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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Laboratório de História Ambiental Monografia de fim de curso É da roça! História Ambiental dos caiçaras da Península da Juatinga/RJ e sua relação com a conservação da natureza. Tainá Miê Seto Soares DRE101142254 Orientador: José Augusto Pádua Novembro de 2006

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Laboratório de História Ambiental

Monografia de fim de curso

É da roça!

História Ambiental dos caiçaras da Península da Juatinga/RJ e sua relação com a conservação da natureza.

Tainá Miê Seto Soares DRE101142254

Orientador: José Augusto Pádua Novembro de 2006

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No lugar que havia mata, hoje há perseguição. Grileiro mata posseiro, Só pra lhe roubar seu chão. (...) Zé da Nana tá de prova, naquele lugar tem cova Gente enterrada no chão:1

1 A Saga da Amazônia, música de Vital Farias.

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Dedico esse trabalho ao meu pai matuto, Antonio Castor, que desde cedo me levou pelos caminhos das matas e das histórias dos antigos da roça. E a minha mãe Célia, que me ensinou a amar os matutos, em suas intermináveis conversas nos povoados de nossas viagens. Agradecimentos:

São tantos agradecimentos desse tão simples texto, que como monografia mais parece um projeto de vida. Anos se passaram desde o dia em que conversando com Seu Maneco, veio a primeira idéia de fazer algum trabalho sobre os caiçaras e sua terra. Descobri que era pra mim tão prazeroso escrever sobre os caiçaras, que não conseguia terminar, inventando sempre uma correção ou reflexão. Foram tantas pessoas envolvidas nesse trabalho, que realmente há muito, este transcendeu seu viés acadêmico, sem deixar de respeitá-lo. Agradeço por ordem de chegada no projeto, porque todos foram fundamentais. Então começo pelo Seu Maneco, da Praia do Martim de Sá, que me mostrou um universo de luta ambiental que até então não conhecia de perto, a luta das populações tradicionais. Agradeço a querida amiga Tadzia Maya, que foi quem me mostrou que não poderia ser outro o assunto de minha monografia final. À Paloma Sol Hertz, Marcelo Bueno e Carolina Carvalho, que me acompanharam na longa trilha de 10 dias na pesquisa de campo, pois sem eles não haveria material nenhum. Ao Bruno Pacheco de Oliveira, que além de editar meu documentário sobre os caiçaras, foi um apoio emocional sem o qual teria desistido do projeto. Também agradeço ao João Pacheco de Oliveira Filho, que na parte da história indígena foi um incentivador, num momento em que achava já que este era um tema proibido. Agradeço também a Mariza Carvalho Soares, que me emprestou sem me conhecer pessoalmente, sua câmera mini-dv nova, com a qual terminei as filmagens. Agradeço a todos os caiçaras da Península da Juatinga, que me levaram em seus barcos, me ofereceram suas casas, me contaram muitas histórias e que com o tempo se tornaram grandes amigos. Seu Altamiro, Dona Jandira, Dona Maria, Dona Dica, Seu Filhinho, aos jovens da Praia Grande, Dona Tetéia do Pouso, que foi como uma mãe pra mim, ao Gilson, grande contador de causos e seus amigos Às crianças do Pouso, a maravilhosa família do Careca e da Dona Maria da Ponta da Juatinga, seus filhos que me contaram muitas histórias de assombração, Seu Olímpio, um sábio caiçara e seus vários feijões. Seu Aplígio do Cairuçu das Pedras, o França cesteiro, seu irmão Jango, Seu Domingo da Ponta Negra, Seu Nelson, Dona Dilma, agradeço com muito amor à todas as comunidades e à todos os entrevistados. Com eles aprendi muitas coisas, como prever o tempo através das estrelas, fazer peixe com banana e o gosto do macucu, mas também aprendi infinitas coisas que não conseguem ser expressas com palavras e que mudaram muitas maneiras de me relacionar e ver o mundo. Às pessoas da ONG Verde Cidadania, que sempre foram muito parceiras, e que me explicaram exaustivamente os detalhes das leis, dos processos e de seu relacionamento com a comunidade. Agradeço também pelo exemplo de luta da Thati, da Flavinha, do Léo, do Marcio e do Manuel, que sempre me apoiaram muito. Agradeço também à Dani, a Laura, ao Martim e à Lucia Cavalieri que também foram muito importantes no aprofundamento das questões pesquisadas. Agradeço muito aos meus avós, aos meus amigos e irmãos que dividiram comigo as aventuras e questionamentos dessa pesquisa; o Carlos Henrique me ajudando a datilografar, o Kenzo me ajudando a diagramar, a Ádjoa repassando às organizações internacionais os protestos caiçaras. Meus amigos foram as vigas que me sustentaram durante todo esse difícil processo de estudar a luta política de uma cultura que depende de seu ambiente para sobreviver enquanto povo caiçara. Entraram nas lutas e estamos formulando juntos novas propostas para um relacionamento mais harmônico entre urbanidade e conhecimento tradicional na Península da Juatinga. À Leila Maria Capella, que me ajudou na organização mental e física do texto e a quem devo muito a conclusão do trabalho. Por fim agradeço muito ao meu orientador, José Augusto Pádua, que com o início de seu Laboratório de História Ambiental, me proporcionou continuar na graduação sem ter que me transferir para outro curso que levasse mais em conta o ambiente e suas interações com os homens. Agradeço também pela sua paciência e perseverança em me ouvir e compreender. Espero que toda essa pesquisa possa contribuir para a rede de trabalhos que recentemente vem estudando e se relacionando com comunidades tradicionais e seus ambientes e que buscam uma interação mais viva entre a academia e as comunidades pesquisadas.

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Índice: Introdução teórico metodológica.......................................................................... 06 Capítulo I - A região, o homem e a natureza............................................. 27 Capítulo II - A vida caiçara e sua herança indígena................................... 45 Capítulo III - Ambiente e resistência: memória ambiental, segurança alimentar, turismo e luta pela terra.......................................... 66 Conclusão ........................................................................................................... 86

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I n t rodução Teór i co Metodológ ica “A História Ambiental está se convertendo em uma disciplina aplicada que, rompendo com a impronta academicista e eruditos que sempre tiveram os relatos históricos; busca e propõe soluções para a crise ambiental atual ou coopera com outras disciplinas para encontrá-las.”2

O tema des ta pesqu i sa é a h i s tó r i a das re l ações

es tabelec idas en t re a popu lação ca içara da Penínsu la da

Jua t i nga e o m eio am bien te em que v i vem. A Penínsu la da

Jua t i nga é uma reg ião l i t o rânea de d i f í c i l acesso, na d i v i sa en t re

os Es tados do Rio de Jane i ro e São Pau lo. É i n te ressante

observar que , nessa reg ião , são os p rocessos h i s tó r i cos que

fazem com que, a l ém de um ra ro ecoss is tema de mata at l ân t i ca

conservado, se encont re um a exp ress iva cu l t u ra l oca l .

Para a His tó r ia Am bienta l , essa reg ião apresenta d iversas

ca rac te r ís t i cas de i n te resse: a l ém das p rá t i cas comuni tá r i as de

o r i gem i ndígena e a l u ta pe la posse da te r ra , ex i s te a ques tão

da á rea se r uma Reserva Ecológ ica e uma Á rea de P ro teção

Ambienta l . As f ormas de i n te ração hom em -natureza são o pon to

de par t i da para a aná l i se h i s tó r i ca da v i da ca içara.

2 CIRCULAR #1 - março 2005 - III SIMPOSIO LATINOAMERICANO E CARIBEÑO DE HISTÓRIA AMBIENTAL, III ENCONTRO ESPANHOL DE HISTORIA AMBIENTAL “História Ambiental, um instrumento para sustentabilidade” Carmona (Sevilha), 6,7 e 8 de abril de 2006

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A P r a i a G r an d e d a C a ja í b a é h o je o p r i n c i p a l f o c o d e c o n f l i t o e n t r e

c a i ç a r a s e g r i l e i r os .

A H is tó r i a Am bien ta l a par t i r da década de 70 , quando

começou a se es t ru tu ra r com o campo de pesqu i sa acadêmica j á

con tava com uma b i b l i ogra f ia . Es ta apesar de não te r essa

nom enc la tu ra, j á t rabalhava at ravés da pe rspect i va da re l ação

hom em -natureza . Os v i a j antes na tu ra l i s tas , as pesqu isas

m odern is tas sobre cu l t u ra popu la r e tantos out ros pesqu isado res

como Sérg i o Bua rque de Ho l l anda, Antôn io Cândi do e G i l ber to

F re i re .

Na Amér i ca La t i na vem se desenvo lvendo ma is

con temporaneam ente pesqui sas que abarcam aná l i ses sobre a

cu l t u ra e o empobrec im ento , que segundo Her re ra , a lém da

d i scussão sobre a des t ru i ção da na tu reza perm i tem uma “ v i s ão

m a i s g l o b a l , c o m u m a n o ç ã o m a i s c l a r a d e q u e f a z e m o s p a r t e da

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h u m a n i d a d e . ” 3 Essas pesqu i sas v i sam c r i a r a poss ib i l i dade de

i n teg ra r duas es fe ras h i s to r i cam ente d i cotômicas que são as

c i ênc i as natu ra is e as soc i a i s .

Dent ro do tem a pesqu i sado, esse v i és de aná l i se que

percebe a cu l tu ra com o fa to r impor tan te para a pesqui sa

am bienta l f o i aprof undado nas h i pó teses. A p r imei ra f ocou nos

ca i çaras como cu l t u ra lm ente e b i o log icam ente descenden tes de

i nd ígenas , possuidores de um e tnoconhec imento que pode ser

u t i l i zado na conservação e recompos i ção ambien ta l das á reas

onde v i vem. A segunda pesqu i sou como os f a to res adv indos da

u rban idade: g r i l agem, p ro tes tan t i smo, l e i s ambienta i s e t u r i smo,

f o ram h is to r i camente agentes de deg radação ambienta l na

pen ínsu la . A ú l t ima ana l i sou como recentem ente vem se f o r j ando

um es te reot i po de que os ca i çaras são um povo exc l us ivamente

pescado r . I gnorando, m ui tas vezes i n tenc ionalmente, suas fo r tes

ra í zes agr íco l as .

O tema da p resen te pesqu isa f o i sendo desenvolv i do a

par t i r do p r imei ro con tato com um l í der natu ra l da com unidade

ca i çara, Seu Manoe l dos Remédios . Único morador da P ra i a do

Mar t im de Sá , sua l u ta pe la posse da te r ra mo t i vou a f ormação

de um a ONG, a Ve rde C idadania e a cons t rução de uma rede de

a l i ados u rbanos . A par t i r do resu l tado pos i t i vo desse mov imento,

o caso de Seu Maneco, como é conhec ido, passou a ser um

exemplo m ui to respe i tado dent ro da com unidade ca içara . O

pr i nc i pa l e l emento de i n te resse em re lação a Seu Maneco são

suas h i s tó r i as sobre a f auna, a f l o ra , a po l í t i ca , a l u ta pe la t e r ra ,

a eco log ia , a é t i ca e o m odo de v i da ca içara .

3 DINIZ, Laura. O viés social marca história ambiental na América Latina. Entrevista com Guillermo Castro Herrera. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: PNUD Brasil. Sítio http://www.pnud.org.br/meio_ambiente/reportagens/index.php?id01=413&lay=mam

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S . M a n e c o s o b r e a s r a í z e s d a m a n g u e i r a q u e p l a n t o u qu a n d o j o v e m .

Após a primeira viagem de campo, foi constatada a carência de fontes

primárias provocada principalmente pelo impacto do protestantismo. E, ao retornar

à cidade, soube-se que o Instituto Estadual de Florestas – IEF/RJ havia destruído

ranchos de pesca na Praia Grande da Cajaíba. A ONG Verde Cidadania, que já

atuava na região, elaborou uma proposta de ação civil pública, via internet, que

conseguiu 700 assinaturas e denunciou a ação violenta do IEF. A partir desse

episódio, fez-se necessário ampliar o alcance da pesquisa. O foco, que era

inicialmente o estudo da família dos Remédios, da Praia do Martim de Sá, passou

a ser toda a região da Península da Juatinga.

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Ass im, t ema e o ob je to desta pesqu isa i nserem -se no

domín io da H i s tó r i a Ambi en ta l . Es ta , segundo W ors te r , “ n a s c eu

( . . . ) d e u m o b je t i v o m o r a l , t e n d o p o r t r á s f o r t e s c o mp r o m i s s o s p o l í t i c os ,

m a s , à m e d i d a q u e a m a d u r ec eu , t r an s f o r m o u - s e t a m b é m n u m

e m p r e e n d i m e n t o ac ad ê m i c o q u e j á n ã o t i n h a u m a s i m p l e s o u ú n i c a a g e n da

m o r a l o u p o l í t i c a p a r a p r o m o v e r . S eu o b je t i v o p r i nc i p a l s e t o r no u

a p r o f u n d a r o n os s o e n t e n d i m e n t o d e c o m o o s s e r e s h um a n o s f o r am ,

a t r a v é s d os t e m p o s , a f e t a d os p e lo s e u a m b i e n t e n a t u r a l e , i n v e r s a m e n t e ,

c o m o e l es a f e t a r a m e s s e a m b i e n t e e c om q u e r es u l t a d os . ” 4 Tam bém na

op i n i ão desse au to r , “ o h i s t o r i a d o r a m b i e n t a l t e m q ue e n f r e n t a r o

f o r m i d á v e l d es a f i o d e e x a m i n a r a s i d é i a s c o m o a g e n t es ec o l ó g i c os ” . 5

Diegues e Nogara , em seu l i v ro O Nosso Lugar V i rou

Parque, sobre o p rocesso de c r i ação da á rea p ro teg ida do Saco

do Mamanguá, que pe r tence à Reserva da Jua t i nga , i n i c i a seu

tex to ressa l t ando: “ ( . . . ) h á a n e c e s s i d a d e d e s e c om e ç a r a f a z e r , no

B r a s i l , de f o r m a s i s t e m á t i c a , a h i s t ó r i a e c o l ó g i c a n ão s o m e n t e a n í v e l

n a c i o n a l , m a s t am bé m r e g i o n a l e a t é l o c a l . Es s a h i s t ó r i a e c o l ó g i c a c o mo

p r o p o s t a p o r W or s t e r ( 1 9 8 8 ) n ã o d ev e s e r s i m p le s m e n t e a h i s t ó r i a d os

c i c l os ec o n ô m ic os , m a s , s ob r e t u d o a h i s t ó r i a d as r e l a ç õe s c o m p l ex as ,

m a t e r i a i s e s i m b ó l i c a s , q u e os h o m en s , a o l o n go d o t em p o h i s t ó r i c o ,

d e s e nv o l v e r a m c o m o m u n d o n a t u r a l e c o m os o u t r os h o m e ns . ” 6

O es tudo das popu lações ru ra i s no B ras i l , a par t i r dos

c ron i s tas co l on ia is , passando pe los na tu ra l i s tas , a té chegar às

C iênc ias Soc ia i s do séc .XX, sem pre buscou cap ta r as

pecu l ia r i dades e os m odos de v ida dos g rupos hab i t an tes do

i n te r i o r do país : caboc los , r i be i r i nhos , m atutos , roce i ros ,

ca i p i ras , e out ras denominações que ho je se f undem no concei t o

de popu lações t rad ic i onai s ou na t i vas , ao que se j un tam os

i nd ígenas , qu i l om bolas e ca i ça ras . Um dos mais re l evantes

4 WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, 1991. p.02 5 idem 6 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.12.

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es tudos do séc . XX sobre populações ru ra i s é o l i v ro Parce i ros

do R io Boni t o , de An tôn io Cândido, um dos p recursores e base

para o desenvo lv imento de d i versas re f l exões sobre a

ru ra l i dade. O ca ip i ra , com o homem do campo, de p rá t i cas

a rca i cas , é abordado de f o rma complexa e ho je a lguns au to res

cons ide ram que “ a c u l t u r a c a i ç a r a é u m a s u bc u l t u r a d a c u l t u r a c a i p i r a ,

n ã o s i m p l es m e n t e p o r s e c o ns t i t u i r nu m a v a r i a ç ã o p a r a l e l a , m a s ( . . . )

t a m b é m c o ns i d e r a m o c a i ç a r a c o m o u m a e x p r es s ã o r e g i o n a l d o c a i p i r a do

i n t e r i o r ” . 7

A l guns au tores d i sco rdam, a f i rmando que os ca iça ras

possuem i den t i dade p rópr i a . Nas en t rev is tas rea l i zadas du ran te

a pesqu isa de cam po, os i n fo rmantes comumente se ref e r iam

aos ca i p i ras quando que r i am expressar a d i f e rença en t re a v i da

nas c i dades e a v i da na roça, ar t i cu l ando ca içaras e ca i p i ras

como “p r imos” cu l t u ra i s .

É a i nda nascen te o es tudo das l i gações en t re o

e tnoconhec imento e o f azer c i ent í f i co f o rm al . Na h is to r i ograf ia ,

o t ema populações t rad ic i ona is não aparece em nenhum tóp i co

pedagóg i co, e a pesqu isa sobre essas populações perm aneceu

como obje to de ou t ras c i ênc i as soc i a i s , com o a Ant ropo log ia , a

Geogra f i a e a Soc io l og i a . Apesa r d i sso , e a par t i r dos novos

en f oques t raz i dos pe la H i s tó r i a Ambien ta l , esses g rupos

popu lac i onais de ín t ima re l ação com o meio ambien te podem ser

abrang idos pe los es tudos acadêmicos. Sendo f undamenta l a

re f e rênc ia dos t raba lhos p i onei ros das ou t ras á reas . Segundo

W ors te r ,

“ à m e d i d a q u e o s h i s t o r i a d o r e s e n f r e n t a m e s s as q u e s t õ es

e l e m e n t a r e s r e f e r e n t es a f e r r a m e n t as e s o b r e v i v ê n c i a , l o g o p e r c e b e m q u e

a q u i t a m b é m o u t r as d i s c i p l i n a s a n da r am t r a ba l h a n d o , e há m u i t o t e m po .

E n t r e e l a s e s t á a d i s c i p l i n a d o s an t r op ó l o g o s , c u j o s t r a ba l h o s os

7 ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa Científica versus planejamento e gestão ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000.

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h i s t o r i a d o r e s am b i en t a i s t ê m l i d o c o m g r a n d e i n t e r es s e . E l es c o m eç a r a m a

p r o c u r a r n o s a n t r o pó l o g o s c h av es p a r a p o n t os c r u c i a i s d o q u e b r a - c a b eç as

e c o l ó g i c o : q u a l a m e l h o r m a n e i r a d e c o m p r e e nd e r a r e l aç ão d a s c u l t u r as

m a t e r i a i s h u m a n a s co m a n a t u r e z a ? ” 8

A perspec t i va da H i s tó r i a Ambienta l com o poss ib i l i dade de

novas abordagens é perceb ida de f o rma c l a ra nos tex tos que

em basa ram teor i cam ente a monograf i a . O v i és agroecológ i co da

h i s tó r ia , e Para fazer His tó r i a ambien ta l , am bos de Dona ld

W ors te r , e A Formação da Agricultura Brasileira de José Augusto de

Pádua, demons t ram, como d i z W ors te r , que “ a H i s t ó r i a A m b i e n t a l é ,

e m r es u m o , p a r t e d e u m e s f o r ç o r e v i s i o n i s t a p a r a t o r n a r a d i s c i p l i n a da

H i s t ó r i a m u i t o m a i s i nc l u s i v a n a s s u a s n a r r a t i v a s d o q u e e l a t em

t r a d i c i o n a l m e n t e s i d o . ” 9

Uma das m ais s i gn i f i ca t i vas p roduções b i b l i ográf icas na

á rea das C iênc ias Soc ia i s é a do Núc leo de Es tudos em Áreas

Úmidas da USP, p r i nc i pa lmente a t ravés do an t ropó logo Car los

D iegues . Este desenvol ve um a i n tensa p rodução b ib l i ográ f i ca ,

i nser i ndo nos meios acadêmicos a p rob lemát i ca das un idades de

conservação e popu lações t rad ic i onai s . Na sér i e de

Enc i c l opédias Caiçaras , c inco até ago ra , sobre o t u r i sm o, a

conservação, a h i s tór i a , a mem ór ia e as f es tas , os t emas são

ana l i sados por d i versos pesqui sadores , de d i versas á reas do

conhec imento, a lém de en t rev is tas com ca içaras , i nc l us i ve Seu

Maneco , do Mar t im de Sá . Essa aná l i se é im por tan te na ge ração

de um arcabouço teór i co sobre o t em a, re t i rando-o do

obscuran t i smo e poss ib i l i tando , i nc l us i ve, conseqüênc ias

po l í t i cas . En t re tan to , a l gumas c r í t i cas t êm s i do f e i t as ao v i és

m etodológ i co que , segundo a l guns au to res com o Cr i s t i na

Adam s, é caren te de r i go r c i en t í f i co acadêmico , p r inc i pa lm ente

8 WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, 1991. 9 idem

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na u t i l i zação de conce i t os u l t rapassados. Apesar d i sso , as

conseqüênc ias a té i n te rnac i onais do l i v ro O Mi to Moderno da

Natureza In tocada f o ram um d i v i sor de águas no p rocesso de

debate sobre a c r i ação de á reas p roteg idas e suas

conseqüênc ias po l í t i cas e cu l t u ra i s pa ra as popu lações nat i vas .

A b i b l i ograf i a u t i l i zada fo i p r i nc i pa lm ente a que t ra ta do

tem a ref e rente à H is tó r i a Am bien ta l , popu lações t rad ic i onais ,

cu l t u ra popu la r e un idades de conservação. As pesqui sas

acadêmicas , monograf i as e t eses de mes t rado sobre a Reserva

Ecol óg ica da Juat i nga f o ram fundamenta i s . A t ese de mest rado

de Laura S inay sobre o eco tu r i smo em Mar t im de Sá, a vas ta

pesqu isa sobre a reca tego r i zação da rese rva f e i t a por Lúc i a

Cava l i e r i e a d i scussão teor i cam ente aprof undada f e i t a por

F l áv i a Ol i ve i ra Te ixe i ra f oram no r teadoras não apenas com o

es tudos acadêmicos, mas, t ambém porque suas au to ras

par t i c iparam a t i vam ente dos p rocessos po l í t i cos da pen ínsu la .

Esse fa to se re f l e t i u nos t rabal hos e en r i queceu as aná l i ses .

Já o l i v ro A Fer ro e Fogo , de W arren Dean, f oram mais

t rabalhados no sen t i do da vas ta pesqu i sa que represen tam

sobre o t em a, e m enos pe las abo rdagens metodológ i cas .

P r i nc i pa lmente o t ex to de W ar ren Dean que , apesar da p rec i osa

pesqu isa documenta l , e do amplo panorama sobre a ocupação

da Mata A t l ânt i ca , a i nda se p rende a m ui tos esquemas de

de f esa de uma pos i ção bem def in i da, em seu caso o cará te r

des t ru i dor do hom em. Seu rad ica l i smo destoa da va l o rosa

pesqu isa e de ixa por f a l ar a l guns tóp i cos impor tantes com o as

poss ib i l i dades e exper i ênc i as de equ i l í b r i o hom em – na tu reza ,

bem como da teor i a sóc i o -am bienta l i s ta de que o hom em não é

um a en t i dade separada de seu me io e v i ce-versa .

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Sobre o t em a espec í f i co da h i s tó r i a ca içara, o l i v ro

Lavoura Cai ça ra , de Car l os Borges Schmid t , de 1958 , é um

documento p rec i oso . Neste l i v ro , o au to r ana l i sa as p r i nc i pa is

f o rmas de p rodução ca içara, l evan tando sua o r i gem ind ígena.

Esta anál i se é c ruc i a l pa ra a compreensão do tema porque

abrange impor tan tes ques tões mui to debat i das até ho je quando

se t ra ta do tema ca i çara.

A metodolog ia de pesqui sa u t i l i zada , a l ém da i nvest i gação

b i b l i ográf i ca , f o i a de pesqu i sa de cam po par t i c i pan te, com

en t rev is tas l i v res , pe rgun tas -chave , ma is para conve rsa do que

para o ques t i onár i o . A i nserção da pesqu isa f o i a fe t i va , método

que poss i b i l i tou um maior acesso a i n f ormações res t r i t as . Foram

os i n f o rmantes mais p róx imos dos l aços de amizade que

fo rneceram dados complexos , como a l oca l i zações dos s í t i os

a rqueo lóg i cos e os p rocessos de g r i l agem. Os s í t i os

a rqueo lóg i cos são cercados de tabus comun i tá r i os , que

res t r i ngem o acesso , a l ém de se r assunto pouco comen tado com

“es t ranhos” ; também a m or te de morado res por causa de b r i gas

de te r ra e l endas tam bém são d i f í ce i s de serem na r radas,

p r i nc i pa lm ente pe lo impacto do p ro tes tan t i smo. Os morado res

m ais an t i gos f o ram os mais p rocurados , buscando mapear

l i gações en t re moradores , an t igas h i s tó r ias e l ugares ou t ro ra

hab i t ados .

En t re tan to , moradores de todas as i dades f o ram

en t rev is tados - c r i anças , ado lescentes e adul t os j ovens - ,

p r i nc i pa lm ente no i n tu i t o de perceber as d i f e renças e

aprox imações nas p rá t i cas p rodu t i vas e o conhec imento

t rad i c ional das d i fe ren tes i dades . São poucos en t re os j ovens os

que va lo r i zam as a t i v idades t rad ic iona i s , f a to que se i nver te nas

c r i anças , que têm i n te resse pe los b r i nquedos , c i randas e

h i s tó r ias .

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Agentes u rbanos também f oram pesqui sados , no sen t i do de

es tabelecer v i sões d i f e renc iadas das ques tões da reg ião, bem

como sua a tuação . Os responsáve is l ega is pe la reserva também

hav iam s i do esco lh i dos para serem en t rev is tados. E , com o

an te r i o rm ente t odos os pesqui sadores de á reas soc i a i s que

ped i ram au to r i zação para suas pesqu i sas t i veram acesso

negado, a l ém de en t ra rem para a l i s t a de ameaçados de m or te ,

p ref e r i u -se não con tac ta r os ó rgãos l ega is , por rece io de

represá l i as dos gr i l e i ros , que m antêm com aque les órgãos uma

rede de i n fo rmação e ação .

As en t rev i s tas dos t rabalhos de campo fo ram os f i os

condutores da pesqu isa . Os temas pesqu isados com os

m oradores l oca is f ocaram a m emór i a da h i s to r ia l oca l , dos

conhec imentos bo tân i cos , de f auna, c l im át i co, cu l i ná r i o , e

ou t ros . Mui tas lendas e causos rem ontam an t igas l endas

co le tadas po r Câmara Cascudo e ou t ros e tnóg ra fos ,

ev i denc iando uma he rança i ndígena e co l on ia l . As m ús i cas , as

b r i ncadei ras e a esp i r i t ua l i dade fo ram m apeadas, permi t i ndo

aná l i ses ma is m inuc i osas sob re o im pac to das t rans f o rm ações

cu l t u ra i s contemporâneas .

A p rodução de um docum entár io , com imagens d i g i t a i s

cap tadas duran te as en t rev is tas f o i f undam enta l na conso l idação

da p ropos ta de i n te ração en t re a pesquisa acadêmica e a

comunidade pesqu isada. P r i nc i pa lmente porque a p ropos ta

i n i c i a l de t rabalho de conc lusão do Curso de g raduação hav ia

s i do um v ídeo documentár i o sob re a h i s tó r i a dos ca i çaras da

Jua t i nga. Embora ta l p ropos ta t enha s i do negada, o v ídeo fo i

conc lu ído an tes des ta monograf i a e abr i u o I I Fes t i va l de

C inem a Ca içara , ocor r i do na P ra i a do Sono, den t ro da

pen ínsu la , em dezembro de 2005.

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Na pesqu isa buscou-se tam bém um con jun to de p roduções

aud iov isua is , como os v ídeos f e i t os sobre a P ra i a de Mar t im de

Sá e a f amí l i a dos Reméd ios , o v ídeo sobre a puxada de canoa,

o docum entár i o sobre os assov ios que chamam os an im ais , e

ou t ros v ídeos impor tan tes . Sobre o p rocesso de expu lsão dos

m oradores da P ra i a Grande da Ca j aíba , como o "Expulsos do

Para íso " , "Vest íg i os " e ou t ros sobre a Pra i a do Sono , Ponta

Negra e sobre a expu lsão dos m oradores da Tr i ndade, como o

f i lme Vento Cont ra . Neste documentár i o da década de 70 , o

p rocesso v i o len to mov ido pe lo g r i l e i ro Gib ra i l T annus con t ra os

ca i çaras m oradores da P ra i a da T r i ndade é cap tado em im agens

que t rans f o rmam esse docum entár i o em um a im por tan te f on te

h i s tó r i ca. Out ros aspec tos t am bém são t ra tados por esses

documentár i os com o o impacto do tu r i smo, a p ropos ta de

abe r tu ra de uma es t rada a té a P ra i a do Sono e o

e tnoconhec imento dos moradores .

As pesquisas sobre as re l ações en t re popu lações

t rad i c ionai s e á reas p ro teg idas têm evolu ído no sent i do de

desvendar os i n teresses que mui tas vezes es tão impl íc i t os sob a

bande i ra da p roteção da na tu reza . I n te resses econômicos,

i deo lóg icos e po l í t i cos m ui tas vezes são envol t os em uma capa

de a rgum entos am bien ta l i s tas , aprove i t ando -se do marke t i ng

re l ac i onado à impor tânc ia da p ro teção da na tu reza , causada

pe l a c r i se am bien ta l do século XXI . Mui tas vezes esses fa l sos

i n te resses p reservac ion is tas causam danos a i nda m aio res às

á reas que se propõem a p roteger .

Há conseqüênc ias po l í t i cas nas pesqu isas , j á que es tas

geram dados que m ui tas vezes con t ras tam com o senso comum

no qua l f o i baseada a c r i ação das á reas p roteg idas . Essa

perspec t i va po l í t i ca da p rá t i ca acadêmica re l ac i ona-se à anál i se

foucaul t i ana de que todos os corpos e ações têm poder . Para

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Foucaul t , há um m i to em re l ação à ausênc ia de poder en t re

saber e c i ênc i a . Pa ra e l e , impl íc i to em todo saber es tá um a l u ta

de pode r , e o poder po l í t i co não es tá ausente do saber , pe l o

con t rá r i o , e l e é fo r j ado com o saber . Em suas pa lav ras , “ p o d e r e

s a b e r e s t ã o d i r e t a m e n t e i m p l i c ad os ; n ã o h á r e l a ç ã o d e p o d e r s em

c o n s t i t u i ç ã o c o r r e l a t a d e u m c a m p o d e s a b e r , n em s ab e r q u e n ã o

s u p o nh a e n ã o c o n s t i t u a a o m es m o t e m po r e l a ç õ e s d e p o d e r . ” 10

Para as comun idades , as i nves t i gações c i en t í f i cas também

são percebidas com o poss ib i l idades de ação po l í t i ca. As

pesqu isas das C iênc ias Soc ia i s , na qua l a H i s tó r i a se i nsere ,

sugerem um out ro m odo de re l ac i onamento com a soc i edade

l e t rada , j á que es ta h i s to r i camente age de f orma opress iva,

con t ra a com unidade ca içara .

