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Durante a chuva

Durante a chuva

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conto do livro Contos do amor e da morte

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Durante a chuva

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Uma interrupção, uma interrupção fria que paralisa inelutavelmente o ânimo. Mas a mulher, com seu material de trabalho transbordando de seus braços, ainda assim caminha sobre os tacos estalantes e segue. O que é isso, uma sapatilha de balé? Estranho. Seu olhar é lento e sereno. Os óculos deslizam para a ponta do nariz a fim de que veja cima o que não necessita grau. Aliás, o que o grau embaça. Aconchego. É a primeira coisa que lhe ocorre ao ver o tapete do escritório. Um aconchego morno. Uma vida morna. Terá saudades talvez do atrevimento de mãos entre suas pernas sob a saia, ah, que loucura, ali mesmo e com o pessoal da limpeza a ponto de entrar... A tentação se afasta. Bom dia. Bom dia. Quando ela passa, ainda provoca excitação e inveja. Não está tão acabada quando pensa.

Prefere chegar quando não há ainda ninguém, dispersa-se com facilidade quando o expediente começou. Vozes, passos, basta. Como suportam? E sorriu novamente ao responder outra saudação. Prepara então seu melhor semblante. Assim. É preciso. Mas noutros momentos, quase diria noutra dimensões, as deusas jubilosas esperam ainda uma liberdade real. Não estão algumas ali na chuva, agora mesmo, espreitando a felicidade que constantemente lhes foge? Quanta vida além dessa janela...

Por algum tempo, ao ouvir esse arfar molhado das folhas, ela desejava que houvesse um correspondente real de tais sentimentos, como se, quem sabe aquela sapatilha na entrada, representasse o apelo de uma outra vida, ainda misteriosa, assim como ao pensar nas coisas do trabalho ela não veja o escritório, mas

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o homem a quem permitira que se fizesse sonho e suas mãos. Um funcionário novo, imagine, mal chegar e logo ir invadindo os segredos dela. É nessa memória paralela que o guarda.

A chuva pergunta como é possível que os mortos incomodarem a serenidade dos vivos, como o que passou não passa, antes desenvolve-se para todas as direções: um toque são todos os toques, todas as carícias que jamais foram feitas. Ela sim parece morta e seus sonhos são fantasmas. Não há coisa alguma simples nessa dimensão. Não pode compreender seus colegas decerto por isso, porque estão vivos.

Achegou-se à luz direta da luminária, receosa das sombras do dia escuro. Todavia, eis o sol, com força tal que atravessa as nuvens e a chuva, estará sempre ali. Imagina que o tempo irá firmar logo, talvez já à noite; mas prefere não pensar na noite. Não é fácil. Um dia nublado, uma manhã assim se parece demais com a hora temida da volta para casa. Não pode se dar ao luxo de uma crise noturna, há esse trabalho urgente. Sim, precisa ser entregue no dia seguinte. Mas é inevitável que lance ao infinito a pergunta. Por que?

Se pudesse responder, a sapatilha de balé não guardaria o silêncio daquela paixão furiosa, e o riso, o dever, a vida enfim, tudo estaria naqueles pingos que escorriam na janela.