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E. T. A. Hoffmann - A Máscara da Morte.pdf

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  • E. T. A. Hoffmann

    A MSCARA DA MORTE

    ***********

    No dia de S. Miguel, quando as ave-marias batiam no convento do Carmo, uma elegante berlinda deviagem puxada por quatro cavalos de posta rolava com estrondo pelas ruas da pequena cidade deLilinitz, nas fronteiras da Polnia, indo parar diante do porto da casa que o velho burgomestrealemo habitava.

    Os filhos do burgomestre, cheios de curiosidade, correram para a janela; mas a dona da casalevantou-se e atirou zangada para cima da mesa com os apetrechos de costura.

    - Maldita ideia a tua de mandares dourar a pomba de pedra, que encima a porta! - disse ela aomarido, que saa precipitadamente dum quarto prximo. - A tens mais viajantes, que tomam a nossacasa por uma hospedaria!

    O velho sorriu com malcia, sem responder uma nica palavra. Despiu num instante o roupo e vestiuo seu fato de cerimnia, o qual, escovado com cuidado quando o envergara para ir

    igreja, estava estendido nas costas duma cadeira. Antes que a mulher estupefacta tivesse aberto aboca para o interrogar, correra para a portinhola da berlinda que um criado abrira. O burgomestretinha debaixo do brao o seu bon de veludo, e na obscuridade do crepsculo brilhava-lhe a cabeacom reflexos de prata.

    Uma senhora idosa, envolvida num manto cinzento de viagem, desceu da carruagem, seguida poroutra mais nova com o rosto velado; esta encostou-se ao brao do burgomestre e encaminhou-se paraa habitao, mais arrastando-se do que andando. Logo que entrou no aposento foi cair, meiodesmaiada, numa poltrona, que, a um sinal do marido, a dona da casa se apressara em oferecer-lhe.

    - Pobre criana! - disse a senhora idosa ao burgomestre, em voz baixa e melanclica.

    preciso que fique alguns instantes ao p dela.

    E, ajudada pela filha mais velha do burgomestre, tirou o manto de viagem. O seu vestido de freira e abrilhante cruz, que trazia ao peito, denunciavam-na como abadessa dum convento da ordem de Cister.

    Entretanto a dama velada no dera sinais de vida a no ser um gemido fraco, pouco perceptvel.Pediu por fim um copo d'gua dona da casa. Esta foi buscar toda a qualidade de elixires e delicores fortificantes, cujas propriedades maravilhosas elogiou, e pediu licena dama para lhe tiraro vu espesso, que devia dificultar-lhe a respirao. Mas foram inteis as instncias da mulher doburgomestre; a dama repeliu-lhe a mo voltando a cabea com sinais de terror. A doente bebeu doisos trs goles d'gua, na qual a servial dona da casa deitara algumas gotas dum poderoso cordial;consentiu tambm em respirar um frasco de sais, mas sem levantar o vu.

    - Preparou tudo como lhe foi indicado? - perguntou a abadessa ao burgomestre.

  • - Sim, minha senhora, respondeu o ancio; espero que o nosso serenssimo prncipe fique contentecomigo, bem como esta senhora, para quem tudo preparei o melhor que pude.

    - Bem. Deixem-me por alguns instantes a ss com a pobre criana, tornou a abadessa.

    A famlia saiu do aposento. Ouviram a abadessa falar dama com fervor e uno e esta pronunciaralgumas palavras num tom que comovia profundamente o corao.

    Sem querer escutar, a dona da casa ficara junto porta do quarto. Falavam italiano, o que contribuapara tornar a aventura mais misteriosa e aumentava a angstia da mulher do burgomestre.

    Este disse filha e mulher que preparassem vinho e refrescos e tornou logo a entrar no aposento.

    A dama velada estava em frente da abadessa, com a cabea inclinada, as mos postas, parecendomais sossegada. A abadessa aceitou alguns refrescos, que a dona da casa lhe ofereceu. Depois dissecomovida:

    - Vamos, j tempo!

    A dama velada caiu de joelhos. A abadessa estendeu-lhe as mos sobre a cabea e murmurou umaorao.

    Depois abraou-a, apertando-a contra o corao com urna veemncia que bem provava o excesso dasua dor, e o rosto banhou-se-lhe de lgrimas. Com uma imponente dignidade abenoou a famlia e,ajudada pelo velho, subiu precipitadamente para a berlinda, cujo tiro havia sido renovado.

    O postilho excitou os cavalos, que rinchavam ruidosamente, e a carruagem afastou-se com rapidez.

    Quando a dona da casa compreendeu que a dama velada, para quem haviam tirado da berlinda duaspesadas malas, ia ficar talvez por mui tempo ali hospedada, no pde evitar um penoso sentimentode inquietao e de curiosidade. Foi ter com o marido ao vestbulo, detendo-o na ocasio em que iavoltar para o aposento.

    - Em nome do Cristo, murmurou ela com voz perturbada; quem meteste em casa? Porqu, estando tuprevenido de tudo, nada me disseste?

    - Dir-te-ei tudo o que sei, respondeu tranquilamente o ancio.

    - Ah! Ah! - prosseguiu a mulher redobrando de agitao; mas talvez que tu no saibas tudo, pois noestavas h pouco no aposento. Logo que a senhora abadessa saiu, a dama, naturalmente incomodadapelo espesso vu, tirou-o e vi...

    - Ento o que viste? - interrompeu o velho.

    A mulher tremia e passeava em torno de si uns olhares espantados, como se houvesse visto umespectro.

  • - Nada, continuou ela. No pude distinguir completamente as feies, porque o rosto ficou cobertopor outro vu mais fino, mas pareceram-me as dum cadver, duma horrorosa cor de cadver. Etambm deves notar que evidente, o mais evidente possvel, claro como o dia, que a dama estgrvida. O parto no deve demorar-se muitas semanas.

    - J o sabia, mulher, disse o burgomestre com modos desagradveis. E com medo de que caias doentede inquietao e curiosidade, vou esclarecer-te este mistrio em duas palavras. O

    prncipe Zapolski, nosso poderoso protector, escreveu-me h algumas semanas, dizendo-me que aabadessa do convento cisterciense de Oppeln me traria uma dama, pediu que eu a recebesse emminha casa, sem rudo, e evitando com cuidado olhares indiscretos. A dama, apresentada com onome de Celestina, ter em minha casa o parto e depois ir-se- embora com a criana. O prnciperecomendou-me com instncia que tivesse para com ela as maiores atenes. Para me indemnizar dedespesas e trabalhos, mandou-me uma grande bolsa cheia de ducados, que podes ver, se quiseresremexer na minha cmoda. Acabaram-se-te os escrpulos?

    - Somos ento obrigados, disse a mulher, a auxiliar os pecados que os grandes cometem?

    Antes que o ancio tivesse tempo de responder, a filha saiu do aposento e disse que a dama, tendonecessidade de descanso, desejava ser conduzida ao quarto que lhe era destinado.

  • IIO burgomestre fizera arranjar o melhor possvel dois pequenos quartos no andar superior e ficouseriamente embaraado quando Celestina lhe perguntou se, alm daquelas duas divises, no tinhanenhuma outra, cuja janela desse para as traseiras da casa.

    Respondeu negativamente, ajuntando, por descargo de conscincia, que havia outro quarto muipequeno, com uma s janela para o jardim, mas que a bem dizer no era um quarto e sim umapssima mansarda, uma miservel cela, em que s cabia uma cama, uma mesa e uma cadeira.

    Celestina pediu logo para ver o tal quarto e, assim que entrou, declarou que era exactamente o quedesejava, e que mudaria para outro mais espaoso, se tivesse necessidade duma enfermeira.

