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42 DEMOCRACIA VIVA Nº 34 E N T R E V I S T A ENTREVISTA Por AnaCris Bittencourt e Iracema Dantas

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42 DEMOCRACIA VIVA Nº 942 DEMOCRACIA VIVA Nº 34

E N T R EV I S T A

E N T R E V I S T APor AnaCris Bittencourt e Iracema Dantas

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JAN / MAR 2007 43

Baiana de Ilhéus, Dulce Vasconcellos, ativista do movimentonegro, aos 67 anos, tem uma trajetória singular no estado doRio de Janeiro. Foi uma das primeiras mulheres negras aocupar um cargo de chefia na companhia de eletricidade doestado, a Light, e uma das primeiras formandas negras daUniversidade Federal Fluminense (UFF), em 1965. Em plenaditadura militar, participou do movimento que deu origem aoMovimento Negro Unificado; esteve à frente do projeto-piloto de pré-vestibular comunitário para aumentar o acessoda juventude negra e pobre à universidade; organizou oCentro de Estudos Brasil-África (Ceba), reunindo em suaprópria casa, em São Gonçalo, um grupo de professores eprofessoras que inovou ao valorizar o ensino da história dospovos africanos e o debate sobre a questão do preconceitoracial nas escolas; participou da fundação do SindicatoEstadual dos Profissionais de Ensino (Sepe), no Rio deJaneiro, e do movimento pela reforma fundiária no estado,relacionando o não-acesso à terra à questão do preconceitoracial, entre outras façanhas.

“Acho isso muito bom, ter recebido uma missão e terpodido realizar essa missão sem extremismos, algo que avalioque consegui fazer. Não gosto de brigar, não xingo a mãe deninguém. Se sentir que alguém está me discriminando, vouquerer fazer a cabeça da pessoa”, afirma. Professora jáaposentada, não descansa. É integrante do ConselhoMunicipal de Defesa dos Direitos do Negro (Comdedine) e doConselho Municipal de Saúde, e ainda preside o Centro deEstudos e Divulgação das Culturas Negras (Cedicun) emCampo Grande, zona oeste carioca. Em fevereiro de 2007,foi homenageada pelo Instituto de Pesquisas e EstudosAfro-Brasileiros (Ipeafro), tendo recebido das mãos doprofessor Abdias Nascimento um quadro pintado por ele.No texto divulgado à platéia presente à homenagem, estáescrito: “Incansável lutadora, a professora DulceVasconcellos está na linha de frente da batalha pelaeducação da população afrodescendente”. Conheça umpouco melhor essa história nas próximas páginas.

Dulce Vasconcellos

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Democracia Viva – Você éde Salvador?Dulce Vasconcellos – Não, sou baiana de

Ilhéus, a terra do cacau. Vim para o Rio trêsvezes: quando bebê, com 7 anos de idade e,definitivamente, aos 10 anos. Em 19 de feve-reiro, completei 67 anos. Então, posso dizerque estou há quase 57 anos no Rio. Primeiro,fui morar em São Gonçalo e, desde 1980, moroem Campo Grande. Naquela época, vinha muitagente do Nordeste para o Rio de Janeiro. Nósviemos em um navio cargueiro, porque o na-vio de passageiros era muito caro e não tínha-mos condições de pagar.

Democracia Viva – Por que saiude Ilhéus?Dulce Vasconcellos – Foi uma questão da

minha mãe. Lá, não tínhamos condição nenhu-ma de progredir. É como sempre digo: há osque nasceram no berço de ouro do cacau e osque vieram da descendência dos escravos. Em1946, minha mãe falava que as madames deIlhéus não sabiam que a escravidão já haviaacabado. E a gente convivia muito próximo comtodo luxo e toda riqueza e também com todapobreza, muito bem descritos por Jorge Ama-do no livro São Jorge dos Ilhéus e em outrosromances dele.

A escola pública que freqüentei em Ilhéus,por dois ou três anos, era na parte rica da cida-de. Para minha mãe, a cidade não nos oferecianenhum futuro. Lembro que os filhos dos ricosestudavam em colégios católicos, aquela coisamuito presente na história do Brasil. As possi-bilidades para as pessoas pobres eram muito

pequenas. E, pela declaração da minha mãe,vocês podem perceber que ela não tinha tem-peramento para trabalhar em casa de família.

Da primeira vez que viemos para o Rio – esó lembro de ouvi-la contar –, meu pai veiona frente. Eu era bebê, ele era mulherengo eela resolveu voltar. Quando eu tinha 7 anos eviemos novamente, ela não conseguiu traba-lhar em casa de família e retornamos a Ilhéus,mais uma vez. Na terceira vez, aí sim, ela foitrabalhar no Moinho Inglês e, depois, numafábrica de sardinhas em São Gonçalo. Então,ela saiu desse ciclo de trabalhar em casa defamília. Fui estudar, porque ela sempre feztudo para que eu estudasse.

Democracia Viva – Quem da suafamília veio para o Rio?Dulce Vasconcellos –Na última e defini-

tiva vez, minha mãe veio na frente. Depois,vim com minha avó, uma pessoa também im-portantíssima na minha vida. Sempre digo queela deveria ter recebido o diploma de cursosuperior junto comigo. Foi um sacrifício gran-de de minha parte, porque morava em SãoGonçalo, trabalhava na rua Marechal Floriano,na Light, e estudava em Niterói, no Ingá. Faziaesse trajeto todo de barca porque ainda nãotinha a ponte Rio-Niterói. Inicialmente, eraaquela barca da Cantareira, bem lenta. Depois,vieram as lanchas mais rápidas. Hoje, tem essaque faz em sete, dez minutos.

Democracia Viva – Quandocomeçou a trabalhar?Dulce Vasconcellos – A partir dos 17 anos,

comecei a trabalhar para voltar a estudar. Tiveque parar os estudos no segundo grau. Em SãoGonçalo, não tinha escola pública para o giná-sio e minha mãe pagou para eu fazer o cursoginasial. Foi um grande sacrifício. Fui para osegundo grau que, na época, era dividido: con-tabilidade, científico e clássico. Queria fazer oclássico, queria estudar línguas, mas fui para acontabilidade, à noite, e detestei. Mesmo as-sim, era boa aluna e o dono da escola me ofe-receu uma bolsa, mas detestei tanto que nãoquis. Então, parei de estudar. Quando comeceia trabalhar, voltei a estudar. Fiz aquele antigomadureza e, em seguida, um cursinho que mepossibilitou entrar para a faculdade.

Democracia Viva – Você se formouem quê?Dulce Vasconcellos – Em letras. Eu me for-

mei em 1965, peguei a inauguração da UFF [Uni-versidade Federal Fluminense]. Queria fazer por-tuguês e francês, línguas neolatinas na época,mas não sabia falar francês suficientemente bem

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para ser aprovada. Sabia a gramática, que ti-nha dado na escola, mas não falava. Na época,tinha prova oral. Então, fui reprovada, mas fizde novo porque queria entrar de qualquermaneira. Aí, fiz letras clássicas e não me arre-pendo. Peguei uma reforma universitária, umanova divisão dos cursos, e fiz português e gre-go, só que estudar latim e grego trabalhandoera muito difícil para mim.

Democracia Viva – Seu pai tambémcontribuiu para seus estudos?Dulce Vasconcellos – Não. Entretanto, além

de todo o sacrifício da minha mãe e da minhaavó, tive um padrasto muito bom, que tambémme deu a maior força e nunca questionou ofato de a minha mãe fazer aquele esforço todopara que eu estudasse.

A outra vantagem é que meus irmãos sónasceram próximo de eu fazer 14 anos. Meuirmão, já falecido, nasceu quando eu já estavapraticamente terminando o curso ginasial.Isso, de certa maneira, ajudou. Depois, quan-do fiz a faculdade, já trabalhava.

Democracia Viva – Quantos irmãosvocê teve?Dulce Vasconcellos – Sou filha única de

pai e mãe. Tive quatro irmãos por parte demãe, mas dois já faleceram, infelizmente. Porparte de pai, tive seis. Dois morreram aindagarotos, três moram no Rio e um em Salvador.Graças a Deus, sou hoje o ponto de referênciadeles. Entre nós, não há diferença e isso émuito importante. Na minha vida, dou muitovalor a essa ligação com meus irmãos, quemesmo não sendo irmãos do mesmo pai e damesma mãe, nos consideramos assim. O mes-mo acontece com minhas sobrinhas. Agora,tenho até sobrinho-neto! Família grande, bo-nita e unida. Quando a gente se reúne, nin-guém faz distinção de quem é filho de quem,irmão de quem. Isso também foi muito bompara a minha vida.

Minha avó criou as filhas – minha mãe eminha tia, também já falecida –, criou os netose ajudou a criar os bisnetos. Primeiro me criou,depois os outros quatro da minha mãe. Faloda mãe de minha mãe, porque não conheciminha avó paterna. Aliás, conheci pouco a fa-mília do meu pai.

Democracia Viva – Essa relaçãocom sua avó é bem forte.Dulce Vasconcellos – Sim, minha avó ma-

terna ajudou a criar meus filhos, os bisnetos.Morávamos todos juntos no mesmo terreno.E ela ainda ajudou um pouquinho com meuneto mais velho, que completou 15 anos

agora. Ela tomava conta mesmo: a grandemãe. Quando finalmente tivemos condição decontratar uma empregada, foi muito difícil paraela aceitar. O processo foi feito lentamente. Aidade foi chegando e ela dizendo: ‘Agora, eunão quero mais passar roupa’. Então, conse-guimos uma passadeira. Aí, não queria maislavar... Aliás, minha avó lavava roupa para osbarões do cacau e essa foi uma das maneiraspelas quais eu entrei naqueles casarões. Lem-bro de uma casa ondeentrava e ficava enlou-quecida de ver aquilotudo. Só faltava ver oouro que alguns fala-vam que os barões ti-nham. Minha avó mor-reu com 89 anos, masjá estava em cima deuma cama.

