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ISSN 0101-2835 Número, 94 Setembro, 1997 A Pequena Agricultura Familiar Paraense: uma Abordagem Econômica e Sociológica E4m

e Sociológica · 2017. 8. 16. · potencialidade econômica de sua população. Uma instituição pública de pesquisa tem o dever de gerar tecnologias capazes de melhorar o nível

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ISSN 0101-2835

Número, 94 Setembro, 1997

A Pequena AgriculturaFamiliar Paraense: umaAbordagem Econômica

e Sociológica

E4m

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Documentos NQ 94

ISSN 0101-2835

Setembro, 1997

A Pequena AgriculturaFamiliar Paraense: umaAbordagem Econômica

e Sociológica

Antonio Itayguara Moreira dos SantosAlfredo Kingo Oyama HommaAmaldo José de ContoRui de Amorim CarvalhoCélio Armando Palheta Ferreira

E~

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Embrapa Amaz6nia Oriental. Documentos, 94Exemplares desta publicação podem ser solicitados à:Embrapa Amaz6nia OrientalTrav. Dr. Enéas Pinheiro, s/nTelefones: (091) 246-6653, 246-6333Telex: (91) 1210Fax: (091) 226-9845e-mail: cpatur{g:patu.embrapa.brCaixa Postal, 4866095-100 - Belém, PA

Tiragem: 300 exemplares

Comitê de PublicaçõesAntonio Ronaldo Camacho Baena - PresidenteAri Pinheiro CamarãoCélia Maria Lopes PereiraIsmael de Jesus Matos ViégasJorge Alberto Gazel YaredMaria de Lourdes Reis DuarteMaria de Nazaré Magalhães dos Santos - Secretária ExecutivaMoacyr Bernardino Dias Filho - Vice-PresidenteRegina Célia Viana Martins da SilvaRaimundo Nonato Brabo AlvesRaimunda Fátima Ribeiro de NazaréSonia Helena Monteiro dos Santos

Revisores TécnicosExpedito Ubirajara Paixoto Galvão - Embrapa Amazônia OrientalJean Hébette - NAEA/UFPaLeopoldo Brito Teixeira - Embrapa Amazônia OrientalManoel Malheiros Tourinho - FCAP

ExpedienteCoordenação Editorial: Antonio Ronaldo Camacho BaenaNormalização: Célia Maria Lopes PereiraRevisão Gramatical: Maria de Nazaré Magalhães dos SantosComposição: Euclides Pereira dos Santos Filho

@ Embrapa - 1997

SANTOS, A.J.M. dos; HOMMA, A.K.O.; CONTO, A.J. do; CARVALHO, R. deA.; FERRElRA, C.A.P. A pequena agricultura familiar paraense: umaabordagem econômica e sociológica. Belém: Embrapa Amaz6nia Oriental,1997. 37p. (Embrapa Amaz6nia Ortentet., Documentos, 94).

1. Agricultura familiar - Brasil - Pará. 2. Sociologia rural - Brasil - Pará.3. Pequeno produtor - Brasil - Pará. 4. Economia agrlcola - Brasil - Pará.I. Homma, A.K.O., colab. 11. Conto, A.J. do, colab. 11I. Carvalho, R. de A.,colab. IV. Ferreira, C.A.P., colab. V. Embrapa. Centro de Pesquisa Agroflorestalda Amazônia Oriental (Belém, PA). VI. Titulo. VII. Série.

CDD: 338.1098115

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 5

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS MIGRANTESNA AMAZÔNIA................................................................ 7

ASPECTOS GERAIS DA PRODUÇÃO DEALIMENTOS BÁSICOS 10

CIRCUITOS DE COMERCIALlZA çÃO DA PRODUÇÃO 17

O INVESTIMENTO NA ECONOMIA DA PEQUENAUNIDADE DE EXPLORAÇÃO FAMILIAR 22

A VIDA COMUNITÁRIA E O AMBIENTE DAUNIDADE DE PRODUÇÃO 27

CONSIDERA ÇÕES FINAIS 34

REFER~NCIAS BIBLIOGRÁFICAS 3t>

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A PEQUENA AGRICULTURAFAMILIAR PARAENSE: UMA ABORDAGEM

ECON6MICA E SOCIOLÓGICA

Antonio Itayguara Moreira dos Sentas'Alfredo Kingo Oyama Homme'Ama/do José de Conto"Rui de Amorim Cervelno'Célio Armando Palheta Ferreire"

INTRODUÇÃO

Este trabalho faz parte de um estudo mais amplosobre a avaliação da adoção de inovações tecnológicas naagricultura paraense, cuja ênfase principal recai sobre a im-portância histórica do pequeno produtor de alimentos bási-cos. Resulta, também, do trato com as entrevistas diretas,acompanhadas de aplicação de formulários. As conversasgravadas foram realizadas para a obtenção de dados auxilia-res.

No setor agrícola do Brasil existe um segmentoenvolvido basicamente com a sobrevivência da populaçãorural, sem significativa interação com o mercado. E esta se-ção rural constitui A agricultura de subsistência.

A população agrícola de subsistência é, funda-mentalmente, um problema social e a Embrapa, como empre-sa pública, não pode deixar de contemplar, em seus projetos,os agentes sociais nela envolvidos.

Apesar do cunho social predominante nos projetosdirigidos a esse público especial, deve-se levar em conta a

t Econ., M.Se., Embrapa Amaz6nia Oriental, Caixa Postal 48, CEP 66017-970,Belém, PA.2 Eng.- Agr., D.Se., Embrapa Amaz6nia Oriental.3 Econ., M.Se., Embrapa Florestas, Caixa Postal 319, CEP 88411-000, Colombo, PR.4 Econ., Embrapa Amaz6nia Oriental.

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potencialidade econômica de sua população. Uma instituiçãopública de pesquisa tem o dever de gerar tecnologias capazesde melhorar o nível de renda e a qualidade de vida da popula-ção ocupada neste segmento produtivo, pela sua gradualintegração nos negócios do campo.

É útil ressaltar que uma das principais preocupa-ções da pesquisa agrícola deve estar voltada para a geraçãode inovações tecnológicas, social e ecologicamente apropria-das, acessíveis ao pequeno produtor. É essencial que sejamidentificados os fatores que limitam o aumento da produtivi-dade em nível de propriedade. Para isso é importante, emprimeiro lugar, conhecer os aspectos que envolvem o proces-so de produção e, como segundo aspecto, medir o significa-do de cada um deles objetivando definir o tipo de soluçãoaceitável pelo pequeno produtor.

Dentre as estratégias da pesquisa agrícola capa-zes de atender à pequena produção de alimentos básicos,aparentemente duas alternativas apresentam-se como viá-veis: a geração de tecnologias adequadas às condições só-cio-econômicas dos pequenos produtores e a adequação des-ses produtores às tecnologias disponíveis. No primeiro caso,o fundamental é a atuação da pesquisa e da assistência téc-nica em condições específicas - até mesmo particulares -sobre cada sistema de produção utilizado pelo produtor. Nasegunda alternativa, as ações envolvem práticas de preços ecrédito subsidiado, de modo a tornar acessível à pequenaprodução os meios de que necessita para produzir mais emelhor. Somente assim o agricultor é capaz de adotar astecnologias já disponíveis, eminentemente voltadas para aagricultura modernizada.

