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Pesquisas e escritas contemporâneas: dialogando com a pluralidade de vozes Cláudia Fuchs Ivan Luís Schwengber Leandro Mayer Jenerton Arlan Schütz (Organizadores)

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Pesquisas e escritascontemporâneas:

dialogando com apluralidade de vozes

Cláudia FuchsIvan Luís Schwengber

Leandro Mayer Jenerton Arlan Schütz

(Organizadores)

(Mario Osorio Marques)

Por isso escrever é preciso, para encontrar-se a si mesmo sendo mais forte do que se é, para a longa e tortuosa busca do Outro de um desejo mais paciente. Importa em duplo desconhecimento: o do que somos e podemos e o de outrem que misterioso nos aguarda. Trabalhado pela dúvida inaugural da criação, o escrevente busca achar-se, descobrir-se, dizer-se para além das circunstâncias imediatas.

No ato de escrever um dos interlocutores é um leitor ausente e desconhecido, apenas virtual, o que deixa o outro, o escrevente, em extrema solidão, entregue a si mesmo e ao estar sozinho na própria casa ante uma imensidão vazia, sabendo-se, no entanto, espiado e policiado. Leva-o a morrer em si mesmo, como diria Rousseau, para se descobrir vivo.

Escrever é o começo dos começos. Depois é a aventura. Uma mochila com alguns poucos pertences do ofício artesanal, uma bússola, vale dizer um título que resuma o problema, ou tema, e a hipótese de trabalho. Uma lâmpada para iluminar os caminhos à medida que se apaga a luz do dia. E desse jeito que a teoria ilumina e conduz a prática, mas só quando a própria prática a deslocou para a situação a que deve servir e produzir adequada. Por isso, de saída não se pode saber quais nossos interlocutores. Surgirão eles durante a caminhada. Isso faz parte da aventura.

O que é escrever...?

Boa leitura!

[email protected]

Mestranda em Educação nas Ciências (Unijuí), Especialista e m G e s t ã o E s c o l a r (Uniasselvi), Licenciada em P e d a g o g i a ( U C E F F -Itapiranga/SC). Professora da Rede Municipal de Ensino do Município de Ijuí/RS. Bolsista CAPES. E-mail:

Cláudia Fuchs

M e s t r e e m E d u c a ç ã o (Unochapecó), Especialista em Metodologias de Ensino de Filosofia e Sociologia (Educon) e Gestão Escolar (Uniasselvi), L i c e n c i ad o e m F i lo s o f i a (FAFIMC). Professor da Rede Pública de Ensino do Estado de S a n t a C a t a r i n a . E - m a i l : [email protected]

Ivan Luís Schwengber

ISBN. 978-85-7993-603-6

Pesquisas e escritascontemporâneas:

dialogando com apluralidade de vozes

Cláudia FuchsIvan Luís Schwengber

Leandro Mayer Jenerton Arlan Schütz

(Organizadores)

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Leandro MayerDoutorando em História (UPF), Mestre em História (UPF), Especialista em Educação (UCEFF-Itapiranga/SC) e Especialista em Tecnologias

e m E d u c a ç ã o ( P U C - R J ) , Licenciado em Filosofia (PUC-RS). Professor da Rede Pública de Ensino do Estado de Santa

C a t a r i n a . E - m a i l : [email protected]

Jenerton Arlan Schütz Doutorando em Educação nas Ciências (Unijuí), Mestre em

E d u c a ç ã o n a s C i ê n c i a s (Unijuí), Especialista em Metodologia de Ensino de

H i s t ó r i a ( U n i a s s e l v i ) , Licenciado em História e Sociologia (Uniasselvi) e Licenciado em Pedagogia

(FCE). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

1

Pesquisas e escritas contemporâneas:

dialogando com a pluralidade de vozes

2

3

Cláudia Fuchs

Ivan Luís Schwengber

Jenerton Arlan Schütz

Leandro Mayer

(Organizadores)

Pesquisas e escritas contemporâneas:

dialogando com a pluralidade de vozes

4

Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser

reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta

os direitos dos autores.

Cláudia Fuchs; Ivan Luís Schwengber; Jenerton Arlan Schütz;

Leandro Mayer (Organizadores)

Pesquisas e escritas contemporâneas: dialogando com a

pluralidade de vozes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. 553p.

ISBN 978-85-7993-603-6

1. Pesquisas contemporâneas. 2. Projeto político pedagógico. 3.

Uso de tecnologias na escola. 4. Autores. I. Título.

CDD – 370

Capa: Andersen Bianchi

Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura

Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:

Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/

Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de

Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa

(UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores

www.pedroejoaoeditores.com.br

13568-878 - São Carlos – SP

2018

5

SUMÁRIO

Prefácio

Jenerton Arlan Schütz

SEÇÃO 1

A EDUCAÇÃO E SUAS MÚLTIPLAS VOZES

Por que Joãozinho não sabe ler?: reflexões sobre o ensaio

‚A crise na educação‛ de Hannah Arendt

Cláudia Fuchs

Jenerton Arlan Schütz

O princípio da autonomia no ensino/aprendizagem de

filosofia

Bruna Thomé

Sensibilidade e formação moral: kant e a reflexão acerca da

formação integral na natureza humana

Renata Cristina Lopes Andrade

Suzane da Rocha Vieira Gonçalves

O conhecimento poderoso e a influência dos poderosos na

conformação do conhecimento e currículo escolar

Janete Palú

Vanessa Daiane Rauber

Oto João Petry

Projeto Político Pedagógico: desafios teóricos e práticos

Márcio Luís Marangon

Camile Gasparini

11

15

37

57

77

95

6

Gestão na Universidade: uma Questão também Ambiental

Celeste Dias Amorim

Milton Ferreira de Silva Júnior

Luiz Artur dos Santos Cestari

Educação escolar e violência

Deoneci Salete Bisolo Schütz

Como se formam os professores nos dias atuais: um recoste

de história real refletida em teorias educacionais

Tiago Soares dos Reis

‚Sigo a minha caminhada fazendo o melhor que posso, mas

não fico | procura da turma pronta‛: o sentido pessoal de

uma professora sobre a indisciplina na aula de inglês

Fernando Silvério de Lima

A inserção do jovem no mercado de trabalho diante das

novas modalidades de Ensino Médio: uma intervenção com

os alunos do 3º ano do Ensino Médio da Escola de Educação

Básica Cristo Rei de São João do Oeste/SC

Daiane Formagini

Edenilza Gobbo

Visão emprendedora através de projeto de vida: estágio das

profissões, um novo caminho para integrar escola e

sociedade

Deoneci Salete Bisolo Schutz

Uso das tecnologias nas práticas pedagógicas com alunos

da EJA nas aulas de ciências naturais

Dircelei Arenhardt

Teoria crítica e tecnologia educacional

Celoy Mascarello

117

143

155

171

191

209

227

247

7

Interação social e a relação de ensino aprendizagem na

educação infantil

Angélica Dalla Rizzarda

Ludicidade por meio da literatura infantil e da música: um

projeto de extensão voltado para formação de professores

Roberta Taís Recktenwald

Carolaine Schreder

Maicon Bonmman dos Santos

Sílvia Natália de Mello

Formação continuada em questão: o que dizem os

professores de educação infantil em um município do

interior baiano?