    O burgomestre comparara o pequeno quarto a uma cela; desde o dia seguinte esta comparaotornou-se bem exacta. Celestina pregou na parede uma imagem da Virgem Maria e colocou em cimada mesa um crucifixo. O leito era um saco de palha com um cobertor de l. Excepto um escabelo depau e outra mesa mais pequena, Celestina recusou quaisquer outros mveis.

    A dona da casa, reconciliada com a desconhecida pela compaixo que lhe causava a profunda edilacerante dor demonstrada pelo seu aspecto, julgou do seu dever ir fazer-lhe uma visita, ela porm,rogou-lhe com as mais enternecedoras instncias que no lhe perturbasse a solido onde encontravaas consolaes que a Virgem e os santos lhe dispensavam.

    Todas as manhs, logo ao despontar do dia, Celestina ia ouvir a missa das almas ao convento doCarmo.

    Parecia consagrar o resto do dia a exerccios de devoo, pois que, sempre que havia necessidadede entrar no quarto, a encontravam orando ou lendo livros religiosos.

    S comia legumes e s bebia gua. O burgomestre representou-lhe que o seu estado e a conservaoda sua sade exigiam melhor alimentao, mas s fora de muitas splicas conseguiu que elaaceitasse um pouco de caldo e de vinho.

    As pessoas de casa consideravam este modo de vida austero, claustral, como expiao duma faltagrave; todavia sentiam pela desconhecida uma comiserao e venerao profundas, aumentadaspela nobreza das suas maneiras e pela cativante graa dos seus movimentos. Mas a persistncia emnunca levantar o vu, misturava a estes sentimentos uma espcie de terror. A no ser o burgomestre ea famlia, ningum dela se aproximava, e os habitantes, que nunca haviam sado da pequena cidade,no podiam reconhecer as feies dum rosto que nunca tinham visto e no conseguiam assimdesvendar o mistrio. Para que servia ento o tal vu?

    A activa imaginao feminina inventou logo uma histria medonha.

    Um terrvel sinal, diziam as mulheres, a marca das garras do diabo, arrogara horrorosamente o rostoda desconhecida; da o uso do vu.

  • O burgomestre teve mui trabalho em reprimir as murmuraes, e em impedir que, pelo menosdefronte da casa, no se juntassem fazendo errneas conjecturas a respeito da desconhecida, cujospasseios ao convento do Carmo tambm foram notados. Passaram a chamar-lhe dama negra doburgomestre, qualificao que envolvia a ideia duma apario sobrenatural.

    O acaso quis que um dia, quando a filha do burgomestre levava o jantar a Celestina, uma corrente dear erguesse o vu. A desconhecida voltou-se com a rapidez do relmpago, para se subtrair ao olharda rapariga; esta empalideceu e ps-se a tremer; no lhe distinguira as feies, mas como sua me,vira uma face cadavrica dum branco marmreo, e, profundamente encovados, uns olhos de fulgorestranho.

    O burgomestre combateu com razes as ideias da rapariga, mas ele prprio no estava mui longe deas partilhar e desejava ver sair de sua casa essa desconhecida, que ali levara a inquietao, noobstante a devoo de que fazia tanto alarde.

    Uma noite, o ancio acordou a mulher e disse-lhe que j h alguns minutos ouvia queixumes, egemidos, acompanhados de ligeiras pancadas, que pareciam vir do quarto de Celestina. A dona dacasa, pressentindo o que seria, correu ao quarto da desconhecida. Foi encontra-la vestida eenvolvida no vu, deitada na cama quase sem sentidos e convenceu-se de que o parto estavaprximo. Desde h mui que os preparativos necessrios se achavam feitos, e, pouco tempo depois,nasceu um menino encantador e bem constitudo.

    Este acontecimento teve por efeito o acabar com o constrangimento que tornava pouco agradveis asrelaes da famlia com Celestina. A criana era como que o medianeiro da reconciliao da mecom a humanidade. O estado de Celestina no lhe permitia as prticas ascticas, e a necessidade quetinha dos cuidados assduos dos seus semelhantes habituou-a gradualmente sua presena. A donada casa, que tratava da doente e que por suas prprias mos lhe preparava os caldos nutritivos,esqueceu, entregando-se a estes trabalhos domsticos, a desconfiana que desde o comeo lheinspirara a enigmtica desconhecida. O

    burgomestre, todo contente, brincava e ria com o pequeno como se ele fosse seu neto e acostumou-se,assim como o resto da famlia, a ver Celestina sempre com o vu, que nem mesmo por ocasio dasdores de parto quisera tirar. A parteira fora obrigada a jurar-lhe que, mesmo no caso dum desmaio,no lhe tiraria o vu, o que s faria, no caso de eminente perigo. Era certo que a mulher doburgomestre vira Celestina sem o vu, mas aquela limitava-se a dizer:

    - Pobre senhora! Bem precisa de esconder o rosto!

    Dias depois voltou o monge do convento do Carmo que baptizou a criana. A sua conversao comCelestina, que ningum se atreveu a ir perturbar, durou mais de duas horas. Ouviram-no falaracaloradamente e orar. Logo que ele saiu, foram encontrar Celestina sentada numa poltrona, com ofilho deitado nos joelhos; a criana tinha os ombros cobertos com um escapulrio e via-se-lhe aopeito um Agnus Dei.

    Semanas e meses se passaram sem que viessem buscar Celestina e o filho, como o burgomestreesperava e como lhe afirmara o prncipe Zapolski. A desconhecida entraria na intimidade da famlia

  • se no fosse o fatal vu. O burgomestre lembrou-se um dia de lhe pedir explicaes, porm elarespondeu com voz surda e solene:

    - S trocarei este vu pela mortalha.

    O burgomestre calou-se e de novo desejou a volta da berlinda e da abadessa.

  • IIITornara a primavera; a famlia do burgomestre voltava dum passeio e trazia ramilhetes de flores, asmais belas das quais eram destinadas devota Celestina.

    Na ocasio em que iam a entrar em casa, parou um cavaleiro defronte da porta. Trazia o fardamentodos oficiais de caadores da guarda imperial francesa; perguntou com instncia pelo burgomestre.

    - Sou eu, disse o ancio, e est minha porta.

    O cavaleiro apeou-se rapidamente, prendeu o cavalo a um poste e correu para dentro de casa,gritando com voz estridente:

    - Ela est aqui! Ela est aqui!

    Subiu rapidamente a escada. Ouviu-se uma porta que se abria, e Celestina dar um grito de angstia. Oburgomestre acudiu cheio de medo.

    O desconhecido arrancara a criana do bero, envolvera-a no manto, e agarrava-lhe com o braoesquerdo enquanto com o direito repelia Celestina, que empregava todos os esforos para tirar ofilho ao raptor. Nesta luta, o oficial fez cair o vu e viram ento um rosto plido e inanimado,assombreado por madeixas de cabelos negros, uns olhos que dardejavam relmpagos e uns lbiosimveis e entreabertos donde saam clamores estridentes.

    O burgomestre compreendeu que Celestina tinha uma mscara branca estreitamente ligada ao rosto,cujos contornos desenhava.

    - Horrvel mulher! - gritou o oficial, queres que eu partilhe a tua loucura?

    E repeliu Celestina com tanta fora que esta caiu no cho. A pobre senhora abraou-lhe os joelhos,esmagada por urna dor invencvel.

    - Deixa-me essa criana, disse ela num tom suplicante, que dilacerava o corao. Pela tua salvaoeterna, no ma roubes! Em nome do Cristo e da Virgem Santa, d-me essa criana!

    E, apesar destas veementes lamentaes, nenhum msculo mexia; os lbios daquele rosto de cadverficavam imveis; os circunstantes sentiam que o sangue se lhes gelava nas veias, de horror.

    - No! - retorquiu o oficial, como que arrebatado pelo desespero, no, mulher desumana einexorvel! Podes arrancar-me o corao, mas, no teu delrio funesto, no deves perder este ente,que o cu destinou a minorar as dores duma ferida que sangra ainda!

