É Proibido Bater Tambor

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

    PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO

    CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

    Gabriela do Nascimento Silva

    É Proibido Bater Tambor:

    O discurso sobre o Candomblé em Feira de Santana (1890-1940)

    Feira de Santana

    2013

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    Gabriela do Nascimento Silva

    É Proibido Bater Tambor:

    O discurso sobre o Candomblé em Feira de Santana (1890-1940)

    Trabalho de Conclusão de Curso

    apresentado à Banca Examinadora da

    Universidade Estadual Feira de Santana,

    como exigência para obtenção do grau de

    Licenciada em História.

    Orientador(a): Prof(a). Dra. Elizete da Silva.

    Feira de Santana

    2013

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    Folha de Aprovação

    A banca examinadora considera estamonografia adequada como requisito para a

    conclusão do Curso de Licenciatura em

    História da Universidade Estadual de Feira

    de Santana.

    Feira de Santana, 25 de Janeiro de 2013.

     ______________________________________________ 

    Profª. Drª. Elizete da Silva (orientadora)UEFS

     ______________________________________________ 

    Profª. Ms. Eduarda Cristina Costa Sena

    UEFS

     ______________________________________________ 

    Profª. Ms. Mayara Pláscido Silva

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     A Nanã, que com a força do seu asé manteve firme seus filhos em Feira de Santana.

    Saluba Nanã!

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    AGRADECIMENTOS

    A meus pais devo agradecimento não apenas durante esta trajetória de graduação,

    mas também por me acompanharem em todos estes anos de erros e acertos.

    A minha orientadora Elizete da Silva a quem tenho uma profunda admiração e

    carinho por todos esses anos de ensinamentos, empréstimos de livros e puxões de

    orelha.

    Aos meus colegas de sala Kleyton, Dayane, Railma, Neyla, Aiana, Iana, Jânio,

    Marco Aurélio, Mário, Mônica, seu Ladir, e Diego – sister, agradeço a todos pela

    companhia que tornou tudo mais agradável.

    Agradeço ao professor André Uzeda e as professoras Ione Souza e Emilia Silva

     pelas conversas acadêmicas e as não tão acadêmicas que tivemos, tenho muita

    admiração por vocês.

    Ao professor Onildo Reis, agradeço a amizade e o apoio nestes anos de UEFS, os

    quais não seriam os mesmos sem a presença.

    A Diana Oliveira pela companhia e amizade, sempre tão prestimosa em ouvir e

    ajudar.

    A Tom, agradeço os golpes ótimos que sempre me alegraram e não permitiram

    que tudo se transformasse no Ó da bacia.

    A Edmundo, agradeço a amizade, as boas conversas e o companheirismo nas lutas

    diárias, enfrentando tudo com humor e adjetivos perfeitos.

    Agradeço a Henrique, por ser um grande amigo e guru; a Jacson pela ótima

    companhia e exemplo de força; e a Sidney por todos os momentos de amizade e mau

    humor congênito.

    Agradecimentos a Viviane, totalmente perdida; Alejandra, com sua alegria e

    espontaneidade; Denise, com todos os seus planos e projetos; Ana Reis, sempre cheia de

    charme; Mayara, que com coração doce e seu ódio mayárico, me ensinou o que é

    memória, deixando tudo odara; e Isana, por me ensinar sobre redes de solidariedade,

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    disposta a dividir as pobrezas, uma mulher que transborda emoção. Com a companhia

    de todas vocês, meus dias de UEFS foram muito mais belos.

    A Glaucia Costa agradeço a presença tão importante em minha vida, que me

    ensinou que o convívio é uma coisa boa, além de ter me dado o prazer de conhecer seus

    dotes culinários que tornaram tudo perfeito, você e a bela Aisha são alegrias em minha

    vida.

    A Mariana Paes que com sua doçura e beleza me fazem acreditar na bondade do

    ser humano.

    A Laiane Nascimento sempre tão boa companhia, agradeço pela amizade

    fundamental em meus dias.

    A meu companheiro Anderson agradeço todo o carinho que nos dias de angústia

    durante a confecção monográfica, me trouxe paz e leveza. Todos os dias você me

     perguntava ‘já acabou?’Bem, acho que meio, que acabei...

    Aos amigos e amigas que conquistei nessa jornada, grata!

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    Cordeiro de Nanã (Mateus Aleluia)

    Fui chamado de Cordeiro, mas não sou cordeiro não

    Preferi ficar calado, que falar e levar não,

    O meu silêncio é uma singela oração

     A minha santa de fé.

     Meu cantar 

    Vibram as forças que sustentam meu viver 

     Meu cantar 

    É um apelo que eu faço a Nanã ê

    Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.

    Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.

    O que peço no momento é silêncio e atenção

    Quero contar sofrimento que passamos sem razão

    O meu lamento se criou na escravidão que forçado passei.

    Eu chorei

    Sofri as duras dores da humilhação

     Mas ganhei

    Pois eu trazia Nanã ê no coração.

    Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.

    Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo analisar o processo repressivo aoCandomblé em Feira de Santana durante o período que compreende os anos de 1890 a

    1940. Os discursos produzidos pela elite feirense, que consideravam essa religião como

    feitiçaria, símbolo de atraso e falta de civilidade foram utilizados para ponderar sobre o

     processo de criminalização do Candomblé. Apropriamo-nos da literatura de Aloísio

    Resende para verificar uma das formas de resistência produzida por um candomblecista

    feirense, que no jornal Folha do Norte, um dos principais meios de divulgação contra o

    Candomblé, publicou poemas em defesa das religiões de matrizes africanas. A elite e o

    discurso jurídico tentaram associar o Candomblé ao curandeirismo e assim criminalizar

    a religião, sendo essa associação uma das principais formas de repressão aos

    candomblecistas, os quais por sua vez, desenvolveram várias estratégias de preservação

    de suas práticas rituais e de fé.

    Palavras-Chave: Candomblé, Repressão, Feira de Santana.

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    ABSTRACT

    This study aims to analyze the repressive process towards Candomblé in Feira de

    Santana during the period from 1890 to 1940. The speeches made by the elite of Feira

    de Santana, who considered this religion as witchcraft and as a symbol of backwardness

    and lack of civility, are used to reflect about the criminalization process of Candomblé.

    We have appropriated from Aloisio Resende’s literature to verify a form of resistance

     produced by a candomblecista from Feira de Santana, who published poems in defense

    of African religions on the Folha do Norte newspaper, one of the main means of

     publicity against Candomblé. The elite and the legal discourse tried to associate the

    Candomblé to the faith healing and so criminalize it, this association presented itself as

    one of the main forms of repression of the candomblecistas, which developed several

    strategies to preserve their rituals and practices of faith.

    Keywords: Candomblé, Repression, Feira de Santana.

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CEDOC – Centro de Documentação.

    UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana.

    BSMRG – Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvão.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO.............................................................................................................11

    CAPÍTULO 1

    JUSTIÇA E RELIGIÃO: o Candomblé sob o ponto de vista

     judiciário.........................................................................................................................18

    Curandeirismo na Feira de Santana................................................................................29

    Mortes em um Candomblé..............................................................................................34

    Crime e resistência popular.............................................................................................37

    CAPÍTULO 2A CAÇA AS BRUXAS: o jornal e o discurso.....................................................................40

    Prisões em pencas............................................................................................................45

    Um curandeiro para Feira de Santana..............................................................................47

    1912, um ano para acabarem as magias..........................................................................50

    O discurso repressivo no jornal Folha do Norte..............................................................57

    CAPÍTULO 3

    O AXÉ DA LITERATURA: a poética de Aloísio Resende como forma de

    resistência.......................................................................................................................60

    Uma breve leitura da poesia de Aloisio Resende............................................................62

     Nas terras de Nanã...........................................................................................................71

    CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................73

    FONTES...........................................................................................................................75

    BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................78

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    INTRODUÇÃO

     Neste trabalho pretendemos abordar o discurso sobre o Candomblé, religiosidade

    de matrizes africanas, na Bahia durante o período de 1890 a 1940, debatendo a respeito

    das práticas de perseguição a religião em Feira de Santana. Analisaremos como estava

    configurada a religião na cidade, percebendo as particularidades apresentadas e o debate

    historiográfico acerca do tema. Discutiremos o ideal de civilização da elite feirense e os

    vínculos com as práticas culturais afro-brasileiras.

    O espaço reservado ao negro no processo de pós-abolição era de continuidade das

     práticas do período escravista, no qual o negro estava em posição de subalternidade,esta lhe era imposta em todos os aspectos se compararmos com o espaço dado a pessoa

     branca, quer seja no tipo de trabalho exercido, a educação que tinha acesso, as relações

    sociais e políticas. No contexto feirense os aspectos culturais e religiosos produzidos

     pelos ex-escravos e seus descendentes, eram considerados pela elite local como práticas

    inferiores.

    O médico Nina Rodrigues defendia a tese de que a inferioridade do negro perante

    o branco era natural e estava relacionada ao desenvolvimento genético superior da

     pessoa branca. Para Rodrigues:

    a raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveisserviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias deque a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem osgenerosos exageros dos seus defensores, há de constituir sempre um dosfatores da nossa inferioridade como povo. (2008, p. 24)

     Nesse trecho podemos perceber como a sociedade do período encarava o negro na vida

    cotidiana do País, num discurso que representava o pensamento da elite. Schwarcz

    (2008) ressalta que os modelos raciais pensados, principalmente dentro da Faculdade de

    Medicina da Bahia, davam suporte para as hipóteses dos darwinistas sociais1, que

    começavam a ter destaque no cenário científico brasileiro, esses tinham por objeto

    discutir a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin2 nas estruturas da

    1 Para mais informações sobre o darwinismo social no Brasil ler PENNA, José Osvaldo deMeira. Darwin, o racismo e o Brasil. Carta Mensal, Vol. 46, n. 548 , p. 3-31, nov. 2000.2 DARWIN, Charles. A origem das espécies e a seleção natural. São Paulo, SP: Madras, 2009.