A l gumas ques tões es tão impl í c i t as na p resente pesqui sa:

Qua i s i n te rações são possíve is en t re Academia e com unidade?

Qua l a impor tânc ia da pesqu i sa c i en t í f i ca para os morado res

l oca i s? E po r f im , qual o re to rno poss íve l que ex is te para

am bos?

Por f im, es te t raba lho , ao comparar os resu l t ados da

pesqu isa de campo com as fon tes b i b l i ográ f i cas , cons t ru i u um

esboço da H is tó r i a dos Ca içaras da Pen ínsu la da Juat i nga , e

sua i n t r i ncada te ia de re l ações com o ambien te que os ce rca.

Houve uma ênfase no impac to dos agen tes ex te rnos , como o

p ro tes tan t i sm o, a g r i l agem , as ONGs , pesquisas , ó rgãos

am bienta i s , en f im, a soc i edade urbana, nas p rá t i cas , v i sões de

m undo e cu l t u ra popu la r dos ca iça ras dessa reg ião. A l guns

concei t os não aprof undados pe los au to res pesquisados , com o a

m emór i a ambien ta l e a de f i c i ênc i a a l imentar , f oram aqui

10 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas — uma arqueologia das ciências humanas. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

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aspec tos f undamenta i s , mas a f a l ta de i n fo rmações sobre esses

tem as p re j ud i cou a aná l i se , embora não a t enha impedido de

todo . Um a das p r inc i pa i s perspec t i vas des te t rabalho fo i t razer à

l uz as a t i v i dades t rad ic i onai s que se encon t ram em ex t inção

en t re os ca iça ras , as conseqüênc ias dessas perdas e as

a l t e rna t i vas possíve i s pa ra sua adaptação à con tem porane idade.

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Mapa do Estado do Rio de Janeiro e a localização da Península da Juatinga

Mapa da Península da Juatinga e as áreas protegidas.

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Mapa das Pr i nc i pa is V iagens de Campo

1 ª V i a g e m d e C a m p o : m a i o / 2 0 0 5

1 0 d i a s ( b a r c o e t r i l h a )

2 ª V i a g e m d e C a m p o : s e t e m b r o / 2 0 0 5

1 0 d i a s ( b a r c o e t r i l h a )

C o m u n i d a d e s p e r c o r r i d a s n a p e n í n s u l a :

1 . P r a i a d o C r u z e i r o ( S a c o d o M a m a n g u á )

2 . P r a i a d o E n g e n h o ( S a c o d o M a m a n g u á )

3 . P r a i a G r a n d e d a C a j a í b a

4 . P r a i a d a I t a o c a

5 . P r a i a d o C a l h e u s

6 . P r a i a d a I p a n e m a

7 . P r a i a d o P o u s o d a C a j a í b a

8 . P o n t a d a J u a t i n g a

9 . P o n t a d a R o m b u d a

1 0 . P r a i a d o M a r t i m d e S á

1 1 . P r a i a d o C a i r u ç u d a s P e d r a s

1 2 . P r a i a d a P o n t a N e g r a

1 3 . P r a i a d e A n t i g u i n h o s

1 4 . P r a i a d e A n t i g o s

1 5 . P r a i a d o S o n o

1 6 . C o n d o m í n i o d e L a r a n j e i r a s

1 7 . P r a i a d a T r i n d a d e

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Mapa das V iagens de Campo Com plementares

1 ª V i agem de Campo: Fest i va l de C inem a Ca içara

dezembro /2005 - 4 d i as ( t r i l ha )

2ª V iagem de Campo: Ag r i cu l t u ra T rad i c i onal /Agroecolog ia

abr i l / 2006 - 4 d i as (ba rco e t r i l ha )

3ª V iagem de Campo: Arqueolog i a do Museu Nac i ona l

Junho/2006 – 3 d ias (barco e t r i l ha )

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Principais Informantes:

• Paraty Mestre Hildo (marinheiro): História, hábitos caiçaras, herança indígena e caça. Obs: Último caiçara morador do centro histórico de Paraty.

• Saco do Mamanguá

S.Benedito (aposentado): Sacis ou “tentos”, protestantismo, fim da lavoura, barcos de arrasto, escravos, decadência social e econômica do Saco. Obs: Filho de um grande festeiro cujas festas foram lembradas em diversas localidades.

• Praia Grande da Cajaíba

D.Maria (agricultora/comerciante): Nomadismo caiçara, bijus puvus, roças, herança indígena, grilagem e bailes. Obs: No decorrer da pesquisa D.Maria, uma das mais importantes informantes, apresentou problemas emocionais devido à pressão da grilagem. S.Filhinho (agricultor): Lendas e causos caiçaras. Obs: Casado com D.Maria, mas, moram em casas separadas. D.Dica (agricultora/comerciante): Roça e grilagem. Obs: Irmã de D.Maria, move processo contra capataz do grileiro que a ameaçou com uma arma de fogo.

S.Altamiro (agricultor/pescador/comerciante): Roça, compostagem, viveiros agroflorestais, grilagem, herança indígena e pesca.

Obs: Presidente da Associação de Moradores da Praia Grande sofre constantes ameaças do grileiro, além de ser réu em processo de reintegração de posse.

D.Jandira (agricultora/pescadora/comerciante): Feitio de farinha e grilagem. Obs: Casada com S.Altamiro.

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• Praia do Pouso da Cajaíba

D.Tetéia (merendeira da escola): Roças, bailes e sítio arqueológico. Obs: Informou a presença de sílex e machados de pedra, localmente conhecidos como pedras de raio.

S.Miguel (agricultor/pescador): Festas, bailes, comidas, rezas, lendas e causos. Obs: Casado com D.Tetéia, S.Miguel era o violeiro da Folia do Divino, que percorria as praias da Península.

Gilson (pescador/pedreiro/outros): Lendas, causos, trabalho. Obs: Filho do casal, Gilson mesmo jovem é reconhecido na praia como ótimo contador de histórias seguindo a tradição do pai.

• Ponta da Juatinga

D.Maria (agricultora/pescadora): Roça, pesca e conflitos de terra entre parentes. Obs: Sua casa em construção na Praia dos Calheus foi destruída pelos agentes do IEF, na mesma operação que destruiu os ranchos na Praia Grande.

Careca (agricultor/pescador): Gostos caiçaras. Obs: Casado com D.Maria, é nitidamente descendente de indígenas, com fortes características asiáticas.

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S.Olímpio (agricultor): Variedade genética das roças, controle do fogo na coivara, consórcio de espécies vegetais, sítio arqueológico, herança indígena, localizou a aldeia de onde sua avó indígena teria morado. Obs: S.Olímpio foi um dos principais informantes, tanto pela localização do sítio arqueológico, como pelas informações sobre a avó indígena, e também porque possui variedades genéticas de vegetais indígenas, extintos em outras localidades.

• Ponta da Rombuda

Camuzinho (agricultor/pescador): Modo de vida caiçara tradicional.

Creuseli (agricultora): Vida em um local isolado e vacinação infantil. Obs: A Ponta da Rombuda é um local extremamente isolado, entre rochedos e a mata e onde foi encontrada a maior presença de usos e costumes caiçaras tradicionais como a casa em palafitas, o aimpim como alimento principal da dieta e o consorcio de espécies.

• Praia de Martim de Sá

D.Capitulina dos Remédios ou D. Capita (dona de casa): Vida caiçara, caiçaras antigos e cata de mexilhões. Obs: Matriarca, segundo o filho S.Maneco, D.Capitulina tem 100 anos e foi muito lembrada nas outras praias pela saúde. Segundo contam é capaz de rachar lenha e fazer trilhas mais rápido que um jovem e quando chegar pedir um cigarro. S.Manuel dos Remédios ou S.Maneco (pescador/agricultor/dono de camping): Flora, fauna, desequilíbrios ambientais, história caiçara, antecedentes indígenas, sítios arqueológicos, grilagem, Ong, protestantismo, feitio de canoas. Obs: S.Maneco foi um dos principais informantes e o caiçara mais conhecido dentro e fora da Península.

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• Praia do Cairuçu das Pedras

S.Aplígio (agricultor/pescador/dono de camping): Feitio de farinha, poluição, agricultura, pesca, lendas, sítios arqueológicos, antecedentes indígenas, causos e magia. Obs: S.Aplígio, assim como D.Maria e S.Filhinho foram os únicos a relatar elementos da cultura caiçara extintos inclusive na memória dos outros caiçaras entrevistados, é casado com a irmã de S.Maneco, D.Dulcinéia. S.Jovino (agricultor/pescador/fazedor de canoas/dono de camping/fazedor de tapitis): Sítio arqueológico cerâmico, antecedentes indígenas, feitio de canoas, extinção da fauna. Obs: S.Jovino é irmão de Seu Maneco e D.Dulcinéia, ele e os filhos são os últimos fazedores de tapiti da península.

Jango (agricultor): Encantados e livro do séc.XIX. Obs: É irmão de D.Lorença, casada com S.Maneco.

Francino (cesteiro/agricultor/dono de camping): Feitio de balaios e manejo de cipós. Obs: Francino, irmão de Jango, é o último fazedor de cestos e balaios da península, muito conhecido pela boa qualidade de seu trabalho que abastece toda a região.

• Praia da Ponta Negra

S.Domingos (agricultor/pescador): Roça, alimentos industrializados, associação de moradores e tapitis. Obs: S.Domingos é um dos últimos agricultores que colhe a maioria de seu alimento na Ponta Negra, fato que se orgulha muito. É casado com D.Dominga.

S.Nelson (aposentado/pescador/agricultor): Roça, adubagem com feijão guandu, lenda da Mãe do Ouro, grilagem. Obs: S.Nelson foi um dos líderes locais que organizou a resistência da Ponta Negra contra a ação dos grileiros, aparecendo inclusive no filme Vento Contra.

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D.Dilma (aposentada/dona de camping): Bailes e trilhas percorridas até as festas. Obs: D.Dilma descreveu com detalhes os bailes e a dança de tamancos, que foi inclusive negada por muitos antigos que se tornaram protestantes.

Nego (padeiro): Reflorestamento, desmatamento e conflitos da associação de moradores.

• Praia do Sono

D.Baíca (agricultora/dona de camping): Roça e antecedentes indígenas. Preta (estudante): Jovens, ciranda e roça. Obs: Filha de D.Baíca.

S.Nilo (aposentado): Protestantismo. Obs: Considerado caiçara mais velho da comunidade.

S.Antônio (pescador/dono de camping): grilagem e protestantismo. Obs: Foi um dos líderes da comunidade na resistência à grilagem.

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A Região , o homem e a natu reza .

A Região de Parat y

Para t y é um a das c i dades mai s an t i gas do pa ís . Fo i pon to

de embarque do ouro e desembarque de esc ravos e es t range i ros

de todo o mundo que v i nham tenta r a sor te nas minas . A t ravés

do Caminho do Ouro da P i edade, ou Es t rada Velha de Minas,

sub iam as bo iadas e a l imentos , pe l o que ou t ro ra f o ra a t r i l ha

gua ianá pa ra o Va le do Paraíba . Apesar d i sso, a reg ião da

Jua t i nga sempre fo i de d i f í c i l acesso e con t i nua sendo.

“ O c u l t i v o d e c a n a - d e - aç úc a r f o i a a t i v i da d e m a i s i m p o r t a n t e a p a r t i r

d o s éc u l o X V I I I , q ua n d o o s e n g e nh os s e es t a b e l ec e r a m na r e g i ã o . N o

S a c o d o M a m a n g u á a i n d a p o d e m s e r e n c o n t r a d os c i n c o r u í n as d e s s es

e n g e n h os . ” 11

Na época áurea dos engenhos , a reg ião possu ía um a

produ t i v i dade re l evan te e duran te o século X IX p roduz iu

quant i dade s i gn i f i ca t i va de caf é, f umo e aguardente . A i nda os

an t i gos m oradores l embram -se das canoas de voga i ndo

ca r regadas para Pa ra t y, l evando ca fé , f a r i nha e pe ixe seco.

Ho je , com os barcos a motor , a com ida vem de Para t y,

em pacotada em sacos p lás t i cos que depo is são que im ados .

A decadênc ia da reg ião começou com a concor rênc ia da

es t rada de Fer ro D .Pedro I I e a abo l i ção dos esc ravos . Mesmo

ass im con t i nuou a p roduz i r a f amosa cachaça Para t y e ass i s t i u

ao i n í c i o de um novo c i c lo , o da banana . Todos esses c i c l os

devas ta ram as encostas , e ho j e , em todas as á reas da Rese rva,

vêem-se g randes á reas degradadas . Mesm o que a t écn i ca de

cu l t i vo i ndígena, carac te r i zada pe lo uso da que imada (co i vara) ,

11 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.12

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t enha s i do u t i l i zada em épocas p ré-co lon ia i s , não dev ia a t i ng i r o

a l t o das se r ras , j á que e ram queimadas cont ro l adas.

A l ém d i sso , u t i l i zavam um s is tem a de pous io longo, o que

não pa rece te r s i do a regra dos co l on i zadores . Duran te o

p rocesso de desenvo l v imento econômico do B ras i l , as t écn icas

de p rodução empregadas se basearam na u t i l i zação

im prev i dente e avassalado ra dos recursos natu ra i s . Essa reg i ão

v i veu o apogeu e decadênc ia do c ic l o do ou ro , os engenhos e a

t rans fo rm ação da p rodução em gêneros a l im ent í c i os , quando

passou a p rover os cen t ros urbanos.

Os sucess ivos c i c l os econômicos i nc l u i ndo a pesca

em barcada e as p l an tações de banana f o ram f a to res de

d i spersão da popu lação , m as segundo Nogara e A .C.D iegues , “ o

e s v a z i a m e n t o i m p o r t a n t e d a r e g i ã o s e a g r a v o u c o m a c o n s t r u ç ã o d a V ia

D u t r a , e m 1 9 4 0 , d es l o c a n do o e i x o e c o nô m i c o p a r a o V a l e d o P a r a í b a . A

p a r t i r d e 1 9 5 5 , a c o m u n i c aç ã o d e P a r a t i c o m o e x t e r i o r s e f a z i a c a d a v ez

m e n o s d e b a rc o e c a n o a s a v o g a e m a i s p e l a es t r a d a d e C u nh a . Ac e n t uo u -

s e o p r o c e s s o d e m i g r aç ã o p a r a o u t r as á r e a s c om o , po r e x e m p l o , A n g ra

d o s R e i s , o n d e , e m 1 9 5 0 , s e i n s t a l o u o es t a l e i r o V e r o l m e , s e g u i d o , em

1 9 7 4 , pe l a i m p l an t aç ã o d a U s i n a N u c l ea r q u e e m p r e g o u 9 . 0 0 0 o p e r á r i os . ” 12

Mas f o i com a cons t rução da BR-101, na década de 70 , que

o con ta to com o mundo urbano se to rnou mass ivo . Para le l o à

deg radação de t rechos i n te i ros do recor te do l i t o ra l , os t er renos

so f re ram uma va lo r i zação abrup ta que gerou um ac i r ramento

v i o l en to das d i spu tas por t e r ras da década ante r i o r .

“ A p a r t i r d o s i m p l es p r o j e t o d a R i o - S a n t o s , o s p r o p r i e t á r i os de

t e r r a s s u r g e m c o m o q u e d o n a d a , d e m a r c a n d o á r e as e n o r me s a p a r t i r d e

p e q u e n as e s c r i t u r as , “ g r i l a n d o ” t e r r a s , e x p u l s a n d o o s l av r a d o r es c om

v i o l ê nc i a e a m e a ç a s o u m es m o c o m o f e r t a s i r r i s ó r i a s a q u e o s l a v r a d o r es

n ã o r e s i s t i a m , p o r n ã o c o n h ec e r o v a l o r e x a t o d o d i n h e i r o . Es t es ,

12 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.22

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a n a l f a b e t os e m s u a m a i o r i a , e r a m e ng an a d o s d e v á r i as f o r m a s , i nc l us i v e

a s s i n a n d o c o n t r a t o s d e a r r e n da m e n t o , m e i a o u p a r c e i r a , o n d e a c a b av am

c e d e nd o s e u s d i r e i t o s d e p os s e , s e m s a be r . ” 13

A Penínsu la da Jua t i nga

I nsc r i t a na pa r te para t i ense da ba ía da I l ha Grande,

encont ra -se a Pen ínsu la da Jua t i nga, que cons t i tu i o ú l t imo

f ragm ento l i t o râneo de á reas con t i nuas de mata a t l ân t i ca do

es tado do R io de Jane i ro . A Reserva Eco lóg ica , que toma toda a

Penínsu la , es tá inse r i da den t ro da Á rea de Proteção Ambien ta l

do Ca i ruçu , que por sua vez se l im i t a com o Pa rque Nac iona l da

Ser ra da Bocaina , a Ser ra do Mar e ou t ras á reas p ro teg idas do

l i t o ra l nor te de São Pau lo. É um a das m ais be las e conservadas

reg iões l i t o râneas do pa ís , mesmo se s i t uando en t re as duas

m aio res cap i t a i s . A á rea p ro teg ida va i de Para t i -M i r im, na par te

do mar i n te r i o r , e passa pe lo Saco do Mamamguá , ún i co f i o rde

do hemis f ér i o Sul . Na P ra i a Grande da Ca ja íba, ass im com o no

Saco, há f o r te p ressão da especulação im obi l i á r i a . As p ra i as da

Ipanema, I t aoca e Ca lheus são hab i t adas por comunidades

ca i çaras , com poucas casas veran is tas .

O Pouso da Ca jaíba , aonde se chega após duas horas e

m eia de barco de Para t i , é bem tu r í s t i co, com ba res e casas

para t em porada. Nes ta comuni dade f o i descobe r to recen temente

um s í t i o a rqueológ ico carac te r í s t i co de a l deamentos de povos

p ré -h is tó r i cos f azedores de machados de pedra , p r ovavelmente

re l ac i onados aos s í t i os da P ra i a do Aventure i ro , na I l ha Grande.

Essa descober ta f o i f e i t a por a rqueó logos do Museu

Nac ional /UFRJ, em decor rênc ia dos s í t i os arqueo lóg icos

l evan tados pe la p resente pesqui sa.

Da P ra i a do Pouso sa i a t r i l ha de mais 2 horas a té a P ra i a

do Mar t im de Sá. No cos tão da Pen ínsu la , j á na á rea do m ar 13 Idem

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aber to , onde ex is te um im por tan te f a ro l , s i t ua-se a com unidade

de pescado res da Ponta da Jua t inga , de d i f í c i l acesso . Após a

comunidade da Ponta do Juat i nga, abre-se a reg ião oceân ica,

conhec ida como coste i ra . Após o f a ro l , f i ca a Ponta da

Rombuda, habi t ada apenas pe lo casal Camuzinho , C reuse l i e os

f i l hos . Local i so l ado e ex t remamente be lo , onde f o ram

encont radas p rá t icas ca içaras t rad ic i ona i s j á ex t i n tas na ma io r i a

dos l ugares . A próx im a p ra ia é a Sum aca , nom e de um an t i go

t i po de embarcação e t am bém hab i t ada por apenas um m orador ,

Manequ i nho . A segunda depo i s do f a ro l e rea lmen te possu idora

de um a enseada e de um r i o é a Pra i a do Mart im de Sá. Cober ta

de densa mata en t re as a l t as montanhas do va l e , tem apenas o

rancho dos ba rcos de Seu Maneco, ou Manoe l dos Remédios ,

en t re as cas tanhe i ras da p ra i a .

No Saco das Anchovas , há pa ren tes da f am í l ia dos

Remédios , e depo i s Cai ruçu das Pedras , Ponta Negra,

An t igu i nhos, An t igos e P ra i a do Sono, onde acaba a á rea de

conservação. Depo is vem o condomín io de Laran j e i ras , habi t ado

por m ul t im i l i onár ios , e a f am osa P ra i a da T r i ndade , onde os

v i o l en tos p rocessos de g r i l agem na década de se ten ta i nse r i ram

o tem a ca iça ras na pau ta de d i scussão dos m ov imentos soc ia i s .

Ex is tem ou t ras l oca l i dades ca içaras na Penínsu la , com o o Saco

das Sard i nhas, a Ce la, e hab i t ações em pequenas enseadas.

Essas, ent re tanto, re f l e tem os aspec tos es tudados nas ou t ras e

não f oram de t i dam ente pesqui sadas , por serem mui to d im inu tas

e t ambém porque o f oco se f i xou nas comunidades com m aior

i n f l uênc ia geopol í t i ca , h i s tó r i ca e cu l t u ra l .

Na reg ião pesquisada, as “á reas verdes ” , cons ideradas de

g rande be leza cên ica e hab i ta t de espéc ies impor tan tes , são há

m i lhares de anos te r r i t ó r i o manejado . Desde as ocupações p ré -

h is tó r i cas , i ndígenas , co l on ia i s , a té os d i as a tua i s , a ocupação

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l i t o rânea bras i l e i ra vem sendo es tudada pe los pesqui sado res .

A l ém do s í t i o encon t rado no Pouso , f o ram co lh i dos re l a tos de

am olado res de pedra na Pra i a do Mar t im de Sá, onde fo i

encont rado um p ingente de pedra e no Ca i ruçu das Ped ras .

Houve também um re l a to de um s í t i o cerâm ico no i n te r io r da

m ata , na d i reção do P ico do Ca i ruçu , f e i t o pe lo Seu Jov ino,

i rmão de Seu Maneco, e es te s í t i o pode ser a a l de ia a que Hans

S taden se re f e re com o ex i s ten te aba i xo do P ico do Caeroçu.

A lém d isso , na Ponta da Juat i nga , há d i versos re l a tos sobre a

Toca dos Ossos , um a cave rna onde es ta r i am ente r rados índ i os ,

an tepassados dos a tua is hab i t antes da Pon ta da Jua t i nga.

Os hab i tan tes da Penínsu la : os ca i çaras

Por t a i s re l a tos podem os i n fe r i r que as matas da Penínsu la

da Jua t i nga possuem uma ocupação de l onguíss ima da ta , que

nos d i as de ho je é f e i t a pe los a tua is ca i çaras . Es tes possuem

um te r r i t ó r i o i n te rmi tente , de roças em regene ração e á reas

ocupadas por an tepassados . Ao o lhar do nã o na t i vo, apresenta -

se apenas uma grande área verde , sem perceber as

espec i f i c idades da ocupação. Ex i s tem dem arcações que são

fe i t as com árvores , de an t i gas casas dos pa i s e avós , que ho je

es tão cobe r tas pe la mata . São m angue i ras , j aque i ras , cam bucás

e j abu t i cabe i ras que gua rdam a memór i a do l oca l antes ocupado

pe l os antepassados .

Os ca içaras , ass im com o ou t ras soc i edades t rad ic i ona i s

baseadas na o ra l i dade, v i vem, no p resente , uma c rescente

rup tu ra na t ransmissão de conhec im ento, p r i nc ipa lm ente pe lo

a f as tamen to das gerações . Ta l vez por i s to houve um a

preocupação por par te dos en t rev is tados em ver reg is t rado seus

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conhec imentos . A h i s tó r i a g rupal recon tada const i t u i -se um a

af i rmação dessas soc i edades , e l eg i t im a o seu d i re i t o ao

te r r i t ó r i o ancest ra lmente ocupado. Nesse con tex to , as pesqui sas

p rop ic i am o f o r ta l ec im ento e a coesão dos g rupos humanos,

em bora não de i xem de ser mecan ismos da soc iedade l e t rada,

que é uma das p r i nc i pa is causas das f o rmas de desagregação

v i v i das pe las soc iedades t rad i c i onais , p r i nc i pa lm ente a t ravés do

im pac to causado pe la esco la r i zação i n f ant i l .

A o r i gem i ndígena das popu lações ca içaras ev i denc i a-se,

em pr imei ro l ugar , pe l o p rópr i o nome, que em tup i s i gn i f i ca

pa l i çada , que p ro tege as t abas . Este t i po de cercamento de

va ras de taquara e /ou da Jussara a i nda ho je é u t i l i zado na

reg ião , em á reas ma is povoadas e t am bém nas i so l adas. No

Nordes te , as ca i çaras são a rmadi lhas de pesca mar i nha usadas

pe l os pescado res t rad i c i onais . Segundo Schmid t :

“ os c a i ç a r a s s ã o f r u t o d a m i s c i g e n aç ã o en t r e í n d i o , p o r t u g u ês e n e g r o ( em

m e n o s q u a n t i d a d e ) q u e d u r a n t e l on go p e r í o d o f i c a r a m r e l a t i v a m e n t e

i s o l a d o s n a M a t a A t l ân t i c a e n o l i t o r a l d e S ã o P a u l o . A i nd a q u e s e j a m

e t n i c a m e n t e d i s t i n t os , s u a c u l t u r a ap r e s e n t a i n f l u ê nc i a m u i t o g r an d e da

c u l t u r a i n d í g en a n o s i n s t r u m e n t os de t r ab a l h o ( c o i v a r a , c a n oa s , f a b r i c aç ão

d e f a r i n h a ) , v o c a b u l á r i o d i f e r e n c i a do d o s d e m a is h a b i t an t e s d o e s t ado ,

e t c . ” 14

No caso da Penínsu la , ex i s tem complem entações a essa

desc r i ção : a descendênc ia de p i ra tas , como fo i d i t o em

en t rev is tas ; a herança genét i ca i nd ígena nos t raços f í s i cos das

pessoas e nas semen tes que p l an tam, na genea log ia do

paren tesco , na desc r i ção de p rá t i cas ant i gas desaparec i das;

a l ém do consórc i o de espéc ies nas roças também ser uma

ca rac te r ís t i ca remanescente da cu l tu ra i nd ígena.

14 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958. p.56

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O enf oque h is tó r i co ao pesqu i sar as remin iscênc ias , en t re

os ca i çaras a tua is , das p rá t i cas de seus an tepassados

i nd ígenas , é impor tan te por cont r i bu i r pa ra o deba te sob re a

h i s tó r ia i ndígena da reg ião Sudes te , t ão afe tada pe lo con tato

m ac i ço e pe la d i z im ação das t r i bos . Se rea lm ente ex i s te um

povo remanescen te i nd ígena e que se cons ide ra como ta l ,

m ui tos aspectos da h i s tó r i a do R io de Janei ro podem ser

redesenhados . Esse modus v i vendi que perm anece no d i a -a -d ia

dessas com unidades vem sendo va lo r i zado como um recu rso

po l í t i co para a f i rmação de sua iden t i dade e pe lo d i re i t o ao

te r r i t ó r i o em que hab i tam.

Nes ta re l ação, a i den t i dade cu l tu ra l da com unidade se

cons t ró i e recons t ró i sobre uma he rança i ndígena t ransmi t i da

por m eio das p rá t i cas ca iça ras , a l ém do resga te dessa

i dent i dade ca iça ra es t ra teg i camente re l ac i onada à l eg i t imação

da ocupação do te r r i t ó r i o . Há uma em ergênc ia é tn i ca , j á que

con temporaneam ente a au to - in t i tu l ação com o ca içara gera

conseqüênc ias pos i t i vas , em con t ras te ao passado de

v i o l ênc i as . Seu Maneco , reco rdando, a f i rma que seu pa i nunca

se i n teressou em f azer canoas. Fo i e l e , Seu Maneco, que fo i

aprender em ou t ras p ra i as e começou a ens i nar aos seus , e

ago ra envo lve os f reqüentadores na puxada de canoa. Por tanto,

a ques tão é como essas p rát i cas reaf i rmadas in f l uenc iam a

re l ação i n te rna en t re os ca içaras , des tes com os agen tes

ex te rnos e a cons t rução de parcer i as com a l iados na de f esa de

suas te r ras , como no caso da convenção 169 , da Organ i zação

In te rnac ional do T raba lho que t ra ta das popu lações na t i vas , e a

l eg is l ação das á reas am bien ta lmente p ro teg idas em que

hab i t am.

Percebe-se que há um processo , em bora l en to, en t re os

ca i çaras , de reconhec imento da im por tânc ia das a t i v i dades

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t r ad i c ionai s . En t re tan to, essa l en t i dão permi te que perdas

genét i cas aconteçam, j á que a ag r i cu l t u ra t rad i c iona l ca içara de

co i vara es tá p ro ib i da pe los f i sca is . Há também um esf o rço de

agentes u rbanos , l eg is l adores , f unc i onár i os , pesqu isado res e

ou t ros de reconst ru i r a i dent i dade ca i çara não mais como povo

essenc ia lmente agr i cu l t o r e s im de pescado res . Po rém, no l i v ro

de Schmid t , de 1958, é desc r i t a a casa do ca içara, como tendo a

por ta vo l t ada para a l avoura e não para o m ar , mesmo que a

casa es te ja per to des te. No l i v ro , o au to r aponta essa

cons t rução como uma ev i dênc ia m ater i a l da l i gação do ca içara

com a roça .

Na P ra i a do Cai ruçu das Ped ras , onde a i nda ho je moram a

i rmã e o i rmão de Seu Maneco do Mar t im de Sá, encont ra -se a

an t i ga casa de Roque Caçador , pa t r i a rca da famí l ia . Após ser

“g r i l ado ” da P ra ia do Mar t im de Sá, sua ú l t ima morada f o i no

Ca i ruçu . D . Dulc iné i a , sua f i l ha , a inda mora na an t iga casa , em

que , apesar da v i s ta des lumbran te pa ra o m ar , a por ta se

encont ra vo l t ada pa ra o pom ar , a mata em regeneração e seus

pés de ca fé .

Essa herança ca içara , ances t ra l e /ou rec r i ada com o f o rm a

es t ra tég i ca de af i rmação do te r r i tó r i o em que hab i ta , i nc l u i a

ra i z i nd ígena e se m ost ra f undamenta l para a conso l idação

dessa im agem do manejo t rad ic iona l bem adaptado ao me io

am biente , sendo essa af i rmação p l aus íve l ou não . Seja a roça

de abacax is , a casa de fa r i nha ou a puxada de canoa . Essas

ca rac te r ís t i cas tam bém cont r i buem para um a af i rmação do

d i re i t o ancest ra l à t e r ra em que v i vem. Luchia r i a f i rm a: “ p o d e - s e

d i z e r q ue a o c u pa ç ã o i n d í g e n a d o l i t o r a l , a n t e r i o r à c o l o n i z a ç ã o ( s éc u lo

X V ) , n ã o d e i x o u m u i t as m a r c a s n a p a i s a g e m l oc a l , m a s t r an s m i t i u , c o mo

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l e g a d o , f o r t es c on t r i b u i ç õ es c u l t u r a i s : o t i p o é t n i c o , a l g u m a s t é c n i c as p a r a

a l a v o u r a e p es c a e m u i t as t r i l h as e c a m in h o s ” . 15

Essa recons t rução i dent i t á r i a deve ser anal i sada de f o rm a

c r í t i ca . Af ina l , os ca içaras são povos bem adaptados e

dependen tes de sua re l ação com a na tu reza , sem te rem s i do,

h i s to r i cam ente , povos def ensores do meio ambiente . Essa

i dent i dade por e les mesmos a t r i buída recentem ente es tá l i gada

à necess idade de se c r i a rem es t ra tég ias de permanênc ia no

te r r i t ó r i o , j á que “ a s c u l t u r as t r a d i c i o n a i s n ã o s ã o e s t á t i c a s , es t ã o em

c o n s t a n t e m u d a nç a s e ja p o r f a t o r e s e n d ó g e n o s o u e x ó g e n o s . ” 16

A l u ta pe lo espaço ancest ra l

Para a pesqui sa acadêmica, a reg ião es tudada apresenta

m úl t i p l as ques tões , p r i nc i pa lmen te po l í t i cas , como a v i o len ta

especu lação im obi l i á r i a .