    O oficial apertou com mais fora a criana contra o seio; esta ps-se a chorar e a gritar.

    - Vingana! - uivou Celestina com voz surda - que o castigo do cu caia sobre ti, assassino!

  • - Deixa-me, deixa-me, afasta-te, apario sada do inferno - exclamou o oficial.

    E, empurrando com o p Celestina, com um movimento brusco, tentou alcanar a porta. O

    burgomestre embargou-lhe a passagem, mas o oficial puxou rapidamente por uma pistola e apontou-aao velho.

    - Uma bala na cabea daquele que tentar tirar o filho a seu pai!

    Dizendo isto, desceu precipitadamente a escada, correu para o cavalo, sem largar a criana, e partiua galope.

    A dona da casa, com o corao comprimido, dominando o horror que lhe inspirava a terrvelmscara de cadver, entrou no quarto no intuito de consolar Celestina; foi encontrar a pobre me nomeio da casa, imvel e muda como uma esttua, com os braos pendentes. No podendo suportar avista da mscara, a mulher do burgomestre ps a Celestina o vu que cara no cho. Esta nopronunciou uma palavra, no fez um movimento; estava reduzida ao estado de autmato. Ao v-laassim, a mulher sentiu redobrar a sua inquietao e ansiedade e pediu a Deus que a livrasse dafunesta desconhecida.

    Fra ouvida aquela prece, porque imediatamente a berlinda que trouxera Celestina parou defronte daporta. A abadessa entrou acompanhada pelo prncipe Zapolski.

    Quando este soube o que acabava de passar-se, disse com mui sossego, suavemente:

    - Chegamos mui tarde! Submetamo-nos vontade de Deus!

    Celestina foi levada e colocada na carruagem, sem movimento, sem fala, sem dar o mnimo sinal devontade, de pensamento. A berlinda partiu.

    O ancio e a famlia como que acordavam dum mau sonho, que os enchera de inquietaes.

    Pouco depois das cenas passadas em casa do burgomestre, era enterrada com uma solenidadedesacostumada, uma religiosa da ordem de Cister, em Oppeln. Correu o boato de que esta freira era acondessa Hermenegilda de Czernski, que todos julgavam estar em Itlia com a irm do pai, a princesaZapolski.

    Pela mesma poca, o conde Nepomuceno Czernski, pai de Hermenegilda, veio a Varsvia ereservando para si apenas uma pequena propriedade na Ucrnia, renunciou ao resto dos seus bens afavor dos dois filhos do prncipe Zapolski, seus sobrinhos. Perguntaram-lhe se dotava a filha; pornica resposta ergueu ao cu os olhos hmidos de lgrimas, dizendo com voz surda:

    - J est dotada!

    No empregou meio algum para confirmar o boato da morte de Hermenegilda no convento de Oppeln,nem para destruir as suposies que faziam sobre a sorte da filha, que todos julgavam como vtimalevada prematuramente ao tmulo pela dor.

  • Vrios patriotas polacos, humilhados, mas no abatidos pela queda da ptria, procuraram fazer entrarde novo o conde numa associao secreta, que se destinava libertao da Polnia; mas noencontraram j nele o homem ardente, amante entusistico da liberdade e da ptria, cuja coragemherica outrora os auxiliara nas suas nobres empresas. Tornara-se um velho sem energia, feitomisantropo por uma dor profunda, estranho a todas as cousas mundanas.

  • IVOutrora, na poca em que o primeiro desmembramento da Polnia excitou uma sanguinolentainsurreio, o castelo do conde Nepomuceno de Czernski fora teatro das secretas reunies dospatriotas.

    Ali, em banquetes solenes exaltavam-se os conjurados, jurando combater pela oprimida ptria.Hermenegilda aparecia no meio destes heris, como um anjo descido dos cus para os abenoar.Tinha a ndole das mulheres da sua nao; tomava parte em tudo, at mesmo nas deliberaespolticas; examinava com ateno o estado das cousas, e, apesar de no ter ainda dezassete anos,combatia por vezes o modo de ver geral; a sua opinio, ditada pelo bom senso e por umaextraordinria penetrao, arrastava a maioria da assembleia.

    Segundo Hermenegilda, ningum era melhor conselheiro, ningum examinava melhor as questes doque o conde Estanislau de Ramskay, mancebo de vinte anos, ardente e dotado de grandes qualidades.Acontecia, pois, que, por vezes, Hermenegilda e Estanislau dirigiam o curso das discusses difceis.A ss, examinavam, aceitavam, rejeitavam e emendavam as propostas; e quase sempre o resultadodestas conferncias era adoptada por velhos hbeis em tratar dos negcios do Estado, e cujaprudncia e capacidade eram comprovadas pelos seus conselhos de outrora.

    Natural era pensar numa unio entre os dois jovens, cujos maravilhosos talentos podiam serinstrumento da salvao da ptria. Alm disto a poltica parecia exigir uma aliana estreita entre asduas famlias, porque as julgavam animadas, uma contra a outra, por interesses opostos, circunstnciaesta que j arrastara runa muitas famlias polacas.

    A donzela, compenetrada destas ideias, aceitou como ddiva da ptria, o esposo que lhe destinavam.As patriticas reunies do castelo terminaram pelos solenes esponsais de Hermenegilda e Estanislau.

    Sabe-se como sucumbiram os polacos e como a queda de Kosciusko (1) produziu a runa de umaempresa baseada na demasiada confiana que os combatentes tinham em si prprios, em falsasprevises e numa fidelidade cavalheiresca.

    O conde Estanislau, cuja estreia na carreira militar, juventude e fora lhe marcavam um lugar noexrcito, bateu-se com a coragem do leo; a custo escapou a um vergonhoso cativeiro e ficougravemente ferido. S Hermenegilda o prendia ento vida; julgava ir encontrar nos seus braosconsolaes e a esperana que perdera. Logo que as feridas comearam a cicatrizar, correu aocastelo do conde Nepomuceno, onde ia ser ferido de novo e mais profundamente.

    Hermenegilda recebeu-o com altivez quase desdenhosa.

    - Onde est o heri que queria morrer pela ptria? - perguntou ela, indo-lhe ao encontro.

    No seu louco entusiasmo parecia considerar o noivo como um paladino dos tempos hericos, cujaespada podia, por si s, aniquilar exrcitos.

  • Em vo o conde implorou com o mais apaixonado amor, em vo protestou que nenhum poder humanopodia lutar contra a torrente devastadora, que cara mugindo sobre a malfadada Polnia; foi tudointil. Hermenegilda, cujo corao frio como a morte s podia aquecer no turbilho das cousasmundanas, persistiu na resoluo de s conceder a sua mo ao conde Estanislau, quando osestrangeiros fossem expulsos da ptria.

    O conde viu j tarde que Hermenegilda o no amava; a condio que esta lhe impunha, se viesse arealizar-se, s se daria num tempo mui longnquo. Jurou sua bem amada que lhe seria fiel at morte, e deixou-a para ir alistar-se no exrcito francs, que combatia em Itlia.

    Diz-se que as mulheres polacas tm uma ndole fantstica que lhes prpria. Sensibilidadeprofunda, inconstncia, abandono, abnegao estica, paixes ardentes, frieza glacial, tudo isto secontm mistura na sua alma, e produz superfcie espantosas instabilidades. Os caprichos do seugnio varivel, assemelham-se aos redemoinhos dum ribeiro revolvido nas suas profundezas, superfcie do qual sobem sem cessar novas ondas mugidoras.

    Hermenegilda viu com indiferena o noivo afastar-se; mas, passados alguns dias, sentiu apoderar-sedela um desejo inexprimvel, desejo que s o mais ardente amor podia gerar.

