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“É Fogo na Jaca”: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950 ANTONIO RICARDO CALORI DE LION Seria a drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se estabelece? - Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Ao longo do século XX, foram comuns os personagens no teatro interpretados por atores vestidos com figurinos destinados às personagens femininas do enredo. Porém, para além de uma simples substituição de mulheres por homens (pelas mais diversas questões) nos palcos teatrais, no meio do século passado surgiu no teatro brasileiro uma vedete que não era tão comum: uma drag queen atuando profissionalmente em peças do teatro de revista e tendo sua persona respeitada e projetada pelas mídias de massa do período como uma verdadeira estrela. Essa drag era Ivaná. 1 No período a que se refere esta pesquisa 1953 a 1954 foi possível levantar que Ivaná atuou em peças teatrais de revista e em um filme intitulado Mulher de Verdade (dir. Alberto Cavalcanti, 1954). No filme, ela aparece no final, montada para fazer uma apresentação: canta em francês, acompanhada pela melodia de um piano e recebendo elogios da plateia que a contempla. Porém, há duas aparições nesta película do ator que dá vida à drag queen desmontado, chamado Ivan Monteiro Damião. Ele aparece como Baby, contracenando com as personagens do filme, falando em francês. Acerca da biografia de Ivaná ou Ivan Damião não se conseguiu muitos dados até o momento da presente pesquisa. Sabe-se que Ivan Damião era apresentado como francês, mas na verdade tinha origem portuguesa. 2 Ivaná foi capa da revista Manchete em setembro de 1953 (edição nº 75) ganhando destaque nas páginas centrais em uma reportagem de Ivo Serra, sendo nela mencionado o seu sucesso com a companhia teatral de Walter Pinto e, de certa maneira, elogiado seu Formado em História pela UFMT/CUR e mestrando em História pela UNESP/Assis. Bolsista FAPESP processo nº 2014/16749-3. Membro do grupo de pesquisa Arte.com; e-mail: [email protected]. 1 Ao longo deste texto aparecerão palavras do Pajubá, como também neologismos da cultura LGBT. 2 “Nascido em 1933, Ivan era um rapaz de origem abastada, e estudará até o terceiro ano de odontologia, quando resolveu seguir a vida artística. Filho de pai português e mãe russa, o rapaz nem mesmo era francês, e sim português.” (NUNES, 2015: 159)

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“É Fogo na Jaca”: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950

ANTONIO RICARDO CALORI DE LION

Seria a drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos

significantes mediante os quais o gênero se estabelece?

- Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão

da identidade.

Ao longo do século XX, foram comuns os personagens no teatro interpretados por

atores vestidos com figurinos destinados às personagens femininas do enredo. Porém, para

além de uma simples substituição de mulheres por homens (pelas mais diversas questões) nos

palcos teatrais, no meio do século passado surgiu no teatro brasileiro uma vedete que não era

tão comum: uma drag queen atuando profissionalmente em peças do teatro de revista e tendo

sua persona respeitada e projetada pelas mídias de massa do período como uma verdadeira

estrela. Essa drag era Ivaná.1

No período a que se refere esta pesquisa – 1953 a 1954 – foi possível levantar que

Ivaná atuou em peças teatrais de revista e em um filme intitulado Mulher de Verdade (dir.

Alberto Cavalcanti, 1954). No filme, ela aparece no final, montada para fazer uma

apresentação: canta em francês, acompanhada pela melodia de um piano e recebendo elogios

da plateia que a contempla. Porém, há duas aparições nesta película do ator que dá vida à drag

queen desmontado, chamado Ivan Monteiro Damião. Ele aparece como Baby, contracenando

com as personagens do filme, falando em francês.

Acerca da biografia de Ivaná – ou Ivan Damião – não se conseguiu muitos dados até o

momento da presente pesquisa. Sabe-se que Ivan Damião era apresentado como francês, mas

na verdade tinha origem portuguesa.2

Ivaná foi capa da revista Manchete em setembro de 1953 (edição nº 75) ganhando

destaque nas páginas centrais em uma reportagem de Ivo Serra, sendo nela mencionado o seu

sucesso com a companhia teatral de Walter Pinto e, de certa maneira, elogiado seu

Formado em História pela UFMT/CUR e mestrando em História pela UNESP/Assis. Bolsista FAPESP

processo nº 2014/16749-3. Membro do grupo de pesquisa Arte.com; e-mail: [email protected]. 1 Ao longo deste texto aparecerão palavras do Pajubá, como também neologismos da cultura LGBT. 2 “Nascido em 1933, Ivan era um rapaz de origem abastada, e estudará até o terceiro ano de odontologia, quando

resolveu seguir a vida artística. Filho de pai português e mãe russa, o rapaz nem mesmo era francês, e sim

português.” (NUNES, 2015: 159)

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2

desempenho e aparência enquanto Ivaná, já que o jornalista diz que “às vezes é uma moça

belíssima, quase sempre um rapaz branco e de mau aspecto” (SERRA, 1953: 23).

