12
Ceu, inferno o sincretismo faz-se na cabeca de Evandro e S(lvlll, que, nao a rindo rigorosamente a nenhum dos culte I podem com maier desenvoltura armar esquemas de S(JlI bolos e meraforas que transitam pelos dois universos e (I a br ac am c om 0 b ri lh o s ed ut or da s im ag en s: a ssi rn , Di nisos transformado em pao e vinho, e 0 Cristo da eucari si h i disrribuida aos pobres. Alias, e muito bela a intuic o de IIIt culto em que todos comungam, fraternos, a santidadc d n trigo e da uva, superando, deste modo, a fase selvagern d \l a nt ro p of a gi a e d a e sc ra vi da o, p ra ti ca s q ue r er na ne sc em d l' ur n m und o ar ca ico e v iol en to. Se a s p ri mi ti va s ba ca nte s (111I de li ri o ma ta vam a d en ta das to ur os e v ac as e comiam CI 't! I a s s ua s c ar nes , a s c om un id ade s o rfi ca s p os te rio re s, i gL I1 d mente sagradas a Dionisos, guardavam 0 jejum e absl n ha rn- se e sc rup ul osa me nt e de i ng er ir c arn e. O rf eu cantu, purifi ca , liberta. F ic a a ss im a da ra do ( em p art e, c re io ) 0 simbolismo e l n ti tulo cent ral: Sol subterrdneo. E t od o u rn m ov ir nen tu II sentido que se reconhece na imagem fe ita de 1uze treva, II o pr es sa o e espe ra n c; : a,A p ar ti r d el a t al vez s e i lu mi ne m III I lhor os caminhos deste narrador surpreeridente que III oitenta anos ainda nos delta frutos tao doces e tao fres 'II~ Um prirneiro caminho que foi sendo balizado pela obsc sao do carcere e pelas marcas de medo e angustia q m: II correm no dia-a-dia do suspeito, do perseguido, do pn:liIIl do exilado, numa palavra, do hOJ11emque vive em esm III subrerraneo. E urn outro caminho, de saida, que ja n5tl I b as ta co m 0 ceu do presente, mas quer abracar urn lllw'lo d e se r l ivr e mo de lar me nt e a rr ib ui do ao ci da dao a nt igo "d urn tempo em que os ritos do povo falavam no advento 'Iii ur n re in o d e ju st ic a, 98.. "A maquina do mundo" entre 0 simbolo e a alegoria "N . atu re,enchantere sse sans pi tie, riva le touj ours vicr orie use , lais se-moi! C es se d e t en te r m es d es ir s et rnon orgu eil!" Charles Baudelaire , "Le confiteor de I' artiste", e m L e s pl ee n d e P ar is o primeiro contato com '~maquina do mund " m u de Car. lo s Drummond de Andrade. c id 0 Pl°~- , onV1 a a u ma .el~ turu metafisica . Desde 0 titulo u ni ve r sa l n b A I "l'. ,. a sua a rangen- .1 , I . " ee se ao em I JI lt ra po nt o, p as san do p el o t om gr av e d e a da gi o f il os of i- I ) que longamente 0 sustenta. S eo c rf ti co e versado nas correnres fenomenol6gica s tCl.1ta<;:ao ed. retomar 0 exernplo de He'd' . I' tl HI' '. . 1 egger que, en- o oe derlin, inte preta as seus poem "0 '" II I n b'" . as retorno e -;:.? ,em, ranca com~ citras d e u ma r el ac ao e nt re 0 Ser-aqui Damn) e 0 s eu h or rz on te o ll to 16 gi c o, t ra ns pe s soa l, l 0 pr o- D r~ ff im ~( nd t al ve z n os e nc or aj as se a t ri lh ar e ss e c ar ni - ao sit uar :A . maquina do mundo" entre as "'T . lentatrvas l l~ ~2 ~a rt in H ei de gg er , A p pr oc he d e H o e! de rl in , Par is, Gall i~

Drummond de Bosi

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Ceu , inferno

o sincretismo faz-se na cabeca de Evandro e S(lvlll,

que, nao aderindo rigorosamente a nenhum dos culte I

podem com maier desenvoltura armar esquemas de S(JlI

bolos e meraforas que transitam pelos dois universos e (I

abracam com 0 brilho sedutor das imagens: assirn, Di

nisos transformado em pao e vinho, e 0Cristo da eucarisi h idisrribuida aos pobres. Alias, e muito bela a intuicao de IIIIt

culto em que todos comungam, fraternos, a santidadc d n

trigo e da uva, superando, deste modo, a fase selvagern d \l

antropofagia e da escravidao, praticas que rernanescem d l'

urn mundo arcaico e violento. Se asprimitivas bacantes ( 1 1 1 I

delirio matavam a dentadas touros e vacas e comiam CI't! I

as suas carnes, as comunidades orficas p os te rio re s, i gL I1 d

mente sagradas a Dionisos, guardavam 0 jejum e absl

nharn-se escrupulosamente de ingerir carne. Orfeu cantu ,

purifica, liberta.

Fica assim adarado (em parte, creio) 0 simbolismo e l ntitulo central: Sol subterrdneo. E todo urn movirnentu IIsentido que se reconhece n a im ag em fe ita de 1uze t re va , I I

opressao e esperanc;:a,A partir dela talvez se iluminem IIII

lhor os caminhos deste narrador surpreeridente que III

oitenta anos ainda nos delta frutos tao doces e tao fres 'II~

Um prirneiro caminho que foi sendo balizado pela obsc

sao do carcere e pelas marcas de medo e angustia qm: II

correm no dia-a-dia do suspeito, do perseguido, do pn:l iIIl

do exilado, numa palavra, do hOJ11emque vive em esm III

subrerraneo. E urn outro caminho, de saida, que ja n5tl Ibasta com 0 ceu do presente, mas quer abracar urn lllw'lo

de ser l ivre modelarmente arribuido ao cidadao antigo"d

urn tempo em que os ritos do povo falavam no advento ' I i iurn reino de justica,

98..