Democracia

Viva – Ela foiescrava?Dulce Vascon-

cellos – Ela nasceu em1905, um pouco de-pois da abolição, mascontava que fugiu deuma fazenda de Bel-monte, se não me en-gano. Não sei bem,mas não era em Ilhé-us. Na fazenda, haviaa obrigação de com-prar num armazém de-terminado, mas nin-guém produzia o su-ficiente para pagar asdespesas. Então, numamadrugada, ela fugiucom minha mãe e mi-nha tia. Ela falava que,provavelmente, o fazendeiro não deve ter bo-tado ninguém atrás delas porque a fuga demulheres não dava muito prejuízo. Quandoeram os homens que fugiam, muitas vezes elesiam atrás, pegavam e matavam. Ela contavamuito essa história. Era um regime de quase...Bom, era escravidão! De outro modo, outraforma de escravidão, mas ainda escravidão.

Democracia Viva – Você é casada?Tem filhos(as)?Dulce Vasconcellos – Tenho duas filhas,

mais uma de criação, e um filho. Então, sãoquatro filhos no total. Os dois mais velhos sãogêmeos: Denise e Carlos. Depois, vem a Sílvia

Além de todo o

sacrifício da minha

mãe e da minha

avó, tive um

padrasto muito

bom, que também

me deu a maior

força e nunca

questionou o fato

de a minha mãe

fazer aquele

esforço todo para

que eu estudasse

DULCE VASCONCELLOS

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e a Isabel, que é minha filha de criação. Meumarido, Jair, já é falecido. Ele foi um grandebatalhador, um sonhador com relação ao mo-vimento negro. Criou uma entidade chamadaCírculo Renovador Chico Rei. É uma históriamuito bonita. A proposta dele era muito avan-çada para o momento que estávamos vivendo.

E tem os meus netos! Denise tem três fi-lhos: Daiane, com 15 anos, no primeiro ano doensino médio; Luísa Dandara, que tem 12 anos

e está na sexta série;e o mais novo, o Sér-gio Luís, que tem 9anos e está na tercei-ra série. Meu filho, oCarlos, não é pai,moramos juntos. Síl-via, minha filha maisnova, professora,tem três meninos:Gabriel, com 16anos, estuda no en-sino médio. Ele émeu sarará, branqui-nho como a bisavó,ocabelo louro, todoenroladinho. Tem oMateus, com 11anos, que cursa asexta série; e o maisnovinho, o JonnyDaniel, com 2 anos.Era para ser uma me-nina, mas veio ummenino belíssimotambém: bem preti-nho e com o cabeli-nho todo enrolado.A Isabel tem duasmeninas: Natália,que está na terceirasérie, e a Naíssa, que

está na primeira série. Elas são bem pretinhas edá gosto de ver como são conscientes. Vieramna homenagem que recebi do Abdias. O bom éque eu e os meus três filhos moramos no mes-mo terreno, cada um na sua casa, mas juntos otempo inteiro. E a minha filha de criação todasemana está lá também. Isso é muito bom!

Democracia Viva – A suaconsciência do preconceito racialfoi influenciada pela sua avó epela sua mãe, não é?Dulce Vasconcellos – Sim, mas elas não ti-

nham a consciência, a capacidade de analisar ede exprimir isso. Vou dar um exemplo. Minha

mãe me afastou de tudo o que era de negro. Eunão sei sambar graças a minha mãe, porque elanão ia à escola de samba e não me deixava ir.Mas ela tinha um medo horrível que eu me ca-sasse com um branco. Achava que se eu me ca-sasse com um branco, eu iria me afastar da famí-lia e assumir a família branca. Minha mãe eralindíssima, olhos verdes, pele clara. Meu pai eranegro, meu padrasto também era negro. Porém,minha mãe acreditava no que falavam sobre onegro, que ele não gostava de trabalhar, quenão gostava de estudar. Ela acreditava.

Democracia Viva – Sua mãeera branca?Dulce Vasconcellos – Não, ela era mais

clara, mas tinha cabelo de negro mesmo. Elaera filha de português com uma negra de ca-belo liso. Minha avó era neta de índio.

Democracia Viva – Sua mãeinsistia em afastá-la de tudo quefosse de origem negra, mas vocêé do candomblé. Como foi esseencontro?Dulce Vasconcellos – Aí está uma de suas

contradições. Fomos criados no catolicismo,apesar de ela ter sido, durante um período,adepta da umbanda. Mas não foi ela quemme levou para o candomblé. O catolicismo, ocristianismo, não me contempla, não me agra-da. Fui para o candomblé e encontrei as ex-plicações que queria. Isso foi há 30 anos, por-que na gravidez de minha filha Sílvia, que estácom 31 anos, eu ainda ia à missa todo do-mingo. Foi depois do nascimento dela quepassei a freqüentar o candomblé. Freqüento,mas não sou iniciada.

Democracia Viva – Essa opção fezparte da sua descoberta, da suaconsciência racial?Dulce Vasconcellos – Fez. Vejo também

como parte da defesa das nossas raízes, atépela discriminação, pelo preconceito que asreligiões afro-brasileiras, as de matrizes afri-canas, sofrem. Tem uma opção também poresse lado. Não só, mas também.

Democracia Viva – Você começoua trabalhar na Light antes dese formar?Dulce Vasconcellos – Devo ter sido a pri-

meira negra a trabalhar naquele setor. Era umsetor que, na época, chamávamos de mecano-grafia, onde se faziam as contas. Ainda nãohavia o computador, apenas umas máquinasnas quais fazíamos as contas e furávamos unscartões. Enfim, a gente datilografava e perfu-rava para sair as contas de luz. Fui para a Light

O catolicismo, o

cristianismo, não

me contempla, não

me agrada. Fui

para o candomblé

e encontrei as

explicações que

queria. Isso foi há

30 anos, porque na

gravidez de minha

filha Sílvia, eu

ainda ia à missa

todo domingo

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em 1961. Uma colega da primeira firma ondetrabalhei com carteira assinada, que ficava naAvenida Mem de Sá, perto da Cruz Vermelha,me ajudou. Até hoje, sempre que passo lá meusnetos falam: ‘Vó, você já mostrou isso umaporção de vezes!’. Porque sempre falo: ‘O pri-meiro emprego da sua avó foi aqui!’. Fui tra-balhar lá quando tinha 17 anos. Depois, saípor uma questão de horário e acho que, tam-bém, por preconceito e discriminação, apesarde, na época, não saber que era por isso.

A Light, de alguma maneira, foi muito boapara mim. Pagava bem, o horário era bom, masquando passei para o segundo ano, quando aUFF foi criada, a escola que antes era noturna,passou a ser praticamente vespertina. Come-çava às 17h15. Na Light, o sindicato fizera umacordo para trabalharmos uma hora a maisdurante a semana e não trabalharmos aos sá-bados. Foi muito sacrifício, mas deu para le-var. Quando me formei, me passaram para apresidência, na Avenida Presidente Vargas,mas não era o que eu queria. Voltei para aMarechal Floriano.

Democracia Viva – Por quevocê saiu?Dulce Vasconcellos – Tínhamos que jus-

tificar as faltas e eu tinha um monte de justi-ficativas. Não sei se era racismo ou se era,talvez, inveja, porque a minha chefe anteriorme facilitava bastante. Fazer serão era opção.Eu nunca ficava no serão porque tinha que irpara a faculdade, mas a nova chefe tornou oserão obrigatório.

Então, sempre ficava menstruada no diado serão obrigatório. E com cólica. Um dia, omédico da empresa falou que eu tinha quetratar a cólica. A partir daí, não consegui maisa liberação e passei a não ir no serão. No diaseguinte, tinha que assinar a justificativa. Atéque mudou a chefia e o novo chefe pergun-tou: ‘Qual é a sua agora?’. Eu respondi: ‘Naverdade, quero ir embora. Já fiz concurso parao estado do Rio e para o estado da Guanabara(na época havia essa divisão) e fui aprovadanos dois’. O concurso foi em 1966, e eu estavaesperando ser chamada. Ele me mandou em-bora. Foi bom, recebi uma boa indenização ecomprei a casa onde morávamos em São Gon-çalo, num bairro chamado Neves. Esse chefeme ajudou, mesmo indiretamente.

Democracia Viva – Quantos anostrabalhou lá?Dulce Vasconcellos – Trabalhei cinco ou

seis anos, no máximo. Foi praticamente otempo da faculdade. Quando entrei, estava

fazendo o vestibular e, quando saí, já tinhaum ano ou dois de formada. Em 1967, fuichamada para trabalhar no estado do Rio e,em 1968, fui chamada para trabalhar no es-tado da Guanabara.

O concurso para o estado da Guanabarafoi outra história interessante. Tinha provade títulos e eu não tinha dinheiro para tirartodas as fotocópias. Eram tão caras! Então,dividi: botei um pouco de títulos no estadodo Rio e outra parte no estado da Guanabara.Se tivesse colocado todos num só, teria tidouma qualificação melhor no concurso daGuanabara e teria entrado em 1967. O esta-do chamou metade naquele ano, e eu só en-trei em 1968. O estado do Rio chamou to-dos os aprovados em 1967. Sabe, nessatrajetória, nesse período todo de trabalho ede estudo, estava procurando conhecer mi-nha história.

Democracia Viva – Isso tem a vercom a questão do preconceitosentido no trabalho?Dulce Vasconcellos – Sim, mas não só.

Sempre diziam que as pessoas negras tinhamcomplexo de inferioridade. Admito que eurealmente tinha, por causa do que ouvía fa-lar de nossos antepassados.