Figura 01 – Ivaná no camarim

Fonte: revista Manchete, 26 de setembro de 1953, p. 23.

Antes das reflexões sobre Ivaná no contexto da peça É Fogo na Jaca, se faz necessária

uma breve apresentação no que se refere ao meio social e cultural carioca tendo como foco as

sociabilidades LGBTs, no curto arco temporal pesquisado.

A crescente urbanização e cosmopolitismo do Rio de Janeiro no decênio de 50

construía a cena perfeita para as sociabilidades camp3, o ecletismo cultural e a grande

provocação de bichas, travestis e transexuais ao meio social carioca daquele momento.

Obviamente, ao passo que havia mais liberações (ou seria libertações?) comportamentais pela

cidade, na contramão vinha as duras críticas de jornalistas que usavam de toda a moralidade

para condenar tais atos cometidos por “vítimas de desarranjos glandulares”, como um

3 Conceito empregado para definir ou apontar atitude e comportamento do meio gay masculino. Cf. LACERDA

JÚNIOR, 2011.

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3

jornalista da revista Manchete se refere a gays prostitutos que viviam em Copacabana, citado

no livro de James Green (2000: 258):

Ao escrever, um ano depois, sobre as casas noturnas, outro jornalista retratou uma

cidade decadente com “Boites de todos os naipes, inclusive existencialistas – ou

meio existencialistas”. A referência à nova filosofia importada de Paris,

potencialmente subversiva e perigosa, era bem pouco sutil. O jornalista então passa

a fazer comparações-clichês com o ambiente da Rive Gauche parisiense: os bares

escuros e esfumaçados atraíam “os mais consumados cafajestes, fáceis borboletas,

restos dos pós-guerra mundial, bonitões cuja profissão é isso mesmo, pervertidos,

homossexuais”. Apesar desse retrato depreciativo de Copacabana, foi precisamente

a imagem moderna e boêmia da cidade à beira-mar com sua vida noturna

glamourosa e de sexo fácil que atraiu tantas pessoas, os turistas estrangeiros, assim

como os próprios brasileiros. Essa foi também uma das muitas razões pelas quais

muitos homossexuais optaram por viver e divertir-se nesse bairro.

A “cena homossexual” narrada por Green, mostra uma cidade repleta de sociabilidades

e cultura construída por pessoas LGBTs que, ao longo dos anos 50 no Rio de Janeiro, se

colocaram à prova de repressões e investidas por parte de homens heterossexuais em que se

sentiam afoitos com a presença de bichas (principalmente as afeminadas) em ambientes

coletivos, como por exemplo, a praia de Copacabana em frente ao hotel Copacabana Palace.

Este famoso bairro carioca é o grande protagonista da história contada por James

Green, pois como grande reduto homossexual do Rio (mas não exclusivo) atraía bichas da

própria cidade, do país e também de outras nações.

Com bares, becos, boates, clubes, praias etc. onde as manas viadas podiam se

encontrar - talvez - para conseguirem sexo fácil a qualquer hora do dia ou da noite, a fama de

Copacabana só foi aumentando, colocando os mais moralistas e homofóbicos a testarem seu

próprio ódio e desrespeito.4 No entanto, não se tinha em Copacabana locais exclusivamente

4 “A concentração de homens, em sua maioria efeminados, na Bolsa, em Copacabana, provocou uma reação dos

jovens “machos” da vizinhança, que usavam a mesma área para sua própria socialização e atividades de lazer.

Carlos lembrou-se um dia específico em 1954 ou 1955, quando acabava de chegar ao Rio: “Houve agressão.