"A maquina d o m u nd o"

entre 0 s im b olo e a a leg oria

"N. ature,enchanteresse sans pitie,

rivale toujours vicrorieuse, laisse-moi!

Cesse de tenter mes desirs et rnon orgueil!"

Charles Baudelaire, "Le confiteor

de I'artiste", e m L e s pl ee n d e P ar is

o primeiro contato com '~maquina do mund "

m u de Car.lo s Drummond de Andrade. c id 0 Pl°~-, onV1 a a uma .el~turu metafisica. Desde 0 titulo universal n b A

I"l'. ,. a sua a rangen-

.1 , ate as nguras do eu e do mundo que n I d-. " ee se ao emIJIltraponto, passando pelo tom grave de adagio filosofi-

I)que longamente 0 sustenta.

Seo crftico e versado nas correnres fenomenol6gicas

tCl.1ta<;:aoed. retomar 0exernplo de He'd' . I'tl HI' '. . 1 egger que, en-o oe derlin, interpreta as seus poem "0 '"

II I n b'" . as retorno e -;:.?

,em, ranca com~ citras de uma relacao entre 0Ser-aqui

Damn) e 0seu horrzonte ollto16gico, transpessoal,l 0 pro-

Dr~ffim~(nd talvez nos encorajasse a trilhar esse carni-

ao situar :A . maquina do mundo" entre as "'T .lentatrvas

ll~~2~artin Heidegger, A p pr oc he d e H o e! de rl in , Paris, Galli~

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Ceu,inferno

il I de explicacao e de interpretacao do estar-no-mundo" , como

.I. _ q figura na sua A n to lo g ia p o et ica . 2

~ ~Essa abordagem, porern, correria 0isco de colher limi]'anto precocemente asessencias a-historicas latentes no dis

~ 4 curso poetico (0 Ser, 0Tempo), sem por em relevo os mo-

Idos peculiares de forrnar, que a.mensagem foi encontran

do para dizer , passo a passo, 0 seu sentido,

~ No caso de "A maquina do mundo", uma entrada im e

\. ~ diatamente metafisica poderia descurar a marcacao de L Im

- 0 processo vital para compreender 0 todo. 0poema desdo ..

) bra-se francamente em uma linha narrativa.

j Em outras palavras: 0 tema do desencomro entre 0su

S \ je,ito eo. Universe nao e tratado liricamente, sob as especlcs

4 ~de uma linguagem sintetica, centrada t~0.-s6 na aparicao e\"';0-J na norneacao das suas figuras. Ao contrano, 0que temos ~I

~ (J 1ma eadeia de situacoes existenciais. Uma sequencia no temc l ~ ipo e no espa<;o, que e necessario pontuar e palmilhar.

-J.b-gd Alsue inh ..~ ~ .Q -- guem, urn carom ante, n~rra em pnmelra pessou,

l- lVagueava por uma estrada de Mmas quando se deparou

\ com um,~eS,tra~ha cena, que ~!e reconh.ece im~ediatame,:nll'

~1;...omo a maquma do mundo . A ~alllf;st~~ao se faZp(~I

c..:,~ {' . irnagens e palavras, mas sem voz, Nao ha dialogo, 0U n . 1

( \ , r verso, abarcando Natureza e Historia, abre-se ao viajor (I

, j , . ~ ofereee-Ihe, a segr,e,d." do se.ll enign:a, outrora procuradu

~ - & - - r vamente. Ele, porem, retrai-se, hesi ta em responder, ! ; ; I i i

quanto urn outro ente interior 0domina e 0 compele a n'

cusar-se aquele dom tardio. 0 eu baixa enfim os olhos eo

rno quem ja desistiu de penetrar 0 sentido das coisas, IL

"A rnaquina do rnundo" entre 0 sfrnbolo e aalegoria

II l1ic(;) ,arnaquina do mundo se recomp6e e se fecha. 0

1 1 11 1 1 1 1 hante segue pela mesma estrada, voltando a situa-III iI~idal.

o simples resumo da materia narrada leva aperceber

1 1 1 ( " lriqueza dos seus significados nao se atinge de cho-

III'. d e urna vez por todas, pois a mensagem do poema cons-

1 , ' , 1 , ~ C i ! . 1 1 0 tempo. Discernem-se passos, eventos, gestos bern

m ueados, embora discreros, porque solenes, calados.

Em vez de "partes" a analise apreende ondas, cujas ver-

t H I l S se tocam e se unem ~o movirnento semantico geral.

Illecafora e tanto mais verdadeira quando se nota que

IIIHl das passagens de urn momento ao outre ocorre den-

IIII do rnesmo terceto e ate do mesmo pedodo.

Tl'anscrevo 0 texto, assinalando com barras duplas os

IlIn'li05 de viragem em que a narrativa inflecte de maneira

ll 'II.~(,~el.E lembrando urna sentenca incisiva de Maritain:I I t iyO de toda particao e distinguir para unir. )

~/)

!j

~

~

_ f : -].

-+_"

A MAQUINA DO MUNDO

"E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde urn sino roueo

sernisturasse ao sam de meus sapatos

que era pausado e seco; e avespairassem

no ceu de chumbo, e suas forrnas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridao rnaior, vinda dos montes

e de meu proprio ser desenganado,

10 1

2 Rio de Janeiro, J o s e Olympia, 1962.

100

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Ceu , inferno

a maquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper ja se esquivava

e s6 de 0 t er pensado se carpia. II

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem ernitir urn som que Fosse impuro

nem urn dado maior que 0 roleravel

pel as pupilas gas tas na inspecao

continua e dolorosa do deserro,

e pe la mente exausta de men tar

toda uma realidade que transcende

a pr6pria imagem sua debuxada

no rosto do misterio, nos abi smos.

