comrcio So Paulo Turismo Unio das Escolas de Samba de So Paulo Unio de Negros pela Igualdade Universidade Estadual de Campinas Universidade de So Paulo

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Incentivo especial:

Trabalho realizado com bolsa doutorado da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, processo n 06/51309-8. Devo salientar que imensa a minha gratido FAPESP, por ter tido a ventura de realizar a Ps-Graduao com as condies mpares propiciadas a um bolsista desta instituio. Espero ter correspondido com o benefcio a mim proporcionado pela sociedade paulista, que, pelo pagamento de seus tributos, sustenta essa Fundao.

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AGRADECIMENTOS

O trabalho que ora se apresenta, assinala a concluso do processo de doutoramento iniciado em 2006, quando tive a felicidade de ter sido contemplado com a bolsa da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP. No tenho palavras para explicar a alegria dos quatro anos de orientao apreciados ao lado do professor Dr. Francisco Capuano Scarlato, mestre de grande qualidade intelectual e sensibilidade humana. Tambm no fcil tornar patente meu imenso agradecimento por sua amizade, por sua confiana, por sua presena sempre motivadora, pelo seu nimo e envolvimento na direo deste trabalho. Manifesto minha honra de t-lo encontrado nesta minha importante fase acadmica e de vida. Reconheo a sua importncia, mestre, em tornar a Geografia brasileira mais afortunada, por sua franqueza no dizer e no proceder. Gostaria de agradecer igualmente minha querida esposa, Katia Agg, cuja convivncia e amor irrestrito sempre me foram fortificantes. Se h um sustentculo emocional que me possibilitou concluir este trabalho, ele minha querida esposa. Sou grato pelas palavras elogiosas e de estmulo nos perodos difceis. Aqui aproveito para tambm agradecer aos meus pais, Anibal e Pascoalina, que do mesmo modo, so exemplos na constituio de meu carter, pelo comportamento do qual busco me inspirar para encarar os embates que a vida proporciona. O que passvel de ser dito que tentei imprimir neste trabalho a mesma persistncia que aprendi com minha me, e a simplicidade que aprendi com meu pai. A todos os meus familiares deixo aqui expresso meus agradecimentos pelo apoio e convivncia sempre estimulante: Clvis e Virgnia Agg, Ronaldo, Luciana e Bianca Agg, Agnaldo Agg e Fernanda Gomes, Lilian e Alcides Garcia, Marcelo, Sandra e Isabela Dozena, Aline Dozena e Alex Ciacci. No que se refere ao encaminhamento da pesquisa propriamente dito, vale salientar que, alm dos levantamentos estatsticos e da reviso bibliogrfica, as entrevistas foram essenciais para a consolidao da discusso presente na tese. Assim sendo, gostaria de agradecer a todos os entrevistados, pois se dispuseram a prestar esclarecimentos sobre a dinmica do samba na cidade de So Paulo, do modo mais gentil possvel: Tiaraj, Kaula, Francisco, Lino, Billy, Roberto, Lia, Betinho, Rbson, Nanci,

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Celso e Penteado. Agradeo imensamente a professora Dra. Bernadete de Castro Oliveira e o professor Dr. Antnio Carlos Robert de Moraes, pela leitura atenciosa e encaminhamentos fundamentais na ocasio do Exame de Qualificao; manifestando sensibilidade, respeito e sugestes muito pertinentes. Agradeo tambm ao professor Dr. Paulo Csar da Costa Gomes e ao professor Dr. Jlio Csar Susuki, pela leitura da verso final da tese e por aceitarem o convite para a banca avaliadora. Gostaria de agradecer ao historiador e grande figura humana, Francisco Rocha, que disps alguns encontros para me esclarecer acerca da importncia de Adoniran Barbosa para o samba paulistano. Devo tambm ao meu amigo Roberto Goulart Menezes, pelo acompanhamento e horas de conversa. Deixo aqui expresso meu sincero agradecimento pela leitura do projeto de pesquisa realizado por ambos. Com relao s leituras, gostaria de demonstrar minha enorme gratido a Antnio Malacquias (Billy) e profa. Dra. Valria Cazetta que, muito generosamente, leram a primeira verso de meu relatrio FAPESP. Agradeo ainda a Andra Zacharias, Luciene Risso, Neusa Mariano, Gabrielli Cifelli e Dolores Biruel pelos convites para a realizao de palestras e participao em Mesas Redondas em suas instituies universitrias, o que de certo modo me possibilitou permanecer em contato com a sala de aula; atenuando-se a saudade da proximidade com o corpo discente. Igualmente, deixo meu sincero agradecimento e considerao professora Dra. Glria Anunciao Alves, pela possibilidade de participao no Grupo de Estudos Sociedade Urbana: Metrpole e Territrio, pertencente ao Laboratrio de Geografia Urbana - LABUR, do Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo. As prazerosas e proveitosas discusses compartilhadas com pesquisadores de distintas formaes acadmicas fincaram razes em minha personalidade intelectual. Certamente, um dos principais momentos deste convvio se deu na discusso crtica de meu Relatrio de Qualificao, efetuada por Sandra, Nanci, Wagner, Nedir, Clber, Adailton, Csar e Gil; alm da professora Glria. Valeu pessoal ! Ainda no mbito do Departamento de Geografia, gostaria de manifestar meu sentimento de estima e de amizade pelo professor Dr. Jlio Csar Suzuki, agradecido pela leitura do Projeto de Pesquisa e submisso deste leitura de alguns membros do Laboratrio de Geografia Agrria: Selito, Lino, Samarone, Eduardo e Lina, a quem sou

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grato. As professoras Dra. Amlia Ins e Dra. Mnica Arroyo, desejo assinalar minha admirao e gratido pela generosidade com que sempre me trataram. As secretrias do Setor de Ps-Graduao: Ana, Jurema, Cida e Rosngela, que desde a realizao do mestrado me trataram com muita presteza. Toda a estrutura da Universidade de So Paulo facilitou a escrita, merecendo referncia suas excelentes bibliotecas e o seu completo conjunto poliesportivo CEPEUSP. Ao professor Dr. Jos Guilherme Magnani, cujo trabalho rigoroso e apaixonante muito me inspira e influencia. A participao em sua disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia foi edificante e me ajudou sobremaneira. No poderia deixar ainda de agradecer ao professor Dr. Mauro Leonel, que generosamente me recebeu como estagirio de sua disciplina Sociedade e Meio Ambiente na USP - Leste, dentro do Programa de Aperfeioamento ao Ensino. Igualmente, aos membros do Grup dInvestigacions en Geografia Urbana - GICU e ao professor Dr. Carles Carreras i Verdaguer, que me recebeu por trs meses no Departamento de Geografia da Universidade de Barcelona Espanha. Faz-se importante novamente agradecer a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, pela concesso dos recursos que permitiram esse importante perodo de vivncia em Barcelona, e ao Zeus, pelo acompanhamento e apoio. Tambm agradeo a Pr Reitoria de Ps-Graduao da Universidade de So Paulo, pelo apoio financeiro que tornou possvel a participao no Congresso Luso-AfroBrasileiro de Cincias Sociais realizado em Portugal, alm do auxlio na compra das passagens para o estgio em Barcelona. Ao professor Dr. Jos Roberto Zan, pela disciplina inspiradora Estudos Avanados em Msica Popular, cursada no Curso de Ps Graduao em Msica da Universidade de Campinas UNICAMP, no perodo que antecedeu meu ingresso no doutorado. Ao amigo Mrcio Michalczuk Marcelino, o popular Lino da Peruche, um dos principais responsveis por me apresentar vrios entrevistados, pelas informaes preciosas no incio da minha descoberta e insero no mundo do samba, pelas

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conversas realmente esclarecedoras e estimulantes. Agradeo tambm pela parceria no artigo publicado na Revista do Ncleo de Antropologia da USP NAU, elucidando-me muitas questes sobre a presena do samba no Parque Peruche. Vanir Belo e ao Selito, pelas conversas sobre o samba paulista desde o incio do trabalho. Prof. Dr. Rafael Straforini, amigo de graduao, por me acompanhar no trabalho de campo realizado na Cidade do Samba carioca. Ao amigo Samarone Marinho, gostaria de agradecer por estar sempre ao meu lado durante todo o perodo do doutorado, pelas tardes em que passamos juntos conversando sobre nossos temas de pesquisa e os encaminhamentos tericos neles presentes, dilogos realmente proveitosos e que me contagiaram de idias e de admirao por sua qualidade intelectual. Professora Dra. Samira Pedutti Kahil, grande incentivadora de meu progresso acadmico. Ao amigo professor Dr. Wendel Henrique pelo incentivo inicial na escolha do tema da pesquisa. A todos os amigos que sempre estiveram por perto: Carlos Henrique da Silva, Carlos Henrique (ex-aluno), Srgio Lima, Carlos Pinheiro, Ronaldo Pileggi e Joice Dombrova, Wonder Higino e Silvana, Marcos Gomes e Andreza, Vagner Rodrigues, Ricardo Hirata, Rosngela Biruel e Hugo Mariano, Valria Cazetta e Berg Feracine. Aos meus amigos performticos: Anabel Andrs, Dani Lasalvia, Andra Pimentel, Mauro Santos, Jamil Gidice, Lila Mun, Luiza, Ully Costa e Priscila Briganti. Todas as aventuras musicais que tivemos foram muito importantes para este trabalho e para o meu aprimoramento humano. Viva o improviso da vida ! Ao Nilo Lima, Renata Salles e Marco Pires pela parceria na elaborao dos mapas e discusso dos temas a eles relacionados. Com certeza, foram conversas muito enriquecedoras para todos ns. Tambm agradeo Sinthia Cristina Batista e Juliana Canduzini pelas sugestes cartogrficas. Ao professor Dr. Carlos Maia e todos os membros do Grupo de Estudos Lux Festas Populares, pelas trocas que tm sido estabelecidas recentemente. Agradeo Carla Rodrigues, pela reviso final do texto. Do mesmo modo, Girlei Aparecido de Lima pelos apontamentos acerca das regras da ABNT e elaborao da Ficha Catalogrfica. E ainda, rica Oliveira e Lilian Agg pela correo dos resumos.