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    sociedade, essa teoria servia para justificar a supremacia da pessoa branca em relação a

    negra, já que esta primeira estava em um quadro evolutivo mais avançado.

     Nessa perspectiva, o negro era apresentado como degenerado da sociedade e uma

    das soluções discutidas para o momento entre os darwinistas era a não miscigenação da

     população, esta seria uma das soluções para que progressivamente o negro fosse extinto

    no Brasil. Do ponto de vista de alguns cientistas outro modo de apagar os traços do

    negro, era o branqueamento, que ao longo do tempo, extinguiria a existência dessa

     população e posteriormente se diminuiria as doenças no País, que eram predominantes

    na raça negra.

    Feira de Santana3 tornou-se município em 1873, a região anteriormente já servia de

     ponto de parada de tropeiros e viajantes, motivo este que levou a um maior

    desenvolvimento econômico e populacional da cidade. Durante a Primeira República o

    município em plena ascensão econômica e urbana buscava inspiração para seu progresso

    nos modelos vindos de Salvador, Rio de Janeiro, e outras cidades consideradas

    desenvolvidas, que lhe proporcionavam uma base de civilidade, que serviria para a

    ostentação da elite local.

    A partir dos trabalhos que veem sendo produzido sobre Feira de Santana

    referentes o período da Primeira Republica, podemos analisar como era construído o

    novo ideal de sociedade, em que existiam os exemplos de homens e mulheres que

    tinham uma conduta que deveria servir de orientação para a população. A partir daanálise sobre o desenvolvimento da cidade de Feira de Santana podemos pensar no ideal

    de civilidade e urbanismo almejado e defendido pela elite local.

    O trabalho de Clóvis Frederico Ramaiana Oliveira (2000) aborda como se

    desenvolveu Feira de Santana, surgida a partir de um modelo rural, que passou a ser

    relegado pela elite que tinha o objetivo de implantar os ideais de civilização dos grandes

    centros urbanos, na tentativa de inserir o município nos princípios de modernidade

    nacional.

    Discutindo o negro na nova sociedade republicana, Oliveira cita que

    A inserção de negros em uma sociedade sem a existência da manumissãoescravagista foi tema central nas preocupações dos homens que construíram a

    3 Sobre Feira de Santana ler SILVA, Aldo José Morais. Natureza Sã, Civilidade e Comércio em Feira deSantana: Elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927).Dissertação - Universidade Federal da Bahia, 2000. O primeiro capítulo deste trabalho versa sobre ahistória de Feira de Santana e seu papel econômico e social.

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    República. Nesse contexto, a construção de mecanismos de coerção dos negrose dominação simbólica, visando estabelecer limites nas ações dos descendentesde escravos, termina por ser uma das questões fundamentais na construção dasociedade republicana. (2000, p. 32)

    Tal afirmação esclarece a situação em que se inseria o negro na nova conjuntura política

    nacional. Mesmo com o fim da escravidão essa população continuou a ser vista como

    inferior, podendo então ser coagida pela sociedade, no intuito de que não fosse possível a

    idéia de mobilidade social pelos descendentes de escravos. Reprimir o culto de matrizes

    africanas seria uma das formas de mostrar a superioridade da cultura branca em relação

    ao negro e suas crenças.

    Clóvis Oliveira (2000) discute qual era o discurso propagado pela elite da capital

     baiana e como ele era absorvido em Feira de Santana. O autor buscou com essa análise

    sobre modernidade na cidade, verificar o desenvolvimento urbano da época, o que era

    vivido dentro dessa sociedade situada tão próxima a capital.

     No estudo de Clóvis Ramaiana sobre Feira de Santana, há um debate sobre “o

    negro no espaço urbano feirense”, em que são citadas matérias dos jornais O Município

    (1893), O Progresso (1901) e o Folha do Norte (1912), buscando demonstrar o grau de

     perseguição ao Candomblé, que era utilizado nos jornais em cada período. O autor chama

    a atenção para um fato relevante a ser estudado, os jornais em Feira de Santana não

    faziam distinção entre Candomblé e curandeirismo. Geralmente as pessoas apontadas por

     promoverem candomblés eram chamadas de curandeiros, bruxos, feiticeiros, entre outros

    termos para designar os fiéis da religião na cidade, os mesmos termos pejorativos são

    encontrados em processos crimes, que qualificavam os fiéis do Candomblé enquanto

    curandeiros, numa provável tentativa de criminalização, não apenas da prática de cura,

    mas também no exercício religioso.

     Nos estudos de Aldo Jose Morais Silva Terra de Sã natureza (1997) e Natureza Sã,

    Civilidade e Comércio em Feira de Santana (2000), são analisados os discursos sobre a

    cidade que era vista como uma localidade de bons ares, indicada como um local ideal

     para a cura de doenças, principalmente as respiratórias, assim, a cidade adotou discursosmédicos sanitários como paradigmas para pensar o desenvolvimento urbano, político e

    social durante o período, utilizando os jornais para demonstrar os ideais de progresso em

    que estava inserida Feira de Santana.

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    Metodologia

    Este trabalho tem como base a análise de processos crimes, utilizados como

    norteadores para pensar os procedimentos de criminalização do Candomblé em Feira de

    Santana, tendo em vista analisar o discurso policial no que se refere à religião no

     período. No intuito de verificar a papel do meio judicial utilizado como meio de

    corroborar para o processo repressivo, utilizaremos o Código Penal de 1890 e a

    Constituição Brasileira de 1891, que são balizadores legislativos nacionais.

    Analisaremos os jornais da época, que nos oferecem maiores recursos para obter a

    imagem de como era representada religião na cidade. As notas utilizadas estão

    localizadas nos periódicos feirenses Folha do Norte, Gazeta do Povo, O Progresso e A

     Baía. A maioria das publicações comparava ou acusava o Candomblé de estar associado

    a práticas de bruxaria e feitiçaria, que abria espaço para a tentativa de demonização

    desta religião no imaginário da sociedade.

    As publicações de Aloisio Resende no jornal Folha do Norte são utilizadas neste

    trabalho como fontes para ponderar sobre a resistência do Candomblé em Feira de

    Santana produzida através da literatura. O trabalho dos escritores Eurico Alves

    Boaventura, Rollie E. Poppino, e do memorialista Antonio do Lajedinho, são utilizados

     para compreendermos a cidade através do olhar de quem viveu um pouco do cotidiano

    feirense.

    O recorte temporal desta pesquisa abrange os anos de 1890 a 1940, utilizamos

    esses referenciais por comporem marco importante deste trabalho. Em 1890, foi

    elaborado o Código Penal Brasileiro, que estabelecia o curandeirismo enquanto crime.

    A partir dessa lei encontramos processos que utilizavam o código como instrumento

     para a repressão ao Candomblé. Encerramos a pesquisa no ano de 1940, por ser a data

    em que inaugurou-se um novo Código Penal, no documento continuava sendo

    estabelecido enquanto crime o curandeirismo, acrescido então o crime de charlatanismo,

    que fornece fôlego para pensar a repressão ao Candomblé a partir de outras formas de

    lei.

    Este trabalho pretende analisar a representação sobre o Candomblé feirense. Para

    Roger Chartier “as lutas de representações têm tanta importância como as lutas

    econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta

    impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio”

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    (1990, p. 17), a representação é produzida a partir do ponto social que se encontra o

    grupo que forma a imagem a ser representada exercendo um papel de dominação. O

    segmento social que produz a representação a forja a partir da construção da imagem,

    seja ela positiva ou negativa.

    Assim apresentado por Chartier (1990, p. 18), entendemos que a representação

     passa a ser o resultado de uma imagem construída através do discurso. Em Feira de

    Santana percebemos uma elite intelectual que estava empenhada em forjar uma visão do

    Candomblé, no qual colocava a religião e os seus fiéis num patamar social/intelectual

    inferior, que não cabia nos ideais de civilização defendidos pela elite. Esta

    representação feirense sobre o Candomblé foi construída principalmente através dos

    discursos dos jornais locais, que eram utilizados como principal meio divulgador do

    ideal de civilidade, no qual se colocavam ideologicamente em oposição a cultura afro-

     brasileira. Sobre a apropriação e construção do discurso por determinados segmentos

    sociais e indivíduos, Foucault cita que

    Trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aosindivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitirque todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos quefalam; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certasexigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. (2009, p. 36-7)

    Para Foucault o discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem

    na mesma formação discursiva” (1986, p. 135). O conjunto discursivo sobre o

    Candomblé no meio intelectual em Feira de Santana era produzido e divulgado principalmente pelo jornal Folha do Norte.

    O Candomblé estava presente em Feira de Santana e fazia parte do seu campo

    religioso. Campo religioso para Bourdieu (1974) engloba uma relação entre a religião, a

    sociedade, economia, sistemas simbólicos, além do poder sacerdotal. A Igreja Católica

    era o sistema religioso predominante no período em Feira de Santana, sobre o

    catolicismo feirense, Poppino afirma que

    A religião sempre foi uma fôrça poderosa em Feira de Santana, desde os

    tempos coloniais. Quase todo o povo do município constitui-se de católicos, para os quais os símbolos da fé representavam uma parte da vida diária. Emtodas as ocasiões importantes, do nascimento até a morte, uma cerimôniareligiosa acompanhava, invariavelmente, a vida de cada qual, enquanto osdias santos especiais e os festivais religiosos se celebravam com toda a pompa e ostentação da Igreja Católica. (POPPINO, 1968, p. 309 ApudSILVA, 2010, p. 155)

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    Por ter a Igreja Católica predominância no campo religioso feirense, o discurso

    civilizatório dos jornais afirmavam a inferioridade do Candomblé, ressaltando a

    importância da fé cristã. Elizete da Silva afirmou que

    Sobre a hegemonia do catolicismo na sociedade feirense do período, éimportante destacar que o principal jornal, que cobre o universo cronológicodeste trabalho, Folha do Norte, publica diariamente uma coluna denominada Notícias Religiosas onde se publicavam majoritariamente notícias sobre aIgreja Católica. (2010, p. 157)

     Nesse cenário, sendo a Igreja Católica detentora da estrutura religiosa predominante em

    Feira de Santana, os candomblecistas tiveram que lutar a fim de defender sua fé.