Abriu-se em calma pura, e eonvidando

quantos sentidos e intuicoes res tavam

a quem de os ter usado os ja perdera

e nem desejaria recobra-los,

se em vao e para sempre repet imos

as mesmos sem roteiro tristes per iplos,

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre 0 pasto inedito

da natureza mitica das coisas,

assim me disse , embora voz alguma

ou sopro au eeo au simples percussao

atestasse que alguern, sabre a moritanha,

a out ro a lguem, notu rno e mise rave l,

em coloquio se estava dir igindo: 1 /

"0 que procuraste em ti au fora de

102

"A maquina do mundo" entre 0 s lmbulo e a a legor ia

t eu ser rest rito e nunca se rnostrou,

mesmo afetando dar-se au se rendenda,

e,a cada ins tanre mais se retraindo,

olha, repata, auscuIta: essa riqueza

sobrante a toda perola, essa ciencia

subl ime e forrnidavel, mas hermetica ,

essa total explicacao da vida,

esse nexo primeiro e s ingular,

que nern concebes mais, pai s tao esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumisre . .. ve, contempla,

abre teu peito para agasalha-lo", //

As rnais soberbas pontes e edificios ,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

distancia superior ao pensamento,

os recurs os da terra dominados ,

e as pa ixoes e as impulses e as tormentos

etudo que define 0 ser terrestre

ou se prolonga ate nos ani rnai s

r.l chega a s plantas para se embeber

n o sono rancoroso dos minerios,

(h i volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem georne trica de tudo,

l'0 absurdo original e seus enigmas ,

suas verdades al tas mais que todos

monumentos erguidos a verdade;

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A treva rnais estrita ja pousara

sabre a estrada de Minas, pedregosa,

e a maquina do mundo, repelida,

.;:.._------

C e u , inferno"A maqu ina do rnundo" entre 0 stmbo!o e a a le go ri a

e as rnernorias dos deuses, e 0solene

sent imento de morte, que floresce

no caule da existencia mais gloriosa,

tude se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,afinal submetido a vista humana. / /

se foj miudamente recompondo,

enquanro eu, avaIiando a que perdera,seguia vagaroso, de maos pensas."

Em uma primeira tentativa de aproxirnacao podern-

~I" ~ J ,n ru b tl tu l os a os seis rnomentos: (a) 0 e ne on tr o n o m ei o

,I tI' / f lminho; (b ) a a bertura da m dq uina do m undo e 0 anun-

In t i l ! { . sua fo la ; (c ) 0 d is cu rs o d o m u nd o; (d ) a ep ifo nia d o

I I IhN!' rso; (e) a r ec us a d o eu: (f) 0fecham ento do m un do e a

, I , d t d d o eu J: c o nd ic d o d e e a mi nh a nt e.

Mas, como eu re lutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pais a fe se abrandara, e mesmo 0 anseio,

a esperanca mais minima - esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crencas convocadas

, presto e fremen te nao se produzi ssema de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, nao mais aquele

habit ante de mim ha tantos anos,

105

Nel mezzo del cammin . ..

Quando a poema se abre, ji cornecou a viagern do

fhlll'lIdoL pela estrada de Minas e do mundo. 0 hornem se

I h u 1mmeio da travessia, e a sua fala tarnbem: "E como

II [ u ilm ll ha ss e v a ga rn en te . .. " .

() prirneiro signa e uma conjuncao coordenativa (E),

IIII /,Ir e urn percurso que continua no tempo e no espas:o.

( ~omo did. 0poeta que algo esta em curso, sem prin-

II' II, ne m rota, nem termo fixo (urn andar vagamente ) , e

III I l lgo aconteceu no interior desse fluxo temporal? Cha-

II IItc~n<;:aopara 0usa de certas esrruturas gramaticais

fI' ptlt·Jodo unico e entrancado, que enfeixa os quatro

I 1 1 1 I I ' u 5 tercetos. A construcao e classica, em tenso equi-

1 1 1 1 1 , V~iri.asoracoes subordinadas, presas entre si, com 0

I", II;U modo subjuntivo ( co m o e u p a lm il ha ss e; e [como]

passasse a comandar minha vontade

que, ja de si voh ive l, se cerrava

sernelhante a essas flares reticentes

em si rnesmas abertas e fechadas;

coma se um dom tardio ja DaD fora

. apetecivel, antes despiciendo,

baixei as olhos, incurioso, lasso,

desdenhanda colher a coi sa oferta

que se abria gratuita a meu engenho. / /

104

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u m s in o r ou co s e m i st ur as se ; e [como] a v esp a i ra s sem; e [como]

s u as f o rma s p r et a s s eJo s sem d i lu in d o) , precedem a oracao ca-

pital, de que dependem: a m dq uina do m undo Sf entreabriu.

o modo verbal escolhido, com a sintaxe a latina, su -

gere uma atmosfera grave: 0 paema lida com 0 destine.

Quante ao contraste dos tempos, denota uma oposicao de

relevo semantico: de urn lado, a travessia 6 urn continuo,

nao finito, que 0 passado imperfeito transp6e fielmente

( pa lmi lh a ss e , J o ss em d il u in d o . .. ) ; de outro, rompe 0 evento,

a inesperada epifania do mundo, 0 que e urn fata isolado,irreversivel, enunciado pontualmente pelo passado perfei-

r1i to: entreabriu.

t , . . . . '3 1 ; _ A d i fe re n ca entre 0 processo e 0 acontecirnento, entre

'r. 4i~devir e a aparicao, conhece desdobramentos ao longo do

: I ~ irtexto. Nesta altura da analise, int.eressa apanhar os proce-

) ifdimentos de linguagem que configuram urn certo climaexistencial, urn pathos que afeta 0 narrador antes da abet-

-1 tura da maquina do mundo,

l i . " " ch NdoSversos indicDiais'Saor,m)asigdnificante ~aorm

d

a~i1)('l,

r : ave a estetica e e. ancns pro uz uma smtese e ima-

)...Il- gem e estado anlmico, 0 discurso entra em plena regime

das correspondencias que tornam possfvel a formacao de

uma estrutura simb61ica. Entre 0viajor e a Natureza cons

tituern-se analogias em torno de qualidades que passanl n

ser comuns: a lentidao e 0 negrume.