Hoje, tenho certeza que sofri discrimina-ção quando fiz a quarta série primária. Nãopela minha professora, mas pela professorada outra turma. Minha professora queria queeu fosse para a turma mais forte. E a outraprofessora não quis, não aceitou e não dei-xou. Todas as vezes que tinha alguma coisa,como o Dia do Soldado, eu fazia o melhor

DULCE VASCONCELLOS

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trabalho. Minha professora me mandava ler,lá na frente, e a outra professora perguntavaporque era eu a escolhida e não a outra garota.Ela mostrava uma bonit inha, cheia decachinho e tal. Por que não era ela? Por queera sempre eu? A minha professora insistia eafirmava que eu era a melhor, que o meu tra-balho era o melhor.

Democracia Viva – Qual era a suareação diante dessas situações?Dulce Vasconcelos – Essas situações acon-

teciam e eu ficava querendo entender. De-pois, fui para o ginásio. Essa minha profes-sora me preparou para o exame de admissãona varanda da casa dela. Saía do grupo esco-lar, dava uma voltinha... Sabe, acho que nin-guém comeu tanto pão com ovo como eu.Minha avó criava galinha, então, eu comiapão com ovo antes de ir para escola, levavapão com ovo para o recreio e levava pão comovo para depois, quando saía para a casa deminha professora. Eram três pães com ovospor dia. Ainda bem que agora descobriramque o ovo não faz mal.

Essa professora me preparou para o colé-gio particular. Passei, fui estudar e senti algu-ma diferença. Havia pouquíssimas negras nasala, apenas duas ou três. A professora de la-tim e a de história me discriminavam. A pro-fessora de francês não me discriminava, masacabou me prejudicando porque não me bo-tava para ler. Ler era castigo!

A professora de história entregava as pro-vas e dizia: ‘Parabéns, fulaninha. Você tirou100!’. Éramos só meninas, porque as esco-las, em 1952, eram separadas. Nessa escola,os meninos estudavam de manhã e as meni-nas, à tarde. Eu tirava 100 também, e ela nun-ca falou para mim: ‘Meus parabéns, você ti-rou 100!’. Mas eu me vinguei. Estive numamesa de debates com ela. Eu a reconheci, mas

ela não me reconheceu. Foi no Uppe [Uniãodos Professores Públicos do Estado]. Faláva-mos de discriminação e contei essa históriapara ela ouvir. Não senti a reação dela, mascontei para ela ouvir.

A professora de francês me dava muitaforça, me elogiava muito, mas boa parte não.Vou dar um exemplo. Fui estudar balé na es-cola e a coordenadora de turno disse que eunão deveria fazer balé. Ela questionou mi-nha posição – estava com a mão na cintura –e disse que a minha postura não era a deuma aluna de balé. Na época, eu até conse-guia perceber o que estava acontecendo, masnão conseguia explicar. Até mesmo na facul-dade, ainda não tinha explicação. Falavamque Machado de Assis deixou crescer abarbicha para que não percebessem que eleera negro; que Lima Barreto era um ébrio emais não sei o quê. Até que ouvi uma con-versa entre duas professoras. Uma delas di-zia que não era bem assim, que era precon-ceito mesmo, era discriminação. Foi quandocomecei a refletir a respeito.

Democracia Viva – E quando vocêcomeçou a enfrentar, pra valer, assituações de preconceito?Dulce Vasconcellos – Quando fui tra-

balhar num colégio em Niterói e encontreium grupo de professores negros. Tínhamosfeito um concurso, era um colégio novo, cri-ado por um grupo da Polícia Militar, que iaaté terceiro sargento. Os policiais criaram umcolégio no qual eles e seus filhos pudessemestudar. O colégio foi muito bom para mim.Tudo que dizíamos que era bom ter na esco-la, eles aceitavam. Os soldados só faltavambater continência para os professores. De-pois, o colégio passou a ser estadual. Hoje,chama-se Colégio Estadual Br igadei roCastrioto. Antes, chamava-se Colégio da Po-lícia Militar. Esse grupo de professores seuniu. Eu comecei na escola dando aulas ànoite e, nesse turno, a maioria dos alunos,que era militar, era negra também.

Assim, criou-se esse grupo de negros in-teressados em conhecer a própria história. Issonos levou a criar, em 1976, o Centro de Estu-dos Brasil-África, o Ceba. A Candido Mendesjá havia criado o Centro de Estudos Afro-Asi-áticos e um pessoal de Niterói também criarao Instituto de Pesquisa das Culturas Negras,o IPCN. Infelizmente, não conseguimos – eeu me incluo nisso – manter o IPCN de pé,mesmo tendo a sede, hoje está numa situa-ção muito triste.

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Democracia Viva – Então, vocêcomeçou a atuar no movimentoquando passou a lecionar?Dulce Vasconcellos – Sim. Era o ginásio na

época, mas peguei logo depois a reforma, quan-do passou a ter as séries. Aqui no Rio, dava aulaem Guilherme da Silveira, na zona oeste. Sem-pre tive essa questão, que deve ser carma, dadistância. Continuava morando em São Gonça-lo e fui dar aula numa escola que ficava umaestação antes de Bangu. Descia do trem e an-dava um quilômetro ou dois. Até que chegouum colega que tinha carro e melhorou umpouquinho. Depois, fui dar aula na RivadáviaCorreia, no Centro. Minha mudança para o mu-nicípio do Rio de Janeiro foi justamente em fun-ção das distâncias das escolas onde trabalhava.Já tinha três filhos, a condução sempre foi ruim,estressava muito. Aí, decidi mudar para o Riode Janeiro para trabalhar em duas escolas, umado estado e outra do município.

Democracia Viva – Qual eraa motivação do Ceba?Dulce Vasconcellos – A motivação era o

combate ao racismo, na escola e na sociedadeem geral. As reuniões eram semanais, quan-do tínhamos uma oportunidade de estudar,de discutir. Também estávamos procurandoconhecimentos que não tínhamos. Foi quan-do levamos lá Abdias Nascimento, LéliaGonzalez, Zózimo Bubul, Raquel Trindade. Fi-zemos também uma amizade muito grandecom o Candeia, participando da escola desamba Quilombo. Procuramos realmente esseconhecimento, mas também procuramos le-var os jovens para lá.

Democracia Viva – Mas essaquestão não criou problemas comos militares?Dulce Vasconcellos – No Colégio da Polí-

cia Militar, uma vez, escrevemos uma peça deteatro – eu, a Maria Alice e a Laurinha – con-tando a história do Brasil. Contamos, claro,com o viés que nos encantava. Foi só uma apre-sentação, no clube dos militares. Fizemos apeça inspiradas em Monteiro Lobato: a avócontando a história. Só que, em alguns qua-dros, a gente abria para outras questões con-temporâneas. O cenário foi feito por um PM ea maior parte dos figurinos foi a mãe da MariaAlice quem fez, que era costureira. Foi umaedição só. O coronel, que era o diretor do co-légio, não agüentou e saiu na metade da peça.

Fiz também um jornalzinho com as crian-ças. Ainda era ginásio e elas eram do segundoano. Publicamos, não tinha nada demais, mas

ele também não gostou e falou que o segun-do número, antes de ser rodado – fazíamos nomimeógrafo –, tinha que passar por ele. Ensi-namos o que era um jornal, a primeira página,a manchete, nomeamos um grupo de criançasresponsável pelo jornal e as crianças prepara-vam tudo. A gente só intervinha para corrigirortografia. Quando falei que teria que levarpara o diretor antes de rodar... Bem, ojornalzinho também ficou reduzido a só umnúmero, as crianças disseram que não iriamlevar para o coronel ver antes.

É isso, nada muito ostensivo como polici-ar em sala de aula, nada disso. Mas é claroque havia certa preocupação. No Ceba, eutambém não sabia oque nós éramos, masera uma audácia mui-to grande fazer asreuniões do jeito quefazíamos, na sala daminha casa.

Democracia

Viva – Isso foiem SãoGonçalo?Dulce Vasconce-

llos – Sim. Fazíamos areunião na sala e,muitas vezes, no ve-rão, púnhamos cadei-ras na varanda, queera bem grande, e fi-cava cheio. Qualquerpessoa podia chegare assistir. A gente sómandava se apresen-tar. Não pregávamoscontra o regime, falá-vamos do preconcei-to, da discriminação,da história, da escra-vidão, mas pregar di-retamente contra o regime, não pregávamos.Mas acredito que éramos inconseqüentes,porque não tínhamos muita consciência dosriscos que corríamos.

Democracia Viva – Qual foi oimpacto, na sua vida, do trabalhono Ceba?Dulce Vasconcellos – Esse grupo foi mui-

to importante para mim. A gente atuava 24horas. O fato de ser um grupo ligado à educa-ção foi muito importante, porque a gente con-seguiu envolver colegas da escola não-negros,que passaram a se interessar.

DULCE VASCONCELLOS

Sempre tive essa

questão, que deve

ser carma, da

distância. Morava

em São Gonçalo e

dava aula numa

escola uma estação

antes de Bangu.

Descia de trem e

andava um

quilômetro ou dois

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Nós, do grupo,conseguimos con-vencer os outros co-legas a participarem,integramos todas asdisciplinas. Tinha aprofessora de artes,Matilde, que era ne-gra. Aliás, ela é. Aprofessora Matilde,até outro dia, estavadando aulas por aí.Tinha uma orienta-dora educacional, aMaria da Glória, quea gente chamava deDagó. Com essa,mantenho contatoaté hoje. Tinha outraprofessora de portu-guês, a Ângela, tinhauma professora demúsica... Isso nos le-vou a um ativismoem tempo integral,porque funcionavatambém enquantoestávamos no traba-

lho. No município, no estado da Guanabara,mesmo não tendo isso, não tinha nenhum im-pedimento para realizar o trabalho que achá-vamos que deveria ser feito. Por exemplo, nãousávamos os livros didáticos tradicionais.

Outro episódio interessante foi quando,no período da ditadura, incluíram EducaçãoMoral e Cívica e OSPB [Organização Social ePolítica Brasileira], duas disciplinas que nãodeveriam ter saído do currículo, na minhaopinião. Evidentemente, não deveriam serdadas com o viés da ditadura, mas eram dis-ciplinas muito boas.