Porém, há problemas intrínsecos à formulação decada uma, dessas estratégias. No caso de uma tecnologiaespecífica para a pequena produção, embora apenas recen-temente a questão venha merecendo certa atenção, tem-serevelado bastante limitada quanto à sua aplicação. Em pri-

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meiro lugar, em função dos custos envolvidos no sistema deprodução, na medida em que cada problema tecnológico re-solvido reflete apenas um caso particular. Ou seja, resolvidaa dificuldade específica de um produtor, este mesmo sistemadificilmente será aproveitado pelo conjunto dos agricultores,principalmente aqueles mais modernizados. Em segundo lu-gar, o próprio contexto político-institucional vigente(prioridade para a modernização) tem bloqueado a geração dealternativas tecnológicas para a pequena produção de alimen-tos básicos.

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS MIGRANTESNA AMAZÓNIA

Há apenas pouco mais de meio século, a reg/aonordeste do Estado do Pará era intensamente coberta porfloresta densa. Henrique J. Hur/y, em viagem realizada em1920, observou que:

"A té então, apesar de andarmos com a bússola àmão, os velhos "tuchauas" Germano e Travado (.. .) vinhamnos guiando através da sombra da picada que então fizeram(... ). De 10 horas até 11 ~ andamos perdidos, sem sair dorumo, procurando descobrir os vagos vestígios da remotapicada".

Naquela ocasião, Hurly previa que essa "excelenteregião, de flora e fauna tão ricas, poderá ser povoada porcolonos batidos pelas secas e virá a enriquecer o patrimóniodas terras agrícolas do Estado (...) os produtos colhidos es-coarão, com facilidade e rapidez, pelo Guamá abaixo até Be-lém - centro de largo consumo e fonte libérrima de francaexportação. "(Hurly, 1921).

E assim foi feito. Porém, devido a um processo deocupação desordenado, a exuberante floresta deu lugar àvegetação heterogênea, enquanto que os últimos vestígios dafloresta original estão confinados em áreas de difícil acesso.

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Os herdeiros dos "tucbeues", Germano e Travado, possivel-mente abandonaram suas terras e perderam suas identidadestribais, bem com todos os outros índios que habitavam essaregião do Pará.

Como visto anteriormente, nesta colonização es-pontânea a dinâmica migratória dos nordestinos ocorreu poretapas, fazendo pelo menos três moradas antes de chegaremno nordeste paraense.

Da mesma forma, a amostra dos produtores en-trevistados na Transamazônica, pesquisa realizada em 1993,revelou que os produtores residem há 14, 22 anos no mesmolocal; que todos os proprietários nasceram no meio rural e38,93% já tiveram experiência urbana e nos últimos 20 anosmoraram em 2,04 localidades antes de se estabelecerem naregião (Homma et aI. 1997).

O migrante tem sido definido e tratado teorica-mente de forma diversa pela literatura especializada. Dissoafloram importantes diferenças na significação da palavra"migrante H e não menos contradições no que sobre ele édito, como por exemplo os processos econômico-sociais deque participa, as suas condições de trabalho, as motivaçõesenvolvidas no seu deslocamento, o tipo de mobilidade espa-cial e ocupacional que desenvolve, etc. (Martins & Peliano,1978; Faissol, 1978).

Na amostra de migrantes no nordeste paraense ena Transamazônica foi verificado um perambular por diversosEstados. Essas etapas ocorreram em épocas diferentes, jáque diferente é o tempo de residência dos migrantes entre-vistados. No entanto, o que fica identificado é um processoespacial extremamente disperso, se consideramos que a mai-oria dos envolvidos na pesquisa não veio diretamente para onordeste paraense ou para a Transamazônica. Confirma-se,assim, a ocorrência da migração por etapas.

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Sem o conhecimento das determinações estrutu-rais de caráter econômico, é prudente admitir-se que a mi-gração interna fica envolvida num conjunto de indicadoresindividuais (desempenho econômico, grau de escolaridade,motivação, etc.) ou de relatos de experiências particularesque pouco ajudam na compreensão dos fenômenos coletivos.Tratando-se de uma área de imbricação entre a sociologia, aeconomia e os estudos de população ou demográficos, o am-biente teórico comumente utilizado nas análises pontuaiscostumam sofrer as limitações e os problemas próprios decada uma dessas disciplinas.

As migrações podem parecer, em alguns casos,como sendo o resultado de decisões racionais de pessoas embusca de "melhores condições de vida", isso podendo signifi-car desde maior renda até terra própria, moradia, saúde, etc.Mas parece também que a migração, acima de tudo, é produ-to da vontade das pessoas, ou seja, elas migram porque que-rem. O caráter "forçado" da migração aparece dissimulado,ou, mais ainda, totalmente mascarado pela aparente volunta-riedade.

O censo considera como migrante toda pessoaque reside num município diferente daquele em que nasceu.Essa definição carrega vários inconvenientes. Um deles é nãoidentificar a migração intermunicipal, quer seja de sentidorural-urbano, urbano-rural, senão que também rural-rural.Dessa forma, não é levado em conta um tipo de deslocamen-to populacional que pode ter alta significação em situações emomentos determinados. Exemplo típico é o caso em que omunicípio em questão compreenda ao mesmo tempo áreasurbanas relativamente prósperas ou desenvolvidas e áreasrurais pobres ou estagnadas. Casos de Castanhal e Santa-rém, no Estado do Pará.

Isto posto, tem-se que, ao venderem seu tempode trabalho, em suas áreas de residênciaI atual, alguns produ-tores, como já visto, estão prestes a perder definitivamente

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suas condições de produtores aut6nomos. Percorrem umatrajetória histórica que os levará à classe rural dos despos-suídos de meios de produção. É só uma questão de tempo. Apartir daí, têm dois rumos a seguir: ou procuram os centrosurbanos ou passam a fazer parte do "exército de reserva" demão-de-obra para as médias e grandes propriedades.

No primeiro caso irão disputar lugar com os po-bres, os desabrigados, os que formam os "bairros-problema"dos grandes centros urbanos da região. E a única razão paraestarem alí é o abandono e a pobreza do meio rural. Com-põem a classe rural dos "migrantes econ6micos ".

Na Transamaz6nica, por exemplo, durante a pes-quisa de campo no município de Brasil Novo, detectou-se quealguns jovens são mandados para a "rua" (sede do município)pela própria família, apenas para regressarem posteriormente,e após algum tempo como trabalhadores assalariados, tra-zendo um rádio, uma bicicleta ou um fogão à gás. O segundoponto nesse processo diz respeito à "reunificação familiar",segundo o qual o jovem que emigra para o centro urbanodeve trabalhar para conseguir recursos financeiros e transferirpara a cidade sua família mais imediata, abandonando ouvendendo a posse ou o título do lote.

ASPECTOS GERAIS DA PRODUÇÃO DEALIMENTOS BÁSICOS

Nestas últimas décadas, a agricultura brasileirapassou por um processo crescente de tecnificação da produ-ção. Assistiu-se a uma massiva substituição dos insumostradicionais (esterco animal, composto orgânico, etc.) porinsumos industriais (fertilizantes químicos, agrotóxicos, etc.).Em termos conceituais, poder-se-ia dizer que se observouuma fase de progresso técnico do capitalismo na agricultura.E sob o capitalismo a opção tecnológica envolve a valoriza-ção do capital. No caso brasileiro, interesses de grandes em-

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presas, aliados ao capital financeiro, impuseram-se com aplena chancela do Estado, que determina, arbitra e põe emvigor as regras do jogo do capitalismo.