Na reg ião ex is tem á reas p ro teg idas que se sob repõem: a

Rese rva Ecológ ica da Jua t i nga , a Área de P ro teção Am bienta l do

Ca i ruçu , a Reserva Ind ígena Guaran i de Pa ra ty -Mi r im e o Pa rque

de Lazer de Para t y -M i r im. As reservas b ras i l e i ras , exc l u i ndo as

i nd ígenas , ex t ra t i v i s tas e de desenvol v imento sus ten táve l

ado tam em gera l um m odelo de uso res t r i t i vo . Nesses casos , a

exc l usão , d im inu ição ou cont ro l e da p resença humana nas á reas

de reserva são fo rmas de garant i r a p reservação. Há nesse

m odelo um a fo r te i n f l uênc ia do parad igm a do hom em des t ru i dor ,

que se percebe a par t i r do 2 º pós -guer ra , e se base ia na v i são

de que não há equ i l í b r i o possíve l en t re o homem e a na tu reza .

Porém, na Reserva da Jua t i nga , pe l o menos no tex to do

dec re to que a c r ia , es tá exp resso o ob je t i vo de uma adaptação à

15 DIEGUES, Antonio Carlos (org.) Enciclopédia Caiçara v. 3 O Olhar Estrangeiro - Yvan Breton, Steve Plante, Clara Benazera, Steve Plante e Julie Cavanagh, – São Paulo, NUPAUB-CEC/HUCITEC, 2005. 16 idem

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rea l i dade b ras i l e i ra , p ropondo um a i n te ração en t re a u t i l i zação

dos recursos na tura is e os p rece i t os conservac ion i s tas . Como se

vê no tex to da le i :

“ Ar t . 4 º - A F u n d a ç ã o I n s t i t u t o E s t a d u a l d e F l o r es t a s I E F / R J d e s e nv o l v e rá

p r o g r a m a es p e c í f i c o d e E d u c aç ã o A m b i e n t a l , c o m o o b je t i v o d e f o m e n t a r a

c u l t u r a c a i ç a r a l o c a l , c o m p a t i b i l i z a n d o a u t i l i z a ç ã o d o s r ec u r s os n a t u r a i s

c o m o s p r e c e i t os c on s e r v ac i o n i s t as e s t ab e l e c i d o s n e s t e D ec r e t o . ” 17

Essa i n i c i a t i va lega l con t ras ta , con tudo , com as ações

p rá t i cas dos ó rgãos am bienta i s . Um exemplo d i s to f o i a

des t ru i ção dos ranchos de pesca e de um a m oradia ca i çara na

P ra i a dos Ca lheus . Essa ação a rb i t rá r i a mot i vou um processo de

ação c i v i l púb l i ca , no Min is té r i o Púb l i co Fede ra l , que se conc lu iu

com o seguin te t erm o:

“ ( . . . ) d e t e r m i n a n d o a o I E F / R J q u e s e a b s t e n h a d e r ea l i z a r q u a l q u e r

o p e r a ç ã o q u e r es u l t e n a d e m o l i ç ã o o u d e s t r u i ç ã o , a i n da q u e p a r c i a l , de

h a b i t aç õ es , b a r r a c os , r a n c h os e s i m i l a r es da s C o m u n i d a d e s C a i ç a r as ,

o n d e q u e r qu e s e e n c o n t r e m, o u a d e m o l i ç ã o o u d e s t r u i ç ã o p a r c i a l de

q u a i s q u e r e d i f i c a ç õ es , n o s l i n d e s d a A P A do C a i r u ç u . ” 18

“ E s c l a r ec e o M i n i s t é r i o Pú b l i c o F e d e r a l q u e t a i s c o m un i d a d es

c o n t r i bu í r a m p a r a a c o n s e r v a ç ã o d a b i o d i v e r s i d a d e , p e l o c o n h ec i m en t o

q u e p os s u e m d a f l o r a e d a f a u n a . A r g u m e n t a , a i nd a , q u e t a i s c o m u n i da d es

v i v e m p r e p o n d e r a n t e m e n t e d o m ar ( . . . ) . ” 19

Apesar dessa dec i são, os ca i çaras encont ram-se em uma

pos i ção paradoxal . Ao m esm o tempo em que são reconhec idos

pe l a l e i , são acusados de des t ru i r o meio am biente, e es te é o

p r i nc i pa l a rgum ento dos g r i l e i ros para re t i rá - los do loca l . Nesse

pon to ocor re a i n te rseção dos in teresses dos ó rgãos am bienta i s

e dos g r i l e i ros . A ques tão ambienta l , na reg i ão, apresenta um a

dup la f ace: de um l ado am eaça a sobrev i vênc ia das popu lações, 17 Lei Decreto Estadual n° 17.981/92 - Cria a Reserva Ecológica da Juatinga. Sítio http://www.ief.rj.gov.br/legislacao/conteudo.htm, 2006 18 Medida liminar concedida na Cautelar Inominada n° 2005.5111.000450-0 às fls. 14/16, MPF. 19 idem

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ao res t r i ng i r as p rá t i cas t rad ic i onais de p rodução e m arg ina l i zar

os que pers i s tem u t i l i zando-as , o que serve de a rgumento para

os p rocessos de g r i l agem. Por out ro l ado, é responsáve l por um

conjun to de l e i s que d i f i cu l t am a expansão da especulação

im obi l i á r i a , poss i b i l i t am ações i n teg radas en t re agentes

u rbanos , mov imentos am bienta i s e ca i çaras , a l ém de of e recerem

novas poss i b i l i dades de geração de renda e i n te ração com o

m eio.

A v i são da eco log ia como te i a de ecoss is tem as in tegrados

des taca a cu l t ura como um dos pon tos de l i gação en t re

ex t rem os , j á que é po r me io de la que a na tu reza , i nc l u i ndo os

p rópr i os humanos , é percebida . Essa v i são do h omem como

par te i n tegran te da na tu reza , su j e i t o às suas t rans fo rmações e

t am bém suje i t o a t rans fo rmá- l a , caminha no sen t ido de equ i l i b ra r

v i sões que duran te mu i to tempo ge ra ram conf l i tos exaus t i vos no

debate c i en t í f i co . Ta l debate t ambém pode ser re l ac i onado à

ques tão dos que de f endem a re t i rada dos hum anos das á reas de

p ro teção ambien ta l , e dos que ten tam de todas as f ormas p rovar

que os humanos podem ser agentes da b i od i ve rs i dade f l ores ta l .

A exc lusão da cu l t u ra, como f a to r impor tante na aná l i se

ecoss i s têmica l oca l , a i nda es tá por se r ma is cons iderada pe las

pesqu isas acadêmicas, de modo gera l .

Como podemos ver no a r t i go de Cand ice Mansano em

Enc i c l opédia Caiçara :

“ A l g u m as v e z e s qu e o s e x ec u t o r es d e l e i s a m b i e n t a i s f o r a m

i n t e r r o g a d os s o b r e a s i t u aç ão d i f í c i l a q u e e l es p r ó p r i os l e v a r a m

c o m u n i da d e s c a i ç a r a s i n t e i r a s , r e s p o n de r a m , n a s e n t r e l i n h as : “ e l e s p o d em

v i v e r d o t u r i s m o ” o u “ e l e s p o d e m v i v e r d a p es c a ” . T a l v e z p o s s a m , m as

e s t e n ã o é o p on t o - c h av e d a s i t u a ç ã o . O f a t o é q u e , p a r a d e f e n d e r e m u m

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m o d e l o d e U n i d a d e d e C o n s e r v a ç ã o a r r a i g a d o à p r es e r v aç ã o , o E s t a d o

t e n t a s a f a r - s e d a r e s p o n s a b i l i d a d e d e t e r s i do o c a us a d o r da

d e s i n t e g r aç ã o de t od a u m a c u l t u r a . ” 20

Dent ro desse s i s tema de fo rças , um a das p r i nc i pa is

ques tões é a in f luênc ia de um m ode lo de reservas na tu ra i s de

uso res t r i t i vo . A c r i ação de uma l eg i t im idade no poder de

im plementação de ta i s á reas de p roteção es tá re l ac ionada a um a

v i são de recu rsos na tu ra i s renovávei s . Es te conce i to moderno

de f ine a impor tânc ia da na tu reza com o fon te de matér i as -p r imas

para a p rodução i ndust r i a l e d i sso der i va a necess idade de

p ro tegê- l a . Esse cap i t a l b ru to de um pa ís , “ e s s a a r t i c u l a ç ã o

c r es c e n t e d a d e p e n d ê n c ia ( . . . ) l e v a a u m a t r a ns f o r m aç ã o d o m u n d o

n a t u r a l e m m e r c a d o r i a ” . 21

Ta l v i são da natureza con t ras ta b ru ta lm ente com a manei ra

c íc l i ca com o as com unidades t rad ic i onai s percebem a na tu reza.

O conce i t o (abs t ra to ) de recu rsos na tu ra i s é percebido pe las

popu lações que dependem de um con ta to d i re to com os

ecoss i s temas com o a l go do qua l se vêem como par te i n tegran te,

ao qua l es tão l i gados por l endas, t abus , ro t i nas de t raba lho e

l azer .

E , quanto ao mane jo t rad ic i onal do ambien te em que v i vem,

W ors te r c i t a A l t i e r i :

“ M u i t as p r á t i c a s a g r í c o l a s , o u t r o r a c o ns i d e r a d as p r i m i t i v a s o u m a l

o r i e n t a d a s , es t ã o s e n d o r e c on h e c i d as c o m o s o f i s t i c a d a s e a p r o p r i a d as .

C o n f r o n t ad os c o m p r o b l e m a s es p e c í f i c o s d e d e c l i v e s , en c h e n t es , s ec as ,

p e s t e s , d o e n ç a s e b a i x a f e r t i l i d a d e d o s o l o , p e q u e n o s a g r i c u l t o r e s em

t o d o o m u n d o d e s e n v o l v e r a m s i s t e m a s d e g e r en c i a m e n t o ú n i c o p a ra

s u p e r a r es s as r e s t r i ç õ e s ' . U m a d as m a i s i m p r es s io n a n t e s e t a mb é m m a is

20 DIEGUES, Antonio Carlos (org.) Enciclopédia Caiçara v. 3 O Olhar Estrangeiro - Yvan Breton, Steve Plante, Clara Benazera, Steve Plante e Julie Cavanagh, – São Paulo, NUPAUB-CEC/HUCITEC, 2005. 21 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000

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u s u a i s d e t a i s t é c n i c a s ge r e n c ia i s c o ns i s t e e m d i v e r s i f i c a r os p r o d u t os

a g r í c o l a s e m c u l t i v o . ” 22

Essas ra ízes t rad ic i onai s , ho j e va l o r i zadas pe los es tudos

agroeco lóg icos e permacul tu ra i s , são o f oco do debate da

p resente m onogra f i a . Se os ca içaras f o ram capazes de m anter

a l t as t axas de var i edade genét i ca em seus cu l t i vos e á reas

m anejadas, como sua cu l tu ra não é t ambém fa to r impor tante

para a apreensão de técn icas ag r íco l as e de m anejo f l o res ta l?

Mesmo não compar t i l hando uma v i são rom ânt i ca dessas

popu lações t rad i c i onai s , v i s tas como superpro te to ras da

na tu reza (es te m i to não p rocede, dev i do p r i nc ipa lmente às

que imadas) , deve-se , contudo , a ten ta r para a im por tânc ia

desses povos como guard i ões de espéc ies genet i camente ra ras ,

sobre tudo pe lo avanço das cu l tu ras h i b r i das e t ransgênicas .

Par te da pesqu isa de campo f ocou em como as res t r i ções das

l e i s am bien ta i s provocaram a d im inu ição das á reas cu l t i vadas.

Esse f a to acar re ta a ex t i nção de e spéc ies agr í co l as e a quebra

da segurança a l im entar da comunidade.

As recen tes l e i s que i nc idem sobre as comunidades

ca i çaras j á es tabe leceram a necessár i a pa rcer i a com as p rópr ias

comunidades e a ges tão das á reas p ro teg idas com par t i l hada

com seus m oradores . Ent re tan to , a l e i não es tá sendo cumpr i da

pe l os ó rgãos ambienta i s , como no a tua l caso da reca tegor i zação

da Reserva Eco lóg ica da Juat i nga , ca tegor i a de á rea p ro teg i da

que não ex is te ma is no S is tema Nac ional de Un idades de

Conservação. O prazo de adequação exp i rou e f o i p ro r rogado,

sem que houvesse um a d iscussão ampla com os moradores da

22 WORSTER, Donald. Transformações da terra: para uma perspectiva agroecológica na história. ANPPAS – UNICAMP. Sítio Ambiente e soc. v.5 n.2 / v.6 n.1 Campinas 2003. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2003000200003&lng=es&nrm=iso&tlng=pt, 2006.

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rese rva. As reuniões com a lguns l íderes comuni tá r i os em Para ty

se rvem pr inc i pa lmente com o propaganda e para leg i t imar a tos

admin is t ra t i vos . A maio r i a dos ca i çaras p resentes não fo i

i n fo rm ada sob re os p rocessos de reca tegor i zação, e

s implesmen te não compreendem o que es tá sendo d iscut i do .

Os p rocessos são dec id i dos po l i t i cam ente , com i n f l uênc ias

econômicas , como se pode perceber na reun ião com o

coordenador de un idades de conservação do IEF /RJ . Segundo

e l e , “ a r ec a t e go r i za ç ã o v a i s e r f e i t a , e s t á qu a s e c o n c lu í d a , p a r a q u e s e j a

u m p a r q u e . H á a p o s s i b i l i d a d e d e a l g u m a s á r e a s s e r e m d es f e t a d a s ( c om

p r o p r i e d a d e p a r t i c u l a r ) , m a s n ã o h á i n t e r e s s e . ” 23

Essa recategor i zação é m ui to c l a ra, j á que o que é

t ransm i t i do é o que o em issor tem i n te resse de que o

pesqu isador sa iba . Esse p rocesso j á e ra esperado , e f o rnece

dados para a aná l i se da i den t idade e qua i s ques tões são

p r i o r i t á r ias no que se re f e re a esse conta to com o un i ve rso

l e t rado . Nessa comun icação, uma das ques tões ma is debat i das

pe l os en t rev is tados f o i a razão de te rem i ns t i t u ído a rese rva

j us tamente onde os ca içaras habi tam. E se i s to não decor reu do

fa to de a l i encont ra rem um a reg ião am bien ta lm ente conservada.

Não com preendem por que suas p rá t i cas são acusadas de

des t ru i doras , se há m ui tas gerações os ca i çaras possuem esses

m esmos hábi t os , que ocas ionaram o a tua l es tág io em que se

encont ra seu te r r i t ó r i o t rad i c ional e pe lo es tág io de conservação

fo ram cons ideradas á reas ambienta lm ente re l evantes a pon to de

se rem p ro teg idas . Se suas p rát i cas são per i gosas para o me io

am biente , com o os ó rgãos ambienta i s encont ra ram um

im por tante re fúg io da f l o ra e da f auna para p rotegerem?

Out ro ques t i onam ento dos ca iça ras é por que são

f i sca l i zados pe los ó rgãos am bien ta i s , p ro ib i dos de uma sér i e de

23 Entrevista com o coordenador de Unidades de Conservação IEF/RJ. Abril de 2006.

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prá t i cas , enquan to ass i s tem aos barcos de a r ras to en t ra rem no

Saco do Mam amguá, as m ansões, o condomín io de Laran je i ras e

percebem que, para a f i sca l i zação , t a i s empreend imentos não

são cons iderados p re j ud i c ia i s à na tu reza . São m ui tas as

h i s tó r ias de p rop inas , po l i c i a i s a serv i ço de g r i l e i ros e ações

i l ega is dos ó rgãos am bien ta i s , que ho je f azem par te dos causos

l oca i s .

Quanto às re l ações do Poder Púb l i co com as popu lações

na t i vas , no que se re f e re aos modelos adotados para as

un i dades de conservação, as re fe rênc ias são os padrões de

pa íses do hemis fé r i o Nor te . O preservac i on ism o é um desses

pad rões , e busca , no m anejo res t r i t i vo de á reas na tu ra i s , a

m elhor f o rma de p ro tegê- l as . Contudo , es ta v i são não é

consensual , e pesqu i sadores com o Anton io Car los D iegues e

Lu i s Gera l do S i l va def endem uma perspec t i va conservac ion i s ta ,

em que a p resença de com unidades t rad i c i onais nas á reas de

rese rva deve ser respe i t ada , j á que esses moradores guardam,

em seus conhec im entos e p rá t i cas , manejos que poss ib i l i t a ram

aos ecoss is temas chegar aos d i as a tua i s re l a t i vamente

p reservados .

Segundo W ar ren Dean, “ o d ec r e t o q u e p r o i b i a t o d a d e r r u b a da

u l t e r i o r de f l o r es t a n a t i v a p r ov oc o u i m e d i a t a m e n t e u m t e r r í v e l d e s ga s t e : a

d e s p e i t o d e s e u s p r o t e s t o s d e s o l i da r i e d a d e , o s a m b i e n t a l i s t as n ão

c o n s i d e r av a m n e m um p o u c o a d i f í c i l s i t u a ç ã o d o s o c up a n t e s t r a d i c i o n a i s

d a s r es e r v a s . O s f a b r i c a n t e s d e c a n o a s , os c o l e t o r e s d e p a l m i t o , os

c es t e i r o s qu e t r a b a l h a v a m c o m b a m b u e c i p ó s e o s c o r t ad o r e s de

s a m a m b a i a s g i g a n t e s e s a s s a f r á s f i c av am t o d o s a g o r a f o r a da l e i . ” 24

Após um ano de mani fes tações , o I bam a apresen tou a

regu lamentação das l avouras em capoe i ra , de acordo com os

p l anos de manejo. A l ém d i sso , d i zem Mar i ana Clauze t e W al ter

24 DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.84

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Bare l l a : “ os es t u d o s d e e t n o c o n h ec i m e n t o e g e s t ã o d e r ec u r s os

n a t u r a i s f o r n e c e m s u bs í d i o s p a r a p o s s i b i l i t a r a pe r m a n ê nc i a d as

p o p u l aç õ e s h u m a n as na s a t i v i d a d e s d e s u b s i s t ên c ia t r a d i c i o n a i s . ” 25

A permanênc ia das popu lações impõe-se não apenas em

respei t o ao e tnoconhec im ento ú t i l ao desenvolv imento de

es t ra tég ias de p reservação , mas também “ p e l a n e c es s i d a d e de

g a r a n t i r s e u s d i r e i t o s h i s t ó r i c o s a s e us t e r r i t ó r i o s , m a s t a m b é m c o mo

e x e m p l o a s e r c o n s i d e r a do p e l a c i v i l i z a ç ã o u r ba n o - i n d u s t r i a l na

r e d e f i n i ç ã o n ec es s á r i a d e s u a s r e l aç õe s a t u a i s c o m a n a t u r e z a . ” 26

O desdobramento dessa d i scussão se dá no âmb i to do

m anejo dessas reservas , j á que no caso b ras i l e i ro é mui to m aior

a dependênc ia de popu lações t rad i c i onais a a t i v i dades

ex t ra t i v i s tas re l ac i onadas d i re tamente com os ecoss is temas em

que v i vem e que agora vêm sendo abrang idas pe lo p rograma

nac iona l de un idades de conse rvação .

Mas o p rocesso h is tó r i co de fo rm ação das á reas

am bienta lmente p ro teg idas no B ras i l a i nda es tá engat i nhando

nessa d i reção. W arren Dean, ao ana l i sa r esse p rocesso,

ressa l t a que , na h i s tó r i a recen te , t a i s p rocessos não têm

ocor r i do de f orma sat i s f a tó r i a :

“ As u n i d a d es d e c o n s e r v aç ã o a d i c i o n ad a s n o s a n os 8 0 e i n í c i o d o s 90

e r a m u m a m is c e l â n e a : v i n t e c l a s s e s d i f e r en t es d e r e s e r v a , c r i a d as p o r

u m a m u l t i p l i c i d a d e d e i n s t r u m e n t o s l e ga i s ( . . . ) a l é m d e a l g u m a s u n i da d es

s e m r e f e r ê n c i a l e g a l r e c o nh e c id a . E r a u m a f r a g i l i d a d e e s t r a t é g i c a ( . . . ) . ” 27

Dent ro dessas á reas as populações t rad i c i onai s de

qu i l ombo las , i ndígenas , ca i çaras e ca i p i ras f oram sendo

re t i radas ou supor tadas , m esmo que recen tem ente tenham s i do

25 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.p.49

26 Idem p.67

27 DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.107

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reconhec i das como par te i n tegrante dos conselhos de l i berat i vos

na c r i ação e ges tão dessas á reas . A def i n i ção ut i l i zada nessa

pesqu isa para carac te r i za r povos t rad i c ionai s , fo i a de povos

com “ l i g aç ã o i n t e ns a c o m o s t e r r i t ó r i o s an c e s t r a i s ; a u t o - i d e n t i f i c aç ã o e

i d e n t i f i c aç ã o p e l os o u t r o s c o m o g r u p o s c u l t u r a i s d i s t i n t o s ; s i s t e m as de

p r o d u ç ã o p r i nc i p a l m e n t e v o l t a d o s p a r a a s u bs i s t ê n c i a . ” 28

Ta i s carac te r ís t i cas encont ram -se nas comunidades

ca i çaras pesquisadas , podendo ser ac resc i das ou t ras

ca rac te r ís t i cas como o etnoconhec imento do ambien te em que

v i vem, es t ra tég ias de res i s tênc i a , mane jo de espéc ies vegeta i s

de g rande im por tânc ia genét i ca nas roças, permanênc ia de

p rá t i cas a rca i cas e m em ór i a de p rát i cas cu l t u ra i s ex t i n tas .

A herança i ndígena das p rá t i cas co t i d i anas e da produção

m ater i a l é um dos p r i nc i pa is a rgumentos re l ac i onados à ques tão

do d i re i t o t e r r i t or i a l e a f i rm ação da i dent i dade por par te dos

ca i çaras . P r inc i pa lmente a t ravés da roça po l i cu l t u ra l , que u t i l i za

o consórc io de d i versas espéc ies e garan te var i edade genét i ca,

ca rac te r ís t i ca dos cu l t i vos i ndígenas . A p rodução de canoas,

ces tos , t ap i t i s , armadi lhas de pesca , f es tas , e rvas medic i na i s ,

conhec imento sobre a caça e a f e i tu ra da f a r i nha ass im como as

roças são conhec imentos em ext i nção na reg ião.

O processo histórico de reinvidicação dos direitos dos povos nativos foi tão

recentemente garantido pelo convenção 169, que parece ainda não ter sido

processada pelos legisladores e gestores ambientais. A Convenção 169, aprovada

em 1989 pela Organização Internacional do Trabalho, faz parte dos acordos

internacionais pelos direitos humanos e revisou parcialmente a Convenção 107

sobre Populações Tribais e Indígenas, de 1957. É importante ressaltar que essa

convenção abrange as populações tradicionais nativas, já que a tradução do texto

para o português não foi correta. A palavra inglesa indigenous não significa

apenas indígena mas também significa nativo. O que os define como tal é: “o fato

28 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000. p.91

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de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao

país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais

e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais,

econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.” 29

Os caiçaras além de serem descendentes dos antigos povos pré-

cabralinos, conservam muitas tradições extintas no restante do território nacional.

Essas práticas não precisam ser conservadas como relicários de uma identidade,

mas devem ser respeitadas pela sua importância na organização do grupo. Nos

artigos da Convenção que mais dizem respeito às comunidades caiçaras,

percebe-se como há um conflito entre as próprias diretrizes legislativas

governamentais, que de um lado promulgam leis ambientais restritivas e de outro

sanciona acordos internacionais sobre comunidades nativas. No ano de 2006 foi

criada a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais, mas é ainda um início para a criação de políticas

públicas relacionadas ao tema. No Artigo 14 da Convenção 169, lê-se:

“1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de

posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão

ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não

estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso

para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial

atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

23.1 - O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais

e relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a caça, a

pesca com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores importantes da

manutenção de sua cultura e da sua auto-suficiência e desenvolvimento econômico. Com a

participação desses povos, e sempre que for adequado, os governos deverão zelar para que sejam

fortalecidas e fomentadas essas atividades.”30

29DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.p.34 30 Organização Internacional do Trabalho - OIT, Convenção 169 de 7/6/1989. Em vigor em 5 de setembro de 1991. Aprovado pelo Congresso Nacional 25/8/1993. Sítio DHNET - http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/indios/conv89.htm, 2006.

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Capi tu l o I I A v i da ca içara e sua herança i ndígena. “ M i n h a B i s a v ó p o r p a r t e d e p a i , e l a é d e s c e n d e n t e d e um a t r i bo

q u e t i n h a a q u i n a J u a t i n g a , n o p as s a do . O c a c i qu e d a q u i d a J u a t i n g a , o r e g e n t e d a q u i da J u a t i n g a c ha m av a - s e c a c i q u e E d u . É i s s o q u e a h i s t ó r i a c o n t a , n é . ”

S . O l í m p io / P o n t a d a J u a t i n g a 31 Nos re l a tos f e i tos pe los moradores , os ca i ça ras

an t i gos são descr i t os com o possuidores de uma re l ação ma is es t re i ta com a mata que os ca i ça ras a tua is . As p rát i cas co t i d i anas abrang iam co le ta ex t ra t i v i s ta de cocos de pa lm ei ra , da qua l e ra p reparada uma ap rec i ada f a r inha , f ru tas , c i pós , pa l ha, madei ra para as hab i t ações , á rvo res para o f e i t i o de canoas , m ater i a i s pa ra a r tesanato , o bar ro para o pau a p i que , a caça e an im ais de es t imação. A lém d i sso , a agr i cu l t u ra e ra f e i t a em te r renos de vegetação densa de capoe i ra em regeneração an t i ga ou f l o res ta ve l ha .

Todas essas prá t i cas es tão re l ac i onadas com tecnolog ias i ndígenas de adaptação ao ecoss is tema envol vente. I ndependen te de a herança i nd ígena te r s i do genét i ca e /ou cu l t u ra l e esses povos serem descendentes dos Gua ianás l oca i s ou de ou t ras t r i bos rea locadas, é im por tante perceber que sua cu l t u ra m ater i a l e im ater i a l t em raí zes i ndígenas . O f azer f a r i nha , a que imada con t ro l ada , denominada co ivara a té os d ias de ho je , as a rmad i l has de caça , os l aços , as cu i as , o t abaco , os t rançados, ba l a i os , a cerâmica , a época dos p l an t i os , o pe ixe seco , as sementes , as t r i l has e a puxada de canoa que remonta i nc l us i ve p rát i cas de hab i t an tes p ré -h is tór i cos . I nc l us i ve a t ravés da nominação, t ap i t i s , co i vara , t a ioba , u rucum, para t i , Jussara, I nda iá en t re t antos ou t ros nom es de a rm adi l has de pesca e caça bem com o de a l imentos e l uga res . Prát i cas encont radas na Penínsu la são t i das por ex t i n tas em a lgumas reg iões :

“ os v e l h os d e s c r e v em c o m o c o i s a d e ou t r a e r a , n ã o a p e n as o t i p i t i ( t a p i c h i ) , o s i s t e m a d e a l a v a n c a i n t e r p o t e n t e c o ns t i t u í d o p e l o c ôc h o e a t a b u a d a p r e n s a , m a s a p r ó p r i a m a n d i o c a a m a r g a o u , ( . . . ) a t ua l m e n t e d e s a pa r ec i da ? ” 32

Os pesqu isado res da tem át i ca ca iça ra com o D iegues e Paulo Nogara apontam para essa herança i nd ígena, que começa a pa r t i r do nome ao qua l se reconhecem: CAIÇARA , que segundo o d i c i onár i o de Tup i e ou t ras f on tes , s i gn i f i ca a pa l i çada que

31 Pesquisa de campo nº1. Comunidade da Ponta da Juatinga / maio 2005. 32 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958. p.40

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ce rcava as a l de ias t up i -gua ran i , t am bém denominando seus hab i t an tes . A p rá t i ca desses cercamentos a i nda é mui to comum ent re os habi t an tes da cos te i ra . Se ja os m oradores da i so l ada Rombuda, que po r ser apenas uma casa envol t a por uma densa f l o res ta na p rox im idade dos rochedos , f o i ce rcada para d i f i cu l t a r o acesso de an ima is da m ata, para a á rea hab i t ada , e do acesso das c r i anças à mata . Ass im também acontece nas casas das v i l as , como no Sono, onde a casa da f amí l i a de Dona Baíca é t oda ce rcada para ev i t a r o acesso de es t ranhos e ev i t a r a f uga dos an im ais domés t i cos .

No impor tan te documento que é o l i v ro Lavoura Ca iça ra , Schmidt em 1958, esc reve em fo rm a de documentár i o da v i da ru ra l , em um a sér i e ed i t ada para o Min i s té r io da Agr i cu l t u ra os modos da p r i nc i pa l a t i v idade de p rodução ca i çara, a f a r i nha. Esse cará te r de co l e ta de reg is t ros sobre p rá t i cas a rca i cas da população b ras i l e i ra que acompanha toda a década de 50 , t endo seu i n íc i o com os modern is tas de 22 e se es tendendo a té a década de 70 , o f e rece dados de cam po fundamenta is . Nes te docum entár i o sobre a l avou ra ca i ça ra , o t em a é a roça de mandioca , suas o r i gens i nd ígenas , a co i vara, as denominações das ram as, o p rocesso de cu l t i vo , co l he i ta , p rocessamento e escoamento da p rodução f i na l , bem com o os l aços com uni tá r i os e s i s tema de d is t r i bu i ção de te r ras . Um dos aspec tos ana l i sados é a p resença de casas de f a r inha p róx imo as m oradias , a l gumas a té den t ro das casas , como na Ponta da Jua t i nga . “ A c as a de f a r i n h a e m í n t i m a a s s o c i aç ã o c o m a m o r a d a s e r i a u m a s o b r ev i v ê nc i a i n d í g e n a n a c u l t u r a a t u a l d e n o s s a s p o p u l a ç õ es c a b o c l as . ” 33

Na coste i ra , en t re tan to, ex i s tem re l a tos que se re f e rem a métodos a i nda mai s p r imi t i vos que os apresentados no l i v ro . Segundo o au to r , a mand ioca co lh i da e ra ra l ada, ou em ra l ado res rús t i cos de l a ta manua lm ente , em rodas de g i ro m anuai s , ou mov idas a m otor . Na cos te i ra , os re l a tos se re fe rem a ba te r a mand ioca na pedra , p rá t i ca t ambém encont rada no p rocessamento ind ígena para a ob tenção da massa para a f a r i nha . A lém d isso , mui tos dos nomes das var i edades genét i cas são i nd ígenas a lém do fa to de serem a inda encont radas em cu l t i vo, representando um impor tante banco genét i co.

