E-book II Ensino de Línguas Materna e Estrangeira

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ENSINO DE LÍNGUAS MATERNA E ESTRANGEIRA: UM ESPAÇO PARA O DEBATE corresponde ao II volume da série que vem expor o trabalho dos membros do Grupo de Pesquisa em Linguística e Literatura (GPELL) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como também de outros colaboradores. Neste segundo e-book, contamos com o apoio da professora Isadora Gregolin (UFSCAR), que nos ajudou na organização, e do Professor Josenildo Barbosa Freire (UFPB) que contribuiu com um artigo. Em 2014 foi lançado o primeiro e-book, Literatura e sociedade: contemporaneidades, com vistas às investigações da terceira linha do GPELL, Literatura e sociedade. Este ano, 2015, nos dedicamos à segunda linha do grupo: Ensino de línguas. Como nesta linha se abrange as três habilitações (português, inglês e espanhol) do curso de Letras da nossa universidade, decidimos por um título que abarcasse as três línguas e, por esta razão, dividimos os artigos deste volume em duas partes: Sobre língua materna e Sobre língua estrangeira. No total, teremos onze artigos que tratarão de apresentar perspectivas para o ensino de língua materna e estrangeira.

Citation preview

  • 2015

  • Ensino de lnguas materna e estrangeira: um espao para o debate. /

    Gilson Chicon Alves, Moises Batista da Silva, Regiane S. Cabral de Paiva (orgs).

    Mossor: Queima-bucha, 2015.

    E-book

    ISBN: 978-85-8112-126-0

    1. Lingustica. 2. Linguagem e lnguas. I. Alves, Gilson Chicon. II. Silva,

    Moises Batista da. III. Paiva, Regiane S. Cabral de. IV. Ttulo.

    CDD 410

    Copyright 2015 dos Autores

    Conselho editorial

    Gilson Chicon Alves (UERN)

    Isadora Valencise Gregolin (UFSCAR)

    Moiss Batista da Silva (UERN)

    Regiane Santos Cabral de Paiva (UERN)

    Grupo de Pesquisa em Lingustica e Literatura GPELL

    Lder: Jos Roberto Alves Barbosa

    Vice-lder: Lucimar Bezerra Dantas da Silva

    Arte da capa

    Jos de Paiva Rebouas

    Diagramao

    Regiane S. Cabral de Paiva

    Catalogao da Publicao na Fonte

    Bibliotecria: Elaine Paiva de Assuno Arajo CRB 15 / 492

  • Agradecimentos

    Ao Grupo de pesquisa em Lingustica e Literatura GPELL da

    UERN pela II edio do nosso ebook, bem como aos professores,

    alunos e apoiadores que colaboraram para este volume, por

    compreenderem a necessidade de pesquisar e divulgar aes que

    favorecem o ensino de lnguas, seja ela materna ou estrangeira.

  • "Diga-me e eu esquecerei.

    Ensina-me e eu me lembro.

    Envolva-me e eu aprendo."

    (Benjamin Franklin )

  • SUMRIO

    APRESENTAO .................................................................................................................. 7

    Sobre Lngua Materna

    I- ANLISE DE NARRATIVAS ESCOLARES: UMA NOVA PROPOSTA ................. 12

    Joo Paulo Pereira; Marcos Paulo de Azevedo; Wigna Thalissa Guerra; Lucas Vincio de

    Carvalho Maciel

    II- A INTERAO LINGUSTICA NAS PRTICAS DE LEITURA E PRODUO

    DE TEXTOS .......................................................................................................................... 32

    Moises Batista da Silva; Rissia Oscaline Garcia; Ktia Cilene David da Silva

    III- CONSIDERAES SOBRE A IMPORTNCIA DO CONHECIMENTO DA

    SLABA PARA O ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA ............................................. 43

    Gilson Chicon Alves

    IV- ENSINO DE PORTUGUS E VARIAO LINGUSTICA: TRATAMENTO

    DIDTICO DE VARIEDADES DIALETAIS NO MBITO ESCOLAR ....................... 55

    Josenildo Barbosa Freire

    V- O GNERO ANNCIO PUBLICITRIO: CONCEPES E PROPOSTA DE

    ENSINO DE LEITURA ........................................................................................................ 69

    Rissia Oscaline Garcia; Moises Batista da Silva

    Sobre Lngua Estrangeira

    VI- ANLISE DE PROPAGANDAS DE APARELHOS CELULARES: UMA

    PROPOSTA CRTICO-VISUAL PARA O ENSINO DE LNGUAS ............................... 88

    Jos Roberto Alves Barbosa; Myrna Cibelly de Oliveira Silva

  • VII- ANLISE DE ERROS: ESTUDO DAS ADAPTAES LXICAS PRODUZIDAS

    POR ALUNOS BRASILEIROS EM TEXTOS ESCRITOS ......................................... 103

    Pedro Adrio da Silva Jnior; Yordanys Gonzlez Luque

    VIII- ANLISE DAS DIFICULDADES ORTOGRFICAS DE BRASILEIROS

    ESTUDANTES DE ESPANHOL COMO LNGUA ESTRANGEIRA ......................... 114

    Maria Solange de Farias

    IX- CRENAS DOS PROFESSORES DE ESPANHOL SOBRE O PAPEL DO TEXTO

    LITERRIO PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM DA LNGUA .......................... 130

    Ana Carla de Azevedo Silva; Renata Helvcia Lopes Costa; Regiane S. Cabral de Paiva

    X- O GNERO LITERRIO COMO RECURSO DIDTICO NO ENSINO DE

    LNGUA ESPANHOLA ...................................................................................................... 151

    Yanskara Roberta de Medeiros Chaves; Oscarina Caldas Vieira; Maria Solange de Farias

    XI- ANLISIS DEL PROCESO DE ENSEANZA DE E/LE EN BRASIL: LOS

    MANUALES DIDCTIVOS ............................................................................................. 160

    Beth Francione Fagundes da Silva; Regiane Santos Cabral de Paiva

  • 7

    APRESENTAO

    O Grupo de Pesquisa em Lingustica e Literatura (GPELL) da Universidade do

    Estado do Rio Grande do Norte (UERN), sobre a liderana do professor Dr. Jos Roberto

    Alves Barbosa, compreende trs linhas de concentrao: 1- Discurso, enunciao e

    argumentao; 2- Ensino de lnguas e 3- Literatura e sociedade. Visando socializar as

    pesquisas desenvolvidas pelos membros que as compem, em 2014 foi lanado o primeiro

    ebook, Literatura e sociedade: contemporaneidades, com vistas s investigaes da terceira

    linha. Este ano, 2015, juntamente com outros colaboradores, daremos continuidade ao projeto

    de publicao lanando o II ebook para atender aos trabalhos desenvolvidos pela linha 2 e ter

    como ttulo: Ensino de lnguas materna e estrangeira: um espao para o debate. Como

    nesta linha se abrange as trs habilitaes (portugus, ingls e espanhol) do curso de Letras da

    nossa universidade, decidimos por um ttulo que abarcasse as trs lnguas. Nesta edio,

    tambm contaremos com o apoio da professora Isadora Gregolin (UFSCAR), que nos ajudou

    na organizao e do Professor Josenildo Barbosa Freire (UFPB) que contribuiu com um artigo.

    No total, teremos onze artigos que trataro de apresentar perspectivas para o ensino

    de lngua materna e estrangeira. Por esta razo o ebook estar dividido em duas partes: Sobre

    lngua materna e Sobre lngua estrangeira. A primeira parte comea com o artigo de Maciel e

    outros, intitulado Anlise de Narrativas Escolares: Uma Nova Proposta que descreve e

    analisa as relaes dialgicas contidas em textos narrativos de alunos do Ensino Fundamental

    e do Ensino Mdio. A teoria que norteia este estudo a concepo bakhtiniana de linguagem

    segundo a qual todo e qualquer enunciado estabelece uma relao dialgica com os

    enunciados que o precederam e os que o sucedero. Os autores utilizam um corpus de 117

    redaes escolares, sendo 52 do Ensino Fundamental ministrado em uma escola da rede

    municipal e 65 do Ensino Mdio de uma escola da rede estadual.

    O trabalho de Silva, Garcia e Silva, A interao lingustica nas prticas de leitura

    e produo de textos, a partir da abordagem da linguagem com lugar de interao, apresenta

    como as prticas de leitura e produo textual se processam no ensino-aprendizagem da

    lngua. Para isto, os autores tecem algumas consideraes gerais sobre a linguagem no

    contexto do ensino, bem como sobre o modelo scio-histrico de M. Bakhtin sobre a

    interao na linguagem. Por fim, discorrem sobre a linguagem em seu funcionamento

    discursivo e as prticas de leitura e produo de textos que levam em conta a interao verbal.

    Tal trabalho nos leva a refletir que as prticas de leitura e de produo de textos deveriam ser

    constantes na vida do aluno.

  • 8

    O artigo intitulado Consideraes sobre a importncia do conhecimento da slaba

    para o ensino de lngua portuguesa, de Alves, tem como objetivo central demonstrar como

    esse conhecimento pode ajudar o professor de Lngua Portuguesa, das sries iniciais, a

    compreender alguns desvios de grafia, relacionados estrutura silbica. A partir das teorias

    fonolgicas modernas, o autor descreve, numa linguagem acessvel, o conceito de slaba e sua

    estrutura, como tambm aborda, com maestria, os 13 padres silbicos do portugus. O

    trabalho em questo de suma relevncia, pois traz, tona, a escassez das discusses sobre

    estudos fonticos e fonolgicos, em centros locais de formao pedaggica e aponta, por meio

    de novas contribuies, como os professores podem adquirir os conhecimentos apropriados

    para enfrentar os problemas de aquisio da fala e da escrita.

    O captulo Ensino de portugus e variao lingustica: tratamento didtico de

    variedades dialetais no mbito escolar, de Freire, aponta algumas situaes didticas

    fundamentais para a realizao do ensino que incorpora a variao lingustica como contedo

    a ser ensinado e aprendido no ambiente escolar. Basicamente, o trabalho est fundamentado

    na Teoria da Variao Lingustica de cunho laboviana. Alm disso, trata da viso de alguns

    documentos oficiais acerca da relao ensino e variao lingustica e apresenta algumas

    estratgias didticas para execuo do ensino que contempla a variao lingustica. Com isso,

    quanto ao papel da escola, o autor declara dois pontos importantes: primeiro, cabe escola

    compreender, aceitar e incorporar o ensino de variao lingustica como objeto de estudo nas

    salas de aula e, consequentemente, a escola pode assegurar ao alunado a vivncia de prticas

    reais do uso lingustico, apontando, em quais situaes sociocomunicativas, determinados

    usos lingusticos so adequados ou no.