No Estado do Pará, as transformações tecnológi-cas são de menor significação, comparadas ao contexto na-cional, envolvendo, basicamente, a cultura da pimenta-do-reino, a pecuária e alguns produtos de exportação.

O novo modelo agrícola reduziu a produção dealimentos, aumentando a concentração fundiária. Isto signifi-ca que privilegiou as culturas de exportação, que passaram aocupar grandes áreas, e estimulou o crescimento das áreasde pastagens graças à expansão da pecuária de corte. Estetipo de política atingiu parte da pequena produção de alimen-tos, reduzindo o seu espaço físico.

De mais a mais, este modelo significa um novopadrão tecnológico que traz como características importan-tes, as seguintes:

a) vitalizando a modernização tecnológica, o crédi-to rural subsidiado extingue o sistema de crédito informal atéentão existente. Dispondo de garantias reais, o produtor pre-fere o crédito rural subsidiado ao financiamento informal; e

b) substitui as formas tradicionais de parceria pelotrabalho assalariado.

Este novo padrão estabelecido para a produçãoagrícola processa-se em escala diferenciada conforme a regi-ão, o produtor e o tipo de produto. Isto significa que o ritmode incorporação das mudanças tecnológicas é extremamenterápido nas regiões mais desenvolvidas, nas grandes proprie-dades e em certos produtos, principalmente soja e cana-de-açúcar.

A política de modernização da agricultura deve es-tar plenamente identifica da com as necessidades de supera-ção da atual crise econ6mica e social e com a manutençãoda democracia e da justiça social. Não se trata de sustentar e

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ampliar a agricultura de subsistência. O processo de moder-nização da agricultura é desejável desde que alteradas assuas características seletivas vigentes e socialmente perver-sas.

Existe, no Estado, uma ampla diversificação naspráticas agrícolas desenvolvidas, principalmente no que serefere à seqüência de cultivos, aos tipos de culturas consor-ciadas e ao tempo de uso e descanso do solo para a regene-ração natural (pousio).

Desta forma, algumas considerações merecemdestaque. O cultivo da mandioca ao longo do ano permite arotação ou a consorciação dessa cultura com arroz, milho oufeijão, compondo um modelo de exploração do solo bastanteflexível. No principal sistema usado com culturas alimentares,o milho e o arroz são semeados em consórcio, logo após oinício das chuvas, sendo a mandioca plantada mais tarde,aproveitando os espaços deixados por essas culturas. O fei-jão é semeado depois da colheita do arroz e do milho, entreas linhas de mandioca. Colhidos o feijão e a mandioca, nosegundo ou terceiro ano de uso do solo, a área é abandonadapara dar sequência ao ciclo de regeneração natural. A mandi-oca geralmente ocupa o terreno por um ou dois anos, depen-dendo da variedade utilizada e da necessidade monetária doprodutor. Alguns agricultores fazem o pousio depois da co-lheita do arroz e do feijão, enquanto outros costumam plantara mandioca como primeiro cultivo, logo após a derrubada dacapoeira. Ou seja, plantam milho ou feijão e mandioca, nomesmo momento, sendo as duas primeiras opcionais.

Como prática tradicional, o pousio é realizado dei-xando-se o terreno sem uso durante 3 a 4,5 anos. Seguem-se a derrubada e a queima da vegetação que se estabeleceuna área, reproduzindo-se novo roçado. Nas rodovias Transa-mazônica e Cuiabá-Santarém, o pousio registra, em média,4,2 anos.

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Considerando-se o grau de descapitalização docampo e o fato de os produtores não terem acesso a outrasalternativas de preparo do solo, a prática das queimadas sejustifica por ser este o processo menos oneroso dentre osexistentes. A queima da capoeira derrubada leva ao extermí-nio de insetos e parasitas, além de incorporar nutrientes nosolo. No entanto, seu uso sistemático acaba por desgastar oterreno, pela perda da fertilidade natural. Em média, o produ-tor trabalha dois anos no mesmo espaço, abandonando-o emseguida (Homma et ai. 1993).

Dadas essas condições de baixo grau de desen-volvimento das forças produtivas, o agricultor se vê obrigadoa realizar plantios consorciados. Procura tirar o maior proveitode várias colheitas, no mesmo ciclo agrícola e nos limites damesma área. Assim agindo, reduz o tempo de trabalho nasoperações agrícolas de seu roçado, colocando esse tempo àdisposição de outros produtores (venda da força de trabalho).Dá-se a complementaridade nas relações de trabalho no meiorural, que se cristaliza pela própria variação do tamanho daárea. Aqueles que possuem roçados maiores assalariam osque têm roçados menores. Em outras palavras, alguns pe-quenos produtores preferem cultivar um roçado de duas outrês tarefas (um hectare tem 3,3 tarefas), sabendo que têmcondlções de colhê-Io. No restante do tempo eles assumem asituação de assalariados do proprietário do roçado maior.Este último fornece desde o "quebra-jejum" (espécie de me-renda matinal), ao jantar, além do pagamento do dia traba-lhado. Estes produtores que alugam sua força de trabalhoestão prestes a perder definitivamente a condição de produ-tores aut6nomos. Percorrem uma trajetória histórica que oslevará, mais tempo, menos tempo, à classe dos despossuídosde meios de produção.

Este modo de produção adotado reflete, contudo,a plena adaptação do homem do campo às condições ambi-entais da Amaz6nia. A prática da agricultura itinerante temseu uso generalizado e operações como o desfibramento da

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malva e a maceração da mandioca destinada à fabricação dafarinha d'água são realizadas com o aproveitamento dos iga-rapés locais, perenes e abundantes.

A quantidade de mão-de-obra familiar disponível éfator limitante para o tamanho da área a ser trabalhada. Pri-mordialmente, o pequeno produtor rural dá ênfase às culturasdestinadas à alimentação da família. A mandioca, por exem-plo, é sempre cultivada, pouco importando as condições depreços de mercado ou a produtividade. Quando o programade produção requer excedentes para venda, a área é amplia-da. Cristaliza-se, neste caso, a necessidade de entrada de"algum dinheirinho" para a compra de determinados produtosnecessários à manutenção da família, como vestuário, remé-dios, alimentos não produzidos no roçado, querosene e ou-tros.

Dos produtos destinados à venda, a preferênciado produtor recai sobre a farinha de mandioca. Os exceden-tes das colheitas de arroz, milho e feijão destinados à comer-cialização obedecem a critérios secundários na decisão deplantio. O interesse maior é a alimentação da família.

Vale ressaltar que, mesmo reduzindo ao mínimo opadrão alimentar do produtor e de sua família (cardápio com-posto de arroz e feijão ou farinha com peixe seco), estocandoparte da produção para ir consumindo durante o ano e partepara a reprodução do novo roçado, ainda assim a unidade deprodução familiar necessita dispor de meios monetários, paracomprar bens essenciais, como já dito. Logo a venda de al-guns produtos do roçado, em muito casos, não significa aexistência de saldos de produção, os quais são medidos peladiferença entre o colhido e o imprescindível ao consumo. In-dica, isto sim, as necessidades pecuniárias do produtor. Odéficit familiar é suprido com a posterior compra desses pro-dutos rio mercado.

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o conceito de subsistência, nessas condições,passa a ser a definição de uma subsistência como produçãode alimentos para o mercado interno e não apenas para sub-sistência do produtor direto, sem considerar a comercializa-ção. O segundo aspecto a se verificar é que, reduzindo aomínimo o padrão alimentar, o pequeno agricultor explica, emparte, a formação artificial de "excedentes" vendidos fora daunidade de produção.