LENTIDAo. 0arrador percorria a estrada palmo a p a l

mo, sern pressa nem rumo fixo: v ag a men t e. E 0 som do

sapatos - meronirnia dos seus passos - era pausado. Do

lado da Natureza: as aves pairavam, isto e , voavam cornu

que paradas, adejavam apenas sem sair do rnesmo slt!o, I'

as suas formas se dilularn l en t amen t e. Urn cornpasso de 1 1 1 1

106

"A maqulna do mundo" entre 0 simbolo e a alegoria

» . . . . \

'o~~sco demorado sustern 0andamento interior deste pri- ~ t. :

metro tempo. t ; ; : ;

N~GRUME. Para dar 0 tom a paisagem, as expressoes ~~

N'"Q varias: 0fic ho d a tar de , 0 s in o ro uco , 0 c eu d e c hum bo , a s''_ > ,

/ ( J ' 1 ' ; r n a s r e t a s dos passaros, a e sc ur id do m a im ; v in da d os m o n - s : - ; _ I

Jr!~' .e tambem (e aqui a fusao e sintatica, alern de simboli- 'j,in ) uinda do meu proprio ser desenganado. ~~

No meio do poema, volrara a correspondencia tonal: ~

'Ill 'Inconta a aparicao da miquina do mundo se sabe "urn ~

t I'notumo". IIw_ _£le.("' vL O tuS V"t.xJ « :>

o arnbiente ressoa na alma ea ensombra. Ressoa: vivemIIll1bos0mesmo tempo lento. Eo ocaso e cornum a ambos.

~6 existe processo sirnbolico quando as imagens se en-

Illf'/:atn em urn solo de afinidades. Symbolon e juncao dos f.! fc'I'cntes, costura, amplexo. 0 que 0 eu narrative desco-

IIII', nesta primeira passagem, e a inerencia ao seu mundo <

II' W ic ). , enquanto universo familiar . Dai, a i inica notacao 1. onntfica precisa, a estrada de Minas pedregosa, queabre ~

h,d IH 0 poema, e que todo leitor de Drummond reconhe-

(limo figuraconatural, duramente lapidada no curso da

Ihl IJi(Jgrafia poetica:

"Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmenre nasci em Itabira.

Por isso so u triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calcadas,

Oitenta por cento de ferro nas almas.

B esse alheamento do que na vida e porosidade'------..._

j ~ A J - Y . < , _ [e cornunicacao." -,

! / ' I ' i j J J ' " - ' I~ ("Confidencia do irabirano", /

~ tfr~\ em Sentimento do muwJ , ; )

107

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46

C t : J': ;

:;

j _ JsS~

4 - , J :

!i ~

I sI c 1I

~

(_ 0 V1 \J L oL o

c s u . in~o ~ f ~ ' ~ U L \ t U)r. 'c>tc\.A(<l.

Av- o.r=I'J~\.). .JL.o ~>D.~

[ta-bira: arvore de pedra; madeira de fibras ferrosas,

impenetraveis.

A esse contexto singular e diterenciado, que entretern

com 0eu relacoes de coextensividade; a esse espaco v iv ido,

que lhe serve de rnetafora para conotar os seusmodos de ser;

a essa duracao da experiencia quotidiana e coricreta, opoe-se a rnaquina do mundo:

"a maquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper ja se esquivava

e 56 de 0 ter pensado se carpia."

o corte entre uma situacao e outra e vis fvel , embora

( a fio sintatico mantenha bem unido todo ° discurso. Emplena locus de convfvio sobrevern a imagem de um ser es-

tranho, que, apesar de pretender a figura da totalidade, ealheio ao sujeiro a quem se apresenta, repentino,

A partir dessa epifania, que logo se rnostrara em glo-

riosa procissao, 0 narrador vai refluindo para 0 passado e

lernbrando 0quanto se empenhara, inutilrnente, na com-

preensao desse mesmo "mundo",

No repertorio da poesia brasileira e taro que a lura fius-tica pelo conhecimento em si mesmo venha assinalada de

forma tao dramatica, como se fora um embate de vida e

motte. Os verbos, em geral s6brios no mais discreto dos

estilistas, confessam aqui violencias insuspeitadas: rompel'

a rnaquina do mundo; e carpir-se pelo fato de ° ter deseja-do outrora. Carpir-se: a palavra e forte, quer dizer "lamen-tar-se", "chorar de arrependimenro"; e, se a lermos no sell

registro arcaizanre, que, de resto, afina com a diccao do pot:..

ma, vale "arrancar os cabelos de dar" , como 0azem as car-

pideiras no velar do morto. Mais adiante, 0 poeta recorda

108

"A rnaquina do mundo" entre 0 s imbolo e a alegoria ~~~c.lLL

.\ru - l b z n CGu--~ '(rS7 Q_J

r a as "defuntas crencas" em uma realidade que seja inteli-

gIvel para 0 homern.

Hi, pois, uma hist6ria por tras desta oferta a prirnei-ra vista gratuira e rnisteriosa; e e uma historia de esqui-vancas e de malogros reiterados,

'V.ffJ j , , 1 . 1 1 "l~ &;)

Da aber tu r a a o co n v it e c - /, 0 t,CL~Ln ~~~

~<A ...._ 'VV\ 'VV\p "V\.J___.:_

o s e rmo su bl im i s convem a este relance de figuracao

'osmica, cujo rnodelo aha na tradicao de nossa lingua se

encontra no canto X de Os lu sf a da s ; e 0momenta em que a

d 'usaTetis descortinaa Vasco da Gamaavisao do Universe:

"Aqui um globo veern no ar, que 0 lume

Clarissimo por de penetrava,

De modo que 0 seu centro esta evidente,Como a sua superHcie claramente"

(X, 77)

< 'Uniforrne, perfeito, em si sus t ido ,

Qual, enfim, a Arquetipo que 0 eriou"

(X, 79)

C O V e s a q u i a grande maquina do Mundo,

Eterea e elemental, que fabrieada ~=-

Assim foi do Saber, alto e profunda,

Que e sem principio e metalimitado."