Jogaram areia. Chegaram até a levar uma faixa dizendo ‘Fora as Bichas’. Um dia, quando chegamos tinha uma

faixa de pano pintado fincada na areia”. Segundo Carlos, os garotos do bairro fincaram a faixa na areia como

aviso de que os homossexuais não eram bem-vindos em frente ao Copacabana Palace. O tiro, contudo, saiu pela

culatra. A areia que eles jogaram nos bichas [sic] atingiu também as famílias que estavam sentadas por perto.

Mães protetoras, irritadas com a areia que caía sobre suas crianças, começaram a defender os homossexuais

acossados, argumentando que eles não incomodavam ninguém. Elas até ameaçaram levar o assunto ao

conhecimento dos pais dos garotos, uma vez que viviam todos por ali e conheciam uns aos outros. A agressão

parou, e a Bolsa de Valores permaneceu como uma área social de encontros para homossexuais.” (GREEN, 200:

265)

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para homossexuais, e os espaços que serviam para essas sociabilidades que existiram ao longo

dos anos 50 não duraram muitas temporadas, como aponta Green em sua pesquisa.

O travestismo em cena

O homoerostismo na cena teatral brasileira está presente desde fins do século XVIII,

porém suas formas de se apresentar não eram necessariamente ligadas à sexualidade dos

atores, mas sim a uma construção simbólica dos personagens que compunham o espetáculo.

Também não se pode afirmar que haviam travestilidades5 em cena, mas sim a uma

apresentação artística, na qual haviam atores interpretando personagens femininas em

substituição de atrizes.

A presença de amapôs atuando no teatro do período colonial havia sido proibida por

D. Maria I e consagrava aos homens o domínio sobre o fazer teatral, em todas as instâncias,

assim apresentado por João Silvério Trevisan em Devassos no Paraíso (2002).

O autor supracitado trata essa questão atestando que o teatro colonial no Brasil era tido

como marginal e degradante e, por vezes, as mulheres não eram “bem vistas” nestes lugares.

Mas haviam exceções e algumas atrizes até atuavam, sendo que os atores eram (em muitos

casos) de negros escravizados ou alforriados. São nestes espaços cênicos entre os séculos

XVIII e XIX que a representação teatral se constitui como “cena travestida” apontada por

Trevisan.

Já com a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, o teatro ganha um outro valor

sociocultural e passa a receber atores e atrizes de companhias internacionais, ainda incipiente

e com caráter de marginalidade e “má fama”.

Ao longo do século XIX, o uso da estética travesti ocorreu não por uma questão de

identidade, mas por uma apresentação dramática requerida pelo elemento cênico sendo parte

do fazer artístico do ator, por vezes se confundindo com questões de sexualidade:

5 O uso do termo travestilidade hoje conecta-se a uma questão de identidade de gênero. De acordo com Wiliam

Peres (2015: 34) apontando a origem do termo travesti diz que: “[...] foi Magnus Hirschfeld, quem cunhou o

termo travesti em princípio do século XX (entre 1905 e 1910), sendo um dos pioneiros a distinguir travestismo

de homossexualismo, acreditando que poderiam ser explicados pelas variações dos hormônios sexuais, sendo

criticado por Havellock Ellis, representante da sexologia da época que pensava o travestismo como uma

‘inversão sexo-estética’.”

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Consagrada no ambiente teatral, a prática profissional do travestismo ocorria num

contexto social nada inocente de disseminação da pederastia, que com certeza Ihe

adicionava conotações não exclusivamente profissionais. Vale lembrar que, já na

primeira metade do século XIX, era comum e escandalosa, numa cidade como o Rio

de Janeiro, a prática homossexual - sobretudo no baixo comércio, onde imperavam

os imigrantes portugueses, que muitas vezes mantinham casos de amor com seus

empregados caixeiros. (TREVISAN, 2002: 238)

Esta prática artística nos palcos de uma estética travesti traz consigo o elemento

fundamental da categoria teatro para quem o faz: o emprego. O trabalho profissional usando

do que Trevisan chama de “travestismo”, traduzindo-se na ação de um ator vestir-se com

roupas, elementos e modos de ser atribuídos ao universo feminino vão da questão da não

presença de atrizes nas montagens das peças ao caráter da provocação através desta estética

corporal, assim como, a reações do público, como o riso.

