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Gaspar Micolo É um faraó que fascina. Ou melhor, tudo à sua volta. De todos os tesouros encontra- dos, o túmulo de Tutancámon é o mais importante do Egipto Antigo. Desde que a sua tumba foi descoberta, em 24 de Novembro de 1922, pelo arqueólogo inglês Howard Carter e a sua equipa, depois de mais de uma década de trabalho, o mundo vive fas- cinado com os mais de 5.400 objectos fabulosos do jovem soberano da XVIII dinastia, que reinou entre 1550 e 1295 antes da nossa era. Aberta em Março último, a exposição “Tutancámon, o tesouro do Faraó”, que fica em Paris até 15 de Setembro, já acolheu milhares de curio- sos para ver as 150 peças fune- rárias do soberano que já é considerado uma verdadeira celebridade mais de três milé- nios depois da sua morte. E a organização pretende ultra- passar os números anteriores. É que a primeira exposição, “Tutancámon e o seu tempo”, feita em 1967, em Paris, foi uma das maiores do mundo. Um total de 1.241.000 pessoas viu o espectacular tesouro do jovem soberano, que morreu aos 19 anos em 1327 (AC), provavelmente atropelado (ou por doença). Por ter fale- cido tão novo, o seu túmulo não foi tão sumptuoso como o de outros faraós, mas mesmo assim é o que mais fascina a imaginação moderna, pois é uma das raras sepulturas reais encontrada quase intacta. No Antigo Egipto, os túmu- los contavam histórias. Assim, fossem mastabas, hipogeus ou pirâmides, con- soante a época, tinham de ser vastos para albergar, além do sarcófago, mobi- liário que represente a vida diária do defunto, designa- damente móveis, roupa, objectos de higiene, uten- sílios, louça, estatuetas em ouro ou metais. Junta-se a isso a riqueza dos textos e das representações, grava- dos e pintados nas paredes dos túmulos, revelando, por exemplo, factos principais da sua existência como o seu ofício. O ministro egípcio das Antiguidades, Khaled al- Anani, explicou à revista “Jeune Afrique” que o fascínio e a fama de Tutancámon resi- dem exactamente na riqueza excepcional dos seus objec- tos, que, depois de expostos em Paris, seguem para outros países. Assim, as 150 peças expostas estão avaliadas em mais de 862 milhões de dóla- res (sendo que ainda restam mais de 5.000 por expor). De tão ricos, os objectos são rigorosamente controlados por uma equipa de conser- vação egípcia. Exige-se a garantia dos Estados que os acolhem e empresas de renome especializadas em segurança e transporte. Para o historiador maliano Boubacar Namory Keita, radicado em Angola há déca- das, os objectos são fontes para o estudo e compreensão da História. “A múmia de Tutancámon não apresenta um interesse particular para a Egiptologia fora de algumas questões puramente históricas (de compreensão do processo histórico), como o fenómeno de “regência” na História da Humanidade”, explica o chefe de departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da Univer- sidade Agostinho Neto. Boubacar Keita acrescenta que o soberano, que assumiu o trono quando tinha cerca de nove anos, era o único filho de Akhenaton (Amenofès IV), considerado primeiro “refor- mador/monoteista”, na His- tória das religiões. “O seu pai teria influenciado Moisés (nascido e educado no Egipto faraónico) - o fundador do Judaismo”, diz. O filósofo e egiptólogo costa-marfinense Yoporeka Somet, cuja tese de douto- ramento foi sobre o Egipto Antigo, explica ao Jornal de Angola que esse fascínio é uma coisa excelente. “O inte- resse e o entusiasmo são bons indicadores”, diz. “Atestam a crescente impor- tância da civilização faraó- nica egípcia. Não tem equivalente hoje”, explica