Zenaide Viana Soares Fortunato

Por uma ecologia do homem: educação, ética complexa e a

harmonização das relações no ecossistema das

humanidades

Pyerre Ramos Fernandes

SEÇÃO 2

A HISTÓRIA E SEUS MÚLTIPLOS OLHARES

Quem precisa da história? A pertinência dos estudos

históricos e de sua difusão no Brasil atual

Maria Claudia de Oliveira Martins

265

277

291

311

331

8

A prática da libertação no Oeste catarinense: educação,

formação religiosa e movimentos socais

Ivan Luís Schwengber

Leonel Piovezana

Impasses na colonização de Porto Novo/SC: intrigas,

rivalidades e processos judiciais

Maikel Gustavo Schneider

A valorização rápida das terras da Companhia

Territorial Sul Brasil é uma coisa certa e garantida

Luiz Fernando Ferrari

O sentimento imigrante e a grande guerra

Marinilse Marina Busato

A liga brasileira dos aliados e a primeira guerra mundial

Pâmela Pongan

Memória e movimentos sociais: a greve dos professores de

Manaus em 1983

James da Costa Batista

Processo crime como fonte de pesquisa

Leandro Mayer

Marclei Ines Gossler

História oral: resgate da receita culin{ria ‚dampfnudel‛,

com sabor de infância

Franciele Thomé

Carlete Maria Thomé

Zacarias de Góes e Vasconcelos: o personagem do Brasil

imperial numa perspectiva biográfica

Jaqueline Schmitt da Silva

343

359

379

399

425

445

469

479

495

9

SEÇÃO 3

VOZES E OLHARES INTERDISCIPLINARES

A educação patrimonial como possibilidade de sensibilizar

nos sujeitos o ato pela preservação do patrimônio

arquitetônico

Tarcisio Dorn de Oliveira

Camile Iris Koch

Maiara da Rosa Grubert

O único bem patrimonial tombado de Ijuí/RS – prédio do

extinto Tiro de Guerra nº 337

Tarcisio Dorn de Oliveira

Franciele Zientarski Engerroff

Laura Barbosa de Jesus

Metodologia de gestão Lean e sua relação com a qualidade

em saúde

Larissa Evangelista Ferreira

Adriane Karal

Danúbia Jacomo da Silva Cardoso

517

529

543

10

11

Prefácio

‚O escrever é o princípio da pesquisa, tanto no sentido de por onde

deve ela iniciar sem perda de tempos, quanto no sentido de que é o

escrever que a desenvolve, conduz, disciplina e faz fecunda‛ (Mario

Osorio Marques).

A coletânea Pesquisas e escritas contemporâneas: dialogando

com a pluralidade de vozes, dialoga com a heterogeneidade e a

diversidade de enfoques e perspectivas teóricas e metodológicas.

Os artigos que compõem esta obra abordam diferentes olhares

sobre a pesquisa, a escrita e as metodologias, num movimento que

assume tensionamentos locais, regionais, nacionais e mundiais, nas

mais variadas áreas do conhecimento.

Esta coletânea é sinônimo de cumplicidade. Todos os autores

que aqui escrevem pertencem à nossa teia de relações. São colegas,

amigos, professores, pesquisadores... comprometidos com o

‚cuidado de si‛ (Foucault) e com o ‚amor mundi‛ (Arendt), eis o

motivo de terem dedicado o seu tempo, a sua escrita, as suas

leituras e o compromisso de percorrer novos caminhos com

atenção e intensidade.

Por isso, em nome dos organizadores, gostaria de agradecer de

verdade a cada autor (a) pela confiança, cumplicidade e decisão de

entregar-se a um exercício estranho, exigente e necessário: escrever.

Que a possibilidade de escrever, essa experiência em palavras,

tenha permitido a cada autor (a) liberar-se de certas verdades, de

modo a deixar de ser aquilo que se é para se tornar outra coisa,

diferentemente daquilo que vimos sendo.

Assumimos nesta coletânea um gesto considerado milenar: o

‚dar a ler‛ (Larrosa). É este gesto que permite exercitar-se no

humano, que permite a continuidade e durabilidade do mundo

comum, que alimenta as nossas esperanças por dias melhores.

Desejo aos leitores desta coletânea de textos, afastamento,

tempo, dedicação, silêncio, disciplina e pensamento, para que

12

possam na leitura, percorrer caminhos que ajudem a produzir

novas formas de pensar e ser.

Por fim, faço votos de que a força do pensamento não nos

abandone, que sejamos capazes de nos manter firmes, de

lembrarmos que estamos vivos, principalmente, nestes tempos de

ignorância militante, de hábeis polegares e escassa memória. É isso

que eu chamo de resistência.

Boa leitura!

Jenerton Arlan Schütz

Primavera de 2018

13

Seção 1 - A Educação e suas múltiplas vozes

14

15

Por que Joãozinho não sabe ler?:

reflexões sobre o ensaio

‚A crise na educação‛ de Hannah Arendt

Cláudia Fuchs1

Jenerton Arlan Schütz2

Introdução

As reflexões de Hannah Arendt sobre a educação estão

presentes no ensaio ‚A crise na educação‛ (2013, p 221-247). Trata-

se, nesse sentido, de um ensaio que visa apresentar a crise geral

que acometeu o mundo moderno3 em, praticamente, toda parte,

manifestando-se de modos diversos em cada país, envolvendo

áreas e adquirindo formas distintas.

Por isso, as constatações arendtianas não estão assentadas num

problema isolado ou específico, tampouco numa questão que esteja

presente no âmbito da educação e que possa, simplesmente, ser

resolvido internamente com o auxílio de uma nova ou qualquer

metodologia. A crise que se instaurou na educação está relacionada

às características básicas da sociedade moderna. Consideramos,

entre elas, o fato de as atividades especificamente humanas terem

perdido importância, cedendo lugar a critérios utilitaristas e à

preocupação exagerada com a satisfação de necessidades – sejam

elas reais ou inventadas.

1 Mestranda em Educação nas Ciências (Unijuí), Especialista em Gestão Escolar

(Uniasselvi), Licenciada em Pedagogia (UCEFF – Itapiranga/SC). Professora da

Rede Municipal de Ensino do Município de Ijuí/RS. E-mail:

[email protected] 2 Doutorando em Educação nas Ciências (Unijuí), Mestre em Educação nas

Ciências (Unijuí), Especialista em Metodologia de Ensino de História (Uniasselvi),

Licenciado em História e Sociologia (Uniasselvi) e Licenciado em Pedagogia

(FCE). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 3 Para a autora, a Era Moderna inicia com o descobrimento da América, com a

Reforma Protestante e a invenção do telescópio, diferentemente do Mundo

Moderno que inicia após a Revolução Francesa.

16

Os pressupostos do mundo moderno têm seus efeitos também

na pedagogia e nas práticas educacionais, de modo que a crise mais

ampla ganha uma expressão peculiar nesse âmbito. Eis, portanto,

mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não

sabe ler. As questões norteadoras, porém, não se referem apenas

aos pais ou educadores, mas são, principalmente, preocupações de

todos os seres humanos, devido ao lugar que a educação ocupa no

mundo, pois é a partir da educação que cada comunidade insere os

novos em seus valores, costumes e tradições. Todo momento de

crise é um desafio para se buscar novas orientações, pois

‚perdemos as respostas em que nos apoi{vamos de ordin{rio sem

querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a

questões‛ (ARENDT, 2013, p. 223).

Por este fato, uma crise nos traz a obrigação de voltar às

questões mesmas e exige de nós respostas novas ou velhas, mas de

qualquer modo julgamentos diretos. Não obstante, uma crise só se

torna desastrosa quando buscamos responder a ela com juízos pré-

formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas

aguça a crise como nos coíbe da experiência da realidade e da

oportunidade por ela proporcionada à reflexão. (ARENDT, 2013).

É neste movimento reflexivo, proporcionado por Hannah

Arendt em seu ensaio que buscamos compreender a crise na

educação, esta, escancarada no fato de Joãozinho não saber ler.