Além do uso de práticas agrícolas tradicionais nacondução da lavoura, o pequeno produtor destaca-se pelomanuseio de instrumentos de trabalho rudimentares e empequenas quantidades. Dentre os quais, o "tipiti" (tipo deprensa) utilizado na fabricação da farinha de mandioca, o"espeque" (torno de madeira com ponta), a enxada e o inse-parável facão.

Para se entender como se organiza a produção dapequena unidade de exploração agrícola regional, é necessá-rio que alguns critérios de ordem conceitual sejam estabele-cidos.

A unidade de exploração ou unidade de trabalho étambém uma unidade de consumo. Ou seja, a dupla dimen-são cristaliza-se devido a produção ser praticada pelo grupodoméstico, entendido como o conjunto de pessoas que vivemna mesma casa e possuem uma economia doméstica co-mum. Este aspecto dá à unidade de trabalho um caráter fa-miliar, especificidade, que é a característica fundamental dapequena produção ou produção agrícola familiar. O caráterfamiliar da produção afirma-se, então, a partir de uma divisãosocial e sexual do trabalho dentro do grupo doméstico. Nestetipo de organizaçOo social, a figura do "chefe de família" éfundamental e decisiva no processo de produção.

A contradição entre produção e consumo materia-liza-se com a oposição entre roçado e casa. O roçado é localde trabalho. Na casa consome-se o resultado desse trabalho.Esta contradição define a produção de subsistência.

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No roçado familiar, é fundamental que se observeduas outras categorias organizacionais: o processo de produ-ção e o processo de trabalho. A primeira categoria compre-ende o modo de como o solo é explorado (sistemas consorci-ados, plantios solteiros, rotação de culturas, etc.) e o níveltecnológico empregado. No processo de trabalho estão con-tidas as normas de organização da força de trabalho disponí-vel na família e aquela que eventualmente a ela venha seincorporar em algumas fases do ciclo evolutivo do roçado.

A agricultura de alimentos básicos na Amazôniacaracteriza-se, ainda, pelo predomínio do trabalho vivo sobreo trabalho morto, este representado pelos objetos e instru-mentos de trabalho.

Como já mencionado, parte da agricultura regionalalterou a organização e a reprodução da pequena produção.O processo atingiu os padrões de organização do trabalhofamiliar, as expectativas de consumo da família e, como con-seqüência, o cálculo econômico da unidade de produção.

Quando se afirma que o pequeno produtor ruralestabelece um cálculo econômico para o seu roçado, deseja-se evidenciar que a unidade de exploração familiar rege-sepor uma lógica interna própria. Disso surgem duas considera-ções: a primeira refere-se às motivações econômicas do pe-queno produtor. Se o fim almejado para a produção é tãosomente a subsistência familiar, o termo lucratividade nãotem razão de ser. A segunda consideração diz respeito aoaumento da produção por unidade de área das lavouras. Senão há motivação para produzir além do necessário para aalimentação familiar (produção de excedentes), o pequenoprodutor não se interessa pelo aumento da produtividade(Santos, 1990).

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CIRCUITOS DE COMERCIALlZAÇÃO DA PRODUÇÃO

Na maioria dos casos, a comerciellzeçõo se realizana própria propriedade, na "porteira do roçado", como é co-mum se dizer, feita com intermediários.

Mesmo que algumas variações venham ocorrendonas formas de ctrcúteção dos produtos comercializados naregiAo, esta é a forma mais atual. Caracteriza-se, assim, astueção do capital comercial como vetor da subordineçãoindireta do pequeno produtor rural. O capital comercial assu-me uma posição hegemônica, impondo regras de dominação,nas quais o crédito informal é o elemento chave.

É de se notar, ainda, alguns procedimentos queenvolvem a comercialização da pequena produção agrícola:

e) "venda na folha": ocorre quando o produtor ru-ral, que dificilmente tem acesso ao crédito formal toticiet), éobrigado a recorrer ao crédito informal, vendendo sua produ-ção antecipadamente, "na folha", ou na "boca da safra", apreços aviltantes. De ressaltar os elevados juros que muitospagam. Este mecanismo espoliativo se estabelece numa rela-ção do tipo grande comerciante exportador/pequeno comer-ciante (taberneiroJ/produtor rural, este financiado pelo primei-ro. Os arranjos verificados no circuito de comercietizeçãoprovocam a ecumuteçõo, beneficiando sobretudo os grandescompradores. Sendo poucos, eles controlam facilmente ospreços, principalmente na época da safra; e

b) "aviamento": o produtor recorre ao pequenocomerciante, taberneiro, bodegueiro que para ele fornecevestuário, remédios, ferramentas e outras mercadorias a pre-ços elevados. Na ligação direta entre produtor e taberneiro,este último financia o pequeno produtor, adiantando-lhe mer-cadorias ou dinheiro, cobrando juros exorbitantes. O pequenoagricultor antecipadamente coloca o seu roçado como garan-tia do financiamento.

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Os alimentos de origem vegetal produzidos no Es-tado participam de forma diferenciada do processo de circu-lação. Ou seja, os sistemas de comercialização, por produto,não se configuram homogêneos para a totalidade dos produ-tores. Os produtos percorrem caminhos diferentes no merca-do, compondo uma cadeia formada por diversos agentes so-ciais, formando um complexo processo de comercialização(Fig. 1).

Unidade deprodução

Intermediação(taberneiro local)

Intermediaçilo- marreteiro, etc.

Comerciante(município)

Consumidor-8e/ém- Castanhal, etc.

(3) (4)

Intermediação

(1)

Agroindúsúia-aldogodão-maracujá, etc.

Cooperativa-pimenta-mamão, etc.

18

t, Arroz com casca2. Arroz beneficiado3. Pimenta-da-reino4. Pimenta e outros produtos perenes

FIG. 1. Circuitos de comercailização de produtos de origemvegetal no nordeste paraense.

(2)

Notas:

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No centro do fluxo encontram-se os agentes soci-ais denominados genericamente pelo produtor de comercian-tes. Nas vilas e pequenas comunidades são chamados detaberneiros, bodegueiros ou barraqueiros. O pequeno volumeda produção e a dispersão das unidades de trabalho caracte-rizam a importância desses agentes de intermediação. Sãoeles que aglutinam essas safras pulverizadas e assumem par-te dos riscos da comercialização, da qual os grandes comer-ciantes se eximem.

A ligação direta e pessoal entre o produtor e o ta-berneiro apresenta uma contradição marcante. Se de um ladoo taberneiro é tido como uma espécie de "salvador da lavou-ra", necessário à sobrevivência do produtor fornecendo-lhefinanciamento e mercadorias a prazo, de outro é chamado de"tedrão". O pequeno agricultor alega que é roubado no peso eno preço das mercadorias e ainda, em alguns casos, forçadoa trabalhar no roçado do taberneiro como pagamento peloempréstimo concedido.

A espoliação do pequeno produtor pelo bodegueiroocorre apenas em parte, na medida em que este se coloca nacadeia de comercialização como um "testa de ferro" dogrande comerciante ou do usineiro (caso do arroz). Em algu-mas situações é o preposto do proprietário da terra. Portanto,acima do pequeno comerciante coloca-se o "patrão", peçafundamental na cadeia mercantil que liga o produtor ao ta-berneiro nos mais distantes pontos do interior.