     No primeiro capítulo deste trabalho “Justiça e Religião: o Candomblé sob o ponto

    de vista judiciário” buscamos discutir de que forma as leis foram utilizadas como meio

    de coibir as práticas de religiosidades de matrizes africanas, numa tentativa de equiparar 

    os exercícios de fé, ao crime de curandeirismo previsto nos Códigos Penais de 1890 e1940. Para tanto, utilizaremos quatro processos crimes, três deles referentes ao crime de

    curandeirismo, e um sob o sumário crime de homicídio combinado com lesões

    corporais, esses processos nos fornecem base para discutir a associação entre o

    Candomblé e o curandeirismo em Feira de Santana.

     No segundo capítulo intitulado “A caça as bruxas: o jornal e o discurso”

    abordaremos as matérias de jornais que apresentam o Candomblé e o curandeirismo

    enquanto tema. O discurso dos periódicos nos ajuda a compreender que para além da

    repressão jurídica e policial, apresentada no primeiro capítulo, havia um ideal de

    civilidade dentro da sociedade feirense que excluía o Candomblé das práticas

    socialmente bem vistas pela elite local.

    O terceiro capítulo “O axé da literatura: a poética de Aloisio Resende como forma

    de resistência”, aborda a produção literária do poeta feirense como uma alternativa de

    resistência diante da repressão ao Candomblé. Através da estrutura poética de Resende,

     percebemos como a mesma arma utilizada para propagar uma imagem negativa sobre o

    Candomblé, o jornal Folha do Norte, foi utilizada para mostrar através de versos a

     beleza e a magia das religiões de matrizes africanas para a população de Feira de

    Santana.

    As considerações finais, ainda em processo de conclusão diante da

    complexidade histórica que é o desenvolvimento de uma sociedade e dentro dela a

    repercussão de uma religião, que estava inserida numa estrutura ritualística distinta do

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    catolicismo hegemônico feirense, provocava a oposição da elite dominante local com

    relação a existência do Candomblé.

    Verificamos como a principal maneira utilizada nos meios repressivos feirenses

    a associação entre o Candomblé e o curandeirismo, transformando a crença religiosa em

    crime, nessa apropriação do discurso judicial o Candomblé tornou-se um agravante

    quando relacionado às práticas de cura.

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    CAPÍTULO 1 – JUSTIÇA E RELIGIÃO: o Candomblé sob o

    ponto de vista judiciário

    O negro visto pelas classes dominantes no Brasil como símbolo de atraso social,

    tornava-se ainda menos desejado quando discutido no interior da sua crença nos

    ancestrais. Compreender o negro e sua religiosidade na Primeira República é analisar um

     processo social de tensão e embate, que o posicionava ainda mais nas periferias do ideal

    de cidadão brasileiro.

    O Candomblé, durante o período estudado, por ser uma religião vinda com os

    africanos escravizados, era associado por muitas vezes à magia e a feitiçaria, simbolizada

    como exemplo de atraso dentro da sociedade brasileira. A incorporação, a crença nos

    deuses do panteão africano, em alguns casos agregado a ancestralidade indígena

     brasileira, e o mistério que permeia a religião produziram um imaginário na população

    que vivia alheia ao Candomblé, que alimentava o preconceito diante do desconhecido.

    O sociólogo francês Roger Bastide (2001) analisou que o Candomblé para além de

    uma seita mística, era uma religião que trazia um pedaço da África para o Brasil, essa

    visão não pertencia apenas a Bastide, entretanto, utilizada numa estrutura discriminatória,

    o Candomblé analisado pelas elites durante a República, passou a ser perseguido e visto

    como símbolo de atraso, que remontava as raízes africanas.

     No que se refere a estrutura legal do País, o Candomblé enquanto religião não

     poderia ser alvo de perseguição, tendo em vista que a Constituição da República

    Brasileira de 1891, já em seu princípio, no título I, art. 11, cita ser vedado ao Estado

    ‘estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos’, analisamos

    desse modo, que a religião em questão, teria uma certa liberdade dentro dos meios

    legais, posteriormente o título IV, seção II, art. 72, parágrafo 3º, cita que “todos osindivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto,

    associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito

    comum”. O parágrafo 8º afirmava que “a todos é lícito associarem-se e reunirem-se

    livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem

     pública”. Por último é citado no parágrafo 28, que “por motivo de crença ou de função

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    religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos

    nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico”. Todos esses elementos

    inseridos na Constituição, à primeira vista nos fazem pensar numa construção de um

    País empenhado em propiciar liberdade religiosa na sociedade. Entretanto, essa

    liberdade não saiu das páginas constitucionais.

    A presença do negro em Feira de Santana remonta a sua fundação e

    desenvolvimento enquanto vila e posteriormente cidade. Segundo Freire “o pequeno

    grupo de grandes fazendeiros de Feira de Santana detinha os requisitos que uma elite

    escravista deveria ter: dinheiro, escravos, poder e prestígio” (2012, p. 199). O estudo

    elaborado por Luiz Freire evidencia que a sociedade feirense vivia da exploração do

    trabalho escravo, amplamente utilizado na região:

    As diversas atividades econômicas justificaram a ampla presença de escravos

    na região. Base do trabalho nas fazendas e nas áreas urbanas, a presença delesfoi destacada na agricultura, na pecuária, nos serviços domésticos e emofícios mecânicos e de serviço. (2012, p. 89)

    Foi na agricultura que Freire encontrou a maior concentração de escravos, nos anos de

    1850 a 1888, a porcentagem de homens e mulheres trabalhando nesse setor era de 37%.

    Com o fim da escravidão, foi nesse mesmo setor, que ex-escravos buscaram retirar o

    sustento, continuando a desenvolver autonomamente atividades que já exerciam e

    tinham conhecimento. Essa população, estando nos espaços rurais no período de pós-

    abolição era indesejada no perímetro urbano, no qual uma elite sempre as voltas da

    modernidade, não aceitava o elemento negro, que destoava do padrão europeu.

    Em se tratando do Candomblé na cidade de Feira de Santana tem-se desenvolvido

     poucos trabalhos sistematizados sobre o tema. Um desses estudos é o do antropólogo

    Ronaldo Senna ‘Feira de encantados’, no qual foi elaborada uma análise da localização

    geo-histórica dos terreiros da cidade, a fim de perceber o enraizamento das religiões de

    matrizes africanas a partir da localização das casas de culto. O estudo dos encantados e da

    visão religiosa sobre os mesmos é o mote principal do trabalho, segundo Senna

    Desde as bases de itapororocas (pedras que rolam) ou de Sant´Anna dos OlhosD´Água formou-se, gradativamente, uma  feira de encantados encrustada na penumbra e escondida pelo comércio. Essa encantaria embuçada mantém-semultifacetada no seu recuo simbólico-comportamental e se encontraamalgamada nas suas manifestações culturais. (2008, p. 64)

    Para o antropólogo, junto com a Feira de Santana comercial desenvolvida na cidade,

     podia-se perceber o surgimento de uma “Feira de encantados”, que representava uma

    forma de crença que estruturalmente divergia do catolicismo hegemônico na cidade. O

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    autor verifica a existência de uma bricolagem em graus diversos entre o catolicismo e as

    religiões de matrizes africanas, como processo de elaboração de uma religiosidade

     popular.

     No trabalho de Josivaldo Pires de Oliveira (2010) ‘Adeptos da Mandinga’, foi feito

    uma análise da ação repressiva aos candomblecistas e curandeiros em Feira de Santana no

     período de 1938 a 1970. Apesar do recorte temporal desse trabalho abranger apenas dois

    anos da nossa pesquisa, ele traz aspectos sobre a sociedade feirense que percebemos

    enquanto elementos de continuidade de uma cultura que foi forjada através da resistência

    dos candomblecistas diante das diversas formas de perseguição às religiões de matrizes

    africanas.

     No estudo de Josivaldo Pires foi produzia uma apresentação das fontes e trabalhos

    que abordam da cidade de Feira de Santana, seu surgimento, desenvolvimento, associado

    aos processos de urbanização e modernização, consequentemente a esse desenvolvimento

    analisou as formas existentes de repressão que sofreram os candomblecistas num

     processo de recrudescimento a partir da década de 1940. Foi produzido neste trabalho em

    questão, um levantamento dos estudos elaborados no período de 1930 à 1940, sobre as

    relações raciais e a cultura negra, através da análise dessas fontes o autor afirma a tese da

    qual o Candomblé e o curandeirismo são resultados de uma cultura afro-diaspórica.

    Segundo o autor:

     Nos anos 1990 surgiram vários trabalhos que desempenharam bastante atençãona origem africana das culturas afro-diaspóricas. Estes trabalhos têmevidenciado uma considerável mudança de abordagem no campo da história. Aênfase tradicional em comércio escravo e tradição agrícola sobre os estudos deÁfrica foram dividindo interesses com outros temas como religião, política,música, e tradições culturais simbólicas, os quais constituem os principaislegados das comunidades afro-diaspóricas nas Américas. (2010, p. 48-9)

     Nesses estudos o autor analisa o negro e sua participação na formação da cultura afro-

     brasileira, sendo as religiosidades de matrizes africanas elementos componentes dessa

    cultura.