    O vendaval da guerra passara. Proclamada uma amnistia, foram postos em liberdade os oficiaispolacos prisioneiros. Vrios irmos de armas de Estanislau chegaram ao castelo; conversaram comprofunda dor do dia da derrota, e da intrepidez que todos, sobretudo Estanislau, haviam mostrado.No momento em que a batalha parecia perdida, o conde fez voltar ao combate os batalhes querecuavam, e conseguiu com a cavalaria romper as fileiras inimigas. Era duvidosa a sorte da batalhaquando o atingiu uma bala. Caiu banhado em sangue, repetindo estas palavras:

    - Ptria!... Hermenegilda!

    Cada palavra daquela narrativa era uma punhalada que trespassava o corao da donzela.

    - No, no sabia que o amava ardentemente, disse ela. Que demnio me cegou e me induziu em erro?Que demnio me fez crer que podia viver sem aquele que a minha vida? Enviei-o

    morte! No voltar!

    E assim Hermenegilda desafogava as tempestuosas dores que lhe iam na alma. Sem sono, incapaz detomar o mnimo descanso, errava pelo parque, de noite, e, como se o vento pudesse levar ao amadoausente as suas palavras, gritava:

    - Estanislau! Estanislau, volta! Sou eu, Hermenegilda que te chama! No me ouves? Volta oumorrerei de inquietao, de amor e de desespero!

  • VA agitao de Hermenegilda ameaava degenerar em verdadeira loucura, que se manifestava pormil extravagancias. O conde Nepomuceno, cheio de temor e de ansiedade pelo estado da filhaquerida, julgou que talvez lhe fossem salutares os socorros da medicina, e conseguiu encontrar umdoutor que condescendeu em passar algum tempo no castelo e em tomar conta da doente.

    O seu mtodo, mais moral do que fsico, no produziu resultado algum.

    A cura de Hermenegilda tornou-se mui duvidosa. Aps longos intervalos de tranquilidade, a jovemrecaa de improviso nos mais estranhos paroxismos.

    Uma aventura ntima deu doena de Hermenegilda uma nova direco sintomtica.

    Tinha ela um boneco vestido de ulano, ao qual testemunhava viva ternura e prodigalizava os maisdoces eptetos, como se ele fosse o seu bem amado. Atirou-o ao fogo do salo, despeitada, porqueele no tinha querido cantar uma cano polaca que principiava assim:

    Podrosz twoia nam nie mila

    Milsza przyiazin w kraiu byla

    (No nos foi agradvel a tua viagem,

    A tua amizade era-nos preciosa no pas)

    Quando atravessava o vestbulo, para ir para os seus aposentos, ouviu um tinido e a bulha de passos.Olhou em torno de si e viu um oficial com o grande uniforme da guarda imperial francesa, que traziaum brao ao peito.

    - Estanislau! Meu Estanislau! - exclamou ela, correndo para ele e caindo desmaiada nos seus braos.

    O estupefacto oficial a custo susteve Hermenegilda com o brao livre, pois que a jovem, alta enutrida, estava longe de ser um fardo ligeiro; conduziu-a para uma sala lateral, apertando-a contra opeito numa presso crescente. Ao sentir o corao da jovem bater to perto do seu, o oficialconfessou que era esta a aventura mais deliciosa que at ali lhe acontecera.

    Os minutos passavam; o oficial sentiu invadi-lo o fogo dos desejos, cujas centelhas elctricasjorravam do corpo encantador que apertava nos braos.

    O conde Nepomuceno, que saa dos seus aposentos, foi encontrar a filha ainda desmaiada nos braosdo oficial; mas neste momento Hermenegilda voltou a si, beijou o oficial com calor, e exclamou denovo, no seu delrio:

    -

  • Estanislau! Meu bem amado! Meu esposo!

    O oficial todo trmulo, com o rosto vermelho, perdeu a firmeza, recuou um passo e desenvencilhou-se com brandura do convulsivo amplexo de Hermenegilda.

    - este o mais suave momento da minha vida, balbuciou ele com timidez, mas no quero gozarduma ventura proporcionada por um equvoco. No sou Estanislau, com pesar meu, no souEstanislau!

    Ao ouvir estas palavras, Hermenegilda espantada deu um salto para trs, fixou no oficial um olharpenetrante, convenceu-se de que fora enganada por uma extraordinria semelhana e afastou-selastimando-se.

    O oficial deu-se a conhecer pelo conde Xavier de Ramskay, primo de Estanislau. O condeNepomuceno mal podia acreditar que, em to pouco tempo, a criana que conhecera se houvessemetamorfoseado num homem alto e robusto, a cujo rosto as fadigas da guerra tinham dado um tipomsculo.

    O conde Xavier deixara a ptria ao mesmo tempo que o primo e amigo conde Estanislau e, como estefora servir no exrcito francs e fizera a campanha de Itlia.

    Tendo ento apenas dezoito anos, distinguiu-se mostrando tanta coragem, que o general em chefe onomeara ajudante de campo e que aos vinte anos alcanara o posto de coronel.

    Como as feridas que recebera exigiam algum tempo de repouso, voltara ptria, e, portador dumacarta de Estanislau para a sua noiva, vinha ao castelo do conde Nepomuceno, onde Hermenegilda,numa alucinao febril, o tomou pelo primo.

    O conde Nepomuceno e o mdico tentaram, mas em vo, acalmar Hermenegilda, que resolveu nosair dos seus aposentos em quanto o recm-vindo estivesse no castelo.

  • VIXavier ficou aflito com a deciso de Hermenegilda. Escreveu-lhe dizendo que lhe fazia expiar bemrigorosamente uma desgraada semelhana de que no era culpado. Acrescentou que a sua grandedesventura atingia tambm a Estanislau, porquanto este lhe confiara uma carta de amor dizendo quecomunicasse a Hermenegilda de viva voz o que no tinha tido tempo de escrever. Pela resoluo dajovem, via-se impossibilitado de cumprir aquela misso.

    A criada de quarto de Hermenegilda, que Xavier comprara, encarregou-se de lhe apresentar o bilheteaproveitando-se duma ocasio favorvel e as poucas linhas de Xavier fizeram o que o pai e omdico no tinham podido fazer. Hermenegilda consentiu em recebe-lo.

    Esperou-o no seu quarto, silenciosa, de olhos baixos. Xavier entrou a passos um tanto hesitantes eveio sentar-se defronte da jovem, mas, inclinando-se na cadeira, mais parecia ajoelhado do quesentado.

    Nesta postura, pediu-lhe perdo nos mais tocantes termos, como se se acusasse dum crimeirremissvel que, no fim de contas, provinha dum equvoco. Depois, entregou-lhe a carta e comeoufalando de Estanislau, dizendo-lhe com que fidelidade cavalheiresca pensava sempre na sua damaquando combatia, com que ardor amava a liberdade e a ptria. O fogo e a vivacidade da narrao deXavier arrebataram Hermenegilda, que, pela primeira vez desde o comeo da entrevista, fixou nomancebo os seus encantadores olhares; e este, como Calaf, embriagado de amor pelo olhar deTurandot (2), a custo continuou a narrativa. Sem mesmo dar por isso, e preocupado pela luta quesustentava contra uma paixo cujo ardor ameaava aumentar, perdeu-se numa confusa descrio debatalhas. Falou de cargas de cavalaria, de batalhes esmagados, de baterias tomadas. Hermenegildainterrompeu-o com impacincia:

    - Malditas sejam essas cenas sanguinolentas preparadas pelo inferno! Diga-me s que ele me ama!

    Xavier, mui impressionado, pegou na mo da jovem e apoiou-a contra o corao.

    - Escuta-o, a ele prprio, ao teu Estanislau! - exclamou, deixando sair dos lbios uma torrente deprotestos de ardente amor, como que inspirados na mais devoradora paixo.

    Cara aos ps de Hermenegilda, enlaara-a nos braos e procurava atra-la a si, quando a jovem orepeliu, fixando-o com um olhar estranho.

