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Sociologias, Porto Alegre, ano 14, n o 30, mai./ago. 2012, p. 364-380 SOCIOLOGIAS 364 RESENHA Choque antropológico e o sujeito contemporâneo. Ulrich Beck entre a ecologia, a sociologia e a política AureA MAriA Zöllner iAnni * * Pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas (2009). Professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) (Brasil). E-mail: [email protected] Resumo A obra de Ulrich Beck sobre a Sociedade de Risco tem sido muito discutida e difundida no âmbito da teoria social contemporânea, porém, no Brasil ainda são poucos os seus títulos publicados. Este trabalho oferece uma oportunidade de aproximar o público brasileiro à obra desse autor. Os livros Ecological Enlighten- ment. Essays on the politics of the Risk Society e La Sociedad del Riesgo Mundial. En busca de la seguridad perdida, de Ulrich Beck, consistiram no material da análise. O artigo é uma reflexão crítica sobre o “choque antropológico” e a conformação da política nas sociedades contemporâneas, segundo as formulações desse autor. Palavras-chave: Sociedade de risco. Choque antropológico. Sociologia. Política. Ecologia. Anthropological shock and the contemporary subject. Ulrich Beck on ecology, sociology and politics Abstract The work of Ulrich Beck on the Risk Society has been widely discussed and disseminated in the field of contemporary social theory, although few of his books have been published in Brazil. This article provides an opportunity to present this author’s work to the Brazilian reading public. His two books entitled Ecological

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Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 364RESENHAChoque antropolgico e o sujeito contemporneo. Ulrich Beck entre a ecologia, a sociologia e a polticaAureA MAriA Zllner iAnni* Ps-doutora pela Universidade Estadual de Campinas (2009). Professora da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo (USP) (Brasil). E-mail: [email protected] obra de Ulrich Beck sobre a Sociedade de Risco tem sido muito discutida edifundidanombitodateoriasocialcontempornea,porm,noBrasilainda so poucos os seus ttulos publicados. Este trabalho oferece uma oportunidade de aproximar o pblico brasileiro obra desse autor. Os livros Ecological Enlighten-ment. Essays on the politics of the Risk Society e La Sociedad del Riesgo Mundial. En busca de la seguridad perdida, de Ulrich Beck, consistiram no material da anlise. O artigo uma reflexo crtica sobre o choque antropolgico e a conformao da poltica nas sociedades contemporneas, segundo as formulaes desse autor. Palavras-chave:Sociedadederisco.Choqueantropolgico.Sociologia.Poltica. Ecologia.Anthropological shock and the contemporary subject. Ulrich Beck on ecology, sociology and politicsAbstractThe work of Ulrich Beck on the Risk Society has been widely discussed and disseminated in the field of contemporary social theory, although few of his books have been published in Brazil. This article provides an opportunity to present this authorsworktotheBrazilianreadingpublic.HistwobooksentitledEcological Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 365Enlightenment. Essays on the Politics of the Risk Society and La Sociedad del Riesgo Mundial. En busca de la seguridad perdida constitute the basis of this analysis. This article is a critical reflection on anthropological shock and politics in contempo-rary societies, in accordance with Ulrich Becks formulations.Key words: Risk society. Anthropological shock. Sociology. Politics. Ecology.O contexto do estudoUlrich Beck, terico da Sociedade de Risco, tem sido um autor pouco discutido pelas cincias sociais brasileiras, ainda que sua obra fundante, So-ciedade de Risco. Rumo a uma nova Modernidade, date de 19861. O estudo do conjunto da sua obra sobre a Sociedade de Risco, guarda, nesse sentido, umcertoineditismonoBrasil,considerando-sequeamaioriadosttulos sobre