    O trabalho de Welber Santos de Oliveira (2010) analisou a presença do Candomblé

    em Feira de Santana através do jornal Folha do Norte, principal propagador dos ideais de

    modernidade da cidade. A partir da literatura de Eurico Alves Boaventura, Juarez Bahia e

    Aloisio Resende o pesquisador oferece um panorama da sociedade feirense e como ela se

    formava.

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     No espaço urbano de Salvador, o historiador Ferreira Filho (1999) foi enfático ao

    afirmar que “o Candomblé virou alvo da ira impiedosa dos católicos, moralistas,

     progressistas e eugenistas defensores – cada qual a sua maneira – da ordem e dos bons

    costumes” (p. 252). O autor afirmou que os jornais passaram a ser os grandes defensores

    das censuras ao Candomblé, que propagaram massivamente a imagem de que as mulheresque faziam parte dos cultos de matrizes africanas eram em sua maioria prostitutas,

    mulheres vistas desse modo como indignas de respeito e de comporem a sociedade. Esta

    imagem veiculada nos periódicos soteropolitanos foi repetida também em Feira de

    Santana, que através das informações de jornais locais apresentavam uma cidade que

    estava em vias de civilização, em que sempre explicitavam os ideais de conduta da

    mulher de elite feirense. A partir dessa análise podemos perceber contra quais acusações

    e indivíduos, os candomblecistas tinham que lutar na cidade de Salvador durante a

    Primeira República, verificando que esta luta perpassava para as demais cidades dointerior baiano.

    Sobre a cidade de Cachoeira no Recôncavo baiano, importante estudo foi realizado

     pelo pesquisador Edmar Ferreira Santos (2009), que apresentou uma discussão em torno

    de como na cidade durante as três primeiras décadas do século XX, perseguiu o

    Candomblé, e as formas como os candomblecistas conseguiram fugir e resistir às

     perseguições. Para tal o autor faz incursões sobre o papel que exercia a imprensa, a

     polícia, o discurso médico e a visão da Igreja Católica e Protestantes contribuindo para o

     processo de repressão as religiões de matrizes africanas. Todos esses setores em prol de

    um ideal civilizatório trazido pela elite nacional e que deveria se firmar na cidade.

    Santos enxerga na imprensa, o principal espaço de jogos políticos e de discursos

    repressivos ao Candomblé, que utilizava o discurso repressivo como uma forma de

     promover a ascensão dos partidos locais e a pureza dos costumes. Os jornais da cidade

    entravam em disputa buscando provar qual deles seria os maiores defensores dos bons

    costumes e da moralidade, enquanto trocavam acusações e afirmações de que sujeitos de

    destaque nos jornais ou nos partidos políticos eram adeptos do Candomblé. Para ilustraresse jogo de disputas, Edmar Santos cita que

    Para analistas do período, o ano de 1915 marcou o domínio inconteste do poderseabrista na Bahia. Neste ano, Ubaldino de Assis foi nomeado intendente dacidade de Cachoeira. A partir desse momento, seu grupo político foi diversasvezes acusado de ser protetor dos Candomblés. (SANTOS, 2009, p. 114)

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    Essas disputas faziam com que os candomblecistas estivessem entre o fogo cruzado dos

    donos do poder da cidade. Diante da perseguição o autor encontrou nos Candomblés de

    Cachoeira, diversas formas de resistência, entre elas o papel do Ogã, que em muitos casos

     protegia ou assegurava alguma liberdade ao Terreiro, nesse caso esses Ogãs eram

    indivíduos de destaque na sociedade, como membros da polícia, de grupos políticos ou daimprensa. O ogã segundo Bastide (2001) se enquadra em

    Duas espécies de ogã. Alguns são escolhidos devido apenas à situação social efinanceira, servindo de protetores do candomblé com relação às autoridadesconstituídas; defendem-na contra as possíveis arbitrariedades da polícia;auxiliam-na em caso de necessidade, lançando mão de seus próprios recursos.Outros, porém, conservando algo da origem sacerdotal do termo, ougangas (ousacerdotes, no Gabão), formam uma espécie de sacerdócio secundário. (p. 59-60)

    O ogã mostra-se nesse caso como uma figura importante nos Candomblés, seja na sua

     participação social como defensor da religião diante das relações sociais ou no papel

    religioso a que se destina.

    Outra forma de resistência percebida por Santos foi o reordenamento geográfico, no

     período os terreiros se afastavam do centro urbano, indo preferencialmente para as roças

    da região, como uma forma de se esconder das batidas policiais; a procura dos meios

    legais de preservação, o autor cita o caso de Mãe Judith, que buscava através da

    legislação formas para proteger sua casa de culto; a resistência silenciosa, que evitava as

    festas com batuques, as casas continuavam suas obrigações, mas de modo a não chamar

    tanta atenção das autoridades; além de despertar no imaginário coletivo da cidade, omedo do feitiço, os ebós4 encontrados nas ruas, faziam com que os perseguidores

    temessem os membros do Candomblé. Sobre a ideia de que o povo de santo poderia fazer

    feitiços contra os perseguidores, o autor ressalta que

    assim, o medo do feitiço entrava na ordem do dia. Andar pelas ruas se tornou perigoso para os perseguidores dos candomblés. No entanto, eles tentavamdisfarçar o temor com uma oratória que reclamava a limpeza, os bons costumese a proteção à vida de “pobres animais”. Os articulistas julgavam que oscandomblés haviam recuado, mas constatavam, pela quantidade expressiva dos bozós colocados nos mais diferentes pontos da cidade, que o africanismosobrevivia. Deste modo, classificava-o com os piores adjetivos. (SANTOS,2009, p.173)

     4 “Ebó é qualquer tipo de trabalho que se faz por uma necessidade forçada. Por exemplo, um bori (comidaà cabeça) que se faça por uma necessidade forçada é um ebó. Algumas lindas flores postas na água sãoum ebó. Existem ebós despachados (feitos) para o mal, assim como outros são feitos em benefício de uma pessoa. A direção do ebó (o local onde deve ser colocado) é indicada pelo jogo de búzios, de acordo coma vontade do orixá. O ebó pode ser uma simples vela até o sacrifício de um bicho qualquer. Podem ser postos no mato, na estrada, no lixo, na encruzilhada, no cemitério, dentro de mangue ou enterrado. O ebósempre é ponto de partida para alguma coisa que se tenha de fazer dentro dos candomblés. O ebó temsuas cantigas e palavras apropriadas. É uma das coisas mais sérias”. (BRAGA, 1988, p. 108)

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    É ressaltado por Santos, através da análise dos periódicos, uma inquietação por parte de

    alguns setores da sociedade cachoeirana diante dos ebós, temendo o poder mágico que

     poderiam ter consequências nefastas dependendo de a que, e a quem se destinavam.

    A proximidade da cidade de Cachoeira com Feira de Santana propicia tecer alguns

     paralelos entre os discursos que eram propagados pelas elites locais, e as práticas

    exercidas pelos membros dos Candomblés nas duas cidades. Alguns dos casos citados

    nos periódicos que foram utilizados por Edmar Santos em seu livro O Poder dos

    Candomblés, são de localidades de Feira de Santana, como no caso da notícia do jornal

    cachoeirano A Ordem de 3 de setembro de 1904, que noticia um caso em que 3 pessoas

    acabaram falecendo, segundo o jornal as mortes aconteceram por consequência de

    espancamentos que tinham o intuito de curar as vítimas. O importante em ressaltar é que

    Santos afirma que até o ano de 1904 não havia nos jornais cachoeiranos, enquanto em

    Feira de Santana encontramos notícias datadas de 1892, sobre a cidade de Cachoeira o

    autor cita que

    Encontramos a palavra “candomblé” na imprensa da cidade de Cachoeira pela primeira vez no dia 3 de setembro de 1904129, através de umareportagem transcrita do jornal O Progresso130 , sob o título  As vítimas do fetichismo. Consequentemente, esta foi a primeira vez que a associação entrefetiche e candomblé apareceu nas páginas locais. Todavia, essa relação nãoera nova no olhar de grupos letrados sobre as práticas culturais e religiosas dematriz africana. (SANTOS, 2008, p.71)

    A cidade de Cachoeira sendo conhecida pelas suas casas de Candomblé divulgou em

    suas páginas de jornal a repressão a essa religião, num período muito posterior a cidade

    de Feira de Santana, que desde o início da República, reprimia e criticava nos periódicos

    o culto aos ancestrais.

    As formas de resistência são muito importantes para analisar como eram as

    estratégias dos candomblecistas na Bahia. A dissertação de Isís Verena (2007) nos

     permite perceber formas de resistências que não estão atreladas apenas através do

    confronto violento das batidas policiais às casas de Candomblé, a autora nos leva a

    verificar a resistência através das “andanças do povo-de-santo”. A pesquisadora rastreou

    a movimentação dos terreiros na cidade de Salvador, mostrando que essa andança fazia

     parte de uma forma de continuar os cultos na cidade, quando se deslocavam de uma

    região para outra os terreiros tentavam despistar as ações da polícia e da imprensa. O

    trabalho mostra também uma forma de resistência que utilizava o próprio discurso de

    repressão propagado pela elite a favor dos indivíduos que praticavam o Candomblé,

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    como uma forma de não estarem aptos a responder sobre seus atos, já que a impressa

    divulgava o Candomblé, como uma seita que tirava as pessoas uso normal das

    faculdades mentais de suas funções. Dessa maneira era recorrente encontrar os sujeitos

    que estavam no Candomblé citarem não saber o que lhes acontecia, que não percebiam

    quais eram os seus atos ou o porquê de estarem naquele local.

    A sociedade brasileira pensada e elaborada para um País republicano buscava

    segundo Clóvis Oliveira

    a construção de mecanismos de coerção dos negros e dominação simbólica,visando estabelecer limites nas ações dos descendentes de escravos, termina por ser uma das questões fundamentais na construção da sociedaderepublicana (2000, p. 32).