33 Idem. p.57

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A Roça

“ O c o n c e i t o de c u l t u r a es t á i n t i m a m e n t e l i g a d o à s e x p r e s s õ e s da a u t e n t i c i d a d e , da i n t e g r i d a d e e d a l i be r d a d e . E l a é u m a m a n i f es t aç ão c o l e t i v a qu e r eú n e h e r an ç a s d o p a s s a d o , m o d o s d e s e r d o p r e s e n t e e a s p i r a ç õ e s , i s t o é , o d e l i n e a m e n t o d o f u t u r o d e s e ja d o . P o r i s s o m e s m o , t e m d e s e r g e n u í n a , i s t o é , r e s u l t a r d a s r e l aç õ e s p r o f un d as d o s h o m e ns c o m o s e u m e i o , s e n d o p o r i s s o o g r a n d e c i m e n t o q u e d e f e n de a s s oc i e d a d e s . D e f o r m a r u m a c u l t u r a é u m a m a n e i r a d e a b r i r a p o r t a pa ra o e n r a i z a m e n t o d e n o v as n e c e s s i d a d e s e a c r i a ç ã o d e n o v o s g os t os e h á b i t os , s ub - r e p t i c i am e n t e i n s t a l a d os n a a l m a d o s p o v o s c om o r es u l t ad o f i n a l d e c o r r o m p ê - l o s , i s t o é , d e f a ze r c o m q u e r e n e g ue m a s u a e , d e i x a n d o d e s e r e l e s p r ó p r i o s . M i l t o n S a n t o s - D a C u l t u r a à I n d us t r i a C u l t u r a l 34

É cen t ra l pe rceber que o cu l t i vo i nd ígena de

a l imentos , apresenta uma a l t a t axa de va r i edade gené t i ca para cada espéc ie cu l t i vada em consórc i o . Opos ta é a agr i cu l t ura con temporânea que p r i o r i za poucos t i pos para cada espéc ie , as cu l t i vando em monocu l t u ras denominadas p lanta t ion , que por concent ra r mui tos i nd iv íduos semelhantes , demanda adubos qu ím icos e a l t a t axa de pest i c idas . Dessa fo rma os Guarani p l antam m i l ho vermelho , amare lo , p re to , b ranco e ra j ado em s i s temas de m anda la com g i rassó is que com batem as p ragas e em consórc i o com f e i j ões , abóboras e am endo ins que n i t rogenam, adubam e af o f am o so l o s imul taneamente . Ass im tam bém os an t i gos ca iça ras consorc i avam suas p l an tas e a l guns poucos a i nda o f azem , como Dona Mar i a da Pra i a Grande e Seu O l impio da Ponta Jua t i nga, p l antando f e i j ão verme lho g raúdo, pequeno, mar rom, m ar ram ra j ado de bege , beg e ra j ado de ve rm elho , bege ra j ado de mar ram , p re to e b ranco . São guard i ões de sem entes i ndígenas que o moderno m ercado de sementes sobrepu jou . Tam bém possuem m amões amare los , averm elhados, e esbranqu içados, de uma var i edade da Mata A t l ânt i ca que fo i comerc i a lmente sobrepu jada pe l o Papaia am azôni co.

Mu i tas ou t ras espéc ies são ass im cu l t i vadas com grande poo l genét i co e apresen tando espéc ies pra t i camente ra ras se comparadas em núm ero com as l avou ras comerc i a i s

34 SANTOS, Milton. Da Cultura à Indústria Cultural. Periódico MAIS! Nacional, 19/03/2000.

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contemporâneas . O aspec to do consórc i o ent re vegeta i s , onde o m i lho é p l antado com o f e i j ão , com as abóboras e mel anc ias no en to rno . O fe i j ão Guandu, mui to aprec i ado na reg ião , com f ru te i ras , abacax i s e ba tatas doces , guarda em s i um a tecnolog ia em pí r i ca de conservação da f e r t i l i dade do so lo a t ravés da t roca de nu t r i entes . Essas p rát i cas ind ígenas que fo ram a base pa ra as pesqui sas agroeco lóg icas de Miguel A l t i e r i e B i l l Mol l i son e são ho je a meta do Min is té r io do Desenvolv imento Rura l para á reas de agr i cu l t u ra f am i l i a r e ún ica espéc ie de cu l t i vo permi t i da por l e i em áreas de reserva .

Ass im as l e i s f ede ra i s em adequação aos acordos m ul t i l a te ra i s i n te rnac iona is de adequação da p rodução pa ra a sus ten tab i l i dade , redução de i nsum os po luen tes e con t ro l e da deser t i f i cação vão em d i reção a um a prá t i ca l oca l , de ra í zes i nd ígenas . No f undo, o que i sso representa é que um p rocesso h is tó r i co g l obal es tá indo ao encont ro da h i s tó r ia l oca l de um a prá t i ca t ransmi t i da ances t ra lmente ge ração por geração. O desprezo europeu pe las t écn i cas i nd ígenas no m omento da co l on i zação, apesar do uso genera l i zado da co i vara , ho j e passa por um a rev i são . Os técn i cos começam a perceber que a cu l t u ra i nd ígena of e rece a con temporaneidade so luções empí r i cas para um a m elhor adequação ao ecoss is tema Ter ra , ho j e j á sof rendo fo r tes impac tos da degradação g l oba l . Um c í rcu l o se f echa no sen t i do de mac ropol í t i cas def in i rem usos que a t i ngem m ic rocon jun tos e de les ex t ra í rem sua base teór i ca , conf i gurando um a rede de s i s temas que se in te rconecta, segundo Mor i n , sendo o s i s tema s imp les apenas “um a abs t ração d i dá t i ca ” .

En t re tanto , essas p rá t i cas l oca is so f rem o impacto cu l t ura l das l avouras com erc i a i s monocu l t u ras que desde a época co lon ia l ocupam a reg ião com engenhos de cana-de-açúcar , ca f eza i s , banana is e de a l imentos segu indo os c i c l os p rodu t i vos nac iona is . Mui tos ca i ça ras p l antam desde a época dos pa i s , mas não dos avós, as espéc ies separadas , m i lho com mi lho , f e i j ão com f e i j ão e m and ioca separado. Essas p rá t i cas reduzem a fe r t i l i dade do so l o , esgotando os nu t r i en tes ap resentando apenas uma va r iedade p l an tada no l oca l . Há uma a l t e ração do m anejo t rad ic i onal , que apresenta so l uções em pí r i cas baseadas na observação dos ecoss is tem as na tu ra i s da Mata A t lân t i ca , e so l uções com o o consórc i o e a var iedade genét i ca que im i tam as cooperações ent re espéc ies na mata . A t ravés da h i s tó r ia l oca l podemos percebe r que essas mudanças f oram an te r i o rmente poss ib i l i tadas pe la der rubada de á reas f l o res tadas em método de co i vara (queimada con t ro l ada) que poss ib i l i tava a adubação e con t ro l e de fe r t i l idade do so l o .

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D . M a r i a e s e u f ac ã o n a a n t i g a r o ç a . 35 Com as l e i s ambienta i s que f o ram i ns t i t u ídas no l oca l

após a c r i ação da Reserva da Jua t i nga , as queimadas f o ram pro i b i das , apesar de anua lmente a i nda ocor re rem, inc l us i ve em áreas não agr i cu l t áve is apenas para m anter o t e r reno “ l im po” . I sso se deve ao t rabalho i nex i s ten te dos ó rgãos am bienta i s de consc ient i zação e educação am bien ta l , o fe recendo técn icas de m anejo a l t e rna t i vas como a compos tagem, mu l t e adubação orgân i ca. Ass im os ó rgãos púb l i cos esperam que prá t i cas ances t ra lm ente t ransm i t i das desapareçam por o f íc i o l eg i s l a t i vo e a tuando na reg ião apenas de f o rma pun i t i va ou de i ncen t i vo ao tu r i sm o. Essa fa l t a de esc l arec imento gera um a fo r te im agem negat i va dos nat i vos para com as l e i s ambien ta is , que não compreendem, a l te ram seu mane jo e a i nda se vem em s i t uação de r i sco podendo se r au tuados . Não há va lo r i zação do e tnoconhec imento ca içara , como o de con t ro l e de p ragas . Um m étodo que pode a té ser cons iderado ag roeco lóg ico : “ o c a i ç a r a c o n s e g ue e l i m i n a r a l g u n s f o r m i g u e i r os d e s p e ja n d o n os o l he i r os o l í q u i d o

35 Pesquisa de campo nº2. Praia Grande da Cajaíba setembro 2005.

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r es u l t an t e d a p r e n s a g e m d a m a s s a d a m a n d i o c a - b r av a r a l a d a ( ác i do c i a n í d r i c o ) , n as oc as i õ e s e m q u e d e s m a n c h a a m a n d i o c a . ” 36

Os g r i l e i ros t ambém a tuam press i onando pe lo f im das roças. Para i sso, se am param nas l e i s ambien ta i s e em a lguns de seus agentes . O con t ro l e do uso da te r ra para a agr i cu l t u ra m odi f i ca a mane i ra de se pe rceber a posse, l ogo a d im inu ição do espaço u t i l i zado acar re ta um a d im inu ição do l im i te do uso , que é o f a to r de te rm inante da posse.

A t ravés da pesqu isa de campo , se con f i rm aram as aná l i ses b i b l i ográ f i cas , p r i nc i pa lmen te do l i v ro Lavoura Ca içara , de Schmid t , que o ca i çara t em uma ra i z agr íco l a mu i to p resente a i nda ho je em seu co t i d i ano. Mesm o nas comun idades da Penínsu la que não v i vem d i re tam ente das roças , o conhec imento e tnobotân i co a i nda es tá v i vo na ma io r i a dos adul t os a té a f a i xa dos t r i n ta anos . Ass im a imagem do ca i çara pescado r que vem sendo pouco a pouco f o r j ada i nc lus i ve pe los p rópr i os ca i ça ras m ais j ovens , nega par te da m emór i a e da i den t i dade co le t i va, se rv i ndo mu i tas vezes a i n te resses u rbanos . Há um desrespe i to à h i s tó r i a desse povo , a t ravés da cons t rução de uma i den t i dade do ca i ça ra com o apenas pescador . Ass im sua l i gação com a te r ra é apagada bem como seus d i re i t os a p rodução na m esm a que são subst i t u ídos agora pe lo d i re i t o à pesca .

A C aç a “ U m a i m p o r t a n t e ne c es s i d a d e a l i m e n t a r , c o m o a c a r n e , s o f r e

s ev e r a r es t r i ç ã o , po i s a d i m i n u i ç ã o d a c a ç a n ã o é c o m p e n s a d a p o r u m a b a s t ec i m e n t o r e g u l a r d e c a r n e d e v a c a . O r e s u l t a d o d u p l a m en t e r es t r i t i v o é a a t r o f i a d e t e c n o l o g i a v e n a t ó r i a e , n o p l a n o n u t r i t i v o , d e um e l e m e n t o f u n d a m e n t a l d a d i e t a . ” A n t o n io C â n d i d o – O s P a r c e i r os d o R io B o n i t o . 37

Toda essa p rob lemát i ca serve também para a de l i cada

ques tão da caça , que é v i s ta pe la popu l ação u rbana inc l us i ve os c r i adores de l e i s ambienta i s , como uma prát i ca a rca ica que deve se r ban ida para que as espéc ies da fauna possam sobrev i ver . En t re tanto , ques tões como a função mági co- re l i g i osa, a o rgan i zação soc ia l e a t ransm issão de técn icas i ndígenas

36 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958. p.68 37 CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.46

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passam por todo un iverso da caça e seus métodos de percepção do m undo na tu ra l e i n te ração homem-mata. A l ém d isso , o papel p ro té i co representado pe la carne de caça no per íodo de escassez da pesca , e a so l ução de comprar carne de bo i de á reas de pas tagens , que c i c l i camen te que im am áreas da p rópr ia Mata A t l ân t i ca, não são anal i sados . A c r i ação de v i ve i ros de an imais s i l ves t res para consum o hum ano, como j á ex is te na Ponta Negra no caso do macuco , não são cons iderados . As h i s tó r ias de v i da dos ca içaras ant igos demons t ram essa re l ação e servem de parâm et ro para se ava l i ar as p rá t i cas dos ca i ça ras a tua i s .

Segundo Antôn io Cand ido , a ques tão da caça é ma is complexa do que a s im ples necess i dade a l imentar : “ a c aç a , q ue t e n d o c o m o p o n t o de p a r t i d a a o b t e nç ão d e c a r ne , d á l uga r a s i s t e m as c o m p l e x o s , c o m r ep e r c u s s õ e s a f e t i v a s , m á g i c as , a r t í s t i c a s , p o l í t i c a s – s a b e nd o – s e q u e e m m u i t os c as os a l i d e r a nç a p o l í t i c a s e e s b o ç a em f u n ç ã o d e la . ” 38

Um dos ca iça ras an t i gos ma is conhec ido , i nc l us i ve pe los m ais novos em vár i as p ra i as da reserva é Seu Bened i to Caçador , avô de Seu Maneco de Mar t im de Sá. Segundo os depo imentos e ra um ex ímio caçador , dormindo na mata po r d i as segu idos , soz i nho sem tem er onças ou ou t ros an im ais . Segundo Seu Maneco, neto de le , Seu Bened i to e ra f i l ho de uma índ ia e m es t re em armad i l has de caça. Os mais an t i gos , com o fo i l evan tado nas en t rev i s tas , não u t i l i zavam armas de fogo , po rque caçavam e pescavam em abundânc ia se serv i ndo de a rm adi lhas de c i pós e t aquaras . Esse conhec im ento i nd ígena conservou i nc l us i ve os nomes como mundéus, a rapucas e a ra tacas .

Os en t rev is tados f o ram unân imes em d i zer , quando perguntados sobre a o r i gem dessas a rm adi l has que e ram “co isa de índ i o ” , ass im como o f e i t i o da fa r i nha , da canoa e a co i vara. Um dos en t rev is tados se l em brava do pa i con ta r sempre que houve uma época an tes dos b i savós em que os ca içaras e os í nd i os v i v i am juntos naque la cos te i ra , sem at r i t o e se casando uns com os ou t ros . Segundo o in f o rmante não hav ia conf l i tos porque senão esses tam bém ser i am i nc l u ídos na m esma nar ra t i va e que o que e ra contado é que v i v i am em harmon ia f ug i ndo dos b rancos e se i so l ando no i n te r io r das matas .

A caça é um dos p r i nc i pa is f a to res de i n te ração do ca içara com a f l o res ta . A p rocu ra do an ima l f az com que o caçador em s i l ênc i o en t re cada vez m ai s f undo na mata seguindo ras t ros de an imais , decodi f i cando sons , im i tando os b i chos que que r caçar ou suas p resas . O caçador sabe o l oca l exato de á rvo res

38 CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.64

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f r u t í f e ras , águas de beber e t ocas de pedra , onde dorme. É uma a t i v idade mascul i na, que fo r ta l ece os l aços comun i tá r i os e f am i l i a res . Mas após a p ro i b i ção é cada vez m enos pra t i cada e esse con tato m ais d i re to com as m atas ve lhas do f undo dos va l es t ende a se ex t i ngu i r .

P rát i cas Ex t in tas e Re l i g i os i dade M a g i a , m e d i c i n a s i m p á t i c a , I n v o c aç ão d i v i n a , e x p l o r aç ão d a f a u n a e

d a f l o r a , c o n h ec i m en t o s a g r í c o l as f u n d em - s e d e s t e m o d o n u m s i s t e m a q ue a b r a n ge n a m e s m a c o n t i n u i d a d e , o c am p o , a m a t a , a s e m e n t e , o a r , o b i c h o , a á g u a e o p r ó p r i o c é u . ” A n t o n io C â n d i do - O s P a r c e i r os d o R io B o n i t o . 39

Os i n fo rm antes em mui tas pra i as con ta ram que os an t i gos

i am m ui to mais a mata que os a tua i s , como podemos perceber na h i s tó r i a de Seu Bened i to . O pa i do Careca, do Ca lheus, desc reveu esse caçador com admi ração, j á que a l ém de passar per íodos p ro l ongados na m ata , não l evava v íveres e se a l imentava do que caçava e dos a l imentos que a mata of e rec ia . Conhec ia t oda a reg ião da cos te i ra , os caminhos in te r i o res das encos tas e os p i cos das ser ras .

Out ra personagem im press ionante é da Ponta Negra , avó de um a imensa pro l e , a té o f im da v i da morou em um a caverna que f i cou conhec ida como sua . Apesar dos pedidos dos f i l hos para que m orasse em suas casas , i ns i s t i u em cont inua r em sua toca a té o f im da v i da , cu i dando com ze lo do l oca l e cos tum ei ramente sendo encont rada var rendo a en t rada da caverna , que e ra cercada pe la mata . Esse não é o ún ico re l a to de morado res de tocas , que parece serem con t i nuamente hab i t adas sedentár i a ou sazona lmen te . A tua lm ente os ca i ça ras as u t i l i zam quando saem a caçar pe lo i n te r i o r da m ata e dormem ne l as como fo rma de abr i go.

Os an t i gos t i nham hábi t os a l imentares auste ros . Em gera l os pa i s , dos ma is ve l hos m oradores a tua is , segundo es tes , não comiam co isas compradas na c idade. Prefe r i am se a l imentar de banana verde coz i da com pe ixe seco , f i na iguar i a ca içara , a i nda p ra to p ref e r i do pe los m ais ve l hos , m as re j e i t ada por a l guns j ovens. Segundo D.Lo rença , sua m ãe só comia banana verde

39 CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.32

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assada no caf é da m anhã, cabeça de sorgo ou f e i j ão que e la t i vesse p l an tado, comidas com pradas de manei ra a l guma. Para D .Lorença fo ram es tes háb i t os a l im entares e a ro t ina de t rabal ho na roça e na pesca a té mor re r , que poss ib i l i t a ram sua mãe chegar com mui ta saúde a té uma i dade tão avançada. São vá r i os os re l a tos dos ca içaras ve l hos que ao se m udarem para a c i dade com os f i l hos , m or re ram numa ques tão de sem anas , ou con t ra í ram graves doenças e de r ram es. Mu i tos a t r i buem as doenças à mudança da ro t i na de t raba lho que os ve lhos seguiam a té mor re r , cu i dando de suas roças e seus cercos de pesca, a l i adas a m udança dessa a l imentação aus te ra , porém saudável e r i ca em nu t r i en tes . Os moradores da coste i ra se o rgu lham mui to de seus an tepassados , que chegavam a 100 , 108 anos , mui tas f o ram as re fe rênc ias à pa is , avós e t i os que v i veram até a casa dos cem em at i v idade e l uc i dez.

Seu Maneco con ta que seu pa i , Roque Fermiano, a par t i r da década de 70 , não consegu ia ma is com er o pe i xe pescado na a r reben tação. Comia e cuspia , d i zendo sen t i r um gos to i nsupor táve l de ó l eo. A l ém d i sso, comidas como a paçoca de banana com touc inho , o caf é de cana, o b i j u , a ba ta ta -doce assada, o amendoim, a ra i z da ta i oba , a ta i nha coz ida com fe i j ão guandu, sobrev ivem apenas nas comunidades ma is i so ladas ou em a lgumas famí l i as apenas. A lém da mudança no reg ime das a t i v idades , o f im das roças acar re ta um p rob lema de segurança a l imentar , j á que com d inhei ro da pesca ou d o tu r i smo, os ca i çaras ao f azerem as com pras na c i dade, não com pram os p rodu tos t rad i c i ona is como ba tatas -doces , am endo im e ca rá , que não são va l o r i zados como produtos que va lham a pena se rem comprados . Ao invés d i sso , compram g randes quant i dades de b i sco i t os de água e sa l , roscas e recheados doces que servem de caf é e l anche p r i nc i pa lm ente para as c r i anças.

En t re os ant i gos ca i çaras , e ram f reqüen tes t am bém os ba i l es ru ra i s e as f es tas re l i g i osas . Acontec iam quase que semana lmente , var i ando de p ra ia em pra i a . Grandes ba i les e ram fe i t os pe los f es te i ros de cada p ra i a , os ba i l es com entados com o m ui to bons e ram os do Mamanguá, na P ra i a do Cruze i ro , na P ra i a Grande, no Pouso e na Pon ta Negra . E ra um impor tan te espaço de soc ia l i zação em que os morado res das p ra ias a f as tadas pod i am encon t ra r -se , os j ovens a r ran ja rem nam oros, os m ais ve l hos passarem aos mais j ovens conhec im entos , j á que hav ia a dança dos ve l hos , dos adu l t os , dos j ovens e das c r i anças . Dançavam as c i randas , o ba te -pé , o c arangue jo , o l enço , a dança dos ve l hos , dos maru jos , en t re ou t ras que são l em bradas com nos ta l g i a pe los ma is ve l hos e pe los j ovens que a i nda v i ram seu f i na l . E ram danças de roda , com t roca de casais , em que a marcação era f e i t a na ba t ida do tamanco de m adei ra no chão de tábuas cor r i das .

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A dança i a a té o am anhecer , g randes foguei ras e ram acesas na época do São João , ba ta ta -doce , m i l hos , a i p i ns , b i j us puvus e ram assados na b rasa e às 4 horas da manhã t rad i c ionalm ente e ra serv i do o café -de-cana com b i j u . Bebia -se cachaça, mas não hav ia d i sputas , os casai s se separavam na con t radança e ba i l avam com out ros pares . Os mús icos tocavam v i o l as , pandei ros de couro de cu t i a , t ambores e a l aúdes. A bande i ra do Div i no Esp í r i t o Santo percor r i a t odas as p ra i as , do Saco do Mamanguá à p ra i a do Sono, reco lhendo doações e t ocando seus i ns t rum entos . Na P ra i a do Pouso, Seu Miguel v i o l e i ro , se l em bra das f es tas com saudade e d i z pesaroso tocar sua v i o l a , agora soz i nho no quar to . Pode-se perceber que essas fes tas t ambém t razem em par te a f usão da t rad ição i bé r i ca, vo t i va , com a i n tens idade das f es tas i ndígenas e a f r i canas , que v i v i a na f es t i v i dade uma mani fes tação do sagrado e da un ião do g rupo , as u t i l i zando como marcadores tempora is de processos co l e t i vos .

Dona Mar i a , Dona D i lma, Seu Migue l , Dona Te té ia , Seu F i l h i nho , são os que gua rdam essa m emór i a v i va , que fo i desaparecendo len tamen te ass im que as i g re j as p ro tes tantes f o ram se i ns ta l ando a par t i r da década de 30 . As i g re j as p ro íbem seus f i é i s de par t i c ipar das m ani fes tações popu la res que c l ass i f i cam como “co i sas do demônio ” . Houve ass im a separação dos ba i l es an t i gos em que todas as i dades par t i c ipavam, pa ra os ba i l es a tua is em que o f o r ró de ra ízes nordes t i nas e o b rega nor t i s ta , são o d i ver t imento apenas de j ovens e adu l t os . As beb idas a l coó l i cas são mui to consumidas e b r i gas e t i ro te i os são f reqüentes , havendo um a d i scr im inação a i nda ma io r pe l os não par t i c ipan tes . Ass im não há ma is nenhum espaço co le t i vo de conv ív i o dos m oradores da cos te i ra , sendo os campeona tos de fu tebo l a ún i ca f orma de in te rcâmbio en t re as p ra i as .

A chegada das i g re j as p ro tes tantes desorgani zaram a p rodução, no sen t i do que , ao a fe ta r os l aços de compadr io , separando em cren tes e desc ren tes e a tos evangé l i cos e dem oníacos, i n f l uenc iou a f o rmação de g rupos d i s t i n tos dent ro de um a m esm a comunidade . Os r i t os que acontec iam na época das co l he i t as , na época do São João e em cu l t o a pescar i a e a I em anjá , f o ram ro tu l ados de p rá t i cas dem oníacas e fo ram pouco a pouco perdendo espaço . Ass im as p rá t i cas t rad i c i onais f o ram sumindo p r imei ro do imagi nár i o para depo i s se perderem na p rá t i ca.

Out ro impor tante impac to f o i a u t i l i zação dos pas to res evangé l i cos no convenc imento dos ca i çaras a ass i narem documentos f ornec idos por g r i l e i ros . Out ra c rença pro tes tante que a i nda ho je impl i ca em m ui tas conseqüênc ias , é a da p redes t i nação d iv i na. Mui tos ca i çaras evangél i cos ac red i t am que as co i sas acontecem porque deus ass im de term inou, não

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havendo mot i vos para res i s t i r . É recor ren te essa a rgum entação en t re os evangé l i cos , não apa recendo no re l a to dos não-evangé l i cos , em gera l m ais esc l a rec i dos , j á que buscam compreender os processos de d i spu ta por sua te r ra .

A l ém d i sso, ao m odi f i ca r a cosm ogon ia t rad ic i ona l , t ão m esc lada de um ca to l i c i smo arca i co, m i tos i ndígenas e a f r i canos , houve uma perda da i den t i dade g rupa l , t an to en t re s i quanto em re l ação ao espaço em que hab i t a . Os pon tos de re f e rênc ia passaram da morada da Mãe-do -Ouro no P ico do Ca i ruçu , para os t em plos evangél i cos da ba i xada f luminense, e seus d í z imos m ensais . Essa descarac te r i zação cu l t u ra l i n f l uenc iou no p rocesso de desvalo r i zação do l oca l e va l o r i zação do êxodo para a c i dade.

Esse p rocesso que se i n tens i f i cou com a chegada da BR-101, poss i b i l i t ou i g re jas evangé l i cas , sem pre em busca de novos f i é i s , a con tac ta rem popu lações an tes mui to d i s tan tes . Nesse p rocesso de expansão da u rban idade, ou t ros agentes chegaram pelo mesmo caminho.

Na reg ião do Saco do Mamanguá, as comunidades ca i çaras t em uma presença negr a mu i to f o r t e . Cu l t os a f ro-am er i canos ocor r i am em te r re i ros e a p resença de “ ten tos ” , ou sac is , f o i m ui to re l a tada . Contou Seu Benedi to , da P ra i a do Cruze i ro , que na época de seu pa i , o ú l t imo grande f es te i ro do Saco, ao se o lha r a ou t ra m argem a no i t e , se av is tavam i ncon táve i s l uz i nhas ve rm elhas , dos cachimbos dos ten tos . Bem d i f e ren tes das luzes verdes dos vaga- l umes , os t entos se “mudaram” segundo Seu Benedi to , após a conversão m ac i ça ao p ro tes tan t i sm o.

Fes tas a I emanjá perm aneceram na reg i ão, dev i da a fo rça do a rqué t i po que representa . Essa en t i dade a f roamer i cana, l i gada aos cu l tos de f emin i l i dade e governança das águas , é m ui to reverenc iada pe los pescadores e aque les que dependem do mar . Na Penínsu la , ocor rem r i t ua i s em sua hom enagem, na passagem do ano . A lém d isso, na cape la da i nab i t ada I t aoca, encont ra -se no cen t ro do rús t i co a l t a r , um a imagem de Iemanjá, ce rcada pe las ou t ras im agens c r i s tãs de Nossa Senhora , São Jo rge , Jesus e São Cosme e Damião. Sobre essa capel i nha tam bém, é im por tan te comentar , que guarda um enorme c ruze i ro , que susten ta a capela e nes te se encont ra pendu rado um tambor de fo l ia , f u rado .

As i n te rações en t re a re l i g ios i dade c r i s tã e os r i t ua is co l e t i vos f es t i vos e s i nc rét i cos , podem ser por essas p resenças nes ta capela , percebidas em sua complex i dade. Mas com ce r teza , o que guarda tam bém é uma au ra de passado, em ru ínas , de a l go que se acabou, e apenas ves t íg i os , mater i a i s ou o ra is que com o passar do tem po, tendem a ex t i nção .

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Out ras m ani fes tações de uma cu l tu ra a rca i ca, que guarda ra í zes no per íodo co lon ia l , f o ram encont radas nas ou t ras p ra i as . Houve um a m enção reservada ao l i v ro de S .C ip r i ano , f e i t a por S .Apl í g i o , do Cai ruçu das Pedras . Esse g rande con tador de h i s tó r ias con tou que esse l i v ro era usado para f azer b ruxa r i as e re l a tou um caso de um ve lho , l á do Cai ruçu m esm o, que consegu iu se casar com a j ovem sobr i nha , g raças aos conhec imentos do l i v ro que t i nha .

No Ca i ruçu das Pedras , uma das comunidades ma is i so l ada da reserva e m ais p reservada tam bém , ex i s te um encantado na cachoe i ra g rande. Essa en t i dade, m as parece um fenômeno , ou um a energ i a , que se mani fes ta em cachoe i ras , l ugares da coste i ra , em a l t o mar e p i cos das ser ras . Essa do Ca i ruçu faz desapa recer qua lque r ob je to que ca ia na água rasa e c r i s ta l i na da queda . O Jango, personagem fabu loso e i rm ão m ais novo de F ranc i no , ces te i ro , é que con tou um a um todos os ob j e tos perd i dos , que por m ai s que e ram p rocurados j amai s vo l t avam, sendo esse efe i t o g raças a esse encantado .

Há um a conv ivênc ia com esses fenômenos sobrena tu ra is , j á que a cachoe i ra é o l ugar em que se f az a barba , se cor ta o cabe lo , se namora e t om a banho quando se tem a lgum compromisso espec ia l . Em out ras com unidades tam bém houve re l a tos desses encantados, p r i nc i pa lmente a Mãe do Ouro , mu i to conhec ida na reg ião . Contam que de se te em se te anos essa l uz g i gante sa i de sua casa com um imenso es t rondo indo do P i co do F rade, em Angra , pa ra a Pedra da A rara , no Pouso. Ex is tem va r i ações que i nd icam ou t ros t ra je tos como da Pedra da A rara para o P ico do Cai ruçu .

Nav ios encantados , l ob i somem cor re se te p ra i as , mu lher de b ranco , homem de p reto e a i nc r í ve l h i s tó r i a da curup i ra . Essa pe rsonagem é desc r i t a como um anim al pe l udo , som br i o , comedor de ca rne humana, morador de tocas do fundo da m ata. O re l a to m ai s comum começa, com a h i s tó r i a de um homem que m orava na cos te i ra e um d ia f o i seqües t rado pe la curup i ra e obr i gado a t e r um f i l ho com e la . Por a í a h i s to r i a va i .

Encont ram os qua t ro núc leos onde os moradores não apenas con tam essas h i s tó r i as , com o tam bém nelas tem prof undo respei t o e t emor . Na P ra ia do Pouso, o j ovem Gi l son , f i l ho do ve l ho v io l e i ro M iguel , sabe todo o repe r tó r i o . Seus am igos , t em erosos do aparec imento de a l gum a mula sem cabeça no caminho de casa , pedem a l an te rna empres tada para vo l tar para casa. As c r i anças da Ponta Jua t i nga tam bém, con tam do l ob isom em cor re se te p ra i as , e os j á m enc ionados Ca i ruçu das Pedras e Ponta Negra . Essas comuni dades não sof rem fo r tes i n f l uênc ias das ig re j as p ro tes tantes , razão pe la qua l t a l vez t enham m ant i do a l guns re l a tos .