Esta questão está calcada puramente em elementos artísticos e estéticos, não

desconectados dos contextos sociais, de usar a estética travesti na cena enquanto uma saída

para a atribuição de papéis de personagens nas peças e, assim, sanar um problema, que

segundo João S. Trevisan (2002: 238) foi corriqueiro, como já tratado acima sobre a

profissionalização:

Do travestismo teatral não escaparam nem certas personalidades locais. Assim, na

Bahia desse mesmo período, um provável membro da família de José Mana da

Salva Paranhos, o emérito visconde do Rio Branco, muito se salientou, fazendo em

travesti os papéis de dama-galã, no conjunto Regeneração Dramática, fundado em

1854.

O uso da aparência travesti pelos atores em cena reflete também, já no século XX,

uma questão de escolha estética e profissionalizante, tornando-se uma categoria de trabalho

no campo artístico, com certa visibilidade e conexões entre a travesti enquanto atriz e

enquanto uma “variação” do ser homossexual. Sobre esta esfera do ser travesti nas artes

dramáticas, Trevisan (2002: 242-243) comenta:

A outra vertente do travestismo voltou-se para um objetivo mais profissional, com o

surgimento nos palcos do ator-transformista, que passou a viver profissionalmente

da imitação das mulheres e, com frequência, tornou-se travesti também na vida

quotidiana.

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Tentando recuperar a história das travestis e transexuais, João Silvério Trevisan busca,

principalmente pela questão artística, mostrar a visibilidade de pessoas trans*6 em um

momento da História do Brasil em que as subjetividades, identidades e especificidades não

eram pensadas pelo viés dos estudos de gênero, não eram dadas à condição de serem

discutidas. Eram vistas/os todas/os como homossexuais e um dos espaços em que se podia

expressar quem se era foi o ambiente artístico.

Apesar de Trevisan chamar o recurso que um ator/atriz dispõe de se montar como

travestismo e colocar a palavra travesti para identificar esses atores transformistas, reflete a

impossibilidade de tratar sobre essas questões no período em que o autor realizou sua

pesquisa e escrita da obra.

Como apresentado, era comum – e ainda é em muitos lugares – confundirem gênero

com sexualidade, ou seja, tratar as travestis como uma bicha travestida de mulher. Nota-se -

conforme mencionado neste texto – que as travestis de Trevisan estariam, na realidade,

próximas da arte drag queen, no entanto, não seriam ainda como a contemporânea drag de

hoje.

Do início dos anos 50 em diante, houve outra visibilidade para sujeitas/os fora da

heteronormatividade da cena artística, sem vincular essas/es artistas ao escárnio, ao deboche

ou puramente a uma atração pelo “travestismo” necessário à substituição de atrizes.

Diferentemente do caso pioneiro do espetáculo Les Girls, dos anos 60, que colocou de

vez as travestis tal como são enquanto protagonistas da peça, contando com a

profissionalização do seu fazer artístico e com o impacto queer naquele contexto, a

Companhia Walter Pinto trouxe uma drag queen da Europa para atuar como vedete em uma

peça que estava sendo montada – É Fogo na Jaca.

A primeira metade dos “anos dourados” foi marcada politicamente pela volta

democrática de Getúlio Vargas à presidência da República e, assim, eram feitas críticas

abertas ao seu governo, visto que já não havia mais a forte censura do período anterior em que

liderou o país como ditador. Na cena artístico-cultural, encontravam-se grandes espetáculos

teatrais de variedades, como as peças teatrais das companhias de Walter Pinto e de Zilco

Ribeiro.

6 Usa-se esse termo com asterisco para tentar englobar travestis, transexuais e outros gêneros fora da

hetenormatividade.

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Ambas as companhias buscavam cada vez mais ampliar seus contatos no showbiz e

seus espetáculos, com aparatos cênicos grandiosos e equipe técnica/artística profissionais. Na

apresentação do acervo de Walter Pinto da FUNARTE é afirmada a importância de suas

produções:

Produtor e autor dos maiores espetáculos do Teatro de Revista brasileiro, Walter

Pinto revolucionou o gênero entre as décadas de 40 a 50. Coube a ele garantir o

caráter de espetáculo à cena, com escadas, luzes, coreografias grandiosas, coros e

orquestras numerosos. Coristas francesas, argentinas e russas foram contratadas

para suas produções, das quais participaram vedetes, atores e atrizes como Dercy

Gonçalves, Grande Othelo, Mara Rubia e Virginia Lane. (FUNARTE, 2010: n.p.)

Sendo este empresário um líder no mercado de espetáculos de revistas naquele

período, a projeção que tomou Ivaná para além dos aplausos não é tão descabida, tendo em

vista a elevação da drag a um espaço importante na construção teatral, a colocando como uma

vedete fato esse que chamava a atenção também por ser anunciada no período como uma

travesti francesa.