    A partir dessas formas de coerção da população negra, reprimir os cultos de matrizes

    africanas, nesse caso o Candomblé em específico, seria uma das formas de mostrar a

    superioridade da cultura branca em relação ao negro e suas crenças.

    A partir do recorte temporal desta pesquisa, inserido nos anos de 1890 a 1940,

    encontramos a necessidade de analisar os discursos republicanos sobre a proibição e

    repressão ao Candomblé. Como ponto referencial da discussão, incluímos o Código Penal

     brasileiro de 1890, que em seu texto apontava uma lacuna legal, que permitia que os

    candomblecistas fossem punidos. Mesmo sendo a liberdade de culto um dos direitos

    garantidos pela Constituição de 1891, se voltarmos um pouco no tempo, consta no

    Código Penal de 1890, no título III, capítulo III, referente aos crimes contra a saúde

     pública, os seguintes artigos:

    Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria oua pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo oumagnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicinaem geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as queforem impostas aos crimes a que derem causa.

     Neste caso até um simples chá, quando prescrito com intuito de cura, poderia se fosse

    de interesse judicial, servir como prova de que um indivíduo aplicava remédios sem a

    devida licença.

    Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo parauso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia dequalquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio dodenominado curandeiro:Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação, ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do

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    exercicio de orgão ou apparelho organico, ou, em summa, algumaenfermidade:Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.Si resultar a morte:Pena – de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.

    Este foi um dos artigos mais utilizado pela polícia, com o intuito de criminalizar os fiéis

    do Candomblé. Nas casas de culto em que fossem encontradas garrafadas, os participantes eram presos por estarem aplicando estas substâncias da natureza, que

    segundo os autos policiais seriam nocivas à saúde.

    Para Paula Bajer “a história do processo criminal é a história do poder. Embora

    entrelaçada com a história do governo, retrata o processo de poder mais primitivo: o de

     punir” (2000, p. 18), nessa perspectiva os artigos do Código Penal possibilitavam que os

    governantes do País conseguissem fazer com que o Candomblé fosse considerado crime,

    a partir do momento em que faziam a comum associação entre a religião e a prática ilegal

    da medicina, ou a magia.

    Ainda analisando o Código Penal, encontramos no título IV, capítulo II, sobre os

    crimes contra a liberdade pessoal, o artigo 179, que deixava claro ser proibida a

     perseguição seja por motivos religiosos ou políticos. Nessa comparação entre a

    Constituição e o Código Penal, inferimos que o Código Penal toma espaço de

    sobreposição para continuar a perseguição ao Candomblé e seus fiéis.

    A partir da leitura das fontes criminais, verificamos que as casas de Candomblé de

    Feira de Santana se tornaram alvos das investidas policiais. Um dos primeiros processos

    crime da cidade relacionado ao artigo 158 que tivemos acesso está datado em 19015, e

    tem como acusados por exercerem o oficio de curandeirismo os réus Victorino Araujo

    da Silva e Pedro Alves d´Almeida. A denúncia foi feita pelo médico de Higiene Dr.

    Fabio Lima dos Santos, segundo consta no auto do processo

    os denunciados sem a devida habilitação segundo as leis que nos regem eregulamentos, exerciam o oficio de Curandeirismo, no lugar denominadoLimoeiro, deste termo, ministraram substancias tiradas derivadas da natureza,como meio curativo.

     Neste processo e em outros que versam sobre curandeirismo e charlatanismo vimos queas denúncias eram feitas em sua maioria por médicos, Julio Adiala sobre esse assunto

    cita que

     5 Processo crime: subsérie: curandeirismo. Localidade: Feira de Santana. Período: 1901-1902. Nº defolhas: 36. E: 02; Cx: 45: Doc: 748. CEDOC-UEFS.

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    somente às Faculdades era reservado o direito de conceder os títulos dedoutor em medicina, de farmacêutico e de parteiro, e somente os indivíduosformados por esse sistema poderiam, por lei, exercer a prática da cura.Apesar das restrições ao exercício profissional da medicina, as práticas decura alternativas ao modelo das Faculdades de Medicina permaneciam e eramaceitas por uma parcela significativa da população, o que levava os praticantes da medicina acadêmica a criticar e pedir medidas contra a práticado que chamavam de charlatanismo.” (2011, p. 44)

    Apesar de Adiala utilizar o termo charlatanismo, que só vai ser apresentado enquanto

    crime apenas no Código Penal de 1940, verificamos essa mesma estrutura em se

    tratando do curandeirismo, já que o crime em debate são os processos de cura que não

    envolviam a medicina acadêmica.

    Sobre curandeirismo em Feira de Santana, o trabalho monográfico de Laila

    Rodrigues dos Santos “Curandeirismo: formas de curar e conflitos em Feira de Santana

    (1890-1932)”, traz uma discussão sobre as práticas de cura dentro da cidade, que desde

    seu surgimento buscava através dos curandeiros e rezadores, cessar doenças das quaisnem sempre a medicina local conseguia curar, e em vários casos não possuíam dinheiro

     para arcar com as despesas médicas. O trabalho foi elaborado a partir do uso de jornais,

     processos crimes, código sanitário e Código Penal brasileiro como fontes para o

    desenvolvimento do texto.

    A diligência para apurar os fatos da denúncia feita contra Victorino Araujo da

    Silva e Pedro Alves d´Almeida ocorreu no dia 17 de abril de 1901, na localidade

    Limoeiro. No processo consta que os acusados foram presos em flagrante na casa de

    Victorino, por ter sido encontrado no local, diversas garrafas de medicamento, e essas

    garrafas provariam que os dois acusados viviam então do ofício de curandeiros.

    As testemunhas do inquérito foram: João Ambrozio Vianna com idade vinte nove

    anos, casado, natural da cidade de Barra, oficial de ferreiro, e residente em Feira de

    Santana; Marciano Vieira da Cunha com idade trinta e um anos, solteiro, natural da

    cidade de Caitité, soldado do corpo policial de Feira de Santana; João Christovão idade

    trinta anos, casado, negociante e morador feirense; e João Moreira com idade trinta e

    sete anos, casado, natural de Monte Alegre, soldado do corpo policial de Feira deSantana.

    As declarações das testemunhas, do qual duas delas fazem parte do corpo policial

    da cidade, tem no geral uma tentativa de corroborar com o discurso policial. A primeira

    testemunha João Ambrosio Vianna, disse que tinha participado da diligência no arraial

    do Limoeiro, indo à casa de Victorino de Araujo e Pedro Alves, onde foram encontradas

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    muitas pessoas tomando os remédios aplicados por Victorino. João Ambrosio relatou

    que as pessoas estavam dançando Candomblé, e que no local foram encontrados

    documentos que justificavam que Victorino teria usado da medicina, entretanto, esses

    documentos não constam nos autos do processo e não são mencionados nos relatos das

    outras testemunhas, o que deixa a dúvida se esses documentos existiam de fato.

    O único elemento comum a todas as declarações das testemunhas do processo é

    que teria sido encontrado um quarto em que haviam diversas moringas cheias de água e

     pós de diversas cores, segundo as testemunhas, talvez fossem esses os medicamentos

    que eram aplicados nos indivíduos que buscavam ajuda do referido feiticeiro. Outro

    agravante no testemunho de João Ambrósio seria que este disse ter encontrado Pedro

    Alves dentro de um quarto portando uma arma de fogo e um cacete, provavelmente na

    tentativa de evitar a prisão.

    Terminado o relato de João Ambrosio, foi dada a palavra aos réus, Victorino de

    Araujo da Silva, com idade sessenta e seis anos, casado, natural da freguesia da

    Conceição da Feira e morador no Distrito dos Humildes no lugar Limoeiro, alegou que

    vivia de sua roça e não sabia ler nem escrever. O réu disse que tudo o que tinha sido

    narrado pelas testemunhas era verdade, exceto que ele dava remédio, pois dois dias

    antes da prisão, o médico de higiene havia lhe dito que era proibido aplicar remédios

    vindos da natureza, desde então não medicava mais, e sendo acusado de ser feiticeiro e

    fazer feitiços, disse que não sabia o que era feitiço.O segundo réu no processo Pedro Alves de Almeida, com idade de quarenta anos,

    mais ou menos, conforme consta no processo, solteiro, natural da Conceição da Feira e

    residente na freguesia dos Humildes, no lugar Limoeiro, vivia de sua roça, não sabia ler

    nem escrever. Pedro foi acusado no processo de ser ajudante de Victorino, falou que

    vivia de sua roça, e que era uma calúnia que ele e Victorino fossem feiticeiros, já que os

    dois não sabiam o que era feitiço.

    Todas as testemunhas do processo ressaltaram o fato dos réus ‘estarem dançando

    Candomblé’, e os acusados disseram que tudo o que havia sido relatado pelas

    testemunhas era de fato verdade. O processo em questão confirma a existência do

    Candomblé em Feira de Santana, Victorino e Pedro confirmavam isto, e junto com eles

    havia mais pessoas na casa, que de alguma forma também estavam fazendo parte da

    festa ou ritual que acontecia no momento em que a diligência encontrou pessoas

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    dançando no Candomblé. Os autos do processo nos fazem aferir que esta religião estava

    sendo silenciada através dos meios legais.