Entretanto, quem é Joãozinho? O que ele não sabe ler? Quem está a

ensiná-lo? Poderíamos ser reducionistas e nos omitir do cerne da

questão e responder que a culpa de Joãozinho não saber ler é

unicamente dele. Do mesmo modo, não objetivamos encontrar e

nomear culpados, o que, por sinal, seria fugir de uma reflexão mais

aprofundada do ensaio de Hannah Arendt, todavia, objetivamos

pensar as raízes do porquê Joãozinho não saber ler. Parte-se, num

primeiro momento da investigação das raízes da crise na educação,

para, num segundo momento, ter luzes a fim de entender a

enigmática questão: Por que Joãozinho não sabe ler?

17

A crise na educação: notas sobre o ensaio de Hannah Arendt

O ensaio da autora tem como ponto de partida a crise na

educação dos Estados Unidos da América na década de 50, a qual,

segundo a Arendt (2013), acabou se tornando um problema político

de primeira grandeza, fazendo com que aparecesse frequentemente

nos noticiários jornalísticos da época.

A conjuntura da crise é reflexo do rompimento do projeto da

modernidade com a tradição, bem como da agitação revolucionária

que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial, com os regimes

totalitários, campos de concentração ou, propriamente, com o mal-

estar que se espalhou por toda Europa após a Segunda Guerra

Mundial, fazendo com que seja difícil dar a crise na educação a

seriedade devida. Por isso, Arendt (2013) considera que é de fato

tentador considerar a crise como um fenômeno local e sem conexão

com as questões principais do século XX, pelo qual se deveriam

responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados

Unidos da América e que não encontrariam, provavelmente,

contrapartidas nas demais partes do mundo.

Contudo, se tal proposição fosse verdadeira, a crise na esfera

educacional não se teria tornado um problema político e as

autoridades responsáveis não teriam sido incapazes de lidar com e

ela a tempo. Por isso, a indagação de saber por que Joãozinho não

sabe ler é tão enigmática, contudo, a crise nos oportuniza explorar

e investigar a essência da questão. O fato de terem desaparecidos

os preconceitos significa simplesmente ‚*...+ que perdemos as

respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer

perceber que originariamente elas constituíam respostas a

questões‛ (ARENDT, 2013, p. 223), de tal modo que toda e

qualquer crise faz com que o homem seja provocado a fazer

novamente as perguntas primeiras, e a crise, apesar de tudo,

oferece uma nova oportunidade de reflexão sobre a própria

essência das coisas (ALMEIDA, 2011).

O entusiasmo pelo que é novo, concede uma singular

importância política à educação. Derivou-se dessa consideração, na

18

modernidade, o ideal rousseauniano, que assumiu a noção de que

as crianças devem ser a esperança para realizar os ideais políticos

de uma sociedade, tornando a educação um instrumento da

política, ‚*...+ e a própria atividade política foi concebida como uma

forma de educação‛ (ARENDT, 2013, p. 225). Não obstante, este o

papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas,

a partir dos tempos antigos, mostra o quanto se torna adequado

iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por

natureza neói, os novos.

Essa noção, referindo-se à política, é concebida como um

grande equívoco, pois, ao invés de se juntar aos seus iguais

(adultos), assumindo o esforço de persuasão e podendo resultar no

fracasso, há uma intervenção vertical, baseada na absoluta

superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como se

este já existisse (ARENDT, 2013). Por esse motivo, acreditava-se de

que se deve partir dos novos se se quisesse produzir novas

condições mundanas, o que permaneceu sendo o principal

monopólio dos movimentos revolucionários de feitio tirânico que,

ao assumirem o poder, subtraem as crianças a seus pais4 e

simplesmente as doutrinam.

Este é o ponto crucial das reflexões de Arendt, uma vez que as

passagens anteriores levam a autora a considerar que ‚a educação

não pode desempenhar papel nenhuma na política, pois na política

lidamos com aqueles que j{ estão educação‛ (ARENDT, 2013, p.

225), a passagem é paradigmática para se compreender a distinção

entre educação e política5 elaborada pela autora. Estas

considerações, sob as influências kantianas, tomam o adulto como

4 A crítica se dirigia principalmente à proposta de educação soviética, porém,

atualmente as crianças estão sendo tiradas dos pais pela dinâmica competitiva do

mercado de trabalho, e desde os seus primeiros meses de vida são colocadas em

escolas de turno integral. Caberia aqui a mesma crítica? 5 Reconhecer a distinção entre educação e política leva a reconhecer, também, que

esses }mbitos ‚jamais foram totalmente indiferentes entre si; que a extensão maior

ou menor das liberdades exercidas na esfera dos assuntos mais específicos da

educação sempre dependeu da boa vontade e do consentimento do corpo

político‛. (GARCIA; FENSTERSEIFER, 2011, p. 20-21).

19

aquele que já está educado e, como não podemos educar adultos,

ou, uma vez que quem tem essa pretensão quer privá-los de agirem

‚livremente‛ no espaço de iguais, no espaço de discussão em que

os humanos se reúnem para lidar com assuntos de interesse

comum. (GARCIA; FENSTERSEIFER, 2011).

O fato de Arendt propor a separação entre os dois âmbitos,

evidentemente, justifica-se para evitar que as crianças se envolvam

com/em questões que ainda não lhes dizem respeito, além de

querer evitar também qualquer possibilidade de doutrinação e

eliminação da possibilidade de pensar e, logicamente, no futuro, de

agir. Desse modo, se do ponto de vista do adulto (já educado), a

educação antecede necessariamente sua participação política, do

ponto de vista da educação, a política também passa a anteceder a

educação de forma necessária. Logo, é preciso cuidar para não

fazer da escola o palco político para a resolução dos problemas que

nós adultos não fomos capazes de resolver. Sendo ainda, uma

forma de lhes negar o futuro papel no corpo político, pois, querer

preparar uma geração – alunos –, para um amanhã utópico, é

recusar a própria possibilidade de inovação que está contida em

cada aluno, em cada geração.

Pois, ‚*...+ do ponto de vista dos mais novos, o que quer que o

mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho

do que eles mesmos‛ (ARENDT, 2013, p. 226), é pertencente |

própria condição humana o fato de que cada geração se transforma

em um mundo antigo, de tal modo que instrumentalizar uma nova

geração para um mundo novo só pode significar o desejo de

arrancar das mãos dos recém-chegados a possibilidade face ao

novo (ARENDT, 2013). Por esse modo, o mundo no qual as novas

gerações são introduzidas, é um mundo velho, isto é, um mundo

preexistente, povoado por outros seres humanos, construído pelos

vivos e pelas gerações anteriores, e só é novo para os que acabaram

de adentrar nele. (FENSTERSEIFER, 2005, p. 157).

20

Com respeito à própria educação, a ilusão emergente pelo

pathos do novo6, produziu consequências sérias, possibilitou, antes

de mais nada, àquele complexo de modernas teorias educacionais

que consistem na impressionante miscelânea de bom senso e

absurdo levar a cabo, sob a divisa da educação progressista, uma

radical revolução em todo o sistema educacional. Derrubou, ‚como

de um dia para o outro, todas as tradições e metodologias

estabelecidas de ensino e de aprendizagem‛ (ARENDT, 2013, p.

226), grosso modo, ‚o fato importante é que, por causa de

determinadas teorias, boas ou más, todas as regras de juízo

humano moral foram postas de parte‛. (ARENDT, 2013, p. 227).