Figura 02 – Um dos quadros do espetáculo É Fogo na Jaca

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Fonte: revista Manchete, “Cinco Milhões Por Um Show”, 18 de julho de 1953, p. 28.

Walter Pinto investia tempo, dedicação e grande quantia de dinheiro para a realização

do espetáculo. O autor Salvyano Paiva (1991, p. 594) ao traçar um panorama dos espetáculos

que ocorreram no ano de 1953, diz:

Mas uma das melhores e certamente uma das campeãs de permanência em cartaz

chamou-se É Fogo na Jaca! [...], estreada no Recreio a 15 de maio para uma

temporada de cinco meses e meio, até 25 de outubro, praticamente meio ano. A um

custo de cinco milhões de cruzeiros, arrecadou entre 50 e 60. Seus dois atos e 19

quadros esplendiam de alegria e riqueza. Boa música de Vicente Paiva, Alberto

Lazzoli e Walter Schultz Porto-Alegre, regida pelo primeiro. Cenários de Manuel

Lima, Angelo Lazary, Otavio Goulart e Armando Iglésias. Figurinos de Joselito.

Coreografia de Henrique Delff. E um elenco fabuloso com Mesquitinha, Violeta

Ferraz, Marina Marcel, Ankito, o travesti Ivaná, Iris Delmar, Manoel Vieira, Jane

Grey, Paulo Celestino, Natara Ney, Pedro Dias, Lia Mara, a inesquecível cantora

portuguesa Gilda Valença – que unia talento a uma extrema simpatia -, Léo Lanc,

Regina Nacer (no esplendor de sua nudez), 15 bailarinas, 10 bailarinos, 16 gilrs

figurantes, 10 manequins, 10 modelos nus que a publicidade trombeteava serem

“nus realmente artísticos”. [...] Durante cinco meses e meio, a revista manteve a casa

cheia todas as noites.

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O espetáculo foi matéria de capa da revista Manchete, edição nº 75, de 18 de julho de

1953. A reportagem com título Cinco milhões por um show distribuída em cinco páginas do

periódico, tem autoria de Nicolau Drei e Aymoré Marella. O texto escrito está em apenas uma

página, as outras quatro são destinadas a fotografias de parte do espetáculo e seus bastidores,

muitas das quais são coloridas.

O apelo visual da reportagem não se dá por acaso: a revista Manchete, nos anos 50,

consegue – principalmente por investir em uma nova identidade visual – se sobrepor a sua

concorrente:

A partir de 1952, a revista Manchete tornou-se a principal concorrente de O

Cruzeiro. Ambas, afora serem publicadas na cidade do Rio de Janeiro, recorriam à

linguagem do fotojornalismo, incluindo em todos os números bem elaboradas

fotorreportagens, tal como a Life e a Paris Match o faziam. Não por coincidência, o

processo de decadência de O Cruzeiro se iniciou quando a Manchete, em meados

dessa década, contratou jornalistas que se demitiram da revista concorrente

e aprimorou a qualidade gráfica para ficar cada vez mais colorida, atraente e fácil

de ler. Eram as condições exigidas para manter e conquistar mais leitores. Dado

que o público leitor só podia ser definido experimentalmente, os editores levavam

em consideração o fascínio que o assunto da capa da revista exercia sobre os

leitores ou a aptidão dos leitores para receber as informações divulgadas pela

revista. Ajustava-se a revista ao interesse e à capacidade de percepção do receptor

da informação. Detendo o poder de controlar a informação e formar opinião, a

imprensa é porta-voz dos interesses de determinados grupos sociais. (ANDRADE;

CARDOSO, 2001: 247)

Figura 03 – Walter Pinto e elenco de É Fogo na Jaca

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Fonte: revista Manchete, 18 de julho 1953, p. 32, “Walter Pinto vive entre mulheres bonitas e de pouca roupa.

Com ôlho clínico descobre nelas as vedetas que se tornarão famosas”.

O texto que abre a reportagem sobre É Fogo na Jaca traz um histórico do gênero

musicado no Brasil, chegando até Walter Pinto e a companhia teatral herdada de seu pai. A

narrativa é construída de modo a deixar para W. Pinto os louros pela renovação da linguagem

e estética do teatro de revista, que se tornou a “indústria de milhões” (DREI; MARELLA,

1953: 28) na metade do século passado.