    O trabalho O gnero anncio publicitrio: concepes e proposta de ensino de

    leitura, de Garcia e Silva, objetiva refletir o ensino de leitura, a partir da perspectiva dos

    gneros discursivos. Para isso, toma os anncios publicitrios como objeto de estudo e

    propostas de ensino de leitura. Inicialmente, os autores discutem algumas concepes de

    linguagem e de leitura, mostrando suas caractersticas e contribuies para as aulas de lngua

    materna. Em seguida, com base em Bakhtin (1992), abordam os gneros discursivos. A partir

    da anlise da estrutura e da linguagem tpica do gnero anncio publicitrio, so apresentadas

    algumas possibilidades de uso desse gnero em aulas de Lngua Portuguesa, como propostas

    de atividade em sala de aula, sobretudo, em aulas de leitura.

    A segunda parte, Sobre Lngua Estrangeira, comea com o ttulo Anlise de

    propagandas de aparelhos celulares: uma proposta crtico-visual para o ensino de lnguas,

    de Barbosa, cujo objetivo analisar, criticamente, propagandas de aparelhos celulares, com

  • 9

    vistas a sua utilizao no contexto da sala de aula de lngua. Primeiramente, o autor apresenta

    os fundamentos tericos da Anlise de Discurso Crtica (ADC) e da Gramtica do Design

    Visual (GDV). Em seguida, discute o papel da mdia, no contexto da modernidade tardia e

    analisa, de forma clara, duas propagandas de aparelhos celulares, tanto em lngua portuguesa

    quanto inglesa. Para o autor, a relevncia desse tipo de anlise, em contextos escolares,

    contribui para o letramento crtico de jovens da escola pblica e possibilita o empoderamento

    desses aprendizes.

    O texto Anlise de erros: estudo das adaptaes lxicas produzidas por alunos

    brasileiros em textos escritos de Silva Junior e Luque apresenta resultados de pesquisa

    sobre erros presentes em textos escritos em lngua espanhola por universitrios brasileiros.

    So descritas e analisadas algumas das adaptaes lxicas que os alunos empregam como

    estratgias para a comunicao na lngua estrangeira, que permitem ao leitor uma melhor

    compreenso sobre a relao entre a lngua materna e a lngua estrangeira e sobre o prprio

    conceito de interlngua (GARGALLO, 1993). Dessa forma, o artigo contribui com resultados

    tanto para o campo terico da Lingstica Contrastiva quanto para os propsitos de sala de

    aula, pois os dados apresentados auxiliam professores na elaborao de materiais e atividades

    em lngua espanhola para alunos brasileiros.

    A pesquisa Anlise das dificuldades ortogrficas de brasileiros estudantes de

    Espanhol como lngua estrangeira, de Farias, tem como objetivo principal determinar que

    erros grficos so mais comuns na interlngua de brasileiros estudantes de espanhol em

    diferentes nveis de aprendizagem, quais destes erros se fossilizam e qual a influncia da

    lngua materna do aprendiz na aquisio destes elementos lingusticos. Fundamentada na

    Lingustica Contrastiva (LC), a autora, inicialmente, expe caractersticas de trs modelos de

    anlise lingustica: a Anlise de Erros (AE), A Anlise Contrastiva (AC) e a Teoria da

    Interlngua (IL). Este trabalho apresenta uma pesquisa descritiva de natureza quantitativa

    relacionada aos erros grficos fossilizados na produo escrita dos sujeitos/informantes que

    foram acompanhados em diferentes estgios de aprendizagem. A partir dos dados coletados,

    Farias constata que os alunos seguem transferindo muitas estruturas de sua lngua materna

    lngua estrangeira que aprende, provocando assim, o que podemos chamar de fossilizaes.

    Com este trabalho, a autora pretende ajudar os professores de espanhol a elaborarem

    atividades especficas para estudantes brasileiros, como tambm refletir quanto ao

    aparecimento do erro no processo de ensino e aprendizagem de lnguas estrangeiras.

    O artigo Crenas dos professores de espanhol sobre o papel do texto literrio para

    o ensino e aprendizagem da lngua de Silva, Costa e Cabral de Paiva traa um panorama

  • 10

    histrico sobre a noo terica de crenas e apresenta resultados de pesquisa que focaliza as

    crenas de professores de lngua espanhola sobre o papel do texto literrio em suas prticas

    pedaggicas. A discusso proposta pelas autoras leva o leitor a uma melhor compreenso

    sobre a relao entre as crenas e o fazer pedaggico de professores de lngua espanhola do

    interior do Rio Grande do Norte.

    Chaves, Vieira e Farias propem no artigo O gnero literrio como recurso

    didtico no ensino de lngua espanhola, a partir de Fillola (2002), uma nova reorientao na

    abordagem do gnero literrio em aulas de lngua espanhola para alunos do ensino mdio. Ao

    apresentarem atividades desenvolvidas no mbito do PIBID em escolas pblicas do interior

    do Rio Grande do Norte, os autores discutem novas possibilidades metodolgicas para o

    trabalho com a leitura, com a preocupao de levar os alunos construo de sentidos na

    lngua estrangeira. Dessa forma, o texto oferece importante contribuio para professores e

    pesquisadores interessados em novas metodologias e didticas de lnguas.

    Nosso ebook encerra com o artigo Anlisis del proceso de enseanza de e/le en

    brasil: los manuales didcticos fruto da dissertao de nossa ex-aluna Silva. O trabalho

    completo aplicou-se ao estudo sobre os documentos oficiais dedicados educao bsica no

    Brasil, especialmente os dirigidos ao ensino de lnguas estrangeiras, bem como ao Programa

    Nacional do Livro Didtico (PNLDEM). A partir disso, fez-se uma apresentao de dois

    manuais tomando como base o Guia de livros didticos do PNDL o outro sofrer uma anlise

    mais profunda e qualitativa; tambm se far avaliaes das provas do ENEM e da prtica dos

    professores de lngua espanhola. Neste e-book, especificamente, apresenta-se um recorte e

    uma releitura, sob orientao de Cabral de Paiva, de uma dessas anlises: apreciao de

    manuais didticos a partir do PNLDEM e dos documentos oficiais.

    Para finalizar esta apresentao, queremos agradecer a todos os docentes e

    pesquisadores que colaboraram com este volume, trazendo-nos importantes reflexes e

    experincias acerca do processo de ensino-aprendizagem de lnguas (materna e estrangeira),

    no contexto escolar/acadmico. Tais experincias podem ser difundidas e compartilhadas com

    todos os protagonistas da educao, professores, diretores, pais, alunos etc, sempre fazendo

    do nosso territrio, espao de debates que tenham poder de transformar realidades para

    melhor.

    Os Organizadores

  • 11

    Sobre lngua materna

    (parte I)

  • 12

    I

    ANLISE DE NARRATIVAS ESCOLARES: UMA NOVA PROPOSTA

    Joo Paulo Pereira

    Marcos Paulo de Azevedo

    Wigna Thalissa Guerra

    Lucas Vincio de Carvalho Maciel

    JOO PAULO PEREIRA graduado (2014) em Letras, com habilitao em Lngua

    Portuguesa e suas respectivas literaturas pela UERN. Na graduao, desenvolveu as pesquisas

    de iniciao cientfica Dialogismo em narrativas: uma aproximao literatura de Dostoievski (PIBIC 2011-2012) e Dialogismo em narrativas escolares (PIBIC 2012-2013). [email protected]

    MARCOS PAULO DE AZEVEDO graduado (2014) em Letras, com habilitao em

    Lngua Portuguesa e suas respectivas literaturas pela UERN e mestrando em Letras

    (PPGL/UERN). Na graduao, desenvolveu as pesquisas de iniciao cientfica A influncia da obra dostoievskiana nas discusses sobre dialogismo no Crculo de Bakhtin (Projeto Institucional 2012-2013) e Relaes dialgicas em redaes escolares (Projeto Institucional 2013-2014).

    [email protected]

    WIGNA THALISSA GUERRA graduada (2014) em Letras, com habilitao em Lngua

    Inglesa e suas respectivas literaturas pela UERN. Na graduao, desenvolveu as pesquisas de

    iniciao cientfica A influncia da obra dostoievskiana nas discusses sobre dialogismo no Crculo de Bakhtin (Projeto Institucional 2012-2013) e Relaes dialgicas em redaes escolares (Projeto Institucional 2013-2014). [email protected]

    LUCAS VINCIO DE CARVALHO MACIEL graduado em Letras (2005), mestre (2008)

    e doutor (2014) em Lingustica Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da

    Unicamp e Professor Adjunto III na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),

    onde coordena o peridico acadmico Revista Colineares. Participa como membro do Grupo

    de Pesquisa em Lingustica e Literatura (GPELL), desenvolvendo pesquisas na rea de

    ensino-aprendizagem de lngua materna.

    [email protected]

  • 13

    Introduo

    Neste captulo prope-se observar, a partir da perspectiva bakhtiniana, a relevncia

    das vozes na composio de narrativas. A questo das vozes de autor, narrador e personagens

    tema comum a muitas anlises literrias, fazendo-se presente tambm em propostas

    didticas voltadas ao ensino de narrativas. Ao lado de categorias como enredo, cenrio,

    personagens, aparecem frequentemente no exame de textos narrativos categorias como

    voz (do autor, narrador ou personagem) ou algum termo equivalente voz como

    perspectiva, foco, ponto de vista.

    Sendo assim, pode soar desinteressante uma anlise das narrativas, cujo objetivo

    discutir esse aspecto, aparentemente, banal, e, por consequncia, parecer inadequado dizer

    que essa anlise se prope a algo novo, como sublinhado no ttulo. A inadequao

    decorreria no apenas por se tratar de uma caracterstica h muito explorada no exame das

    narrativas em vrios mbitos do conhecimento literatura, lingustica, educao , mas

    tambm porque o principal aporte terico desse novo olhar so as discusses do Crculo de

    Bakhtin1, um referencial terico confeccionado h bastante tempo principalmente na

    primeira metade do sculo XX e amplamente utilizado em diversas pesquisas acadmicas

    nacionais e internacionais2.

    Ainda assim, assume-se ser possvel propor algo novo para o exame de narrativas,

    atravs de um mergulho nas concepes bakhtinianas3. Tendo por apoio principalmente as

    discusses expostas em Problemas da potica de Dostoivski (BAKHTIN, 1929) e na terceira

    parte de Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN/VOLOCHNOV4), examinam-se

    redaes escolares com intuito de vislumbrar a importncia das relaes dialgicas internas

    entre autor, narrador e personagens e externas entre as redaes e textos a elas exteriores

    para a composio dos textos narrativos. Pretende-se, por essa via, demonstrar a importncia

    1 Emprega-se a expresso Crculo de Bakhtin, por ser a mais corrente no contexto brasileiro. Lembra-se,

    contudo, que certos pesquisadores discordam dessa denominao em que se destaca a figura de Bakhtin.