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Paulo Amarante (Paulinho), pelo auxlio na captao das imagens e edio do documentrio que acompanha esta tese. Deixo aqui expresso meu sincero agradecimento a minha (meu) parecerista FAPESP, por confiar no potencial deste estudo. Mesmo sem conhec-la (o), gostaria de salientar que suas contribuies foram fundamentais, servindo como um estmulo constante durante o processo de pesquisa e de escrita. Aos sambistas e ao samba, o grande inspirador deste trabalho. Ax ! So Paulo, a cidade que aprendi a amar em seu caos s vezes organizado, mas repleta de oportunidades e de amizades. Por ltimo, mas no menos louvvel, quero manifestar minha gratido a Deus e todas as foras do alm, por esses anos de pesquisa to prazerosos, por agirem sempre em meu favor e me presentearem com a alegria de aprender.

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RESUMO

DOZENA, A. As Territorialidades do Samba na Cidade de So Paulo. 2009 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2009.

Esta pesquisa busca compreender os diferentes usos do territrio na cidade de So Paulo sob a perspectiva particular do samba, visto que ele pode ser retratado espacialmente. A partir dos distintos usos territoriais pelos sambistas, houve a articulao entre a teoria e o trabalho de campo, alcanando-se uma explicao crtica das territorialidades presentes no mundo do samba, e realizando-se um aprofundamento terico-metodolgico na problemtica que envolve o territrio e a cultura. Nesse sentido, tornaram-se evidentes os mecanismos pelos quais as prticas sociais, discursos e representaes subjetivas dos sambistas se territorializam e atuam como contrafinalidade. Tais aes privilegiam a vivncia e o lazer durante o ano todo, no s no carnaval, alm de estruturarem redes de sociabilidade que geram territorialidades com um sentido essencialmente coletivo.

Palavras chave: territorialidades, samba, histria, So Paulo, urbanizao.

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ABSTRACT

DOZENA, A. The Territorialities of the Samba in Sao Paulo City. 2009 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2009.

This research attempts to understand the different uses of the paulistano territory in the context of the events which are associated with the samba in Sao Paulo city. From the different territorial uses by sambistas, there was a joint between the theory and the work of field, reaching a critical explanation of the territorialities in the world of samba and focusing on the problem that involves the territory and the culture. In this sense, the mechanisms through which the samba occupies in social practices and subjective representations became evident; acting as against-finality. All these practices benefit the experience and the leisure over the whole year, not only at Carnival, besides structuralizing sociability nets that generate territorialities in an essentially collective sense.

Words - key: territorialities, samba, history, Sao Paulo, urbanization.

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RSUM

DOZENA, A. Les Territorialits de la Samba dans la Ville de So Paulo. 2009. f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2009.

Cette recherche a pour but comprendre les diffrents usages du territoire paulistano dans le contexte des vnements associs la samba dans la ville de So Paulo. partir des usages territoriaux distincts par les danseurs de samba, nous avons fait larticulation entre la thorie et le travail de champ en atteignant une explication critique des territorialits prsentes dans le monde de la samba . De cette faon nous avons russi un approfondissement dans la problmatique qui implique lterritoire et la culture. Dans ce sens sont devenus vidents les mcanismes par lesquels la samba stablit en tant que pratiques sociales et reprsentations subjectives, beaucoup de fois irrductibles la rationalit conomique. Telles pratiques privilgient outre l'exprience et le loisir pendant toute lanne, pas seulement pendant le carnaval, la structuration des rseaux de sociabilit qui produisent des territorialits avec un sens essentiellement collectif. Mots - cl: territorialits, samba, histoire, So Paulo, urbanisation.

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Hoje desaprendo o que tinha aprendido at ontem E que amanh recomearei a aprender. Todos os dias desfaleo e desfao-me em cinza efmera: Todos os dias reconstruo minhas edificaes, em sonho eternas.

Esta frgil escola que somos, levanto-a com pacincia Dos alicerces s torres, sabendo que trabalho sem termo. E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras. Cada um de ns tem sua verdade, pela qual deve morrer.

De um lugar que no se alcana, e que , no entanto, claro, Minha verdade, sem troca, sem equivalncia nem desengano Permanece constante, obrigatria, livre: Enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.

Ceclia Meireles

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INTRODUOEste texto apresenta os resultados da pesquisa documental e de campo, alm das leituras e atividades acadmicas realizadas no perodo de elaborao do doutorado, entre os anos de 2006 a 2009. Nesse perodo, procuramos concentrar o trabalho primeiramente em uma orientao de cunho mais geral, que atendesse algumas das necessidades do projeto de pesquisa inicial, qual seja, o reconhecimento dos aspectos relativos territorializao do samba na cidade de So Paulo. Ao tratarmos de cidade no desconsideramos o fato de que a dinmica intraurbana se articula com as dinmicas interurbanas (LEFEBVRE, 1999), em um nico processo que comanda a constituio da rede urbana e da metrpole paulistana. Igualmente, a opo pela categoria de anlise cidade ocorreu pela demarcao do estudo no abarcar outros eventos de samba presentes na Regio Metropolitana de So Paulo, o que ampliaria em muito o recorte aqui proposto. A cidade aqui considerada como um fato econmico e uma relao poltica (WEBER, 1982), um fenmeno de origem poltico-espacial manifestada em sua dinmica territorial (GOMES, 2002), a combinao entre a forma material e o seu contedo social (SANTOS, 2002) e a expresso concreta dos processos sociais na forma de um ambiente construdo, que reflete as caractersticas da sociedade (MUNFORD, 1961). Ao focalizar o objetivo central do trabalho e buscar compreender alguns processos pelos quais o samba estabelece territorialidades por meio de prticas sociais e representaes subjetivas que tornam So Paulo uma cidade capaz de convidar os indivduos realizao humana por meio da integrao com o samba, que permeia todas as suas regies; faz-se necessrio perceber os significados dos territrios demarcados pelos sambistas e como se d a interao dos sambistas com esses territrios. Em outras palavras, torna-se necessrio a reconstruo da dialtica existente entre a forma e o processo, pois como afirma Francisco Scarlato (2004), os espaos construdos, sejam os pblicos ou os privados, revelam cdigos e sentidos no bojo da interao social, transcendendo sua materialidade e sua temporalidade; remetendo-se memria que extrapola o momento atual alm de suplantar geraes. Cabe de incio enunciar que o objetivo principal deste trabalho o de realizar um aprofundamento terico-metodolgico na problemtica que envolve o territrio e a

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cultura, buscando-se a compreenso do uso do territrio na cidade de So Paulo sob a perspectiva particular do samba, visto que ele pode ser retratado espacialmente. Alm disso, busca-se pesquisar os mecanismos pelos quais as prticas sociais, discursos e representaes dos sambistas se territorializam e atuam como contra-finalidade. Assim, intuito do trabalho analisar as territorialidades do samba dentro da trama da cidade de So Paulo, verificando onde o samba se manifesta, como ele se manifesta, como ele evoluiu e como ele se deslocou para as distintas regies da cidade. Alm disso, analisaremos algumas aes de demarcao, apropriao, controle e vivncia territorial exercidas pelos sambistas. Tendo em vista o cumprimento do objetivo geral e em funo da amplitude da problemtica desta pesquisa, optamos por empregar inicialmente dois recortes em duas escolas de samba do Grupo Especial do carnaval paulistano, como procedimento metodolgico da pesquisa de campo. O primeiro, refere-se anlise das formas de manifestao do samba no Parque Peruche, bairro pertencente ao distrito de Casa Verde, na Zona Norte. O segundo foi o acompanhamento da fase de preparao do carnaval de 2007, levado a cabo na quadra da Escola de Samba Vai-Vai. A escolha desses recortes se justifica por serem reas tradicionais de samba na cidade de So Paulo. Conforme constatamos no Mapa 1 Escolas de Samba Paulistanas em Atividade Cronologia das Fundaes, o Parque Peruche encerra um importante destaque na presena de escolas de samba. Alm disso, a afinidade com alguns moradores facilitou o contato durante a realizao da pesquisa de campo. No caso da Vai-Vai, a escolha foi feita em virtude de ser uma das mais tradicionais escolas de samba da cidade, localizada em um dos beros do samba paulistano - o bairro do Bexiga; alm de ter um carter cosmopolita, por congregar freqentadores de vrios pontos da cidade. Uma das reflexes importantes presentes nesse trabalho, diz respeito ao fato de que o samba no se trata apenas de um estilo musical que ainda conserva no imaginrio social do brasileiro e do estrangeiro uma das mais importantes formas de representao de brasilidade. preciso reconhecer que o samba ultrapassa o estilo musical e que, algumas relaes estabelecidas pelas camadas sociais populares em seus bairros, geralmente, no so reveladas para toda a sociedade, embora forneam relevantes indcios simblicos onde acontecem. Outro equvoco (presente tanto no discurso dos