Outro agente de intermediação é o "camioneiro"ou "caminhoneiro". Percorre os povoados vendendo, com-prando e trocando produtos, numa atividade semelhante ao"reqetão" que é efetuada por "cenoeiros" e "barqueiros" nosrios da Amazônia. No interior do município de Capitão Poço,por exemplo, trocava peixe seco trazido dos municípios deVigia e Marapanim por produtos da terra. Este agente compra

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arroz em casca, feijão, farinha, milho e frutas regionais, dire-tamente do produtor realizando a venda nas feiras dos cen-tros urbanos.

Em algumas pequenas propriedades, a produçãode milho e feijão é quase que totalmente destinada ao con-sumo caseiro. No caso do milho, o produtor está convencidode que o preço oferecido pelo taberneiro não paga os custosde produção, incluindo a "beteçõo" (extração dos grãos daespiga) e o transporte. Prefere, por isso, programar o plantiopara atender ao consumo doméstico. O feijão, em geral, écomercializado diretamente com o atravessador, elementoque mobiliza pequeno capital e compra produto no retalho,em pequenas quantidades. Raramente o feijão é negociadocom o taberneiro, pois alega que o "patrão" prefere o tipochamado "feijão do sul" (Phaseolus), produzido, principal-mente, no município de Alenquer.

Sabendo da condição financeira do atravessador,o produtor pechincha os preços dos produtos que oferece. Ospreços são impostos pelo agricultor, colocando-os o maispróximo possível dos níveis de mercado. Na prática, o atra-vessador, por vezes pequeno comerciante de feira, dependedo pequeno produtor para assegurar sua sobrevivência, umavez que vive da revenda dessa pequena produção.

O circuito de comercialização da farinha, em geral,passa pelos seguintes tipos de agentes sociais: a) o tabernei-ro, pequeno comerciante normalmente de origem rural e resi-dente na mesma área do produtor; b) o comerciante estabe-lecido na sede do município; c) o proprietário de firma comer-cial em Belém ou nos grandes centros urbanos da região.Estes últimos liberam o crédito que é redistribuído entre ospequenos comerciantes até chegar à ponta do circuito, oagricultor.

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Pode-se distinguir três tipos distintos de produto-res de farinha, segundo a tecnologia empregada na produção:

a) o produtor amaz6nico (nativo) produz a farinhad'água, de cor amarela, que na sua mesa substitui quase porcompleto o arroz;

b) o produtor nordestino prefere a farinha seca, decor branca. Uma parte da produção é vendida no mercado deBelém e outra exportada para o Nordeste e o Sudeste; e

c) os descendentes de nordestinos produzem a"farinha do Pará", um tipo misto, resultante da mistura damassa ralada de mandioca com a fermentada. Esta farinha émuito consumida em Belém.

No circuito de comercialização do arroz em casca,produzido na região nordeste do Pará, é marcante a figura docaminhoneiro, que trabalha financiado pelo usineiro. O seulucro resulta da diferança que obtém entre o preço pago aoprodutor e o estabelecido pelo usineiro. No entanto, as des-pesas com a manutenção do veículo não permitem lucrossubstanciais.

Como agentes principais da cadeia de comerciali-zeçéo do arroz em casca, os usineiros formam um cartel po-deroso. As usinas de beneficiamento localizadas em CapitãoPoço, Santa Isabel e Santo Ant6nio do Tauá, por exemplo, nomomento da pesquisa eram as responsáveis pela compra dequase toda a produção de arroz do nordeste paraense, distri-buindo o produto beneficiado para o comércio local, dos ta-berneiras aos atacadistas dos grandes centros urbanos, in-clusive Belém. Eram eles que determinavam o preço de com-pra, o volume a ser comercializado e o preço de venda doarroz beneficiado aos atacadistas.

O taberneira recebe uma comissão por saco de ar-roz em casca, comprado e repassado para a usina de benefi-ciamento. É prática quase generalizada este agente socialaplicar o financiamento do usineiro no seu próprio roçado,

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realizando-se como comerciante e pequeno produtor aomesmo tempo. O financiamento aplicado proporciona-lhe aacumulação a partir de sua lavoura.

o INVESTIMENTO NA ECONOMIA DA PEQUENAUNIDADE DE EXPLORAÇÃO FAMILIAR

Observações de campo indicam que para os pe-quenos produtores da Amaz6nia, o grande problema é o bai-xo nível de bem-estar. A presença de uma "fome invisível", afalta de mercado para os produtos, a deficiência de transpor-te, a qualidade do solo, o tipo de cobertura vegetal, a mu-dança nos sistemas de produção ao longo do tempo, entreoutros, levam a crer que existe uma permanente insatisfaçãode consumo, pouco acima do nível de subsistência mínimo.Deve ser dito que o grau de fadiga da força de trabalho sofrevariações conforme as circunstâncias de demanda de mão-de-obra e dos atrativos oferecidos. Da mesma forma, o graude insatisfação do consumo, em vez de uma função contí-nua, deve oscilar entre dois patamares, variando de um nívelmínimo de subsistência biológica - diga-se, 2.000-3.000cal/dia, mantido o padrão tecnológico vigente.

O funcionamento do mercado de mão-de-obra re-presenta algo que merece posteriores especulações no pre-sente modelo. As evidências, na Amaz6nia, indicam a exis-tência de dois preços para mão-de-obra, um comportamentoequivalente aos ativos fixos de Johnson (1955). Uma unida-de familiar de pequena produção, mesmo tendo estoque de.mão-de-obra, por falta de opções tem um custo de oportuni-dade muito baixo para suas atividades produtivas, ou torna-se antiecon6mico para aquele que a contrata, muitas vezesregulado pelos salários institucionais. As necessidades demão-de-obra, em face dessas condições, baseiam-se no pro-

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cesso de troca de dias de trabalho, muito comum nas ativi-dades ligadas às culturas anuais ou à meeção, como ocorrenos plantios de cacau e café na Amazônia.

A importância da contrlbulçõo de Costa (1995),em termos de proposta de desenvolvimento agrícola, é bas-tante singular. Em primeiro lugar, realça a importância quantoàs possibilidades de mudança tecnológica, como a mecaniza-çõo agrícola na unidade de exptoreçêo de pequenos produto-res. No nordeste paraense, em face das restrições quanto aodesmatamento, à escassez de áreas de floresta densa e deveçeteçêo secundária, que já sofreram contínuas derrubadase queimadas, a utllizeçõo da mecenizeçõo e de fertilizantesquímicos é estimulada entre os pequenos produtores de fei-iso. A introdução da mecenizeçêo por esse segmento de pe-quenos produtores - mostrando uma ruptura com o processotradicional -, modifica o grau de fadiga, mesmo que isso nãoleve à melhoria na renda, como já enfatizado por Nakagima(1969). Naturalmente que há uma época adequada para seiniciar a mecenlzeção ou para a utitlzeçêo de insumos moder-nos. O elevado custo fixo, por unidade de uso, dificulta amodemizeçêo, especialmente a mecenizeçõo, por ter menordivisibilidade. Uma solução seria reforçar os trabalhos de na-tureza comunitária, incentivando maiores investimentos porparte do conjunto de pequenos produtores.