o tema ainda no esto disponveis em edies brasileiras2. A obra de Beck sobre a Sociedade de Risco est compilada em qua-trolivrose,noBrasil,seustrabalhostmtidomaiorpermeabilidadeno campo da produo ambiental (Ferreira 2006, Lieben e Romano-Lieben 2002, Lenzi 2005, Bosco 2011), ainda que no se caracterizem como de sociologia ambiental strictu sensu. O presente estudo compe uma pesquisa mais ampla sobre a teoria da Sociedade de Risco de Ulrich Beck3. Neste trabalho sero objeto de 1 O primeiro trabalho de Ulrich Beck, intitulado Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Suhrkamp, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986, foi editado no Brasil com o ttulo Sociedade de Risco. Rumo a uma outra Modernidade. Trad. Nascimento, S. , 1 Edio. Editora 34, 2010. 2 Alm do primeiro livro sobre a Sociedade de Risco editado no Brasil somente em 2010 (ver nota 1), Beck publicou sobre o tema os dois ttulos objeto deste estudo, e o livro intitulado World Risk Society. 1999. UK:Polity Press and Blackwell Publisher Ltda., perfazendo um con-junto de quatro livros. Considera-se que esses quatro volumes configuram sua obra propria-mente autoral sobre a Sociedade de Risco. 3 Ianni, A. M. Z. Para pensar ambiente e sociedade: a contribuio teoria da Sociedade de Risco. Projeto de pesquisa subvencionado pela FAPESP, 2011.Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 366discusso dois livros do autor: Ecological Enlightenment. Essays on the po-litics of the Risk Society e La Sociedad del Riesgo Mundial. En busca de la seguridad perdida. De acordo com a cronologia da publicao dos quatro livros sobre a Sociedade de Risco, esses ttulos correspondem ao segundo e ao quarto ttulos publicados, um em 1991 e o outro em 2007, datas das primeiras edies em alemo. Neste trabalho essas edies corresponde-ro, sempre, s citaes dos anos de 1995 e 2008, respectivamente. Com base nos dois livros mencionados, apresenta-se a formulao de choque antropolgico feita pelo autor, e discute-se a relao que ele estabelece entre essa formulao, a sociologia e a poltica.As obras em anliseOlivrointituladoLaSociedaddelRiesgoMundial.Enbuscadela seguridad perdida, conforme esclarecimento do prprio autor no Prlogo, pretendia ser uma traduo em alemo de uma outra obra de sua autoria, amplamente conhecida e divulgada em diversos idiomas. Tendo publicado originalmente o World Risk Society em 1999, que foi traduzido para mais de dez idiomas, Beck decide, em 2007, public-lo em alemo, sua lngua ptria.Ao tomar essa deciso, ele diz: Muitas coisas aconteceram, tivemos que aprender muito sobre os riscos globais desde ento. De modo que nasceu um novo livro. (Beck 2008, p.15)4.As leituras desse livro, publicado em 1999 e reescrito oito anos de-pois,umapretensareedio,revelamoquantoaqueleoriginaltransfor-mou-seemoutro.Doriscoautoproduzidopelassociedadesindustriais, 4TodosostrechosdasobrasdeBeckreproduzidosnesteartigoforamtranscritosdeforma livre, do ingls e do espanhol, pela autora. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 367tema estruturante da publicao de 1999, Beck avana para a poltica em mbito mundial, discutindo seus aspectos gerais e especficos - por con-textos de pases, regies, culturas; por esferas de deciso e execuo po-ltica; por instituies polticas, seus interesses, fracassos e inconsistncias; por movimentos e atores sociais diversos. Sob forte impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001 e os subsequentes ataques de grupos islmi-cos praticados especialmente na Europa e no Oriente Mdio, ele introduz oconceitoderiscointencionalmenteproduzido,tentandocompreender uma ao que une f e poltica no limiar do sculo XXI. Esmia e desdobra cadaconceito,cadacategoria,cadaformulaofeitaemsuasprodues anteriores.Intrigadocomfatosefenmenososmaisdiversos,provocaa sociologia a problematiz-los e a encontrar, seno respostas, perguntas per-tinentes. Tenta vislumbrar, ou desenhar, o que viria ser a arquitetura desta segunda