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A essas m ani fes tações cu l t ura i s f o rm adoras da i dent i dade co le t i va e a l i ce rce das re l ações com o am bien te que os cerca, j un tam-se as h i s tó r i as do c i c l o de Pedro Malasar te , do tempo em que os b i chos fa lavam, h i s tó r i as ca ta l ogadas como i nd ígenas ; as m ani fes tações f es t i vas , mus ica i s e as rezas , que cong regavam a comunidade nos f i ns de ta rde , com as lada inhas e t e rços . Ao que parece , essas man i fes tações consegu i ram conv iver e i nc l us i ve se enca ixar no ca l endár i o cató l i co . Nesse sen t i do, parece que o ca to l i c i smo consegu iu conv i ve r de fo rm a mai s s i nc rét i ca com as man i f es tações da re l i g ios i dade e da cu l t ura popu la r l oca l .

Apesar das p ro i b i ções , um s i nc re t i smo pode ser perceb ido, i nc l us i ve nos ca i çaras pro tes tan tes . Seu Bened i to do Mamanguá, e os t en tos , Seu Maneco e o im por tan te pape l de seus sonhos na dec i são de questões p ra t i cas . Sabe-se que é um costume i nd ígena par t i l hado por d i versas t r i bos , de cons iderar os sonhos como conselho , av i sos ou p rem oni ções. No caso dos ca i çaras não há como af i rmar se ser i a uma herança i nd ígena, m as na soc i edade oc i denta l , e na cu l t u ra p ro tes tan te em gera l , os sonhos não são mu i to cons iderados .

Tamanha é a im por tânc i a a t r i bu ída aos seus sonhos, que S .Maneco contou aos seus advogados , que para dec id i r en t re e l es , j ovens e i nexper ien tes recém- f o rmados , en t re tanto cons ide rados como f i l hos e um pro l i xo advogado de Uba tuba, que dava a causa como ganha, op tou pe los p r ime i ros , por causa de um sonho. Estava sua casa sendo l evada por um vendaval m ui to f o r te , quando parou na be i ra de um ab i sm o. Preocupado e assus tado , f o i quando uma c r i ança , i den t i f i cada com o um de seus ne tos ve i o rad iante e segurou em sua mão d i zendo que não tem esse . Hav ia s im um grande per i go, mas que E le (Deus) m andar i a bons an jos para l he a j udar , an j os es tes , que S.Maneco i dent i f i cou como sendo seus j ovens amigos advogados .

En t re tanto , em loca i s como a Pra i a do Sono, onde a chegada das i g re jas evangé l i cas f o i na época dos pa is dos mai s ve l hos, é d i t o po r es tes quando en t rev i s tados para es ta pesqu isa , nunca te r hav i do lá nenhum ba i l e , nenhum a h is tó r i a , nenhuma proc issão . Mas os moradores da v i z i nha Ponta Negra, a f i rmaram te r i do mu i tas vezes aos ba i l es da P ra i a do Sono. Essa negação de um passado tam bém acompanha um a deses t ru tu ração s im ból i ca da i den t i dade se ja co l e t i va ou i nd iv i dua l . Esse p rocesso fo i como que um a e tapa p re l im inar , que serv i u para a desconst rução da i den t idade co le t i va, o rompimento dos laços de so l i dar i edade e de f esa, f avorecendo os p rocessos seguin tes da g r i l agem, da reserva e do tu r i sm o.

Fo i i nc lus i ve , na Pra i a do Sono, ma io r com un idade pro tes tan te da Penínsu l a , que ocor reu um dos ma is conhec idos ep i sód ios de g r i l agem da pen ínsu la . A m aio r i a dos morado res já

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era p ro tes tan te, f reqüentadores da i g re j a que se s i tua na par te cen t ra l da p ra i a . Hav ia um pas to r res i den te, que fo i subs t i tu ído por ou t ro , co l ocado pe lo Gib ra i l ve l ho . Esse pas to r conqu is tou a conf i ança dos moradores , a f i na l e ra seu gu i a esp i r i tua l , e se aprove i t ou de sua pos i ção na com unidade, para f avorecer os i n te resses do g r i l e i ro . Chamou os m oradores e ent regou a e l es um docum ento para ser ass i nado, exp l i cando que se t ra tava de um a tenta t i va para regu la r i za r a s i t uação dos moradores da p ra i a , sendo que ass i nando o docum ento , se r i a en t regue en tão o documento da posse .

O que f o i descober to depo i s é que es te docum ento se t ra tava de um termo de comoda to, f avorecendo G ibra i l Tannus. Os m oradores da Ponta Negra , t am bém fo ram conv idados pe lo pas to r para ass i narem o documento , mas por não serem pro tes tan tes , desconf ia ram da p ropos ta e se negaram a par t i c ipar . Pe rcebe-se en tão , como es tão re l ac i onados esses a to res po l í t i cos : pas to res , g r i l e i ros , m oradores e que poder de persuasão a re l i g ião possu i para esses ca içaras .

Ho je , o que vemos nessa p ra i a , são f i l hos e ne tos dos m ais ve lhos j á desconversos . Orgu lham -se de não par t i c ipa rem de uma dout r ina t ão seve ra , que os obr i gava a ent ra r no mar ves t i dos , não dançar , não conversar ou namorar não-pro tes tan tes , co isas que parecem a e l es exageradas ou despropos i t adas . Ass im , esses j ovens da P ra i a do Sono, vão para Para t y danç ar c i randa e b r i ncar Fo l i a de Re is . Seus pa is , desconversos também se m ost ram sat i s fe i t os pe los f i l hos poderem fazer co isas que a e l es f oram negadas .

Há ta l vez um processo na tu ra l de resga te das an t i gas m ani fes tações cu l t u ra i s , apesar da g rande expansão das re l i g i ões p rotes tan tes , nessa e nas reg iões c i rcunv i z i nhas. Mui to da sever i dade dessas re l i g i ões é ques t i onada a t ravés das novas percepções de mundo que chegam at ravés do tu r i smo, dos m oradores que f oram es tudar em Para ty e vo l t a ram, da míd i a e da p rópr i a re f l exão dos ca i çaras sobre as p rá t i cas co l e t i vas do passado que são perceb idas como par tes cons t i t u t i vas do ser ca i çara, i den t i dade a qual per tencem e va l o r i zam.

Com a ex t i nção das p rá t i cas e a t r ibu ição de demoníaco a um conjunto de va l o res , par tes f undam enta is das p rá t i cas que o rgan i zavam o grupo f o ram pro i b i das . Essa desar t i cu lação do complexo s imbó l i co do povo ca içara , t rouxe conseqüênc ias m ater i a i s , ao se perderam as redes de compadr i o , havendo a separação do g rupo , em “c rentes ” e “não-c ren tes” , assoc iado a rup tu ra dos s i s tem as de t ransmissão de conhec im ento da h i s tó r ia g rupa l , v i a o ra l i dade e o f im dos l ugares em que os even tos soc i a i s ocor r i am. Esse p rocesso m arcou o f im dos encont ros em que as d i f e ren tes f a i xas e tár i as se reun iam bem como, os das com unidades i so l adas se encont ravam . Se os

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out ros p rocessos adv indos da u rban i dade também colaboraram como a desva lo r ização das p rát i cas co l e t i vas , das f es tas com o a l go a rca ico , e o êxodo ru ra l ; apenas o p ro tes tan t ismo teve um ca rá te r rea lm ente p ro i b i t i vo dessas a t i v i dades, o que não deve se r co l ocado em segundo p l ano .

Mas mesmo décadas de p ressão i deológ ica não i n te r fe r i ram nas respos tas dos ca içaras que responderam orgu lhosos serem descendentes de an t i gos i ndígenas . Lembram que os pa i s e avós contavam mui tas h i s tó r i as de como eram os índ i os , com o e les v i v i am, suas h i s tó r i as , suas en t i dades p ro te to ras , mas que por não repe t i rem as h i s tó r ias há mui tas décadas , hav i am em bara lhado tudo na cabeça e t i nham apenas um a imagem dos ma is ve l hos con tando.

A l guns a i nda fo ram capazes de aponta r o nome dos b i savós e avós que e ram cons iderados índ i os e apontar sua p rocedênc ia . Ou i nd icar netos e f i l hos que por t e r t amanha semelhança , o l hos rasgados , pe l e ve rm elha e um negro cabe lo l i so e ram chamados de índ i os . Um exemplo é S .Ol ím pio, que a l ém de te r exp l i cado o s i s tem a de consórc i o dos vegeta i s , f azer a co i vara com um grande cont ro le do f ogo , ano tando tudo em seu cadern i nho , te r um a grande va r i edade de sementes da m esma espéc ie , con tou que sua b isavó índ i a e ra da l i da Ponta da Jua t i nga mesmo. Sua a l de ia cu j o cac i que se chamava Edu , se l oca l i zava em uma reg ião abaixo do f a ro l . Contou também que nes ta reg ião ex is te um a caverna, conhec ida como Toca dos Ossos, em que os í nd i os dessa a l de ia faz i am seus en te r ram entos . S .Ol impio hav ia levado um a equipe de uma rev i s ta l á , e es tes hav i am mex ido nos ossos , o que desencadeou um a grande tem pes tade . Essa toca f o i re f e r i da a l gum as vezes quando se pe rgun tava sobre a ex is tênc i a de i nd ígenas , e ou t ros a i nda d i sseram que hav iam l á t ambém ossos de escravos .

Há também mui tas pessoas que responderam que não e ram descendentes de i nd ígenas, na sua m a io r i a m ulheres e des tas , a mai or i a a f i rmou com ênf ase não te r nenhum paren tesco com índ ios , e s im com por tugueses. Mesmo mulhe res m ui to vermelhas e de l ongos cabelos neg ros e o l hos rasgados, d i z i am apenas te r sangue por tuguês . Percebe-se en tão que há tam bém um tabu, quanto à herança i nd ígena, p r i nc i pa lmente en t re as mulhe res que na reg ião são ma is t ím idas e receosas que os hom ens. Há um rece io em se admi t i r um a ascendênc ia i nd ígena, porque es ta duran te sécu los f o i mot i vo de desp rezo e per i go e apenas os hom ens com o que af i rmando sua coragem af i rmavam orgu lhosos serem descendentes de índ ios . Os mai s po l i t i zados p r i nc ipa lmente , d i sseram que os an t i gos v i v i am pe la m ata a caça r e faze r roças abundantes , v i vendo de f a r i nha e pe i xe seco, remando canoas de v oga, g i gan tes canoas a ve la com o i t o à dez remadores que t ranspor tavam a p rodução para

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Ubatuba , Pa ra t y, Angra e Mangara t i ba e que todo esse conhec imento e ra c l a ramente v i ndo dos índ i os , seus an tepassados.

Como f o i apontado na b i b l i ograf ia e na pesquisa de campo, os ca i çaras an t i gos e ram nômades. Mu i tos não passavam mais de do i s anos ocupando o mesmo ter reno. Ass im como os i nd ígenas , p ra t i cavam uma ag r i cu l t u ra i t i neran te. De ixavam áreas de capoe i ra em pous ios que duravam gerações e se mudavam em busca de á reas de pesca sazona lm ente mai s abundantes . O re la to espontâneo de D .Mar i a da Pra ia Grande da Ca jaíba fo i p rec i oso para conf i rmar essa herança nôm ade:

“ A h , s e f os s e n o t em p o d o m e u pa i , j á t i n h a m a c a b a do c o m a v i d a d o m e u p a i . P o r q u e m e u p a i s ó m o r av a s e t e a n o n u m l u g a r . Es s e l ug a r t o d o a qu i d e n t r o d a P r a i a G r a n d e é c av a de c a s a de l e . ” 40

A i nda ho je , mui tos ca i çaras possuem cas inhas de pau a p i que em out ras p ra i as , com o é o caso do F ranc ino e seu i rm ão Jango, que apesar de morarem no Ca i ruçu , sazona lmente ocupam um ba r raqu inho na Ponta Negra . Out ro exemplo é a f am í l i a do Careca que cons t ru ía uma casa no Ca lheus e f o i des t ru ída pe lo IEF e a f amí l i a de S .Apl í g i o e D .Du lc i né i a que sazona lmente saem do Ca i ruçu para f i ca r no Saco das Anchovas . Segundo D .Mar i a , t oda a reg ião da P ra i a Grande era pass íve l de ser hab i t ada , segundo e l a , sua f amí l ia morou na p ra i a , no r i o , no caminho da cachoe i ra , no ba ix i o , na m ata, en f im o l ugar soc i a l da sua habi t ação abrang ia t oda a reg ião da P ra i a Grande. Uma perspec t i va bem d i f e ren te da a tua l em que os ca içaras t êm de l u ta r com todas as suas fo rças por posses com a lguns met ros quad rados e ranchinhos na p ra i a .

Por tan to, a herança i nd ígena consc ien te , que os an t i gos ca i çaras receberam de seus antepassados , chegou em par te aos ca i çaras ve l hos de ho je . Quanto aos j ovens, essa herança se f az p resente nas p rá t i cas co t i d i anas . Mui tos são os que sabem puxar canoa , ou tecer redes e anda r na m ata, mas não guardam a consc iênc ia de sua o r i gem. Ou t ros aspec tos cu l t u ra i s se perde ram ou con tam com pouquíss imos representan tes a t i vos . Dos d i versos cacos de cerâm ica encont rados no Ca i ruçu das Pedras , não ex i s tem mais m ãos capazes de reproduz i - l os , m esmo que a l guns m ui to ant i gos a i nda f umem em cachim binhos de bar ro e sa i bam a técn i ca de p roduz i - l o . A t écn ica f i cou na m emór i a , mas a p rá t i ca se perdeu. Ass im também acon tece com o b i j u puvu, de mand ioca fe rm entada, que após mui ta pesqui sa, apenas D .Mar i a da P ra i a Grande fo i capaz de se l embrar que o pa i l he con tava , que na época do avô , ente r ravam a m andioca tan tos d i as pa ra que f i zessem um enorm e b i j u , que era chamado b i j u puvu e e ram conhec idos como o pão dos ba i les ru ra i s da

40 Pesquisa de campo nº2. Praia Grande da Cajaíba / setembro de 2005.

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Praia Grande. E la nunca hav ia v i s to , mas l embrava do pa i con ta r .

Ass im tam bém aconteceu com as a rmadi l has de caça , de pesca , com as a t i radei ras de a rco , as danças, os r i t ua i s , a p rev i são do tempo. Segundo os m ais ve l hos, os an t igos ca i ça ras e ram mes t res na p rev i são do tempo, sab iam pelo b r i l ho das es t re l as se i a chover , fazer so l ou nub l a r . A época dos p l an t i os e das pescar i as tam bém, seguiam um r i go roso ca lendár i o l unar que respei t ava o c i c l o m inguante – c rescente, havendo o t abu da l ua cheia , onde não se pescava , nem p lan tava , nem co lh ia , apenas e ra perm i t i do namorar ao l uar na cos te i ra . Quanto ao cu l t i vo da mandioca , a p rát i ca ca i çara desc r i t a po r Schim i t é “o q u e v a i d ec e p a r m a r c a a é p o c a , p o r q u e d e v e c o r t a r a r a m a n a c r es c e n t e , e o q u e v a i p l a n t a r d e v e f a z ê - l o n a m es m a l u a . ” 41 Os j ovens, en t re tan to , com o Pau lo Henr i que , f i l ho de S .Maneco, não seguem essas reg ras , a f i rm ando p l anta r em qua lquer época que os resu l t ados são sempre os mesmos .

41 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958.

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Permanênc ias Quanto aos p rodu tos que a i nda são p roduz idos, como o

tap i t i , o sam burá e a canoa, é impor tan te perceber que m esmo que ha ja uma grande demanda, apenas S .Jov i no , i rmão de S .Maneco e seus f i l hos , p roduzem tap i t i s que abas tecem toda a cos te i ra . O mesmo acontece com os ces tos e sam burás que F ranc ino, i rm ão de D.Lorença, f az . E l e não dá con ta das encomendas e abas tece a cos te i ra , a l guns vão para Parat y e i nc l us i ve vão para São Paulo e o ex te r i o r . F ranc ino ou F rança como é conhec ido , exp l i cou que ex i s te um mane jo para a re t i rada do c i pó t imbeva. Ex is te um c ipó-mãe, que não deve nunca ser co r tado , ou o pé mor re . Ex is te t am bém um núm ero de c i pós por t oucei ra , pa ra que e l a se recom ponha sem danos, e por f im, ex i s tem áreas em pous io , que após o pe r íodo de regeneração podem ser reco lh i dos novamente . Há um a grande procura pe los ces tos de F ranc ino e se espe ra tempo por um, m esmo ass im os m ai s j ovens não se i n te ressam em ap render esse t i po de conhec imento que cons ideram cansa t i vo e en ted ian te. Apenas no Cai ruçu das Pedras , onde moram os ca i çaras ac im a c i tados, encon t ram os um m enino que br i ncava com um p ião fe i t o por e l e p róp r i o , e que hav ia aprend ido a f azer com o avô.

F r a nc i no m os t r a q u a i s c i p ó s p o d e m s e r r e t i r a d o s . Nesta p ra i a i so l ada , encont ramos o ún i co fo rno de fa r i nha

que p roduz ia t oda a f ar i nha consumida no l oca l , a l ém dos m oradores com orgu lho a f i rm arem que a maio r ia da comi da consumida e ra co l h i da no l oca l . Também l á , Seu Ap l íg io , cunhado de S .Maneco, con tou a ma io r i a das h i s tó r ias da época

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em que os b i chos f a l avam, do c i c lo da onça e do macaco e das h i s tó r ias de curup i ra , l ob isomem, l i v ro de S .Cip r i ano e Mãe do Ouro . Segundo essa en t rev is ta pode-se percebe r que an t i gamen te hav ia um a aura mís t i ca m ui to f o r te en t re os m oradores da cos te i ra . Ac red i t a -se a té ho je que na P ra i a do Mar t im de Sá e subm erso na a l t u ra do P ico do Cai ruçu , es te jam grandes j az i das de ouro , mas que essas são p ro teg idas por f o r t es encantos e m ald ições. Mu i tos a f i rmaram que pesqu isadores es t rangei ros chegam de barco , e a no i t e se vem as l uz i nhas e os baru l hos de per f u ração e que vão em bora d i zendo que a m ina é m ui to g rande, porém os gas tos ser iam m ui to a l t os para a ex t ração.

O f a to é que a reg ião é mui to m arcada po r t abus e segredos . Na época da esc rav i dão , contam que hav ia uma grande fazenda em Mar t im de Sá e que ne la hav ia mui tos esc ravos . Es tes e ram com prados com o d i nhe i ro dessa m ina de ouro j á que a venda dos p rodu tos se r i a m ui to pouca em re l ação ao gas to do t ranspor te . De fa to , na p ra i a ex is tem ru ínas de um a casa g rande, moendas e t e l he i ros . Out ra h i s tó r i a mui to popula r sobre a p ra i a , é que na época do Impér i o , um a lemão descobr iu como f a l s i f i ca r o se l o das notas de d i nhei ro e se re f ug i ou em Mar t im , onde as p roduz ia . Pagava seus esc ravos com uma cer ta quant i dade de d i nhe i ro para que nã o con tassem a n inguém sobre a a t i v i dade f a l sár i a , porém ex ig i a que as notas f ossem enve lhec idas an tes de se rem usadas no comérc i o de Para t y. Um d ia , um esc ravo não res i s t i u e as usou todas novas e f o i pego, j á que as no tas que chegavam a Para t y j á es tavam gas tas . Ass im seu dono fo i descober to e preso , i ndo para a cor te .

Out ro impor tante fa to sobre a P ra ia do Mar t im de Sá, f o i respond ido por Seu Maneco quando perguntado sobre a ex i s tênc i a no loca l , de a l gum vest íg i o de ocupação i ndígena, m achados , conchas ou cerâmicas . E l e respondeu que no caminho da cachoe i ra do Poção, na cachoei ra do me io do caminho , hav ia um a grande pedra redonda , com um imenso su l co, denominando o l oca l de cachoe i ra da Pedra de Am olar . Sem pre que passavam por l á aprove i t avam para amolar suas facas a té que com a tomada da te r ra pe lo g r i l e i ro Pacheco, a ped ra f o i rem ov ida e exp l od ida pa ra que pudesse serv i r de am olado res m enores na sede. Out ra pedra des ta t ambém ex is te no encon t ro do r i o com o mar , co i nc i d i ndo com os l oca i s de am olado res de machado dos sam baquie i ros da I l ha Grande, en t re tan to de menor t amanho.

Mu i tas lendas cor rem sobre a reg ião, m as é impor tante no ta r que dessa m emór i a co l e t i va se ex t raem i ndíc i os de uma h is tó r ia l oca l que por não te r s i do esc r i ta a té en tão , mereça ser desc l ass i f i cada . Um a herança i ndígena, se j a e l a por ass im i lação ou con tato i n teré tn i co e m est i çagem, re f le te na v i são de mundo

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que o ca i çara t em de s i , com o herde i ro natu ra l da te r ra de seus ances t ra i s e na mane i ra como e l e en tende o m undo ex te r i or que en t ra em conta to com e le . A po lu i ção que chega a t ravés do a r e da água, o en tend imento que a t e r ra é para os descendentes e de l a se obtém o necessár i o para o sus ten to. A i r rac iona l i dade da acumulação de bens , a g r i l agem de te r ras enormes que não são hab i t adas por seu dono. São uma sér i e de f a to res que competem para que a d i f erença en t re essas populações e os g rupos u rbanos que ent ram em conta to se j am acentuados .

Essa i dent i dade que ex i s te en t re o ca i çara morado r da Jua t i nga e o am bien te em que v i ve passa tam bém por essa sér ie de resqu íc i os e permanênc ias da cu l t u ra i nd ígena que excepc ionalm ente conseguiu sob rev i ver nes ta reg ião. As p rá t i cas co t i d i anas desse grupo re f le tem um conjun to de sabe res que e ram pra t i cados na m aio r i a do te r r i t ó r io onde ho je es tá o B ras i l . Não como prá t i cas a rca icas no sen t i do de a t rasadas , mas como uma fo rma de res i s tênc i a cu l t u ra l e i nserção no mundo, essa popu lação manteve na sua v i vênc ia , conhec imentos que perm i t i ram sua permanênc ia na reg ião. Essas p rát i cas ho je se to rnam fundam enta is na c r i ação de es t ra tég i as de res i s tênc i a ao aum ento das p ressões ex te rnas e na a f i rm ação de seu d i re i t o à posse da te r ra de seus ances t ra i s .

Também no con tato com o tu r i smo essa ancest ra l i dade se m os t ra ú t i l , no sen t i do que c r ia v íncu los de respei t o do tu r i s ta para com o na t i vo , reconhecendo es te com o mais adap tado , responsável e conhecedor dos mis té r i os l oca is . O mane jo i nd ígena que f o i herdado pe los ca içaras é um fa to r de poder f ren te às impos ições conce i t ua is da soc i edade oc iden ta l , e deve se r va l o r i zado e reconhec ido . Não é i s so que acontece, j á que as bar re i ras para seu es tudo se in i c i am na academia. Nesta, pers i s te a i nda ho je um a va lor i zação dos es tudos po l í t i cos , sendo as p rá t i cas co l e t i vas encaradas como fo l c l o re ou e tnograf i a . A pesqui sa da cu l t u ra de povos t rad ic i onai s com o fo rma de res i s tênc i a po l í t i ca aparece como um ob je to ra r íss imo na h i s to r i ograf ia . Na cade i ra de H i s tó r i a também há um rece io m ui to g rande quanto ao es tudo de povos v i vos , como se f osse necessár i o esperar uma cu l t u ra mor re r pa ra se deb ruçar sobre e l a . De f a to , mor tos não tem com o re i nv id i car rev i sões ou c r í t i cas aos es tudos sobre e l es e a b i b l i ograf ia pode ser ca ta l ogada e con t i da em arqu i vos , ao con t rá r i o de sen t imentos e v i sões de mundo mutan tes .

A dúv ida da Academia sobre a u t i l idade de es tudos como esse , sobre popu lações i so l adas fo i l evan tada du rante t odo o decor re r do p ro je to . Sua espec i f i c i dade com o es tudo sobre descendentes de povos i ndígenas de um estado como o R io de Jane i ro que não apresen ta ma is nenhum a popu lação i nd ígena na t i va f o i t i do como i r re l evan te . Mesmo na f a l t a de b i b l i ograf ia

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na área h i s tó r i ca sobre g rupos cu l t u ra lm ente remanescentes , o t em a pareceu obv iam ente consensuoso. Sua re l ação como g rupo ru ra l em d isputa com g r i l e i ros , parec i a ser a ún ica sa lvação para a o r i g i na l i dade do t rabalho . As p rá t i cas e heranças que to rna ram esse g rupo tão che io de espec i f i c i dades e possuidores de uma re l ação homem-natureza tão s imb iót i ca , que permi t i ram aos m esmos, serem reconhec idos em le i , com o par te do que dever i a se r p reservado na rese rva e mesmo a Á rea de P roteção Ambienta l do Cai ruçu te r s i do e l abo rada como respos ta a um v i o l en to p rocesso de g r i l agem de te r ras , que se abat i a con t ra e l es , o impor tan te não e ra quem e les e ram, m as , o que aconteceu a e l es . Como se um te rmo fosse i ndependente do ou t ro e a h i s to r iograf i a j á não te r encont rado a B io l og ia , a F ís i ca, a Ecolog ia e a Geogra f i a , conc lu i ndo que tudo são redes de s i s temas i n tegrados , onde o mac ro es tá cont ido no m ic ro e v i ce-versa .

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Capí tu lo I I I

Ambiente e Res i s tênc ia : Memór i a Ambien ta l , Segurança A l im entar , Tur i smo e Luta pe la Ter ra .

“ o H o m e m é c o ns i de r a d o , n e s t e l i v r o , c o m o p a r t e d a n a t u r e z a ; d a í n ão e x i s t i r u m c a p í t u l o à p a r t e o u a p ên d i c e c h am a d o “ o H o m e m e a N a t u r e z a ” . ( . . . ) C om u n i d a d e n o s e n t i d o e c o l ó g i c o , i n c l u i t o d a s as p o p u l aç õ e s d e u m a d a d a á r e a . A c o m u n i d a d e e o a m b i e n t e i n e r t e f u n c io n a m em c o n j u n t o c o m o u m s i s t e m a e c o l ó g i c o ou ec os s i s t e m a . ( . . . ) A p o r ç ã o d a T e r r a n a q u a l os e c o s s i s t e m as p o d e m o p e r a r , i s t o é , o s o l o , o a r e a á g u a , b i o l o g i c a m e n t e h a b i t a do s , r e c e b e o no m e d e b i os f e r a . ” 42

Esse cap í tu l o se re f e re aos temas que es tão ma is

i n t im amente re l ac i onados ao meio am biente e as ques tões po l í t i cas re l ac ionadas ao uso da te r ra . As l e i s de p ro teção am bienta l , j á d i scu t i das an te r i ormente , são anal i sadas quanto às suas conseqüênc ias d i re tas no ecoss is tema e na cu l tu ra l oca l . Percebe-se que após a c r i ação das á reas p ro teg i das, os desmatamentos fo ram pelo m enos i deo log i camente con t ro l ados. Há nos d i scu rsos dos moradores um a consc iênc ia am bienta l , que p rovavelm ente se f o rmou a par t i r da imp lementação das l e i s am bienta i s . Ent re tan to, com o em casos aná logos no pa ís , apenas pa r te da l e i é cum pr i da. No caso da reserva, apenas le i s p ro i b i t i vas , que inc l us i ve en t ram em choque com os d i re i tos assegurados aos povos t rad i c iona i s são ap l icadas . São neg l i genc iadas as medidas educat i vas e de geração de renda que es tão p rev is tas nos tex tos que c r i am tanto a á rea de p ro teção am bien ta l quanto a rese rva eco lóg i ca .

Ta l vez esse se ja o maio r dano ao meio am biente ho je co r ren te den t ro da pen ínsu la . Apesar das res t r i ções , mui tos ca i çaras que imam todos os anos á reas de sapé, de capoe i ra e t am bém de m ata, para o cu l t i vo das roças . A f a l ta de ações pedagóg i cas , com o es tudos de v iab i l i dade para imp lem entação de cu l t i vos ag roecológ i cos e o i so lamento da reg ião em re l ação a p ro j e tos agro f lo res ta i s bem sucedidos em comunidades ca i çaras da mata a t l ânt i ca é ev i den te . Um dos exemplos é a u t i l i zação com erc i a l da po lpa dos côcos da pa lmei ra Jussara (Euterpe edul i s ) , que na reserva pode r i am supr i r a demanda de aça í durante as es tações tu r í s t i cas . Os côcos desca r tados do p rocesso de ex t ração do suco vem com sucesso sendo u t i l i zados em Ubatuba e na reg ião Sul em áreas de re f l o res tamento .

42 ODUM, Eugene Pleasants, 1931. Ecologia; tradução de Kurt G. Hell. 3ª Ed. São Paulo, Pioneira, 1977. p.20

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Den t ro das a t r i bu i ções da reserva e da á rea de p ro teção ambienta l , es tá a recom pos ição vegeta l das á reas deg radadas , p rocesso esse m ui to necessár i o , j á que a m a ior par te do Saco do Mam anguá é f o rmado po r capoe i ras . Ex is tem grandes á reas desf l o res tadas , remanescentes dos an t i gos cu l t i vos co l on ia i s , que fo ram sucess ivamente sendo cu l t i vados a té os d i as de ho je . Os g r i l e i ros também abr i ram grandes c l a re i ras na mata a rgumentando a necess idade de pas to pa ra as c r i ações pecuár ias e a p rodução de carvão . Ex is tem áreas, en t re tan to , que são mant i das nuas por um costum e de a tear f ogo a á reas de caminho . Ex is tem vár i as , as maio res são no Pouso da Ca jaíba , na Pra i a do Sono, no Saco das Anchovas e Ca i ruçu das Pedras . Á reas desmatadas pe la l avou ra se encont ram na P ra ia Grande, Mart im de Sá e Ponta da Jua t i nga .

A f a l t a de cober tu ra f l o res ta l ocas iona conseqüênc ias que são desc r i t as pe los p rópr i os moradores e con t ras tam com a lguns concei t os do senso com um. Segundo Seu Maneco, é a f a l t a de a l imento que ex t i ngue a caça, e não os caçado res l oca i s , porque segundo e l e com comida fa r ta , a f auna p roc r i a em abundânc ia , m ui to m ai s do que é consumido esporad icamente pe l as comun idades . Anos a t rás , quando os caçadores u rbanos f reqüentavam as m atas , hav i a um a a l t a t axa de mor te de an imai s dev ido à caça , aos equ ipam entos e aos cachor ros de caça u t i l i zados . Mas após a p ro i b i ção da caça na reserva, os ca iça ras t am bém f o ram a t i ng i dos pe la p ro i b i ção e vão perdendo rap idamente conhec imentos re l a t i vos à f auna que poder i am estar sendo u t i l i zados na ampl i ação des ta . Conhec im entos de an ima is que ho je se encont ram ext i n tos , como o tamanduá-mi r im ou anão, que pod er iam se r re i n t roduz idos , a t ravés do conhec imento dos ca i çaras de qua i s os habi t a t s mais p rop íc i os para cada espéc ie . Um t raba lho de v i ve i ros de f auna , como já es tá sendo fe i t o na Ponta Negra , em que m acucos es tão sendo c r i ados ao i nvés de ga l inhas. Se essas c r i ações f o rem est imu ladas , e com a taxa de fuga na tu ra l dos an imais , ou até um a co ta de re i n t rodução na mata , em poucos anos mui tos an imai s reapa recer i am em abundânc ia , mas f a l t am pesqu isas nessa á rea .