    - Vaidoso boneco! - disse com voz surda. Ainda que te desse vida com o calor do meu seio, nuncaserias, no s o meu Estanislau!

    E saiu do quarto lentamente, sem rudo;

    Xavier viu j tarde a sua leviandade; sentiu que amava perdidamente Hermenegilda, a noiva dumparente e amigo, e que corria o risco de atraioar a amizade que o unia a Estanislau.

    Adoptou a herica resoluo de partir sem tornar a ver a donzela e mandou arranjar as malas e

  • preparar a carruagem.

    O conde Nepomuceno ficou admirado, quando Xavier se foi despedir dele. Empregou todos os meiospara o fazer desistir daquele propsito, mas Xavier, a pretexto de negcios urgentes, recusou-secom uma firmeza que mais provinha do nervosismo do que da fora de vontade.

    Quando o criado de Xavier estava na antecmara com a capa do amo e este, de espada

    cinta, pegava no bon para se dirigir para a carruagem cujos cavalos relinchavam de impacincia,abriu-se a porta do salo e Hermenegilda entrou com o pai, aproximou-se do conde Xavier e disse-lhe com um sorriso de inexprimvel graa:

    - Vai-se embora, meu caro Xavier? E eu que contava ouvi-lo falar mais vezes do meu amadoEstanislau! No sabe que as suas narrativas me consolam maravilhosamente?

    Xavier corou e baixou os olhos. Sentaram-se. O conde Nepomuceno assegurou por vrias vezes quedesde muitos meses no via Hermenegilda to tranquila e expansiva. Chegou a hora da ceia. A umaordem do conde, foi a refeio servida no salo em que estavam. Com o rosto animado,Hermenegilda encheu uma taa de espumante vinho da Hungria e bebeu pelo noivo, pela liberdade epela ptria.

    - Partirei esta noite, disse Xavier consigo mesmo.

    Levantada a mesa, Xavier perguntou ao criado se a carruagem o estava esperando. Este respondeu-lhe que, por ordem do conde Nepomuceno, as bagagens haviam sido descarregadas e postas de novono quarto, a carruagem voltara para a cocheira e os cavalos para a cavalaria.

    Xavier tomou um partido. A imprevista apario de Hermenegilda convencera-o de que era possvele, mais ainda, conveniente que ficasse, e desta convico resultou uma outra: devia ser senhor de si,isto , reprimir os arrebatamentos da paixo, os quais, irritando o esprito doentio de Hermenegilda,lhe podiam ser prejudiciais. E terminou estas reflexes dizendo que podia esperar tudo dascircunstncias, e que Hermenegilda, tirada dos seus devaneios, viria talvez a preferir um presentetranquilo a um futuro duvidoso, e que, ficando no castelo, no era nem desleal nem traidor para como amigo.

  • VIINo dia seguinte, Xavier tornou a ver Hermenegilda. Comedindo-se com cuidado, conseguiu acalmaro ardor do sangue e lutar eficazmente contra a paixo. Conservando-se nos limites das mais estritasconvenincias, deu conversao o tom melfluo de galantaria que muitas vezes oculta um venenofunesto para a mulher.

    Xavier, mancebo de vinte anos, pouco hbil nas astcias amorosas, mais guiado por um fino tacto,demonstrou a arte dum experimentado mestre. S falou de Estanislau, do seu inexprimvel amor pelabela noiva; mas, com o fogo que activou, soube-se destramente iluminar a si prprio, de maneira queHermenegilda, apossada dum penoso desvairamento, no sabia como separar as duas imagens, a deEstanislau ausente e a de Xavier presente.

    Em breve a presena deste se tornou indispensvel para Hermenegilda, completamente fascinada;viram-nos ento quase sempre juntos e conversando familiarmente como dois namorados. O hbitofoi gradualmente vencendo a timidez de Hermenegilda, e ao mesmo tempo Xavier transps a barreiraque entre eles levantavam as frias convenincias e em cujos limites se conservara at ali.Hermenegilda e Xavier passeavam, de brao dado, pelo parque e a jovem abandonava-lhenegligentemente a mo quando, sentado junto dela no seu quarto, o mancebo falava de Estanislau.

    Absorvido pelos negcios de Estado, e por tudo que se relacionava com a ptria, o condeNepomuceno era incapaz de sondar coraes. Contentava-se em ver o que se passava

    superfcie; o seu pensamento, morto para qualquer outro assunto, no podia reflectir senopassageiramente, como um espelho, s fugitivas imagens da vida, que se desvaneciam sem deixarvestgios. De modo algum suspeitou do estado do corao de Hermenegilda e no achou mau que afilha trocasse um mancebo vivo pelo boneco que o delrio lhe fazia tomar pelo noivo. Julgou mostrarmui finura ao prever que Xavier, genro to conveniente como o outro, no tardaria a substituirEstanislau, e deixou de pensar neste ltimo.

    Xavier teve anlogas ideias; persuadiu-se de que, ao cabo de alguns meses, Hermenegilda, por maispreocupada que estivesse com o pensar em Estanislau, consentiria em escutar os juramentos daqueleque o substitua.

    Uma manh, disseram que Hermenegilda se fechara nos seus aposentos, com a criada de quarto, e queno queria ver pessoa alguma.

    O conde Nepomuceno julgou que se tratava dum novo paroxismo, que pouco duraria. Rogou ao condeXavier que empregasse na cura da filha o imprio que sobre esta exercia, mas qual foi o seu espantoquando Xavier no s se recusava a ir ter com Hermenegilda sob pretexto algum, mas tambmmostrava mudana completa na sua conduta! Em lugar de ostentar, como dantes, uma ousadiaexcessiva, estava perturbado como se houvesse visto fantasmas; tinha a voz trmula, exprimia-secom dificuldade e a sua conversao era vaga, incoerente.

    Declarou que se via obrigado a voltar a Varsvia; que nunca mais tornaria a ver Hermenegilda; que,

  • nos ltimos tempos, o desvairamento da doente o enchera de espanto; que renunciava a todas asventuras do amor; que a felicidade de Hermenegilda, levada at ao delrio, lhe fazia cruelmentesentir a extenso da perfdia de que ia tornar-se culpado para com o amigo, e que uma pronta fuga erao nico recurso que se lhe antolhava.

    O conde Nepomuceno nada compreendeu desta conversa, e esteve tentado a crer que o desvairamentode Hermenegilda contagiara o mancebo. Em vo procurou tranquiliza-lo. Quanto mais o condeprovava a necessidade de ver a filha para a curar das suas extravagncias, mais Xavier teimava emrecusar. O oficial abreviou esta discusso atirando-se para dentro da sua carruagem, e afastando-secomo que impulsionado por um poder oculto e incompreensvel.

    O conde Nepomuceno, irritado e pesaroso com a conduta da filha, no mais se importou dela eHermenegilda passou muitos dias metida nos aposentos com a criada.

    Um dia o conde Nepomuceno estava no quarto, sentado e mergulhado nas suas reflexes.

    Pensava nas faanhas do homem que os polacos invocavam ento como um dolo, dolo falso (3).De repente abriu-se uma porta e Hermenegilda apareceu de luto carregado, quase totalmente cobertapor um comprido vu preto; aproximou-se do pai a passos lentos, solenes e caiu de joelhos, dizendocom voz trmula:

    - Meu pai! O conde Estanislau, meu mui amado noivo, j no existe! Caiu como um bravo numcombate sangrento! Est ajoelhada a teus ps a sua inconsolvel viuva!

    O conde Nepomuceno considerou estas palavras como uma nova prova do desequilbrio mental deHermenegilda, tanto mais que, no dia precedente, recebera notcias da boa sade de Estanislau.Ergueu-a com brandura, dizendo:

    - Tranquiliza-te, querida filha. Estanislau est de sade; dentro em pouco o ters nos teus braos.