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sambistas como de alguns estudiosos do assunto) pode ser percebido no iderio a respeito do carnaval, quando o considera uma festa democrtica nas cidades, compartilhada ao longo da histria de modo homogneo por todos os seus participantes. Ou ainda, quando se considera que o carnaval que acontece nos bairros, em geral associado a bandas, blocos carnavalescos ou escolas de samba que no desfilam no Sambdromo do Anhembi, de menor importncia; embora repleto de espontaneidade, improvisao e simbolismo1. possvel, at mesmo, traar um paralelo com os jogos dos times de futebol de vrzea, que mesmo com pouca infra-estrutura, mobilizam muitas pessoas durante os finais de semana na cidade de So Paulo2. Iniciamos este trabalho salientando que o samba apresenta uma dimenso mais ampla que a do carnaval. Embora a festa carnavalesca tenha sido envolvida pelo espetculo televisivo que tem como palco o Sambdromo, ela nunca saiu dos bairros e hoje costura novas relaes sociais a partir de uma movimentao prpria que se d nos territrios do samba, motivada pelos blocos carnavalescos, rodas e movimentos de samba; alm dos eventos que ocorrem ao longo do ano nas quadras das escolas de samba. Posto isto, vale bem diferenciar o samba do carnaval, cujo elemento central reside exatamente nas festas realizadas no ms de fevereiro ou maro, marcadas pela apropriao de alguns elementos presentes no samba. Igualmente, importante reafirmar que o universo do samba no s circunscreve um estilo musical, mas, tambm, as prticas scio-espaciais e estilos de vida que coexistem com os acontecimentos carnavalescos; o que, como j frisamos, muito influenciou historicamente sua configurao e associao direta com o carnaval. Outra constatao a de que, cada vez mais, os movimentos e rodas de samba dialogam com a comunidade tendo a sociabilidade como fundamento. Nesse entendimento, contrapem-se, na maioria das vezes, aos valores culturais de consumo imediato, vislumbrando-se novas possibilidades de construo de outra realidade. Ao mesmo tempo, reafirmam a hiptese central desta pesquisa, a de que o samba - a partir de1

Na verdade, a dinmica do espetculo est diretamente relacionada aos eventos orientados ao grande pblico. Conforme tratado pela profa. Dra. Bernadete A. Castro Oliveira em Mesa Redonda na UFSCar/Sorocaba, em 29/08/2009, h outros casos de dinmicas que se encerram em manifestaes ritualsticas, capazes de demarcar alguns aspectos culturais pela repetio, pela idia da refundao dos valores sociais e comunitrios envolvidos. 2 interessante notar que, por um curto perodo de tempo, a TV Cultura exibiu o campeonato Desafio ao Galo, disputado por times provenientes dos vrios bairros da cidade. Ainda que fosse um campeonato marcado pela competio, exprimia uma vitalidade social a partir da congregao dos moradores dos diversos bairros, o que tecia um paralelo importante ao futebol de carter espetacular e televisivo.

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redes de sociabilidade dotadas de um sentido coletivo - inspira e aponta para caminhos alternativos aos do cotidiano atual, repleto de contradies e paradoxos. A perspectiva terica a respeito das redes de sociabilidade auxilia na discusso sobre a territorializao dos sambistas e a formao dos territrios do samba:

Rede de movimentos sociais so redes sociais complexas, que transcendem organizaes empiricamente delimitadas, e que conectam, simblica e solidaristicamente, sujeitos individuais e atores coletivos, cujas identidades vo se construindo num processo dialgico de identificaes sociais, ticas, culturais, poltico-ideolgicas e/ou de intercmbios, negociaes, definio de campos de conflito e de resistncia aos adversrios e aos mecanismos de discriminao, dominao ou excluso sistmica (WARREN, 2005, p.35). no lugar que um conjunto de aes passa a acontecer, havendo o questionamento do funcionamento da racionalidade instrumental (HABERMAS, 1975) comandada pelo princpio da eficcia, por intermdio do Estado e da economia, e que se utilizam de mecanismos reguladores controlados pelo poder e pelo dinheiro. Na perspectiva de Habermas, o questionamento do estabelecido torna possvel a instaurao da racionalidade comunicativa, fundamentada na argumentao e na indagao das aes e dos valores, o que tambm permite a negociao coletiva dos fins. Nessa mesma direo, Thompson argumenta que uma cultura tambm um conjunto de diferentes recursos, em que h sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrpole, em uma arena de elementos conflitivos (THOMPSON,1998, p.17). A partir de seu engajamento direto com o samba e comunitariamente, os sambistas apropriam-se do territrio tanto para a vivncia3 quanto para a produo e reproduo de sua vida material. So essas apropriaes do espao geogrfico, que a partir das relaes sociais produzem e podem fortalecer uma identificao que utiliza o territrio como referncia. Assim, os sambistas desenvolvem trocas simblicas com os territrios em que esto inseridos, constituindo parte de seu equipamento sciopsquico, adquirido em seu processo de socializao e de vida (MORAES, 2001, p. 44).

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Estamos considerando a perspectiva de Walter Benjamim (1995) segundo o qual, aqueles acontecimentos captados e amparados pela conscincia que provocam o choque, assumem o carter de vivncia.

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A noo de sambista que aqui considerada abrange o sujeito que impulsiona a evoluo do samba - o que independe da sua cor da pele - com aes e motivaes prprias, guiadas por escolhas e concepes que igualmente lhes so prprias, envolvendo discursos, representaes e formas de conscincia particulares. Neste sentido, a partir das manifestaes dos sambistas que se produzem as territorialidades que aqui sero retratadas. Na perspectiva arraigada em um carter de dominao poltica e dominao do acesso a uma rea geogrfica, Robert Sack (1986) sugere que o territrio se manifesta pela tentativa por um indivduo ou grupo de atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenmenos e relacionamentos, atravs da delimitao e afirmao do controle sobre uma rea geogrfica. Seguindo essa perspectiva, Paulo Gomes (2002) define territorialidade como sendo o conjunto de estratgias, de aes, utilizadas para estabelecer este poder, mant-lo e refor-lo (GOMES, 2002, p. 12), ou ainda como a forma de expresso geogrfica do poder social (ibidem, p. 120). Da o autor no acreditar que a noo de territrio possa se confundir com qualquer dimenso emotiva ou de identidade, pois estas j seriam parte de uma estratgia de tomada de controle:

O conceito de territrio antes de mais nada uma classificao, no simplesmente uma classificao de coisas, mas de coisas dentro de um espao. Visto dessa forma, o territrio definido pelo acesso diferenciado do qual ele o objeto, por uma certa hierarquia social da qual a representao e finalmente por um exerccio do poder do qual produto e um dos principais instrumentos (GOMES, 2002, p. 139). Em contrapartida, alguns autores atentam para a dimenso subjetiva do territrio, a exemplo das noes de territrio cultural ou territrio simblico presentes em Bonnameison e Cambrezy (1996), conforme aponta Haesbaert (2006). Tambm em Guattari (1987), a noo de territrio apresenta-se relacionada com a de espao vivido, sendo sinnimo de apropriao e subjetivao (sabendo que, quando h um sentimento identitrio por uma determinada rea, existe um momento em que a identidade ativada como movimento de reconhecimento e se transforma em algo que objetivado, podendo conformar um movimento de luta ou de reivindicao territorial coletiva).

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A noo de territorialidade que estamos levando em conta aquela que considera a apropriao e o controle dado ao territrio pelos sambistas; a partir de mediaes espaciais de poder, que se estendem desde o concreto ao simblico (HAESBAERT, 2004; SOUZA, 1995). Essa noo muito se desenvolveu pelo contato com os antroplogos, intercambiando-se questes referidas a simbolismos, heranas e gneros de vida. As territorialidades so, assim, as aes estratgicas de demarcao, de prtica do poder, controle e vivncia territorial exercidas pelos sambistas, onde por meio deste controle possvel a imposio das regras de acesso, de circulao e a normatizao de usos, de atitudes e comportamentos (GOMES, 2002, p. 12) sobre um pedao do solo. Buscando interpretar as representaes e identificaes presentes no territrio e consider-lo como uma dimenso da experincia humana dos lugares, passamos a estimar a apropriao realizada cotidianamente pelos grupos que nele habitam e lhe conferem dimenses no apenas simblicas, mas tambm econmicas e polticas. Ao tratar das territorialidades no mundo do samba consideramos que a apropriao pode ser construda a partir de mltiplos veculos, imaginrio, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que nenhum deles signifique sempre o exerccio efetivo de um controle sobre os objetos e as prticas sociais que a ocorrem (GOMES, 2002, p. 13). Esta foi a sada encontrada para tratarmos das redes de sociabilidade presentes no mundo do samba, o que permitiu no ficarmos presos clssica concepo de territrio sob o aspecto do poder territorial. No optamos pela noo de espacialidade pelo seu carter de vagueza e obscurantismo, sendo freqentemente usada sem muito rigor terico. Alm disso, entendemos que a noo de territorialidade tem um carter mais humano-concreto; o que, portanto, revelou-se interessante para o presente estudo. Preferimos no utilizar a termo espacialidade por acreditarmos que, embora seja muito utilizado principalmente pelos pesquisadores em geografia, consiste em uma definio ainda vaga e genrica4. De certo modo, os conceitos de espacialidade e de territorialidade se superpem, no sendo possvel estabelecer limites to rgidos entre eles. Vale lembrar que o territrio4

A partir da considerao de que o espao geogrfico configurado pela vida e pelas aes, podemos constatar que a espacialidade abrange esta vida fluda nele presente. A espacialidade essa essncia da mobilidade do territrio, que dinmica e mvel. Interessantes reflexes sobre esta temtica esto presentes em MASSEY, Doreen. Pelo espao: uma nova poltica da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