Uma das m ais im por tan tes p rá t i cas ca iça ras t rad i c ionai s que se perpe tuou , e necess i t a de u rgen tes es tudos para um manejo m ais apropr i ado é a puxada de canoa. Nesse g rande even to com uni tá r io , os homens adent ram a m ata p rocurando árvores ve l has , a pon to de mor rer , que dêem boas canoas . Cedros e Guapuruvus de g rossos t roncos sempre fo ram m ui to p rocurados, mas com a secula r re t i rada de canoas , essas á rvo res já são ra ras . No passado, a puxada de canoa era acompanhada de ba i l es e f es tas , j á que o t raba lho de car regar eno rm es to ras de made i ra por den t ro da mata e ra um impor tan te

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evento soc i a l comuni tá r i o . Cada vez é necessár i o i r m ai s l onge na mata para consegu i r um bom “pau” , e os f i sca is f l o res ta i s t am bém press i onam, causando mu i to abor rec imento para os na t i vos . Os melhores f azedores de canoa são tão respe i t ados den t ro e f o ra de suas com unidades , que são c i t ados em pra i as d i s tantes como é o caso de S .Jov i no .

C a n o a s e nd o f e i t a n o C a i r uç u d as P e d r as .

Esse parece ser um caso análogo ao da p rodução de

sapé. Mater ia l m i l enarmente usado no te l hado das hab i t ações e cons t ruções carac te r i za a cons t rução ca içara t rad ic i onal . En t re tanto , es te só c resce com a fo rça necessár i a para uso nos fo r ros , quando c resce em te r reno recém que imado. Mas a par t i r da im pos ição das l e i s , os ca i ça ras se v i ram im poss ib i l i t ados de u t i l i za r o p rodu to na t i vo e t em que adqu i r i r no m ercado as t e l has de amian to , que sabem que fazem mal à saúde.

Se houver um t raba lho sér i o por pa r te dos ó rgãos governam enta i s in te ressados rea lm ente em proteger e recuperar o me io ambiente , na tu ra l e humano, mui tas so l uções serão v i áve is . Adaptações com m ater i a i s do p rópr i o me io com o o te l hado de f o l has da pa lmei ra P indoba, abundan te na reg ião, podem se r u t i l i zadas ; em vez da que im ada de á reas f l o res ta i s , a que imada con t ro lada pode ocor re r em capoei ras e t e r renos de pous io de te rminados pe lo p l ano de mane jo e o uso da compos tagem agr í co l a t ambém fo rnece boa quan t i dade de húm us. A u t i l i zação das f o l has do guandu espéc ie mui to

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cu l t i vada nas roças t rad i c i onais e j á u t i l i zada com o adubo pode se r i ncen t i vada e d i f und ida nas com unidades.

Não há i n te resse pe lo conhec imento t rad ic i onal . Ta l vez porque es te guarde memór i as per i gosas con t ra a l guns se to res que f i nanc iam as á reas p ro teg idas. Em t rês en t rev is tas com an t i gos ca içaras fo i l evan tada a m or te de a l gumas espéc ies . A p r ime i ra f o i dos p i t us e pe i x i nhos das cachoe i ras , que l ogo após a j ogada de veneno que reduz iu a popu lação de m osqui tos e maru ins , pat roc i nada pe lo condomín io Laran je i ras , ocas ionou o sumiço dos mosqui tos , a mor tandade de p i t us e pe i x i nhos das be i ras dos r i os em t rês p ra i as da cos te i ra . Logo em seguida a essa m or tandade, os enormes bandos de macacos Mur i qu i ou Bur iqu i , como são l embrados , sum i ram. Os bandos que v i nham em grande a l gaza r ra pe los va l es das ma tas g randes das se r ras , sumi ram do d i a pa ra no i t e , de ixando perp l exos os que se l embram do f a to . Fo i j un to da mor tandade dos p i tus , a f i rmaram os t rês i n f orman tes , em t rês p ra i as d i f e ren tes .

S . J o v i n o e as h i s t ó r i a s do s b i c h os da m a t a .

D i f e renc ia ram esse per íodo de um an te r i o r , em que o

Tam anduate í , ou Tam anduá-anão, sumiu também, res tando ho je apenas o g rande. As queixadas sumi ram conta S . Jov i no , i rmão de S . Maneco do Mar t im de Sá, quando j á e ram poucos . Um caçador da c i dade, sem conhecer os cam inhos da mata , so l tou os cachor ros b ravos num grande bando, que acabou po r ca i r num des f i l ade i ro e nunca m ais f oram v is tas quei xadas .

Na le i da c r i ação a APA, f i ca expresso: “ A r t i g o V – F i c a p r o i b i d o o us o de b i o c i d a s c a pa z e s d e c a us a r

m o r t a n d a d e d e an i m a i s v e r t e b r a d os , e x c e t o r a t os e m o rc e g os

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h e m a t ó f a g os . ”43 Mas a l e i parece ma is uma vez não es ta r sendo respei t ada.

As ba le i as a té um ano a t rás , segundo Jov ino, o f e rec i am r i s co às canoas de pesca no Cai ruçu das Ped ras . Chegavam tão pe r to com as c r i as e e ram tan tas que por um descuido do pescador , pod iam v i rar as canoas com seu pesado m ov im ento . Esse ano , j á e ra época , mas a i nda não hav ia apa rec i do nenhum a bale i a , f a to que Seu Jov ino es t ranhou .

Pássaros , pe ixes , ou t ros m acacos, á rvores f ru t í fe ras , t an tas espéc ies que se l embram pelo nom e, desc r i ção e sumi ram. Época em que aparec iam, sua a l imentação , p rát i cas de acasa lamento , per íodo de ex t i nção, são i n f i n i t os os conhec imentos que vão se perdendo na mem ór ia dos mais an t i gos . Os ca içaras j ovens, p ro i b idos de caçar , de faze r roças, se i n te ressam cada vez mais por va l o res u rbanos . Não há mais o espaço do aprend i zado, po rque o espaço e ra f o r j ado pe la prá t i ca e essa fo i p ro i b i da , ao i nvés de pesqu isada e adequada à con temporaneidade.

Com o d i z Diegues , ” a s c u l t u r a s r e g i o n a i s e l o c a i s r e p r es e n t a m a s o m a t o t a l d e ex p e r i ê n c i a s p as s a d a s , n u m a v as t a ga m a de c o n d i ç õ e s a m b i e n t a i s . A i n c o r p o r a ç ã o s e le t i v a d e u m p as s a do r e i n t e r p r e t a d o p a r a u m f u t u r o l i b e r a d o n ã o o c o r r e r á s e a m e m ó r i a f o r d e s t r u í d a , o u s e s e u s p r od u t os c u l t u r a i s f o r e m c o n h ec i d o s c o m o p e ç a s de m u s e u . ”44

Mas ex is tem a l te rna t i vas , como os meninos que c r iam m acucos, os m eninos da P ra i a Grande, A l e f e Leno com suas a rmadi l has e sua cons tante a tenção com os ens inam entos do pa i , a Pre ta do Sono , ne ta de evangé l i cos que vo l tou a dançar c i randa em Paraty , o G i l son e seus amigos do Pouso que não só con tam causos de assombração, m as mor rem de medo de encont ra r com os personagens, ass im como as c r i anças da Ponta da Jua t i nga . São j ovens que gua rdam essa impor tan te f on te de saber que é a memór ia ambienta l desse povo , que em suas ca rac te r í s t i cas mai s t rad ic i onai s , e adaptadas e dependen tes ao me io, e i ndependentes da u rban idade, perm aneceram res t r i t as a essa pen ínsu la , p r i nc i pa lmente em decor rênc ia de seu i so l am ento.

43 Lei Decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de 1983. APA Cairuçu. Sítio IBAMA/RJ http://www.ibama.gov.br/siucweb/mostraDocLegal.php?seq_uc=36&seq_tp_documento=3&seq_finaliddoc=7, 2006. 44 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000. p.43

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A Po lu i ção A ma ior degradação que os af l i ge é a do mar . O c i c lo

da pesca embarcada os t rans fo rmou de pescadores a r tesanai s com arm adi l has de taquara e cercos, em pescado res de a l t o -m ar, conhecedores da cos ta desde o Esp í r i t o Santo à Santa Catar i na, i nser idos no m ercado de pesca abas tecedor das g randes c i dades. Hoje os pe i xes que f o rnec iam para o R io de Jane i ro , não são suf i c i entes nem para a subs is tênc ia .

Das épocas de f ar tu ra, f i ca ram os re l a tos dos pe ixes co l h i dos na a re i a , f ug i dos dos tubarões ; das mu lheres pescando com suas sa i as as t a i nhas, e a pesca f ar ta na a r rebentação. É chocante a comparação dos re la tos do passado com os do p resente. Os ca içaras percebem o p rocesso de degradação do m ar, mesmo que a l guns j ovens d i gam que a pesca es teve sempre como agora . Out ros , ent re tan to , j ovens tam bém, c i tam os re l a tos dos an t i gos e sabem que a pesca aca bou. Como causas p r inc i pa is apontam os ba rcos de ar ras to dos em presár i os , que bur l am as l e i s e a f i sca l i zação, matando c r im inosamente a m ic rof auna m ar inha , a po l u i ção das g randes c i dades e das i ndús t r i as .

Seu Ap l í g i o do Ca i ruçu, conta ind i gnado que é da Us ina Nuc lear que vem uma m aré de águas tu rvas , como a água com Nova lg i na – reméd io para dor – que af as ta os pe i xes e g ruda nas redes. P i or do que a época em que as naus pe t ro l e i ras f undeavam na cos ta e l avavam seus tanques, enchendo as p ra ias da pen ínsu la de ó l eo , de ixando m arcas nas ped ras até ho je .

Segundo Seu Apl í g i o , o cano que so l t a a água da us i na de Ang ra , não é com pr i do o su f i c i ente para ev i t a r que a água chegue a té a cos ta . Segundo e l e t ambém , essa m aré v i scosa e t rans l úc i da é d i f e ren te das marés de esgoto que vem da d i reção de São Pau lo e das cor ren tes que t razem ó leo dos nav ios .

Segundo Seu Maneco, as á rvo res da mata não p roduzem m ais f ru tos porque a po lu i ção v i nda de São Pau l o f az ba i xar uma chuva d i fe rente que f az com que as f ru tas ca i am dos pés an tes de maduras . Ass im a caça m or re de fom e. Esses conhec imentos tão sof i s t i cados do am bien te, poss i b i l i t ados apenas por uma conv i vênc ia t ão i n t ím a com a te r ra em que hab i t am e p roduzem, levam a uma ref l exão sobre como deg radação cu l tu ra l ocas ionada pe la p ressão das le i s am bienta i s e o impac to cu l t u ra l e econômico da u rban idade tam bém não são uma das f ace tas da p rópr i a degradação am bienta l . Essas mem ór i as dem ons t ram como a h i s tó r ia da res i s tênc i a desse povo , para sob rev i ver em seu te r r i t ó r io , es tá i n t im amente re l ac i onada ao ecoss is tema em que hab i ta ,

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possuindo conhec imen tos que podem ser va l o r i zados com o fo rma de enra i zamento cu l t u ra l .

Segu rança A l imentar A memór i a sobre aspec tos do m eio ambien te também

se re fe re aos a l imentos o rgâni cos que ho je j á são ra r i dade. A lém das f ru tas desapa rec i das , dos pe i xes escassos , a caça que fo i p ro i b i da represen tava um a impor tante com plem entação p ro té i ca nas épocas do i nve rno, época da ba i xa da pesca . Mas o dec résc imo com maiores conseqüênc ias f o i na d im inu ição das roças.

Essa at i v i dade t rad ic i onal e ra a p r i nc i pa l a t i v i dade econômica a té o c i c l o da pesca em barcada e ho je , se vê reduz ida a poucos gêne ros p l an tados , em ra ras com unidades. A g rande conseqüênc ia da d im inu ição dos po l i cu l t i vos , a l ém da perda genét i ca é a segu rança a l imentar das com unidades que se vê aba lada . P r i nc i pa lmente após os p rocessos de g r i l agem que reduz i ram os espaços co l e t i vos , de f in i ndo l im i tes de te r renos par t i cu l ares e imped indo o des locamento nômade das f amí l i as den t ro de seu te r r i t ó r i o . Uma das p r i nc ipa i s causas do nom adi smo ca içara e ra o s i s tem a de pous io das te r ras cu l t i vadas. Segundo os ca i çaras an t i gos , as roças do passado eram fe i t as em áreas que após a queda da fe r t i l i dade eram de i xadas em processo de regene ração vege ta l por l ongos anos, por i sso os ca içaras se m udavam cons tantemente, indo hab i t a r p róx imo das áreas que ser i am cu l t i vadas .

Com o ac i r ramento das p ressões pa ra re t i rar os m oradores , os p rocessos de g r i l agem e a quebra das re l ações de compadr i o pe lo p ro tes tant i smo , as an t i gas f o rm as de m ut i rão de p l an t i o e á reas com uni tá r i as f o ram sendo subs t i t u ídas por p l ant i os ind i v i duais . Mas as t écn i cas t rad ic i onais de cu l t i vo são m ui to pesadas f i s i camente, ass im houve também um aumen to do t rabalho i nd iv i dua l , o que acar re tou um des in te resse pe las gerações m ai s novas que começaram a op ta r por t raba lhos mai s s imples e ren táve is com o o t ranspor te de tu r i s tas .

Após a desa r t i cu l ação dos p l ant i os co l e t i vos , houve recen temente a chegada do mercado de t raba lho gerado pe lo t u r i sm o e o impacto das l e i s am bien ta i s que p ro i b i ram uma sér i e de p rá t i cas sem suger i r adap tações e m anejos . Há , po rém, comunidades que res i s tem e permanecem desobedecendo as p ro i b i ções e p l an tando seus a l imentos . Ou t ras comunidades es tão encont rando l entamente opções a l t e rna t i vas com o é o caso da com postagem agr íco l a p ra t i cada por seu A l t ami ro . A l u ta pe lo d i re i t o de p l anta r é uma l u ta imp l í c i t a na l u ta pe la

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posse da te r ra . A h i s tó r i a dessa lu ta é um a le r ta e o f e rece um a ref l exão sob re a p rá t i ca da g r i l agem, as l e i s ambienta i s e o im pac to cu l t u ra l da u rbanidade .

O tu r i smo

“ o t u r i s m o n as c e s ob a é g i d e d o c a p i t a l i s m o e d e s d e o i n í c i o a d q u i r i u a r ac i o n a l i d a d e q u e o c a r a c t e r i z a , e q u e nu m p r i m e i r o m o m e n t o é p r o f u n d a m e n t e i n d i v i d u a l i s t a e c o ns u m i d o r d o s r e c u r s o s n a t u r a i s ” 45

Os pesqui sadores D iegues e Nogara , no l i v ro “Nosso

Lugar V i rou Parque” f azem uma impor tan te desc r i ção do p rocesso de expansão imob i l i á r i a na reg ião da Jua t i nga , ma is espec i f i camente na reg ião do Saco do Mamanguá. Ca rac ter i zam qua t ro g rupos : tu r i s tas de l uxo , com m ansões e i a tes ; c l asse m édia u rbana, com casas de verane io com prada dos ca iça ras ; m ochi l e i ros , em ge ra l j ovens un i ve rs i t á r i os e es t range i ros com paco tes de tu r i smo. Mais recen temente , começa a emerg i r , no Saco , um tu r i smo vo l t ado para g rupos esco la res e de pesqu isa , buscando uma i n te ração a t ravés de es tudos do me io e d i agnóst i cos par t i c i pa t i vos . É também uma ten tat i va de quebrar a sazona l i dade do f l uxo tu r ís t i co, i n tenso apenas no verão e i n teg ra r a cu l t u ra l oca l com o m ais um i t em da ro ta t u r í s t i ca, se não o p r i nc i pa l .

Os g rupos de es t rangei ros t ambém se i n te ressam pe las p rá t i cas l oca is , sendo comum a p rocura pe las casas de fa r i nha. Os moradores vão aos poucos va l o r i zando a l gumas de suas p rá t i cas a rca i cas em função desse i n te resse tu r ís t i co . Po rém, nes te caso especí f i co , do tu r i sm o i n te rnac ional , o l oca l é v i s to como exó t i co e remunerado, com os ca i çaras ganhando t rocados pe l a ex i b i ção do fo rneamento da mand i oca. A í es tá um a ques tão de l i cada , que é a da au to - representaçao das p rá t i cas co l e t i vas , como ressa l t ou M iche l de Cer teau , em sua re f lexão sobre a i nvenção do cot i d i ano . As p rá t i cas t rad ic i onai s perdem a func i onal i dade que guardam em s i , e passam a ser ex i b i ções exó t i cas sem nenhum v íncu lo com a p rá t i ca cot id i ana. Ass im como os índ i os Pataxós da A lde ia de Ba r ra Velha /BA, cobram um rea l para o v i s i t an te t i r a r uma f o to e para t an to , o cac i que pede pra m ulher buscar seu coca r .

Essa pe rda da au ten t i c i dade é p rob lemát i ca i nc l us i ve para o p rópr i o t u r i smo, que es tá em ge ra l em busca de exc l us i v idade. Mas , sobre tudo para os ca i çaras , que passam a se au to -representa r em t roca de d i nhei ro , t rocando a i den t i dade por uma

45 DIAS, Reinaldo. Turismo Sustentável e meio ambiente. São Paulo, Atlas, 2003. p.07

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im agem da i dent i dade necessár ia para a f o l c l o r i zação das p rá t i cas , de acordo com o i n teresse tu r ís t i co. As prá t i cas loca i s ass im t ransfo rmadas em a t i v i dades exó t i cas e rec rea t i vas es ta r i am i nser i das num p rocesso que pode ser en carado como um grande parque temát i co ca i çara , em que os ca i çaras ser iam a t rações de um espetácu lo que se ass is te m ediante pagamento. Essa mercant i l i zação das re l ações soc i a i s co l abora para um c l ima de av i dez pe lo d i nhe i ro , que j á pode ser sen t i do em l ugares antes va lo r i zados j us tam ente pe la hospi t a l idade na tu ra l dos m oradores . A P ra i a do Pouso, a P ra i a do Sono e em a lgum grau Mar t im de Sá, j á são l oca is em que se um es t rangei ro ou um a pessoa de c l asse m éd ia b ras i l e i ra , chega rem, p rovavelm ente o p r im ei ro será m ais bem receb ido.

Loca is em que o f l uxo tu r ís t i co é m enor , com o a Ponta da Jua t i nga e o Cai ruçu das Pedras a recepção dos moradores é t ão m ai s generosa e s i ncera, que se tem von tade de nunca mai s sa i r da l i . I nc l us i ve , não há um a percepção apurada do tu r i sm o, sendo o t u r i s ta enxergado como um v is i t an te. Ao cont rá r i o , em ou t ros l oca i s , se sen te que a t odo o m omento os morado res que rem t i ra r a l gum d inhe i ro a m ais , com bolos , comidas ou a dem ons t ração de a t i v i dades t rad ic i onai s . Essa in tenção de comérc i o , às vezes co l oca a té em dúv ida a i n tenc i ona l i dade da i n te ração do na t i vo com o v i s i t ante , causando uma sensação desconfo r táve l .

Quanto ao tu r i smo de c l asse méd ia , é o que em gera l co l abora m ais para o abandono das p ra t i cas t rad ic i ona i s nas comunidades . Ex is te sempre um a cas inha de a l guém sendo cons t ru ída, re f ormada, e é comum a cena de j ovens car regando sacos de c imento dos barcos para as cons t ruções. Os j ovens das comunidades mai s t u r ís t i cas , j á não sen tem mui to ape lo no t rabalho á rduo e a r r i scado da pesca , m ui to menos na roça , encarada como desgas tante e de nenhuma rem uneração. P ref erem ser ped re i ros e a j udantes e ganhar a l gum dinhei ro , com o qual podem i r a Para t y, nos f i na i s de sem ana e even tos . Há também out ros pos tos de t raba lho que na época do tu r i smo, f az com que mui tos ca i çaras a l t e rnem a t i v i dades t rad ic i onai s e comerc i a i s .

São m ui tos pos tos de t raba lho: o t ranspor te dos tur i s tas com os barcos de pesca , os bares , seus garçons , coz i nhe i ros , ca r regadores de m ala, t ra f i can te de d rogas , o a l ugue l de casas, canoas , equipam ento de mergu lho, e t c . . . Enquan to essas a t i v idades vêm complementar a renda, que j á es ta ga ran t i da com as a t i v i dades de subs is tênc ia , percebe -se um a cer ta melhor ia das cond ições econômicas de v i da, sem ana l i sa r as conseqüênc ias cu l t u ra i s . Mas, a ques tão é quando essas a t i v idades se to rnam a ún ica f on te de renda f ami l ia r . Há uma perda de conhec imentos e t écn icas , bem com o de fo rm as de

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i n te ração com o meio ambien te, mesm o que ex is ta um a gama de conhec imentos re l a t i vos ao tu r i sm o e aos serv i ços .

Esses conhec imen tos sobre serv i ços , j á mu i to d i f und idos na u rban idade, se con t ras tam com o conhec im ento ca i çara t rad i c ional , que envo lve um “know how ” mui to espec ia l i zado sobre os c i c l os e seres do meio em que v i vem. Cada ca içara t rad i c ional conhece cen tenas de espéc ies a rbó reas daque la m ata especí f i ca, sua l oca l i zação, seus usos, os an imais , seus c i c l os reprodut i vos , t r i l has , e rvas med ic i na i s , ent re t an tos ou t ros conhec imentos que podem ser cons iderados ra ros e a inda não ca ta l ogados pe la soc iedade l e t rada . Ex i s te a l i s t a nac iona l de an imais em ext i nção , dever i a haver t ambém a l i s t a nac iona l dos conhec imentos em ext i nção , i nc lus i ve conhec imen tos sobre an imais em ext i nção . Se es ta houvesse , com cer teza os ca iça ras se r i am um dos que es ta r i am em maior r i sco , dado o g rau de espec ia l i zação de seus conhec imentos .

A cu l t u ra es tá sempre em t rans fo rmação, por i s so , que essas novas a t iv i dades devem ser i ncorporadas às p rát i cas d i á r i as . Ent re tanto , os ca i çaras devem d ispo r de fe r ramentas que os t o rnem capazes de se l ec ionar as t rans fo rmações que decor rem da in te ração de sua cu l t u ra e da soc i edade de consum o. O que se vê quando esse con tato não é p l ane jado , são resu l t ados de um a i n te ração descon t ro l ada , que geram a descarac te r i zação cu l tu ra l , a po lu i ção e a f a l t a de saúde. Os ó rgãos com peten tes , com o o IEF, responsável pe l a á rea , t em em suas d i re t r i zes f o rm adoras , o pape l de gerar cursos e pesqu isas que capac i t em esses moradores para essa i n te ração. Não é o que acontece até o m omento.

Esse é um dos temas pr i nc i pa i s que D IEGUES d iscute, como as a t i v i dades ru ra i s são c l ass i f i cadas como per i gosas e as a t i v idades u rbanas com o o tu r i smo são f avorec i das a t ravés da t rans fo rm ação de espaços de p rodução co le t i va em espaços rec rea t i vos para as l evas do tu r i smo urbano, a t ravés de expropr i ações governamenta is .

Essas a l t e rações da sus ten tab i l i dade comun i tá r ia geram uma dura dependênc ia dos p rodu tos e f l uxos f i nance i ros da u rban idade . Mesm o as p ropos tas mais con tem porâneas como o tu r i sm o consc ien te e o ecotu r i smo, possuem em s i m ecan ismos que permi tem apenas um a melhor conservação dos espaços. Reduz indo o l i xo e os danos do tu r i sm o preda tó r i o , comprom ete as p rá t i cas comun i tá r i as e a l te ra a p rodução e o con junto s imból i co e i den t i tá r i o co l e t i vo . Nesses m odelos a inda há um a dependênc ia econômica e cu l t u ra l , j á que a p reocupação é com a p reservação do me io na tu ra l e não com a cu l tu ra que ne le hab i t a .

Os aspectos da u rban idade gera lmente são desar t i cu l adores da v i da comun i tá r i a . O tu r i smo, en t re tanto,

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apesar de causar um prof undo im pac to negat i vo na cu l t u ra e no m eio am bien te também é capaz de c r i a r f o rm as de i n te ração en t re agentes u rbanos e l oca is que geram p rocessos de m ão-dup la como a fo rmação de uma Ong. Esta ong que f o i f o rmada por t u r i s tas que se l i ga ram aos ca iça ras po r l aços de am izade fo i o p r i nc i pa l f a to r que recen tem ente c r i ou uma poss ib i l i dade de res i s tênc i a e de permanênc ia de moradores em duas pra i as da pen ínsu la a fe tadas pe la g r i l agem.

O tu r i smo ecológ i co sus ten táve l aparece recen temente com o uma nova poss ib i l i dade de i n teração. Levando em conta o concei t o de que o t u r i s ta se to rna um v i s i t ante quando encont ra uma com unidade consc ien te , i nves te na educação ambien ta l de comun idades e v i s i t an tes . I nc lu i a perspec t i va h i s tór i ca e va l o r i za o conhec imento t rad ic i onal . Já começam a se pe rceber um mov imento de cursos, o f i c i nas e encont ros par t i c ipa t i vos , em que comun idades qu i l ombolas , ca i çaras e i ndígenas p rom ovem sobre suas cu l t u ras e que cada vez ma i s encont ram i n te ressados na u rban idade.

O f i c i n a d e A g r o e c o l o g i a e R a í z e s T r a d i c i o n a i s d a P r a i a G r a n d e d a C a ja í b a 46

A Res is tênc ia Pol í t i ca “ t í t u l o s f r a u d u le n t o s s o b r e t e r r a s p ú b l i c a s – m u i t os d os q u a i s

a t r o p e l a n d o d i r e i t os d e o c u p a n t es l e g í t i m os – f o r a m a m p l a m e n t e l e g a l i z a d o s j á q u e o s g ov e r n o s e s t a d ua i s s e m os t r av a m e m g r a n d e p a r t e i m p o t e n t es p a r a e v i t a r a a p r o p r i aç ã o p ú b l i c a . A a r t e d a a p r o p r i a ç ão p r i v a d a – g r i l a g e m, q u e v em d e g r i l o , qu e s a l t a s o b r e a t e r r a d e ou t r os – t o r n o u - s e u m a p r o f i s s ã o . R o u b o d e p a p e l t i m b r a d o o f i c i a l , ( . . . ) s u b t e r f ú g i os q u e o s f un c i o n á r i os p ú b l i c os qu as e s e m pr e t o l e r av a m o u d os

46 Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da Cajaíba. Agosto de 2006.

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q u a i s p a r t i c i p av a m . M o n t e i r o L o b a t o , ( . . . ) c i t a o c as o d e u m g r i l e i r o q ue “ p e r s u a d i u ” u m t a b e l i ã o a c o p i a r u m t i t u l o e m s e u c a r t ó r i o c o m o s e nd o s o b r e 2 2 e m v e z de 2 l é g u as d e t e r r a e f e z c o m q u e a c ó p i a f o s s e a u t e n t i c a da p o r u m f u n c i o n á r i o j u d i c i a l , q u e n ã o s e d e u ao t r a b a l h o d e c o n f r o n t a - l a c o m a o r i g i n a l . O g r i l e i r o m a n d o u e n t ã o u m a m i g o a d v o g a d o t o m a r e m p r e s t a d o o o r i g i n a l e “ p e r d e - l o ” . Q u a n d o o a d v o ga d o f o i d e v i d a me n t e p r es o p o r es s a o f e ns a , o g r i l e i r o p r e s t i m o s a m e n t e a p r es e n t o u - s e c o m a c ó p i a a u t e n t i c a d a e m a n d o u q u e o l i b e r t a s s e m . ”

W ar re n D e a n – A F e r r o e a F o g o . 47

Os processos de g r i l agem na reg ião f o ram a pa r t i r da década de 70 , impu ls i onados pe lo t u r i smo , e na década 90 , em conseqüênc ia da expansão do tu r i smo na Baía da I l ha Grande. O ma io r agente da g r i l agem f o i G ib ra i l Tannus , que ag iu na Penínsu la em áreas oceân icas e da ba ía como Ponta Negra, Mar t im de Sá, Sono , Pra i a Grande e Saco do Mam amguá. Compra de esc r i t u ras e a l guns te r renos, f a l s i f i cação de con t ra tos , i nc l us i ve de comodato , c r i ação agropecuár ia , u t i l i zação da m ata para carvão , p ressão ps i co lóg i ca , v i o l ênc ia f í s i ca , capangas a rm ados e f a l ta to ta l de am paro governamenta l às f amí l i as a t i ng idas . O pr i nc ipa l f a to r que perm i t i u a permanênc ia ou m igração dos g rupos fo i a a r t i cu l ação en t re os p rópr i os moradores loca i s , e recen temente a c r i ação da ONG.

Apesar de todas as d i f i cu l dades , houve v i t ó r ias ca i çaras no p rocesso de res is tênc ia . Na P ra i a do Sono , ocor reu ta l vez a m ai s impor tan te. Os cont ra tos de comodato que f o ram consegu idos a t ravés do go lpe do pas to r em benef íc i o do g r i l e i ro f o ram cobrados após o p razo de 10 anos , i nc lus i ve com a par t i c ipação da f o rça po l i c i a l para t i ense. Mui tos casos de v i o l ênc i a f ís i ca e m ora l são l embrados , mas que ao f i na l l evaram a um i n teressante desf echo, l em brado por t oda pen ínsu la como um a prova da impor tânc ia da un ião ca i çara.

Segundo Seu Anton io do Sono, impor tan te l í der comuni tá r io , após o g r i l e i ro t e r dado a o rdem de des t ru i r a roça de um morador , com binaram com as m ulheres e c r i anças, que apenas es tes ser i am os agentes da l i ção, os homens f i ca r iam observando caso a l go saísse e rrado .

“ E l e us ou d e m e n t i r a , d e f a l s i d a d e e de p o i s e l e m a n d o u m e t e r o t r a t o r n a r o ç a d e m a n d i o c a d e u m h o m e m q u e t i n h a a í , ( . . . ) a í o p ov o s e a l v o r oç a r a m e a c h ou q u e a q u i l o j á e r a d e s a f o r o . A í b a t e r a m n e le , f o i e m b o r a e n u nc a m a i s v o l t o u a qu i . ” 48

Ho je , os m oradores da P ra i a do Sono, são os que possuem maior t ranqü i l i dade quanto ao uso da te r ra . Podem

47 DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.189

48 Pesquisa de campo nº2. Praia do Sono / setembro de 2005.

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vo l t a r a m orar na p ra i a caso tenham i do v i ver na c idade, podem p lanta r , podem cons t ru i r , m as possuem um pacto i n te rno de nunca venderem suas te r ras para pessoas de “ f o ra ” .