    Vauthier (2007), por exemplo, prefere a denominao Cercle Bakhtine, Medvedev, Volochinov, abreviada

    como Cercle B.M.V., ao entender que, assim, os demais membros do grupo so tambm contemplados. 2 Atesta a projeo de Bakhtin no Brasil o fato de sua teoria figurar at mesmo em documentos oficiais como os

    Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa (Ver a respeito, GOMES-SANTOS, 2004). 3 Ao utilizar o adjetivo bakhtiniano e suas variaes, refere-se de modo amplo s discusses do Crculo de

    Bakhtin. 4 A autoria da obra Marxismo e filosofia da linguagem (1929) objeto de discusso. Mantm-se a dupla entrada

    Volochnov/Bakhtin pois por ora no h respaldo suficiente para se decidir a respeito da controversa autoria

    desse e de outros ttulos dos integrantes do Crculo de Bakhtin (A respeito, ver GRILLO, 2012).

  • 14

    das complexas relaes dialgicas, ainda pouco ou no estudadas, para a composio dos

    textos narrativos.

    1 A linguagem sob a perspectiva bakhtiniana

    Discordando da concepo segundo a qual na comunicao entre indivduos um, o

    falante, seria ativo (enquanto fala), e outro, o ouvinte, seria passivo (enquanto ouve), Mikhail

    Bakhtin prope que ambos participantes da interao discursiva so agentes ativos. Segundo

    Bakhtin ([1952-1953]), mesmo quando no responde imediatamente quele que fala, aquele

    que escuta (ou l, ou assiste) j formula respostas ao seu interlocutor, sejam respostas de

    concordncia, discordncia, verbalizadas ou no. No momento que escuta o outro, o ouvinte

    j vai construindo sua resposta, resposta essa que pode, at mesmo, ser o silncio.

    Na concepo bakhtiniana, todo enunciado formulado tendo em vista as possveis

    respostas que suscitar. Ao mesmo tempo, esse mesmo enunciado , ele prprio, uma resposta

    a enunciados anteriores. Qualquer enunciado se volta a enunciados anteriores que so, de

    alguma forma, empregados na enunciao atual. A essa relao entre os enunciados Bakhtin

    denomina dialogismo ou relaes dialgicas5 , pois todo enunciado uma resposta a

    enunciados precedentes e, concomitantemente, lana-se s respostas do dilogo futuro.

    Se, de modo geral, as relaes dialgicas so os vnculos estabelecidos entre

    enunciados, mister observar que vrias so as formas desse dialogismo, uma vez que

    vrias e diversas podem ser as formas como os enunciados mantm relaes dialgicas entre

    si.

    Segundo Bakhtin ([1952-1953], p. 297, grifos do autor):

    Cada enunciado pleno de ecos e ressonncias de outros enunciados com os

    quais est ligado pela identidade da esfera da comunicao discursiva. Cada

    enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados

    precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra

    resposta no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em

    conta.

    Ao se relacionar com enunciados anteriores com os quais dialoga, o escrevente ou

    falante pode se apropriar dessas vozes de distintos modos, estabelecendo vnculos de

    5 Embora o termo dialogismo seja mais popular e figure mais frequentemente nos estudos que se apropriam

    das discusses bakhtinianas, fato que a expresso relaes dialgicas aparece com mais frequncia nas obras

  • 15

    concordncia, de discordncia, de complementao, etc. Alm disso, ao se valer de palavras

    anteriores, o enunciador poder marcar essas vozes como abertamente alheias, ao usar aspas,

    por exemplo, ou fundi-las em sua prpria voz, borrando (at o esquecimento) os limites entre

    a palavra prpria e a palavra outra6.

    Alm da relao com os enunciados passados, todo enunciado espera uma resposta

    futura. Todo enunciado dito ou escrito espera daqueles com que estabelece comunicao uma

    resposta. Resposta essa positiva, negativa, discordante (total ou parcialmente). Assim, a

    palavra que hoje lanada na cadeia da comunicao poder ser amanh empregada de

    diversos modos. Poder-se- concordar com ela, discordar dela, omiti-la7.

    Os enunciados fazem, assim, parte de uma cadeia: o pronunciado hoje resposta ao

    j dito anteriormente e, ao mesmo tempo, espera uma resposta futura daqueles aos quais se

    dirige. Nessas relaes, os enunciados sero empregados de diferentes modos, pois diversas

    so as formas pelas quais as vozes anteriores podem ser retomadas. Em termos dos tipos de

    discurso, por exemplo, a citao ou representao da palavra alheia pode se dar atravs do

    discurso direto, do discurso indireto e do discurso indireto livre8.

    Como observam Bakhtin/Volochnov (1929/1963, p.152, grifos do autor),

    primordial uma investigao mais profunda das formas usadas na citao do discurso, uma

    vez que essas formas refletem tendncias bsicas e constantes da recepo ativa do discurso

    de outrem [...]. Isso porque os tipos de discurso direto, indireto, indireto livre e variantes

    empregados para veicular a palavra alheia mostram a recepo ativa do discurso de outrem

    por quem retoma essas palavras. O modo como se assimila a palavra do outro expe se esse

    discurso apreendido com reverncia, com cautela ou sem considerao, sem cuidado com a

    indicao da fonte, etc.

    Diante desse quadro, o objetivo desta exposio analisar as opes de autores de

    redaes escolares em termos dos tipos de discurso empregados para veicular as palavras

    anteriores alheias ou suas , o que pode mostrar a recepo ativa do discurso do outro,

    revelar como os autores ou narradores se apropriam de mltiplas maneiras da palavra do outro.

    do autor, sendo, ao que tudo indica, preferida por tradutores e estudiosos da obra bakhtiniana como Paulo

    Bezerra, Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vlkova Amrico. 6 Conforme expresso de Miotello et al. (In: BAKHTIN, 1929).

    7 Para Bakhtin ([1952-1953]), o silncio uma forma de resposta.

    8 Bakhtin/Volochnov (1929) fazem um detalhado estudo desses tipos de discurso, listando vrios subtipos como,

    por exemplo: discursos diretos monumental, com sujeito no aparente, retrico, esvaziado, preparado,

    substitudo; discurso indireto sem sujeito aparente, analisador do contedo, analisador da expresso e discurso

    indireto livre. Pesquisadores como Grillo (2004), Olmpio (2006), Campos & Souza (2012) j assumem, a partir

    da proposta bakhtiniana, esses tipos e variante de discurso para anlise de enunciados vrios.

  • 16

    Assim, mais do que simplesmente atestar que h vozes de personagens, narrador (e talvez

    autor) envolvidas na narrativa, busca-se vislumbrar como textualmente se efetivam as

    interaes entre os partcipes da narrativa no que se refere s relaes dialgicas, sejam estas

    internas, quando personagens ou narrador retomam vozes de outras personagens, sejam

    quando se estabelecem relaes com enunciados exteriores.

    A escolha por redaes com predomnio da tipologia textual narrativa9 se d porque

    nesses dados, comumente, as relaes dialgicas so demarcadas de maneira bastante clara e

    perceptvel, na medida em que se apresentam nos dilogos entre as personagens, nas relaes

    entre as vozes de personagens e narrador, nos vnculos entre os textos escolares analisados e

    obras externas s redaes. Alm disso, as narrativas tambm so interessante material para

    observao de como relaes dialgicas podem ser concretizadas em termos dos tipos de

    discurso (direto, indireto, indireto livre) e dos recursos (aspas, sublinhado) que os alunos, os

    autores, tm disposio para marcar os elos entre as vozes que tecem as narrativas10

    .

    anlise desses aspectos dialgicos constitutivos das narrativas que se dedica a

    seguir.

    2 Anlise de narrativas escolares

    Para a realizao dessa investigao, parte-se de um corpus formado por redaes de

    alunos do 6 ano do ensino fundamental da Escola Municipal Joaquim Felcio de Moura,

    situada na cidade de Mossor/RN, e redaes de alunos do 3 ano do ensino mdio da Escola

    Estadual Padre Jos de Anchieta, da cidade de Serra do Mel/RN. Esse corpus composto por

    117 redaes, sendo 52 do ensino fundamental e 65 do ensino mdio. Dados os limites desse

    captulo, selecionou-se para a presente exposio, a partir da leitura e da comparao de todas

    as redaes, um texto do ensino fundamental e outro do ensino mdio.

    As redaes confeccionadas pelos alunos do 6 ano partiram de uma atividade do

    livro didtico Portugus: Linguagens, 6 Ano de Cereja e Magalhes (2009), que propunha

    uma recontagem de contos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anes, Joo e Maria,

    Cinderela, entre outros, com a insero de fatos inusitados e aes inesperadas das famosas

    9 Seguindo a proposta de Marcuschi (2002), entende-se que em um texto pode haver vrias sequncias textuais

    (descritivas, narrativas, injuntivas, etc.) com predomnio de alguma(s). No caso das redaes a serem analisadas,

    acredita-se que a sequncia narrativa predominante. 10

    A partir da perspectiva bakhtiniana, entende-se que qualquer enunciado pode ser objeto de anlise das relaes

    dialgicas, constitutivas de toda a linguagem, de qualquer enunciado. Nos gneros narrativos esperado que as

  • 17

    personagens dos contos originais. Esses textos foram elaborados durante o 3 bimestre letivo

    de 2012 e deram origem a um pequeno livro intitulado Era uma vez..., confeccionado a

    partir da proposta da professora Kelli Karina Fernandes Freire11

    , que vinha desenvolvendo um

    Projeto de Leitura12. J as redaes dos alunos do ensino mdio tiveram por base uma

    proposta do professor, que solicitou aos alunos um texto narrativo, relatando fatos ou

    experincias pessoais ou ainda recontando a histria de algum filme ou texto conhecido.

    Inicialmente ser examinada uma da narrativa do ensino fundamental, escolhida entre

    as redaes produzidas pelos alunos do 6 ano, as quais tiveram por base a seguinte proposta

    do livro didtico (CEREJA; MAGALHES, 2009, p. 42-43):

    Produo de texto

    O CONTO MARAVILHOSO

    Os contos que voc produzir a seguir sero publicados num livro de contos que far parte da

    mostra Histrias de hoje e sempre, proposta no captulo Intervalo, e ser lido por colegas de

    sua classe e de outras, por seus pais e demais convidados para o evento.