Democracia Viva – Eramdisciplinas impostas peloregime militar?Dulce Vasconcellos – Sim, só que não ti-

nha professor para ensiná-las. O diretor daescola Rivadávia Correia pediu para os profes-sores de português darem as disciplinas, coma orientação de um professor de história egeografia – porque também juntaram históriae geografia e fizeram estudos sociais. Fiqueiseis meses dando aulas sobre pátria e família.Mas como eu fechava a porta e ninguém en-trava, botei todas as crianças da quinta série –eram umas 40, mais ou menos – para falar oque elas achavam sobre isso. Os trabalhos pre-

cisavam ser sobre datas cívicas: Dia do Solda-do, Proclamação da República etc. Eu pegavatudo aquilo, dava para o coordenador e dizia:‘Não sei nada disso’. É claro que sabia, masdava para ele. E para as crianças, o conceitoera fazer falar. Eu não dava prova e isso foimuito importante porque a gente pôde discu-tir todas as questões. A maioria das criançasda Rivadávia Correia vinha do morro do SantoCristo, aquela área atrás da Central da Brasil.

Democracia Viva – Mas na épocada ditadura, não havia muitomedo dentro das escolas?Dulce Vasconcellos – Alguns colegas ti-

nham medo, sim. Mas acho que não éramostão vigiados porque o diretor não tinha medoe nos passava segurança. Não sei de nenhumfato com relação aos colegas, e tínhamos co-legas comunistas na escola. Tive dois episódi-os relacionados à ditadura. Em um, já estavaformada. Comprávamos sempre a prazo numalivraria perto da faculdade, cujos proprietári-os eram portugueses. Eles nos avisaram queforam lá e levaram todos os fichários. Tinhauns ciclos do Nelson Pereira dos Santos, pas-savam uns filmes, faziam uns debates na livra-ria e os militares foram lá.

No outro, eu já era presidenta do Ceba. Agente teve que vir na Mayrink Veiga, eu e atesoureira, que era a Matilde Santana, a pro-fessora de artes. Passei um livro de ata do Cebaa limpo, numa noite, porque o falecido maridoda Matilde, Jorge Santana – uma pessoa quefoi muito importante no Ceba e no movimentonegro no estado do Rio de Janeiro –, era daMarinha e havia sido condenado à revelia. Masacho – e é apenas uma impressão – que o inspe-tor que analisou não quis nos condenar. Todomuito percebe uma escrita de uma noite ante-rior e uma escrita de um ano atrás. Com certe-za, ele não quis. Segundo meu marido, ele ti-nha uns contatos, fez umas pesquisas e chegouà conclusão de que eu não era comunista. E,realmente, na época, eu não era. Achava quepartido político – ainda acho um pouco isso,apesar de estar filiada ao PCdoB e acreditar queo socialismo seja o caminho –, que opartidarismo, atrapalhava a questão racial.

Democracia Viva – E hoje, comopensa a respeito?Dulce Vasconcellos – Continuo achando

que a partidarização atrapalha. Mesmo pen-sando na história do sindicalismo, e no fatode ter sido a fundadora do Sepe [SindicatoEstadual dos Profissionais de Ensino], em1979, continuo achando que atrapalha. As

Fiquei seis meses

dando aulas sobre

pátria e família.

Mas como eu

fechava a porta e

ninguém entrava,

botei todas as

crianças da quinta

série para falar o

que elas achavam

sobre isso

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pessoas vão para os movimentos, para os sin-dicatos, para levar a política do partido e nãopara fazer a política necessária dos movimen-tos. Isso, de certa maneira, atrapalha. Na épo-ca do Sepe, alguns colegas foram presos emfunção de greves. Eu trabalhava em Niterói, naBrigadeiro Castrioto, e aqui no Rio, na Rivadá-via Correia. Viajava muito com o atual prefeitode Niterói, Godofredo Pinto, porque tinha umnúcleo atuante de Niterói que vinha para cá,mas nunca fui aquela liderança de ir lá parafrente falar, fazer discurso. Aí, era o Godofredoe o Chico Alencar.

Democracia Viva – Mas havia umoutro sindicato de escolasparticulares, não é?Dulce Vasconcellos – Tinha um outro sin-

dicato, do qual já falei, o Uppe, do antigo es-tado do Rio, dos professores de ensino mé-dio. Tinha também o que hoje é o Sinpro, queera o sindicato dos particulares e, na época, sechamava do município do Rio de Janeiro. Euparticipava muito, era representante da minhaescola de Niterói, ia para assembléias, reuni-ões. Mas nunca fui uma liderança de fazer dis-cursos nas assembléias. Eu trabalhava dentroda escola. Em 1979, fizemos no Sepeuma cerimônia da Consciência Ne-gra, em Niterói, no Teatro Munici-pal. Fizemos também um eventonuma escola de samba, encerradocom uma feijoada.

Democracia Viva – Vocêfalou de Candeia e daQuilombo, a escola desamba criada por ele.Como está hoje essainiciativa?Dulce Vasconcellos – Existe até

hoje, mas o grande mentor, comquem eu, infelizmente, não convivipor muito tempo, era o Candeia.Ele era a alma daquele lugar, eraele que fazia com que a escola sa-ísse. Candeia foi um grande com-positor, foi uma pessoa que tam-bém passou de um lado para outro.Todo mundo sabe que ele era poli-cial, e muito violento, pelo que fa-lam. Mas passou para um outrolado, assumiu e se dedicou à lutacontra a mercantilização das esco-las de samba. Foi uma luta inglória.Hoje, é um grande show, um espe-táculo para o mundo, no qual a co-munidade tem uma ala, dão não

sei quantas fantasias, não é? Mas o turistacompra, no pacote, a fantasia. Acabou o des-file, ele a larga ali, na avenida. Tem até gen-te de escolas de samba pequenas que reco-lhem aquilo para reaproveitar.

Candeia criou a Quilombo e fez, pelo me-nos, dois carnavais fora de série. Com a mortedele, ficou muito difícil. A escola ainda está lá,em Acari, na Fazenda Botafogo. O que mudoué que, do centro para a periferia, ela era dolado esquerdo e está, agora, do lado direito.Bem, está lá, mas a chama está bem fraca.

Democracia Viva – Você tambémcontribuiu para fomentar a idéiade cursos pré-vestibularescomunitários?Dulce Vasconcellos – Sim. Apareceu no

Ceba um grupo de jovens pedindo ajuda por-que ia prestar o vestibular e, naquela época,era a Cesgranrio, unificado, e saíam listas enor-mes de alunos excedentes. Você sabe que essasegunda fase do vestibular foi criada para aca-bar com a história dos excedentes? Na verda-de, todo mundo que tira nota acima de cincoou seis, de acordo com o que estabelecem,está aprovado. Mas não há vagas para todos,

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essa é a verdade. Por isso, tem a segunda eta-pa, que é, na realidade, classificatória. Umajovem desse grupo que nos procurou, falou:‘Sabemos que aqui tem muito professor. Nãopodemos pagar cursinho, vocês poderiam nosajudar?’. Isso foi entre 1976 e 1978, logo quefundamos o Ceba.

Formamos um grupo de cinco ou seis pro-fessores que iam toda noite lá para casa, asede do Ceba. Um de nós deu inglês, outrodeu português, literatura, ciências, matemá-tica. A gente preparou esse grupinho e, feliz-mente, todos foram aprovados. Nesse mes-mo ano, foi criado o crédito educativo ecorremos atrás das informações na Cesgran-rio, porque aquela turminha nem dinheiro depassagem tinha para fazer isso. Infelizmente,não pudemos dar continuidade a esse traba-lho, que durou dois anos, no máximo. Pordificuldades das pessoas envolvidas, o núcleoficou bem reduzido, mas passamos a dar ori-entações, até mesmo sobre o crédito educa-tivo. Isso foi muito antes de ter os pré-vesti-bulares comunitários.

Na época, isso criou uma grande discus-são, porque um grupo achava que a gentenão tinha que estar preocupado em ir para aacademia, para a universidade. Essa discus-são, acredito, durou tanto tempo que veiodar nos vestibulares para negros e carentes.Na verdade, quando foi criado era só paranegros, mas houve muita reclamação e aí in-cluíram os carentes. Hoje, já tem um movi-mento mais amplo.

Democracia Viva –É difícil falarsobre preconceito com professorese professoras?Dulce Vasconcellos – O professor, no ge-

ral, resistiu muito à questão da discussão doracismo. Até hoje, ainda é muito difícil. Mes-mo com a discussão sobre a Lei 10.639, dahistória da África. O Abdias e a Elisa [Nasci-mento] têm um papel importantíssimo nesseprocesso, pois promoveram seminários, reu-niram professores e tiraram uma proposta quepode ser aplicada hoje.

A proposta que esse grupo coordenadopelo Abdias oferece para a escola é algo quevínhamos pedindo há muito tempo: a revisãoda história que se conta, na qual a África éum continente negro do TTTT – Tribo, Tam-bor, Terreiro e Tarzan. E também da escravi-dão que o negro aceitou. Isso criava em nós otal complexo de inferioridade sobre o qualfalei antes. Ouvíamos coisas negativas queeram jogadas em cima de nossos antepassa-dos e até de nós mesmos.

Democracia Viva – Estuda-se aEuropa, as Américas, mas pouco seestuda a África, não é?Dulce Vasconcellos – É verdade. Agora,

tenho falado, até em tom de brincadeira, quea gente precisa reformular os livros didáti-cos e reformular também a ordem na qual éministrado o conteúdo. Podemos usar duasjustificativas: colocar pela ordem alfabéticaou pelo viés da antropologia. Hoje, todo es-tudo de antropologia aponta e garante queo berço da humanidade é a África. Então,vamos começar pela África. A maior partedos professores diz que não dá a África por-que não há tempo, porque está lá no finaldo conteúdo programático. Que passe, en-tão, a ser o primeiro!