o investigador e docente uni- versitário, que pretende rever a exposição, depois de já a ter visto no Museu do Cairo. “A abertura do túmulo do jovem faraó Tutancámon, em Novembro de 1922, foi um evento global e algo iné- dito, nunca antes visto, para a arqueologia mundial”, lembra o egiptólogo. “Esta é a primeira vez que uma tumba real egípcia, esca- pando da fúria dos saquea- dores, é descoberta há quase quatro mil anos. São mais de 5.000 objectos funerários em ouro e pedras preciosas, que reflectem a qualidade dos artistas e artesãos do Egipto Antigo”, explica. Números impressionam Como uma estrela do rock internacional, Tutancámon está na sua exposição de des- pedida. Depois do Cairo e Los Angeles, está em Paris, daí partirá para Londres e depois deve voltar aos Estados Unidos. Para atingir a meta de 10 milhões de visitantes em todo o mundo, os orga- nizadores avisam que esta é a última viagem do faraó com o seu tesouro. A partir de 2020, a colec- ção será instalada no Grande Museu Egípcio (GEM, em inglês), perto das Pirâmides, que está em construção e que provavelmente será o maior museu arqueológico do mundo. No Cairo, junto da praça Tahrir (centro da Revolução Egípcia, em 2011), está o Museu Egípcio, que é o mais importante do país, enquanto não é inaugurado o majestoso Grande Museu Egípcio, que está a ser construído perto das Pirâmides de Gizé e que promete revelar a grandio- sidade do Antigo Egipto. Ao longo das três grandes pirâmides, cerca de 5.000 operários trabalham 24 horas por dia para terminar a infra- estrutura, cuja promessa de inauguração arrasta-se por anos. Agora, acredita-se que este grande prédio estará dis- ponível para visitas em 2020 e tornar-se-á no maior museu do mundo dedicado a uma única civilização. Considerado pai da His- tória, o grego Heródoto, que visitou o Egipto no século V (A.C), portanto, séculos depois da morte de Tutancámon, também se mostrou fascinado com o avanço dos egípcios, assim como da sua cultura milenar, quando entrou em contacto com sacerdotes, tendo escrito várias obras. Contudo, o tão aguardado Museu, que promete aumen- tar o fascínio e a admiração por essa rica civilização, apresenta números extraor- dinários. Custando mais de mil milhão de dólares, o GEM irá realojar e restaurar algu- mas das mais preciosas relí- quias do país, a exemplo dos tesouros do faraó Tutancá- mon, os quais estão a receber uma atenção especial. Algu- mas peças já foram restau- radas, como uma das suas roupas e uma sandália. O museu terá 93.000 metros quadrados de espaço de expo- sição, onde os artefactos do jovem soberano ocuparão cerca de um terço. A cons- trução do GEM passou por uma série de altos e baixos. A ideia da criação do Grande Museu Egípcio surgiu como uma tentativa de se criar um museu modelo e ao mesmo tempo afrouxar o Museu Egípcio, na praça Tah- rir, no Cairo, que estava cada vez mais abarrotado de arte- factos arqueológicos, muitos dos quais permanecem no porão sem um tratamento adequado e a maioria nem mesmo foi estudada. Além disso, o GEM terá um centro de estudos aberto a arqueó- logos de todo o mundo, cen- tros de conferências, cinemas, lojas e vários restaurantes. 4 DESTAQUE Sexta-feira 10 de Maio de 2019 EXPOSIÇÃO SOBRE O FARAÓ LONGE DE APENAS FASCINAR Com o rosto do mais célebre faraó reacende a controversa questão da cor dos egípcios antigos e, por arrasto, a extraordinária luta do pensador senegalês Cheikh Anta Diop, na defesa da tese segundo a qual uma das mais ricas civilizações do mundo era afinal africana, logo, parte fundamental da sua História Tutancámon: do esplendor à polémica DR