    1. Escreva um conto maravilhoso, de acordo com as orientaes dadas a seguir.

    a) Em cada lista de palavras abaixo, todas, com exceo de uma, sugerem uma histria

    conhecida. Tal palavra representa um novo elemento, que quebra, de propsito, a sequncia.

    Veja:

    menina bosque lobo av helicptero

    Cinderela madrasta prncipe sapatinho de cristal chul

    Bela Adormecida prncipe encantado conjunto de rock bruxa boa

    Joo e Maria uma casinha de doces a bruxa o forno um pernil assado

    Pinquio os ladres um extraterrestre a baleia Gepeto

    Aladim gnio princesa lmpada maravilhosa Ali Bab e os quarenta ladres

    Branca de Neve prncipe sete anes madrasta baile

    b) Escolha uma lista e reinvente a histria, incluindo nos acontecimentos o elemento novo

    correspondente palavra que destoa das outras. Escolha quem ser o heri e quem far o

    papel de vilo. Comece seu conto fazendo o heri ser vtima de uma armadilha planejada pelo

    vilo, ou o contrrio. Se quiser, d ao heri (ou ao vilo) poderes mgicos. Procure criar um

    final inesperado, se possvel engraado.

    relaes dialgicas sejam ainda mais evidentes, pois alm dos elos entre o texto e enunciados alheios, tm-se no

    interior do prprio texto encenaes do dialogismo nos dilogos entre as personagens. 11

    A professora aceitou sua identificao neste texto. 12

    Esse trabalho realizado anualmente pela professora com a colaborao da direo escolar. O projeto sintetiza

    uma srie de atividades, entre as quais: palestras com cordelistas, jornais da escola produzidos pelos alunos e,

    enfim, a confeco do livro de contos.

  • 18

    c) Planeje como vai escrever seu conto maravilhoso: inicie-o pela expresso Era uma vez ou

    outra que conduza a um tempo passado e impreciso. O narrador deve ser do tipo observador.

    Lembre-se de dizer como so o heri, o vilo e o lugar em que ocorrem os fatos. Empregue a

    lngua padro. Ao terminar, d um ttulo sugestivo ao seu conto.

    d) Faa um rascunho e s passe seu conto maravilhoso a limpo depois de fazer uma reviso

    cuidadosa, seguindo as orientaes do boxe. Avalie seu conto maravilhoso (p. 22) Refaa o

    texto quantas vezes forem necessrias.

    2. Crie livremente um conto maravilhoso, com personagens de sua preferncia. Siga as

    orientaes constantes nos itens c e d.

    A proposta do livro didtico solicita que o aluno reinvente uma histria, incluindo

    nos acontecimentos elementos novos (CEREJA; MAGALHES, 2009, p. 43). Entre as

    sugestes presentes esto, entre outros, a incluso do elemento chul na histria da

    Cinderela, de um helicptero na narrativa de Chapeuzinho Vermelho, de um pernil

    assado no conto Joo e Maria.

    Alm da proposta, a professora rememorava oralmente com os alunos alguns contos

    de fadas e lia outras histrias presentes no prprio livro didtico. Assim, mediados pela

    proposta do livro didtico, os alunos foram conduzidos a confeccionar textos que recontassem,

    com modificaes, famosos contos infantis.

    a partir dessa proposta que confeccionada a redao transcrita a seguir:

    Joo e Maria no seu castelo13

    Era uma vez Joo, um menino bom que ajudava todos que precisavam e que tinha uma

    irm m e rancorosa. Esta no gostava dos necessitados e tinha poderes do mal. Quando o

    irmo ajudava os necessitados ela lanava um feitio para prejudic-los.

    Um dia, no castelo, o seu irmo Joo disse:

    Maria, deixe de ser m, voc no pode maltratar os outros. Um dia voc passou por isso. Ela olhou bem srio para ele e disse:

    Voc disse bem, j passei e no sou mais! Agora moro no castelo e descobri que tenho poderes. Na hora que quiser posso me

    tornar mais poderosa.

    Poderes para o mal! Voc vai se arrepender de tudo que est fazendo, sua malvada! Quando ele disse isso, Maria ficou com medo de algo acontecer.

    Quando chegou a noite ela se deitou e viu uma luz bem perto e perguntou quem era.

    Era, na verdade, uma bruxa do bem e disse que se ela no passasse a gostar do povo iria

    perder seus poderes.

    Maria disse:

    Eu prometo que trato bem os necessitados e disse: Esto todos convidados para o jantar e ser pernil assado!

    13

    O nome do aluno autor do texto omitido para preservar sua identidade. Mantm-se a grafia original da

    redao, previamente corrigida pela professora.

  • 19

    Chegando o dia do jantar, Maria pediu desculpas e no mesmo instante, a bruxa

    apareceu dizendo:

    Parabns! Agora seus poderes sero para o bem.

    Assim todos foram felizes para sempre.

    Narrada em terceira pessoa, a histria intitulada Joo e Maria no seu castelo

    incorpora elementos que remetem ao conto Joo e Maria. Na mais conhecida verso do

    conto relata-se a histria de dois irmos que se perdem14

    na floresta e encontram uma casa

    feita de doces. A dona da casa uma bruxa, que os prende e pretende engord-los, para depois

    com-los. Entretanto o desejo da feiticeira frustrado, pois as crianas conseguem jog-la ao

    fogo e salvarem-se.

    No conto recontado pelo aluno do 6 ano h algumas diferenas que o separam da

    narrativa tradicional: Joo bom, enquanto sua irm Maria malvada; ambos moram em um

    castelo e vivem discutindo, at que um dia os dois se entendem e vivem felizes para sempre.

    Desse modo, a narrativa diferente da verso mais divulgada, em que tanto Joo quanto

    Maria so bons, no vivem discutindo, tampouco moram em um castelo. Desse modo, o aluno

    atende solicitao de modificar o conto (supostamente) original.

    Porm, em sua recontagem, o aluno no se restringe estritamente proposta do livro

    didtico, que em relao ao conto Joo e Maria trazia as seguintes palavras, dentre as quais

    um elemento seria diferente:

    Joo e Maria uma casinha de doces a bruxa o forno o pernil assado.

    O elemento diferente seria o pernil assado, que, de fato, aparece ao final da

    narrativa do discente, quando Maria, recm-convertida ao bem, anuncia:

    Esto todos convidados para o jantar e ser pernil assado!

    Antes disso, contudo, o aluno traz vrios outros elementos para o texto. Alm das

    alteraes j mencionadas, o autor introduz a figura de uma bruxa do bem, algo que no

    estava prescrito entre as palavras que deveriam norte-lo na confeco de seu texto. Nessa

    instruo, aparecia apenas bruxa, que supostamente deveria ser m como no conto original,

    pois da lista de palavras que sugerem uma histria a nica exceo (CEREJA;

    MAGALHES, 2009, p. 43) seria justamente o pernil.

    14

    H diferentes verses do conto. Em algumas delas, os pais abandonam as crianas na floresta por no terem

    condies de as sustentarem. Em outras, as crianas no se perdem, mas se afastam dos pais, pois Joo e Maria

    esto convencidos de que os pais planejam deix-los morrer de fome (BETTELHEIM, p. 172, 1976).

  • 20

    Essa pequena subverso que o aluno faz da proposta no parece vir exclusivamente

    de sua individualidade como escrevente (ou de sua criatividade como escritor), mas do

    dilogo que mantm com a proposta no se limitando apenas lista de palavras propriamente

    referente ao conto Joo e Maria. Logo acima dessa lista, esto os termos a serem

    empregados pelo aluno que escolhesse recontar a histria da Bela Adormecida:

    Bela Adormecida prncipe encantado conjunto de rock bruxa boa (CEREJA;

    MAGALHES, 2009, p. 43).

    Aparece nessa lista a expresso bruxa boa, levando hiptese de que o discente se

    apropria dessa ideia pertencente a outra lista , adaptando-a sob a forma da bruxa do

    bem, conforme aparece em seu texto. Assim, na redao se apreende um enunciado anterior

    alheio, mas seu emprego j est sob nova diretriz.

    Como observa Bakhtin ([1952-1953], p. 294): Nosso discurso, isto , todos os

    nossos enunciados [...] pleno de palavras dos outros, de um grau vrio de alteridade ou de

    assimilabilidade, de um grau vrio de apercebilidade e de relevncia. Por isso se conjectura

    que a referncia bruxa do bem ecoa, de algum modo, a expresso bruxa boa da proposta

    do exerccio, atravs de uma assimilao prxima, mas no coincidente. No repete a palavra

    do outro, mas a substitui por uma similar. A apercebilidade, nesse caso, pode ser menor

    do que a evidenciada em uma repetio, mesmo assim a expresso bruxa do bem expe um

    dilogo entre a redao e a proposta e seus termos.

    Outro dilogo do aluno com a instruo do exerccio do livro didtico a aluso aos

    poderes do mal de Maria. Isso possivelmente provenha do item b da proposta que

    sugeria: Se quiser, d ao heri (ou ao vilo) poderes mgicos, frente a que o aluno escolhe

    dar vil15

    poderes mgicos.

    Esses feitios so classificados como poderes para o mal, at que com o desenrolar

    da narrativa mude-se essa qualificao, pois Maria prometer que seus poderes sero para o

    bem. De todo modo, no aparece no texto do aluno a expresso poderes mgicos.

    Conforme j comentado, mesmo que no haja uma repetio ipsis litteris, possvel falar em

    dilogo do texto com a proposta do livro didtico. O aluno acata as instrues presentes no

    15

    Interessante notar que o autor se dirige hiptese menos privilegiada, aquela colocada entre parnteses. Como

    bem nota Barros (2003, p. 78), o mais comum considerar as intercalaes como o que figura entre parnteses

    como situadas na face negativa de dicotomias como essencial/acessrio, relevante/irrelevante,

    central/descentrado. Se o mais relevante, conforme sugerido pelo livro didtico, seria eleger o heri para

    destinar os poderes mgicos, contrariamente o aluno opta pelo descentrado, colocado na intercalao.

  • 21

    livro, mas as palavras alheias so retomadas com grau vrio de assimilabilidade, de

    apercebilidade e de relevncia.

    Por esses aspectos, perceptvel que o autor do texto obedeceu proposta e buscou

    inserir elementos que compusessem outra histria, propondo um destino diverso s

    personagens. Assim, sua redao uma resposta no sentido amplo (BAKHTIN, [1952-

    1953], p. 297) s instrues do livro didtico e s solicitaes da professora. atendendo a

    essas indicaes, dialogando com elas, que o aluno compe seu texto, sustentado em, pelo

    menos, trs relaes dialgicas com enunciados exteriores, pois se reporta (i) ao conto

    original, (ii) proposta do livro e (iii) s indicaes da professora.