De acordo com a análise da autora, a crise na realidade

educacional americana, com caráter progressista, se assenta em três

pilares: o primeiro se refere à relação entre os adultos e as crianças;

o segundo tem a ver com o ensino; e o terceiro foi defendido

durante séculos e encontrou expressão conceitual sistemática no

Pragmatismo. Segue a reflexão particular de cada um dos três

pressupostos básicos de forma mais aprofundada.

O primeiro, conforme Arendt (2013, p. 229-230), ‚*...+ é o de que

existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre

crianças, autônomos e que se deve, na medida do possível permitir

que elas governem‛. Pressupõe-se que exista um mundo da

criança, que configura a instauração de uma barreira entre os

adultos e as crianças, em que ambos os grupos se autorrecrutam. O

grupo dos adultos, porém, já possui normas, valores, costumes e

outros princípios grupais; do outro lado, o grupo das crianças está

inaugurando o seu próprio grupo. O que acontece é que, os

adultos, por vezes, se relacionam com o indivíduo-criança como se

fossem um grupo concorrente e distinto do seu.

6 Pathos do novo é um conceito utilizado por Arendt para denominar o afã das

sociedades modernas pelo novo e o consequente rechaço ao que é velho

(tradicional). Nessa direção, o novo e sua novidade são revestidos de positividade

e entendidos como avanço, enquanto os saberes da tradição são considerados

como ultrapassados e sem utilidade.

21

É da essência desse primeiro pressuposto básico levar em conta

somente o grupo, e não a criança individual, o que faz com que a

autora considere que: ‚*...+ a autoridade de um grupo *neste caso, o

grupo das crianças], é sempre consideravelmente mais forte e

tir}nica do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado‛.

(ARENDT, 2013, p. 230). A grosso modo, é uma covardia outorgar

às crianças responsabilidades das quais elas ainda não possuem

condições de assumir problemas gerados pelos adultos e, por isso,

são de competência dos adultos. Não obstante, as crianças são

entregues à tirania de seu próprio grupo, com uma realidade cada

vez mais fechada, pois não enfrentam mais a autoridade dos

adultos, mas sim, a autoridade do próprio grupo que as cerca e

obriga por todos os lados. Para Arendt (2013), a reação das crianças

a essa pressão tende a ser o conformismo ou a delinquência, ou

ainda, ambos. Ademais, Arendt (2013, p. 230) afirma que: ‚*...+ ao

emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi

libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e

verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria‛.

Nessa direção, como consequência, pode-se perceber o

comportamento de muitos jovens na recusa de manter com as

gerações passadas um vínculo de conservação de tradições e

valores comuns, principalmente, o respeito à autoridade7,

compreendida aqui como uma referência dos valores éticos e

morais presentes em uma sociedade. O problema crucial é que

quando a sociabilidade primária (família) não pode mais cumprir

essa primeira fase da construção de si, intersubjetiva, fica cada vez

mais difícil que a segunda (escola) a faça, implicando em uma

sobrecarga para a qual ela não tem todas as competências

7 Arendt distingue autoridade de certas formas de força e/ou violência. Mesmo

que em ambos os casos se possa falar de uma relação hierárquica e de obediência,

aquele que obedece ao mais forte o faz por medo ou por ser forçado fisicamente a

obedecer, enquanto aquele que obedece à autoridade o faz por consentimento.

(ARENDT, 2013). Nesse sentido, o professor pode constituir uma autoridade

frente ao aluno, ‚*...+ se ambos reconhecem a legitimidade do mundo comum e a

necessidade de sua continuidade‛ (ALMEIDA, 2011, p. 39).

22

requeridas (daí boa parte da crise da educação escolar) (BRAYNER,

2008). Arendt (2013, p. 245-246) já alertava, em 1950, para o impasse

na educação, e o fato de, por sua natureza, ‚não poder *...+ abrir

mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, [...] a

caminhar num mundo que não é estruturado nem pela autoridade

nem tampouco mantido coeso pela tradição‛.

O segundo pressuposto que veio à tona com a crise tem a ver

com o ensino. A Pedagogia Moderna tem dado ao professor o

car{ter de ‚ensinar qualquer coisa‛ (ARENDT, 2013, p. 231). Sob a

influência da Psicologia e, principalmente, dos princípios do

Pragmatismo, a ‚Pedagogia transformou-se em uma ciência do

ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria

efetiva a ser ensinada‛. (ARENDT, 2013, p. 231). Assim, o professor

ignora o valor da especialização, de dominar alguma área

específica, e se mostra extremamente superficial.

Acontece, ainda, que o conhecimento do professor está

equiparado ao do educando, assim, o aluno tem falta de um

suporte para desenvolver as suas habilidades e aptidões. O

resultado não poderia ser outro – os alunos são abandonados a

seus próprios recursos e o professor perde a sua fonte legítima de

autoridade, que é justamente o conhecimento e a capacidade de

transmiti-lo, ‚*...+ como a pessoa que, seja dada a isso a forma que

se queira, sabe mais e pode fazer mais que nós mesmos, não é mais

eficaz‛. (ARENDT, 2013, p. 231). Tudo isso está naturalmente

ligado a um pressuposto básico acerca da aprendizagem e da

formação.

O terceiro pressuposto foi defendido pelo mundo moderno

durante séculos e encontrou a sua expressão conceitual sistemática

no Pragmatismo. Esse pressuposto significa que o indivíduo só

pode conhecer e compreender aquilo que é feito por ele próprio.

Para Arendt (2013), a sua aplicação à educação consiste em

substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer.

O motivo por que não foi atribuída nenhuma importância ao

domínio que tenha o professor de sua matéria foi o desejo de levá-

lo ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem, de tal

23

modo que ele não transmitisse, como se dizia, ‘conhecimento

petrificado’, mas, ao invés disso, demonstrasse constantemente

como o saber é produzido (ARENDT, 2013, p. 232).

Percebe-se que a teoria casa muito bem com ‚o professor que

ensina qualquer coisa‛, pois esse pressuposto não obriga o

professor de possuir conhecimentos teóricos sólidos. Nesse

momento, a habilidade ultrapassa o conhecimento, a brincadeira

em sala de aula substitui um trabalho rigoroso e, para Arendt

(2013, p. 233), ‚aquilo que, por excelência, deveria preparar a

criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente

adquirido de trabalhar e de não brincar8, é extinto em favor da

autonomia do mundo da inf}ncia‛.

A criança é excluída do mundo dos adultos e é mantida no seu

próprio mundo, na medida em que este pode ser chamado de

mundo. Para Arendt (2013), essa retenção da criança é artificial,

pois extingue o seu relacionamento com os adultos, e consiste,

entre outras coisas, do ensino e da aprendizagem, e porque oculta

ao mesmo tempo o fato de a criança ser um ser humano em

desenvolvimento, e a infância ser uma etapa temporária, isto é,

uma preparação para a condição adulta. A questão de que a criança

não pode ser responsabilizada pelas transformações ocorridas na

realidade do mundo e, também, a necessidade constante de um

processo de amadurecimento, parece confuso, mas no momento em

que o adulto, responsável pelo mundo, isto é, um único mundo9 de

crianças e adultos, assumir a sua responsabilidade de andar lado a

lado e, se necessário, à frente da criança, apresentando o mundo e

se responsabilizando por ele, a criança, no seu tempo de

desenvolvimento, é instigada a partir do exemplo dos mais velhos

a se tornar um adulto responsável pelo mundo.

8 Não se leva em conta a estrutura da Educação Infantil, onde as crianças desde

muito cedo ingressam na escola, numa fase em que o brincar se constitui em uma

fase precoce. 9 Essa responsabilidade permite que a criança possa ser criança, um modo de

respeito à infância.