modernidade, encontrar o nexo de conflitos sociais to diversos e inumerveis e uma nova forma de sociabilidade poltica. Ao final da leitura fica evidente que se tem um novo livro. No em sentido estrito apenas, mas, sobretudo, um desdobramento da sua pr-prialinhaterica,eatmesmodasuaperspectivaepistemolgica.No ttuloLaSociedaddelRiesgoMundial.Enbuscadelaseguridadperdida ele enfatiza, e alcana, de forma plena, a esfera da poltica.Poder-se-ia afirmarque,nele,Beckmergulhadefinitivamentenumasociologiapro-priamente poltica.Sabe-se que esse trabalho foi reescrito depois da produo de uma srie de outros sobre os temas da globalizao e do cosmopolitismo. A re-tomada da sua segunda obra sobre a Sociedade de Risco, portanto, sendo posterior, no poderia deixar de incorporar esse percurso intelectual que lhe permitiu amadurecer as reflexes sobre a esfera poltica, sobretudo em mbito mundial. Ao retomar firmemente o tema da poltica nesse quarto li-vro, de 2007, Beck chancela, de forma indelvel, a poltica sua sociologia. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 368O argumento que aqui se prope que h, no bojo da teoria da So-ciedade de Risco, em Beck, o desenvolvimento de uma sociologia poltica beckiana, da qual esse livro expresso.Aleituradooutrolivroaquiemanlise,EcologicalEnlightenment (1995)-evidentementeumttulobastanteprovocativoequeremete Escola de Frankfurt5 -, revelou, surpreendentemente, que as bases da for-mulao poltica de Beck podem ter sido estabelecidas nesse livro, publi-cado originalmente em alemo, em 1991 (ou seja, mais de 15 anos antes de La Sociedad del Riesgo Mundial. En busca de la seguridad perdida). O ttulo Ecological Enlightenment. Essays on the Politics of the Risk Society re-mete a um tema que Beck persegue desde seu primeiro livro sobre a So-ciedade de Risco: mostrar como a questo ecolgica, e no propriamente ambiental, fez emergir impasses de natureza social que rompem com as tradies dos pensamentos sociolgico e poltico modernos. Quais so as consequncias da questo ecolgica [grifo nos-so] para as dinmicas polticas? O problema ambiental no ,demodoalgum,umproblemadonossoambiente[grifo nosso]. uma crise da prpria sociedade industrial, afetando profundamenteosalicercesdasinstituies;riscossoin-dustrialmenteproduzidos,economicamenteexternalizados, juridicamente individualizados, e cientificamente legitimados (Beck,1995,p.127).Atransformaodosefeitoscolaterais secundriosdaproduoindustrialemquestesglobaisde potencial explosivo, no um problema ambiental, mas uma crise institucional flagrante da sociedade industrial, com um considervel significado poltico (Beck, 1995, p.2). 5 Uma das obras marcantes da denominada Escola de Frankfurt, ou Teoria Crtica, foi o livro de ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. 1985. Dialtica do Esclarecimento. Fragmentos Filosficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Em alemo o ttulo Dialektik der Aufklarng Philosophische Fragment. A referncia ao termo esclare-cimentonolivrodeBeck,decertaforma,remeteaAdornoeHokheimer,sugerindo(sem explicitar) o intento de, por meio da questo ecolgica, estabelecer a crtica, ou reposicionar o pensamento moderno - a crise como momento de reestruturao fundante.Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 369Paradoxalmente ao que o ttulo Ecological Enlightenment. Essays on the Politics of the Risk Society sugere, o foco desse livro, de fato, a socio-logia e os desafios que lhe so postos pelos processos sociais contempo-rneos, nos quais a problemtica ecolgica determinante. Nesse livro, seu intento o de construir a sua prpria crtica sobre os desafios am-bientais: de que a questo ecolgica na segunda modernidade6 desafia as bases estruturantes da teoria social moderna em suas grandes vertentes narrativas, tradicionais ou clssicas. Logo no primeiro captulo, ele diz que:Oqueestavaemjogonovelhoconflitoindustrialdotra-balhocontraocapitalerampositividades:lucros,prospe-ridade, bens de consumo. No