    Hermenegilda deu um suspiro, que mais parecia o estertor dum moribundo e, ferida por dor estranha,foi cair sobre os coxins, ao lado do pai. Levou alguns instantes a restabelecer-se daquele delquio, edisse com singular tranquilidade:

    - Deixe-me dizer-lhe, meu caro pai, o que se passou, para que possa reconhecer-me como viuva doconde Estanislau. H seis dias, tardinha, achava-me no pavilho situado no sul do parque. Todo omeu ser, todos os meus pensamentos eram para o meu bem amado. Senti que os olhos se me fechavaminvoluntariamente; no dormia mas estava num estranho estado a que no posso dar outro nome senoo de alucinao. Zumbiram-me os ouvidos e pareceu-me que a casa andava roda; ouvi um tumultosinistro e um estrondear de tiros, que se aproximavam cada vez mais. Levantei-me e mui espantadafiquei de me achar numa barraca de campanha.

    Ele, o meu Estanislau, estava de joelhos em frente de mim! Abracei-o. - Deus seja louvado!exclamei; vives, s meu! Disse-me que logo aps a cerimnia nupcial eu cara num profundodesmaio. Lembrei-me ento da beno que nos fora dada, numa capela vizinha, pelo padre Cipriano,no meio do troar da artilharia e do rudo do combate. Cintilava-me no dedo o anel de casamento; era

  • inexprimvel a ventura que sentia em apertar meu esposo nos braos; um arroubamento sem nome, eque nunca experimentara, me enchia a alma; perturbaram-se-me os sentidos; apoderou-se de mim umfrio de gelo; fechei os olhos.

    Espectculo horroroso! De repente, acho-me no meio duma refrega furiosa. A tenda, dondeprovavelmente me haviam arrancado, arde. Estanislau rodeado por cavaleiros inimigos; os amigosvoam em seu socorro, mas tarde! Um dos cavaleiros derruba o meu querido esposo...

    Esmagada pela dor, Hermenegilda caiu de novo desmaiada. Nepomuceno correu em busca decordiais, que no teve tempo de aplicar porque a filha recuperou os sentidos sob a aco dumaenergia singular.

    - Cumpra-se a vontade do cu! - disse ela, surda e solenemente; no devo lastimar-me; mas, fiel aomeu esposo ate morte, respeitarei a sua memria e jamais tomarei ligao alguma terrestre!Chora-lo, orar por ele e pela nossa salvao, eis o dever a que nunca faltarei!

  • VIIIO conde Nepomuceno julgou que a loucura da filha criara aquela viso. Esperou que o luto deHermenegilda contribuiria para mudar to desordenada agitao em uma dor tranquila econcentrada, e contou com o regresso do conde Estanislau para pr termo a esta nova extravagncia.

    Por vezes o velho fidalgo pronunciava as palavras: devaneios, vises; mas Hermenegilda sorria comamargura, unia aos lbios o anel de ouro, que trazia no dedo, e banhava-o em lgrimas ardentes.

    O conde notou com espanto que aquele anel no pertencia realmente filha; nunca lho vira; fez milconjecturas sobre a sua provenincia, mas sem se dar ao trabalho de uma investigao sria.

    Veio afligi-lo uma m nova: o conde Estanislau fora feito prisioneiro.

    Por esta poca chegou ao castelo o prncipe Zapolski com sua mulher. Morta a me deHermenegilda, a princesa substitura-a para com a rf, que lhe testemunhava dedicao filial. Ajovem, patenteando-lhe o corao, lastimou-se amargamente de que, embora tivesse as maisconvincentes provas da sua unio com Estanislau, a tratassem como visionria e insensata. Aprincesa, j sabedora do desequilbrio mental de Hermenegilda, de modo algum a quis contradizer;contentou-se em lhe assegurar, que com o tempo tudo se esclareceria e que por enquanto eraconveniente que se submetesse vontade do cu.

    A princesa tornou-se mais atenta quando Hermenegilda lhe falou do seu estado fsico, e lhedescreveu os sintomas singulares duma indisposio que sentia. Viram a princesa velar porHermenegilda com a mais viva solicitude e surpreendente ansiedade, medida que a jovem pareciarestabelecer-se. Uma vermelhido bem pronunciada foi substituindo, a pouco e pouco, a palidezlvida do rosto e dos lbios de Hermenegilda, e os olhos perdiam o fogo sombrio, sinistro, quedantes os animava, e tornavam-se suaves e serenos. As suas formas emagrecidas arredondavam-se aolhos vistos, e dentro em pouco voltaram a frescura e a beleza.

    Todavia a princesa parecia considera-la mais doente do que nunca, porque, logo que ela suspiravaou empalidecia um pouco, lhe perguntava com inquietao bem visvel:

    - Como ests? O que tens? O que sentes, minha filha?

    O conde Nepomuceno, o prncipe e a princesa, reuniram-se um dia, discutindo o estado deHermenegilda e a sua ideia fixa de que era viva de Estanislau.

    - Infelizmente creio o seu delrio incurvel, disse o prncipe, porque no estando fisicamente doente,as foras corporais mantm-lhe a perturbao da alma.

    A princesa levantou os olhos ao cu com um modo triste e pensativo.

    - Sim, continuou o prncipe, no sofre e contudo, em seu detrimento, atormentam-na fora depropsito como se fora uma doente.

  • A princesa, a quem se dirigiam estas palavras, olhou de frente para o conde Nepomuceno e redarguiunum tom vivo e resoluto:

    - No, Hermenegilda no est doente; mas se no fosse impossvel ela ter-se entregado a algum,diria, convencida, que est gravida.

    E, dizendo isto ergueu-se e saiu do salo.

    O conde e o prncipe ficaram atnitos, como que feridos por um raio. O prncipe foi quem primeirotomou a palavra, dizendo que a mulher tambm tinha por vezes vises singulares.

    O conde respondeu de modo severo:

    - A princesa tem razo; uma tal falta da parte de Hermenegilda est no rol das cousas impossveis.Mas, se te disser que o mesmo pensamento me ocorreu ontem quando a vi, que esta ideia me foifacilmente sugerida pelo seu aspecto, compreenders naturalmente quanta comoo, quanto pesar mecausaram as palavras da princesa.

    - Pois preciso que um mdico ou uma parteira decidam a questo, tornou o prncipe, para que sejaaniquilado o juzo talvez precipitado da princesa ou comprovada a nossa vergonha.

    Durante muitos dias divagaram sobre vrios projectos. Pareceu-lhes cada vez mais suspeito o estadode Hermenegilda e decidiram consultar a princesa sobre o que se devia fazer. Esta rejeitou ainterveno dum mdico tagarela e acrescentou que dentro de cinco meses seriam precisos outrossocorros.

    - Quais? - perguntaram ao mesmo tempo o conde e o prncipe.

    - J no tenho dvidas, prosseguiu a princesa com modo firme. Ou Hermenegilda uma hipcritainfame ou h nisto um mistrio inconcebvel. Est positivamente grvida.

    Esmagado pela consternao, o conde no pde a princpio articular palavra; mas depois,dominando-se com esforo, pediu princesa para que a todo o custo soubesse de Hermenegilda onome do miservel que imprimira no seu nome uma ndoa indelvel.

    - Hermenegilda ainda no suspeita de que conheo o seu estado, disse a princesa, e decerto sabereitudo logo que lho diga. Cair a mscara da hipocrisia ou terei brilhantes provas da sua inocncia, oque, devo confessar, me parece mui problemtica.

  • IXNaquela mesma noite, a princesa foi ter com Hermenegilda, cuja gravidez era cada vez maisaparente. Pegou-lhe nos dois braos, encarou-a bem e disse-lhe de repente e com intimativa:

    - Minha querida, tu ests grvida!