    Alm dessas relaes dialgicas do texto com enunciados exteriores, tambm

    possvel observar vnculos dialgicos no interior da narrao. Dentre esses elos dialgicos

    destaca-se primeiramente a discusso entre Joo e Maria, no seguinte trecho da redao:

    Maria, deixe de ser m, voc no pode maltratar os outros. Um dia voc passou

    por isso. Ela olhou bem srio para ele e disse:

    Voc disse bem, j passei e no sou mais!.

    Nesse fragmento perceptvel uma relao dialgica explcita, com o autor se

    utilizando das aspas para marcar no discurso direto a retomada da voz de uma personagem no

    interior da voz de outra.

    Segundo Bakhtin ([1952-1953], p. 275):

    Por sua preciso e simplicidade, o dilogo a forma clssica de comunicao

    discursiva. Cada rplica, por mais breve e fragmentria [...] suscita resposta, em relao qual

    se pode assumir uma posio responsiva.

    Alm disso, Bakhtin ([1952-1953], p. 275) indica que podem existir entre as

    rplicas do dilogo as relaes de pergunta-resposta, afirmao-objeo, afirmao-

    concordncia, proposta-aceitao ordem-execuo, etc..

    A fala de Maria, por exemplo, mostra sua posio responsiva, nesse dilogo marcado

    por uma relao de afirmao-negao16

    , especialmente clara pelo destaque conferido s

    palavras do outro colocadas entre aspas17. Na ocorrncia, a retomada da palavra outra entre

    aspas ilustrativa do estilo linear de citao, quando:

    16

    Embora Bakhtin no fale em relao de afirmao-negao, essa parece uma relao possvel, dentre aquelas em aberto pelo etc. Das alternativas listadas por Bakhtin, a mais prxima daquela observada na redao seria a de afirmao-objeo, que ainda assim no contemplar exatamente a relao entre os enunciados, pois a irm, mais do que objetar contra o irmo, nega seu enunciado. 17

    Em Problemas da potica de Dostoivski, Bakhtin discute o uso das aspas em Dostoivski em vrias

    passagens (como, por exemplo, nas pginas 239, 252, 253 da edio consultada).

  • 22

    A lngua pode esforar-se por delimitar o discurso citado com fronteiras

    ntidas e estveis. Nesse caso, os esquemas lingusticos e suas variantes tm

    a funo de isolar mais clara e mais estritamente o discurso citado, de

    proteg-lo de infiltrao pelas entoaes prprias do autor [...]

    (BAKHTIN/VOLOCHNOV, 1929/1963, p. 155).

    Trata-se de um estilo de apreenso da palavra alheia que a mantm distncia, com

    uma evidente separao entre a voz citante e a citada. As aspas que isolam as palavras

    supostamente pronunciadas por Joo mostram justamente essa distncia em relao ao

    discurso alheio.

    Outro exemplo de relaes dialgicas a interpretao dada por Joo ao seguinte

    enunciado de Maria: Na hora que quiser posso me tornar mais poderosa. Contestando a

    colocao da irm, Joo observa: Poderes para o mal!. Para Bakhtin ([1952-1953], p. 275),

    o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar sua

    compreenso ativamente responsiva. O pensador russo atribui importncia relao entre

    um enunciado proferido e sua possvel rplica, a sua compreenso ativamente responsiva.

    No caso, Joo retoma a voz de Maria, mas atribui s palavras dela uma nova orientao.

    Conforme lembra Bakhtin ([1952-1953], p. 295), assimilamos, reelaboramos, e

    reacentuamos as palavras dos outros empregadas nos enunciados prprios. Por isso o que

    fora positivamente caracterizado por Maria que se considera muito poderosa

    reacentuado no enunciado de Joo de uma perspectiva depreciativa, ao considerar que tais

    poderes so para o mal.

    Outro exemplo de relaes dialgicas circunscritas ao interior da narrativa a

    passagem:

    Era, na verdade, uma bruxa do bem e disse que se ela no passasse a gostar do povo

    iria perder seus poderes.

    Tem-se, nesse caso, um exemplo do estilo linear de citao, j que as fronteiras que

    separam o discurso citado do resto da enunciao so ntidas e inviolveis

    (BAKHTIN/VOLOCHNOV, 1929, p. 156).

    No discurso do narrador, as palavras da bruxa so reportadas a partir de disse que.

    O verbo dicendi e a conjuno introduzem a voz reportada da personagem, atravs de um

    discurso indireto analisador do contedo, em que objetivo principal reproduzir o qu se

    disse no como isso fora dito (BAKHTIN/VOLOCHNOV, 1929).

    Segundo Bakhtin/Volochnov (1929, p. 166, grifo do autor), no discurso indireto

    analisador do contedo:

  • 23

    A enunciao de outrem pode ser apreendida como uma tomada de posio com

    contedo semntico preciso por parte do falante, e nesse caso, atravs da construo indireta,

    transpe-se de maneira analtica sua composio objetiva exata (o que disse o falante).

    Outro aspecto dialgico a ser notado a relao da redao com o gnero conto de

    fadas, pois o texto do aluno, por exemplo, se inicia pelo clssico Era uma vez e se encerra

    com foram felizes para sempre. Uma relao que, inclusive, atesta a observao de Bakhtin

    (1929/1963, p.121, grifo do autor):

    Por sua natureza mesma, o gnero literrio reflete as tendncias mais estveis,

    perenes da evoluo da literatura. O gnero sempre conserva os elementos imorredouros da

    archaica. [...] O gnero vive do presente mas sempre recorda seu passado, o seu comeo.

    Para realizar a recontagem o aluno se apoia naquilo que julga caracterstico do

    gnero. Mesmo que indiretamente, o texto do aluno rememora a archaica do gnero e

    atualiza essa tradio.

    A propsito, Gomes-Santos (1999, p. 76) observa:

    Seja como captao ou como subverso, preciso reiterar que o carter de

    imitao do gesto de recontar constitui-se como circulao imaginria de escreventes-

    alunos pelo que supem ser, por exemplo, o gnero em que enunciam.

    Ou seja, uma caracterstica bsica do gesto de recontar (GOMES-SANTOS, 1999)

    a relao do escrevente que se baseia em um gnero (captao), mas tambm pode

    modific-lo (subverso). Isso mostra a relativa estabilidade do gnero (BAKHTIN, [1952-

    1953]), cuja flexibilidade permite alteraes, embora se mantendo as caractersticas bsicas

    que o definem. H, assim, uma relao dialgica entre a redao e a tradicional histria de

    Joo e Maria no apenas em termos de contedo temtico, mas tambm no mbito dos

    aspectos composicionais que singularizam o gnero conto de fadas.

    Ao retomar dialogicamente o conto Joo e Maria, o aluno no apenas parafraseia,

    de certo modo, a histria, mas apreende as bases do gnero discursivo que procura imitar

    em sua recontagem. Nesse sentido, so mantidos personagens Joo e Maria e o carter do

    gnero discursivo conto de fadas com, por exemplo, o tradicional incio do Era uma vez e o

    esperado final foram felizes para sempre. H, alm disso, como comumente nos contos de

    fadas, a presena de elementos mgicos, de poderes sobrenaturais.

    Nessa narrativa, portanto, notam-se vnculos dialgicos internos e externos. Entre os

    primeiros esto aqueles circunscritos aos dilogos das personagens ou retomada da voz de

    uma personagem por outra ou pelo narrador. Ao lado dos elos interiores narrativa,

    observam-se relaes dialgicas da redao com enunciados exteriores, pois o aluno atende

  • 24

    solicitao da professora, s instrues do livro didtico, alm de manter vnculos dialgicos

    com o conto tradicional a ser recontado. Em sntese, essa redao apresenta elos dialgicos,

    sejam ligando a redao a vozes exteriores, sejam materializando relaes dialgicas internas

    ao texto.

    Seguindo a anlise, examina-se uma narrativa composta por aluno de 3 srie do

    ensino mdio. Diferentemente da primeira redao, esta no parte de proposta de livro

    didtico, mas exclusivamente de instrues dadas pelo professor18

    , que solicitou aos alunos

    produzir uma redao na qual: (i) narrassem uma experincia prpria ou vivida por algum

    que conhecessem, (ii) recontassem o enredo de um conto, romance ou filme, ou (iii) criassem

    um enredo indito a partir de seus conhecimentos.

    A seguir transcreve-se a redao19

    :

    Um momento divino

    Era o fim de uma tarde insolarada, em um ambiente praiano, quando me dei conta

    que nunca tinha visto o pr do sol.

    Eu e meus amigos estavamos passando alguns dias de frias na praia de Ulpanema.

    Era a primeira vez que eu participava de uma viagem desse tipo. Ela havia sido muito

    divertida (apesar das noites mal dormidas, por causa dos meus colegas que insistiam em

    atrapalhar o sonho alheio), e eu queria aproveitar ao mximo o ltimo dia. Ento depois de

    aproveitar bem a tarde na praia com os meus amigos, eu notei que a tarde estava acabando, e

    o mundo a minha volta ia ficando mais escuro.

    Foi quando a minha ficha caiu, eu nunca havia parado para olhar o pr-do-sol. Era

    estranho pois eu j tinha dezessete anos de idade e nunca havia visto o pr-do-sol, durante

    minha vida mais de seis mil vezes o sol havia se posto, e eu nunca tinha parado para ver

    aquela enorme estrela desaparecer no horizonte.

    Ento eu simplesmente me sentei e olhei para o sol, aproveitando que naquele

    momento seus raios no feririam meus olhos.

    Meus amigos queriam voltar logo para a casa que tinhamos alugado, ento eles

    gritavam em onissono Vamos embora, bem alto para que o chamado alcanasse meus ouvidos distantes. Mas eu os ignorei, no me virava para respond-los. Eu no ousaria desviar

    meu olhar do astro rei, no exato momento em que sua beleza era acessivel a olho nu.

    Enquanto eu olhava para aquele lindo e dourado pr-do-sol, me veio uma lembrana

    na mente. Eu havia lido que os gregos antigos acreditavam que o sol era uma carruagem

    dourada guiada pelo deus Apolo. A crena diz que essa carruagem era to linda, brilhante que

    s poderia ser contemplada pelos deuses e o mortal que se atrevesse a olhar para a carruagem,

    receberia como punio a maldio da cegueira.

    Ento depois do ltimo vestgio do sol desaparecer no horizonte, eu me levantei e

    acompanhei meus amigos. Foi ai que eu me dei conta que o que eu havia presenciado tinha

    sido algo lindo, tinha sido algo divino.