novo conflito ecolgico, por outro lado, o que est em jogo so negatividades: perdas, devastao, ameaas. (Beck, 1995, p.3). E mais adiante, nesse mesmo captulo, ele afirma:No conflito do capital versus trabalho, a reduo dos sal-rios se reflete no balancete como aumento do lucro. Por ou-tro lado, no conflito ecolgico, onde o que est em jogo so negatividades, no h nenhuma articulao direta possvel entre interesses conflitantes (Beck, 1995, p.4). Ser, portanto, a partir da problemtica ecolgica - e sua expresso social -, que ele vai olhar os desafios polticos, adentrando num campo que se pode identificar como o da sociologia poltica. 6EmBeck,modernorefere-sesempresociedadeindustrialeaoconhecimentocientfico produzido, principalmente, at o sculo XIX. Acompanhando o debate sociolgico, ele se re-ferir etapa contempornea como uma segunda modernidade, modernidade ps-industrial, industrial tardia ou tardo-moderna. Neste trabalho, em acordo com Beck, as formulaes so-bre o moderno estaro sempre referidas aos conhecimentos e marcos da sociedade industrial, e o termo segunda modernidade corresponde sociedade ps-industrial de fins do sculo XX; perodo tambm mencionado como contemporneo. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 370A poltica em Beck: por meio da ecologia e da autocrtica sociolgica O estudo no pretendeu esgotar a concepo de poltica ou a teoria poltica presente na obra de Ulrich Beck sobre a Sociedade de Risco. O objetivo foi apenas o de recuperar o percurso do autor no esforo dessa construo; quer dizer, buscou-se captar a trajetria que Beck percorre e que resulta na construo de uma sociologia poltica. Asleiturasdosdoislivrospareceramsugerirquetomaraecologia como um problema de natureza sociolgica foi o fator que o remeteu autocrtica sociolgica e poltica. E nesse percurso o choque antropo-lgico parece ser o fenmeno que marca a inflexo da sua crtica te-rica; por isso o foco da presente anlise situa-se principalmente no livro Ecological Enlightenment. Essays on the politics of the Risk Society, porque nelequeemergeaquestodaecologiacomoproblemadenatureza sociolgica e desestabilizadora da poltica. Nesselivro,possvelverificarclaramenteomomentoemqueo autorrealizaainflexodoseupensamento;quandoeledemarcaseus compromissosterico-epistemolgicoscomasociologia,diferenciando-se no cenrio do debate ambiental. Da a tese que aqui se defende, que, emBeck,apolticairrompepormeiodaproblemticaecolgicaedo choque antropolgico que ela desencadeia. No conjunto da obra sobre a Sociedade de Risco, o autor trabalha comotemadapolticadesdeoseuprimeirolivro(Ianni2010,Bosco 2011), mas o que aqui se enfatiza que a converso para uma sociologia poltica acontece mais especificamente em Ecological Enlightenment. Es-says on the politics of the Risk Society. Noprimeirolivro,SociedadedeRisco.RumoaumaoutraModer-nidade, publicado em 1986, Beck dedica toda a ltima seo da tercei-rapartedemarcaopoltica.Masnesselivro,noficaevidentea Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 371construo analtica que ele faz sobre o processo social vivenciado pela populao alem, ps desastre de Chernobyl. Essa construo aparece de forma cristalina em Ecological Enlightenment. A ideia da converso do autor sociologia poltica resultado des-saleituraparticular,ouseja,dointeresseporessaconstruoanaltica sinteticamentenominadaporeledechoqueantropolgico,presente em Ecological Enlightenment e no explicitada nos seus demais trabalhos. Partindo-se do pressuposto de que a sociologia poltica volta-se para o cenrio das situaes espaciais, temporais e institucionalmente defini-das,ouemtransformaonombitodasociedadecivil(Souza,2012), equenaveganainterfacedasinstitucionalidadespolticasdadaseda vida privada, considera-se que em Ecological Enlightenment que Beck explicita, por meio da sua anlise, como o desastre atmico alterou todo o cenrio do tecido social alemo, da esfera privada s esferas pblica e institucional daquela sociedade. No captulo 4 desse