    O processo busca respaldo no Código Penal para justificar a batida ao Candomblé,

    que tinha o intuito de prender curandeiros, mas não podemos deixar de levar em conta

    que a Constituição Brasileira de 18916, que sob o Título IV- Dos Cidadãos Brasileiros,

    Seção II- Declaração de Direitos, Art. 72, parágrafo 3º, cita que “Todos os indivíduos e

    confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se

     para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”. Já que

    era permitido o exercício de culto pelos indivíduos, a prisão das pessoas que lá estavam,

    se mostrava injustificada. Nos autos do processo não constam o nome dessas pessoas

    que estavam na festa, ou que destino lhes foi dado depois da prisão, é provável que

    tenham sido liberadas sem a necessidade de responderem por algum tipo de crime, mas

    não retira a possibilidade de coação desses indivíduos. Entretanto, o fato de terem sido

    levadas à delegacia apresenta-se como uma forma de coibir as pessoas da participação

    em Candomblés, associando o culto a práticas criminosas. Essas prisões mesmo que

    apenas para prestar esclarecimento, demonstram a necessidade que tinham os

    candomblecistas de se protegerem mesmo dentro da sua ritualística religiosa, que

    segundo a lei era permitida, mas estava ameaçada através de outros aparatos legais que

    tinham o intuito de evitar que essa religião sobrevivesse nesse período de pós-abolição.

     No caso deste processo, um chá, poderia se fosse de interesse judicial, servir como prova de que o indivíduo aplicava remédios sem a devida licença. As moringas

    encontradas na casa serviram como prova para a prisão em flagrante dos réus, que

    disseram ser verdade que ministravam remédios de substâncias oriundas da natureza,

    mas que não eram curandeiros já que não faziam disso profissão, e tiravam o sustento

    do trabalho na roça, e que muito menos eram feiticeiros, por nem saberem o que era

    isso. Victorino Araujo e Pedro Alves foram sentenciados à prisão pelo crime de

    exercerem a profissão de curandeirismo, entretanto, após a prisão em flagrante e seus

    testemunhos, os réus passaram a aguardar o resultado da investigação em liberdade, enesse meio tempo saíram da cidade, não ocorrendo a prisão dos mesmos. Não

    encontramos mais notícias sobre os réus, ficando em aberto a possibilidade de prisão

     posterior.

     6 BRASIL. A Constituição de 1891. Brasília: PrND, MINTER, 1986.

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    Curandeirismo em Feira de Santana

     No ano de 19027 Izidoro Joaquim Alves, lavrador, morador da Mangabeira,

    localizada em Feira de Santana, foi acusado de exercer como profissão o oficio de

    curandeiro. O réu foi acusado por Joana, a qual não consta no processo seu nome

    completo, casada com João Ribeiro, moradores de Feira de Santana. Segundo a vítima

    ela e o marido tomaram medicamentos de raízes, receitados por Izidoro, tais

    medicamentos agravaram seu estado de saúde e levaram seu marido a ter uma comoção

    cerebral. O processo descreve que

    Joanna de tal, casada com João Ribeiro, ambos residentes nesta cidade, fôrano dia 23 do proximo passado mês, illaquiada em sua boa fé por Izidoro detal, que lhe prescrevera o uso interno de umas raízes e outros tantos remedios por si engendrados em consequencia dos quais aggravarão-se os seusincomodos, resultando numa comoção cerebral, em seu inditoso marido que,não pode resistir ante o quadro tetrico que a fatalidade o deparara.

    As complicações existentes no uso de remédios vindos da natureza receitados por

    curandeiros eram recorrentes, assim como no caso de Joana, que alegou ter piorado seu

    estado de saúde depois da utilização dos remédios indicados por Izidoro. Esses ‘erros’

    no resultado dos trabalhos dos curandeiros abriam espaço para que os médicos

    discutissem sobre o risco da prescrição de remédios por pessoas não capacitadas

    academicamente. Segundo Adiala

    Apoiados na percepção de que era muito tênue o limite entre o medicamentoe o veneno, as associações médicas defenderam que a prescrição de drogasmedicinais deveria ser prerrogativa exclusiva dos médicos, afastando da prática curativa, não só os charlatões e os curandeiros, mas também os boticários e os farmacêuticos. (2011, p. 76)

    O autor trata do discurso médico que pressionou a implementação de leis que coibissem

    as práticas de cura em seus mais diversos aspectos.

    A primeira testemunha do caso Jesuino Nery de Salles, com idade de cinquenta

    anos, casado, oficial de alfaiate, natural de Santo Amaro, residente em Feira de Santana,

    sabia ler e escrever. Disse que sabia do fato de Joana e seu marido haviam tido alguns

     problemas de saúde, já estando bem os dois no dia de seu testemunho, ouviu dizer que

    ambos tinham adoecido em decorrência de feitiço, mas sobre isso não tinha certeza.

    Jesuino alegou que não sabia se de fato de Izidoro era feiticeiro, porque não conhecia o

    réu.

    7 Processo crime: subsérie: curandeirismo. Período: 1902-1903 E: 01; Cx: 14; Doc: 257 – CEDOC-UEFS.

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    O processo em questão não foi tecido a partir de uma batida policial, ele tem por

     base a denúncia de uma pessoa que se disse lesada pelo dito curandeiro, o remédio

    receitado não surtiu o efeito esperado por dona Joana. Interessa-nos nesse processo

    analisar como as testemunhas são escolhidas, levando em conta que não houve

    flagrante. A primeira pessoa a ser inquirida, Jesuino Nery, em nada acrescentou ao processo, deixando claro que não tinha conhecimento sobre os fatos denunciados,

    apenas conhecia as vítimas.

    A segunda testemunha foi Cyriano Pedreira de Cerqueira, com vinte e sete anos

    de idade, solteiro, alfaiate, sabia ler e escrever, era natural e residente em Feira de

    Santana. Detêm-nos a atenção por este ser testemunha também no processo analisado

    anteriormente, que tem como réus Victorino Araújo e Pedro Alves, no primeiro

     processo a testemunha não apareceu para prestar depoimento, sendo por algumas vezes

    intimado a depor, durante o mesmo período surge este segundo processo, do qual

    Cyriano compareceu como testemunha. Questionamos qual teria sido o motivo para a

    Cyriano testemunhar em um processo e em outro não, sendo que os dois acontecem em

    um período de tempo muito próximo.

    A testemunha Cyriano Pedreira de Cerqueira, disse tinha conhecimento que

    Izidoro vivia do ofício de curandeiro tanto na cidade de Feira de Santana como fora

    dela. A testemunha sobre respeito da vítima João Ribeiro disse que sabia que este havia

    aplicado em sua esposa Joana, os medicamentos receitados pelo curandeiro, o queacabou gerando em João Ribeiro distúrbios mentais em consequência da aplicação dos

    remédios, na perspectiva da testemunha. A testemunha afirmou que Izidoro teria dito a

    Joana que não fosse se tratar com o médico da cidade, pois esse lhe mataria, as vítimas

     buscaram então ajuda no curandeiro, que prometeu solucionar o estado de saúde de

    Joana.

    A terceira pessoa a prestar depoimento foi Geraldo Ferreira de Sant’Anna, com

    idade de trinta e nove anos, casado, negociante, natural de Santo Amaro, sabia ler e

    escrever “disse mais que ultimamente tem ouvido falar-se que João Ribeiro queixa-se

    do denunciado, por ter tratado de sua mulher de feitiço, ter ministrado remedios

    manipulados que agravarão o seo estado de saúde”.

    Para melhor nos esclarecer sobre o estado de saúde das vítimas, a quarta

    testemunha Lucindo Xavier dos Santos, com vinte anos de idade, solteiro, alfaiate,

    analfabeto, natural e residente em Feira de Santana, disse que soube que João e Joana

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    estavam doentes por culpa do curandeiro Izidoro. Segundo o que teve conhecimento a

    testemunha, o curandeiro indicou que Joana tomasse um banho com um preparado de

    folhas, enxugasse o corpo e enterrasse a toalha no cemitério da cidade, o banho foi

    tomado por Joana, e seu marido tinha sido incumbido da tarefa de enterrar a tolha no

    cemitério, entretanto, não conseguiu executar a tarefa, vindo a perder as ‘faculdadesmentais’ por um período. João Ribeiro adoeceu por não ter conseguido enterrar a toalha

    no local indicado, talvez a vítima tivesse ficado muito abalada diante da tarefa que lhe

    foi destinada, ocasionando uma crise emocional, ou agravado sua saúde em decorrência

    do feitiço, o motivo do estado de João ter sido alterado é uma incógnita no processo.

    O processo possui 3 testemunhas que tinham por ocupação o ofício de alfaiate.

    Segundo Mayara Pláscido Silva, em estudo sobre as experiências de trabalhadores/as

     pobres na cidade de Feira de Santana, o ofício de alfaiate estava “integrado a categoria

    dos artistas” (2012, p. 81), que tiveram destaque na documentação utilizada no trabalho

    “como um grupo que tinha acesso a alfabetização (idem, ibid). Dos três alfaiates no

     processo de Izidoro dois eram alfabetizados, a outra testemunha era também

    alfabetizada, mas exercia a profissão de comerciante, o que nos leva a verificar que as

     pessoas envolvidas possuíam um grau de letramento, o que proporcionava uma chance

    de maior acesso ao discurso produzido pela mídia feirense, no referente ao Candomblé,

     podendo dessa maneira conduzir os testemunhos a afirmativas que corroborassem as

    atitudes repressivas da polícia e dos jornais.

    O processo resultou na sentença em que Izidoro foi considerado culpado na

    denúncia de ter exercido o oficio de curandeiro. O réu foi acusado em setembro de

    1902, e só compareceu à delegacia em dezembro de 1903, pouco mais de um ano após a

    sentença. No Código Penal ao qual foi estabelecida sua pena, de acordo com o artigo

    158, sobre exercer a profissão de curandeiro, a pena era de um a seis meses de reclusão,

    e pagamento de multa.

    Acusado dentro das leis do Código Penal, Izidoro aproveitou-se do mesmo, em

    que no artigo 85, é citado que crimes com reclusão de até 6 meses prescrevem depois de

    um ano. Izidoro foi condenado e compareceu à delegacia depois de mais de um ano

    após a sentença, solicitando a prescrição de sua pena, que foi concedida pelo juiz,

    atestando coerência no pedido de prescrição. O acusado utiliza do mesmo aspecto legal

    como local de disputa entre os que perseguem e os que sofrem a perseguião. Segundo o

     processo

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    vem mui respeitosamente e de conformidade com o que determina o art. 85do mesmo Cod., allegar a prescripção do crime que lhe fora injustamenteatribuído pelo qual fora denunciado, por evidenciar se pelo lapso de tempo terdecorrido do dia 10 de Setembro de 1902 data da pronuncia ate a presentemais de um ano.