24

Abandonar as crianças no seu ‚mundo‛ ou então infantiliz{-las

são equívocos, pois os adultos devem se responsabilizar por elas e,

no futuro, serão as crianças de hoje que ficarão na posição frontal

ao mundo. Ademais, o exemplo é o recurso que se tem hoje para

manter a responsabilidade e o cuidado pelo mundo.

Dessa forma, deve-se assumir a responsabilidade pelo mundo

de modo a motivar os mais novos a assumi-la posteriormente

também. As gerações mais novas não estão tão distantes, por mais

que se possa imaginar, muitas vezes elas compartilham o mesmo

mundo dos adultos. A autoridade presente na educação ajuda a

reforçar isso, pois está fundamentada em assumir compromissos

que possam garantir o conhecimento. Sabe-se que a criança tem o

seu tempo para se submeter à educação, mas no momento em que

for adulta pode, inclusive, superar o seu professor. Do mesmo

modo, o professor passa a transmitir com todo o seu vigor o

conhecimento aos alunos, mas sabe, também, que um dia este será

ultrapassado pelos seus alunos, quando eles já não serão mais os

seus alunos e sim os seus colegas.

O duplo aspecto da realidade da criança é que ela é um ser

novo e está em formação. Desse modo, a educação deve se voltar

para o cuidado com a própria vida da criança e com o cuidado do

mundo ao qual ela chegou, ou seja, a criança nasce para a vida e

nasce no mundo. O para a vida refere-se ao processo de formação, ela

é um vir a ser, ela não nasce humana, mas para se tornar humana.

O nascer no mundo é o lugar pré-existente, onde nada é de sua

autoria, onde ela só irá assumir a responsabilidade na medida em

que assumir este viver no mundo. Os pais e os educadores já

passaram por este processo – ou pelo menos deveriam ter passado

–, e são responsáveis pela continuidade do mundo e, de certo

modo, estão constantemente fazendo do mundo a sua casa.

25

Notas sobre o Joãozinho que não sabe ler: afinal, quem é o

Joãozinho?

As reflexões arendtianas sobre a crise na educação estão

inscritas no horizonte de outras crises da sociedade

contemporânea. Eis o motivo de Arendt considerar a crise na

educação não como única e de privilégio educacional, mas como

momento importante para a exposição de outras questões cruciais.

O movimento que realizamos para compreender as raízes da crise

na educação nos proporcionaram inúmeras luzes para entender

quem é o Joãozinho, personagem emprestado da autora e utilizado

metaforicamente neste escrito. Poderíamos, antes mesmo de fazer

todo percurso da compreensão do ensaio da autora, dizer que a

culpa de Joãozinho não saber ler é, unicamente, dele. Porém,

estaríamos, sem sombra de dúvida, agindo de modo reducionista e

nos omitindo da especificidade que tal reflexão nos conduz.

Poderíamos, ainda, arriscar dizer que o Joãozinho não sabe ler

pois estamos em crise, afinal, tudo está em crise: a escola, os

professores, o mundo, as pessoas, nada mais é sólido, tudo é

líquido, parafraseando Bauman. Ou, ainda, o problema de

Joãozinho estaria vinculado | ‚estacionada‛ que a escola deu em

detrimento de todos avanços tecnológicos. Contudo, todas

proposições supracitadas ignoram o fato de: Quem é o Joãozinho?

Este aluno representa a pluralidade dos seres que chegam à

escola ou, infelizmente como acontece em nosso país, ele

representa também aqueles que estão fora dela. Joãozinho

representa os diferentes, diferentes em tamanho, idade, peso, cor,

beleza, etnia, origem social e pensamento. Assim como todos seres

humanos, neste caminho de se constituírem humanos. Savater

(2012, p. 24) apresenta reflexões sobre o ser ‚humano‛, diz ele:

Nós humanos nascemos já o sendo, mas só depois o somos

totalmente. [...] Os outros seres vivos já nascem sendo o que

definitivamente são, o que hão de ser irremediavelmente, aconteça o

26

que acontecer, ao passo que de nós, humanos, o que parece mais

prudente dizer é que nascemos para a humanidade.

Em consonância, Arendt (2013) afirma que a essência da

educação é o fato de que seres humanos nascem para o mundo,

logo, familiarizá-los e mediar a inserção destes no mundo é função

da educação, isto é, a sua função é inserir Joãozinho no mundo.

Qual mundo? Num mundo preexistente, povoado por outros seres

humanos, construído pelos vivos e pelas gerações anteriores, e que

continuará existindo depois deles. Exatamente em benefício

daquilo que é novo em cada criança é que a educação precisa ser

conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la

como algo novo em um mundo preexistente, que, por mais

revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de

vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição (ARENDT,

2013). Não obstante, este mundo é compartilhando com todos os

outros seres humanos que, por meio do nascimento, surgem para o

mundo, para a dinamicidade da vida, constituindo-se em seres de

linguagem, de historicidades singulares e plurais. Esta pluralidade

é composta por singularidades, e o fato de partilharmos e estarmos

junto a outras singularidades nos impele a comunicarmos uns com

os outros. Por isso, as relações permitem vinculações

intersubjetivas e adquirem realidade no momento em que

compartilhamos na pluralidade.

Pois o que é próprio do homem não é tanto o mero aprender, mas o

aprender com outros homens, o ser ensinado por eles. Nosso

professor não é o mundo, as coisas, os acontecimentos naturais, nem

o conjunto de técnicas e rituais que chamamos de ‚cultura‛, mas a

vinculação intersubjetiva com outras consciências (SAVATER, 2012,

p. 31).

E, é desse modo que Joãozinho aprende a ser Joãozinho. Nessa

tessitura de experiências plurais, Arendt (2013, p. 239) situa a

responsabilidade dos adultos (pais, professores, responsáveis...)

nesse processo:

27

[...] o educador está aqui em relação ao jovem como representante de

um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o

tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele

fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta

arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os

jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua

mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a

responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é

preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

Poderíamos perguntar: o que significa assumir a

responsabilidade coletiva pelo mundo? O que é responsabilidade?

A responsabilidade face ao mundo toma a forma de autoridade,

uma vez que os adultos passam a assinar como co-autores na

participação e construção do mundo comum, logo, tornam-se

responsáveis por todo construto e por aqueles que adentram no

mundo. Desse modo, se compreendemos que a autoridade oferece

‚um passado para o futuro‛, então podemos considerar que ela

ocupa um lugar destacado na educação. Portanto, para os adultos

(pais e professores), a responsabilidade da autoridade é sempre

dupla: ‚*...+ face | vida e ao desenvolvimento da criança e face |

continuidade do mundo‛ (COURTINE-DENAMY, 2004, p. 172).

Segundo Almeida (2011, p. 39), referindo-se aos professores,

afirma que a autorização destes não é um atributo arbitr{rio, ‚*...+ e

não se origina em sua pessoa, mas nos saberes, nos valores e nos

princípios do mundo comum e da instituição escolar que ele

representa‛. Desse modo, é o lugar e a sua tarefa específica que lhe

conferem uma autoridade, ‚*...+ o professor pode constituir uma

autoridade frente ao aluno, se ambos reconhecem a legitimidade

do mundo comum e a necessidade de sua continuidade‛

(ALMEIDA, 2011, p. 39), dito de outra forma, é somente ao

responsabilizar-se, tanto pelo mundo quanto pelos mais jovens, que

o professor pode ser reconhecido como um alguém dotado de

autoridade (ARENDT, 2013).