    18

    O professor Marcos Paulo de Azevedo, um dos autores deste texto. 19

    A fim de preservar a identidade do aluno, omite-se seu nome. A grafia original do texto preservada.

  • 25

    Como no exemplo anterior, essa redao uma resposta solicitao do professor,

    atendendo sugesto de compor o enredo a partir de experincias pessoais. Escrita em

    primeira pessoa e tendo o narrador-personagem como heri, a narrativa descreve um episdio

    realmente vivido pelo autor, que o adaptou para a narrativa, conforme atesta a passagem: Eu

    e meus amigos estavamos passando alguns dias de frias na praia de Ulpanema. Era a

    primeira vez que eu participava de uma viagem desse tipo.

    Ao narrar esse episdio vivido por ele, o aluno atende proposta do professor, o que

    j esperado, dado o objetivo das indicaes do docente ser exatamente o de nortear a

    produo do discente. Caso este no seguisse as instrues haveria alguma inadequao, seu

    texto no estaria atendendo s exigncias do contexto de produo.

    Veja-se que para Bakhtin/Volochnov (1929, p. 117, grifo do autor):

    A situao social mais imediata e o meio social mais amplo determinam

    completamente e, por assim dizer, a partir de seu prprio interior, a estrutura da

    enunciao.

    No caso, a situao social mais imediata envolve a tarefa proposta ao aluno, dentro

    do contexto social mais amplo da educao formal, representada pela instituio escolar.

    Assim, o aluno busca atender s instrues do professor, para participar (adequadamente)

    daquilo que lhe sugerido ou imposto pela situao social imediata e pelo meio social mais

    amplo. Nesse contexto de comunicao de fundamental importncia o enunciado do

    professor, instruo qual o aluno dialogicamente procura responder ativamente em sentido

    amplo (BAKHTIN, [1952-1953]).

    Alm disso, tratando-se de narrativas, possvel vislumbrar relaes dialgicas entre

    as vozes das personagens, entre as vozes do narrador e das personagens e, tambm, entre a

    redao e referncias externas narrativa. Com relao a esse ltimo aspecto, v-se que o

    enredo gira em torno de uma aluso que o narrador-personagem faz mitologia grega.

    Na sociedade ocidental esto presentes no imaginrio coletivo mitos herdados da

    cultura greco-romana, cujos valores foram e so amplamente difundidos. Bastaria citar o mito

    da esfinge que engolia quem no conseguisse decifrar seu enigma, ou da lenda de Hrcules, o

    semideus que derrotou Medusa com um espelho, ou ainda a grandeza de Zeus, deus do cu e

    da terra, e de Posidon, deus dos mares. Esses e outros mitos foram repassados (muitas vezes,

    com modificaes e adaptaes) de gerao em gerao oralmente ou por meio de livros.

    Como se isso no bastasse, o cinema atual no raramente exibe em suas telas filmes com essa

    temtica.

  • 26

    Fato que o aluno, de uma forma ou de outra, esteve em contato com um desses

    mitos e o trouxe para sua redao, dialogando, assim, com uma fonte externa ao texto.

    Reproduz-se trecho da redao em que citado o mito de Apolo, deus do Sol:

    Enquanto eu olhava para aquele lindo e dourado pr-do-sol, me veio uma

    lembrana na mente. Eu havia lido que os gregos antigos acreditavam que o

    sol era uma carruagem dourada guiada pelo deus Apolo. A crena diz que

    essa carruagem era to linda, brilhante que s poderia ser contemplada pelos

    deuses e o mortal que se atrevesse a olhar para a carruagem, receberia como

    punio a maldio da cegueira.

    Segundo a personagem, o contato com mito teria se dado por meio da leitura: Eu

    havia lido que os gregos antigos acreditavam que o sol era uma carruagem dourada guiada

    pelo deus Apolo. Embora no seja mencionada qualquer fonte de leitura, observa-se, por

    exemplo, nO livro de ouro da mitologia (BULFINCH, 2006), meno ao pedido de Faetonte,

    solicitando do deus Apolo que prove ser seu pai. Como garantia do parentesco, Apolo

    promete realizar qualquer desejo do filho, mas se arrepende, pois Faetonte almeja guiar o

    carro do Sol, tarefa impossvel para um mortal.

    Notam-se, assim, aspectos aludidos pelo narrador-personagem, como a suposta

    crena grega na existncia do Sol ser uma carruagem guiada por Apolo, a qual era impossvel

    ser contemplada diretamente por um homem. o que se nota nesta passagem do mito: O

    filho de Climene20

    subiu a escadaria de acesso e entrou no palcio de seu pai. Aproximou-se,

    mas parou a distncia, pois a luz [do Sol] era mais forte do que podia suportar (BULFINCH,

    2006, p. 50). A seu modo, portanto, a personagem da redao dialoga com esse mito, segundo

    o qual o mortal que olhasse para a carruagem de fogo, o Sol, ficaria cego.

    Na relao entre a redao e o mito pode se ver um elo dialgico. Segundo Bakhtin

    ([1952-1953], p. 271):

    Toda compreenso da fala viva, do enunciado vivo de natureza ativamente

    responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda

    compreenso prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera

    obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreenso passiva do

    discurso ouvido apenas um momento abstrato da compreenso ativamente

    responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real

    alta.

    Ainda segundo Bakhtin ([1952-1953], p. 272), tudo o que aqui dissemos refere-se

    igualmente, mutatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido. Assim, a aluso da personagem

    20

    Faetonte filho de Climene.

  • 27

    ao mito pode ser entendida como a compreenso responsiva do aluno a respeito de mito,

    previamente conhecido. Em outras palavras: ao ler ou escutar algo acerca desse mito, o

    discente possivelmente se posicionou inicialmente de forma silenciosa, j que no se exigiu

    dele qualquer resposta imediata. Porm, como toda compreenso prenhe de resposta, por

    meio da redao, o aluno teve a oportunidade de se tornar escritor e responder ativamente,

    valendo-se de seu conhecimento prvio, dialogando explicitamente com o mito. A esse

    processo Bakhtin ([1952-1953], p. 272) chamou de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi

    ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do

    ouvinte. Por essa via, um discurso exterior ao texto, o discurso acerca do mito, trazido para

    a narrativa.

    Para Bakhtin fundamental compreender como o discurso do outro retomado, o

    que implica conhecer o valor dado pelo enunciador a esse discurso. Ao citar o discurso alheio,

    pode-se manter distante para melhor demarcar as fronteiras entre o discurso prprio e o de

    outrem ou permitir que os mesmos se confundam.

    Na redao analisada predomina a primeira atitude: aquela que delimita nitidamente

    as fronteiras entre o discurso do outro e o discurso do narrador ou autor. Segundo

    Bakhtin/Volochnov (1929) trata-se do estilo linear, em que o sentido do discurso do outro

    seria preservado, sem a pretenso de modific-lo, reacentu-lo ou ironiz-lo. Dentro do

    possvel, a voz alheia seria resguardada da infiltrao das entonaes prprias do autor

    (BAKHTIN/VOLOCHNOV, 1929, p. 149).

    Conforme Bakhtin/Volochnov, uma das verbalizaes do estilo linear o discurso

    indireto em sua variante analisadora do contedo, que:

    [...] apreende a enunciao de outrem no plano meramente temtico e

    permanece surda e indiferente a tudo que no tenha significao temtica. E

    [...] abre grandes possibilidades s tendncias rplica e ao comentrio no

    contexto narrativo, ao mesmo tempo que conserva uma distncia ntida e

    estrita entre as palavras do narrador e as palavras citadas. Graas a isso, ela

    constitui um instrumento perfeito de transmisso do discurso de outrem em

    estilo linear (BAKHTIN/VOLOCHNOV, 1929, p. 161, grifo do autor).

    Tal variao do discurso indireto se faz presente no seguinte trecho da redao: A

    crena diz que essa carruagem era to linda, brilhante que s poderia ser contemplada pelos

    deuses e o mortal que se atrevesse a olhar para a carruagem, receberia como punio a

    maldio da cegueira. O interesse do narrador-personagem ao fazer essa citao , sobretudo,

    transmitir de forma clara a mensagem, no plano meramente temtico, do discurso do outro.

    No se procura, por exemplo, realizar juzos de valor ou interferncias no sentido da voz

  • 28

    alheia, mas reproduzir o discurso do outro, mantendo, na medida do possvel, uma distncia

    ntida.

    Outra relao dialgica se estabelece entre o narrador-personagem e as demais

    personagens, a quem ele chama de amigos, cuja nica a orao Vamos embora. Entre

    aspas, a frase mostra, tambm, o emprego da palavra do outro em estilo linear, quando o

    narrador estabelece uma fronteira clara entre sua palavra e a palavra do outro. Porm, se no

    exemplo anterior a palavra do outro aparecia no discurso indireto, neste o discurso direto

    que serve para transmitir as palavras das personagens, isoladas pelas aspas.

    A propsito, essa fala dos amigos simplesmente ignorada pelo narrador-

    personagem, como ele prprio relata. Ainda assim, o fio dialgico no foi rompido pela falta

    de uma resposta verbalizada. O silncio entendido pelos amigos, que se afastam, deixando-o

    sozinho. Alis, Bakhtin ([1952-1953]) j dissera ser o silncio uma forma de resposta.

    Interessante notar a diferena entre essa citao e a referncia ao mito de Faetonte.

    Quando o narrador reproduz a voz de seus amigos, as relaes dialgicas permanecem no

    mbito da redao, so relaes dialgicas interiores. J na aluso mitologia grega, observa-

    se uma relao dialgica externamente orientada para um discurso alm da redao. Vale

    distinguir tambm que, se em ambas as ocorrncias a voz do outro reproduzida em estilo

    linear, a fbula grega transmitida em discurso indireto, enquanto a voz das personagens

    reproduzida em discurso direto. Ou seja, o estilo o mesmo o linear , mas os tipos de

    discurso empregados para retomar as vozes alheias so diferentes ora discurso indireto,

    ora direto.

    Consideraes finais

    Do desenvolvimento deste estudo, em que se discorreu sobre a forma como os elos

    dialgicos se apresentam nas narrativas examinadas, destacam-se alguns pontos.

    No primeiro texto, Joo e Maria no seu castelo, destacaram-se na anlise os

    dilogos entre as personagens e referncias verso mais conhecida do conto Joo e Maria.