    O crime de Izidoro se referia ao curandeirismo, e não encontramos associação

    entre o réu e algo que o remetesse ao Candomblé, apesar da maioria dos processos sobrecurandeirismo associarem o Candomblé as práticas de magia. O que analisamos nesse

     processo foi um maior conhecimento do réu sobre os aspectos penais, que conseguiu

    não cumprir o tempo de prisão que lhe foi dirigido. É provável que Izidoro fosse

    alfabetizado e tivesse algum tipo de acesso aos meios legais, talvez podendo contratar

    um advogado que lhe orientasse no processo. Entretanto, fazendo uma comparação

    entre o processo de Izidoro e de outros réus acusados de curandeirismo, neste processo

    o réu não foi citado com termos pejorativos, como o de ‘feiticeiro’ ou ‘candomblezeiro’,

    da mesma forma como foram chamados Victorino de Araujo e Pedro Alves, quando nos

    autos falou-se sobre Izidoro, apenas era dito que este exercia o ofício ou a profissão de

    curandeiro, alegando que o réu manipulou substâncias da natureza para retirar um

    feitiço que foi feito contra Joana, mas não que ele teria feito nenhum tipo de feitiço.

     Notamos que na maioria dos casos, as pessoas citadas com os termos

    depreciativos como o de ‘feiticeiro’, eram indivíduos que tinham alguma relação com o

    Candomblé. Curandeirismo era um crime penal, que em certa medida era punido pela

     justiça feirense, entretanto, o crime se tornava mais ofensivo quando o Candomblé

    estava presente, mesmo que os acusadores não encontrassem relação entre a religião e

    as práticas de cura.

    Em um período curto de tempo, que compreendeu os anos de 1901 a 1905,

    encontramos processos relacionados ao curandeirismo, e que em seus autos estão como

    vítimas ou réus, os candomblecistas. Esses processos nos dizem pouco sobre como

    viviam os filhos e filhas de santo de Feira de Santana e as relações sociais que estes

    estabeleciam, mas podemos comprovar que eles existiam, seja auto declarando-se ou

    sendo indicados. Essa informação nos fornece base para inferir que os elementos judiciais eram utilizados como um meio de perseguir e punir os religiosos do

    Candomblé.

    Em fragmento de texto de Eurico Alves Boaventura, no livro ‘Fidalgos e

    Vaqueiros’, numa das descrições feitas sobre o sertão, encontramos a afirmação da

    inexistência do Candomblé, segundo o escritor Feira de Santana era um lugar onde “o

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    álacre rumor dos sinos das ermidas pastoris não eram abafados pelo rústico e rude

    rumor dos rudos e arrastados atabaques dos candomblés” (1989, p. 68). As palavras do

    autor nos fazem pensar qual seria a possibilidade da inexistência do Candomblé na

    cidade, e entendemos que seria impossível apagar a presença de uma experiência de

    religiosidade afro-brasileira de uma região, e continuar perseguindo a mesma em autos judiciais e notícias de jornais. A tentativa de silenciamento da religião é notória, na qual

    se ela não existisse, não precisaria ter voz na sociedade feirense. As matérias que serão

    abordadas no próximo capítulo a fim de ilustrar como era propagada a repressão ao

    Candomblé nos meios de circulação de informação mais conhecidos da cidade atestam a

    existência do Candomblé em Feira de Santana.

    Boaventura trouxe a seu leitor uma Feira de Santana forjada a partir de uma

    cultura basicamente sertaneja, o silenciamento produzido diante da cultura e

    religiosidade afro-brasileira, apresenta a construção de um discurso onde o negro

    aparece com uma presença em quantidade pequena, que não conseguiu se firmar na

    região. Welber Oliveira afirma que

    não somente em Feira de Santana, mas em toda região entendida porBoaventura de sertão, a participação do sujeito negro na constituição dessacivilização do pastoreio esteve praticamente anulada, assim, ele aindaafirmou que “a influência negra no sertão é restrita”. Entretanto, ao utilizar a palavra “quase”, consequentemente admitiu que houvessem sujeitos negros puros, mas, na perspectiva de que a quantidade destes eram muito reduzida oque dificultou a continuidade da raça no sertão. Ou seja, ainda queconsiderasse a presença negra no sertão, “não se multiplicou intensamente o

    negro vindo ao nordeste. (2010, p. 31-2)

    Essa tentativa de Eurico Boaventura em afastar a visão de uma cidade formada por

     pessoas negras, mostra-se invalida a partir do momento que os jornais divulgam a

    existência de práticas da cultura afro-brasileira, que aos olhos desses jornais não deveria

    existir, e o esforço ao relatá-los se encontrava na perspectiva de apagá-los da memória

    social feirense.

    Mesmo percebendo que Eurico Boaventura fala de um período posterior aos

     processos aqui analisados, uma vez que Fidalgos e Vaqueiros começa a ser produzido

    no início da década de 1950, não consideramos válido que nesse período entre o início

    do século XX e seus meados, a cidade tenha conseguido apagar a presença dessas

    religiões de matrizes africanas, levando em conta que existem notas de jornais e

     processos criminais, posteriores a segunda metade do século XX que continuaram

    atestando e criticando a presença do Candomblé na sociedade feirense.

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    Mortes em um Candomblé

    O processo datado no ano de 19048, que tratou de homicídio combinado com

    lesões corporais, teve os réus Manoel Candido Pires, Maria Romana da Conceição,

    Maria Thomazia da Conceição e Manoel José de Araujo, acusados do homicídio de João

    Evangelista Pires, Maria Senhorinha Conceição, Maria de São Pedro e das lesões

    corporais causadas na menor de idade Otilia. Todos residiam no local denominando

    “Cajá” distrito de Almas.

    Segundo consta na denúncia do processo

    O Promotor Publico da Comarca, no desempenho de suas atribuições e baseado no inquérito policial que a esta acompanha, vem denunciar deManoel Candido Pires, Maria Romana da Conceição, Maria Thomazia daConceição e Manoel José de Araujo, pelo fato delituoso ocorrido no distritodas Almas, deste termo, no dia 13 do corrente mês e ano, do qual resultouserem assassinados João Evangelista Pires, Maria Senhorinha da Conceição eMaria de São Pedro, por meio de bárbaros espancamentos, produzidos acacete e tição de fogo, saindo também gravemente ofendida a mesma Otiliade tal, como tudo se vê no auto de corpo de delito de fls., na ocasião em quetodos se achavam reunidos em a casa de João Evangelista para umcandomblé. (...).

    O caso envolvia vítimas e acusados que tinham um grau de parentesco, segundo

    consta no processo os réus são: Manoel Candido Pires, trinta anos de idade, casado,

    lavrador, brasileiro, natural de Feira de Santana, não sabia ler nem escrever; Maria

    Romana da Conceição, com trinta e cinco anos de idade, lavradora, solteira, brasileira,

    natural de Feira de Santana, não sabia ler nem escrever; Maria Thomazia da Conceição,

    com idade de trinta e dois anos, solteira, lavradora, brasileira, natural de Feira de

    Santana, e não sabia ler nem escrever, eram estes réus todos irmãos; os outros acusados

    eram Manoel José de Araújo, vinte e quatro anos de idade, solteiro, lavrador, brasileiro,

    natural de Feira de Santana, sabia ler e escrever, era vizinho da casa das vítimas; e

    Maria Senhorinha Conceição, que era casada com João Evangelista Pires, e também foi

    uma das vítimas dos assassinatos; as outras duas mulheres que estavam no local Maria

    de São Pedro, Otilia eram sobrinhas dos acusados. Mais informações sobre os réus e

    vítimas não constam no processo, entretanto, por serem todos da mesma família,

    acreditamos que a maioria deles vivia do trabalho na roça, e não sabiam ler, no processo

    o único envolvido que sabia ler, não possuía parentesco com as pessoas envolvidas. A

    maioria das pessoas relacionadas no processo vivia do trabalho na roça, Mayara Silva

    afirma que sobre meio rural 8 Processo-crime: Subsérie: Sumário Crime – Homicídio combinado com lesões corporais. Localidade:Distrito das Almas. Período: 1904-1905. E: 02; Cx: 45: Doc: 742. CEDOC-UEFS.

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    o município apresentava e que favorecia a ocupação de trabalhadores em suas pequenas propriedades, a fim de obter uma alimentação imediata, bem como,comercializar o excedente da produção na feira semanal, garantindo umarenda extra, o que não excluía a segunda forma de interpretação, como uma possibilidade de atuação destes mesmos sujeitos em atividades da roça emfazendas e chácaras de outros proprietários do município de Feira de Santana.(2012, p. 72)

     Num período próximo ao fim do sistema escravagista Freire verificou que

    Em diversas vezes, serviços especializados que normalmente eram vistosentre os escravos urbanos, como alfaiates, ferreiros, músicos, costureiras eengomadeiras, também estão registrados entre os do campo, ainda que nestelocal as ocupações mais comumente encontradas fossem as ligadas à lavoura,à roça, à enxada e às da lida com o gado, como a de vaqueiro. (2012, p. 31)

    Através desta relação do trabalho nos meios rurais pelos escravos, podemos analisar a

     possibilidade de que as pessoas que vivam do trabalho na roça nos processos em

    questão podiam ser ex-escravos ou descendentes de escravos, que continuaram as

     práticas rurais do período da escravidão dentro da República.