28

Portanto, se essa responsabilidade repugna, é melhor dedicar-

se a outra coisa e não atrapalhar. Ser responsável pelo mundo não é

aprova-lo como ele é e porque só a partir do que é pode ser

emendado. Para que haja futuro, deve-se aceitar a tarefa de

reconhecer o passado como próprio e oferecê-lo aos que estão

vindo (SAVATER, 2012). Repugnar causa antipatia e aversão

contra o qual se age ou se reage, em síntese, instaura-se um mal-

estar que não é aceito e que é repelido, esta repugnância revela que

a autoridade (responsabilidade) dos adultos para com o mundo e

as crianças est{ sendo recusada pelos mesmos, e dizem: ‚crianças,

o mundo é assim, não tem o que se possa fazer‛.

É como se os pais dissessem todos os dias: nesse mundo, mesmo nós

não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que

saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios

para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem;

em todo caso, vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos

inocentes, lavamos nossas mãos por vocês. (ARENDT, 2013, p. 241-

242).

E, continuamos na mesma situação, Joãozinho não sabe ler.

Começamos, entretanto, a compreender o que há para além deste

fato. Educar exige responsabilidade, autoridade, compromisso por

parte dos adultos para com o Joãozinho. Se ele não sabe ler, é

porque há recusa, repugnância, pois ensinar é sempre ensinar ao

que não sabe, e quem não indaga, constata e deplora a ignorância

alheia não pode ser professor, por mais que saiba. Conforme

Savater (2012, p. 29), ‚*...+ na dialética do aprendizado é tão crucial

o que sabem aqueles que ensinam quanto o que ainda não sabem

os que devem aprender‛. Entretanto, tal reflexão não se encerra

nisso.

No ensaio de Arendt (2013), a autora apresenta três

pressupostos básicos que auxiliam a compreensão da crise na

educação, tais pressupostos já foram supracitados. Podemos

considerar que o abandono das crianças em ‚seu mundo‛

(primeiro pressuposto) possui consequências já muito comuns nas

29

escolas contemporâneas: gera conflitos, principalmente, na relação

professor-aluno. Ousa-se a desafiar o professor e até a ridicularizá-

lo, mas o mesmo não acontece em relação ao grupo de pares. Em

relação a isso, Arendt (2013, p. 230) constata que ‚*...+ a autoridade

de um grupo, mesmo que este seja um grupo de crianças, é sempre

consideravelmente mais forte e tirânica do que a mais severa

autoridade de um indivíduo isolado‛. Eis o motivo de

constantemente ouvirmos perguntas do tipo: ‚não sei mais o que

fazer com tal turma‛, ‚aqueles alunos não querem nada‛, claro,

nada os toca, nada os atravessa, nada os interessa, vivem num

mundo à parte, um mundo só deles. Recordamos, entretanto, de

situações extremas em que os pais são solicitados para irem à

escola e, frequentemente se ouve deles (pais): ‚eu não sei mais o

que fazer com fulano, ele é assim em casa também‛. Estes poucos

acontecimentos supracitados nos revelam um cotidiano em que a

recusa do mundo e das crianças é gigantesco e toma concretude. O

resultado é banir as crianças do mundo dos adultos e, estas, por

sua vez, se organizam em grupos ‚tir}nicos‛ que determinam as

ações, pensamentos, regras, vestimentas, comidas, afrontações,

agressões, como se estivessem em outro mundo, como se

existissem dois mundos – um dos adultos e outro das crianças.

Não obstante, neste contexto residem as raízes da apatia e

violências das crianças, jovens, alunos. Encontrando-se banidas do

mundo dos adultos, acabam decidindo por conta própria, reagindo

apaticamente ou de forma agressiva, agredindo seus pares, os

professores, o patrimônio (público e privado), mantendo sob sua

tutela o grupo, pois individualmente sentem-se incapazes de

reagir. Esse é um dos problemas enfrentados por Joãozinho.

É importante observar que, na análise de Arendt (2013), a

rebeldia das crianças é propiciada pelos próprios adultos que

abdicam de sua responsabilidade e autoridade frente aos mais

novos. Essa análise é compartilhada também por Savater (2012),

onde afirma que não são as crianças que se rebelam contra a

autoridade educacional, mas são os adultos que induzem as

crianças a se rebelarem, precedendo-as nessa rebelião que os

30

desvencilha da tarefa de lhes oferecer o apoio sólido, cordial mas

firme, paciente e complexo, que ajudará as crianças a crescer

adequadamente no sentido da liberdade adulta.

Ademais, no segundo pressuposto apresentado por Arendt

(2013), que diz respeito ao ensino e, mais especificamente, a quem

ensina. Adentramos, nessa perspectiva, num caminho das

especificidades do ensino, bem como da formação dos responsáveis

por este processo. Essa totalidade de um ensino geral, segundo a

autora, lança luzes sobre o todo, sem, no entanto, aprofundá-lo, a

ponto de emancipar-se da matéria a ser ensinada.

Em nossa compreensão, há nesse pressuposto dois pontos

fundamentais: i) refere-se à função do ensino; ii) diz respeito aos

educadores. Em relação ao primeiro ponto, invoca-se o âmago da

educação, na perspectiva de expor a centralidade desta, ou seja,

para quê ensinamos? Por quê? E, qual a finalidade/função da

escola? Surgem vários debates, defesas, acusações e embates,

muitas são as experiências ditas novas ou inovadores vivenciadas

em nome de um ensino com compromisso social, de alunos como

sujeitos que constroem a própria história e o próprio conhecimento,

com conteúdos que possuem significados etc. São amostras de

realidades que estão à procura de compreensões do que acontece

no interior das escolas, daquilo que se manifesta nas ações

pedagógicas, em busca de um sentido para as atividades

educacionais.

A educação tem como objetivo completar a humanidade do neófito;

essa humanidade, no entanto, não pode se realizar abstratamente

nem de modo totalmente genérico, e ela também não consiste no

cultivo de um germe idiossincrásico latente em cada indivíduo, mas

tenta cunhar uma orientação social precisa: a que cada comunidade

considera preferível (SAVATER, 2012, p. 136).

Nota-se que a tarefa à qual a educação se propõe está em

cuidar do desenvolvimento da humanidade dos mais novos. Em

suma, ela auxilia um processo já iniciado na família, por isso, a

escola é uma ponte entre o espaço privado do lar e o espaço

31

público da sociedade. Esta ponte demonstra, como espaço

importante da educação, as dificuldades e consequências da crise,

constroem-se, todavia, diferentes pontes, diferentes formatos,

algumas com bases sólidas outras não, alguma abandonadas,

outras, ainda, nem se constituíram pontes, ou por projetarem-se de

forma ‚abstrata e genéricas‛, ou por uma forma pessoal e

individualizada.

Por isso, a educação precisa tentar cunhar uma orientação

social precisa, preparando os mais novos para a vida em sociedade,

de acordo com o que lhe parece mais conveniente para a sua

conservação e não a sua destruição, ou seja, para a sua

continuidade e durabilidade. Que tentativas cunhadoras

estaríamos realizando? Cunhar é imprimir uma marca, um selo,

um caráter. Profundo e carregado de esperança, mas também de

inquietações. Marcas estas que perduram. Ao selar, reconhecemos

autoria, responsabilidade, autoridade sobre e perante. As escolas,

ao assumir encargos sociais, ao generalizar seu fazer pedagógico,

ao analisar e discutir projetos em busca de alguma direção, não

estamos, nestes casos, imprimindo um selo com o slogan: ‚é de

todos não é de ninguém?‛. L{ vem Joãozinho expor um selo. Estes

elementos constituem também o segundo ponto: os educadores.

Um professor, pensava-se, é um homem que pode simplesmente

ensinar qualquer coisa; sua formação é no ensino e não no domínio

de qualquer assunto particular. [...] Como o professor não precisa

conhecer sua própria matéria, não raro acontece encontrar-se apenas

um passo à frente de sua classe em conhecimento (ARENDT, 2013, p.