( X, 8 0)

~ o que diz 0 epiteto "rnajesrosa", atribuldo a maqui-

III, U I 1 l predicado novo, drummondiano, se acresce ao da

Ihl Imponencia: ela e tambern "circunspecta": espia, aten-

1D 9

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Ceu, inferno'.'Amaquina do mund,o" entre ~ simbolo e a alegoria r: / •

,I Q " " . ,. ." " I v da. 7 < t ? p l j _ _ ? f ' , ~v ..e " (() j) 01 I> .::

Ill'llimento. E percorre-se 0 trajeto que vai de Kant a Scho-

p ' nhauer, da filosofia crftica a intuicao da dor universal:

ta, em todas as direcoes, e, como a Esfinge, reclusa na sua

essencia petrea, e capaz de olhar e, muda, significar. Nadaresta da transparencia luminosa do cosmos renascentista,

A cena que, em Camoes, se afigura objeto de maravi-

lha e devocao, pois "fabricadal assim foi do Saber, alto e

profunda", decai, no poeta moderno, a mundo desencan-

tado, sem deuses nem rnitos (so a memoria destes), mas

nem por isso menos enigrnatico e temiveL Ele ja 0 dissera

na "Elegia 1938", quando a humanidade parecia ter entra-

. do no tunel sem tim do nazismo:~

"Nem existir e mais que urn exercfcio

de pesquisa r de vida urn vago indlcio ,

a provar a nos mesmos que, vivendo,

estarnos para doer, estamos doendo"

( "R e lo gi o d o Rosar io", em C l a ro e n ig m a ).

Ulna antecipacao do micleo tematico de "Amaquina

I d" "0 . "dI tllun 0 enconrra-se no texto em pros a erugma , e

M u m s p o em a s , cuja situacao iniciallhe e sirnetrica:"Arnas a noire pelo poder de aniquilamento que ) l

encerra/ e sabes que, dorrnindo, os problemas te dis- 11

pensam de morrer.! Mas ° te rrfvel desperta r prova a

existencia c ia Grande Miquina/ e r e repoe, pequenino,

em face de indeci fraveis palmeiras." J

;L

~

-r dEntao, a rnaquina era a Egura metonimica da sociedade,

~ Agora, e a propria relacaodo eu com a mundo exterior

6 que vern enfrentada de modo imediato e em um discurso

.: r de tensao maxima. Sobe ao primeiro plano da consciencin

i- 1 j a busca de ,un: s~~tido que 0 sUj:ito empree~deu, e qu~'

'1 1 forma a pre-his ton a da sua narranva, As p u pi la s g a st as e I

. " , 1 ~ m en te e xa us ta d e m en ta r (0 pleonasmo ?i~ d.a int~~sida.'ll '

~ - . : - t ~ do processo) saoo remate de uma angusna cogll1~lVaqlw

: : ! > 1~e debateu em van contra 0 rnuro de pe~ra da re~hdadu:

~ <, J ., 0horizonte de pensamento tangencla a kantiana COt ,1 I

~ l_ e m s i, a n6umeno, incognosdvel, alem daqueles fen6mel1().~

~ que sao, no poema, as imagens do mundo apenas esbocadus

no rosto do misterio, Ou no abismo (abyssos. sem fundo),

o afa de conhecer veio a consumir nao s6 as olhos ['

o intelecto, mas a alma toda, cuja condicao de existir C II

" As p ed ra s c am in ha va m p el a e stra da . Eis que uma '))

j , il l 'lna escura lhes barra °carninho."

A~cas pedras, aqui antropornorfizadas, conjurarn-se

III IIIn "esforco de compreender" a Coisa, mas esta e "inter-" "B . h d i b "II I IIIre , arra 0 carrun .0 e me Ita, 0 scura.

EuCt'etal1to, por urn ato de absoluta gratuidade, que

Ilnnn 0arbftrio onipotente do outro em vez de resgata-

In . Imdquina do mundo chama "os sentidos" e "as intui- >, ~ d t ! viajante "a se aplicarem sabre 0 pasta inedito da

II" l ' ' 1 , U mitica das coisas",

t) 'Clnvidado ji rodara nos "mesmos sem roteiro tr is-c _ , . . , 1

p 1 , 1 ' i p los" , exp ressao densa do drculo vicioso, aparente-

III

N imsaldas, eterno retorno do mesmo on de se move VI ' l l , l t e l indagador ate a exaustao, Nessa altura, a miquina

I I , i " , I I 1 ' n s sintomaticamente sern voz. A sua convocacao rI I I I d I, nao passa p e lasrotas da intersubjetividade: um dia- IfI,ll, impossiveis, pois nern a Coisa emite som algum, nern _

ldado, "noturno c miseravel", c dado re'4~

-~ eJ"~0-111

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C a u , Inferno " A m O ( lU ln o d o rnUlldo" entre 0 simbolo e a alegoria

i~ " ,I,.:l" " [ " ' r ~ ~ " " i ( . ,< . . ~ C _ C _ ~ ~ ~

H I' 1I11i ,to, permanece exterior a vontade faustica: e 0 enig-1 1 1 1 1 ,'lira 0 qual aponra a alegoria da miquina do rnundo.