DR EXPOSIÇÃO SOBRE O FARAÓ LONGE DE APENAS FASCINAR É …imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1845484018_binder1.pdf · o Egipto Antigo tinha sido uma cultura negra, Cheikh Anta Diop

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Gaspar Micolo

É um faraó que fascina. Oumelhor, tudo à sua volta. Detodos os tesouros encontra-dos, o túmulo de Tutancámoné o mais importante do EgiptoAntigo. Desde que a suatumba foi descoberta, em 24de Novembro de 1922, peloarqueólogo inglês HowardCarter e a sua equipa, depoisde mais de uma década detrabalho, o mundo vive fas-cinado com os mais de 5.400objectos fabulosos do jovemsoberano da XVIII dinastia,que reinou entre 1550 e 1295antes da nossa era.

Aberta em Março último,a exposição “Tutancámon, otesouro do Faraó”, que ficaem Paris até 15 de Setembro,já acolheu milhares de curio-sos para ver as 150 peças fune-rárias do soberano que já éconsiderado uma verdadeiracelebridade mais de três milé-nios depois da sua morte. Ea organização pretende ultra-passar os números anteriores.É que a primeira exposição,“Tutancámon e o seu tempo”,feita em 1967, em Paris, foiuma das maiores do mundo.Um total de 1.241.000 pessoasviu o espectacular tesouro dojovem soberano, que morreuaos 19 anos em 1327 (AC),provavelmente atropelado(ou por doença). Por ter fale-cido tão novo, o seu túmulonão foi tão sumptuoso comoo de outros faraós, mas mesmoassim é o que mais fascina aimaginação moderna, pois éuma das raras sepulturas reaisencontrada quase intacta.

No Antigo Egipto, os túmu-los contavam histórias.Assim, fossem mastabas,hipogeus ou pirâmides, con-soante a época, tinham deser vastos para albergar,além do sarcófago, mobi-liário que represente a vidadiária do defunto, designa-damente móveis, roupa,objectos de higiene, uten-sílios, louça, estatuetas emouro ou metais. Junta-se aisso a riqueza dos textos edas representações, grava-dos e pintados nas paredesdos túmulos, revelando, porexemplo, factos principaisda sua existência como oseu ofício.

O ministro egípcio dasAntiguidades, Khaled al-Anani, explicou à revista“Jeune Afrique” que o fascínioe a fama de Tutancámon resi-dem exactamente na riquezaexcepcional dos seus objec-tos, que, depois de expostosem Paris, seguem para outrospaíses. Assim, as 150 peçasexpostas estão avaliadas emmais de 862 milhões de dóla-res (sendo que ainda restammais de 5.000 por expor).De tão ricos, os objectos sãorigorosamente controladospor uma equipa de conser-vação egípcia. Exige-se agarantia dos Estados queos acolhem e empresas derenome especializadas emsegurança e transporte.

Para o historiador malianoBoubacar Namory Keita,radicado em Angola há déca-das, os objectos são fontespara o estudo e compreensãoda História.

“A múmia de Tutancámonnão apresenta um interesseparticular para a Egiptologiafora de algumas questões

puramente históricas (decompreensão do processohistórico), como o fenómenode “regência” na História daHumanidade”, explica ochefe de departamento deHistória da Faculdade deCiências Sociais da Univer-sidade Agostinho Neto.

Boubacar Keita acrescentaque o soberano, que assumiuo trono quando tinha cercade nove anos, era o único filho

de Akhenaton (Amenofès IV),considerado primeiro “refor-mador/monoteista”, na His-tória das religiões. “O seu paiteria influenciado Moisés(nascido e educado no Egiptofaraónico) - o fundador doJudaismo”, diz.

O filósofo e egiptólogocosta-marfinense YoporekaSomet, cuja tese de douto-ramento foi sobre o EgiptoAntigo, explica ao Jornal de

Angola que esse fascínio éuma coisa excelente. “O inte-resse e o entusiasmo sãobons indicadores”, diz.“Atestam a crescente impor-tância da civilização faraó-n i ca eg íp c i a . Não temequivalente hoje”, explicao investigador e docente uni-versitário, que pretende revera exposição, depois de já ater visto no Museu do Cairo.

“A abertura do túmulo

do jovem faraó Tutancámon,em Novembro de 1922, foium evento global e algo iné-dito, nunca antes visto, paraa arqueologia mundial”,lembra o egiptólogo.

“Esta é a primeira vez queuma tumba real egípcia, esca-pando da fúria dos saquea-dores, é descoberta há quasequatro mil anos. São mais de5.000 objectos funeráriosem ouro e pedras preciosas,

que reflectem a qualidadedos artistas e artesãos doEgipto Antigo”, explica.