231).

Tal afirmação nos demonstra uma das mais duras faces da crise

na educação, da realidade enfrentada, onde encontramos

professores tipo ‚clínico geral‛, que detêm um pouco de

conhecimento sobre cada parte do ‚corpo‛. Sob o pretexto de uma

aula democrática, participativa, onde os alunos decidem o que

querem aprender/estudar/trabalhar, cometem-se equívocos como

se a relação professor-aluno dependesse da decisão sobre o

32

conteúdo da aula. Sem dúvida uma postura delicada e que

praticamente iguala os passos na caminhada do conhecimento.

O terceiro pressuposto arendtiano decorre de uma concepção

teórico sobre o processo de aprendizagem e que, segundo Arendt,

o mundo moderno defendeu durante século, tomando expressão

através do Pragmatismo, onde, o importante é fazer em detrimento

do saber. Nesse contexto, as atividades educacionais restringem-se

ao desenvolvimento das aulas de modo que os alunos aprendam

através das atividades como se produz o conhecimento. Transmitir

passa a ser um verbo banido dos planejamentos. Podemos

inclusive reiterar que a palavra transmissão se tornou maldita e

condenada no âmbito da educação escolar. Para muitos, a escola

não serve para transmitir, mas sim para facilitar a aprendizagem

dos alunos.

O motivo por que não foi atribuída nenhuma importância ao domínio

que tenha o professor de sua matéria foi o desejo de levá-lo ao

exercício contínuo da atividade de aprendizagem, de tal modo que

ele não transmitisse, como se dizia, ‘conhecimento petrificado’, mas,

ao invés disso, demonstrasse constantemente como o saber é

produzido. (ARENDT, 2013, p. 232).

Encontramos a vinculação deste pressuposto com o segundo:

para a educação, pensada sob o ‚conhecer através do fazer‛, ao

professor comportava ser conhecedor de tudo um pouco, pois o

que realmente importa é o fazer. O que certamente dissimula as

consequências de um profissional assim em sala de aula, bem como

exime o sistema educacional. Percebe-se que a teoria casa muito

bem com ‚o professor que ensina qualquer coisa‛, pois esse

pressuposto não obriga o professor de possuir conhecimentos

teóricos sólidos. Nesse momento, a habilidade ultrapassa o

conhecimento, a brincadeira em sala de aula substitui um trabalho

rigoroso e, para Arendt (2013, p. 233), ‚aquilo que, por excelência,

deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito

33

gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar10, é extinto

em favor da autonomia do mundo da inf}ncia‛.

Ademais, os três pressupostos apresentados pela autora

demonstram o quanto são atuais e percebidos nas relações

pedagógicas em nosso cotidiano. Por isso, ‚*...+ a atual crise, [...]

resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses

pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar

todo o sistema educacional, ou seja, de transformá-lo inteiramente‛

(ARENDT, 2013, p. 233). Todavia, tantas tentativas de experiências

novas sendo gestadas no interior das escolas, buscando soluções e

saídas para os problemas, as consequências da crise, suja

constituição é global, perpassa níveis de ensino e instituições

públicas e privadas.

E, é por isso que em muitos dos casos, Joãozinho ‚ainda‛ não

sabe ler!

Considerações finais

A discussão sobre a crise na educação é extremamente

complexa, engendrando-se nos mais diversos setores e, também,

nas relações pedagógicas, às vezes escancaradamente, outras

sutilmente perceptíveis. É comum confundirem-se direções,

posições, compreensões acerca da função social da escola e dos

professores da educação. Nesse emaranhado de situações, Savater

(2012) considera que nenhum professor pode ser verdadeiramente

neutro, isto é, escrupulosamente indiferente diante das diversas

possibilidades que se oferecem a seu aluno: se o fosse, começaria

antes de tudo por respeitar sua própria ignorância, o que

transformaria a demissão em seu primeiro e último ato de

magistério. De modo que a questão educacional não é

‘neutralidade-partidarismo’, mas sim estabelecer que partido

vamos tomar. Essa neutralidade significa tomar partido pela opção

10 Não se leva em conta a estrutura da Educação Infantil, onde as crianças desde

muito cedo ingressam na escola, numa fase em que o brincar se constitui em uma

fase precoce.

34

formativa de indivíduos capazes de participarem, futuramente, em

comunidades e que se ocupem mais do desvalidamento dos seres

humanos do que de formas que o mascaram.

Nesse contexto, é preciso afirmar pedagogicamente aos que

chegam (os novos), que esperamos tudo deles, mas que não

podemos ficar esperando por eles. Que lhes transmitimos o que

acreditamos ser o melhor daquilo que fomos e escolhemos ser, mas

que sabemos que lhes será insuficiente, como também foi

insuficiente para nós. Que transformem tudo, começando por si

mesmos, mas que sejam capazes de manter a consciência do que é e

como é o que vão transformar.

Afinal, por que Joãozinho não sabe ler? Realizadas as análises

de Arendt e, também as nossas, para além desta enigmática

questão, torna-se, no entanto, possível entendê-la. Não elevando-a

à categoria de enigma a ser decifrado, como sendo algo obscuro,

um mistério com infindáveis incógnitas. É passível de compreensão

por ser Joãozinho do nosso cotidiano e, ao pensar a questão dele,

ao falarmos dele, falamos também das escolas, dos professores, do

mundo, dos muitos Joãozinhos e também das Mariazinhas, enfim,

falamos da humanidade.

Com isso, findamos com a afirmação de Arendt (2013, 247),

onde, considera-se que a ‚*...+ educação é o ponto em que

decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a

responsabilidade por ele [...] e [...] onde decidimos se amamos as

nossas crianças, o bastante para não expulsá-las de nosso mundo

*...+‛. Ademais, consideramos que muitas vezes, h{ experiências e

momentos significativos que surgem, de modo inesperado, em

alguma escola, em alguma sala de aula - algumas luzes, como diz

Arendt. Assim, quem pensa a educação e nela, todos os Joãozinhos,

tem de tomar cuidado para não apagar essas luzes, pois elas nos

lembram a tarefa da educação: cuidar de um mundo que não

dispensa as pessoas.

Fica aqui o registro para que as preocupações assumidas neste

estudo, e as inquietações e a ânsia por novos horizontes

35

provocativos, possam levar a outros caminhos, novas pesquisas,

novos problemas e possibilidades.

Referências

ALMEIDA, V S. de. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo

deserto e o amor. São Paulo: Cortez, 2011.

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W.

Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.

BRAYNER, F. Educação e republicanismo: experimentos

arendtianos para uma educação melhor. Brasília: Liber Livro, 2008.

COURTINE-DENAMY, S. O cuidado com o mundo: Diálogos

entre Hannah Arendt e alguns de seus contemporâneos. Trad. de

Maria J. Gambogi Teixeira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

FENSTERSEIFER, P. E. A responsabilidade social da educação

escolar (ou ‚A escola como instituição republicana‛). In: MASS, A.

K,; ALMEIDA, A. L.; ANDRADE, E. (Orgs.). Linguagem, escrita e

mundo. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2005.

GARCIA, C. B.; FENSTERSEIFER, P. E. Diálogo na política e na

educação republicana. Revista Diálogo. Canoas, RS, jul./dez. 2011,

n. 19, p. 13-36.

SAVATER, F. O valor de educar. Tradução de Monica Stahel. 2. ed.

São Paulo: Planeta, 2012.