    O primeiro a depor no processo foi o acusado Manoel Candido Pires, seu relato

    foi confuso, cheio de repetições e frases confusas que dificultaram a leitura deste

     processo se o transcrevêssemos, preferimos então retirar as informações e expô-las de

    forma mais legível. Consta que Manoel Candido foi chamado por Maria Romana, para

    que juntos fossem a casa de João Evangelista, que estava amarrado por ter tentado se

    enforcar. No relato foi dito que as irmãs alegavam que iriam tirar o feitiço que estava

    em João Evangelista, o réu citou ter tomado vinho de uma garrafa antes de começarem

    os trabalhos curativos em seu irmão. Segundo consta, Maria Senhorinha (vítima) eMaria Romana (ré) eram as pessoas que coordenavam os trabalhos. Manoel Candido

    disse que os acusados começaram bater em João com tição de fogo, cansanção e tudo

    mais que estivesse a mão, depois de terem surrado até a vítima não ter mais forças,

     passaram as surras a Maria Senhorinha Conceição, Maria de São Pedro e a menor de

    Otilia. As surras continuaram até o momento que chegou o inspetor de polícia e os

     prendeu, que mostrou nesse momento que havia 3 pessoas mortas e uma ferida.

    O réu Manoel Candido alegou que eles, os que perpetravam os castigos,

    acreditavam que quando saísse o demônio do corpo das pessoas que estavam sendo

    surradas, elas voltariam a vida. A tentativa de retirar o demônio do corpo, é uma prática

    utilizada não apenas por religiosidades de matrizes africanas, encontramos tais métodos

    na Igreja Católica desde o período medieval, com os rituais de exorcismos, e na

    atualidade ainda encontramos grupos Protestantes Pentecostais e Neopentecostais, que

    celebram os rituais de descarrego. Seja através do exorcismo ou expulsão, a busca da

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    família, era retirar o demônio do corpo das vítimas que diziam estar em martírio por 

    consequência de um feitiço que lhes fora dirigido.

    Este caso nos chama a atenção porque os réus atestaram a possibilidade de culpa,

    Manoel disse que não sabia que tinha batido nas vítimas e que não tinha noção do que

    estava fazendo, a bebida que ele havia ingerido lhe roubou as faculdades mentais. Neste

    caso nos questionamos que tipo de bebida foi essa que conseguiu tirar a razão desses

    indivíduos. Verificamos nesse caso uma das formas de resistência apontadas por Iris

    Verena, em que os acusados de participarem dos Candomblés utilizavam o discurso do

     jornal e alegavam terem perdido as faculdades mentais, como forma de redimir a culpa

     pelas as ações. Segundo a autora “as idéias divulgadas na imprensa para justificar a

    repressão, como a que associava à crença em deuses africanos, a ignorância ou

    desajustes mentais, acabou favorecendo alguns adeptos do candomblé” (2007, p. 112).

    A acusada Maria Romana, alegou que tudo que seu irmão havia dito era verdade,

    acrescentando um fato importante ao caso, disse que era doente e tinha ido a casa de

    uma curandeira conhecida pelo apelido de Lina, e que esta tinha lhe dito que sua doença

    era consequência de dois encantados que estavam para chegar, dizendo posteriormente

    que os feitiços vinham de seu irmão João Evangelista, e receitou algo para que os dois

    conseguissem retirar esse feitiço. A curandeira Maria Carolina da Cruz, posteriormente

    foi indiciada pelo crime de curandeirismo, analisaremos este processo mais adiante.

    O que ressaltamos neste caso é a existência do termo ‘encantado’, os encantadossão considerados antepassados, que durante a vida, de alguma forma, se transformaram

    em parte da natureza9, por essa peculiaridade estão ligados as curas advindas das folhas

    e raízes, esse tipo de prática de cura está muito ligado ao chamado Candomblé de

    Caboclo, que recebe influencia do Candomblé afro-brasileiro e religiosidades indígenas.

    O tema foi trabalhado por Ronaldo Senna (2008) que discorreu sobre os encantados em

    Feira de Santana, apresentando os aspectos dessa composição religiosa, onde se

    localizavam os terreiros na cidade e como eles se estruturavam.

    O Candomblé, e todas as outras formas religiosas que mantinham os elementos

    culturais de matrizes africanas, nos mostram que o fato de “inverter, subverter ou

    ressignificar os valores impostos pelos segmentos dominantes, sempre foi um ato de

    9 Para mais informações sobre os encantados ler FERRETTI, Mundicarmo. Encantados e encantarias nofolclore brasileiro. Trabalho apresentado no VI Seminário de Ações Integradas em Folclore. São Paulo,2008. Ler também CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes,2008.

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    resistência dos grupos dominados” (SENNA, 2008, p. 52), analisamos que nestes

     processos já citados, o lugar aos quais os réus estão inseridos foi o de subalternidade,

    quando vemos que os mesmos em sua maioria não sabiam ler ou escrever e viviam do

    trabalho rural para retirar o sustento.

    O fato ocorreu onde hoje é o atual município de Anguera, na época então

    denominada Almas, distrito de Feira de Santana, todas as testemunhas e réus, a exceção

    de Manoel Candido alegaram que o que estava acontecendo na casa de João Evangelista

    seria um Candomblé, mesmo tendo a dificuldade de especificar em qual estrutura

    religiosa de fato este Candomblé pertencia, se aproximando mais ao culto dos

    encantados, podemos verificar um local no qual as pessoas declaravam o segmento

    religioso ao qual faziam parte.

    A conclusão do processo foi elaborada julgando os réus Manoel Candido Pires,

    Maria Romana da Conceição, Maria Thomazia da Conceição e Maria José de Araujo,

    culpados pelo crime de homicídio, de acordo com os artigos 294 e 304, sobre homicídio

    e lesões corporais. Entretanto, o fato que nos chama mais atenção ao final do processo é

    a ênfase ao fato de estarem os réus reunidos na casa de João Evangelista para “o fim

    condenável de fazerem um Candomblé”, e que esse motivo os levou aos crimes

    cometidos, o assassinato fica encoberto diante do fato de ter acontecido em um

    Candomblé.

    A apreciação do processo não nos fornece base para concluir qual o motivo docrime, se estavam os réus alcoolizados, como atestam algumas testemunhas, ou se estes

    tinham de fato, perdido a consciência em decorrência das beberagens vendidas por Lina,

    ou se teriam os réus e vítimas incorporado, se seus corpos teriam sido abrigo de alguma

    entidade espiritual, que na crença da família seria um demônio, durante a festa, o que

    torna mais difícil ainda entender os motivos dos acontecidos.

    Crime e resistência popularEm 190510 encontramos o processo que teve como ré Maria Carolina da Cruz,

    conhecida por Lina, residente no distrito de Almas, curandeira a quem foi alegada a

    culpa de ter sido em decorrência da venda de suas beberagens, e suas afirmações sobre a

    10 Processo-crime: Subsérie: curandeirismo. Localidade: Período: 1905. Nº de Folhas: E: 04; Cx; 110;Doc: 2276. CEDOC-UEFS.

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    necessidade de se retirar os encantados, que o crime teria sido cometido – processo

    sobre homicídio anteriormente analisado. Nesse processo Lina foi acusada de ter

     promovido o Candomblé em que ocorreram as mortes, e neste caso lembramos que fica

    claro no processo anterior que a acusada não participou do ritual que ocorreu na casa de

    João Evangelista, segundo testemunhas e réus a culpa de Lina era de ser curandeira e tervendido as beberagens ingeridas no dia do crime.

    Uma das testemunhas do processo, Auto Pereira do Nascimento, com cinquenta

    anos de idade, casado, lavrador, natural e residente na freguesia do Bonfim, de Feira de

    Santana, não sabia ler nem escrever. Transcrevemos o que disse Auto em seu

    testemunho, onde sendo inquirido sobre os fatos disse

    que a convite de Manoel Pereira d’Oliveira, inspector do quarteirão, em o diaquatorze do presente mez, fôra no logar chamado Cajá no districto doBonfim, á casa de João Evangelista Pires, onde chegando encontrarammortos este, sua mulher Maria Senhorinha da Conceição, Maria de SãoPedro, e Maria Romana da Conceição acusada presente, dormindo sobreumas palhas de feijão, a qual sendo logo despertada pelo dito Inspector foraesta prêsa e amarrada. Que em seguida, por ordem do Inspector, elle depoentefora avisar ao subcommissario de policia em exercicio Manoel Mirando ooccorrido afim de que fossem tomadas as necessarias providencias, o quefazendo, voltando elle depoente no logar “Cajá” em companhia do ditosubcommissario, digo, Cajá em caminho encontrara os accusados presentes já presas e escoltadas pelo Inspector e paisanas, com destino á casa deresidencia do mesmo subcommissario, dizendo a elle depoentes osconductores das accusadas presentes, que haviam sido estes os auctores dasmortes de João Evangelista, Maria Senhorinha, Maria de São Pedro, sendotambem gravemente ferida, nessa occasião, a menor Othilia e que esses factoscriminosos se deram estando as accusadas em um Candomblé em caza do

    infeliz João Evangelista, quando bastantes alcoolisadas, e depois de haveremse servido de beberagens preparadas pela feiticeira de nome “Lina”. Dissemais que segundo ouvio das accusadas, estes foram levados a pratica dessescrimes em consequencia da exaltação que lhes occasionaram as referidas beberagens.

    A testemunha relatou o caso dos homicídios ocorridos em 1904, que segundo consta,

    aconteceu em decorrência de beberagens fornecidas pela curandeira Lina. Auto Pereira

    esteve presente na diligência policial a casa de João Evangelista, do qual foi testemunha

    no processo relacionado a homicídio combinado com lesões corporais, sobre Lina a

    testemunha afirmou que

    é publico e notorio no districto das “Almas”, foram as accusadas os autoresdessas mortes e ferimentos, por meio de feitiçarias para tirarem o “Diabo”que estava na cabeça dos que morreram, e que isso passou-se no logar e dataa que referia a denuncia. Da