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guarda sua espacialidade, na medida em que tambm contm aes. Entretanto, ao optarmos pelo conceito de territorialidade, acreditamos ganhar maior objetividade no direcionamento das vrias funes que o territrio pode adquirir em momentos distintos, modificando-se em sua funo social. Diante disto, o conhecimento dos territrios do samba abriu-se possibilidade de se entender as relaes com outros lugares, ampliando a discusso para alm do cultural e recuperando outras dimenses ligadas ao cotidiano. A partir do cotidiano, os sambistas definem o seu territrio e fazem uso daquilo que antecede a prpria noo de territrio - o espao geogrfico. So estas apropriaes do espao geogrfico que o transforma em territrios do samba, apropriaes assumidas como mediao de representaes construdas a partir de um imaginrio ao samba relacionado, onde os prprios bairros passam a fomentar representaes da vida urbana. No somente eles como tambm as quadras e barraces5 das escolas de samba, os viadutos apropriados para ensaios, os fundos de quintal, as lajes de casas simples, os centros culturais e praas pblicas, os bares, as feiras e ruas onde as rodas de samba acontecem. Mais do que simples edificaes ou reas situadas em algum ponto da cidade, estes lugares 6 adquirem uma diversidade de significados e valores subjetivamente projetados e territorializados. Em uma dinmica cotidiana, o espao geogrfico transformado em territrio pelo uso social, econmico e cultural que lhe conferido pelos sambistas a partir das apropriaes cotidianas desse espao. Para Agnes Heller (1972), o cotidiano revelador das diversas atividades exercidas sobre o territrio, e nele que se desenvolvem diferentes prticas sociais em suas respectivas sociabilidades atravs da histria. A vida cotidiana, segundo esta autora, no pode se dissociar do cotidiano da histria da sociedade, pois os fatos histricos nascem no cotidiano e remetem idia de repetio. Contudo, esse territrio no s de reproduo, mas tambm de produo de sentidos, que so acompanhados de espontaneidade. Este posicionamento j implica considerar a espontaneidade como uma das principais caractersticas do cotidiano, no querendo

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Os barraces so os locais onde tanto as escolas de samba quanto os blocos carnavalescos utilizam para a confeco de suas fantasias e adereos, alm da construo dos carros alegricos. Nestes locais, o carnavalesco e o chefe de barraco orientam as costureiras, os serralheiros, os decoradores e os carpinteiros no desenvolvimento das etapas de trabalho voltadas ao desfile carnavalesco. 6 Neste trabalho, lugar tem o sentido posto por Rogrio Haesbaert, ao afirmar que alm do lugar envolver caractersticas mais subjetivas, na relao dos homens com seu espao, em geral implica tambm processos de identificao e relaes de identidade (HAESBAERT, 2006, p. 138).

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dizer com isto que todas as atividades do cotidiano esto no mesmo nvel, mas que existe uma tendncia marcante do cotidiano para a espontaneidade (HELLER, 1972, p. 18). Concordamos com autora ao tratar da espontaneidade como aquilo que criativo e manifesta o potencial de negociao e circulao por realidades e situaes distintas. Neste sentido, certas prticas sociais fundamentadas no cotidiano induzem ou favorecem a configurao de territrios do samba na cidade, configurao que depende de mltiplas variveis, como o contexto histrico de cada localidade, a doao do terreno pelo Poder Pblico, a existncia de terrenos mais baratos, a maior ou menor acessibilidade, dentre outros fatores que sero aqui tratados. Diante desse quadro, uma questo principal se apresenta: Quais so as territorialidades geradas pelo samba na cidade de So Paulo? Dividido em captulos, este trabalho apresenta algumas reflexes fornecidas pelos diversos conjuntos documentais consultados e pela pesquisa de campo realizada entre 10/06/2006 (incio da pesquisa) at o momento de sua finalizao, no ano de 2009. No primeiro captulo, procurou -se concentrar a investigao na questo do samba na constituio do processo de urbanizao da cidade de So Paulo. Complementarmente, outras questes foram surgindo: o tema da economia do samba, o das negociaes polticas presentes no mundo do samba7, a questo da propriedade dos terrenos onde esto localizadas as quadras das escolas de samba, o financiamento dos desfiles carnavalescos, os empregos gerados e o anncio da construo da Fbrica dos Sonhos8. interessante notar que as diversas atividades econmicas direcionadas ao desfile carnavalesco so amparadas principalmente pelo trabalho temporrio, que abrange uma srie de atividades, a exemplo da confeco das fantasias e camisetas por costureiras terceirizadas, e da montagem dos carros alegricos realizada por profissionais especializados, muitos deles provenientes de Parintins (AM). Assim, pode-se afirmar que7

A designao Mundo do Samba visa englobar as atividades que tm o samba como o elemento central, dentre elas aquelas que acontecem nas escolas de samba, rodas de samba, bares, casas noturnas especializadas, projetos e movimentos de samba. Em virtude da amplitude de possibilidades de pesquisa, focamos a anlise nas escolas de samba, rodas e movimentos de samba. No houve um apego aos eventos de gafieira, samba-rock e naqueles que ocorrem em bares sofisticados ou botecos; o que por si s renderia outro trabalho. 8 Projeto anunciado em 2008 pela Prefeitura Municipal de So Paulo, que disponibilizar um local para que as escolas de samba do Grupo Especial confeccionem seus carros alegricos, fantasias e adereos. Esta questo ser retomada adiante.

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estas atividades mobilizam um mercado especfico localizado principalmente na Rua 25 de Maro (centro) e voltado ao comrcio de tecidos, plumas e adereos. Diante do que at aqui foi exposto, constata-se que parece haver uma tendncia de direcionamento do carnaval aos meios de comunicao, acompanhada pela invaso de uma lgica de gesto empresarial nas escolas de samba que desfilam nos dias destinados ao Grupo Especial. No modelo de desfile miditico prevalecente, as escolas de samba tm o fim manifesto de competirem no carnaval, ainda que dentro delas exista a possibilidade de acontecerem outras manifestaes culturais e de convvio social que nem sempre esto vinculadas a esta competio. Principalmente devido alta lucratividade obtida, a postura tradicional dos meios de comunicao e do Poder Pblico a de privilegiar o carnaval transmitido pela televiso, desconsiderando, na maioria das vezes, o conjunto das relaes sociais estabelecidas fora do mbito dos eventos vinculados ao desfile televisivo. Tal como expresso no projeto que deu origem a esta pesquisa, o samba funciona como uma das prticas materiais e simblicas que contribuem para o bem-estar na cidade de So Paulo, embora a lgica da concentrao territorial da produo cultural muitas vezes esteja atrelada a fatores econmicos. Neste sentido, existe um mundo do samba na Paulicia que tem por base a relao entre duas lgicas complementares: a da cidade que transforma parte do samba em produto para o consumo (com destaque para o carnaval televisionado) e a do lugar, tradicional ponto de cultivo e fruio de vnculos de pertencimento e sociabilidade comunitria. Dessa maneira, o carnaval, evento pblico e privado realizado, praticado e estimado pelos sambistas, revela-se no como o nico instante privilegiado para o aprofundamento das reflexes. Outros eventos que se do na cidade durante o ano todo so de grande importncia, embora desconsiderados por parte dos pesquisadores que se debruam sobre o tema. Estes, ao visualizarem o samba em sua associao nica com o instante do carnaval, o reduz lgica da reproduo de racionalidades programadas e mercantilizadas vigorantes no carnaval miditico. V-se, como j exposto, que o carnaval, festa considerada a mais profana de todas, apropriou-se de elementos do samba, que se tornou legitimado e inserido em uma dinmica espetacular. Assim sendo, o samba passou a acontecer nos sambdromos,

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cooptado por uma indstria que trocou a pele de animal dos tambores pelas peles artificiais produzidas em quantidades considerveis. Nota-se que no territrio, atuam fios condutores e mediadores do dilogo entre a tradio e a modernidade, tradio que dinmica e est sendo cotidianamente reinventada, mas no necessariamente arruinada pela transformao das manifestaes culturais em espetculo, como se houvesse uma perda inexorvel da tradio diante dos processos de transformao cultural. Vale lembrar que existem relaes de troca que no so comerciais, ainda que todo comrcio seja uma troca que se utiliza da mercadoria. Vale lembrar tambm que, mesmo com o processo de globalizao, nem tudo se torna global, na medida em que os localismos e regionalismos so reforados em uma dinmica cultural que processual. Um fato que bem ilustra esta dinmica de trocas e de negociaes entre o tradicional e o moderno acontece na abertura do carnaval paulistano, quando os Afoxs Filhos da Coroa de Dad e Iy Ominib introduzem a primeira noite dos desfiles no Sambdromo do Anhembi. Os afoxs so apadrinhados e aconselhados por pais e mes de santo integrantes de terreiros de candombl. No carnaval de 2009, o Afox Iya Ominib homenageou Oxssi, o orix das matas, que regia o ano. Segundo declarao do presidente de um dos afoxs ao Jornal O Estado de So Paulo de 20/02/09, Seo Carnaval, a funo do afox a de abrir os caminhos da avenida do samba para que tudo corra bem no carnaval. Na mesma matria, o mesmo presidente mencionou o fato de que a So Paulo Turismo - SPTuris, rgo vinculado Prefeitura da Cidade de So Paulo, teria supostamente nos ltimos anos reduzido as verbas a eles destinadas. H ainda, na sexta-feira de carnaval, o desfile do grupo de Afox Il Ob de Mim (mulheres que tocam para o rei, Xang), cuja bateria composta e regida exclusivamente por mulheres. O corpo de dana misto, formado por homens e mulheres, e, desenvolvem uma coreografia pautada pelo xir9 do candombl, com movimentos que homenageiam todos os Orixs, de Exu a Oxal. O desfile de 2009 trouxe como tema: Raquel Trindade: a Cambinda, importante cone da causa e identidade negra paulista. Todos os anos, a concentrao acontece no Viaduto Major9

Xir: Nome da estrutura que organiza a entrada das cantigas e danas ao som do ritmo dedicado a cada orix (AMARAL, 2002, p. 51).