Democracia Viva – Como você sesentiu quando tomou consciênciasobre o racismo?Dulce Vasconcellos – Acho que a pri-

meira vez que senti muito estava na facul-dade. Estudava com a Maria Alice e ela éloura de olhos verdes. Ficava na casa dela,estudávamos juntas, sempre, e tirávamosnotas muito próximas, não exatamente asmesmas, mas muito parecidas. E sentáva-mos juntas na primeira carteira. Um dia, umprofessor de português nos separou. Dei-xou que ela ficasse sentada na primeira car-teira e me colocou na última. Percebi, senti,que ele desconfiou que eu colava dela.Como adepta do candomblé, sei que meus

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orixás são Xangô e Iemanjá. E Xangô é oorixá da justiça. Nessa prova, tiramos exa-tamente a mesma nota, mas erramos ques-tões diferentes porque geralmente aconte-cia isso. Eu já tinha passado por isso noginásio, e era eu quem estava dando a cola.A inspetora achou o contrário e disse: ‘Sevocê continuar colando, vou tomar sua pro-va’. Sabia que achavam sempre que era euquem colava.

Democracia Viva – Mas tevetambém a professora de história,sobre a qual você comentou.Dulce Vasconcellos – É, a professora

de história nunca me elogiou...Tive um pro-fessor de desenho que, quando corrigia aprova em casa, eu tirava nota boa; quandocorrigia em sala de aula, eu tirava nota bai-xa. Lembro de uma vez que amassei a provae joguei pela janela. Debrucei na carteira ecomecei a chorar. Eu devia ter uns 12, 13anos. Ele perguntou porque eu estava cho-rando. As colegas falaram: ‘Professor, elasó tira nota boa, só tira 100, e o senhor dánota vermelha para ela?’. Ele tinha me dadoabaixo de cinco, e aumentou a minha notanaquele dia, mas tive vontade de dizer paraele não fazer isso.

Tudo isso me despertava, mas não sabiaque era racismo. Teve também a professorade latim. Fiz uma prova perfeita, não tinhaum erro, um apagadinho. Ela me deu 95.Tinha uma colega de turma, lourinha deolhos azuis, que se chamava Deise e da qualnunca me esqueci. Também é professora,há muitos anos não a vejo. Ela recebeu nota100 e tinha errado a metade de uma ques-tão. Deise me deu a prova dela para que eua mostrasse à professora e ela visse que terme dado 95 tinha sido injusto. Achei quetivesse tirado 95 porque fazíamos a provaem papel timbrado da escola e argumenteicom a professora que tinha um rasgadinhona prova, mas que já haviam me dado a fo-lha assim. Nunca esqueci o nome dessa co-lega, pelo seu gesto de me dar a prova. Fi-quei muitos anos sem vê-la, fui encontrá-ladepois, já professora. Sempre me emocio-no quando lembro disso. Ela me deu a pro-va, sabendo que a professora poderia bai-xar a nota. E eu, também, na ingenuidadede criança, fui lá e mostrei: ‘A Deise errou ametade da questão e a senhora deu 100. Aminha prova está perfeita, eu não errei nadae a senhora me deu 95’. Essas coisas, a gen-te não esquece.

Democracia Viva – Você acaboude se emocionar ao lembrar domomento em que foi discriminadaracialmente, e isso tem mais de 30anos. A dor causada pelo racismonão passa nunca?Dulce Vasconcellos – Acredito que acon-

teçam fatos em nossa vida que nos marcam.Para sempre. Eu me emociono, mas não sin-to dor. Mas tem o caso de uma amiga quefoi colocada na frente de uma turma quan-do tinha, mais ou menos, 10 anos – hoje elatem quase a minha idade – e a professora ausou como exemplo para demonstrar que aformação do crânio mostrava a diferença en-tre as raças, aquelahistória que existiadas diferenças do ari-ano para o negro. Eessa pessoa não lem-bra isso sem dor.

Eu lembro, meemociono, mas nãosinto dor. Já essa mi-nha amiga. . . Nósduas tivemos a mes-ma reação com rela-ção à discriminação:ser a melhor aluna.Ela se tornou a me-lhor aluna. Ela mora-va em Volta Redonda,e isso aconteceu lá.Veio estudar aqui, de-pois foi fazer exten-são universitária naFrança, depois fezconcurso, mas nuncase esqueceu disso.

Acho que outraspessoas também sen-tem essa dor. Não esqueço, me marcou mui-to, mas não sinto dor, porque não me levoupara baixo, e sim me despertou o desejo desuperar. Fui a melhor aluna na escola, fui dogrupo dos melhores no ginásio e, na facul-dade, eu estava lá, no grupo das melhores.Mas tem mesmo muitas pessoas negras quenão esquecem. É, talvez eu tenha que admitirque essa dor não passe. Tenho um amigo quefoi para a Justiça, ganhou a causa, mas estásempre falando nisso.

Se as pessoas racistas soubessem como ma-goam, como ferem, deixariam de ser racistas oudeixariam de dizer que são cristãs. Hoje em dia,quando falo de candomblé, falo isso também.

Já tinha passado

por isso no

ginásio, e era eu

quem estava

dando a cola. A

inspetora achou o

contrário e disse:

'Se você continuar

colando, vou

tomar sua prova'

DULCE VASCONCELLOS

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As religiões, todas elas, pregam o amor, amar aDeus sobre todas as coisas e ao próximo comoa si mesmo. Em todas as religiões, tem o pai eos filhos, os irmãos. É assim no candomblé tam-bém: tem a mãe de santo, o pai de santo, osfilhos de santo, os irmãos de santo. Igual a to-das as outras. Se as pessoas soubessem comoisso fere, elas seriam mais humanas. Aliás, maisnão, elas seriam humanas, porque isso, real-mente, é uma desumanidade.

Democracia Viva – Comparandocom seu tempo de estudante,como avalia o racismo na escolapública hoje?Dulce Vasconcellos – Continuo achando

um problema. Recentemente, uma colega mecontou um caso, muito revoltada, de duas cri-anças na mesma situação de resultados no con-selho de classe, (o conselho pode aprovar umaluno que não teve boas notas nas provas, mastem um bom conceito). O grupo resolveu apro-

var o menino bran-co e reprovar o ne-gro. Essa colega énegra, consciente,trabalha. E ela lutouo tempo todo: ‘Oureprovamos os doisou aprovamos osdois’. E ela não con-seguiu. No ano se-guinte, não foi daraula nessa escola,até porque não eraefet iva. E la faziahora-extra e não foimais convidada paratrabalhar lá.

Fui diretora, im-plantei dois Cieps, odo Caju, que foi oprimeiro do Rio deJaneiro, e o segun-do, que se chamaClementina de Jesus– nome escolhidopor mim e peloChico Alencar. Lá,

tive mais tempo para trabalhar essa questãocom as professoras. Elas enfeitavam as salassó com crianças lourinhas, brancas. A gentechegava, e não era só eu, mas o grupo queestava lá, e perguntava: ‘Você já olhou para ascrianças da sua sala? Quantos lourinhos vocêtem aqui?’. Na verdade, só um ou dois, nomáximo três. Ora, nós temos uma grande mis-

cigenação, que torna o Brasil um país único.Uma das coisas que pode nos levar a ser, real-mente, um dia, uma democracia racial é essagrande miscigenação, em que estou conver-sando com você e, de repente, você vai e dizpara mim: ‘Sou branca, mas meu pai é negro’.

Democracia Viva – Você também éintegrante do Conselho Municipalde Defesa dos Direitos do Negro,o Comdedine, não é?Dulce Vasconce l los – Es tou no

Comdedine e há 12 anos – aliás, vai fazer13 – organizamos um concurso, em parce-ria com a Secretaria Municipal de Educa-ção, que se chama Prêmio Comdedine dePesqu isa Esco la r. No segundo ano , apremiação foi na sala da secretária, que eraa professora Regina de Assis. A menina queganhou era toda branquinha. Aí, um cole-ga disse para mim: ‘Só as crianças brancasque fizeram trabalhos foram premiadas’. Eudisse: ‘Será?’. Aquela menina branquinha,quando saiu, foi ao encontro de um senhornegro, alto, forte, bonitão, que falou todoorgulhoso: ‘É a minha neta!’. Então, aquelaimpressão de que só as crianças brancas ti-nham feito os trabalhos que foram premia-dos, na verdade, era pura ilusão. A garoti-nha tinha o avô negro e, como esse, háoutros exemplos, porque a maior parte dascrianças que se interessa em fazer o traba-lho tem a família miscigenada.

Democracia Viva – E a sociedadeem geral, como você tem visto odebate atual sobre o racismo?Dulce Vasconcellos – A sociedade é racis-

ta, é violenta. Eu li de uma articulista de umgrande jornal que os meninos, aqueles rapa-zes do crime [do João Hélio] – um tem mais de20 anos, o outro tem 16 – são uns monstros,que a sociedade não tem culpa nenhuma nis-so, que nós somos os honestos, que trabalha-mos, que pagamos... Mas nós temos culpa,estamos formando isso aí.

O Betinho era um que falava tanto nisso.E o professor Darcy Ribeiro dizia, quando de-fendia os Cieps: ‘Ou nós cuidamos dos me-ninos, educamos os meninos’ – ele se refe-ria às crianças sempre como meninos – ‘ounós, os homens de bem, estaremos atrás dasgrades e os bandidos estarão soltos nasruas’. E é o que nós estamos vivendo. Osconjuntos residenciais, as comunidades...Quando tem rua com a possibilidade de bo-tar portão de um lado a outro, as pessoascolocam, não é verdade?