Um conflito que se verifica nesta questão refere-se à edoçêo de sistemas agroflorestais (SAFs) por pequenosprodutores na Amazônia - induzidos por ecologistas comomaneira de evitar desmatamentos -, e dos programas decrédito rural do FNO, sem que haja aumento na produtividadeda mão-de-obre. Alguns agricultores, em face do estoque demão-de-obre disponível, ficam no dilema: cuidar dos SAFs oudas culturas de subsistência. Como a produção de alimentostem maior utilidade imediata, a lógica é deixar os SAFs semos tratos culturais apropriados, principalmente capinas. Outroaspecto está relacionado com o limite de disponibilidade detempo dos pequenos produtores. Há que se qualificar, entre-

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tanto, essa disponibilidade de tempo, escassa nas épocas depreparo de solo, tratos culturais e colheita, e sujeita a deter-minadas restrições climáticas e biológicas. Dependendo datoceüzeção, principalmente nas fronteiras velhas, as observa-ções indicam a existência de excesso de oferta de mão-de-obra para o conjunto da pooúteção no meio rural. As restri-ções decorrentes do estoque de mão-de-obre disponível, daidade das pessoas, das mudanças de mercado e de fatoresambientais constituem outras variáveis que limitam as possi-bilidades de investimento.

As possibilidades de investimento dos pequenosprodutores não estariam, portanto, presas somente à rígidatimiteção na disponibilidade de mão-de-obre. mas também àfalta de alternativas apropriadas ao processo produtivo. Esteaspecto foi bastante enfatizado no mecanismo de auto-controle de Paiva (1975). A aversão ao risco do agricultorassume importância no seu processo decisório à medida quea sua subsistência e da sua família dependerem da produçãode sua lavoura e do estágio de evolução da unidade de explo-reçêo familiar. Acrescenta-se, também, a ignorância e a bai-xa capacidade empresarial desses agentes sociais na oercep-ção das possibilidades de maior sacrifício no trabalho, leva-dos até mesmo, pelo comodismo. Estes aspectos enfatizam anecessidade de reforçar o serviço de extensão rural e deeduceçêo no meio rural. Outro aspecto está relacionado coma qualidade e a disponibilidade dos serviços de intre-estruturesocial à dtspostçõo dos agricultores na Amazônia. Constituin-do-se linha de frente na dinâmica da ocuoeçêo territorial, vãosendo gradativamente deslocadas à medida que avançam asformas de agricultura mais capitalizadas, sofrendo, dessaforma, uma tocelizeçõo "enti-von" Thuenen, com sensíveisprejuízos quanto ao transporte, à comercteüzeçso, aos preçosrecebidos, entre outros, prejudicando o processo de investi-mento.

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Apesar da dualidade tecnológica existente, osprodutos cultivados pelos pequenos agricultores amaz6nicoscaracterizam-se pela baixa produtividade e lucratividade, quepor sua vez se traduz em obstáculos à modernização, emrazão do risco envolvido nas mudanças dos sitemas de pro-dução. O próprio padrão de geração de tecnologia tem dis-criminado regiões, produtores e produtos, dificultando aobtenção de aumento da produtividade apenas através darealocação de recursos em sistemas agrícolas tradicionais.

Vale ressaltar as políticas de estímulos à utilizaçãoda mecanização, de insumos modernos, de preços agrícolas ede transportes, entre outros, com vistas à redução dos des-matamentos e das queimadas pelo segmento de pequenosprodutores. A derrubada da floresta densa, ou da capoeira,depende de uma série de variáveis econ6micas e tecnológi-caso Entre as principais, poderiam ser destacadas a idade dacapoeira, a disponibilidade e o preço da terra e da mão-de-obra, a densidade demográfica, o número de capinas neces-sárias à manutenção do roçado, a infestação de pragas edoenças, o custo da derrubada e o preço do produto.

Um dos principais problemas enfrentados pelospequenos agricultores, quanto à utilização das capoeiras comreduzido período de pousio, refere-se ao excessivo número decapinas (chegando em alguns casos a mais de dez), além daqueda da produtividade agrícola. Isto faz com que o custo deprodução se eleve em demasia, além de restringir o tamanhoda unidade de exploração. Por outro lado, ao deixar as áreasde capoeira por longo período de pousio, isso implica custoefetivo não somente da área trabalhada, mas da área totalque está em pousio. Dessa forma, a vantagem do custo daderrubada e da queimada da capoeira ser inferior, em compa-ração ao da floresta densa, pode ficar neutralizada pelo au-mento do número de capinas e do custo efetivo da terra. Oaparecimento de pragas e doenças torna-se, também, outrograve risco para os agricultores que utilizam as capoeirascom reduzido tempo de pousio.

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No caso dos pequenos produtores da Amazónia,acrescente-se o desconhecimento dos recursos naturais, oque faz com que nem sempre as melhores áreas sejam utili-zadas para a agricultura. O insucesso de vários programas decolonizaçlJo dirigida e esponténee na regilJo está, em parte,relacionada com este aspecto, neutralizando o processo deinvestimento pelos produtores. Por outro lado, a própria de-gradaçlJo dos recursos naturais - à medida que se vai incor-porando ao processo produtivo áreas de floresta densa -, oenvelhecimento do proprietário e a disponibilidade de filhosem idade de trabalhar, fazem com que as possibilidades deinvestimento sejam diferenciadas.

Em termos de opções políticas, ressalta-se a im-portância de ser estimulado o consumo das unidades familia-res para incentivar a produção, a produtividade e reduzir ograu de fadiga ao trabalho, como dependentes de políticasque procurem melhorar a infra-estrutura social das comuni-dades de pequenos produtores (eletrificaçlJo rural, estradas,escolas, saúde, etc.). Nesse sentido, apesar de as soluçõesserem distintas para as diversas regiões do país, reforça-seque há necessidade, por parte do governo, de direcionar mai-ores investimentos públicos para o meio rural, visando osegmento de pequenos produtores. A baixa capacidade deinvestimento da pequena agricultura torna-se causa e efeitode outros fatores negativos. E os investimentos governamen-tais em infra-estrutura social devem ser enfocados como polí-tica prioritária.

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A VIDA COMUNITÁRIA E O AMBIENTE DAUNIDADE DE PRODUÇÃO

As entrevistas que se seguem enfatizam a impor-tância social da pequena produção agrícola regional, as ca-racterísticas do movimento migratório do Nordeste para aAmaz6nia e as peculiaridades dessa pequena produção. Aprimeira foi gravada no interior da comunidade de Santa Lu-zia, município de Capitão Poço (rodovia Capitão Poço-trttúiel.propriedade do agricultor Ribamar. Deve-se muito ao auxíliodo "compadre" Galdino, conhecido na comunidade por exer-cer as funções de pequeno comerciante e agricultor. Comseu auxílio foi possível entrevistar Ribamar e sua família. Estaparte da entrevista é dedicada a eles, pela confiança, amiza-de e hospitalidade.

No texto, a identidade da pessoa que fala é desi-gnada pela primeira letra do apelido caseiro. As perguntasforam antecipadamente estudadas e mentalmente gravadas,com vistas a se conseguir os objetivos desejados. Além doentre vistador, identificado pela maiúscula E, participaram:

R - Ribamar (Ribe), chefe de família, nascido emTimbiras, MA, em 1913 e morador de Capitão Poço desde1936;

DZ - Dona Josefina (Zeie), mulher de Ribamar,nascida em 1913, também em Timbiras;

Z - Zeferino, 52 anos, terceiro dos "fio home" docasal, nascido e criado em Santa Luzia.