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Quedinho e o cortejo percorre a Rua Xavier de Toledo, contorna o Teatro Municipal e faz seu encerramento no Largo do Paissandu, em frente Igreja Nossa Senhora dos Rosrios dos Homens Pretos, fundada em 171110. Nesse ano, as fantasias foram baseadas na histria de Raquel Trindade e em seus orixs de cabea, Ians e Obalua, demonstrando, assim, que as expresses artsticas ligadas ao samba a aos afoxs no se limitam ao Sambdromo ou a territrios isolados, uma vez que se realizam no espao urbano. Tambm possvel perceber a coexistncia entre o tradicional e o moderno, pois ainda que o formato da apresentao tenha vindo dos barraces do Candombl, a homenageada contempornea e viva, tendo inclusive participado do desfile. Outro direcionamento dado a esse trabalho procurou observar os dados relativos histria do samba na cidade de So Paulo, desde o final do sculo XIX at os dias atuais, focalizando principalmente as informaes relativas expanso das escolas de samba e dos sambistas em direo s vrias regies da cidade. Esse recorte temporal foi estabelecido em virtude deste ter sido o perodo em que o samba se consolidou na cidade de So Paulo, a partir da matriz rural proveniente do interior do estado, que associada aos primeiros ranchos e cordes carnavalescos j no contexto urbano paulistano, possibilitou a organizao ulterior das escolas de samba. Nesse recorte de tempo e de espao acima referidos, procurou-se investigar que tipo de evidncias e quais cruzamentos seriam necessrios para a obteno dos dados relativos ao equacionamento de nossa problemtica de estudo. Para compreender as territorialidades do samba do ponto de vista das rupturas e das continuidades que se deram na histria paulistana, optamos por acionar o recurso da periodizao, que constitui uma das variveis-chave fundamentais no estudo das sociedades contemporneas, sendo tambm uma importante ferramenta terica para os estudos territoriais. Conforme pondera Milton Santos (1979, 1985), a periodizao possibilita integrar a dimenso temporal nas anlises geogrficas. Assim sendo, pudemos entender o samba paulistano a partir de seu contexto histrico, pois cada perodo pode ser considerado como um segmento homogneo de tempo histrico, em que as variveis

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Vale mencionar que essa observao me foi feita por Carla Rodrigues, integrante do grupo Afox Il Ob de Mim. Para maiores detalhes, acessar: http://www.iluobademin.com.br/

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se mantm em equilbrio no interior de uma mesma combinao (SANTOS, 1979, p. 26). Com esse pressuposto de mtodo, refletimos sobre os batuques rurais e festivos, alm dos rituais religiosos que acontecem desde a chegada dos imigrantes africanos nas senzalas e nos terreiros do interior paulista11. Desta maneira, procuramos entender as transformaes que foram se dando nos elementos presentes no samba, desde os batuques, at a conformao dos ranchos, cordes e escolas de samba em um contexto urbano. Ao especificar a complexidade social, histrica e espacial presente nos fatos ao samba relacionados, procuramos reconhecer as mltiplas interpretaes possveis a partir da proposta de periodizao do samba paulistano (Quadro 1). Vale lembrar que, como toda abordagem sinttica, essa periodizao implica um grau elevado de simplificao e deixa dezenas de acontecimentos que fazem parte da histria do samba paulistano. 1 Perodo: 1914 a 1969 - Batuques rurais, Batuques festivos, Batuques religiosos, Cordes Carnavalescos, Primeiras gravaes em discos, Presena do samba nas rdios, Apropriao culta e simblica do samba pelo Estado, Incio da disperso dos sambistas dos bairros centrais para os marginais 2 Perodo: 1969 at 1991 - Oficializao do carnaval paulistano, Samba como produto de massa (pagode), Exportao do modelo carioca de carnaval, Intensificao da fundao de escolas de samba, Intensificao da disperso dos sambistas para as diferentes regies da Paulicia 3 Perodo: 1991 at hoje Inaugurao do Sambdromo do Anhembi, Exacerbao do carnaval como espetculo televisivo, Samba como produto de massa (samba de raiz, samba-rock), Modelo de escolas de samba empresa, Intensificao dos interesses comerciais pblicos e privados no carnaval, Intensificao das aes sociais nas escolas de samba Quadro 1: Periodizao do samba paulistano Fonte: Concepo e elaborao do autor

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J no sculo XVII foram escritos relatos dos batuques rurais, festivos e religiosos realizados pelos negros, a exemplo dos publicados pelo folclorista Mrio Fagner da Cunha (CUNHA, 1937).

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Se tomarmos como ponto de partida a periodizao, podemos acrescentar nossa reflexo a correlao entre a durao e o fluxo do tempo e a extenso e ordenao do espao geogrfico. Aqui se trabalha com a noo de espao geogrfico desenvolvida por Milton Santos, em que este entendido como um conjunto indissocivel, solidrio e contraditrio de objetos e de aes, configurados a partir de uma forma-contedo que envolve tanto a materialidade quanto os sistemas de vida e de aes (SANTOS, 1996). Complementarmente, consideramos o espao geogrfico como o terreno onde as prticas sociais se exercem, a condio necessria para que elas existam e o quadro que as delimita e lhes d sentido (GOMES, 2002, pg. 172). Significativamente, a partir da dcada de 1970, o tempo do samba passou a estar diretamente associado com o tempo do espetculo, o tempo do mundo, de modo a criar uma dependncia da cultura do samba com relao ao calendrio que se imps destacadamente sobre as grandes escolas de samba12. Nesse sentido, a periodizao nos possibilita perceber as continuidades e rupturas que conduziram a um novo perodo histrico, ou, as interaes dialticas ocorridas entre o samba e o carnaval no contexto espao-temporal brasileiro. Admitindo-se que toda manifestao cultural dinmica, cabe considerar que a questo do tradicional x moderno ou do autntico x inautntico, transforma-se em uma falsa questo quando considerada ao extremo, na medida em que os distintos grupos sociais tm diferentes interesses e vises de mundo, posto que atuam constantemente no contexto do chamado dinamismo cultural13. Buscamos fugir de uma denncia vaga acerca da destruio das formas culturais tradicionais ou da procura por uma justia social capaz de justificar a relevncia do trabalho. Por esses motivos, a aceitao desta viso dicotmica no estudo das manifestaes culturais implica considerar o Modo de Produo Capitalista como sendo12

Aqui so classificadas como grandes escolas as pertencentes ao Grupo Especial e ao Grupo de Acesso. Em 2009 eram do Grupo Especial: Acadmicos do Tucuruvi, guia de Ouro, Gavies da Fiel, Imperador do Ipiranga, Imprio da Casa Verde, Leandro de Itaquera, Mancha Verde, Mocidade Alegre, Prola Negra, Rosas de Ouro, Tom Maior, Unidos de Vila Maria, Vai-Vai e X9 Paulistana. No mesmo ano, pertenciam ao Grupo de Acesso: Barroca Zona Sul, Camisa Verde e Branco, Drages da Real, Flor de Liz, Morro da Casa Verde, Nen da Vila Matilde, Uirapuru da Mooca e Unidos do Peruche. 13 Considerao crtica feita pelo prof. Dr. Antnio Carlos Robert Moraes na ocasio do Exame de Qualificao. Vale dizer que, por concordamos com essa assertiva, buscamos ao longo do texto seguir este posicionamento que apresentar esta tentativa de escrita no dual, ainda que dificultada pela tendncia dualidade que acompanha o ato de escrever - talvez uma herana constituda a partir dos sistemas filosficos gregos.

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o grande responsvel pela destruio da cultura autntica, e que aps a sua ao, passaria a ser inautntica, a estar desprovida de tradio ou diluda. Assim, para que as tradies culturais permaneam ativas e atuantes, elas tm que se alterar continuamente. Em outros termos, as tradies culturais trazem consigo uma maleabilidade capaz de permitir o acompanhamento do processo de modernizao, ao mesmo tempo em que se moldam a fim de se manterem enquanto tradio; alimentando-se daquilo que muitas vezes as destroem. Nesse ponto da argumentao, concordamos com Canclini (1997), ao refletir sobre a questo da autenticidade como uma questo no temporal, visto que as culturas so hbridas. Sendo assim, ainda que o samba acontea espontaneamente, em alguns casos apropriado pelas dinmicas mercantis, terminando-se institucionalizado ou espetacularizado. Logo, pode-se considerar que os prprios sambistas esto imersos em algo que nem eles controlam totalmente, ainda que atuem por meio de aes espontneas e/ou negociadas. Similarmente, Homi Bhabha (2007) desenvolve sua noo de hibridismo a partir dos trabalhos textuais acerca do discurso colonial. Para Bhabha, o hibridismo sempre consistiu uma ameaa autoridade cultural e colonial, na medida em que continuamente subverteu o conceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante atravs da ambivalncia criada pela negao e pela imprevisibilidade, dadas pelo confronto poltico entre posies com poderes desiguais; que realizavam certa negociao cultural. Afirma o autor que, pela tica do hibridismo, torna-se possvel vislumbrar as histrias nacionais, antinacionalistas, do povo (BHABHA, 2007, p. 69); evitando-se a poltica da polaridade. Diante disso, estamos inclinados a resistir s contraposies dicotmicas capazes de reduzir a claridade da anlise e das observaes, e de contribuir para a perda da potncia desta pesquisa. Das contraposies encontradas, catalogamos algumas comumente presentes nos trabalhos acadmicos: pblico x privado, mercado x nomercado, cultura de massas x cultura de resistncia, passado x presente, genuno x nogenuno, Indstria Cultural x Indstria Artesanal, comunidade x sociedade, mito x histria. Este posicionamento j implica tratar a dinmica cultural como algo que no totalmente autntico ou puro, pois ao mesmo tempo, a cultura de massa e a cultura