Se as pessoas

soubessem como

isso fere, elas

seriam mais

humanas. Aliás,

mais não, elas

seriam humanas,

porque o racismo

é realmente uma

desumanidade

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A sociedade ainda é muito discriminatóriae racista. No Brasil, não é só a questão racial. Asociedade é muito preconceituosa, mas o queatinge mais, o que mais prejudica as pessoas,é o preconceito racial. Não tenho dúvida.

Democracia Viva – Mas então nãohá avanços?Dulce Vasconcellos – A grande diferença

que percebo é que antes não se verbalizava aquestão do racismo. Assim como eu não tinhaconsciência de que era racismo, não sei se meusprofessores, tanto os que me ajudaram como osque me prejudicaram, tinham essa consciência.Não havia essa discussão nas escolas. Hoje,conseguimos levar essa discussão para as es-colas, para os professores. Muitas famílias quejá têm consciência preparam seus filhos. Te-nho um casal de gêmeos e, em março, elescompletam 36 anos. Quando pequenos, meusfilhos já percebiam e já tinham informaçãosobre isso. Quando minha filha tinha 6 anos,falou: ‘Mãe, a professora mandou perguntarse eu posso me candidatar à rainha da prima-vera porque, apesar de negra, eu sou muitobonitinha’. Falei assim: ‘Fala para sua profes-sora que você pode ser candidata, não porquevocê é ou não negra, mas porque é muito bo-nita mesmo.’ Minha filha foi lá e deu o recadobonitinho Aí, a professora veio conversar co-migo: ‘Olha, não é bem assim’.

Essa mesma filha, um ano depois, teve quefazer um cartaz para o Dia das Mães. Ela foiolhando as revistas e disse para mim: ‘Mãe, nãoacho na revista uma mulher parecida com você’.É claro que ela estava querendo dizer que nãoachava uma negra. Eu dei um retrato meu e elacolou no cartaz. Foi um rebuliço na escola. Faleipara a diretora que minha filha fez isso porquenão achamos numa revista uma mulher negrapara utilizar no trabalho e ela não queria umabranca, porque a mãe dela não é branca e nemela. Essa é a grande diferença que vejo hoje.

Democracia Viva – E a abordagemnos livros didáticos mudou?Dulce Vasconcellos – Sobre a questão do

livro didático, fiz uma pesquisa no Sepe, em1979, sobre a imagem do negro no livro didá-tico. Só a imagem mesmo, que apresentamosno evento da Semana da Consciência Negra.Havia uma cartilha, muito usada para alfabeti-zar crianças, e depois modificada, com seis per-sonagens crianças. Uma delas era negra, cha-mava-se Diva e fazia tudo de ruim. Ela era ateimosa, a gulosa, era tudo. Tinha até um tex-to, que nunca esqueci, no qual alguém lavan-do uma escada dizia para ela não passar, que

ela ia cair e tal. Ela insis-tiu, passou, caiu e a pes-soa falou: ‘Bem-feito!’.

Houve muita denún-cia sobre os livros e elesmelhoraram. Falei rapida-mente aqui que duranteboa parte da minha vidacomo professora não useilivro didático. A criançanegra no livro didáticoera sempre torcedora doFlamengo, com aquelacamisa do Flamengo ras-gada, com os lábiosenormes, sempre carica-turada. Lembro de um li-vro que chegou a serusado na Rivadávia Cor-reia que era assim e apro-veitávamos o problemapara discutir com os alu-nos. Vejo que melhoroumuito, mais ainda não éo ideal. Alguns ainda tra-zem aquela família, comonas novelas, que a gentedenunciou muito. Teveuma novela, “Pecado Ca-pital”, na qual o Milton Gonçalves era um psi-cólogo. Ele não tinha família e ia na casa dasua paciente. Os psicólogos, normalmente,atendem em consultórios...

Os livros, as novelas estão melhorando, masa história ainda não. No Prêmio Comdedinede Pesquisa Escolar, de uns cinco anos para cá,mudamos o tema para a história do negro nasua comunidade após a abolição da escrava-tura, após 1888. Isso porque, quando era umtema mais ou menos solto, os professores nãopassavam do período da escravidão. E sugerí-amos outros temas, como a história do AbdiasNascimento, da Mercedes Batista, da LéliaGonzalez, do Lima Barreto. Agora, estou afas-tada da coordenação do programa, mas cos-tumava ir nas escolas fazer debates, apresen-tações, falava para os alunos irem conversarcom o presidente da sua associação de mora-dores. Geralmente, é uma pessoa importan-tíssima, principalmente nas periferias, queconsegue levar transporte, água, construir es-cola, posto de saúde. E o nome dele, é claro,não aparece. Aí, vem um vereador, um depu-tado, manda fazer a faixa agradecendo a elemesmo e a luta daquele líder comunitário paraconseguir aquilo desaparece.

DULCE VASCONCELLOS

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Democracia Viva – E para umamulher negra, como é essainvisibilidade?Dulce Vasconcellos – Ah, é muito pior.

Ela já tem o preconceito de ser mulher, de sernegra e tem também o de ser pobre. É o queos que negam o racismo dizem: ‘O preconcei-to é social’. Se fosse assim, o Robson Caetanonão falava que está cansado de ser parado notrânsito; noutro dia, foi o Lázaro Ramos. O Mil-ton Gonçalves contava que em São Paulo, noprédio onde morava o sogro dele, o porteiro omandava entrar pela porta de serviço. Há al-gum tempo, o filho da professora HelenaTeodoro e do Nei Lopes foi parado porque es-tava com um Peugeot 206 e teve a coragem dedizer para o PM que estava com hora marcadano analista. Aí, o levaram para a delegacia. Eleteve que acionar o pai e a mãe, foi um proble-ma. Então, a gente sabe que isso existe.

Democracia Viva – E o jovemnegro? Como lidar com essaausência de políticas públicas?Dulce Vasconcellos – Veja os exemplos que

são sempre dados, dos meninos e das meninasque saem dos morros, às vezes, com roupinhaslimpinhas, arrumadinhas, bonitinhas, e vão pro-

curar emprego. Geralmente, os negros não con-seguem emprego. Hoje, também depende deonde eles moram. Fizemos um trabalho na Se-cretaria de Promoção das Populações Negras queo Brizola criou. Fui ser assessora de Educação,primeiro com a professora Vanda Ferreira, de-pois o Abdias veio para ser o secretário. Ele foipara o Senado, Vanda assumiu, depois ele vol-tou. E fizemos um cadastramento de criançaspara um projeto. As crianças diziam que mora-vam em Santa Teresa, na Tijuca, em Ipanema.Elas nunca colocavam a comunidade chamadafavelada, porque sabiam que seriam discrimina-das. Isso inclui os negros, os brancos, os mesti-ços... Tem gente que escreve pardos. Não existeessa coisa de pardos, mas vamos lá. Lembro doAli Kamel [jornalista de O Globo] e dos pardos.Ele diz que criamos os pardos para dizer que osnegros são maioria. Bem, o garoto da Maré nãovai colocar que mora ali porque vai sofrer.

Democracia Viva – Nos várioscargos que conquistou ao longoda sua trajetória, você certamentepassou por preconceito.Dulce Vasconcellos – Sim, principalmen-

te como coordenadora da área de educaçãodo estado. As pessoas chegavam procuran-

do a coordenadora e sempre se diri-giam à pessoa branca. Soube do casomais sério de racismo porque umacolega me contou. Na zona oeste, ti-nha pouca vaga em escola de ensinomédio, então fazíamos um concur-so. Quando sobrava muito adoles-cente, procurávamos vaga e pedía-mos para o município inteiro, con-vencíamos os pais a mandarem paraa escola mais distante. Aí, uma cole-ga que estava ajudando a fazer es-ses encaminhamentos, recebeu umsenhor, que não sei quem é, que per-guntou a ela: ‘Quem é a professoraDulce Vasconcellos?’. Ela mostrou eele disse: ‘Não vim aqui para falarcom uma negra!’. Deu as costas e foiembora. Ela veio me contar sem acre-ditar. Chegamos a conclusão de queele tinha sido encaminhado por al-guém para me pedir uma vaga paraum filho, um parente, e não quis fa-lar comigo porque sou negra.

Ainda por cima, há muitos anosque não aliso o cabelo, sempre de-testei. Meu irmão mais novo foi es-sencial nisso. Um dia, eu disse quenão ia mais alisar o cabelo e cortei

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um blackzinho. Era a formatura do ginasialdo meu irmão. Para vocês terem uma idéia,ele só me chama de minha flor, minha ama-da, minha querida. Sempre foi assim. Na for-matura, ele disse: ‘Você ficou muito bonitacom esse cabelo, ficou linda!’. Nunca maisalisei e isso tem mais de 20 anos. Já ouvi tam-bém as pessoas falarem que eu não me vistobem, que não me arrumo, que não tenho umaaparência para exercer esses cargos.

Democracia Viva – Poderia analisara situação das cotas, a reação daspessoas, a situação de estudantesque entram?Dulce Vasconcellos – Algumas pessoas

que se posicionam contra as cotas estão compoder na mídia. Elas publicam artigos de meiapágina, de página inteira, e quando as quedefendem escrevem, às vezes põem na cartados leitores ou nem publicam. Passei, recente-mente, por uma experiência assim. Mandeiuma carta elogiando um cronista que haviafalado a favor das cotas num jornal de grandecirculação. Ele havia levantado uma questãosobre a qual muitos não querem falar. Ele di-zia que a questão levantada quando se falamal das cotas é a questão do mérito. Só queeles escondem, sonegam que os cotistas têmque ser aprovados na primeira fase do vesti-bular. Quem não passa na primeira fase, que éa eliminatória, não pode continuar e não vaiter acesso à cota. Ele vai entrar na segundafase, que é a classificatória, criada para, real-mente, acabar com as passeatas na AvenidaRio Branco que falavam dos milhares de exce-dentes das universidades públicas.