Números impressionamComo uma estrela do rockinternacional, Tutancámonestá na sua exposição de des-pedida. Depois do Cairo eLos Angeles, está em Paris,daí partirá para Londres edepois deve voltar aos EstadosUnidos. Para atingir a metade 10 milhões de visitantesem todo o mundo, os orga-nizadores avisam que esta éa última viagem do faraó como seu tesouro.

A partir de 2020, a colec-ção será instalada no GrandeMuseu Egípcio (GEM, eminglês), perto das Pirâmides,que está em construção eque provavelmente será omaior museu arqueológicodo mundo.

No Cairo, junto da praçaTahrir (centro da RevoluçãoEgípcia, em 2011), está oMuseu Egípcio, que é o maisimportante do país, enquantonão é inaugurado o majestosoGrande Museu Egípcio, queestá a ser construído pertodas Pirâmides de Gizé e quepromete revelar a grandio-sidade do Antigo Egipto.

Ao longo das três grandespirâmides, cerca de 5.000operários trabalham 24 horaspor dia para terminar a infra-estrutura, cuja promessa deinauguração arrasta-se poranos. Agora, acredita-se queeste grande prédio estará dis-ponível para visitas em 2020e tornar-se-á no maior museudo mundo dedicado a umaúnica civilização.

Considerado pai da His-tória, o grego Heródoto, quevisitou o Egipto no século V(A.C), portanto, séculos depoisda morte de Tutancámon,também se mostrou fascinadocom o avanço dos egípcios,assim como da sua culturamilenar, quando entrou emcontacto com sacerdotes,tendo escrito várias obras.

Contudo, o tão aguardadoMuseu, que promete aumen-tar o fascínio e a admiraçãopor essa rica civilização,apresenta números extraor-dinários. Custando mais demil milhão de dólares, o GEMirá realojar e restaurar algu-mas das mais preciosas relí-quias do país, a exemplo dostesouros do faraó Tutancá-mon, os quais estão a receberuma atenção especial. Algu-mas peças já foram restau-radas, como uma das suasroupas e uma sandália.

O museu terá 93.000 metrosquadrados de espaço de expo-sição, onde os artefactos dojovem soberano ocuparãocerca de um terço. A cons-trução do GEM passou poruma série de altos e baixos.

A ideia da criação doGrande Museu Egípcio surgiucomo uma tentativa de secriar um museu modelo e aomesmo tempo afrouxar oMuseu Egípcio, na praça Tah-rir, no Cairo, que estava cadavez mais abarrotado de arte-factos arqueológicos, muitosdos quais permanecem noporão sem um tratamentoadequado e a maioria nemmesmo foi estudada. Alémdisso, o GEM terá um centrode estudos aberto a arqueó-logos de todo o mundo, cen-tros de conferências, cinemas,lojas e vários restaurantes.

4 DESTAQUE Sexta-feira10 de Maio de 2019

EXPOSIÇÃO SOBRE O FARAÓ LONGE DE APENAS FASCINAR

Com o rosto do mais célebre faraó reacende a controversaquestão da cor dos egípcios antigos e, por arrasto,

a extraordinária luta do pensador senegalês Cheikh Anta Diop,na defesa da tese segundo a qual uma das mais ricascivilizações do mundo era afinal africana, logo, parte

fundamental da sua História

Tutancámon: do esplendor

à polémica

DR

Page 2: DR EXPOSIÇÃO SOBRE O FARAÓ LONGE DE APENAS FASCINAR É …imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1845484018_binder1.pdf · o Egipto Antigo tinha sido uma cultura negra, Cheikh Anta Diop

5Sexta-feira10 de Maio de 2019DESTAQUE

Anos depois de defender queo Egipto Antigo tinha sido umacultura negra, Cheikh Anta Diopparticipa no famoso colóquiointernacional (por sua iniciativa),em 1974, no Cairo, sobre o tema“O povoamento do AntigoEgipto e a decifração da escritameroíta”. O mais renomadoegiptólogo africano reuniaassim, pela primeira vez, comuma série de colegas do mundointeiro, resultando daí, porexemplo, conclusões que seencontram na História Geralde África, publicação patroci-nada pela Unesco.Apesar de crítica quanto à

reivindicação dos manifes-tantes, a egiptóloga francesaBénédicte Lhoyer reconhece,em parte, uma das vitórias deCheikh Anta Diop: “Desde o simpósio do Cairo

em 1974, a ideia de um Egiptosó do Oriente Médio caiu, nin-guém nega, pelo contrário!Acrescento que, nos últimosanos, muitas descobertas foramfeitas sobre o assentamentodo Egipto Antigo.”