Com a morte do velho Manoel surgiu seu filho Álvaro. Morto este num desastre de

aviação chegou a vez de Walter. Menino ainda, o filho mais moço do velho Pinto

não deixou morrer aquilo que já se tornara uma tradição da família. Muito ao

contrário. Inverteu milhões, deu novas roupagens ao musicado e garantiu um nome

que hoje vale milhões. “Muié Macho, sim Sinhô”, “Sassaricando”, foram seus

grandes sucessos.

A última delas custou dois milhões. Agora Walter Pinto, tornou a ir a Paris, trouxe

nova exibição de francesas famosas e montou “E’ Fogo na Jaca”.

Cinco milhões, numa montagem fabulosa, a mais fabulosa que se tem notícia na

história do teatro musical brasileiro. 5 milhões que voltam para Walter Pinto.

(DREI; MARELLA, 1953: 28)

Não é intuito deste trabalho falar exclusivamente sobre “o show de cinco milhões” e

sua montagem, sua linguagem, seu enredo, etc. Contudo, é importante apresentar esses pontos

sobre É Fogo na Jaca para que se tenha uma breve noção da proporção que o espetáculo

obteve, já que foi a estreia de Ivaná e como isso influiu em sua notoriedade naquele momento

– e vice e versa.

Figura 04 – fragmento de um quadro de É Fogo na Jaca

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Fonte: revista Manchete, 18 de julho de 1953, p. 31.

Na estreia desta revista, Paschoal Carlos Magno publicou uma grande crítica sobre o

espetáculo e suas impressões em relação a Ivaná:

A outra “atração de Paris” é o sr. Ivana. Faz sucesso com seu rosto sem barba,

seus olhos enfeitados de longos cílios, seu corpo longo sempre vestido com

elegância e propriedade. Sua voz é um quase nada. Mas diz, move-se com muita

graça. Ganhou, na estréia, as maiores ovações. (MAGNO, 1953:11)

O jornal Correio da Manhã foi um dos veículos noticiosos de maior relevância na

história do país no século XX e teve grande circulação pelas grandes cidades, já que suas

oficinas eram instaladas na então capital da República, o Rio de Janeiro. Teve forte impacto

no cenário político brasileiro, sendo que nos anos 50 “exerceu grande influência durante o

segundo governo Vargas, chegando a pesar nas decisões políticas” (LEAL , s.l.: n.p.).

As críticas existentes no jornal referentes a espetáculos teatrais escritas por Paschoal

Carlos Magno eram periódicas. A importante contribuição de Magno para o teatro nacional

com a criação do Teatro do Estudante do Brasil (TEB), em 1938, marcou a história do teatro

brasileiro. Suas críticas e análises dos espetáculos teatrais são uma rica fonte documental,

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contando principalmente com seu ponto de vista acerca do cenário político do momento,

como a defesa da não-censura de É Fogo na Jaca nos quadros em que haviam críticas

políticas ao governo de Getúlio Vargas.

A revista Manchete também falou de Ivaná pela ocasião da repercussão do espetáculo

É Fogo na Jaca:

O nome do rapaz é bem brasileiro: Ivan Monteiro Damião. Mas para todos os

efeitos êle é somente Ivana (pronúncia no último a, à francêsa) e seu nome

masculino já está quase inteiramente esquecido. Francês de nascimento, 20 anos de

idade, descendente de portuguêses, Ivana é a grande sensação do teatro musicado,

no Rio. Importado por Walter Pinto na última leva de artistas francêses que o

empresário trouxe para sua peça “É Fogo Na Jaca”, Ivana foi um sucesso completo

cantando e dançando num dos últimos números da revista a canção “Cherches Le

Milionaire”. (SERRA, 1953: 22)

Esta reportagem sobre Ivaná traz questões que são no mínimo inquietantes para se

pensar quanto a gênero e à subversão da norma vigente, ou seja, à heteronormatividade e à

propulsão que tomou sua imagem:

A publicidade foi formidável apresentando Ivana como a grande atração da revista.