A i nda é con tado pe los an t i gos , com o o gove rnador na época , Leone l Br i zo l a , i ns t i t u i u a Reserva Eco lóg ica , que segundo seu Antôn i o , def i n iu a pen ínsu la como uma área p ro teg ida para os ca iça ras v i verem.

A Ponta Negra escapou da g r i l agem, não to ta lm ente , po i s mesmo sendo uma pra i a bem povoada, os descendentes do g r i l e i ro a i nda rondam a p ra i a , d i zendo que vão expu lsar a t odos, po i s a t e r ra não é dos ca iça ras . A l guns moradores venderam te r renos pa ra o gr i l e i ro , e f o i com base em um desses reg i s t ros de venda que o g r i l e i ro aumentou suas posses . E ra o te r reno da pon t i nha da p ra i a , no can to d i re i t o , pe r tenc i a a um homem ve lho , e ao com prar esse te r reno , o g r i l e i ro t rans f o rm ou a esc r i t u ra com o se t i vesse comprado a p ra i a t oda a té a pon ta que o ve l ho l he hav ia vend ido. I sso con ta Seu Nelson , que fo i aver i guar os p rocessos no Fórum de Para t y, quando era um dos l í deres da res is tênc i a dos m oradores .

Um dos casos re la tados na Ponta Negra f o i o do pa i do Dedé , que es tava const ru i ndo uma casa para a f amí l i a no a l to da Cachoei ra das Pedras , d i v i sa da Ponta Negra com a tua l condomín io de La ran je i ras . Após abr i r um roçado, a po l íc i a de Para t y, ve i o f a rdada e o l evou p reso para a cade ia de Para t y, sob a a l egação de i nvasão de p rop r i edade par t i cu la r . O homem fo i su r rado v i o l en tam ente, a té que f o i so l t o t rês d i as depo is . Mu i to a fe tado, p r i nc i pa lmente pe las pancadas da cabeça, não consegu iu se recuperar sendo l evado para o hosp íc i o da i l ha da G igó ia , onde mor reu .

Seus m ui tos f i lhos f o ram c r i ados com a a j uda da comunidade, j á que a v i úva não dava conta de a l im entar a t odos. Essa h i s tó r i a f o i amp lamen te re la tada , na Ponta Negra e no Sono . Na Ponta Negra também, houve o caso de um ca içara bêbado que f o i t i r a r sat i s fações com o capanga do G ib ra i l , porque os bú f a los t i nham des t ru ído a p l an tação de seu p r im o. Este ca iça ra f o i es faqueado e m or reu na hora , es te ep isód io t am bém fo i l embrado pe los moradores .

Desde o i n íc i o dos p rocessos de g r i l agem até o a tual m omento , as popu lações ca i çaras v i ve ram um f o r te êxodo . Se ho j e vem os A l t ami ros , Manecos, Mar i as e Di cas , na verdade, es tes f o ram os ú l t im os de um g rupo de cen tenas que hab i t avam as p ra i as .

Nas p ra i as dos Ant igos e An t igu i nhos, onde mui tos dos ca iça ras ant igos de ho je , nasceram , não ex is te v i v ´a lma. A a l egação é de que have r i a mu i to l i xo e camping i r regu l a r , mas quanto à von tade de F ranc ino e Jango de re to rnar a p ra i a onde

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nasceram, m ais uma vez a l e i que ga ran te aos ca i çaras o d i re i to de hab i t a r os l ugares de nascença não parece ser respei t ada.

O caso da p ra i a do Mar t im de Sá fo i f undamen ta l para a t rans fo rm ação dos p rocessos de g r i l agem cont ra ca i çaras . Na década de 60 , a f amí l i a m oradora do l oca l , S . Roque Fermiano, D . Capi tu l i na dos Remédios , e os f i l hos , en t re e l es o a tua l m orador S .Maneco , e ram os remanescentes de uma an t i ga ocupação que con tava com out ras f amí l i as . Mesm o ocupando a p ra i a desde a época do b i savô , e sem pre ens inando a g raf ia co r re ta do nome da p ra i a : Mart im de Sá , nome do nob re que na época da co l ôn ia descobr i u a t r i l ha gua i aná e segundo a l enda l oca l es ta se r i a sua p ra i a p ref e r i da, a f amí l i a de Seu Maneco f o i expu lsa por um homem que conheceu a p ra i a quando caçava . Encantado , o m i l i t a r perguntou se a p ra i a t i nha dono . Os m oradores responderam que nunca t i nham v is to , m as que poder i a haver . O homem, que se cham ava Anton io Pacheco, j á vo l t ou da p róx ima vez com a cer t i dão de posse, com prada de um a v i úva possuidora de an t i go le i l ão. Mesmo nessa época , a f am í l i a j á possu ía o d i re i t o da posse da te r ra , já que como m oradora há gerações , j á hav i a adqu i r i do o d i re i t o po r uso capião , a t ravés do uso con t i nuo de habi t ação ún ica por 10 anos .

Mas como não conhec iam seus d i re i t os , com o a maio r i a da popu lação b ras i l e i ra , ao ver os docum entos esc r i t os , se res i gnaram a serv i r de empregados na sua p rópr ia t e r ra , agora um a fazenda de gado. Os bú fa l os e bo is en t ra ram nas p l antações da várzea , t rans f orm ando a p ra i a em um cenár i o de des t ru i ção . Após cer to per íodo , dev i do a desentend im entos , a f am í l i a se re t i rou pa ra o Ca i ruçu das Pedras , onde S .Maneco conheceu D.Lorença e se casaram. De l á , S .Maneco fo i hab i t a r o Saco das Anchovas. As décadas passa ram e os em preendim entos de ca rvão e c r i ação de gado e búf a los do g r i l e i ro f racassaram. Mor tes , b r i gas e f a l t a de sa lá r i o f i ze ram com que os f unc ionár i os abandonassem o l oca l . Depo is de vaz i a , um a aura de m ald ição reca iu sobre a p ra i a , i nc lus i ve quando ou t ras pessoas ten ta ram hab i t a r a p ra i a , sem sucesso .

Na década de 90 , S .Maneco reso l veu re to rnar a morar em Mar t im de Sá. Conta que a mãe sempre fa l ava da pra i a , e a von tade de vo l t a r e ra m ui ta . Fo i reo rgan i zando o espaço m ui to deg radado pe la ocupação do g r i l e i ro e re f l o res tando o en to rno . Reconst ru i u a casa de pau-a-p i que sob a g rande mangue i ra que p l antou na j uventude , no l oca l da an t i ga casa dos pa is . A r rum ou o rancho da p ra i a e l impou as t r i l has . Nesse per íodo f o ram chegando os p r imei ros t u r i s tas , e S .Maneco ia a r rumando ranchinhos e conversando com os v i s i t an tes . A té que em 1999, um a repo r tagem do JB de domingo, popula r i zou a p ra ia antes p ra t i camente desconhec ida . Car i ocas, n i te ro i enses e paul i s tas chegaram às dezenas , montando suas bar racas e coz i nhando

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por t oda par te , ca tando l enha verde , j ogando gar ra f as de beb idas na a re i a e gu imbas de c i ga r ro .

Com a chegada dos tu r i s tas , a P ra i a do Mar t im de Sá fo i sendo va lo r i zada e em 2000, f o i aber to no Fórum de Para t y , um processo de re i n tegração de posse a ped ido dos descendentes do g r i l e i ro , co l ocando S .Maneco como réu . A d i f i cu ldade do acesso fez com que o o f i c i a l de j us t i ça demorasse em ent regar o m andato de re i n tegração de posse . Seu Maneco conta que pouco an tes d i sso sonhou com mui tos go l f i nhos encalhados na p ra i a do Mar t im de Sá, o que es tava l he a l e r tando sobre um pe r i go p róx imo. Após tomar conhec imento do p rocesso , Seu Maneco reso l veu pe rm anecer na te r ra , recebendo duas p ropos tas de de f esa . Uma de um advogado de Ubatuba, espec ia l i zado em causas de g r i l agem cont ra ca içaras . Es te , que f o i apresentado pe l a p rópr i a f i l ha de Maneco, l he p rom eteu v i t ó r ia cer ta , mas cobrava como pagamento um te r reno na p ra i a .

Vendo a s i t uação de per i go que Seu Maneco e sua famí l i a es tavam cor rendo, um grupo de f reqüentadores da p ra i a que se conhece ram l á reso l ve ram se j un tar e pensar em um a fo rm a de l u ta r pe l a pe rm anênc ia do am igo no l ugar . O grupo que con tava com a lguns j ovens advogados , p ropôs de f endê- l o sem cobrarem honorár i os . A j us t i f i ca t i va do g rupo é a de que pode r f azer a l go con t ra t amanha i n j us t i ça, em m eio a t antas out ras que nos ce rcam, e ra o ma io r pagam ento que poder i am te r , a l ém da ce r teza de que Seu Maneco con t i nuando em Mar t im de Sá, o m eio ambiente ser i a manejado de fo rm a a o rgani zar a ocupação tu r í s t i ca e i n tegra- l a ao un i ve rso ca içara .

A j us t i f i ca t i va ace i t a , a i nda res tava a ques tão de que os j ovens advogados não possuíam nenhuma exper i ênc i a na á rea de d i spu tas t er r i t o r i a i s . Mas, Seu Maneco também teve out ro sonho, que o f ez op ta r pe l os j ovens advogados . Ass im , o g rupo se o rgan i zou em f orma de ONG, a qua l chamaram Verde C idadan ia, que nasc ia dessa f o rma d i re tamente l i gada a necess idade de de fender na j us t i ça o am igo Seu Maneco, da P ra i a do Mar t im de Sá. Esse processo, que a i nda cor re no Fórum de Parat y , t em duas questões cen t ra i s , uma sobre o comoda to, que te r i a s i do l evado à p ra i a pe lo ve l ho Gib ra i l , pouco an tes de mor re r , doente , em uma pra i a de d i f í c i l acesso e a f o r te questão da cont rové rs i a das tes tem unhas do g r i l e i ro .

Dessa fo rm a, fo i dada a posse tem porár i a da ter ra a f am í l i a dos Rem éd ios . Hoje ou t ras casas f oram const ru ídas para os f i l hos de Maneco e a mu lher D.Lo rença , para que a p ra i a se ja herdada pe los descendentes e t am bém porque é mai s seguro para os pa i s que j á es tão envelhecendo . Como m ui tas f amí l i as ca i çaras , o casal j á ve l ho, possuem duas casas, um a que a m ulher coz i nha e passa o d i a e ou t ra cen t ra l , em que va i dormi r com o m ar i do.

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Na P ra i a Grande, a s i t uação f o i s im i l a r . O g rande êxodo popu lac i ona l f o i p recedido de anos de res is tênc ia . Os m oradores con tam que mui tos res is t i ram o máx imo que pude ram, m as dev ido as p ressões , a o fe r ta de d i nhei ro , a des t ru i ção de casas, m ui tos não agüentaram e par t i ram.

Houve casos de m oradores que qu iseram vo l t a r , mas fo ram impedidos pe los capangas dos g r i l e i ros . A pa isagem da P ra i a Grande pa rece ao de um bom bardeio . Mu i tas casas des t ru ídas, dem ol i das , com os t i j o los espa lhados , mensagens de am eaça, roças em meio ao mataga l . O cenár i o é de i n t im idação e demons t ração de poder . Ho je , as t rês ú l t imas f amí l i as res tan tes parecem focos i so l ados de um povo que ou t ro ra hab i t ou a reg ião .

Os capangas do g r i l e i ro v i g i am o l oca l e os an t i gos f reqüentadores que cos tumavam acampar nas mangue i ras de sua roça de mand ioca , f oram agred idos . Um de les t om ou um soco , e qu i s p res ta r queixa na de legac ia de Parat y , mas qual não f o i a surpresa do g rupo , quando ao en t ra r na sa l a do de l egado, av i s ta ram o agressor ao l ado do de legado. O agressor e ra ex -po l i c i a l da de legac ia de Para t y, e depo i s de horas esperando e quase perdendo o u l t imo ôn ibus para o R io, os a tacados des is t i ram da queixa e se f o ram.

Há uma f a l t a de l i be rdade na rese rva . Um c l ima de te r ror ps i co l óg ico é uma cons tan te em mui tas comunidades . Na Pra i a Grande, os capangas a rm ados v i o lam as le i s de l i v re c i rcu l ação de c i dadãos e são uma am eaça cons tan te de agressões e vanda l i smo. Os morado res tem medo de andar s oz i nhos nas t r i l has e há asséd io nas re l ações de poder . Um dos casos ma is g raves é o de D . D i ca , que com sua f i l ha moça, t em que ace i t ar a p resença do capanga, que ger a lm ente paga a l tas doses de beb idas a l coó l i cas para os moradores , i nc lus i ve para a f i l ha de D .Di ca. A con ta que som a centenas de rea i s é paga pe lo g r i l e i ro , f ren te à tão im por tante consumidor , as vezes o capanga dorm e bêbado na b i rosca.

Esse p rocesso de g r i l agem promoveu um a degradação das re l ações pessoai s dev ido à l onga duração do conf l i to . D i sputas e desentendimentos comuns ent re v i z i nhos , se t rans f o rmaram em i n t r i gas po l í t i cas que af e tam a re l ação de pe rm anênc ia no l oca l , com suspei t as co t id i anas de aco rdos sec retos en t re ce r tos m oradores e os g r i l e i ros . Mas esse f a to r de un ião ou desun ião do g rupo fo i f undam enta l para o resu l t ado do p rocesso de Ponta Negra e Sono e negat i vo decor rente da desun ião dos morado res da P ra ia Grande e do Mam anguá.

Um dos exemplos da v i o l ênc i a f í s ica de que são a lvos os ca i çaras , é o de D.D ica , que vo l t ando pa ra casa na encos ta, j á que sua casa p róx im a à p ra i a há mui to hav ia s i do des t ru ída . Ao c ruzar o r i o a pé , j á que o g r i l e i ro de r rubou a an t i ga pon te,

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encont rou um capanga. Es te es tava agachado bebendo água e ao ve r a f ranz i na senhora de 56 anos vo l t ando com seu f acão, se assustou . Mandou que D.D ica j ogasse o f acão na água, ao que a mu lhe r a rgum entou que o f acão e ra seu i ns t rum ento de t rabalho . O homem puxou a a rma e apon tou para a senhora, d i zendo que se não j ogasse o f acão , a t i ra r i a , e repe t i u a sen tença . D.D ica ass im fez , por não te r ou t ra a l t e rna t i va e ho je co r re na Câm ara de Parat y , um processo cont ra o capanga .

Em O Mi to Moderno da Natureza In tocada, se encon t ra um t recho que resume bem o caso da Jua t i nga:

“ N a m a i o r i a d o s c a s os , a s c ha m a d a s p o pu l a ç õ e s t r a d i c i o n a i s e n c o n t r a m - s e i s o l a da s , v i v e n d o e m e c o s s i s t e m as t i d os a t é a g o r a c o m o m a r g i n a i s ( m an g u es , r es t i n g as , f l o r e s t a s t r o p i c a i s ) s ã o a n a l f a b e t a s e t êm p o u c o p o d e r p o l í t i c o , a l é m d e n ã o t e r e m t í t u l o s d e p r o p r i e da de d e t e r r a . ” 49

Um dos marcos h i s tór i cos dessa d i spu ta ent re ca i çaras e g r i l e i ros f o i a des t ru i ção em se tembro de 2005, do rancho onde D .Mar i a vend ia seus pas té i s no verão , e par te dos ranchos de D .Di ca e S.A l tam i ro . A j us t i f i ca t i va e ra de p reservação am bienta l , e f o i consumada pe lo IEF e IBAMA, com responsávei s do R io , i nc lus i ve . O ato a rb i t rá r i o , porém, não consegu iu m asca ra r sua mot i vação po l í t i ca , sendo es ta pe rcebida pe lo m in is té r i o públ i co na condenação dos a tos do IEF. Fo i p ro i b i da sua ação con t ra ca i çaras e def in i da a punição de i nquér i to admin is t ra t i vo para os responsávei s , agora cons ide rados réus .

“ A l e g a o M P F q u e , n o d i a 2 5 e 2 6 d e a g o s t o d e 2 0 0 5 , o I E F , r e p r es e n t a d o p e lo s o u t r o s r é u s , d em o l i u t r ê s r a n c h os c a i ç a r a s , e m a f r o n t a a d i v e r s os p r i n c í p i o s c o n s t i t u c i on a i s , d e n t r e e l e s , o c on t r a d i t ó r i o e a a m p l a d e f e s a . ( . . . )

P o r f i m , r e q u e r a c o nd e n a ç ã o d o s s e r v i d o r es d o I E F p o r i m p r o b i d a d e a d m i n i s t r a t i v a , ha ja v i s t a os i n d í c i os de d es v i o d e p o d e r , q u e i n d i c a m qu e a o p e r a ç ã o t e v e p o r o b je t i v o f o m e n t a r i n t e r e s s e s p e s s o a i s e n ã o o f i m c o l i m a do p e l a s l e i s d e p r o t eç ão a m b i e n t a l ” 50

É impor tante c i t a r também o caso de D.B id i ca, que era v i ce-p res i den te da assoc iação de moradores . A re in tegração de posse em benef íc i o do g r i l e i ro f o i emi t i da nas vésperas do na ta l an te r i o r , e só fo i impugnada porque a cer t i dão de posse apresentada não cons tava no car tó r i o emissor . Fa to depo is ques t i onado em ju í zo , pe l a a l egação de que hav ia do is ca r tó r i os em Paraty sendo f undidos pos te r io rmente , e seus documentos em bara lhados. Mas a cer t i dão respec t i va nunca f o i apresentada, f a to ho je esquec ido , j á que D.B id i ca , cansada de tan ta p ressão, vendeu suas posses, d i zem na p ra i a , que por 15 m i l rea i s e f o i

49 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.43 50 M e d i d a l i m i n a r c o n c e d i d a n a C au t e l a r I no m i n a d a n ° 2 0 0 5 . 5 11 1 . 0 0 0 4 50 -0 à s f l s . 1 4 / 1 6 , . ”

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com a f amí l i a pa ra um bar raco na fave la da I l ha das Cobras em Para ty. Sua casa f o i dem ol ida ass im como a dos ou t ros m oradores , i nc l us i ve a i g re j a p rotes tan te, sobrando apenas a esco la , po r ser um bem púb l i co.

O processo m ais c r í t i co no m omen to , é o da f amí l i a de Seu Al tami ro e Dona Jand i ra . Morado res do mor ro te do can to d i re i t o da P ra i a Grande, e l es es tão sendo processados por descum pr i r o con t ra to de comodato. En t re tan to, o com odato es tá ass i nado pe lo casa l , sendo que am bos são ana l f abe tos na p rópr i a car te i ra de i den t i dade. O nome de D .Jand i ra es tá esc r i t o e r rado e o acusado r é reconhec idam ente um gr i l e i ro , a f amí l i a Tannus , que cons ta i nc lus i ve no A t l as f undiá r i o do Es tado do R io de Jane i ro e sabe-se que o car tó r i o de Parat y é um dos ma is f raudu len tos do Bras i l .

S . A l t am i ro a l i m en tand o o f i l ho te de p i ca - pa u . Apesar de tudo i sso, a j u í za a l ega que é uma prá t i ca

m ui to comum dos ca i çaras , recebe rem o d i nhe i ro , ass i nar comoda tos e depo is d i zer que são ana l f abe tos . Ta l vez por causa dessa c rença, que a mesma tenha dado re i n tegração de posse im ediata para o g r i l e i ro no i n íc i o do p rocesso . Mas os advogados da ONG, agora também t raba lhando no caso, consegu i ram modi f i ca r a s i t uação. Recentem ente a advogada pr i nc i pa l do caso e esposa de um dos f i l hos de Seu A l t am i ro f o i acusada pe lo g r i l e i ro , de t rá f i co de d rogas na P ra ia Grande. Apesar do absurdo de uma advogada economicamente es táve l se r t ra f i can te em um a pra i a , onde hab i t am t rês f amí l i as , sendo duas de las de idosos , a acusação fo i anexada ao p rocesso. Tendo i nc l us i ve o g r i l e i ro ameaçado en t ra r com um pedido de cassação do d i re i t o de exe rcer sua f unção de advogada.

Com essa acusação e a recen te ameaça de m or te de um dos m ais impor tan tes a l i ados da com unidade, um ve le j ador

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es t rangei ro que inc l us i ve f o i quem ens inou a Seu A l t am i ro o m étodo da com pos tagem, a com unidade se vê em grande r i sco. I nvest i dores i n te rnac iona is v i s i tam a p ra i a desembarcando de l uxuosos i a tes e he l i cóp te ros f azem vôos rasan tes , com o pôde se r comprovado em duas v i agens de campo.

A té mesmo em com unidades im obi l i a r i amente menos cobi çadas ex is tem conf l i tos . No mesmo d ia em que os f unc i onár i os do IEF, sa ídos da ação nos ranchos da P ra i a Grande, ancoraram em um a i l ha e depo i s se d i r i g i ram a P ra ia dos Calheus. Lá des t ru í ram o madei rame do te l hado e as paredes p ron tas a té a m etade da casa da famí l i a do Careca, da Ponta da Jua t i nga . Esta f amí l i a , de mui t í s s im os f i l hos , hav ia cons t ru ído a casa para que no verão , as c r i anças pudessem te r acesso à p ra i a , e t ambém para a pescar i a . A pesca tam bém es tá sendo pre j ud icada na i so l ada com unidade da Pon ta Jua t inga . Esta comun idade ap resentou o m aio r g rau de presença dos háb i t os ca içaras t rad i c iona i s , ass im como a Rom buda e o Ca i ruçu das Pedras . A s impl i c i dade de seus m oradores e sua i n te rdependênc ia do ecoss i s tem a a inda é o p r i nc i pa l esquema do g rupo . Lá perm anece ram as redes de a j uda mútua , as roças co l e t i vas e um s is tem a de manejo da pesca .

Po rém a té l á na i so l ada Juat i nga , um dos morado res an t i gos e seus f i l hos , f echa ram com uma casa a par te do rochedo por onde sub iam as canoas , f az i am redes e se pescava de l i nha, p r i nc i pa lm ente as mu lheres e as c r i anças . Percebe -se que a té en t re os ca i çaras , os i dea is de p rop r i edade pr i vada vêm recentemente t rans f o rmando áreas an tes comun i tá r i as , em desentend imen tos pe la posse da te r ra . Essa tam bém fo i uma das causas para que a f amí l i a do Careca tenha cons t ru ído um a casa no te r reno do pa i , o ve l ho fazedor de canoas do Ca lheus. Recentemente , houve um assass ina to na Jua t inga , por causa de ou t ra cons t rução que ag red iu o espaço co le t i vo . Um rapaz matou o p rópr i o avô , po rque esse fo i veemen te e se revo l tou com a cons t rução de uma casa no cam po de f u tebol da comun idade.

Essa desapropr i ação dos espaços reduz iu o acesso aos l ugares de uso co le t i vo, c r i ando uma sucessão de te r renos par t i cu l ares . Mesmo te r ras que an tes e ram cons ideradas como sem dono, com o as ser ras , as pedras da coste i ra , ou p i x i r i cas , que são a t racadou ros de barcos, fo ram sendo vend idas , mui tas baseadas em cont ra tos f raudulentos . O processo de documentos fa l s i f i cados que g rassou no pa ís desde sua f o rmação, nes ta reg ião ex is t i u e con t i nua a ex i s t i r . Os f o ras te i ros , gera lmente de São Paulo e R io após negoc ia rem com descenden tes de an t i gos donos do século XIX , ou dos que hav iam negoc iado com es tes , f raudavam cont ra tos anexando aos l im i tes reg i s t rados , as á reas comuna is .

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Percebe-se que os d i re i t os dos povos t rad i c i ona is con t i nuam presos aos papé is em que f o ram esc r i t os , e que t rabalhos com o os de educação ambienta l são v i s tos pe los ó rgãos ambienta i s com o per i gosos. Não há a pe rcepção de que p reservar a m emór i a co l e t i va t ambém f az par te do p rocesso de conservação ambien ta l da reserva . Pelo con t rár i o , a mem ór ia l oca l pode ser um empec i l ho para as mi l i onár i as i ndeni zações que poss ive lmente esses g r i l e i ros i rão receber em caso da á rea se to rnar um parque.

Na verdade, G ib ra i l Tannus aparece em um documento púb l i co , o A t l as Fund iá r i o do Estado do R io de Jane i ro , com o sendo um fam oso gr i l e i ro . Na b i b l i og ra f i a sobre o tema ca içara, seu nome tam bém é m ui to conhec ido, po i s fo i e l e que vendeu o t e r reno da T r i ndade para a I ncorpo radora B rascan e o t e r reno onde ho je f i ca o Condomín io de Laran je i ras . O processo de expu lsão dos ca iça ras da T r i ndade f o i um marco do mov imento de expu lsão dos ca iça ras e t ambém de sua res is tênc ia , a l i ados à g rupos u rbanos num mov imento que f i cou conhec ido como t r i ndadei ros .

A l u ta pe la posse da te r ra , com o con ta bem o l i v ro “Genoc íd i o Caiçara” , t eve d i versos embates , man i fes tações púb l i cas em Para ty , o f i lme Vento Cont ra , e do l ado dos g r i l e i ros , f o ram cons t ru ídos por tões que l im i tavam o acesso, um a enorme devas tação de um mangueza l pa ra a cons t rução de um g igan tesco empreendim ento tu r í s t i co , der rubada de casas, bú f a los , exp lo ração de minér i os e carvão. Houve casos de ca i çaras que t i ve ram que morar com suas f amí l i as em cavernas, como f o tos an t i gas e re l a tos de an t i gos f reqüentado res a tes tam. Por f im, um acordo en t re g r i l e i ros e ca içaras def i n i u que os ca i çaras f i ca r i am com as posses na be i ra do m ar , mas que todo o enorme te r reno no i n te r io r da p ra ia ser i a da BRASCAN.

Esse mesmo processo f o i e é v i v i do po r mui tos m oradores da Rese rva Ecológ ica da Jua t i nga . Ho je , não apenas a g r i l agem, mas a l eg i s lação am bien ta l im posta a ta i s á reas e o t u r i sm o mal p l anejam ento , é capaz de v i o l entamente descarac te r i za r grupos e p rom over perdas cu l t u ra i s , econômicas e soc ia i s .

Essa d iscussão com cer teza tem ref l exos sob re a po l í t i ca re f e ren te aos g rupos t rad ic i onai s , t an to no m eio o f ic i a l com o no não gove rnamenta l . Dent ro desse m ov im ento de inve rsão das re l ações de t roca e reconhec im ento en t re a u rban idade e a ru ra l i dade, se in i c i ou um nov íss im o m ov im ento: a a l i ança es t ra tég i ca en t re ca i ça ras e u rbanos .

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Conc lusão:

“ ( . . . ) f om os à t e r r a e d e s c o b r i m o - l a t ã o c h e i a d e á r v o r es q u e e r a c o i s a m a r a v i l h os a , n ã o s o m e n t e a g r an d e z a d e l a s , m a s s eu v e r d o r e c h e i r o s u a v e qu e d e l as s a í a e q ue d av a t a n t o c on f o r t o a o o l f a t o q u e g r a nde r ec r e i o t i r a m os d i s t o . E o q u e v i a q u i f o i d e u m a f e í s s i m a ( s u p e r l a t i v o ) c o i s a d e p ás s a r o s d e d i v e r s as f o r m as , e c o r e s , e t a n t os p a p a g a i os q ue e r a de s lu m b r a n t e ; ( . . . ) e o c a n t o d o s pá s s a r os q u e es t av am n a s á r v o r es e r a c o i s a t ã o s u a v e , e d e t a n t a m e l o d i a , qu e n o s a c o n t ec e m u i t as v e z es e s t a r m o s p a r a d os p e l a d o ç u r a d e l es . E a m a t a é d e t a n t a b e l e z a e s u a v i d a d e q u e p e n s á v a m o s e s t a r n o P a r a í s o T e r r e s t r e . ” 51

Con temporaneamente , os moradores ca iça ras

apresentam um a l to g rau de consc iênc ia sob re os p rocessos pe l os quai s passam seu g rupo soc ia l e a reg ião que hab i t am. Os p rocessos são no tados, mas as espec i f i c i dades nem tan to. Essa bar re i ra da l i nguagem, p r i nc i pa lmen te , impede uma sér i e de a rgum entações por pa r te dos nat i vos e des loca para os meios l e t rados o debate das questões que os af e tam.

Há um conjun to de saberes , f ru tos do conhec imento em pí r i co acum ulado a t ravés da o ra l i dade. Esse conhec imento, a t ravés de uma mem ór i a ambienta l , se man i fes ta no conhec imento e tnobo tân ico e f aunís t i co , que i nc l u i a mem ór i a dos c r imes ambien ta i s . A lém d i sso , a va r i edade genét i ca de suas roças se mos t ra com o um poo l de espéc ies ra ras , heranças poss íve is de um roçado i nd ígena . Mesmo estando em ex t inção as roças que a i nda ex is tem, a l gumas de las , possuem a té qua t ro va r i edades de um mesmo gênero . Fe i j ões de mu i tas co res , m amões da mata a t l ân t i ca de t rês raças , com o chamam, d i versos gêneros de m andioca e por a í va i .

A p r im ei ra h i pó tese sobre a descendênc ia i ndígena ca i çara se comprovou na cu l t u ra a t ravés da aná l i se das p rá t i cas co t i d i anas e dos re l a tos sobre l endas e h i s tó r i as l oca i s . B i o l og icam ente, mesm o que a Ant ropolog ia B io l óg ica se j a ho je p ra t i camente uma d i sc i p l i na renegada, um es tudo v i sua l apon tou d i versos ca içaras que são c l a ramente descenden tes d i re tos de i nd ígenas , pe l a f i s i onomia , t i po f í s i co e por i dosos que m esmo após os 70 anos de i dade conservam cabelos negros . Mui tos ape l i dos de j ovens são demons t radores dessa o r i gem, como fo i apontado pe los p rópr i os ca içaras . Fo i perceb i do que o e tnoconhec imento t rad ic i onal ca içara j á es tá sendo u t i l i zado em

51 VESPÚCIO, Américo. 1505. trad. Luís Renato Martins. Novo Mundo – cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre, L&PM Editores, 1984. contracapa

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a lgumas comunidades para a recompos ição ambi enta l das á reas deg radadas , com o p l an t i o de á rvores f l o res ta i s e f ru t í f e ras .

A conservação da na tu reza , p roposta que recen temente en t rou em con tato com a cu l t u ra ca i çara , j á mos t ra ho j e conseqüênc ias po l í t i cas , p r i nc i pa lmente na l u ta pe la a f i rmação do d i re i t o ao te r r i t ó r i o . Mesmo que em mui tas á reas i so l adas habi t adas po r comunidades ca içaras , ex i s tam ex tensas á reas degradadas , p r inc i pa lm ente pe la agr i cu l t u ra e f e i t i o de canoas , o impacto dos fa to res adv indos da u rban idade são capazes de degr adar as re l ações que os ca i ça ras m ant i nham com o am biente , e conseqüentem ente o m esm o.