A obra de Cheikh Anta Diop,lembra Boubacar Keita, temuma importância inestimávelpara a Egiptologia, em geral, ea Historiografia africana, emparticular, já que, além de terposto em causa os inúmerosmitos que envenenavam o estudonormal da História do continente,impediam quebrar a língua her-mética ou, como o próprio dizia,ultrapassar a “ankylose” dos tex-tos dos trabalhos dos egiptólogoseuro-ocidentais.

“As demonstrações de Diopsão cientificamente claras. Osargumentos despidos de racis-mos e de ideologia. São 'histó-ricos', porque apelam ao debatede ideias, sem apriorismos, nemabsolutização”, defende.

“Infelizmente, os estudiososafricanos estão ainda muitolonge do desafio. Por “conta-minação”, devido à sua for-mação académica. Por medo,porque não conhecem a obrado sábio senegalês. Por nãoserem capazes de pôr em causa- como exige a Ciência - o fun-damento primeiro da sua for-

mação. Querem preservar oconforto (falso) dos privilégiosadquiridos. Mas haverá umageração de africanos, maisjovens, mais corajosos paraassumir toda esta plenitudecultural sem a qual não podehaver nem dignidade nem pro-gresso verdadeiro. Será o fimda barbárie e o triunfo da civi-lização (segundo Diop)”.Na mesma linha de Keita, o

filósofo e egiptólogo costa-mar-finense Yoporeka Somet apro-veita destapar o legado de Diop. “A sua herança é imensa e se

espalha por todas as áreas doconhecimento, tanto as ciênciasexactas quanto as humanas” diz,mas também lamenta “notar queo legado precioso que nos deixou,tanto no seu trabalho, quantono seu exemplo de homem livre,simples, modesto, rigoroso ehonesto, ainda não se começaa levar em conta e isso nem noseu próprio país, Senegal, nemem outros lugares de África.”Nem o facto de a Universidade

de Dakar levar o nome de Diopafasta a sua lamentação.

“Isso é apenas simbólico.O mais importante é o que édito dele para os jovens emescolas, faculdades e univer-sidades e outros centros deformação. Mas o que apren-demos desse génio africanopara os jovens? Não muito. Oseu nome é pouco conhecidoe a sua obra é ignorada, naprópria África, com algumasexcepções felizes, aqui e ali,que devem ser bem-vindas eencorajadas.”

Uma obra para a Egiptologia DR

A controvérsiaagora levantadacom a exposição de Tutancá-mon não é nova. E é muitomais profunda do que possa,à primeira vista, parecer aoleitor que não tenha tido umadisciplina de História de Áfricaao longo da sua formação. Éque, por exemplo, a Europado século XIX, depois de tertirado proveito da Escravaturae do Tráfico de Escravos, mudade discurso e de posição, paradar justificações morais aosseus actos. Um deles será aideia segundo a qual Áfricanão tinha História. O filósofoalemão G.W.Friedrich Hegel(1770-1831) defendeu na suaobra “Lições sobre a Filosofiada História” que “África nãodemonstrou nem mudançasnem desenvolvimento. Ospovos negros são incapazesde se desenvolver e, até, dereceber uma educação.” Issopara justificar que a sua His-tória começa com a chegadados europeus.

Foi o importante trabalhode Cheikh Anta Diop (1923-1986), historiador, antro-pólogo, f ís ico e pol í t icosenegalês, que estudou asorigens da raça humana ecultura africana pré-colonial,que fez cair mitos como ocriado por Hegel.