livro, intitulado Choque Antropolgico: Cherno-byl e os contornos da Sociedade de Risco, o autor expressa muito particu-larmente a sua anlise sobre o desastre atmico. O ttulo diz tudo: aborda-se o acidente ecolgico e a insegurana social que ele desencadeia. Questesrelativasstransformaesantropolgicasnasociedade contempornea aparecero em outros trabalhos de Beck, mas nesse seu segundo livro que o termo choque antropolgico aparece pela primeira vez, e referido transformao da conscincia dos sujeitos; uma questo que, segundo o autor, merece ateno especial da sociologia. Ao abrir o captulo, ele informa o leitor de que se trata da reedio de um ensaio sobre o acidente atmico, publicado em 1986 na imprensa local alem.Este ensaio, escrito para o amplo pblico leitor intelectua-lizadodojornalMerkur,tentacaracterizarecompreender Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 372essa transformao da conscincia [grifo nosso], em termos sociolgicos (Beck 1995, p.64).E explica: Em face desse perigo, nossos sentidos nos falham. Todos ns umaculturainteiraficamoscegosmesmoquevendo. Ns vivenciamos um mundo inalterado para os nossos sen-tidos, por trs do qual houve contaminao e perigo ocultos nossavisodefato,paranossaplenaconscincia.A duplicao do mundo ocorre na era nuclear. A ameaa ao mundo por trs do mundo permanece completamente ina-cessvel aos nossos sentidos (Beck 1995, p.65).Comosev,aquestopolticaemBeckserdemarcadaapartir da conscincia dos indivduos. No uma conscincia que se produz com relao ao outro - a classe social ou a comunidade, por exemplo, segundo os marcos da sociologia moderna, clssica -, mas em relao experincia antropolgica de insegurana e de incerteza. E ser com referncia a essa mudana antropolgica da conscincia que Beck articular a questo de-mocrtica na poltica, na segunda modernidade.Na sociedade de risco, cujos contornos se tornam aparentes aqui, surgem desafios inteiramente novos para a democracia. (Beck 1995, p.70).Segundoele,odesastredeChernobylpeempautanoapenas opodernuclearouauniversalizaodoenvenenamentoqumicodas populaes, mas, sobretudo, a autonomia da sociedade numa economia guiada pelo desenvolvimento cientfico-tecnolgico. ParaBeck,adiscussodosriscosgiraemtornodefalsasalternati-vasnamedidaemqueasociedadeindustrialproduzalternativasquese opementresi,situadasqueestoentreareindustrializaonosmarcos do desenvolvimento (business ou mais industrializao) e a demanda pela democratizao social do desenvolvimento tcnico-econmico. Essa con-tradio resulta num insucesso das polticas que, imersas nessas diferentes Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 373possibilidades, encontram-se num cenrio de mltiplos consensos passveis de serem pactuados. Sobre o acidente de Chernobyl, por exemplo, Beck dirqueosdiferenteseinmerosconsensospossveissobreosnveisde tolerncia contaminao que podem ser suportados pelas populaes so uma expresso dessa contradio, ou seja, para ele, na Sociedade de Risco os sujeitos e as instituies que vivenciam e enfrentam situaes de insegu-rana produzem diferentes e diversas possibilidades de consenso poltico. A propsito, o que significa perigoso? (Beck 1995, p.71).estaquestosociopolticacrucial,quevemgradualmente emergindo atravs dos conflitos sobre o espectro das novas tecnologias, bloqueada, contudo, pela discusso de falsas alternativas (Beck 1995, p.70-71).O acidente nuclear no Japo em maro de 2011 reedita esse pro-cesso quando o governo, a empresa administradora da usina, a opinio pblica, as corporaes cientficas, os governos de outros pases que tm seus cidados morando em territrio japons e os vrios atores sociais que vocalizam a sociedade civil japonesa, discutiam (e ainda discutem), alte-rando e alternando a cada dia, os nveis de tolerncia contaminao, o raio de distncia que se deveria manter dos reatores, o nvel de periculo-sidade da contaminao das guas ocenicas e lenis freticos que abas-tecem a populao, o perodo ideal de retorno normalidade e aos locais