A mídia teve uma importância muitogrande nesse movimento contra as cotas. Porsonegar essa questão do mérito e por nãoanalisar o que é o exame, o vestibular, a pro-va das universidades. A universidade é pú-blica, é uma continuação, ou melhor, deve-ria ser a continuação do ensino público. Temo básico, que é o fundamental, e o ensinomédio, e você vai, então, para o superior.Mas essa prova de ingresso para a Uerj, porexemplo, desconhece toda a trajetória daescola pública estadual. O parâmetro delasão os grandes colégios, que cobram R$ 1mil de mensalidade. Aí, quando se cria cotatambém para o aluno, o ex-aluno da escolapública, dizem que não pode, que tem quemelhorar a escola pública. Concordo, temmesmo. Mas vamos esperar quanto tempo?Quantos anos serão necessários para melho-rar a escola pública?

Democracia

Viva – E comoencara asituação dessaescola públicahoje?Dulce Vasconce-

llos – Temos uma fa-lácia aqui no Rio deJaneiro. O municípiodiz que todas as cri-anças estão na esco-la, mas vai ver o ta-manho das turmas láda minha área. Meusdois netos, que fize-ram a quarta série noano retrasado, estu-davam numa turmacom mais de 40 alu-nos. A Secretaria deEducação d iz quetem um sistema que,quando chega a 35alunos, eles bloquei-am a matrícula. Não seise bloqueiam mesmo,porque na turma deminha neta tinham43. A diretora ficacom pena de uma criança ficar sem escolaou ter que estudar muito distante, vai lá ecoloca na turma. Tem é que fazer mais salasde aula. Tem escola que o professor nãopode passar, circular dentro da sala, de tãocheia que ela está.

Por exemplo, meu neto Mateus, de 11anos, passou para a sexta série. Ele é muitointeligente, igual a mãe dele, Sílvia, e apren-de na sala de aula. Então, ele não fazia exer-cício de casa. E eu perguntava: ‘Mas suaprofessora não vê?’. Ele respondia: ‘Não’.Falava: ‘Como você faz?’. Ele dizia: ‘Ah., eucopio da correção em aula’. A turma deleera enorme. A professora não circulava emsala, não via. E ela não podia fazer mais pres-são porque ele só tirava boas notas. Essaquestão é clara. No ensino médio, há tur-mas com 55, 60 alunos. Agora, os profes-sores e os diretores têm uma desculpa.Quando eu era coordenadora, dizia paramatricular porque depois teria uma evasão,mas não é isso que vemos. A esta altura doano letivo, ainda estão contratando profes-sor. As aulas já começaram e tem turma emcasa porque ainda não tem professor.

A mídia teve uma

importância muito

grande nesse

movimento contra

as cotas. Por

sonegar essa

questão do mérito

e por não analisar

o que é o exame,

o vestibular, a

prova das

universidades

DULCE VASCONCELLOS

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Democracia Viva – Mas voltandoàs cotas...Dulce Vasconcellos – Voltando às cotas,

vejo como algo necessário, que deve aconte-cer por um tempo – tanto que a lei fala emavaliação daqui a algum tempo. Para mim, omais importante é a discussão. Há tambémmuita reação na universidade. Fiz um seminá-rio na Uerj, fui convocada por uma pessoa delá para discutir a questão das cotas, quandoas primeiras turmas com cotistas já funciona-vam. O seminário durou dois dias e quatroprofessores da Uerj participaram. A maioria de-fendeu a idéia de que as cotas iriam baixar onível da universidade. Saiu também no jornalque o nível da avaliação da Uerj tinha caído,culpando os cotistas. Depois, escreveram quea pessoa havia esquecido que os cotistas nãoparticiparam daquela avaliação.

Temos que fazer muita ação mesmo, discutirmuito ainda, trazer mais pessoas da mídia paradiscutir, e não somente da grande mídia. NaBahia, a última pesquisa revelou que no cursode medicina os melhores alunos foram os

cotistas. Agora, o de-poimento que a gen-te ouve dos cotistasda Uerj, dá vontadede chorar. Mas pelosdepoimentos, perce-be-se também queeles lutam pela per-manência. Isso é im-portante, porquenão é só o ingressona universidade. Ogoverno, o Estadotem que dar tambémcondições para a per-manência e para queeles freqüentem de-terminados cursos.Democracia Viva

– O debateainda é muitoenviesado.

Dulce Vascon-

cellos – É isso mes-mo, e ainda há ne-gros que escrevemque são contra por-que conseguiramsem isso. Vou citaralguém, agora. Achoque foi o último en-contro público que

ele teve, uma pessoa avaliada, normalmente,como sem consciência racial: o Grande Otelo.Num encontro em que discutíamos o filme“Malcon X”, lançado pela Sedepron, [Secreta-ria de Defesa das Populações Negras], na Uerj,o Grande Otelo fez uma observação: ‘O proble-ma de nós, negros, de uma boa parte dos ne-gros, é que o negro arromba a porta e não ficasegurando. Ele acha que o outro deveria vir earrombar também’. Gosto muito de citar isso,até para esses colegas negros que são contraas cotas: ‘Vocês falam, mas olha o arromba-mento da porta, o sacrifício dos seus pais, prin-cipalmente das mulheres e das mães. O sacrifí-cio que sua mãe fez, você acha que é precisocontinuar fazendo? Eu acho que não’. Entran-do na universidade, mesmo com algumas defi-ciências, é bom. Ele vai querer superar, ele sabeo sacrifício que está fazendo para freqüentar.

Democracia Viva – Você se orgulhamuito do seu papel na luta contrao racismo?Dulce Vasconcellos – Eu me considero pri-

vilegiada por ter podido realizar o sonho deser professora, de poder ter trabalhado. E tam-bém por ter convivido com pessoas que meajudaram a aprender mais sobre a questão ra-cial, algumas com as quais convivo até hoje.Isso é muito importante. Fiquei muito feliz porvocês terem me escolhido para esta entrevista.Na homenagem, o Abdias [Nascimento] disseque eu era paradigma. Disse que ficava felizpor ele ter dito isso, que ficava orgulhosa esatisfeita, porque quis assumir esse papel, deser modelo. Eu quero ser paradigma mesmo!Mas ele também é paradigma para mim, comooutras pessoas foram. Acho isso muito bom,ter recebido uma missão e ter podido realizaressa missão sem extremismos, algo que avalioque consegui fazer. Não gosto de brigar, nãoxingo a mãe de ninguém. Se sentir que alguémestá me discriminando, vou querer fazer a ca-beça da pessoa. Isso é importante para mim eacho que consegui fazer isso no magistério eem outras atividades.

Democracia Viva – Tambémparticipou de outros movimentos,como o de acesso à terra e sobre asaúde da população negra, não é?Dulce Vasconcellos – Participei do movi-

mento de regularização de loteamentos duran-te muitos anos. Convivi com pessoas que sededicavam a essa área também. Tive uma for-mação, que não me esqueço, do doutor MiguelValdez, professor de direito da Candido Men-des e da Uerj, que ensinou muito de direito

O Abdias disse

que eu era

paradigma. Disse

que ficava feliz

por ele ter dito

isso, que ficava

orgulhosa e

satisfeita, porque

quis assumir esse

papel, de ser

modelo. Eu quero

ser paradigma

mesmo!

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para o pessoal do movimento. No grupo, pu-demos discutir a questão da terra, a dificulda-de de comprar, de ser pobre, principalmente deser pobre e preta – PP, como se fala – e ter aces-so à terra. A gente tem a história lá da escravi-dão que vai chegar a isso.

Hoje, ainda participo, apesar de estar afas-tada, do Conselho Municipal de Saúde. Fui aprimeira a enfrentar muita gente quando fala-va sobre a questão da saúde da população ne-gra, de doenças genéticas, como a anemiafalciforme, que uma pessoa branca, se tiver umantecedente negro na família, também podeter. Além da hipertensão, da diabete. Por exem-plo, sou hipertensa e diabética e isso envolvequestões sociais, hábitos alimentares que de-senvolvemos desde a escravidão. As pessoas nãoqueriam discutir isso. Tem médico que nuncaouviu falar em anemia falciforme, pediatra quenunca pediu um exame. E hoje temos o Examedo Pezinho. O bebê pode ter a análise do traçofalciforme. Então, é importante conseguir dis-cutir isso também na área da saúde.

Na periferia, em Campo Grande, Santa Cruz,Realengo, os serviços de saúde são muito pioresque os do centro, da zona sul. Conseguimos aca-bar com a privatização do Hospital Estadual Ro-cha Faria divulgando na imprensa que 28 pes-soas haviam morrido num período de 48 horas.

Democracia Viva – Como relacionapreconceito racial e segurança?Dulce Vasconcellos – Vou dar um exem-

plo sobre a questão da segurança. Agora, emmarço, está fazendo um ano que um compa-nheiro nosso desapareceu: o professor RobertoDelanne, o primeiro presidente do ConselhoMunicipal de Defesa dos Direitos do Negro.Temos consciência de que as investigações so-bre o paradeiro do Roberto não foram sufici-entes, por mais que estejamos fazendo esfor-ços. Não nos conformamos de não saber o queaconteceu com o Roberto, onde ele está, osindícios, as hipóteses que poderiam ser levan-tadas e averiguadas. Quando se trata de umapessoa assaltada ou morta de um determina-do eixo social, no outro dia os assassinos, osassaltantes são presos. Precisamos discutirmais isso, não é só a questão do racismo, masisso influencia toda a sociedade.