A descr ic ao, arnpla, desdobra-se por sete tercetos en-

Illdlidos, Nao se trata de uma figurac;:ao organics do Uni-

I~I"r na s d .e uma sucessao de atr iburos que se perfilarn em

Ihlm :l i rn a generalidade, .A scdac ;: ao junta abstrato com abstraro, 0 proeesso de

1IIII1l.cnU e curnulativo, e tudo vai submetendo a estruturaI W I I '[ ' sea da Coisa que, afinal , e sumariada sob a expres-IIIIlpldar de ' •

"estranha ordem geornetrica de tudo." / \D1 S "a:

A Imilise dos termos que nomeiam os elementos do

II III ' iseema poe a nu a carencia dos seus liames com 0

j ·1 , / ' 0 " d e narrador, Nao hi nesse discurso "muita exigen- ?~

II'~II' I @ detalhe", precisamenre 0 que observou Benjamin ':::

".III 'I' ve r os modos estilfsticos da alegoria, Os aspectos &I ' t IIu l n r e s nQS q uais a vida universal se prismatiza sao (

It I , " d u 5 ; reduzidos, enfim supressos em favor de uma ;;

I J 1l,1~'n(1) generica (designatio: significas:ao de cirna para '~

Ill. que rudo abraca e nada estreita em suas malhas ex- I;:- 'Illllf'l~celargas: ;;, ; i . L f ~('f1.C( 0 -1,III'II'los.ciefimdores tam am 0 lugar de Imagens capa-

I! I t 'ol'ciar lernbrancas no espectador, 0 sangue dos

IlItI'IIIN e dos dias, que corre nas veias da Hist6ria dan-

I 1111'CU I ' e calor, dessora-se em frases vagas como: )

"0 que nas oficinas se elabora," , ~

H r - r d cl ! o 1"I~ Gluepensado foi e logo atinge

dL~ti!1.nciauperior ao pensamento,"

, b I!vV7 c_b~. ~.~~<I 1 13 (

o "noturno" reintroduz a simbologia da abertura,

Quanta ao estado "miseravel" do homem perante a

i m ag o m u nd i, volta em textos de filosofias diversas,

Misero e 0 naura cristae representado na epopeia d G

Camoes, a que nao falta urn veio de Idade Media outonal:

"Faz-te merce, varao, a Sapiencia

, g i L s" c",F . ~s Suprema de, co'os olhos ~or~or~is,

~veres 0quenao pode a vacl~~,Cla

Dos errados e miseros mortals

(X, 76)

Misero e 0 Islandes que, no dialogo de Leopardi , foge

sem cessar de uma Natureza indemente de fogo e neve.

Misero, sareastieamente misero, e 0 sujeito do delirio nas

Memorias P ostu m as d e Brds Cubas , que, arrastado pel os c a-

belos ate a . origem dos seculos, ouve de Pandora a declare

Mlet.. <;:aodo seu nada. '"" .Em Drummond, a percepr; :aodo intervaleentre a n1[1-

quina do mundo e a seu espectador e tao aguda que s6 (I

. ..1silencio pode significa-la, 0 silencio de ambos marca a C I . 1 '

~a~legOria no poema.

i ;~~cJ)~I

o mundo a lego ri zado

. 1 . E, no entanro, hi 0 discurso. Urn so perlodo cerradu

' . J , em si mesmo, Pelo seu teor pode-se reconstituir a que 1(

-t ria sido 0 objero da "pesquisa ardente" em que se consu

S ):- 'mira a viajor, ' Iudo quanta ele, "ser restri to", desejou corn

~ preender em tentativas frustradas, rende-se agora na I 1 1 l l~ ,~f\ insolita das ofertas, 0 dom, enquanto gratulto e porqm

'") !)

112

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o que seria peculiar a existencia dos homens, 0 qUt"

na o se totaliza nunea em razao da variedade inesgotavel dONI

seus perfis, e subsumido no mais alto grau de abstracio

("essa total explicacao da vida", "esse nexo p r ime i ro e si n

gular"), au achatado ate 0nivel das plantas e dos animaln

"tude que define 0 ser terrestre".Prevalecem formas gramaticais neutras, genericas: (.1

que, tudo que.

Uma so metafora revolve as rafzes familiares do pOCllI.

e muda a registro alegorico em simbolo animista:/)

~ "0 sono rancoroso dos minerios." ./1./)

Par essa unica fenda, entreaberta em urn atimo, e po s

sfvel divisar as Minas, hahira e suas pedras, 0 subsolo d e

orgulho, a dar da memoria. Mas 0conjunto, uniforrne e m

seu matiz de cinza, afasta qualquer conotacao intimisra . .A

enfase e dada ao tema do "absurdo original e seus enigmas,/

suas verdades alras mais que todos/ monumentos erguidos

1a verdade".

~~ Quando 0 discurso passa da linguagem cognitiva (ex

~

p ii ca (f io , n ex o, e ni gm a , v er da de s, v er da de ) a u~a referenda

a vida, esta e neutralizada em suas celulas, pOlS0 que flo.

~

iesce no caule da existencia e 0 "solene sentimento de mot-

~ ~ te". Que reino e este, qualificado como augusto pela s u n

1 majestade, mas que, exposto em procissao de apoteose, c i d :

\ i\ sinais da propria agonia? A ordem que tern por funda-

mento uma simetria irnplacavel e , niio por acaso, tida par

1estranha.

. Walter Benjamin, empenhado em resgatar a potencia-

, b lidade dialetica de toda alegoria, entreviu no~ seus meca-

. .. .. _ iv . tnismos de reificacao vestigios de opress6es milenares:

- r : : i~p:s -

"3

"A r naquina do mundo" ent re 0 simbolo e a alegoria

"Apersonalizacao aleg6rica dissimulou sempre a

f a t e > de que a sua missao nao era personalizar alga pro-

I 'l 'ioda coisa, mas, ao contrario, dar a s coisas uma

fMma mais imponente, arrnando-a como pessoa."3

o poeta sabe d isso , por suas proprias vias, quando topa

u o meio da estrada com a Coisa , e a converte em alegoria:

Ih N \ll'a e renitente ate mesmo no ato de oferecet aos rnor-

lit! us seus tesouros. "A natureza inteira e personificada, nao

! I . ' I L s e r interiorizada, mas para ser -- desalrnada.r ''

~

A recusa htLiD ~C\ a : 0 ~ C £ )

o rnundo sob a forma de emblema e 0 teatro da alte-,Id.lle, e aqui assiste razao a Lukacs quando, na esteira de

(iu the, trava alegoria e transcendencia no mesmo proces-_1 1 intelectual.?