    Hermenegilda ergueu os olhos ao cu como num xtase celeste, e exclamou com a mais viva alegria:

    - Oh! Minha me, minha me, eu bem o sei! Sei-o h mui tempo e sinto um inexprimvel bem estar,no obstante o meu caro esposo ter cado sob os golpes homicidas dos inimigos. Sim, sinto ainda osmomentos da minha maior felicidade terrestre. e o meu bem amado revive no terno penhor duma doceunio!

    Pareceu princesa que tudo danava em volta de si e que ia perder a cabea. A ingenuidade dasexpresses de Hermenegilda, o seu arroubamento, aquele tom de verdade, no permitiam acus-la deperfdia, e s se podia compreender que o delrio a cegasse a respeito da grandeza do seu erro.

    Ferida por esta ltima ideia, a princesa repeliu a jovem e exclamou colrica:

    - Insensata! Podia um sonho pr-te nesse estado, que a todos ns nos vota ignomnia?

    Julgas lograr-me com essas narrativas absurdas? Reflecte; invoca as tuas recordaes; s

    uma confisso ditada pelo arrependimento te pode reconciliar connosco.

    Banhada em lgrimas de dor, Hermenegilda caiu aos ps da princesa, dizendo com voz gemebunda:

    - Tambm tu, minha me, me chamas visionria? Tambm tu recusas crer que a Igreja me uniu aEstanislau; que sou sua mulher? No vs o anel que trago no dedo? Mas o que estou eu a dizer? Poisconhecendo tu o meu estado, no achas isto bastante para te convenceres de que no sonhei?

    Com grande espanto seu, a princesa reconheceu que nunca o pensamento duma falta ocorrera aHermenegilda e que esta no compreendia as censuras que lhe dirigira. A triste, apertando com fogocontra o corao as mos da me adoptiva, suplicou-lhe que acreditasse no casamento, comprovadocomo era pelo seu estado. A boa senhora, desconcertada, fora de si, no soube o que responder, nemque meio devia empregar para descobrir algum vislumbre do segredo que envolvia Hermenegilda.

    S muitos dias depois que a princesa declarou ao conde Nepomuceno que era impossvel saberqualquer cousa pela jovem, que julgava, com profunda convico, trazer no seio um fruto do amor deseu esposo.

    O conde e o prncipe, irritados, alcunharam Hermenegilda de hipcrita, e Nepomuceno jurou que, seos meios brandos no conseguissem dissipar-lhe a loucura e arrancar-lhe a confisso da sua desonra,usaria de medidas de rigor.

  • A princesa foi de opinio que o emprego da fora seria to cruel como intil, pois que estavaconvencida de que Hermenegilda, longe dum embuste, acreditava com toda a alma no que dizia. Eacrescentou:

    - No mundo h ainda muitos mistrios que estamos mui longe de compreender. Quem sabe se umaardente unio do pensamento ter uma aco fsica e se as relaes espirituais de Estanislau eHermenegilda produziram esse estado que nos parece incompreensvel?

    No obstante a clera e as inquietaes do presente, o prncipe e o conde no puderam deixar de rir,e classificaram a ideia da princesa como uma das mais sublimes e etreas que o espiritualismo podeainda produzir.

    A princesa, excessivamente corada, disse que semelhantes cousas se achavam fora do alcance doesprito dos homens; persuadida, como estava, da inocncia de Hermenegilda, no deixava de julgarcrtica a posio. Props uma viagem com Hermenegilda, como o nico meio de a subtrair vergonha.

    O conde concordou com esta proposta, porque Hermenegilda mistrio algum fazia da gravidez e, sequeria conservar a reputao, devia afastar-se do crculo das suas habituais relaes.

    Regulada a questo, todos se sentiram mais tranquilos, especialmente o conde, perante apossibilidade de esconder o funesto segredo ao mundo, cujo escrnio era o que ele mais temia. Oprncipe julgou com razo que, dado o estranho encadeamento das circunstncias e o desarranjomental de Hermenegilda, se devia esperar que o tempo trouxesse o desfecho de to extraordinrioacontecimento.

    Fechada a discusso, iam separar-se, quando a repentina chegada do conde Xavier veio causar novoscuidados e embaraos.

    Afogueado por uma rpida correria, coberto de p, Xavier precipitou-se no salo com o ardor queproduz uma paixo desordenada, e, sem cumprimentar, nem dar ateno a pessoa alguma, gritou comvoz estridente:

    - Morreu! O conde Estanislau morreu! No caiu prisioneiro... no... foi morto pelo inimigo... aquiesto as provas!...

    E, dizendo isto, tirou rapidamente da algibeira vrias cartas e entregou-as ao conde Nepomuceno, queficou transtornado com o contedo. A princesa deitou um olhar a uma das cartas; logo s primeiraslinhas ps as mos, ergueu os olhos ao cu e exclamou dolorosamente:

    - Hermenegilda! Pobre criana! Que inexplicvel mistrio Vira que o dia da morte de Estanislau eraprecisamente o que Hermenegilda designara como sendo o da sua entrevista com o noivo, e que estesdois acontecimentos deviam ter sido simultneos.

    - Morreu, disse Xavier vivamente. Hermenegilda est livre. Obstculo algum se levanta entre ela emim, e eu amo-a mais do que a vida. Peo a sua mo!

  • O conde Nepomuceno estava incapaz de responder. A princesa tomou a palavra, e declarou quecertas circunstncias os colocavam na impossibilidade de bem acolherem aquele pedido, quepresentemente ele no podia ver Hermenegilda e que lhe pediam para partir o mais depressapossvel.

    Xavier respondeu, que mui bem conhecia a perturbao do esprito de Hermenegilda, qualnaturalmente queriam aludir, mas que no a considerava como obstculo, pois que o casamento poriatermo quele estado funesto.

    A princesa afirmou-lhe que Hermenegilda jurara conservar-se fiel a Estanislau at morte, querepeliria qualquer aliana e que finalmente a jovem no estava no castelo.

    Xavier ps-se a rir, dizendo que lhe bastava o consentimento do pai e que tomaria o cuidado derestabelecer a tranquilidade na alma de Hermenegilda.

    Irritado ao ltimo ponto com a importunidade do mancebo, o conde Nepomuceno declarou que eraintil contar com o seu consentimento e convidou Xavier a sair do castelo.

    Xavier encarou-o fixamente, abriu a porta do vestbulo e gritou ao cocheiro que apeasse as bagagens,que desarreasse os cavalos e os metesse na cavalaria. Depois voltou para o salo e sentou-se numapoltrona junto janela, dizendo num tom tranquilo e severo:

    - S fora me arrancaro do castelo antes de ter visto Hermenegilda, antes de lhe ter falado.

    - Ento ficar aqui por mui tempo, respondeu o conde Nepomuceno. Em quanto a mim cedo-lhe olugar e peo-lhe licena para deixar o castelo.

    O conde Nepomuceno, o prncipe e a princesa saram logo do salo para prepararem a partidaimediata de Hermenegilda.

    Quis o acaso que a jovem, contra os seus hbitos sasse a passear no parque. Xavier avistou-a dajanela, correu e alcanou-a quando entrava no fatal pavilho do sul. O seu estado era bem visvel.

    - Oh! Poder celeste - exclamou Xavier.

    E caiu de joelhos diante dela, fazendo-lhe os mais ardentes protestos de amor e suplicando-lhe que oaceitasse por esposo.

    - Conduziu-o aqui um mau gnio, respondeu Hermenegilda com temor e surpresa. No procureperturbar a minha tranquilidade. Conservar-me-ei fiel at morte ao meu bem amado; nunca, nuncaserei mulher de outro!

    Xavier, vendo repelidas as suas instncias e splicas, disse-lhe que se enganava a si prpria, que jlhe dera, a ele Xavier, as mais doces provas de amor; mas quando se levantou e quis aperta-la nosbraos, Hermenegilda, numa palidez mortal, repeliu-o cheia de horror e desdm, dizendo:

    - Miservel! Louco presunoso! No poders determinar-me a violar a f jurada, como no podes

  • anular a prova da minha unio com Estanislau! Sai da minha presena!