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popular colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se subtraem num jogo dialtico sem fim (SANTOS, 2002, p. 327). Nesta direo, Milton Santos alerta que: La Geografa se ha hecho prisionera de dualidades pertinaces y sagradas, causa, tambin, de muchas de las ambigedades de las ciencias sociales. Una primera dualidad tiene que ver con su objeto. Es la naturaleza, es la sociedad? Son los lugares o los hombres? A costa de querer sumarlos y no mezclarlos, la ambigedad se reafirma y la dualidad triunfa, acompaada por otras fuentes de incertidumbre epistemolgica, oponiendo el individualismo metodolgico al materialismo metodolgico, la deduccin a la induccin, el realismo al idealismo. Es en esa misma fuente que se alimentan otros conflictos engaosos, como los que oponen lo global y lo local, lo sincrnico y lo asincrnico, la estructura y la accin, lo material y lo inmaterial, lo real y lo ideolgico (SANTOS, 1996, p. 03)14. Porm, apesar de quase sempre estarmos prisioneiros das dualidades, pode-se dizer que nos ltimos anos vem se consolidando na geografia uma postura resistente a elas. Tal posicionamento se alimenta em muito da dificuldade atual em se realizar uma reflexo cientfica pela aluso aos rtulos de posicionamentos dualistas e incompatveis com a compreenso da realidade. Ao se renegar uma postura dualista, a melancolia emerge como lembrana nostlgica diante da irretroatividade das transformaes culturais. O presente trabalho demonstrar algumas formas de sociabilidade que poderamos classificar como no-produtivistas ou pr-produtivistas, coexistindo com formas produtivistas e evidenciando o fato de que a cultura algo em movimento, algo dinmico. A prpria uniformidade e hegemonia cultural costumam criar, em certos momentos, novas diferenas; assimilando aspectos culturais em prol da lgica lucrativa. Nos posicionamentos que aqui sero expressos no inteno impor maneiras de pensar, nem persuadir ou convencer o leitor acerca de nossos argumentos formulados a partir da realidade estudada, ainda que em alguns momentos possamos parecer melanclicos ou estimuladores de alguns mitos15 que cercam a histria do samba e do

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Trecho do pronunciamento de Milton Santos na ocasio em que recebeu o ttulo de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Barcelona, no ano de 1996. 15 Sobre esse assunto ver: BARTHES, Roland. Mitologias. So Paulo: Difel, 1982.

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carnaval paulistano; sobretudo quando fazemos sobressair as opinies parciais de nossos entrevistados (que procuramos relativizar e dialogar textualmente). Nesse intento, buscamos articular o samba e a teoria geogrfica com o conjunto identificvel das mltiplas influncias perceptveis (polticas, econmicas e culturais), alm de dialogar com autores de linhas tericas distintas, estimando o pluralismo metodolgico como um componente necessrio no desenvolvimento do trabalho. Embora no tenha seguido uma nica linha terica, procurei manter um encaminhamento textual a partir da vontade de contribuir com o conhecimento geogrfico acerca da formao territorial paulistana em sua relao com o samba. Por outro lado, a diviso dos captulos nas dimenses cultural, poltica e econmica do mundo do samba no significa a desconsiderao da inter-relao entre elas; mas trata-se de um recurso de mtodo acionado para a melhor compreenso da problemtica posta. Em seu processo de constituio, pensamos ser interessante clarear concepes, bem como os fundamentos de mtodo que as sustentam. Temos claro que a aceitao de que o mtodo o caminho que se referencia na teoria e na empiria (indissociveis), aventa que o explicitemos. Vale mencionar, que optar por essa explicitao sistemtica dos fundamentos de mtodo, possibilitou identificar quo numerosas e ricas so as relaes que podem ser estabelecidas. A grande vantagem em explicitar a teoria que tambm explicitamos o mtodo, buscando assim torn-lo relevante em face da assimilao crtica das proposies que se adaptam complexidade de nosso objeto de estudo. Nesse sentido, acreditamos que a crtica deva sempre vir acompanhada da anlise, de modo a permear e completar a teoria. O estudo que ora se introduz busca compreender o territrio a partir de seu uso, entendendo essa operao como uma discusso contextualizada principalmente no momento presente e baseada no exerccio do recorte metodolgico da cultura. O uso do territrio pelos sambistas em geral, d-se de modo econmico, poltico ou cultural, a partir do uso que os grupos sociais fazem dele. Cabe assinalar que um mtodo de interpretao da realidade capaz de abarcar vrias possibilidades, ainda mais quando o objeto de anlise concebido a partir do ordenamento do temrio e luz dos preceitos do prprio mtodo. No caso do estudo que ora se apresenta, vale mencionar que fomos surpreendidos ao longo do processo por seu desenvolvimento, tal qual num romance, onde alguns personagens surgem

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inesperadamente como atores principais (neste caso alguns conceitos e categorias de anlise), permanecendo ao mesmo tempo em que outros se tornam coadjuvantes. Essa interessante analogia foi feita por Milton Santos, em um dos seus escritos mais metafricos16: Nossa secreta ambio, a exemplo de Bruno Latour, no seu livro Aramis ou lamour des techniques (1992), que esses conceitos, noes e instrumentos de anlise apaream como verdadeiros atores de um romance, vistos em sua prpria histria conjunta. No ser a cincia, tal como props Neil Postman (1992, p.154) uma forma de contar histrias ? Nesse processo, levados pelo investigador, alguns atores tomam a frente cena, enquanto outros assumem posies secundrias ou so jogados para fora. O mtodo em cincias sociais acaba por ser a produo de um dispositivo artificial onde os atores so o que Schutz (1945, 1987, p. 157-158) chama de marionetes ou homnculos. Quem afinal lhes d vida o autor, da esse nome de homnculos, e sua presena no enredo se subordina a verdadeiras modelizaes qualitativas, da porque so marionetes. Mas o texto deve prever a possibilidade de tais bonecos surpreenderem os ventrloquos e alcanarem alguma vida, produzindo uma histria inesperada: assim que fica assegurada a conformidade com a histria concreta (SANTOS, 2002, p.22). Portanto, nessa busca das relaes entre o samba e o territrio, a noo do campo disciplinar se imps, aos olhos dos conceitos e das categorias geogrficas. O tema da pesquisa acabou ficando necessariamente circunscrito a um recorte histrico, que por sucessivos atos de esforo adquiriram o formato da tese. Seguindo tal meta, buscamos internalizar o que j foi escrito sobre o samba na cidade de So Paulo. No processo de constituio dessa tese, o conjunto da obra de Milton Santos ganhou importncia na medida em que nela possvel deslumbrar novas interaes possveis num futuro imediato, discernveis atravs de relaes fundamentadas na solidariedade, atuante por meio de outras formas de racionalidade:

O que muitos consideram, adjetivamente, como irracionalidade e, dialeticamente, como contra-racionalidade, constitui, na verdade, e substancialmente, outras formas de racionalidade,

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Vale mencionar que a observao acerca do carter metafrico desta passagem me foi feita pelo amigo Samarone Marinho.

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racionalidades paralelas, divergentes e convergentes ao mesmo tempo (SANTOS, 2002, p. 309). Torna-se importante resgatar a justificativa deste estudo apresentada no projeto de pesquisa, que colocava a possibilidade de que um olhar geogrfico seria capaz de desvelar a sociabilidade enquanto fundamento constitutivo das relaes entre os sambistas. A justificativa tencionava contribuir para o aprofundamento de um tema ainda pouco explorado pela geografia, que em geral se preocupa em analisar o imaginrio social a partir das letras das msicas ou em tratar da difuso dos estilos musicais, ao invs de se indagar a respeito da configurao do entorno pelas atividades culturais. Essa elaborao aparece transcrita abaixo, em sua verso original:

Os trabalhos geogrficos que tratam de temas musicais tm se inclinado ao mapeamento da disseminao dos estilos musicais, ou anlise do imaginrio geogrfico presente nas letras das msicas, adotando deliberadamente um sentido restrito de geografia e oferecendo um ngulo sinttico do campo geogrfico, ao invs de questionar at que ponto um fato geogrfico capaz de configurar seu entorno (traduo nossa)17. Da a tentativa de articular a teoria com a prtica de campo, alcanando-se uma explicao crtica do mundo do samba na cidade de So Paulo. Nesse entendimento, temos claro o intuito de legitimar coerentemente a proposta metodolgica j exposta e aprofundada nos prximos pargrafos. O quadro temporal utilizado por este trabalho procura explicar os aspectos do presente no somente o considerando como produto do passado, mas tambm, inserindoo em sua relao com o futuro, com o sincrnico. Nessa viso, o samba constitui um dado emprico do processo histrico, que pode ser reconhecido em um comportamento cultural determinado. Relutantemente, em distintos locais e situaes, ainda que o samba esteja sendo constantemente criado e recriado, mantm-se vivo e atuante na conscincia de determinados agrupamentos sociais. Cabe frisar que o carter desta viso17

Geographic work on music has until very recently tended to restrict itself to mapping the diffusion of musical styles, or analyzing geographical imagery in lyrics, working with a deliberately restricted sense of geography, offering the geographers angle on well-trodden ground rather than asking how a geographical approach might refigure that round (LEYSHON, 1998, p. 4).