Na historia interna da obra poetica de Carlos Drum-

umnd de Andrade, a consciencia sempre reclamou, em face

II!numdo, os seus direitos. Dai, a forca de negatividade

1 1 1 1 ! (trompe em versos como estes, que nem 0 embalo da

Illluiga a lc an ca d i sf ar ca r:

"Que diz a boca do munda?

.3 Walter Benjamin. O ri ge m d o d ra ma b ar ro co a le mi io , a pu dG e or g1 1 I 1 ( t l . c ~ , .Esttftica, Barcelona, Grijalbo, 1967, vol. 4, P: 462.

4 Frase de Cysarz, estudioso da [Irica barroca; Benjamin a trans-

IIvena obra mencionada.

5 Georg Lukacs, "Alegorla y sirnbolo", in Estetica; pp. 423-74 .

115114

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Ceu, inferno - - 4 ~ G~

~k~~1eu bern, 0mundo e fechado,se nao for antes vazio.

a mundo e talvez: e e s6.Talvez nem seja talvez.

amundo nao vale a pena."

("Can tiga de enganar", em C l a ro e n ig m a )

E urn modo de resistir, este, todo seu, obliquo e pCI'

tinaz, E que conhece urn veemente contraponto, manitestn

por tantos outros poemas, no desejo incansavel de amar,

sempre reiterado apesar, ou por causa, da morte que pul

sa e espreita na carne de todos os homens. Amor e mOI'I'I'

rondam urn ao outro, sem cessar.

E ''A ,. d d " , dm .. maqumao mun 0 , eo gesto a recusa qlil'

se risca em primeiro plano. Nao se trata mais de urn e, gilt'

sela a continuidade de uma viagem ("E como eu palmi,

lhasse vagamente ..."); a hora traz 0memento adverso domas: "Mas, como eu relutasse ..." .

o animo e reticente. 0 passo para tras desencadela

urna acao interior atentarnente seguida e escavada nos sere

tercetos que comp6em essa unidade de significacao. 0 el:l

quema sintatico e 0mesmo que opera na abertura: oral):(k,~

modalizadas no subjuntivo - modo incerto e dubio - (!

amarradas entre si enquanto preparam 0desfecho expres-

so na oracao principal. No corneco, a figura regente era iI

da maquina do mundo que "seentreabriu"; no final, eo aro

de retracao do eu, oposto ao mundo, que "baixa as olhos",como se os fechasse para nao poder ver.

Nessa contraposicao, macerada em varias passagens do

discurso, esta a chave sernantica do poema.

Nao e univoca, porem, a interpretacao deste baixar o.~

116

VA rnaquina do mundo" entre 0 simbolo e a alegoria

, 6 - c L L ) < , c U ' l (J7 r r U l A - 7

'h " I"incurioso, lasso,! desdenhando colher a coisa ofer-

t ) gcsto pode ser entendido como a fixacao de urn rno-

II d~ 'ser proprio do viajor, ou entao significar a ultima

" ' I " d e . . : urn desa f io de que ° poema div i sou as lutas e as

I Iflllas n el m ez zo d el c am m in .

A prlmeira leitura, de cadencias ontol6gicas, detem-seIIl·gtttividade, tomada em si mesma, e que parece mo-

I 111''01' dentro 0 ate da desistencia, Fastio, aborrecimento,

'p i ItU'tfl vitae au, lembrando 0 belo rerrno cunhado pela Q(

1I1"~lamedieval, acidia (do grego, via latirn, acedia). Que t~, 1 1 " 1 tusencia de cuidado, tibieza para com as coisas mais

t l , l I n l i e s , preguica do coracao, "torpor espiritual que irn- ;.

1 " all' de encetar 0 bern" au procurar a verdade, conforme

11I1111~aO precisa de Santo Tomas." Da esfera etico-religiosa

I II l JN e nasceu, e que sobrevive ainda na fi losofia de Kier-

~ ~~tnf~d,ara quem a melancolia e pecado capical, 0 con-

1 1 0 passou, com variantes de linguagem, para os pessimis- _

neili,cais,Leopardi e Schopenhauer, e existencialistas co-

1 1 1 1 1Irddegge~ e Sartre, Em todos, 0 enfaro diante do mun-

III l~urna experiencia fundadora, pois revela ao homem 0

•Irnmo gratuidade ou pura indiferenca, Os adjetivos "in-<

1 1 1 1 ( 3 1 1 0 " e "lasso", que 0caminhante atribui a si proprio, e -'

~ nf 'l Ilfao"desdenhando colher a coisa oferta", poderiam

uutar-se entre asmanifestacoes dessa tendencia do espfri-

' " h uma ne . d._u- : ; ; ~1...---'M a s ha uma segunda lei tura que me parece dialetizar

interior, pois tenta compreender 0 processo que leva aowdo de addia. Esta nao e urn dado, uma expressao in-

..«,~-;;tLct/

fi E rn S u m ma Th e ol og i ca . I I, I I, q. 3 5, a. 1.

117

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variante do carater do eu narrador, mas procede de uma

historia de empenho sobre 0 real, uma paixao da mente,

~ue os termos "fe", "crencas", ":s~era.n<;a", "anelo" e "an~

seio" tesremunham com toda evidencia, A recusa torna-sc

inteligfvel a luz desse passado de experiencia e ~esencanto.