Metido em longos vestidos prêtos e capas estampadas, fumando em longas piteiras

não foi dito nada sobre seu sexo, se homem ou mulher. E quando chegou ao palco

ninguém imaginou que na verdade fôsse um homem. Cantava como mulher, trajava-

se como mulher e apresentava o “charme” e o “sexy” das grandes francêsas das

“boites” cariocas. Depois o público descobriu que Ivana era apenas um homem

desempenhando o papel travesti. O “cartaz” aumentou. Aí além de trabalhar no

Recreio êle foi para o Monte Carlo onde é grande sensação do “show” da

madrugada naquela casa. (SERRA, 1953: 22)

Podem ser notados problemas de gênero nas citações sobre Ivaná transcritas acima. A

transgressão da drag queen ao binômio masculino/feminino na década de 50, pode gerar

inúmeras indagações acerca da fragilidade entre papéis de gênero, o próprio conceito de

gênero e suas relações fora do âmbito artístico.

Elege-se aqui a pesquisa e o estudo pelo campo cultural por apresentar, em certa

medida, a subversão exposta a normas e padrões que “consumiu” (ou ao menos balançou) o

sistema num movimento vindo do interior para o exterior, vislumbrando Ivaná como uma

protagonista na “destruição” de valores heteronormativos na sociedade branca, culta e com

muitos representantes das classes sociais mais altas na capital federal prestigiando seu

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trabalho e elogiando sua arte; apontando, em alguns casos, sua estética feminina como mais

agradável do que sua aparência masculina, quando não estava montada.

Ao tratar de identidades trans* neste período ou do próprio meio LGBT como um

todo, visto em Trevisan e Green, a repressão e subordinação a essas/es sujeitas/os abjetas/os

era intenso e aquela/e que não estivesse no padrão hetero e cisgênero de ser era dada/o como

doente e os guetos eram seus lugares de sociabilidades.

Ivaná, como uma drag queen, ou seja, que pode viver o dia-a-dia com os privilégios de

um homem, talvez não estivesse tão subjugada quanto uma travesti. Pelo fato de Ivaná ser

branca, europeia, artista e se passar por francesa naquele período devem ser levados em

consideração quando se pensa o porquê de ter tido certa projeção não só no Rio de Janeiro,

mas em território nacional, dado o alcance da mídia impressa (e do cinema) naquele período.

Ao se levar em consideração também o seu fazer artístico enquanto uma artista

múltipla nos espaços e fazeres desenvolvidos, chama a atenção a questão da performatividade,

não apenas no que tange ao gênero, mas também no possível entendimento da arte drag

enquanto uma performance. Ivaná não era apenas uma personagem criada por Ivan Damião,

era ela mesma a artista que tomava o destaque. Seria um alter ego? Provavelmente sim e não.

Sim por se tratar de uma persona desenvolvida por um ator, cantor, dançarino e costureiro

para um fim exclusivo: a atuação em espaços artísticos; e não por se tratar de algo que

transcende a uma personagem criada como um “eu ficcional”. Voltando à citação da revista

Machete escrita por Ivo Serra, seu nome – Ivan – já era quase esquecido, quem sobrevivia era

Ivaná.

O brilhantismo da drag queen, encontra-se justamente neste ponto, e não apenas na

paródia, caricatura ou qualquer outra coisa que tente reduzir o seu fazer como apenas um ato

de “imitar uma raxa”. A drag se coloca num entrecruzamento dos papéis atribuídos deveras

antiquado da polarização homem/mulher.

Figura 05 – Ivaná em É Fogo na Jaca

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Fonte: FUNARTE/Centro de Documentação e Informação em Arte - Acervo Walter Pinto. No verso desta

fotografia há a legenda: “É Fogo na Jaca Ato II – Quadro 3”.

A drag queen performa uma existência em que pano, tinta e peruca podem questionar

que as categorias de gênero por muito definidas como imutáveis, são construções

socioculturais entrevendo também a própria noção de sexo biológico, que gera outras

discussões para se pensar (BUTLER, 2015). A desconstrução desses pressupostos excludentes

propõe um trabalho de construir novos sentidos a partir das cinzas do que se fica quando as

manas, as monas, ocós e toda a gente pintosa coloca em xeque o sistema opressor a que

todas/os são submetidas/os.

Muitas questões acerca da identidade de Ivaná enquanto uma drag queen e possíveis

subversões aos padrões de gênero estabelecidos, na década de 50, ainda carecem de

amadurecimento através da pesquisa e da reflexão. As atuações profissional e artística dela

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nas peças teatrais precisam ser estudadas com mais detalhes e com mais importância, cabendo

esta tarefa a outro trabalho.

REFERÊNCIAS

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manchete. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, nº 41, pp. 243-264, 2001.

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