“O jovem Diop tinha suge-rido à defesa no início dosanos 50 (precisamente em1952) uma tese de doutora-mento que sustinha a ideiade que a civilização do Egiptofaraónico foi o trabalho donegro africano, a sua culturae a sua língua eram africanas,bem como a sua organizaçãosocial, a sua visão de mundo”,explica Yoporeka Somet.

“E a Universidade Francesa,em vez de examinar este tra-balho e, se necessário, inva-lidá-lo publicamente, duranteuma defesa pública, simples-mente optou por ignorá-lo!O que forçou esse jovem estu-dante africano a iniciar outratese de doutoramento queele finalmente defende em1960 e onde não havia maisnenhuma questão do EgiptoAntigo”, lembra.

E questiona: “E você acre-dita que esta situação mudouradicalmente, na Universi-dade Francesa, quase 70 anosdepois? Pessoalmente, nãovejo qualquer sinal tangívelde uma mudança radical nesseclima peculiar ao período colo-nial. É isso que as actuais con-trovérsias sobre a exposiçãoem Tutancámon, em Paris,me testemunham.”

Boubacar Namory Keita jáescreveu diversos ensaios sobrea contribuição de Cheikh AntaDiop para a escrita da HistóriaAfricana. E volta a lembrar oque está em causa quando senega um Egipto Antigo negro.A sua primeira preocupação,diz, prende-se com o EgiptoFaraónico Negro, ou seja, ocarácter negro (ou raça negra)dos antigos egípcios.

“Isto foi um dos camposde batalha científica de CheikhAnta Diop, desde 1954. A razãofoi muito simples; sem estaevidência, não era e não é pos-sível compreender a essênciada civilização egípcia, ou seja,da primeira civilização daHumanidade”, explica o pro-

fessor de História de África. O historiador enumera um

conjunto de feitos dos egíp-cios negros, que vão desdea invenção, pela primeira vezna História da Humanidade,de uma escrita coerente (cercade 3.200 AC, segundo a data-ção curta, mais de 1.000 anosantes da Mesopotâmia!) àiniciativa pioneira em pensar,conceber e erguer as primei-ras, maiores e mais sofisti-cadas pirâmides.

“Feitas também para alber-gar restos mortais mumifica-dos, apresentam uma estruturainterna com sistemas de ven-tilação e iluminação naturaisque se mostraram eficazesaté hoje para a conservaçãoe preservação de tudo o queos autores queriam”, lembra.

Boubacar Keita lembraainda que os antigos egípciosforam os conceptores e inven-tores da Medicina (tratamentodo corpo, graças ao conhe-cimento da Anatomia e daFisiologia). Logo, diz, foramos mestres efectivos dos gre-gos como, por exemplo, Hipó-crato. Acrescenta ainda a

técnica da mumificação doscorpos (as suas múmias che-garam até nós!).

Paralelamente, lembra, foino vale do Nilo que a huma-nidade deu os primeiros passosem Matemática, Álgebra, Geo-metria, Cosmologia, Arqui-tectura (com a conhecida“divina proporção”).

“Aos antigos egípcios, deve-mos o conhecimento do mis-tério, fundamento da religião”,assegura. “O Egipto antigo foio país de acolhimento e deensino de praticamente todosos sábios gregos. Esses mes-mos nos informam sobre istosem qualquer espécie de pudorou complexo.” O chefe doDepartamento de História daFaculdade de Ciências Sociaisda Universidade AgostinhoNeto não tem dúvidas:

“O primeiro faraó/construtorde pirâmide era negro. Os trêsirmãos que nos deixaram asmaiores e mais famosas pirâ-mides de todos os tempos per-tencem a esta linhagem. Eramda IV Dinastia e com nomes:CHEOPS (Kheops), KEPHREN(Kefrem), MIKERINOS”.

HARRY BURTON

Enquanto os entusiastasenchem as exposições,pagando entre 10 e 20 eurospara ver a riqueza do jovemfaraó, deslumbrando-se coma sua máscara de ouro, alguns“militantes”, como lhes chamoua imprensa francesa, exigemo encerramento da exposição.Os manifestantes lançam acontroversa questão da cordo soberano, que acreditamestar mais clara, ou seja, océlebre faraó era negro,assimcomo a maioria dos habitantesdo Antigo Egipto, logo, afri-cano. Eis que, décadas depois,a origem dos egípcios man-tém-se no centro de debatescientíficos e políticos.