Democracia Viva – No debate quevolta à tona agora sobre amaioridade penal, há uma questãoracial embutida?Dulce Vasconcellos – Podemos ver quem

são esses meninos, esses rapazes que estãono tráfico, cometendo assaltos. A maioria é

negra. Conheço a si-tuação de dentro,porque quando co-ordenei a área deeducação da zonaoeste, a área deBangu estava incluí-da. Fiz debates comas detentas do Tala-vera Bruce. Vai lá vera cor dessas mulhe-res. Já fui em Bangu1, 2 ou 3, sei lá, quetinha uma escola, vaiver a cor da maiorparte dos detentosque está lá. Sãoanalfabetos, inacre-ditável isso, não é?Os meninos que es-tão aí nessas esco-las, que deveriam serescolas, que deve-riam recuperar... Tal-vez os três anos dereclusão sejam pou-co, mas eles nãotêm ninguém lá. Equando vai alguémou uma ONG lá e osdefendem, dizemque estão defendendo os direitos humanospara soltar os bandidos. Não tem nenhum tra-balho. Aqueles meninos ficam lá sem nenhumtrabalho pedagógico, psicológico. Assim nãotem recuperação.

É como nos presídios. Lá, tem escolas, maselas não atendem nem 10% dos presidiários.A gente teve secretário de Segurança que aca-bou com escola de presídio para aproveitar oprédio para a área administrativa e não cons-truiu outra escola. Aumentar ou diminuir aidade penal não resolve. Sou contra. Falar maldo Estatuto da Criança e do Adolescente émuito fácil, mas a maioria das medidas que oEstatuto prevê não está implantada. Então,culpar o Estatuto por tudo que acontece, que-rer mudá-lo, também não é a solução.

Democracia Viva – Você falou delideranças negras como LéliaGonzales e Abdias Nascimento.Identifica uma liderança najuventude negra agora?Dulce Vasconcellos – Acho que tem sim,

mas vejo que a maioria só se preocupa com aquestão partidária. O Abdias e a Lélia tiveram

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participação política, mas na hora de falar, bri-gar, reclamar das pessoas do partido, coloca-vam a questão racial acima do partido. Hoje,acho que o partidarismo domina. Mas há lide-ranças, só que levam a luta de outra forma –porque a gente não vai poder ser da forma doAbdias, pois ele é ativista há 80 anos; nem damesma forma que o meu período de ativismo,de 30, 40 anos. Acho que a forma é outra,mas há continuidade.

Democracia Viva – Se a participaçãopartidária dilui o discurso racial, umespaço de luta seria o MovimentoNegro Unificado?Dulce Vasconcellos – Sim. O Movimen-

to Negro Unificado foi criado, na verdade,por nós. Participamos disso lá no IPCN, o Ins-tituto de Pesquisas das Culturas Negras, emplena ditadura. O que íamos criar era o mo-vimento negro unif icado contra a dis-criminação racial. Não ia ter registro, era umapossibilidade de coordenar um movimentonacional. A gente chegou a alguns estados,como Rio de Janeiro, Minas Gerais, EspíritoSanto, Bahia e Rio Grande do Sul. Chegamosa nos reunir, não em grandes congressos,mas em seminários, a tirar a linha de traba-lho na questão da educação, no trabalho comcrianças e adolescentes. Fizemos alfabetiza-ção com crianças que, para mim, foi muitomais importante do que a própria questãodo pré-vestibular. Mas, hoje, no Rio de Ja-neiro, vejo um movimento negro sem unifi-cação, bastante desunido. Ainda este anovamos organizar o Congresso Nacional de

Negros e Negras Brasileiros. A data ainda nãoestá fechada, mas acho que o congresso éimportante para trazer de volta essa união.

Democracia Viva – O congressoé organizado pelo movimentonegro?Dulce Vasconcellos – Sim, são várias en-

tidades do Brasil inteiro, não só o MNU. Te-mos também um Conselho de Entidades Ne-gras do Interior do Estado do Rio de Janeiro.A idéia partiu lá do Ceba. Houve certa obje-ção, contrapartida, até para mostrar a difi-culdade que a gente tinha... Quem mora nacapital, na grande cidade, acha que é o donoda verdade, que a capital tem que ser o mo-delo. Mas as cidades, cada uma, têm suasespecificidades, por isso criamos o conse-lho. É um conselho atuante, que se reúneduas vezes por ano. Pode estar mais fraco,mas quase todos os municípios do estadotêm o movimento negro organizado, queconseguiu influenciar muito na área. Há ummovimento negro, ainda forte, que leva aslutas. Por exemplo, a da Lei 10.639, é nacio-nal. A gente tem a questão dos pré-vestibu-lares também, do combate ao racismo, con-tra a violência. Mas, com relação ao Rio deJaneiro, eu vejo que a gente poderia se unirum pouco mais.

Democracia Viva – A senhora jáparticipou do Fórum SocialMundial?Dulce Vasconcellos – Eu fui ao de Porto

Alegre, em 2005. Fui com o Sepe porque elesfacilitaram muito, senão não teria ido. PortoAlegre estava quentíssima, uns 40º, e as es-truturas, as tendas, não funcionaram. Foi difí-cil de acompanhar. Uma coisa boa era todaaquela diversidade. Dá uma vontade de estaraqui e ali. Evitava ir de um lado para outro,mas achei a experiência fabulosa. Outra van-tagem foi poder conhecer outras experiênciase não se sentir sozinha. Parece que você estásozinha lutando contra a maré, mas quandovocê vê muitas pessoas, interessantíssimas,contando suas experiências...

Vivi, recentemente, uma experiência nessesentido. Durante um curso que eu ministrava,uma menina fez uma observação quando ogrupo estava reunido: ‘Eu não sabia que tinhapessoas lutando pela melhoria da qualidadeda saúde pública!’. Isso foi muito rico, muitobom. Ir ao Fórum também tem muito disso.

Recentemente, organizamos o EncontroNacional sobre a Saúde, com pessoas de Per-nambuco, Alagoas. A gente sente um alento

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porque vê que, apesar das diferenças regio-nais, tem uma luta igual, uma luta pelos direi-tos, não só dos negros.

A juventude também foi algo que muitome impressionou no Fórum, principalmentediscutindo a questão racial. Por causa das co-tas, era enorme a quantidade de jovens falan-do das experiências nos municípios, nos esta-dos deles, assumindo esse pré-vestibular.

Democracia Viva – Qual a suaavaliação acerca do trabalho daSecretaria de Promoção daIgualdade Racial?Dulce Vasconcellos – Vejo um esforço, vejo

que é necessária, importante, e que tem maisapoio do que o dado pelo governo anterior.Porque o governo Fernando Henrique tambémcriou um órgão para apoiar a luta. Agora, aimplementação de um órgão nacional é maiscomplicado porque quem implementa, na ver-dade, é o estado ou o município. Por exemplo,a questão da saúde da população negra. Háum Programa Nacional da Saúde da Popula-ção Negra que é discutido com o Ministérioda Saúde. Mas quem vai implementar, na ver-dade? A saúde básica não é responsabilidadedo município? Se o município do Rio de Janei-ro não tiver grande interesse em implementaro Programa de Saúde da Família, não adianta.

Mas temos realmente continuadores quevão levar a luta. Pode ser que, hoje, o pontode partida esteja dentro das universidades, dasfaculdades, que é um outro marco da luta. Agente viu, lá atrás, quando o Abdias botoualfabetização no Teatro Experimental do Ne-gro e hoje, brigamos pelo negro na universi-dade. E tem gente que diz que não houve avan-ço. Claro que teve!

Democracia Viva – Qual é o lugarde uma organização como o Ibasena luta contra o racismo?Dulce Vasconcellos – Um lugar muito

importante porque é fundamental para a de-mocracia. Na realidade, essa luta precisa estarem todas as frentes da sociedade. Por isso,defendo que devemos participar da luta emgeral. Acho importante a revista dar espaçopara esses temas, porque acredito que muitaspessoas vão pensar um pouco mais a respeitoe não vão acreditar tanto no Ali Kamel.

O combate ao racismo não é uma questãosó de negros, é da sociedade. E a sociedadebrasileira, consciente como ela está na ques-tão, como o Ibase está na questão da mulher,de gênero, tem esse papel importante de dis-cutir, de participar.

No Conselho Municipal de Defesa dos Di-reitos do Negro, há uma reunião pública, cha-mada Câmara de Consulta, em que se abre es-paço para outras entidades da sociedade como objetivo de ter mais gente discutindo conoscoa questão racial. Esse conselho está na prefei-tura do Rio de Janeiro, mas não é da prefeitu-ra. Muito pelo contrário. Por ela, já estaríamoslonge de lá. Ele foi criado em 1987, por umdecreto, em que o movimento negro organi-zado conseguiu convencer o prefeito SaturninoBraga de que a prefeitura precisava ter um ór-gão que assessorasse no estabelecimento depolíticas públicas.

Não é um conselho paritário, porque éanterior à Constituição de 1988, o que inco-moda muito. Hoje, nós somos o único conse-lho dentro da prefei-tura que não é pari-tário. Então, a gentetem um espaço paradiscutir. O Ibase pode– e deve – estar tam-bém no conselho.

Ainda não conse-guimos que toda asociedade leve essaquestão, discuta et rabalhe conosco.Talvez, o movimentonegro também nãotenha conseguidoainda engajar asociedade, como umtodo. Ou ta lvez agente não tenha tan-tas pernas e tantosbraços. Somos pou-cos. Também sabe-mos que não há mui-tas organizações co-mo o Ibase. Umideal is ta como oBet inho também éum paradigma e fezos seus continuado-res e continuadoras.Todo movimento emnossa sociedade, queluta, prec isa fazercontinuadores. A luta não é para pouco tem-po. São 500 anos, mesmo, de discrimina-ção, de injustiça, de desigualdades, de ex-ploração. A gente torce para não levar 500anos para ganhar isso, mas não vamos ga-nhar em 40, 50 anos. Sabemos disso.

A juventude foi

algo que muito me

impressionou no

Fórum,

principalmente

discutindo a

questão racial. Por

causa das cotas,

era enorme a

quantidade de

jovens falando

das suas

experiências

Participaram desta

entrevista: Cândido

Grzybowski e Flávia

Mattar

Fotos: Marcus Vini

Sonorização: Douglas

Soares Vieira

DULCE VASCONCELLOS