de residncia, a tolerncia ao consumo dos gneros alimentcios, etc. etc. Para Beck, essa discusso oblitera, encobre ou ofusca o carter social da construo do risco. Os riscos so constructu e definies sociais sobre o pano de fundo das relaes de definio a que correspondem. (Beck, 2007, p.55).A construo simblica da definio do risco que envolve os diferen-tes sujeitos, atores e instituies (polticas, cientficas, agentes da regulao estatal, gestores pblicos dos sistemas e rgos de proteo e seguridade social, movimentos e organizaes da sociedade civil, poderes executivos elegislativosnosdiferentesnveisdosdiferentespasesenvolvidosouin-Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 374teressados,etc.),acabapordesnudarumfenmenopereneeintrnseco, aindaqueimperceptvel,sociedadecontempornea,odequehalgo que escapa interveno poltica nos moldes da tradio moderna e suas instituies clssicas (Estado, partidos, sindicatos, instituies de pesquisa, associaes civis diversas, etc.): A imperceptibilidade das ameaas e sua inevitabilidade so extremamente instveis. (Beck 1995, p.71). esse fenmeno poltico que, segundo Beck, aprofunda e agua a percepo de fragilidade sentida pelos indivduos, pois no bojo da insegu-rana sobre o perigo revela-se, simultaneamente, a profunda fragilidade das instituies modernas, vigentes. Choqueantropolgicoparaele,portanto,expressanoapenasa falnciadepotencialidadesbiolgicashumanas(queforamdecisivas para a conformao e construo dos processos sociais na primeira etapa da modernidade, como por exemplo, o uso dos sentidos e capacidades motoras considerando-se o processo produtivo industrial amplamente an-corado na utilizao dos membros do corpo, da viso, etc. - capacidades e sentidos que passam a ser como que enganados, ludibriados, pela invi-sibilidade e imperceptibilidade dos riscos; neste caso, o atmico), mas ex-pressa tambm a falncia das instituies polticas modernas em sentido estrito e amplo. Uma falncia que envolve, sobretudo, os pilares da pro-teo social de indivduos, sujeitos, cidados. Para Beck, a modernidade, e com ela o homem moderno, v dissolver, assim, a sua consistncia, as bases da sua estruturao, sustentao. Ser, portanto, por meio desses dois componentes do choque an-tropolgico o dos sentidos e o da insegurana social - que ele mergu-lhar no cuore da poltica:Algoqueningumpreviaequenenhumadasteoriasso-ciais clssicas antecipou ou mesmo levou em considerao est agora ocorrendo: a destradicionalizao atinge os des-tradicionalizadorescomtodaafora.Masessamudana Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 375nos rumos dos acontecimentos no to equivocada como podeparecerinicialmente.Consistemaisnacontinuidade damodernidade,cujadinmicaintrnsecadedissoluo estende-sesobsuaformasocial,asociedadeindustrial. Nelaestoenvolvidasasconsequnciasambguaseinvis-veis. Cada um dos monoplios que vm se desestruturando hoje, encontra-se em contradio com os princpios da mo-dernidade. O monoplio da poltica esteve sempre baseado numa democracia parcial, deixando a transformao social para a tecnologia e a economia, para a causalidade cega do mercado (Beck 1995, p.73).Focado na problemtica ecolgica e na questo democrtica, tendo por base o sujeito contemporneo e sua experincia vital de segurana-insegurana, ele chega lassido das instituies polticas modernas, ine-ficientes, ineficazes e reprodutoras de dinmicas desiguais, autoritrias e restritivas da modernidade. Como se v, Beck no chega poltica pela categoria poder, deter-minantenasnarrativasdasteoriaspolticaesociolgicaclssicas,eque marcaramtodaaproduodascinciassociaisnosculoXIXegrande parte do sculo XX. Ele se volta para a questo democrtica contempor-nea a partir das percepes e das construes sociais e simblicas (Berger e Luckmann 1974, Simmel 2006) que os indivduos elaboram mediante processos reais, vvidos e inusitados, muito prprios s dinmicas sociais desta segunda modernidade. Com a experincia antropolgica vivenciada pelos sujeitos envolvi-dos