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evidente naqueles sambistas que apresentam menor poder aquisitivo e se encontram mais ligados ao lugar. Aqui, trabalha-se com uma viso totalizadora que busca relacionar os processos e articular os fenmenos na densa e complexa teia do movimento histrico das sociedades. Levando-se em conta esta viso relacional, ainda que mundializados, os lugares no devem ser tratados como a soma das partes que compe a totalidade, mas sim como possuidores de um carter multi-escalar, conforme nos orienta Milton Santos:

No lugar, o universal se empiricza tornando-se um particular, porm sem negar sua origem universal, nem seu destino universal (traduo nossa)18. Para Milton Santos, a busca do todo - enquanto essncia - a partir dos variados percursos de investigao emprica, comprova que o mundo est em todos os lugares e que temos que trabalhar com todas as escalas. Em outros termos, defende o autor a necessidade de se trabalhar ininterruptamente com essa relao dialtica e multiescalar, utilizando-se de uma viso totalizadora como preceito de mtodo. Diante disto, pode-se dizer que a aceitao da multiplicidade das escalas (global, regional e local) condiciona o resultado do conjunto dos processos investigados. Tal equacionamento de central importncia, pois no lugar que encontramos as possibilidades de realizao do mundo, o que faz dos lugares o prprio mundo. Assim, o lugar emerge como um conjunto estruturado de objetos e de aes internamente relacionados, capazes de potencializar a totalidade-mundo a partir do cotidiano. Desse modo, Milton Santos argumenta: impe-se, ao mesmo tempo, a necessidade de, revisitando o lugar no mundo atual, encontrar os seus novos significados. Uma possibilidade que nos dada atravs da considerao do cotidiano (SANTOS, 2002, p. 315). Segundo esse mesmo autor, ao se buscar apreender a integridade dos processos sociais em manifestaes empricas reveladoras de identidade, no se pode deixar de lado a escala global. Isto , ao se explicar a autonomia da existncia fenomnica de um lugar18

En el lugar, lo universal se empiriza hacindose un particular, pero sin negar su origen universal, ni su destino universal (SANTOS, 1996, p.05).

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unicamente pelo prprio lugar, mascara-se os fatores explicativos que existem, na medida em que a noo de totalidade permite um tratamento objetivo da realidade e de sua universalidade emprica. O estudo do lugar e de seus aspectos particulares da vida social pode, a partir de uma apreenso totalizante, captar determinaes bsicas da formao social em que se insere. Por outro lado, o potencial de estudo do lugar se encontra em seu dinamismo prprio e autntico, podendo atribuir novos sentidos, verdadeiros e enriquecedores existncia de cada indivduo. A partir da noo de formao scio-espacial de Milton Santos (1990), buscamos pensar as especificidades da histria de So Paulo, estabelecendo as relaes entre os seus diversos agentes e fatores que produzem e produziram a metrpole. no lugar que essas relaes se concretizam, por meio de usos diferenciados do territrio em determinado momento histrico. tambm na trama histrica que se podem entender os mecanismos da produo social do territrio, que condicionam o uso dos lugares a cada momento, abrindo, possibilidades analticas para uma dimenso geogrfica na interpretao da histria humana (MORAES, 2001, p. 34). Conforme expresso anteriormente, optamos por compreender o territrio a partir de seu uso, pois a partir de seu uso possvel recortar metodologicamente a cultura. De fato, o uso do territrio pelas escolas de samba, movimentos de samba, rodas de samba e sambistas em geral d-se de modo econmico, poltico ou cultural, a partir do uso que os grupos sociais fazem dele. Esse tratamento do samba como um processo social articulado por estas trs dimenses permite recortar suas manifestaes concretas, fornecendo elementos para a particularizao do processo universal de valorizao do espao (MORAES, 2001, p. 39). Igualmente, esta apropriao dos territrios do samba com objetividade e intencionalidade, intensifica a importncia social destes lugares, que so em grande parte reconhecidos por seus freqentadores. esta caracterstica de uso coletivo que torna esses lugares especiais, pois satisfazem muitas necessidades individuais de convivncia social. Por outro lado, eles so um campo de foras, uma teia ou uma rede de relaes sociais que, a par de sua complexidade interna, definem, ao mesmo tempo, um limite,

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uma alteridade, a diferena entre ns: o grupo, os membros da coletividade ou comunidade, os insiders e os outros: os de fora, os estranhos, os outsiders (SOUZA, 1995, p. 89). Tal entendimento, que ser retomado na seqncia dos captulos, aparece expresso na seguinte formulao de Rogrio Haesbaert:

Como uma espcie de cidado global intermedirio, tenho alguma liberdade para traar meus prprios territrios no interior da cidade, mas absolutamente no sou livre para constru-los em qualquer lugar minha classe social, meu gnero, minha lngua, meu sotaque, minhas roupas - cada uma destas caractersticas joga um papel diferente na construo de minha territorialidade urbana (HAESBAERT, 2004, p. 351).

Paulo Gomes lembra que a categoria comunidade pode parecer primeira vista simptica, por conferir um estatuto de grupo organizado e harmnico `as pessoas que a integram. Entretanto, a comunidade pode agir como um reforo da excluso na medida em que diferencia estas comunidades de uma sociedade urbana global que forma a cidade. (GOMES, 2002, p. 15). Considera-se, desta forma, o samba como mais do que um gnero musical: ele tambm um modo de pensar, de sentir, um gnero ou estilo de vida que permite a construo de territorializaes particulares na cidade. Para Bourdieu, o estilo de vida se refere ao gosto, a apropriao material e simblica de uma determinada categoria de objetos ou prticas classificadas e classificadoras (BOURDIEU, 1983, p. 83). A vivncia no mundo do samba capaz de conceber condutas e convivncias distintas, criando um gosto particular dos sambistas, que por sua vez proporciona a constituio da identidade do grupo que os diferencia dos demais grupos sociais:

A identidade antes de mais nada um sentimento de pertencimento, uma sensao de natureza compartilhada, de unidade plural, que possibilita e d forma e consistncia prpria existncia. O coletivo tem absoluta preeminncia sobre o indivduo, e a construo de uma identidade se faz dentro do coletivo por contraste com o outro (GOMES, 2002, p. 60).

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Alm disso, a vivncia na cidade permite trocas simblicas (BOURDIEU, 1987) com outras manifestaes culturais ao samba relacionadas, destacadamente o Candombl, a Capoeira, os Afoxs, o Funk e o Rap. Vale lembrar que antes de Bourdieu, Vidal de La Blache j havia trabalhado com o conceito de gnero de vida, relacionando-o ao conjunto de tcnicas e costumes construdos e transmitidos socialmente, permanentemente sujeitos s alteraes ocasionadas por modificaes do prprio meio ou pelo contato com outros gneros de vida (VIDAL DE LA BLACHE, 1954). , todavia, no entendimento da organizao funcional e social dos territrios do samba, geradores de arranjos territoriais e sociabilidades singulares, que detivemos nossos esforos. Desse modo, o conjunto de micro-espaos simblicos (Bourdieu, 1983) estabelecidos pelos sambistas e refletidos na apropriao dos locais pblicos, no comportamento alegre, desviante e subversivo, na linguagem, na musicalidade, na ritmicidade e na corporeidade; resulta na legitimao do gnero de vida praticado pelos sambistas diante de outros grupos e papis sociais assumidos no cotidiano. Assim, surgem personagens que interagem entre si na construo tanto da cultura, em um trnsito processual contnuo que se d no territrio. Aqui cabe salientar que toda materialidade e imaterialidade cultural construda pelos grupos sociais se inscrevem em um conjunto social com seu territrio demarcado, a partir da configurao de territorialidades. Tendo em vista os objetivos desta pesquisa, partimos das obras j elaboradas acerca do samba paulista, isto , realizando a pesquisa em fontes secundrias. Alm desse levantamento bibliogrfico em centros de documentao e bibliotecas, vale destacar a ida Unio das Escolas de Samba de So Paulo UESP, cuja documentao ali existente foi imprescindvel no estabelecimento de um primeiro rol de dados ligados a origem do samba paulistano, bem como sua disseminao pelos diversos bairros da cidade. Igualmente, por meio de uma documentao de carter complementar: informaes contidas no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros - IEB da Universidade de So Paulo - USP, enriquecemos a anlise de nossa problemtica que, aos poucos, passou a incorporar reflexes mais aprofundadas. Tambm recorremos a instituies ligadas diretamente com a organizao do carnaval em So Paulo, entre elas: a Sociedade Amantes do Samba Paulista - SASP, as quais foram importantes no levantamento dos endereos das escolas de samba em So

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Paulo e basilares para o mapeamento realizado. Nesta tarefa em particular, convm salientar que boa parte dos endereos foram obtidos diretamente com alguns entrevistados, em decorrncia da mutabilidade freqente da localizao de algumas quadras; por motivos que sero tratados adiante. Ao longo do texto, so resgatados alguns depoimentos, relacionando-os com as observaes e as leituras realizadas, buscando, assim, uma articulao coerente com o texto. Evidentemente, o universo de anlise dos depoimentos coletados amplo, tendo no deslindamento desses discursos um exerccio constante de busca da importncia do aprofundamento das reflexes que guardam orientaes geogrficas. Todas as entrevistas realizadas serviram como procedimento para o estabelecimento de novos nexos e a reinsero de elementos histricos e geogrficos na articulao das idias, enriquecendo, assim, o horizonte da pesquisa pela qualidade temtica abordada. As entrevistas foram realizadas em diferentes locais da cidade de So Paulo: Fernando Penteado (Quadra da Escola de Samba Vai-Vai na Bela Vista), T. Kaula (Estdio de gravaes no bairro da Lapa), Antnio Carlos Malacquias Billy (Universidade de So Paulo), Tiaraju Pablo D Andrea (Universidade de So Paulo), Celso de Lima (residncia no bairro da Casa Verde), Nanci Frangiotti (Sede da Ouvidoria Geral do Municpio na Galeria Olido), Edlia dos Santos - Lia, Rbson de Oliveira e Betinho (Unio das Escolas de Samba de So Paulo UESP), Francisco Rocha (Bar em Pinheiros) e Mrcio Michalczuk Marcelino - Lino (residncia no Parque Peruche). A todos os entrevistados foi solicitada a permisso para a utilizao de seus nomes nesse trabalho. Vale assinalar que, pelo teor de algumas falas, o nome do entrevistado ser resguardada. As entrevistas foram realizadas pelo autor do presente trabalho, apoiadas por um roteiro de questes previamente definidas. Todas elas foram gravadas e transcritas, o que nos permitiu estabelecer algumas regularidades no discurso destes sambistas e entender algumas regras do ethos19 que produz adeptos ao samba em cada bairro da cidade. Em algumas circunstncias, houve a convivncia com os sambistas e moradores, procedendo-se a aproximao com os habitantes do Parque Peruche e os freqentadores da escola de samba Vai-Vai. Gradualmente, as delimitaes de algumas idias foram se19

Conforme a dimenso do conceito trabalhado por Hegel, que o define como sendo o esprito do povo. In: (BOBIO, 1995, p. 67).