Quanto ao problema de como reproduzir a matériaoriginal, hesitou-se entre duas opções. A primeira seria utili-zar uma ortografia ortodoxa, mas distante do discurso origi-nal. A segunda, tentar ser fiel ao que foi falado. Ao se utilizara ortografia ortodoxa, os resultados apresentaram-se distan-ciados demais da realidade sócio-cultural do ambiente rural.Perdia a expressiva riqueza linguística. Resolveu-se, então,

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pela trenscriçêo a mais fiel possível dos discursos. Espera-se,desta forma, comunicar a experiência dos entrevistados. Natrenscrição, as perguntas do entrevistador são sublinhadassomente para distinguí-Ias das respostas dos entrevistados.

A família morava em uma casa de pau-a-pique,coberta de cavaco, possuindo uma ampla sala com mobiliáriorústico, dois quartos e cozinha. Em uma puxada ficava o de-pósito e a casa de farinha. No terreiro, a "criação e os animámiúdo".

A casa estava distante aproximadamente três lé-guas5 da estrada de Capitão Poço-Irituia. O roçado, encrava-do na capoeira, distava da casa cerca de uma légua, medindoem torno de cinco tarefas. Este o ambiente rural.

E - Compadre6 Riba, desde quando o senhor mora

R - Desde 36. Eu naci em Timbira, no Maranhão,no ano 13. Nossa famia era grande, 12 fios. Lá é lugá quenum dava más nem prá criá bode. Só é babaçu. Nois butavaa roça e lá vem babaçu. Saía do chão feito praga. Aí mu-demo. Peguei Zefa, nossos baguio (pertences) aí eu disse:vamo mudá. Aí nois peguemo istrada e fumo prá Caxias(cidade do Maranhão). Fiquemo por lá até qui naceu o Durni-vá (Durnival, filho mais velho do cesel). Zefa, qui ano naceu oDurnivá?

DZ - Foi no 32. A gente tava agregado do cumpe-de Cirilo, num si alembra não?!

R - Olha qui num mi alembro. Bom. Aí dotô, noisdexemo o Durnivá ficá mais taludim (crescido) e butemo ospé na puera. Tinha fé de encontrá terra boa prós lado do Pa-

5 Uma légua equivale a seis qui/ómetros.5 O termo compadre é muito usado, demonstrando respeito e amizade. Neste caso,procurou-se colocar a conversa de modo informal.

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rá. Mudemo prá junto de Imperatriz, MA. Peguemo um peda-ço de chão e butemo a roça, criemo animá miúdo e criação.Aí naceu o otro fio home, o Tonho (Antonio). Mas começô omau tempo. Quando cheguemo lá, num tinha muita gente,não. Dispois foi chegano muita gente e o pessoá foi fastano(afastando), fastano. Deu prô pessoá trabaiá, e impastava ebotava a roça mais prá frente. O gado dos ôtro deu prá entrána roça e acabava tudo. Num bastava a cascavel inda tinhaos boi.

E - Eles tinham muito gado?

R - Não. Dispois foi que eles foram comprano esotano o gado. Aí tinha muito gado e vaqueiro. Aí chegô meuirmão mais caçula, Jerne, e disse: "Vamo prô Pará. Em Codóesbarrei com um gateiro (caçador de onça e outros animaissilvestres) qui falô qui no Capitão Poço as terra são boas enum tem dono". Aí eu disse: Minino, vumbora prá lá, proquêlá cria um porquim, cria um bode e aqui vô fazê o quê? Vamulá vê o causo como é. Bom, dotô, prá num incumpridá, intéhoje tô aqui. Dentro desses anos tudo só fiz uma muda degleba e vim mais práqui, fora da istrada.

E - Seu irmão e os filhos moram todos aqui?

R - Zefirino, fala tu home.

Z - Não dotô. Tio Jerne foi prôs lado do Madeira(rio Madeira) trabaiá na borracha, no ano 38. Queria enricá.Nunca mais vort6. Nois semo três fio home e três fia mulé.Dos home, o Durniva foi bataiá no garimpo e o Tonho temuma gleba queie dano (quase limite) com a minha, a umas 10léguas daqui no rumo de Irituia. As fia muié casaram, só nãoa Naí (Nair, mais nova da família, 30 anos) que ficô aqui prádijutório (ajuda) pr6s véio pai. Tudos nois trabaia na roça.Quando dá tempo de aperreio, uns ajuda o ôtro. Nois plantaum p6co de arroz, feijão e mandioca. A malva dá di graça. O

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Tonho tá exprementando algodão. No começo a farinha erasó prá cumê. Hoje nois vende um pôco pra arremediá. É roçade pobre, sabe!

E - Voces só vendem a farinha?

Z - Eu calculo assim na minha técnica. A gentebota uma roça de pobre mas dá prá aguentá a famia e vendearguma coisa. Na coleita a gente vende argum arroz, farinha,mií (milho) prós niguciante. O cumpade Galdino (taberneiro dacomunidade, já citado) sempre compra a produção e aviamantimento.

R - Mas esse secene' róba muito a gente. As vezvem um niguciante e dá o preço do arroz. Aí nois leva orôcumpade Galdino e ele fica enchendo miolo de pote(conversa vazia) e bota o preço lá embaixo. As vez a gentevende pró mode que tá devendo prá ele.

E - Compadre Riba, como era este lugar quandovoce aqui chegou?

R - Esse mundo era tudo mata. Era cada pedaçode pau que dois home num abraçava. Pela nossa técnica,nois jurguemo enfretá. Era mato bruto, e pra tudo canto,quando dava noite, nego só via onça isturrá. Fizemo umabarraquinha e entremo prá dentro e fomo trabaiá. E toquemofazê a roça. Metemo ferro e fomo indo (fomos indo), e hojetá assim.

E - Os técnicos da assistência técnica passam por

Z - Inté que não. Sabe, esses dotô só qué sabê deroça de rico, de japonês. Um chegó aqui disse pró véio meupai: "É preciso organizá essa roça, bota semente boa, aduboe remédio (inseticida) prás pranta bota mais miá". Aí meu

7 Para entender o discurso de Riba é preciso levar em conta que o uso do palavrão éanormal no ambiente rural.

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véio falô que era roça de pobre e pela nossa técnica a roçatava dano assim mermo. Sabe, dotô, eles diz umas coisa, étudo caro e quando vai vê dá prejuízo. Só dá prá rico.

E - Compadre Riba, e a mata daqui, voces a der-rubaram toda?

R - Nois não. Um dia chegô aqui um tal de seuManué, lá das bandas de Castanhal, e disse que era dono dasterra. Que ele tava aqui pra mode binificiá a terra e tacô adirrubá a mata. Carregava o caminhão véio de toro e ía imbo-ra. Adispois vortava a dirrubava mais mata. Aí eu disse: Essecara é ladrão. Já tirô a madeira dessa merda tudo e não bini-fici6 nada. Nois vamo acabá num teno um pau de roça aqui.Nois juntemo os morad6 e butemo o invasô prá corrê. Sinunca mais vort6 é pru mode que num era dono da terra. Eraladrão mermo. Hoje nois temo o papé da terra dado pelo gun-vemo.

Observa-se neste trecho da entrevista, a abun-dância de observações extraídas da pequena unidade de pro-dução familiar. A riqueza lingüística típica do interior, a influ-ência do chefe de família na unidade de produção (roçado) ede consumo (casa), o relacionamento entre o produtor e o"niguciante", o modelo migratório por etapas adotado pelafamília nordestina, a luta entre a pecuária e a produção dealimentos básicos, a defesa do meio ambiente contra aagressão ecológica e a resistência à adoção de inovaçõestecnológicas caras.