O grupo de jovens africa-nos, que constituem a “Liguede Défense Noire Africaine”(LDNA), realiza manifestaçõesregulares nas universidadesfrancesas contra a posiçãodos seus académicos. Umdocumentário sobre o EgiptoAntigo, transmitido no canaltelevisivo France 2, tambémmereceu duras críticas, apon-tando, por exemplo, que nãose destaca o aspecto africanodaquela antiga civilização.

“É a falsificação da Históriaafricana, o branqueamentoda história. E nessa dinâmicahá o branqueamento da civi-lização egípcia”, diz o acti-vista e membro do LDNA,Emilien Missuma.

A egiptóloga francesaBénédicte Lhoyer, disse, ementrevista à revista Le Point,que já esperava a manifes-tação, pois já sabia da acu-sação de que a sua equipaestá a negar a origem africanade Tutancámon.

“Por vários anos, um dis-curso centrado na Áfricadesenvolveu-se para afirmarque o Egipto Antigo eranegro”, explica.

“Para apoiar a sua tese,aqueles que a propagam asse-guram, por exemplo, que osegiptólogos brancos quebra-ram o nariz de estátuas emúmias para disfarçar a origemafricana dos egípcios”, acres-centa, para defender depoisque esta teoria é obviamenteimprovável, porque haviatodas as variantes de cor depele possíveis entre os egípcios.Ouvido pelo Jornal de Angola,o filósofo e egiptólogo costa-marfinense Yoporeka Somet,que em Maio apresenta emParis e em Genebra a suamais recente obra sobre oEgipto Antigo, é categóricona resposta. “É uma vergo-

nhosa falsificação da Históriadesta antiga civilização”,denuncia. “O Egipto está loca-lizado geograficamente nocontinente africano, masquase nunca é associado aÁfrica, mas sim ao Oriente ouOriente Médio.”

Para o doutor em Egipto-logia, ao pôr-se em causaum Egipto Negro, sugere-seque os construtores dessabrilhante civilização não eramafricanos, mas sim orientais,em outras palavras, brancos.

“A mesma recusa em vera origem negro-africana dacivilização e os antigos povosegípcios manifesta-se no factode alguns egiptólogos dize-rem agora que o Egipto Antigoera uma “encruzilhada” e atémesmo um “corredor”, ondeteria havido uma grande mis-tura e uma grande diversidadede fenótipos! Mas hoje, hátanta diversidade nas ruasde Paris, Nova Iorque ou Joa-nesburgo: isso não impedeninguém de reconhecer queParis é França, Nova Iorquena América, e Joanesburgona África! O que é tão emba-raçoso para reconhecer sim-plesmente que o antigo Egiptoera uma nação africana?”

Para o historiador BoubacarNamory Keita, autor de “His-tória da África Negra”, livropublicado em 2009 e referênciaobrigatória para os estudantesuniversitários em Angola, dizerque o “Egipto faraónico erahabitado por negros e bran-cos”, como defende a egip-tóloga francesa BénédicteLhoyer, não tem realmentesentido, historicamente.

“Oobjectivo é apenas evi-tar olhar a realidade, isto é,reconhecer que toda a épocafaraónica foi uma época fun-damentalmente dominadapor negros. Isto era evidentepor se tratar de um país negro,do continente negro. Era e édifícil reconhecer isto, porquea Europa perde, assim, a suasupremacia intelectual, decontinente/mestre do mundo”,assegura o professor de His-tória de África da UAN.

“A História do EgiptoAntigo é importante para aHistória da África, porque éuma peça central da cons-ciência histórica e da pleni-tude cultural do africano.Compreender a essência dacivilização egípcia não é pos-sível sem um perfeito conhe-cimento daquilo que é acultura africana, a alma afri-cana, a filosofia africana”.

Apanhada no meio da batalha científica

Marcas de uma exposição polémica

Historiador BoubacarNamory Keita

Cheikh Anta Diop

Filósofo e egiptólogoYoporeka Somet

DR

SENEPLUS