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configurando, o que possibilitou refletir sobre as relaes e a dinmica da vida nos bairros, que passou a se revelar atravs do samba. Alm dos depoimentos, foram basilares, a observao dos fatos do dia a dia e o ingresso nos bastidores do mundo do samba por meio da participao em festas, ensaios de bateria e eventos de samba promovidos pela comunidade local. Sem esta participao, dificilmente algumas informaes dessas comunidades poderiam ser obtidas. Gomes (2002) lembra, acertadamente, que embora essa categoria possa primeira vista parecer simptica, por conferir um estatuto de grupo organizado e harmnico a estas pessoas, age na verdade como um reforo da idia de excluso, na medida em que diferencia estas comunidades de uma sociedade urbana global que forma a cidade (GOMES, 2002, p.15). Na perspectiva de um pesquisador branco, minha posio distanciada foi perfeitamente compreendida e no gerou nenhuma oposio entre os sambistas. Evidentemente, enquanto pesquisador interessado nas territorialidades do samba, no me deixei levar pela ideologia que apregoa que as manifestaes culturais afro-brasileiras devem ser estudadas por pesquisadores negros. Igualmente, a situao de um pesquisador branco de classe mdia me possibilitou refletir acerca da atualizao da falsa idia de que no possvel estudar uma manifestao cultural sem fazer parte da comunidade enfocada. Assim, tornou-se relevante no se propor uma concepo racialista ou essencialista ao fenmeno cultural; com uma falsa pretenso de se encontrar nele as suas matrizes originrias e puras. A pesquisa de campo foi complementada com a organizao de um vdeodocumentrio, o que tambm se tratava de um pressuposto do projeto de pesquisa inicial. Desse modo, o texto pode ser mais bem compreendido pelas cenas captadas da maneira em que acontecem micro - estruturalmente, nos encadeamentos sonoros e corporais que se do nos territrios do samba. Por intermdio dos entrevistados, conseguimos o apontamento de algumas dezenas de pessoas com as quais se tornaria possvel conversar a respeito do tema: este foi o primeiro ato de aproximao, que expandiu os contatos necessrios para a operacionalizao do objetivo de nosso trabalho. Apesar de nossa condio de pesquisador, na maior parte das vezes no se deu ateno a isto, seja por desinteresse ou seja porque o mais importante era a minha indicao por parte de certos membros apreciados pela comunidade. Alguns contatos foram feitos junto com alguns de nossos

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apresentadores (os entrevistados acima citados) durante os eventos de samba, o que dava conversa o carter de visita respeitvel. No entanto, gradativamente, esse auxlio foi deixado de lado surgindo a integrao rotina dos eventos e do cotidiano dos sambistas. Dizia-se apenas que gostaramos de conversar sobre samba, saber como era a vida no bairro. Da em diante, bastava iniciar as entrevistas e as observaes. Durante o perodo em que a pesquisa foi realizada, alm de termos conversado com muitas pessoas envolvidas com o mundo do samba, visitamos muito mais lugares do que os que so revelados em nosso texto; e que no foram explicitados pela opo do recorte metodolgico. A primeira constatao importante a partir das entrevistas foi a de que existe uma dinamizao do entorno em algumas reas da cidade, efetivadas pelo comrcio especializado em acessrios para o carnaval e pela confeco de camisetas e fantasias por costureiras terceirizadas; o que acaba contribuindo para a captao de recursos. A segunda a de que h o reconhecimento da importncia do samba enquanto elemento aglutinador, gerador de sociabilidades e de pertencimento. Cabe mencionar que esses eventos festivos de samba no s mobilizam o conjunto da populao, como tambm oferecem algumas vlvulas de escape no conjunto das infra-estruturas de lazer da cidade, que so em geral escassas, sobretudo nos bairros mais afastados do centro. Assim, para um sambista residente no bairro onde est sua escola de samba, h uma identificao com a escola e com o prprio bairro, onde se congregam os membros da comunidade. No posicionamento aqui assumido, o samba no poderia ser alado com um status romantizado, por vrias razes, a exemplo dos conflitos polticos e das oposies presentes no mago do mundo do samba. A esse respeito, Thompson (1998) nos adverte que o prprio termo cultura, com sua invocao confortvel de um consenso, pode distrair nossa ateno das contradies sociais e culturais, das fraturas e oposies existentes dentro do conjunto (THOMPSON, 1998, p. 17). Assim sendo, mesmo a condio de pesquisador de uma manifestao festiva e alegre, obrigou-me a apreend-la com certo olhar distante (Claude Lvy - Strauss), o que no obstaculizou a observao participante (uma grande contribuio da Antropologia para a Geografia) nem o envolvimento rigoroso com o tema. O uso dessa tcnica possibilitou a imerso no cotidiano dos sambistas, partilhando de seus eventos e normas

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de sociabilidade; compreendendo os princpios que elucidam os procedimentos e os processos culturais ao samba relacionados. Existem vrias definies acerca do significado da palavra samba. A partir da definio de Nei Lopes, o samba entendido como o nome das vrias danas populares brasileiras ou das msicas que acompanham essas danas. Segundo este mesmo autor, a palavra originou-se dos quiocos (chokwe) de Angola, cujo verbo significa cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito. Entre os bacongos angolanos e congueses, o vocbulo designa uma espcie de dana em que um danarino bate contra o peito do outro (LOPES, 2003, p. 14). E essas duas formas se originaram da raiz multilingustica semba: rejeitar, separar, que deu origem ao quimbundo di-semba. Aqui cabe destacar que desde o continente africano, o danar da semba esteve acompanhado da umbigada, um elemento coreogrfico fundamental presente nas origens do samba rural paulista, em que os danarinos batem seus umbigos uns nos outros. Cabe destacar ainda que, segundo o Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, a origem do vocbulo samba banto, embora apresente timo controverso. Para A. Ramos, o quimbundo samba refere-se a umbigada, um passo de dana presente no batuque, ainda hoje encontrado em Luanda e Angola. Para o pesquisador da cultura brasileira, Mrio de Andrade (1965), o samba primeiramente simbolizou a dana, para posteriormente se transformar em um estilo musical. Em muitas ocasies, as manifestaes de samba foram chamadas de batuque, dana de roda, lundu, chula, maxixe, partido-alto e batucada; convivendo simultaneamente com os acontecimentos carnavalescos, o que muito influenciou sua configurao e associao direta com o carnaval. Um dos problemas e desafios instigantes a ser enfrentado nas pesquisas sobre cultura e espao geogrfico exatamente a amplitude dos temas, especialmente aps a constatao de que os estudos sobre as questes culturais na geografia nem sempre focalizam as discusses sobre o territrio definido por seu uso. As prticas culturais expressam os valores e os sentidos vividos pelos agrupamentos sociais especficos, o que tambm delimita suas diferenas em relao a outros grupos. Nesta tica, conforme Paulo Gomes (2001), a cultura corresponde a certas atitudes, mais ou menos

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ritualizadas, por meio das quais se estabelece uma comunicao positiva entre os membros de um grupo (op.cit., 2001, p. 93), ou ainda, um conjunto de prticas sociais generalizadas em um determinado grupo, a partir das quais este grupo forja uma imagem de unidade e de coe rncia interna (GOMES, 2001, p. 93) . Por outro lado, h um problema nos trabalhos que esto voltados aos fenmenos culturais: o de tomar o fato cultural a partir de descries exaustivas, no se diferenciando da viso antropolgica, por exemplo20. Segundo Gomes (2008), o feito mais importante a ser tomado pelo pesquisador gegrafo a verificao da coerncia interna do sistema de posies e de localizaes que se encontra intrnseco ao fenmeno ou a representao do fenmeno cultural estudado:

A disposio fsica das coisas materiais, ou mais essa ordem espacial, possui uma lgica ou uma justamente a interpretao dessa lgica do arranjo seus sentidos que compe o campo fundamental geogrficas (GOMES, 2002, p. 172).

precisamente coerncia. espacial e de das questes

Da a importncia de se discutir a questo da geograficidade das manifestaes culturais, ou seja, o ponto onde podemos estabelecer o rtulo de geogrfico a determinado estudo, discutindo-se tambm os porqus da dimenso espacial da cultura, buscando-se as marcas que individualizam o carter geogrfico das pesquisas e que so obtidas essencialmente pela importncia explicativa atribuda localizao relacional que se estabelece entre as coisas, os fatos, os fenmenos e as pessoas (GOMES, 1997, p. 13; 2008, p. 188); observando-se a relao que pode existir entre a localizao e as suas significaes. Nesse entendimento, ao tratar da cultura, a geografia deve buscar compreender a dimenso espacial inerente aos fenmenos culturais, que guardam sistemas ontolgicos (ordens espaciais) fu