Como detalhe, apesar de o palavrão ser excepcio-nalmente utilizado no ambiente rural, o pequeno produtordele faz uso para demonstrar sua revolta quando sente ame-açada a sua sobrevivência. A espoliação é tratada com opalavrão. Quando o palavrão é usado gratuitamente, acabasendo degradado. Numa conversa, desde que se use a mes-ma expressão dez vezes, repetindo-a em cada frase, comopara marcar ritmo, aí não tem sentido. No caso deste traba-lhador, reflete um forte sentimento de revolta.

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Cearense e aparentando 65 anos de idade nomomento da entrevista, o segundo depoimento deu-se com opequeno agricultor Renato. Morava às proximidades da rodo-via Castanhal- Vigia, região nordeste do Estado do Pará, mu-nicípio de Castanhal. A reprodução do discurso obedece omesmo padrão do anterior. O entrevistador é identificadopela letra E e o entrevistado por R.

E - Compadre Renato, o senhor mora aqui há mui-to tempo?

R - Fui trazido praqui pelo meu pai. Inda era piqui-ninim e num me alembro bem. Era o mais caçula dos irmão.Tinha eu, mais três irmão e os dois véio. Que Deus tenhaeles. Me alembro que meu véio pai pegô um pedaço de chãoali dijunto, umas quatro légua mais pra dentro e ali fiquemo.Foi trabaiando, trabaiando e aguentando o dicumê da famia.Dispois eu já dava pra ajudá. Era toda a famia na roça. Quan-do já tava mais mió nois cheguemo ao raciocino da carregálenha pra "Maria Fumaça" (locomotiva da estrada de ferroBelém-Bragança). Nois carregava a lenha e ganhava dos ho-me da istrada, que tirava ela das terra divoluta.

E - E a mata aqui era bonita?

R - Tinha muita mata. Mas todo mundo da cidadetacou ferro nela prô modi vendê prá "Maria Fumaça". Era umdijutório (ajuda), sabe? Nois carregava a lenha e sempre tinhaum dinheirim. Mas vortano pro difunto (retomando a conver-sa), a "Maria Fumaça" comeu toda a mata daqui. Agora é sócapuera e a terra tá ficano fraca.

E - O senhor tem recebido assistência do governopara melhorar a produção da roça?

R - Num tem não. Uns tempo veio um dotô prómodi fazê expremento aqui. Dei um pedaço de terra e eleencheu de canteirim e prantô arroz. Oispois botava remédio eveneno prás pranta (fertilizante e inseticida). Aí ele fez umrapapé (auto-elogio), disse qui era aotô di agronômica e dis-

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se: "Pique arreparano qui meu arroz vai botá mais miá qui oseu". Aí eu fiquei arreparano, arreparano. O causo é qui eleveio praqui umas três ou quatro vez e num vortô mais. E oarroz lá, intanguidim, intanguidim. Acontece peguei o querestô do passarim e sapequei no pilão.

E - Se a terra é fraca, por que continuam plantan-do roça?

R - Nois temo nosso fios e netos pra dá dicumê, edamo da roça. Num temo outra profissão. Puxano a nerreção.as vez eu vorto o raciocino prá trás e digo: Proquê a gentenum muda pra ôtre terra? Mas o causo é qui nois mora tudoaqui dijunto, fios, netos, a gente já se ecostumô aqui. Dispoiso seguinte: os véio tão enterrado aqui. Os umbigo dos mininoe dos neto tá tudo aqui. Antonce num dá prá mudá. É tacáferro na roça, pegá um dinheirim dos dono de pimenta e sigu-rá a vida véia.

Este aspecto merece especial ênfase. As condi-ções dos solos de terra firme do nordeste paraense não sãorecomendadas para a produção económica de alimentos bá-sicos nas condições tradicionais. A produtividade média dasculturas é baixa, se comparada ao contexto regional. Mesmoassim, o pequeno agricultor continua trabalhando na roçaporque tem que alimentar a família e "não tem outra profis-são". Não dispõe de tecnologia alternativa entre a moderna ea herdada de seus ascendentes. No caso do produtor Renatoexiste, também, um sentimento familiar muito forte que oprende à terra. Mas certamente este sentimento está seria-mente ameaçado pelo desenvolvimento do capitalismo nocampo e a tendência é que ele seja expropriado de seus mei-os de sobrevivência. Outro fato curioso do discurso: a devas-tação da floresta original da região para abastecer de lenha aHMaria Fumaça ". Foram milhões de metros cúbicos de madei-ra literalmente transformados em fumaça.

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Uma das preocupações, no decorrer da pesquisade campo, dizia respeito a existência ou não do "efeito de-monstração" ou "efeito multiplicador" junto à pequena pro-dução. Ou seja, no momento em que o produtor vende tem-porariamente sua força de trabalho a outro agricultor, princi-palmente para o pipericultor, ele aprende a lidar com fertili-zantes, sistemas de produção sofisticados e outras formasmodernas de produção. A té que ponto este aprendizado seriaaplicado em sua própria unidade de exploração? Observou-seque isso não ocorre. As dificuldades de acesso ao crédito oua outras fontes formais de financiamento, e não o conheci-mento, tolhem essa possibilidade de desenvolvimento da pe-quena produção agrícola.

CONSIDERA ÇÕES FINAIS

A participação da agricultura brasileira na expan-são total da economia tem sido substancial. Contudo, no Es-tado do Pará, essa importante participação se faz às custasde dois aspectos perniciosos: o desperdício do fator de pro-dução terra e a manutenção, ao nível de penúria, dos peque-nos agricultores, sobre cujos ombros repousa a responsabili-dade do fornecimento de alimentos. Daí decorre que a produ-tividade agrícola média da agricultura estadual situa-se abai-xo da nacional. Além disso, é de se prever o colapso do setor

. de alimentos. A proletarização do pequeno produtor indicaessa tendência, apenas o resultado é adiado para o médio elongo prazos em decorrência do grande número de agentesprodutores.

A política de modernização da agricultura - tenta-da a partir de 1967, quando se iniciou a fase do chamadomilagre brasileiro -, deve estar plenamente identifica da comas necessidades de superação da atual vida econ6mica esocial e com a manutenção da democracia e da justiça soci-al. Não se trata de sustentar e ampliar a agricultura de

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subsistência. O processo de modernização da agricultura édesejável desde que alteradas as suas vigentes característi-cas seletivas, socialmente perversas.

A pequena agricultura praticada no Estado do Parátem dado provas de incapacidade de operar com sistemas deprodução sofisticados, em razão dos altos investimentos exi-gidos do agricultor. A médio e longo prazos, esta incapacida-de retarda o desenvolvimento econ6mico e social da agricul-tura estadual, considerando o significado usual de desenvol-vimento, impedindo que seja confundido com o simples cres-cimento. Aniquila-se inexoravelmente com o pequeno agricul-tor, tornando inevitável o colapso da produção de alimentos aque se dedica.

O desenvolvimento agropecuário do Estado do Pa-rá, como de resto da Amaz6nia, é absolutamente necessário.É inelutável dever ser compatível com a preservação do meioambiente, apenas garantido pelo crescimento da consciênciaecológica e pela decorrente boa utilização dos recursos natu-rais.

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