    Quanto ao primeiro ponto, notou-se a utilizao tanto de discurso direto quanto de indireto,

    bem como a demarcao da fala de uma das personagens com o uso das aspas. Acerca do

    segundo ponto, indicou-se a preservao de elementos pertencentes ao conto tradicional, com

    a manuteno de personagens, de seu grau de parentesco, certos elementos fantsticos e

    caractersticas prprias dos contos de fadas. Ao lado disso, destacou-se tambm a insero de

  • 29

    novos elementos no texto, que respondiam s indicaes da professora e proposta do livro

    didtico.

    Na segunda narrativa, Um momento divino, indicaram-se os elos dialgicos que

    marcavam o texto como uma resposta proposta do professor, alm de se destacarem as

    relaes dialgicas entre as personagens e o dilogo da narrativa com referncias externas.

    Como apontado, h um forte elo entre o texto do aluno e a proposta do qual se origina, pois,

    como solicitara o professor, o escrevente procura narrar um fato de sua vida, uma viagem

    supostamente feita por ele a uma praia, oportunidade em que se detm a observar com

    especial ateno o crepsculo. Ainda nessa redao, observa-se a presena de um narrador-

    personagem que, em estilo linear, refere-se a um fato exterior narrativa: o mito grego da

    carruagem do Sol. Na redao observa-se tambm uma relao dialgica no dilogo entre o

    narrador-personagem e seus amigos.

    Nas narrativas analisadas h algumas semelhanas quanto s relaes dialgicas.

    Tanto em Joo e Maria no seu castelo como em Um momento divino: (i) discurso direto e

    indireto constituem a narrativa; (ii) h delimitao de vozes das personagens por meio de

    aspas; (iii) so encontrados elementos externos s narrativas, (iv) os textos nascem do dilogo

    com as propostas dos professores e do livro didtico.

    Um ponto de distino entre as redaes o modo como as referncias externas so

    inseridas. Em Joo e Maria no seu castelo, alguns aspectos so mantidos na recontagem do

    conto infantil, porm o autor traz tambm elementos distintos daqueles presentes na obra

    original, a exemplo da maldade de Maria e de seus poderes mgicos. J em Um momento

    divino, a introduo de um fato externo (o mito do carro do Sol) acontece praticamente sem

    nenhuma alterao. O autor cita o mito sem fazer grandes modificaes, at mesmo porque

    parece interessar ao narrador (e ao autor) empregar o mito de modo prximo ao original, de

    modo prximo ao que conhecia.

    Na anlise dessas duas redaes vislumbram-se alguns traos dos elos dialgicos nas relaes

    entre as personagens, entre essas e o narrador e entre os textos e referncias externas. Alm

    disso, importante notar que essas relaes dialgicas se textualizam de diversos modos:

    atravs de discurso direto ou indireto, pelo emprego ou no de aspas, procurando-se manter a

    integridade da voz alheia citada ou nela intervindo incisivamente. Todos esses pontos atestam

    a concepo dialgica de linguagem proposta pelo Crculo de Bakhtin. E, mais do que isso,

    indicam a necessidade de se ir alm de noes primrias que apenas atestam, afirmam ou

    supem a existncia de vozes (de autor, narrador e personagens) nas narrativas. Para alm da

    bvia presena dessas vozes, interessa ver como elas dialogam no interior do texto e, quando

  • 30

    for o caso, como se configuram os dilogos com textos exteriores. Assim, a apreciao dos

    textos narrativos pode mostrar novas perspectivas, escondidas por trs de uma aparente

    banalidade.

    Referncias bibliogrficas

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  • 31

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  • 32

    II

    A INTERAO LINGUSTICA NAS PRTICAS DE LEITURA E

    PRODUO DE TEXTOS

    Moises Batista da Silva

    Rissia Oscaline Garcia

    Ktia Cilene David da Silva

    MOISES BATISTA DA SILVA doutor em Lingustica pela Universidade Federal do

    Cear. Professor Adjunto IV, da Faculdade de Letras e Artes, da Universidade do Estado do

    Rio Grande do Norte e do Mestrado Profissional em Letras

    (PROFLETRAS/UERN/Mossor/RN). Atua, principalmente, nas seguintes linhas de

    pesquisa: Descrio e Anlise Lingustica, com nfase em Dialetologia, Sociolingustica e

    Lexicografia; Lingustica Aplicada, com nfase em Ensino e Aprendizagem de lngua

    materna; Lingustica Textual, com nfase nos estudos sobre gneros textuais, prticas de

    leitura e produo de textos. Tambm membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Lingusticos

    e Literrios (GPELL/UERN).

    [email protected]

    RISSIA OSCALINE GARCIA possui graduao em Letras (2005), com habilitao em

    Lngua Portuguesa, e Especializao em Leitura e Produo Textual (2009), pela

    Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Atualmente, atua como professora de

    Lngua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino (Mossor-RN). Tambm estudante do

    Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS/UERN/Mossor/RN). Tem experincia na

    rea de Letras, com nfase em Lngua Portuguesa, Anlise do Discurso e Gneros Textuais. :

    [email protected]

    KATIA CILENE DAVID DA SILVA possui graduao em Licenciatura em Lngua

    Portugus e Lngua Espanhola e respectivas literaturas pela Universidade Estadual do Cear;

    Tem mestrado e doutorado em Lingustica pela Universidade Federal do Cear. Foi

    professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e, atualmente, professora do

    Curso de Letras (Espanhol) da Universidade Federal do Cear. Atua nas linhas de pesquisa:

    Descrio e Anlise Lingustica, com nfase em Sociolingustica e Lingustica Aplicada, com

    nfase em Ensino e Aprendizagem de lngua materna e espanhola. E-mail:

    [email protected]

  • 33

    Introduo

    Ver a linguagem como um lugar de interao humana, significa dizer que com ela o

    falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos que no preexistiam fala. Por isso,

    a linguagem, com certeza, essencial para o desenvolvimento de todo e qualquer homem,

    como tambm condio primordial para apreenso de conceitos que permitem aos sujeitos

    compreender o mundo e nele agir. Este artigo tem como objetivo principal abordar a

    linguagem como lugar de interao, como tambm apresentar, a partir dessa concepo de

    linguagem, como as prticas de leitura e produo textual se processam no ensino-

    aprendizagem da lngua.

    Primeiramente, apresentaremos algumas consideraes gerais sobre a linguagem no

    contexto do ensino. Nesse momento, de forma mais aprofundada, tambm apresentaremos

    algumas consideraes sobre o modelo scio-histrico de M. Bakhtin sobre a interao na

    linguagem. Depois, discorremos sobre a linguagem em seu funcionamento discursivo e as

    prticas de leitura e produo de textos que levam em conta a interao verbal. E, justamente,

    por compreendemos que a produo de um discurso no acontece no vazio, julgamos

    necessrio tambm refletir, ainda nesse ponto, sobre as condies de produo da atividade

    interativa de escrever textos. Essas reflexes sero fundamentadas com base, principalmente,

    nas orientaes de Geraldi (2013) e Bronckart (1999), para que possamos entender melhor a

    relao entre autor/texto/leitor.

    1 Consideraes sobre a linguagem no ensino

    Na concepo que v a linguagem como forma de interao, o usurio da lngua

    realiza aes e atua sobre o interlocutor. Para Travaglia (2003, p. 23):

    A linguagem pois um lugar de interao humana, de interao

    comunicativa pela produo de efeitos de sentido entre interlocutores, em

    uma dada situao de comunicao e em uma contexto scio-histrico e

    ideolgico. Os usurios da lngua ou os interlocutores interagem enquanto

    sujeitos que ocupam lugares sociais e falam e ouvem desses lugares de acordo com informaes imaginrias (imagens) que a sociedade estabeleceu

    para tais lugares sociais.

    A lngua s tem existncia no jogo que se articula na interlocuo. Portanto, estudar

    a lngua tentar detectar compromissos que se criam atravs da fala e as condies que

    devem ser preenchidas por um falante para falar de certa forma em certa situao concreta de

  • 34

    interao. por isso que Geraldi (2013, p. 5) afirma: crucial dar linguagem o relevo que

    de fato tem: no se trata evidentemente de confinar a questo do ensino de lngua portuguesa

    linguagem, mas trata-se da necessidade de pens-lo luz da linguagem.

    E isso se d na interlocuo, que o espao de produo de linguagem de

    constituio de sujeitos. Focalizar, ento, a interao verbal como o lugar da produo da

    linguagem e dos sujeitos que se constituem pela linguagem, significa admitir:

    a) que a lngua (no sentido sociolingustico do termo) no est de antemo

    pronta, dada como um sistema de que o sujeito se apropria para us-la

    segundo suas necessidades especficas do momento de interao, mas que o

    prprio processo interlocutivo, na atividade de linguagem, a cada vez a

    (re)constri;

    b) que os sujeitos se constituem como tais medida que interagem, com os

    outros, sua conscincia e seu conhecimento de mundo resultam como

    produto deste mesmo processo. Neste sentido, o sujeito social j que a linguagem no o trabalho de um arteso, mas trabalho social e histrico

    seu e dos outros e para os outros e com os outros que esta se constitui.

    Tambm no h um sujeito dado, pronto, que entra na interao, mas um

    sujeito se completando e se construindo nas suas falas;

    c) que as interaes no se do fora de um contexto social e histrico mais

    amplo; na verdade, elas se tornam possveis enquanto acontecimentos

    singulares, no interior e nos limites de uma determinada formao social,

    sofrendo as interferncias, os controles e as selees impostas por esta.

    (GERALDI, 2013, p. 28).

    Assim, constatamos que, quando falamos, dependemos no s de um saber prvio de

    recursos expressivos disponveis, mas de operaes de construo de sentidos destas

    expresses no prprio momento de interlocuo. E construir sentidos no processo

    interlocutivo, demanda o uso de recursos expressivos. Mas o ato de falar no s apropriar-se

    de um sistema de expresses pronto. Se fosse assim, no haveria construo de sentidos.

    1.1 A viso scio-histrica de M. Bakhtin sobre a linguagem

    Por falar de interao na linguagem, vejamos agora algumas consideraes sobre o

    modelo lingustico scio-histrico de Bakhtin que nos ajudar a entender melhor a questo da

    interao na linguagem. Isto porque, para Bakhtin, a linguagem vista como atividade

    interativa, marcada pelo dilogo face a face. O seu objeto de estudo este dilogo verbal e a

    sua unidade de anlise o enunciado. Em sua teoria, podemos perceber que uns dos conceitos

    bsicos mais trabalhados so: o signo ideolgico, os gneros do discurso, a alteridade, a

    heterogeneidade discursiva e a polifonia.