em situaes de risco, as instituies modernas, sem represent-los de fato, e sem (co)responder tambm aos processos reais por eles experien-ciados, descolam-se como sistemas abstratos e, ao faz-lo, reflexivamen-te,desencadeiamsuaprpriacrise,quesimultaneamenteumacrise social em sentido amplo. A dissonncia entre a experincia individual contempornea e a de-generescncia das instituies modernas, posta em evidncia pela proble-Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 376mtica ambiental por meio da experincia antropolgica da insegurana, levarBeckaocernedapoltica,alertandoascinciassociaisparaque revejam suas proposies do sculo XIX, construindo outras.Paraestabeleceropontodepartidadeumateoriadaso-ciedade de risco no sculo XXI necessria uma crtica das cincias sociais. A sociologia, em parte superespecializada, em parte superabstrata, em parte enamorada de seus m-todos e tcnica, perdeu a perspectiva da dimenso histrica da sociedade e, por consequncia, no est preparada para (nem disposta a) dar-se conta de qual sua tarefa, a saber, situar a transformao atual do seu objeto de investigao noprocessohistrico-socialedecifrarassim,diagnostica-mente, a tarefa histrica da nova era da modernidade. Ao praticar a abstinncia histrico-social, a imaginao histri-ca da sociologia se tornou anacrnica e, ao mesmo tempo, intil para fazer o que precisamente constituiu sua fora ao surgir em princpios do sculo XX: detectar e sacudir a ob-sesso apocaltica de suas categorias e teorias. Em vez disso, se perpetua com obviedades sociolgicas saturadas de da-dos massivos que obscurecem os processos e indicadores da profunda insegurana da modernidade em si mesma (cujo espectro vai da autoaniquilao ao autoconhecimento com toda sua sucesso de crticas socioculturais e processos de reflexo) (Beck 2008, p.261).Ao trmino do livro Ecological Enlightenment. Essays on the politics of the Risk Society ele apresenta trs teses para a busca de caminhos rumo a uma modernidade alternativa:1.Aproduoindustrialdasociedadeproduzsuasconsequncias.Nesse sentido, a produo de riscos, ameaas e consequncias incontrolveis e indesejveis, sendo constante, pe em questo a garantia segura da prote-o privada, o que, de alguma forma, remete ao legado da proteo social. A chave para combater a destruio do meio ambiente no estnoambienteemsi,nemnumamoralidadeindividual diferenciadaounumapesquisaouticadenegciosdife-Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 377rentes; por sua natureza, jaz no sistema regulatrio das insti-tuies que esto se tornando historicamente questionveis. Sem a sociologia, a questo ecolgica permanecer obscu-raparaasociedadeeimpenetrvelao.Asociologia, contudo,quetransferesuasexperinciassobreatransfor-maodasociedadequealcanouoestadodebem-estar para a questo ecolgica, pode fazer mais do que simples-mentecriticaraideologiaqueopeaperigosapolticade confundirnaturezaesociedade,queest,atualmente,se disseminandoportodaparte.(...)Vistoqueaquestoda causalidadenuncaforneceumarespostaaoproblemada responsabilidade, a questo do bem-estar poderia e ainda spodersercompreendidapormeiodeconvenese acordos sociais (Beck 1995, p. 140-141).Para Beck, portanto, cabe retomar e rever, em novos patamares, as questes relativas ao Estado de Proteo Social, agora em contexto histricomoldadoporvivnciassociaisnovas,inusitadas,denovas sociabilidades.2. A produo industrial da sociedade produz sempre o seu oposto. Nesse sentido, os nveis de tolerncia e aceitabilidade dos riscos so, simultanea-mente, proibidos e permitidos. a velha assertiva do prprio Beck em toda a sua teoria da Sociedade de Risco, de que a nsia pela controlabilidade das consequncias socialmente produzidas cresce na mesma medida dos clamorespelocontroleracional,instrumental,queproduz,entretanto,o seu oposto, a incontrolabilidade. O ponto central que o veredicto ofi-cial da no toxicidade nega a toxicidade da toxina e, assim, torna-se um salvo-conduto para a poluio. (Beck 1995, p.141). A contradio entre a permisso e a negao social do risco, ou entre a admisso dos nveis de risco e a limitao dos mesmos, desnuda a crise da racionalidade moderna, convidando os cientistas sociais a um esforo semelhante ao realizado no sculo XIX: Ns precisamos reconstruir a teoria da racionalidade instru-mental da burocracia como uma teoria Potemkin. (Beck 1991, p.141).Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 3783. Considerada a dinmica social em curso, o que se observa uma cor-rida para explorar os riscos e as ameaas que promove uma nova arqui-tetura dos mercados, das demandas individuais e coletivas, dos arranjos institucionais.Nessesentido,paraBeck,reprimir,negarouimpedir as ameaas a nica forma legtima, neste momento, de atividade so-cial. Trata-se, sobretudo, de um tempo de aes simblicas contra os agentes da sociedade industrial, capitalista, ali, onde a noo de uni ou monocausalidade dos riscos e ameaas predomina.Os objetivos das instituies tornam-se ambguos e dbios, noinfrequentementeenriquecidosporoutrosobjetivos paralelos: e assim no apenas ofuscam seus perfis e estru-turas, mas tornam-nas dependentes das intervenes e dos indivduos (Beck, 1995, p.143).E conclui: A crise ecolgica est privando as instituies das bases de sua autonomia. (...) Tudo precisa ser reinterpretado (Beck 1995, p.143).Consideraes Finais A leitura de Beck, com foco nos riscos socialmente produzidos e o choque antropolgico deles decorrentes, pode instigar reflexes sobre a nossa realidade, a brasileira. No se teve no Brasil um acidente similar ao de Chernobyl e, por isso, as correlaes passveis de serem estabelecidas entre os processos so-ciais e eventuais transformaes antropolgicas no podem ser imediatas, diretamente transpostas das formulaes de Beck. possvel, no entanto, familiarizar-se com a estrutura metodolgica do seu pensamento, aproxi-mar-se da sua construo terica e conceitual, olhando outras realidades.A divulgao dos trabalhos de Ulrich Beck pode, nesse sentido, con-tribuir para uma aproximao do leitor sua obra - como j se disse, um autor ainda pouco explorado no mbito da teoria social brasileira. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p. 364-380SOCIOLOGIAS 379Estudos sobre a sua obra podem instigar, tambm, a pesquisa sobre o contemporneo, abarcando diferentes campos da teoria social: a socio-logia, a poltica, a antropologia, a problemtica ambiental, a da incorpo-rao da cincia e tecnologia, a da insegurana, do risco. HumaconstruotericaslidaemBeck,comgrandedensidade epistemolgica e complexidade sociolgica que um trabalho dessa nature-za requer. Por isso, a sua produo pode iluminar muitos outros trabalhos. Pormeiodasuanarrativainquieta,oautorconvidaapensarnoobscuro, no incerto, no nebuloso, no imperceptvel, como formas de aproximao e visibilidade do real. E diante das presses racionalizadoras da mundializao da cincia, Beck faz, ainda, um outro convite. Ao construir o seu pensamento ancoradonarealidadealemenasuaprpriaexperinciascio-histrica mesmo que no restrito a ela , ele convida os que queiram debruar-se sobre suas prprias realidades e experincias a faz-lo, reafirmando um velho compromisso das cincias sociais com as diversas formas de vida e os diferen-tes movimentos das populaes e suas culturas, suas histrias. RefernciasBECK,U.EcologicalEnlightenment.EssaysonthepoliticsoftheRiskSociety. TranslatedbyMarkA.Ritter.NewYork:HumanityBooks,1995.Originalmente publicado como: BECK, U. Politik in der Risikogesellschaft. Frankfurt am Main: Copyright Sihrkamp Verlag, 1991.BECK,U.LaSociedaddelRiesgoMundial.Enbuscadelaseguridadperdi-da. Traduccin de Rosa S. Carb. Barcelona-Buenos Aires-Mxico:Paids, 2008. Originalmentepublicadocomo:BECK,U.Weltrisikogesellschaft.Frankfurtam Main: Suhrkamp Verlag, 2007.BERGER, P. L. e LUCKMANN, T. A Construo Social da Realidade. Trad. Floria-no de Souza Fernandes. Petrpolis: Editora Vozes Ltda, 1975.BOSCO, E. M. 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