    Xavier cerrou os punhos, e, dando uma gargalhada de desprezo, exclamou:

    - Insensata! No quebraste tu mesmo esses absurdos juramentos? A criana que trazes no seio meufilho! Fui eu que te apertei nos braos aqui, neste mesmo lugar! Foste minha amante e s te restareste ttulo, se o no trocares pelo de esposa!

    Hermenegilda fixou-o com um olhar onde brilhavam as chamas do inferno.

    - Monstro! - exclamou ela.

    E, como que ferida de morte sbita, caiu no cho.

  • XXavier voltou correndo ao castelo, como se fosse perseguido por todas as frias do inferno;encontrou a princesa no caminho, pegou-lhe na mo e arrastou-a para o salo.

    - Repeliu-me com horror, a mim, ao pai de seu filho!

    - Por todos os santos do paraso! Tu, Xavier! Fala! Ser possvel?

    - Podem condenar-me, disse ele um pouco mais sossegado; mas quem tiver nas veias um sangueardente como o meu, tornar-se- tambm culpado num momento de fascinao. EncontreiHermenegilda no pavilho; era to extraordinrio o seu estado que no posso descreve-lo.

    Estava estendida num canap e parecia sonhar, entregue a sono profundo. Apenas entrei, levantou-se,veio ter comigo, pegou-me na mo e conduziu-me para o meio da sala com passos lentos, solenes.Ajoelhou e eu fiz o mesmo; ps-se a orar e compreendi que imaginava ter um padre na sua presena.Tirou do dedo um anel e apresentou-o ao invisvel sacerdote.

    Recebi-o e dei-lhe o meu em troca. Em seguida deixou-se cair nos meus braos, num acesso de amorardente... Quando fugi, Hermenegilda ficou mergulhada em profunda modorra...

    - Miservel! Que horrendo crime! - exclamou a princesa, fora de si.

    O conde Nepomuceno e o prncipe entraram e ficaram ao facto das confisses de Xavier; a princesasentiu-se ferida na sua delicadeza, quando declararam a aco criminosa de Xavier mui desculpvel,j que podia reparar-se pelo casamento.

    - No, disse a princesa, jamais Hermenegilda concedera a mo aquele que, laia de gnio mau, lheenvenenou a existncia com um crime odioso.

    - Pois preciso que seja minha mulher, disse o conde Xavier com fria e desdenhosa altivez; assim necessrio, para a salvao da sua honra. Fico e tudo se h de arranjar.

    Neste momento ouviu-se um rudo surdo; traziam para o castelo Hermenegilda, que o jardineiroencontrara desmaiada no pavilho. Colocaram-na num sof; antes que a princesa tivesse tempo de oimpedir, Xavier pegou na mo de Hermenegilda. Esta, de sbito levantou-se, dando um horrorosogrito que nada tinha de humano; imvel, inteiriada em medonha convulso, fixou no conde um olharcintilante.

    Era to fulminante o seu olhar, que Xavier cambaleou e murmurou com voz inteligvel a custo:

    - Um cavalo!

    A um sinal da princesa, saram a aprontar um.

    - Vinho! vinho! - exclamou o mancebo.

  • Depois de beber precipitadamente alguns copos, montou dum pulo no cavalo e desapareceu.

    O estado de Hermenegilda, cujo sombrio delrio parecia querer degenerar em loucura furiosa, mudouas disposies do pai e do prncipe, que reconheceram pela primeira vez o horror da irremedivelaco de Xavier. Quiseram mandar chamar um mdico, mas a princesa rejeitou os socorros dacincia, pois que o caso s requeria, talvez, consolaes espirituais; por isso foi chamado o padreCipriano, frade da ordem mendicante do Carmo e confessor da casa, o qual conseguiu tirarHermenegilda do seu abatimento e delrio. As melhoras acentuaram-se. Teve com a princesaconversas bem orientadas e exprimiu-lhe o desejo de ir, aps o parto, viver penitente, desolada, noconvento da ordem de Cister, em Oppeln.

    Acrescentou aos fatos de luto, um vu que lhe escondia completamente o rosto e que nunca maisergueu.

    O padre Cipriano saiu do castelo, mas voltou no fim de alguns dias. Entretanto o prncipe Zapolskiescrevia ao burgomestre de Lilinitz, em casa de quem Hermenegilda devia ter o parto; a abadessa doconvento de Cister, parente da casa, devia conduzi-la a Lilinitz; durante este tempo a princesaviajaria pela Itlia, acompanhada, na aparncia, por Hermenegilda.

    Era meia-noite; a berlinda que devia transportar a infeliz ao convento parou porta.

    Acabrunhado pela dor, Nepomuceno, o prncipe e a princesa, esperavam a pobre criana parafazerem as suas despedidas.

    Apareceu coberta com o vu, ao lado do frade, que trazia na mo um candelabro, cuja luz iluminou ovestbulo.

    - A irm Celestina, disse Cipriano com voz solene, pecou gravemente quando ainda pertencia aomundo; um crime de Satans lhe poluiu a pureza; mas um voto, que nunca quebrar, h de dar-lheconsolao, tranquilidade e a ventura eterna! Nunca mais o mundo tornara a ver o rosto, cuja belezatentou o demnio! Olhem: assim que Celestina vai comear a expiao.

    O monge levantou o vu e todos deram um grito, Hermenegilda escondera para sempre a anglicabeleza do rosto sob uma mscara de palidez mortal.

    Sem proferir uma nica palavra, a jovem separou-se do pai, que, esmagado pela dor, julgou nopoder suportar a vida; o prncipe, homem de mais firmeza, verteu contudo uma torrente de lgrimas;s a princesa, domando com todas os foras o horror que lhe inspirava aquele voto, conseguiu sersenhora de si.

    Nunca se pde explicar como o conde Xavier descobriu o retiro de Hermenegilda, como soube aconsagrao do recm-nascido igreja. Foi intil o rapto do filho, porque, quando chegou a Praga eo quis entregar a uma mulher de confiana, no estava desmaiado de frio, como Xavier pensara, massim morto. O conde Xavier desapareceu sem deixar vestgios; pensou-se num suicdio.

    *

  • Eram passados muitos anos quando o prncipe Boleslau Zapolski, durante uma viagem a Npoles, foivisitar o monte Pausilippo, onde se ergue, no meio da mais deliciosa regio, o convento dosCamaldulos. O prncipe dirigiu-se para ali a fim de gozar um panorama dos mais afamados do reinonapolitano.

    Ao passar pelo jardim do convento, reparou num frade sentado numa grande pedra, com um livro dehoras aberto sobre os joelhos e os olhos perdidos no horizonte. No rosto, ainda juvenil, tinhaimpresso um profundo pesar.

    Uma vaga recordao assaltou o prncipe medida que se aproximava. Cuidadosamente foiprostrar-se atrs dele e reconheceu que o livro era escrito em polaco. Em polaco falou ao religioso,mas este voltou-se com espanto e, apenas reparou no prncipe, velou o rosto e fugiu por entre asmoitas, como que perseguido por um gnio mau.

    Quando o prncipe contou o incidente ao conde Nepomuceno, este assegurou-lhe que o frade era oconde Xavier.

    Notas:

    1 A Polnia foi vencida na batalha de Maciejowice em 4 de outubro de 1794 e nela o valentecaudilho disse a clebre frase: Finis Poloni, grito de desespero daquele herico corao.

    Kosciusko caiu nas mos dos russos e foi posto em liberdade pelo czar Paulo I. Morreu obscuro em1817 com 71 anos de idade.

    2 Personagens duma comdia do conde Carlos Gozzi.

    3 provvel que Hoffmann se refira aqui a Napoleo, com quem os Polacos inutilmente contarampara restabelecer-lhes a independncia.

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