  • 35

    Na obra Esttica da Criao Verbal, Bakhtin diz que existe uma alternncia dos

    sujeitos falantes e que esta alternncia observada de forma clara e direta no dilogo; nele, os

    enunciados dos interlocutores alternam-se regularmente. O dilogo (interao) alm de ser o

    objeto de estudo do modelo terico de Bakhtin, tambm a forma clssica da comunicao

    verbal. O dilogo possui um acabamento especfico que expressa a posio do locutor, sendo

    possvel tomar, com relao a esta posio, um posicionamento responsivo. Este acabamento

    um dos traos fundamentais do enunciado. Para Bakhtin (2011) o enunciado a unidade real

    da comunicao verbal. E continua dizendo:

    A fala s existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um

    indivduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre

    forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e no pode existir fora

    dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o contedo, a composio, os

    enunciados sempre possuem, como unidades da comunicao verbal,

    caractersticas estruturais que lhes so comuns, e, acima de tudo, fronteiras

    claramente delimitadas. (p. 293).

    E quando se fala que em Bakhtin a linguagem era vista como atividade interativa, isso

    quer dizer que ele tinha uma concepo dialgica da linguagem. Por isso mesmo, que, em

    torno do seu conceito de signo, vai ser elaborado o conceito de dialogia. Sobre o signo, em

    sua obra Marxismo e Filosofia da linguagem, Bakhtin (1986) diz que

    o produto ideolgico faz parte de uma realidade(natural ou social) como

    todo corpo fsico, um instrumento de produo ou produto de consumo; mas,

    ao contrrio destes, ele tambm reflete e refrata uma outra realidade, que lhe

    exterior. Tudo que ideolgico possui um significado e remete e algo

    situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que ideolgico um

    signo. Sem signos no existe ideologia [...] E mais adiante fala: Os signos s podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de

    um terreno que no pode ser chamado da natural no sentido usual da palavra: no basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que

    os signos se constituam. fundamental que esses dois indivduos estejam

    socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): s

    assim um sistema de signos pode constituir-se. A conscincia individual no

    s nada pode explicar, mas, ao contrrio, deve ela prpria ser explicada a

    partir do meio ideolgico e social (Op. Cit., p. 31-35).

    Resumindo, para Bakhtin, os signos apenas surgem numa situao e num grupo

    social. Neles, a interao se realiza atravs dos enunciados que permeados pelas vozes dos

    outros. dessa forma que entendemos que a polifonia o coro de vozes que se manifesta

  • 36

    normalmente no discurso, j que o pensamento do outro constitutivo do nosso, no sendo

    possvel separ-los radicalmente. (KOCH,2011).

    2 A linguagem e as prticas de leitura e produo de textos

    Tratar a linguagem em funcionamento discursivo ver a linguagem como

    efetivamente a usamos. Neste funcionamento, podemos perceber alguns os objetivos dos

    interlocutores, as imagens recprocas que eles fazem um do outro e o conhecimento de mundo

    que so portadores. A respeito desse assunto, Costa Val (1992, p.1), diz:

    Reconhecer esses elementos como integrantes do processo de significao

    que se constitui na/pela atividade implica conceber a linguagem como forma

    de interao cujo funcionamento prev sua relao com as circunstncias da

    enunciao. O cdigo lingustico a estrutura fonolgica, morfolgica e sinttica da lngua, aspecto privilegiado pela escola uma das dimenses desse fenmeno. Alm dessa dimenso formal, preciso considerar a

    dimenso semntica a relao da lngua com os sistemas de representao da realidade e a dimenso pragmtica a relao da lngua com seus usurios.

    Tudo isso, como mesmo diz a autora, converge para um ponto: reconhecer a

    dimenso pragmtica da lngua implica reconhecer tambm o discurso, que a unidade

    comunicativa bsica, como objeto por excelncia do estudo da lngua.

    O que isso quer dizer? Quer dizer que se o professor e a escola comearem a ver a

    linguagem por esse lado, acontecer uma grande mudana: o objeto no ser apenas o cdigo

    lingustico, mas tambm os processos de produo de textos, por meio dos quais os usurios

    da lngua exercitam no processo de aquisio e desenvolvimento da escrita e,

    consequentemente, da leitura.

    2.1 A inteirao atravs da leitura

    Primeiramente, ressaltamos algumas observaes sobre as prticas de leitura

    realizadas, no geral, dentro da sala de aula. Tais observaes so: a) a escola no tem dado

    leitura o espao que lhe devido; b) a leitura na escola tem sido mero pretexto para outras

    atividades e pouco produtivas para o aprendizado da lngua; c) a leitura na escola se limita

    quase sempre aos textos veiculados pelos livros didticos; d) a monotonia e a mesmice na

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    metodologia dos professores no motivam os alunos para a leitura; e) praticamente no h

    uma verdadeira interao lingustica entre escritor/professor/aluno, porque a leitura que feita

    na maioria das vezes uma leitura j autorizada e veiculada nos livros didticos.

    Mas, as teorias lingusticas contemporneas tm lutado para mudar essas prticas,

    como tambm contribudo de forma significativa para que tenhamos uma nova concepo de

    texto e de leitura com uma nova postura metodolgica.

    Por isso que Orlandi (2012, p.41) destaca alguns componentes das condies de

    produo da leitura: para um mesmo texto, leituras possveis em certas pocas no o foram

    em outras, e leituras que no so possveis hoje sero futuramente; H diferentes tipos de

    discurso. Por exemplo, antigos textos snscritos sagrados so lidos hoje como textos

    literrios; Existe um modo de leitura que pode ser remetido s distines de classes sociais;

    H leituras previstas para um texto, mesmo que essa previso no seja total, j que sempre so

    possveis novas leituras dele; Todo leitor tem sua histria. Sobre isso, Orlandi (Op. Cit., p. 43)

    comenta que:

    Leituras j feitas configuram dirigem, isto , podem alargar ou restringir a compreenso de texto de um dado leitor. O que coloca, tambm para a

    histria do leitor, tanto a sedimentao de sentidos como a intertextualidade,

    como fatores constitutivos da sua produo. Em suma, as leituras j feitas de

    um texto e as leituras j feitas por um leitor compem a histria da leitura

    em seu aspecto previsvel.

    De acordo com os estudos da autora citada acima, podemos dizer que os sentidos so

    constitudos no ato da leitura e, por isso, so distintos de leitor para leitor. Nesse espao, os

    interlocutores se deparam e se definem no que diz respeito s suas prprias condies de

    produo, sendo que o ato de ler configurando a partir delas.

    Desse modo, podemos constatar que a leitura no apenas um ato de decodificao

    da palavra escrita. Trata-se de uma ao dotada de sentido social, reflexivo, crtico e

    construtivo. A leitura funciona como processo de interao do indivduo com a sociedade. A

    leitura se constitui, assim, num caminho de acesso a todos que desejam a obteno da

    interao. A mesma s se fortalece quando praticada constantemente e numa perspectiva

    crtica, atravs da qual o leitor se posiciona no apenas diante do qu, mas perante o mundo e

    a sociedade que ele traduz. Ou seja, o leitor, no s recebe, mas tambm constri um

    significado global para o texto. Isto quer dizer que ele busca pistas formais, antecipa essas

    pistas, formula e reformula hipteses, aceita ou rejeita concluses. J o autor procura

    basicamente a adeso do leitor. Por isso, o autor apresenta, da forma melhor possvel, os

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    argumentos que ele acha convincentes atravs das pistas formais para facilitar o alcance dos

    seus objetivos.

    Sobre esta relao entre o leitor e o autor por meio da leitura, Kleiman (2013, p. 65)

    afirma: Mediante a leitura, estabelece-se uma relao ente o leitor e o autor que tem sido

    definida como de responsabilidade mtua, pois ambos tm a zelar para que os pontos de

    contato sejam mantidos, apesar das divergncias possveis em opinies e objetivos.

    Isto implica dizer que, na leitura, a atuao tanto do autor quanto do leitor so

    importantssimas. Nela, o autor deve deixar suficientes pistas no seu texto para permitir ao

    leitor a reconstruo do caminho que ele percorreu. Por outro lado, o leitor deve acreditar que

    o autor tem alguma coisa importante a dizer atravs do texto, de forma coerente. E se esse

    leitor no entende algo, ele procura solucionar, ativando o seu conhecimento prvio

    lingustico, textual e de mundo.

    2.2 A interao atravs da escrita

    Todos ns sabemos que os usurios da lngua j tm um conhecimento intuitivo que

    os possibilita a interagir, socialmente, no uso da linguagem de forma eficiente e eficaz. Por

    isso, se vemos a linguagem como fenmeno pluridimensional, devemos conceber tambm o

    conhecimento desses falantes como multifacetado. Aqui, percebemos duas dimenses desse

    conhecimento lingustico: a dimenso pragmtica, relacionada com a enunciao e a

    dimenso gramatical, relacionada como enunciado.

    O conhecimento pragmtico diz respeito enunciao. A enunciao o conjunto

    das circunstncias que cercam a produo da linguagem (CASTILHO, 1988, p.113). Os

    elementos de enunciao que fazem partes das condies de produo da linguagem so: O

    contexto histrico-cultural em que vivem e atuam os interlocutores e que determina sua teoria

    do mundo (inclusive seu conhecimento de outros textos) e seus conhecimentos lingusticos-

    pragmticos e gramaticais; Os interlocutores, com seus objetivos, as imagens recprocas que

    fazem um do outro (e, claro, seus conhecimentos enciclopdicos e lingusticos); A situao

    imediata de comunicao, que inclui a modalidade de lngua utilizada (oral ou escrita) e,

    portanto, o canal/suporte da fala ou da escrita. Todos estes elementos so importantssimos na

    constituio da forma e da significao dos textos.

    Quanto ao conhecimento gramatical, segundo Costa Val (1992), o autor opera uma

    srie de decises, em reas e nveis diferentes, tendo por objetivo sua inteno comunicativa,

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    a imagem emprica ou virtual de seu leitor, os conhecimentos enciclopdicos que supe

    partilhados com seu interlocutor, e o veculo e o gnero de seu texto.

    Diante de tudo isso que vimos, percebemos que se a linguagem for vista como uma

    atividade que vai alm dos fatores gramaticais, onde interferem tambm os fatores cognitivos

    e pragmticos, teremos, ento uma mudana radical na maneira como o objeto e as estratgias

    do ensino de lngua so concebidos. Se pensarmos assim, com certeza, as aulas de portugus

    no sero mais limitadas a uma viso mecanicista da lngua. A esse respeito, eis que Costa

    Val (1992, p. 13) constata:

    Quando se tomam como objeto de trabalho em sala os processos de

    produo e leitura de textos, numa viso integrada dos mecanismos de

    criao da linguagem, no h mais l