A cu l tu ra ca i çara t rad ic i onal não é h i s to r i camente de f ensora da na tu reza nem possu i p rá t i cas que por s i só p reservam os ecoss is tem as. Tem, ent re tanto , s i s tem as de equ i l í b r i o com o m eio, p r i nc i pa lmente por possui r uma economia de subs is tênc ia que depende d i re tamente da qua l i dade dos ecoss i s temas do en to rno . Ass im , m esm o que a i dent i dade cu l t u ra l ca i çara perm aneça num contex to p rodu t i vo consumis ta , a cu l t u ra t rad ic i ona l possui um con jun to de conhec imentos que se r i a m ais capaz de f azer essa adaptação de um un iverso rura l para um con tex to de g l obal i zação .

Os f a to res da u rban idade i n t roduz i ram novas p rát i cas que comparadas com as t rad ic i ona is degradaram m ui to m ais a na tu reza . A const rução de casas de ve rane io , o l i xo der i vado dos p rodu tos i ndus t r i a l i zados e as f azendas agropecuár i as são exemplos do impac to devastador desses novos fa to res , não havendo nenhum t raba lho de adaptação ou educação ambienta l , por par te dos ó rgãos responsáveis . Ma i s a f ren te es tes f a to res se rão anal i sados m ais p rofundam ente. Mesmo técn icas t rad i c ionai s t i das com o pr i nc i pa is agentes de degradação não so f re ram nenhum t i po de t raba lho educa t i vo, a não ser de pessoas i ndependentes como no caso da i n t rodução da técn i ca de compostagem agroeco lóg ica .

A co ivara com o técn i ca de p reparação da te r ra para o p l ant i o , é a i nda u t i l i zada em l oca is em que a f i sca l i zação não se m os t ra agress iva , ou se j a , em l oca is aonde o t u r i smo não chega com f o rça . I ndo em d i reção oposta a a l gumas anál i ses em que o ca i çara apa rece com o essenc ia lmen te um hom em do mar , a p resente pesqui sa f ocou de que manei ra , o ca i çara possuindo um profunda l i gação com o mar , é em sua ra i z , um ag r i cu l t o r t am bém. E pe rcebendo, em que med ida , com o o abandono das roças es tá ocas ionando um a per igosa perda de sua segurança a l imentar .

Essa d im inu i ção do número de roças acompanha um processo h i s tó r i co g l obal , em que a pa r t i r do f im do século X IX, a t ra ídos pe lo po tenc ia l de mercado de t rabalho das c i dades , e decadênc ia de mode los de p rodução agr í co l a i nsustentáve i s , as

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popu lações ru ra i s começaram seu f l uxo em d i reção à u rban idade. F l uxo esse que é t ambém de m ão-dup la , j á que a l óg ica do consumo se funda p r i nc ipa lmente na necess idade de es ta r expand indo seu ra i o de i n f l uênc ia em d i reção as pe r i f e r ias m et ropol i t anas. Assoc iado a esse con tex to , novas re l ações hom em -am bien te f o ram fo r j adas , e o cam po, em opos ição à u rban idade, passou a representa r um l ugar onde p rá t i cas a rca i cas se cont rapunham as benesses do p rogresso c i ent i f i co da m odern i dade.

As at i v i dades t rad ic i ona i s , com o as roças, o f e i t i o de canoas , a ces ta r i a , as f es tas ent re ou t ros , ent raram para o conjun to de p rát i cas re l ac i onadas ao an t i go , ao ve lho , em um a soc iedade que agora , p r i v i l eg i a ac ima de tudo o f u turo , o novo e a con temporaneidade. D .Capi tu , v ivendo seus cem anos , ao ser perguntada sob re o ser ca i çara , esc l a receu que os an t i gos cu l t i vavam a te r ra como pr i nc i pa l f on te de subs is tênc ia , t endo na pesca uma complem entação a l imentar . Ent re tan to , com o i n í c io da pesca embarcada, e da chegada da pesca com cercos, a impor tânc ia econômica da pesca u l t rapassa o da agr i cu l t u ra, j á em f ranca decadênc ia . A i nda segundo D .Capi tu , o ca içara não v i ve sem a fa r i nha de mandioca , p r i nc ipa lm ente no i nverno, quando a pesca escasse ia . Sobre esse aspecto é i n te ressante no ta r , que os g rupos Tupi s , que hab i t avam a cos ta , também possu íam uma re l ação p rodu t i va mai s l i gada à agr i cu l t u ra, m esmo que dominassem a tecnol og ia da navegação.

I n fe l i zm ente , esse p rocesso de t rans f o rm ação cu l t u ra l vem sendo m is t i f i cado a t ravés de um a sér i e de es t ra tég ias que buscam redesenhar o ca içara com o um povo essenc ia lmente pescado r . Essa que parece ser uma f raude h i s tór i ca, j á que nega um passado em função de uma necess idade do p resente e que m ui tas vezes serve pa ra a tender i n te resses que não desse g rupo . Mesm o que ho je a im por tânc ia econômica da pesca se ja a m at r i z das p rá t i cas cot i d i anas, há um i n te resse po l í t i co , i nc l us i ve re l a t i vo à posse da te r ra , em i gnora r a p rá t i ca co l e t i va da agr i cu l t u ra , como fa to r impor tan te da i den t i dade que esse g rupo possui de s i m esm o e de seus an tepassados .

A l ém d i sso, o d i scurso homogene i zan te ocas iona uma pressão sobre os que a i nda possuem essas p rá t i cas agr í co l as . A t ravés da pesquisa de cam po em todas as comunidades , com exceção da Pon ta da Juat i nga , onde a f i sca l i zação não é f o r te , f o ram dezenas de que i xas sobre o p re j u í zo em que se v i ram a par t i r do mom ento em que a co ivara f o i p ro i b ida e ou t ras t écn icas de mane jo não f o ram p ropos tas . Esse p rocesso h is tó r i co de res t r i ção da reprodução cu l t ura l , t em na ca tequese p ro tes tan te, nos p rocessos de g r i lagem, no tu r i smo e cu lm i na nos d i as a tua is , nas l e i s am bienta i s seus p r i nc i pa is f a to res de deg radação ambien ta l e cu l t u ra l , com o ressa l t a Diegues :

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“ A s á r ea s na t u r a i s p r o t e g i d as , s o b r e t u d o a s d e u s o r es t r i t i v o , m a i s d o q u e u m a e s t r a t ég i a g o v e r n a m en t a l de c o ns e r v a ç ã o , r e f l e t e m , d e f o r m a e m b l e m á t i c a , u m t i p o d e r e l aç ã o h o m e m / n a t u r e z a . ” 52

As l e i s , f o ram pouco a pouco se t rans f o rmando em

i n im igos dos morado res , em opos ição a sua gênese, quando no áp i ce das d i sputas en t re ca içaras e g r i l e i ros , f o i i ns t i t u ída a APA do Cai ruçu . Com o se vê neste t recho :

A r t i g o 1 º - F i c a c r i a d a a Á r e a d e P ro t e ç ã o A m b i e n t a l ( A P A) ,

d e n o m i n a d a C a i r u ç u , ( . . . ) c o m o o b je t i v o d e as s e g u r a r a p r o t eç ã o do a m b i e n t e , ( . . . ) e a s c o m u n i d a d es c a i ç a r as i n t e g r a d a s n es s e e c o s s i s t e m a . ” 53

Apesar de a l e i es ta r sendo i n f r i ng i da, há casos em que a d i re t r i z l eg i s l a t i va é no sent i do es t r i to de dec la ra r p rá t i cas cu l t u ra i s co l e t i vas como i l ega i s . Não há um i n te resse de u t i l i zar o conhec im ento empí r i co que j á ex is te na cu l t ura ca içara , para que se t rans f o rme em opções de mane jo v i áve i s , sem pro i b i r a rb i t ra r i am ente p rá t i cas soc ia i s e a i nda f avo recer a conservação dos ambien tes . Com exceção da recém c r i ada comissão de povos t rad ic i onais do M in is té r i o do Me io Ambien te e os t ex tos das l e i s que não são pos tas em prá t i ca, não há um d iá l ogo en t re ó rgãos l eg is l a t i vos e comunidades t rad ic i onai s , como se as comunidades f ossem i ncapazes de o f e recer so l uções v i áve i s p ra necess idades da soc i edade nac iona l . Esse parece se r o caso dos v i ve i ros de f lo ra e f auna, que j á ex i s tem na pen ínsu la que podem ser um a opção v i áve l para o p rob lem a da p ro i b i ção da caça e das á reas agr i cu l t áve is e re f l o res tadas, mas am bos são p ro i b i dos pe la l eg is l ação das á reas de reserva.

Na l e i , t anto da c r i ação da APA, quanto da c r i ação da rese rva, não se encont ra p ro i b i ção expressa, nem a caça , nem a co i vara, e s im a at i v idades que ameacem as espéc ies ra ras :

“ A r t i g o I V - O ex e r c í c i o d e a t i v i d a d e s q u e a m e a c e m ex t i n g u i r as e s p é c i es r a r as d a b i o t a r e g i o n a l . ” 54

A caça , um a das p r i nc i pa is heranças i nd ígenas , f o i a rb i t ra r i am ente p ro i b i da , sem l evar em conta que der i va de um complexo cu l tu ra l , mís t i co, econômico e po l í t i co que envo lve p repa rações corpora is , p resságios , l i de ranças comuni tá r ias , conhec imentos da m ata , e a p r i nc i pa l a rgumentação dos ca i çaras : de que a caça d im inu iu depo i s da escassez de á rvo res f ru t í f e ras e do despe jo de venenos cont ra m osqui tos , de te rm inado pe lo condomín io de Laran je i ras .

Em resposta as c r í t i cas sobre a c r im in i l i zação das comunidades , os ó rgãos ambien ta is a l egam que ex is tem opções

52 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.67

53 Decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de 1983. Sítio IBAMA/RJ. 54 idem 52

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susten táve is . No caso da caça , com o a l egar sus tentab i l i dade em re l ação a com unidades i so l adas, que no i nverno tem na caça um a com plem entação da a l im entação. A compra de carne bov i na nas c i dades , carne essa que der i va de f azendas que que imam anua lmente pas tos na p rópr i a reg i ão da Mata A t lân t i ca, ser ia um a opção sus ten táve l? No caso da Jua t i nga, a padron i zação das l e i s ambien ta i s a t inge em cheio a reprodução do conhec imento t rad ic i onal . No que cons is te a reprodução soc ia l dessas com unidades , é im press i onante perceber que há uma espec i f i c idade em sua dependênc ia do m eio na tura l , i nc l us i ve acerca do novo c i c l o que se es tabe lece com o tu r i smo, e que de f ine a condição eco lóg ica das popu lações t rad ic i ona is .

Há um prob lem a de saúde púb l i ca em decor rênc ia da f a l ta de a l t e rna t i vas de adaptação das p rá t i cas t rad ic i ona is . No caso das que imadas , gera a ex t i nção das roças , ba ixa na qua l i dade da a l imentação l oca l , perda de bancos gené t i cos , e u l t im amente tem em sua base, não ma is f a r i nha ou pe i xe , mas de b i sco i t os de água e sa l . Esse p rocesso h is tór i co da expropr i ação das fo rmas de reprodução soc ia l en t ra i nc l us i ve no debate sobre o pape l gove rnamen ta l na ex t i nção de p rá t i cas cu l t u ra i s , que ho je , a i nda não a t i ng i ram o s ta tus a l cançado pe la l i s t a de espéc ies em ex t i nção . Sem i nc l us i ve , haver qua lquer debate sobre o pa t r im ônio genét i co das espéc ies cu l t i vadas pe las popu lações t rad i c ionai s , que con tam na á rea da Jua t i nga com espéc ies i nd ígenas . Em um a soc iedade em v i as de aum ento das á reas cu l t i vadas com var i edades genet i camente m od i f i cadas , a im por tânc ia desses bo l sões de cu l t i vo de espéc ies na t i vas assum e um pape l f undam enta l na p reservação da soberan ia a l imentar não apenas dessas com unidades, m as tam bém em re l ação da tão defendida soc i edade nac ional .

Não há nenhum inves t imento que se perceba, no sen t i do de i n t roduz i r e ampl ia r o conhec imento de técn i cas de mane jo a l t e rna t i vas por par te dos ó rgãos responsávei s . Essa v i são d i co tômica que se es tabeleceu , sobre a conv ivênc ia negat i va en t re popu lações l oca is e á reas ambienta lm ente p ro teg idas , e que f az pa r te de um a v i são que tem o se r hum ano, com o par te não per tencente ao mundo na tu ra l , sendo impresc ind ive lmente danoso aos am bien tes natu ra i s . I nc l us i ve, a l guns au to res com o W arren Dean acabam o f e recendo dados dessa re l ação d i f íc i l , sem, en t re tanto o fe recer re f l exões p l u ra i s sobre o assunto.

D iegues a f i rm a que : “ p a r a do x a l m e n t e , g r a n d e p a r t e d o o r ç a m e n t o d as u n i d a de s d e

c o n s e r v aç ã o é u s ad a p a r a a f i s c a l i z a ç ão e r e p r es s ã o ( . . . ) , e m u i t o p ou c o p a r a m e l ho r a r a s c o n d i ç õe s d e v i d a e a m a n u t e nç ã o d a s p o p u l a ç õ es

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t r a d i c i o n a i s q u e , s e o r g a n i z ad as e e s t i mu l a d as , p od e r i a m c o n t r i b u i r p o s i t i v a m e n t e p a r a a c o n s e r v aç ã o d as á r e as p r o t e g i as . ” 55

A f a l t a de uma educação d i fe renc iada , que abarque as espec i f i c idades cu l t u ra i s das comun idades ca i çaras co l abora para a pe rda da mem ór i a e das p rá t i cas e se cor re lac i ona com a saúde e todas as ou t ras questões . Em ge ra l , a não va lo r i zação da cu l t u ra ca i çara pe los me ios i ns t i t uc i ona i s , fo r ta l ece uma adequação de f i c ien te e m ui tas vezes danosa en t re o un i ve rso s imból i co t rad i c iona l e as so l uções of e rec i das pe lo mundo con temporâneo. A fa l t a de t ranspor te para os doen tes , é em gera l um a das j us t i f i ca t i vas para a necess idade de es t radas, o que parece ser um a das ques tões de m aio r debate en t re os m oradores . O aum ento das doenças ocas ionadas pe la t rans fo rm ação da a l imentação e abandono da ro t i na de t rabalhos f í s i cos pesados, po r uma mai s l eve , parece te r l evado a um a sé r i e de doenças c rôn i cas que ex i gem t ra tam ento na c i dade.

Essa dependênc ia da u rban idade mani f es ta em d i f e ren tes aspec tos se demons t ra , p r inc i pa lmente , na es t ra tég ia de res is tênc ia quan to à posse da te r ra . A par t i r do mov imento de mão dup la gerado pe la f orm ação da ONG e de f esa dos i n te resses ca i çaras , por agentes u rbanos a l i ados, e a i n te ração com pesquisadores e a l i ados i ndependentes , a f o rmação das es t ra tég ias de res i s tênc i a não re t i ra dos p rópr i os ca içaras o p ro tagon ismo na cons t rução de um a i den t i dade f avoráve l às es t ra tég ias de perm anênc ia . Mesmo que essa i den t i dade es te j a acom panhada de um a romant i zação do passado. A reconf i guração da imagem, mu i tas vezes se ap rox ima de um i deal do ca içara bom se l vagem, p ro te to r do amb iente em que v i ve, a rgum entação que não se conec ta com as p rá t i cas co t i d ianas t rad ic i ona i s .

Um dos maio res empec i lhos para uma aná l i se ma is porm enor i zada do tema ca içara é essa dual i dade p resente na b i b l i ograf i a en t re o ca içara ambien ta l i s ta e o ca içara humano, com p rá t i cas s imb iót i cas e dest ru to ras , como todos os se res . Out ro p rob lema é a p recar iedade das técn icas de pesqu i sa, o que f az com que as conc lusões apresentadas se jam re l a t i v i zadas . Segundo Adams : “ m u i t a s a f i r m a ç õ e s s ob re p o p u l aç õ e s c a i ç a r as s ão f e i t as d e f o r m a l e v i a n a , c o m f u n d a m e n t aç ão t eó r i c a m e t o do l ó g i c a d e f i c i e n t e o u f a l t a d e e m b a s a m e n t o e m p í r i c o ( d a d o s ) . ” 56

55 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. 56 ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa Científica versus planejamento e gestão ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000. p.49

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Tal vez o m aio r a rgum ento l evan tado pe la b i b l i ograf i a e cons tatado pe l as pesqu i sas de campo, é que o ca içara possui um a re l ação de subs is tênc ia a t ravés de suas p rát i cas . Essa cu l t u ra t ende a res t r i ng i r a poss i b i l i dade de des t ru i ção avassa ladora do am biente , t a l como vem os ho je na soc i edade urbana de consumo. A soc i edade do s tatus quo , que vem agora regu la r as p rát i cas desses g rupos t rad i c iona i s , c r i ando l e i s que re f l e tem suas p rát i cas consumis tas e não ana l i sando os modos de v i da dos g rupos t rad i c iona i s . Out ro p rob lem a é tu r i sm o mal p l anejado , que vem se t rans fo rm ando na p r i nc i pa l f on te de renda de a l gumas comun idades, e que mesmo sendo a i nda re la t i vo à dependênc ia dos ca i çaras de seu am biente , é uma passagem drás t i ca para as re l ações de p rodução e consum o da u rban idade.

Mesmo as fo rm as de tu r i smo consc iente , com o o eco tu r i sm o, parecem não responder adequadamente as necess idades l oca is . As ou t ras f ormas apresentadas na reg i ão do Mamanguá, de t raba lho com escolas e es tudos do m eio, parecem a ler ta r para a percepção de com o ex i s tem es t ra tég ias que j á es tão sendo im plem entadas l oca lmente e que of e recem so luções m ais adequadas às necess idades dos g rupos t rad i c ionai s . As pressões de um tur i sm o de l uxo i n te rnac ional , e de m ega-condomín ios , em m ui tos casos , im pu ls i onam as p rá t i cas de g r i l agem, descor t i nam um pa tamar de p rob lemas re l ac i onados ao tu r i smo que tem h is tor i camente , um f o r te papel na reg ião desde a d i spu ta na P ra i a da T r i ndade, a té o desenro l a r das ques tões atua i s na P ra i a Grande.

São as conseqüênc ias de um tu r i smo sem p lanejamento por par te dos ó rgãos responsáve is , e que a t ravés de um a a tuação negl i gen te e mui tas vezes cor rup ta, i nc l us ive por par te dos ó rgãos f i sca l i zado res amb ienta i s . A cor rupção da f i sca l i zação governamenta l j á aparece f azendo par te da m i to l og i a l oca l , com d i versas h i s tó r i as sobre f i s ca is co r rup tos , ações a rb i t rá r ias e j u í zes de imparc i a l i dade duv idáve l . Esse cenár i o de te r ra -sem - l e i , em que os ca iça ras ocupam o pape l de m arg ina l i dade, f o i uma das percepções m ais marcan tes das pesqu isas de campo, quando o c l ima de ter ro r ps i co lóg ico e f í s i co , na m aio r i a das comunidades , chocou e ao mesmo tempo i ncen t i vou a cont inu i dade da pesquisa .

Se há uma t rad ição desde um passado remoto, de guer ras en t re ca i çaras e f azende i ros e a u t i l i zação de po l i c ia i s para t i enses por par te de g r i l e i ros em d i f e ren tes ep i sód ios , a l guns com mor tes , vem se m antendo, com o se percebe no caso a tua l da P ra i a Grande. Nesta pra i a , em que capangas a rmados, am eaçam moradores , impedindo a té sua c i r cu l ação , o quadro de an teceden tes h i s tó r i cos se mantém. Esse te r ro r emoc ional f az par te de es t ra tég ias de g r i l agem, que em m ui to se baseia na

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degradação das re l ações pessoa i s . As ações de re ta l i ação dos g r i l e i ros f o rçam d ispu tas e desentendim entos en t re v i z i nhos af e tando as re l ações de a l i anças , e p re j ud i cando as es t ra tég ias de permanênc ia no l oca l .

A un ião ou desun ião do g rupo fo i f undamenta l para o resu l t ado dos p rocessos de res i s tênc i a pe la posse da te r ra . No caso das P ra i as do Sono e Ponta Negra , em que a com unidade se f o r ta l eceu, houve resu l t ados pos i t i vos , após reações conjun tas . Ent re tan to , nas com unidades da P ra i a do Pouso da Ca jaíba , Ponta da Jua t i nga e P ra ia Grande da Ca ja íba , a rede de i n t r i gas en t re morado res parece te r s i do fundam enta l nos p rocessos de des in teg ração comun i tá r i a . Mesmo o a l coo l i sm o parece te r t i do um papel menor , apenas of e recendo quad ros de ca i çaras dúb ios , que se t rans fo rm aram em i n f o rm antes dos g r i l e i ros e agentes amedron tadores dos p rópr i os ca içaras . Out ro f a to r , que fo i c ruc i a l f o i o da p rá t i ca cor r i que i ra na reg ião, de um ca içara vender a sua posse para a l guém de fo ra e const ru i r sua casa no mesmo te r reno , a l egando não te r vend ido . Essa p rá t i ca f o i t om ada j ud i c i a lm ente com o um parâm et ro para j u l gar d i versos casos de g r i l agem, a par t i r do m omento em que o g r i l e i ro apresentava a cer t i dão de venda ass i nada, t endo para t an to essa a l egação.

Todas essas ques tões perpassam a f o rmação de es t ra tég ias de sobrev i vênc ia e a c r i ação de redes , se j a en t re ca i çaras , ou i n teresses de f o ra. Essas redes têm em mui tos casos s i do de te rmi nantes na fo rm ação de a l i anças que tem poss ib i l i tado a permanênc ia ou exc l usão dos m oradores . A mai s con temporânea, e que despe r tou m aio res conseqüênc ias na h i s to r ia recen te dos ca i çaras dessa pen ínsu la , é a f o rmação de um a a l i ança ent re moradores ca içaras e agentes u rbanos . Se ja a f o rmação da ONG por j ovens tu r i s tas para a de f esa dos m oradores ca içaras , se j a a par t i c ipação e i n t rodução de novas técn icas e abo rdagens sobre m ane jo de espéc ies por v i s i t antes e pesqu i sadores , t em cr i ado uma v i a de mão-dupla , c r i ando conseqüênc ias s imból i cas que ex t rapo lam as ações conc re tas . Esses v íncu los en t re soc i edade urbana e moradores l oca is , i n f l uenc ia na p rópr i a cons t rução iden t i t á r ia . Oferece a l t e rna t i vas de d i á l ogo en t re as popu l ações loca i s e as questões que se apresentam, se j a da g r i l agem, do tu r i smo ou da reserva . O i n te resse por p rát i cas que es tão sendo exc l u ídas das catego r i as que os de f i nem no âm bi to da l eg i s lação , com o parece ser o caso da agr i cu l t u ra , há tam bém um processo de re f lexão po r par te dos m oradores , se as p ro i b i ções que os a t i ngem são rea lmente i nexoráve is .

A m emór ia e as p rá t i cas desse povo , sua i dent i dade d i re tam ente re l ac i onada com a p rópr i a v i são de me io ambien te que os cerca e dos p rocessos contem porâneos que vem

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a l te rando essas i n te rações , i nc lus i ve nas novas f o rmas de re l ac i onam ento com os agentes ex te rnos, podem se r um dos nós da rede de re f l exões ace rca da con tem porane idade e a c r i se am bienta l p l ane tá r i a . Podem cont r i bu i r t am bém com al gumas so luções p rá t i cas de mane jo ambienta l e v i são de mundo. Apesar de den t ro das p rá t i cas ca i çaras , es ta rem i nser i das fo rmas de m anejo ho je cons ideradas noc i vas à b i os f era, um d iá l ogo en t re conhec imento t rad ic i onal e m odern idade, não é apenas possíve l , mas t raz conseqüênc ias saudáve i s a ques tões p rob lemát i cas como no caso espec í f i co da reg ião , que é o de popu lações t rad ic i onais em áreas ambienta lmente p ro teg idas.

“ O s a d m i n i s t r a d o r es p o d e m a p r e n de r m u i t o s o b r e c o n s e r v a ç ã o e

u s o d o s r e c u r s o s na t u r a i s , e n q u an t o a c o n s e r v a ç ã o d e á r e a s n a t u r a i s p o d e o f e r ec e r g r a nd e o p o r t u n i da d e p a r a a s o b r ev i v ê n c i a d a s c u l t u r as t r a d i c i o n a i s . ” 57

Ainda es tá mui to nascente uma s i n ton ia dos d i scursos

governam enta i s , que por um l ado começam a c r iar es t ra tég ias de p reservação do pa t r im ônio im ater i a l , p r i nc i pa lm ente da m emór i a e da cu l t u ra popu la r e por ou t ro não cons idera aspec tos desse pa t r imôn io, como a memór ia ambien ta l desses povos com o aspec tos re l evan tes a serem abrangi dos pe las l e i s am bienta i s . Apenas a supe ração da re l ação rom ânt i ca e m anique ís ta da d i co tom ia hom em X na tu reza , pode l evar a um a percepção mais ho l í s t i ca e sens íve l das populações t rad i c iona i s , como os ca içaras da Penínsu la da Jua t i nga , são ana l f abe tos s im, mas não anal f abe tos ambien ta i s .

O p rocesso h is tó r i co dessa popu lação demonst ra como of i c ia lmente há um a exc l usão do pape l po l í t i co desse g rupo, i nc l us i ve em ques tões que os af e tam d i re tamente . I nc l us i ve m ui tos p rocessos de v i o l ênc i a e a rb i t ra r i edade j u r íd i ca f o ram l evados a cabo po r agentes governam enta i s o f i c ia i s . As perm anênc ias de p rá t i cas h i s to r i camente repud iadas pe la soc i edade democ rá t i ca, parecem nessa reg ião te rem se es tabelec ido de ta l f o rma, que apenas em casos em que a o rgan i zação popu la r ex t rem a e a t om ada de medidas rad ica i s ocas ionaram a lguma fo rm a de sucesso. Mesm o ho je , em que d iversas l e i s i n te rnac ionai s e ambien ta i s o fe recem espaço para a par t i c i pação e respe i to à ex i s tênc i a dessas comunidades t rad i c ionai s , o p rocesso po l í t i co rea l , como no caso da reca tegor i zação da reserva, con t inua não l evando em con ta a par t i c ipação popula r s i gn i f i ca t i va .

57 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.234

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Al te rna t i vas podem ser apresentadas a p rob lemas reco r ren tes , com o propõe D iegues :

“ d ev e - s e p ro i b i r a c o n s t r uç ã o d e c a s a s d e n ã o r es i d e n t e s . Q u a n t o a a g r i c u l t u r a t r a d i c i o n a l , e s t a d ev e s e r a dm i t i d a , m as e m á r ea s b e m -d e f i n i d a s , a l é m d e s e es t a b e l e c e r u m a z o n a - t a m p ã o e n t r e e s t as e a s d e p r e s e r v a ç ã o p e r m an e n t e . ”

Mas , mesmo havendo propos tas , há um con junto de a rb i t ra r i edades l evadas a cabo por g rupos econômicos i n f i n i t amente super i o res e c l a ramente a l i ados à agentes governam enta i s . Os ca içaras que sobrev iveram a essas décadas de v i o l ênc ia cont i nuam a res is t i r , p r i nc i pa lmente baseados em um a i den t i dade co le t i va e na mem ór i a do g rupo como ances t ra lm ente descenden te de hab i t an tes do l oca l . Essa l u ta , que tem raí zes mí t i cas , em l endas como a guer ra de Mar i a F ranc isca e os ca içaras do Ca i ruçu das Pedras con t ra a expansão da fazenda do a l emão do Mar t im de Sá, o fe recem um panorama de como a soc i edade nac ional e os ó rgãos governam enta i s responsávei s , con t inuam a conv i ver es ta t i cam ente com prob lem as arca icos , como a g r i l agem. Ho je as rese rvas com suas l e i s a rb i t rá r i as acabam por i ns t i t u i r uma gr i l agem governam enta l .

Apesar dos es tudos c i ent í f i cos j á a l e r ta rem pa ra a im por tante l i gação en t re b i od ivers i dade e cu l t u ra , essa consc iênc ia a i nda não a l cançou os ní ve is l eg is l a t i vos e execu t i vos . Como aponta D iegues:

“ a b i o d i v e r s i d a d e e x i s t e n t e h o je n o m u n d o é e m g r a n d e p a r t e g e r a d a e g a r a n t i d a p e l a s c h a m a d a s p o p u l a ç õe s t r a d i c i o n a i s . N es s e s e n t i d o , a c o ns e r v a ç ã o d a d i v e r s i d a d e b i o l ó g i c a e a c u l t u r a l d ev em c a m i n h a r j u n t a s . ” 58

A cu l t u ra ca i çara p resen te na r eg ião que va i de Mangara t i ba , no R io de Jane i ro , ao l i t o ra l do Paraná, v i ve ho je um es t re i to p rocesso de i n te ração com a cu l t u ra da soc i edade urbana. Esse p rocesso m esm o sendo mai s ág i l do que a capac idade de f i l t ragem dos aspec tos noc ivos à essas comunidades , t ambém dem onst ra ho je , a t ravés da re l ação com ou t ros agentes ex te rnos , que possui uma capac idade de es tar conec tado à p rocessos p l anetá r i os de va l o r i zação dos bancos genét i cos das espéc ies cu l t i vadas , de um tur i sm o mai s p l anejado e sens íve l a cu l tu ra l oca l , de re i nv id i cações por j us t i ça ambien ta l , e pa r t i c i pação popu la r na f o rm ação de á reas am bienta lmente p ro teg idas. A descarac te r i zação cu l tu ra l é uma rea l i dade p resente , mas deve-se perceber t ambém que na h i s tó r ia dos ca i ça ras da Jua t i nga es tão p resentes temas m ui to

58 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.

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d iscut i dos . A capac idade de res is tênc ia à p rocessos po l í t i cos a l i ados a in te resses econômicos , e novas fo rmas de i n te ração da human idade com o ambi ente que a cerca . A h i s tó r ia dos ca i çaras da Penínsu la da Jua t i nga demonst ra que os homens não são apenas responsáveis pe la ex t i nção de espéc ies , mas tam bém guard i ões de bancos genét i cos , h i s to r i camente cons t i t u ídos.

Mudas de palmito Jussara e Guapuruvu feitas durante a Oficina da Praia Grande.59

59 Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da Cajaíba. Agosto de 2006.

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Aqui termina essa história Para gente de valor prá gente que tem memória, muita crença, muito amor Prá defender o que ainda resta, sem rodeio, sem aresta Era uma vez uma floresta (...)60

60 A Saga da Amazônia, música de Vital Farias. A floresta amazônica e a mata atlântica são irmãs e que compartilham de sagas muito similares, nas histórias de suas plantas, de seus bichos e sua de gente.

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