A indecisao do viajor em aceitar a dom tardio do m~n~o do e urn indlcio de que 0 seu nd o final veio se~do curt~~.o

no tempo. A des c ri c ao da vontade i rr e so l u ta , o s ci lan te , ap oi a -

se no simile das "flo res reticentes em si mesmas abertas e

(CC fechadas", imagem de uma alma dividida entre escolhas

diflceis, tanto que provocam a aparicao inespera~a dessc

fantasmitico a lt er e g o: "e como se ou tro se r, nao rnais aque-

le i habitante de rnirn hi tantos anos '; passasse a cornandar

!('e ' l l minha vontade".

1'rV r G\ Hi; ponanto, urn l ti ne ra ri um m e nt is que.m~lopo,\11

(

urn movimento de procura, ardor, frustracao, Inslst~nCLl1i

enleio, enfim rejeicao: 0 que d a a mudanca de desejo en I

recusa urn significado de desengano viri l, e nao apenas 1 . 1 1 l !

, i= tom de fastio. d o i ; , v C G \ , . . . . J - v : A l : f 0'J , ' ~ J

A . r . 7 ilU- r C L r 1 P 1 f - l : _

A ,} , ~ ; v v 2 - . \ A . . ( . A . G \ A ca min ho , de n ov o

Desdenhada a visao da Grande Maquina, 0 carninhun

te regressa ao seu mundo, a estrada de Minas pedregosa, 1 \

noire ji se fechou de todo, e e percebida como "atreva m I~i "

estnta . . 'I'Torna-se possfvel, com 0 retorno ao conte~to f a m l l h u ,

dizer a correspondencia entre a sujeito e 0 unrverso il,I,1

t riz de anti gas e novas metaforas:

118

"A maquina do mundo" entre 0 simbclo e a alegoria

"E noire. Sinto que e noirenao porque a sombra descesse

(bern me importa a face negra),

mas porque dentro de rnirn,

no fundo de mirn, 0griro

se calou, fez-se desanimo.

Sinro que nos somas noire,

(.

que palpitamos no eSCUfO

e em noire nos dissolvemos.

Simo quee noire no vente,

noire nas aguas, na pedra."

("Passagem da noire", em A rosa do povo)

Altlgoria e simbola, duas formas de conhecimento e de

Ill'/lSaCI e, ao mesma tempo, dais modos de tratar 0 sig- _ Y f . ,IIIII' {eieo: "cifra da transcendencia" (a locucao e de jas- ~~

J I ),. 1 alegoria, pesquisa da imanencia do eu no Outro, e J

I I I III1II'() noeu, 0 simbolo.

(Jllando prevalece 0 regime alegorico, a Natureza e a

J II/win comp6em antes urn t he at ru m m un di do que uma

III II I l~U.O que envolva 0 sujeito em carne e osso e 0 afete

"hi p:'lI.ticularidade biognifica. Isto posto, nada impede "> , ; > '

II ,.1 ul'gC>I'iaforce 0lei tor (ou 0 especrador) a perceber-

I 1 11 11 1 tim ser aleatorio e vulneravel, lancado em urn rnun-

1 1 1 1 1 ' Ihe c estranho.

JlIII t tA rnaquina do mundo", 0processo alegorico

I t l " l qnnse todo 0 espac;o da significac;ao, reservando a sI l d l l j n s a possibilidade do convivio especular do nar- Y - ; >

In m a paisagem. Tal comnesti dito na arte poetica

nunmond, 0mundo nao se reflete na alma, nem "a

I l I H : l " rima com "a incorrespondente palavra ou-

119

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tono", A opcao por urn tratamento musical de ruru I III

des talvez explique a paradoxal harmonia de "A 1 11 ij:ll

do mundo", escrita segundo 0 modelo da terza " l , / t I I ( 1 1 i 1 , 1 1

tesca, mas . .. sem rima, ji que os seus d e ca ss ll ab os ~ hIII

gorosamente brancos.

Dante, no Canto XXII do "Paraiso", tendo I lubidu 1 1 1 1

~ oitavo ceu - 0 das estrelas fixas, sob 0 signa de (l'l1iII~

t! ) "presso all'u.ltima salu.te" -. recebe de.Beatriz o.convite pll'll

I

contemplar 0mundo inteiro a seus pes, "com olhos IIUI

d "e agu os :

II

Cau, inferno

/

flllll'" till 1llIliHltl" entre 0 simbolo e a alegoria

1 1 1 1 1 1 1 1 1 '!l u i undo com juizos de valor tao sobran-

I 1111,' ,IIIII 'lm ~t1esq_uinhoque fa~dos homens feras!"

e I '!lOHm·llemnl1Itamente rnaIScomplexa, e a sua ""

\ III III '1'1 cia ciencia, infinitamente mais irdua. E

I I " " I,quando ousa falar do cosmos, traz no seu

I I ' I II reento d a perplexidade:

I I I lQl j , I I1CO ell, avaliando 0 que perdera,

_.f\ull vagaroso, de maos pensas."

"Col visa ritorna i per tutt e quan te

le set te spere, e vidi questo globe

tal , ch' io sorr is i del suo vii sembiante."?

("Paraiso", XXII, 133-35)

A pequenez do nosso mundo, vista do firrnarnento, l i l Ysorrir ironicamente 0 poeta, que e sempre 0 juiz soberbe:

"L'aiuola che ci fa tanto feroc i

[ . . . J

tutta m'apparve da' colli aile foci."8

I ("Paraiso", XXII, 151 e 153)

I j Mas no poeta nosso conremporaneo ja nao vigoram as

;J ~obustas certezas que forravam a alma do Exilado e lhe per-

,j1~Traducao literal: "Com 0010me volrei P'" todas quantas/

= : l ; 5> ~ sere esferas, e vi este globol tal, que eu sorri da sua viI aparencia".

~ + . . . . J 8 Traducao literal: "0 canteiro que nos faz tao ferozesl [.. .]1 to-

do me apareceu das colinas a s fozes".

12 0 12 1