36

37

O princípio da autonomia

no ensino/aprendizagem de filosofia

Bruna Thomé1

Introdução

Há muito tempo a filosofia vem disputando seu lugar na

escola, em específico no Ensino Médio. Pelos mais variados

motivos, ela já foi disciplina optativa e obrigatória nos currículos

escolares, e hoje mais uma vez corre o risco de ficar fora dos

currículos obrigatórios da escola, deixando assim de fazer parte da

vida de diversos estudantes pelo Brasil.

Durante o século XX, a filosofia em sua maioria era ensinada

apenas em escolas elitizadas, bem longe da realidade da maioria

dos brasileiros. Nesses anos em que esteve fora ou parcialmente

fora dos currículos, o ensino médio passou por um processo de

ampliação e massificação, passando a incorporar os mais variados

níveis sociais, encontrando-se assim em escolas públicas com uma

baixa qualidade de infraestrutura e ensino, com alunos também

com baixo nível cultural, muito diverso do que apresentava

anteriormente.

Nesse sentido, o presente trabalho buscará, dentro da obra de

Immanuel Kant, o conceito de autonomia e disciplina para a

formação integral dos sujeitos. Pois esse é um dos principias

objetivos da formação escolar das crianças e adolescentes no Brasil,

que estes sejam sujeitos integrais, atuantes na sociedade, de forma

plena ao que se refere ao exercício da cidadania.

O objetivo, portanto é pesquisar o conceito de autonomia como

pressuposto para o ensino/aprendizagem de filosofia, refletindo

acerca da importância do pensamento autônomo por parte dos

1 Licenciada em Filosofia (UFFS), Professora da Secretaria de Educação do Estado

de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

38

sujeitos e de como o ensino de filosofia pode contribuir para a

efetivação das posturas autônomas. Contudo não há a pretensão de

apresentar soluções para o ensino de filosofia, mas sim refletir

sobre como estes conceitos impactam sobre o ensino de filosofia em

nosso país. Fazendo também com que estes conceitos nos ajudem a

compreender o papel da filosofia no ensino médio, já que a muito

se entende que ela seria responsável por contribuir de forma

substancial na formação dos educandos.

Para tal, buscou-se de início o conceito de autonomia, expresso

no texto Resposta a Pergunta: O que é Esclarecimento? de

Immanuel Kant publicado em 1783 na revista Berlinische

Monatsschrift. E também no texto Autonomia e educação em

Immanuel Kant e Paulo Freire de Vicente Zatti, que nos ajuda a

compreender os ideais expostos por Kant neste texto.

No segundo capítulo, será tratado o conceito de disciplina e

como ele é fundamental para o desenvolvimento da autonomia do

sujeito. Para tal utilizar-se-á a obra Sobre a Pedagogia, que é

composta de textos reunidos de Immanuel Kant e que foram

publicados somente após sua morte.

E, para finalizar, iremos analisar o texto Lógica, em que Kant

defende a ideia de ensinar a filosofar, como um processo e não

como algo acabado e pronto, onde o sujeito iria apenas absorver

conhecimento e não propriamente produzir algo a partir de seu

entendimento. Assim pretende-se, neste capítulo, discutir acerca

das possibilidades de desenvolvimento da autonomia através do

ensino de filosofia, e de como posturas autônomas são capazes de

auxiliar no desenvolvimento de sujeitos integrais, trazendo assim,

para estes sujeitos envolvidos, relações positivas.

A autonomia na resposta à pergunta: que é esclarecimento?

Para iniciar nossa investigação acerca do conceito de

autonomia, iremos observar a seguinte citação que abre o texto de

Kant publicado em 1783. Pois é a partir dele que ele deixa claro

aquilo que mais tarde irá ampliar em outras obras.

39

Esclarecimento é à saída do homem de sua menoridade, da qual ele

próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de

seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. Sapere aude!

Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema

do esclarecimento. (KANT, 2012, p. 63).

É assim que Kant inicia o texto Resposta à pergunta: Que é

Esclarecimento?. é neste escrito que o autor expõe seu conceito de

autonomia e liberdade, que foram imensamente importantes para o

desenvolvimento de seus escritos posteriores sobre educação,

desenvolvidos por ele para suas aulas de na universidade de

Koenigsberg.

A citação que abre o presente capítulo nos ajuda a

compreender o que significa em Kant o Aufklärung. E para tal

recorremos ao texto de Vicente Zatti, Autonomia e educação em

Immanuel Kant e Paulo Freire, onde Zatti define o Aufklärung da

seguinte maneira:

Significa a realização de sua filosofia prática, que busca a moralização

da ação humana através de um processo racional. Segundo Rouanet

(1987, p. 209) o lema Sapereaude! (ouse saber) refere-se à razão em seu

sentido mais amplo, não exclusivamente à razão científica. O

Aufklärung implica na superação da menoridade, que é uma condição

de heteronomia, requer a decisão e a coragem de servir-se de si

mesmo, ou seja, de servir-se de sua própria razão para pensar por

conta própria, e guiar-se sem a direção de outro indivíduo. (2017,

p.18).

Esclarecimento é a palavra utilizada por Kant para descrever a

ideia de liberdade, pois o homem esclarecido é capaz de sair de seu

estado de menoridade autoimposta, fazendo com que tenha

liberdade de tomar suas próprias decisões acerca de sua vida, sem

que haja a direção de outrem. Sem esclarecimento, o homem está

preso a qualquer tipo de imposição feita por aqueles que detêm

algum tipo de força sobre ele; sujeito a qualquer tipo de imposição

40

sobre seu entendimento, não permitindo a ele refletir sobre sua

condição, levando o ao sujeitamento de sua subjetividade,

criatividade e autonomia. ‚A liberdade de fazer uso público da

razão é necessária para que possa haver autonomia de pensamento

(pensar por conta própria), autonomia da ação e também

autonomia da palavra‛. (ZATTI, 2007, p. 19).

Sendo assim podemos determinar que para Kant a autonomia,

designa a independência da vontade em relação a todo objeto de

desejo (liberdade negativa) e sua capacidade de determinar-se em

conformidade com sua própria lei, que é a da razão (liberdade

positiva). (ZATTI, 2007).

A partir desde conceito surge à seguinte pergunta: quais

seriam os motivos que levam ao homem a permanecer

heterônomo, ou seja, sujeito as deliberações de outrem e não as

próprias determinadas pelo seu entendimento? Segundo Kant

seriam dois os fatores que levam o homem a permanecerem

menores, eles são a ‚preguiça e a covardia, pois elas são as causas

pelas quais uma grande quantidade de homens continua em estado

de menoridade durante toda sua vida‛. (KANT, 2012). Esta

preguiça e esta covardia podem também ser entendidas como as

causas para a falta de esclarecimento ou uso da razão por parte

destes homens, que não desejam sair de seu estado de menoridade,

ficando assim a mercê dos comandos dos seus tutores.

Portanto o autor considera que para ‚A imensa maioria da

humanidade [...] a passagem à maioridade é difícil, e além do mais

perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu

cargo a supervisão dela‛. (KANT,2012, p.64). Ou seja, é mais

cômodo e menos perigoso que pensem por mim, pois assim não

preciso aborrecer-me com questão complexas, ou até mesmo

simples, mas que de alguma forma aborrecem ao homem. ‚É

difícil, portanto, para um homem em particular se desvencilhar da

menoridade, que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou

mesmo a criar amor por ela‛. (KANT, 2012, p. 64). Preceitos e

fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, são seus

grilhões de uma perpétua menoridade, pois com eles os homens

41

levam suas vidas, sem necessidade de utilizar-se de seu

entendimento, e assim compreendem que ela é mais leve e fácil.

Homens de todas as classes sociais e de diferentes níveis de

ensino sentem-se mais felizes por serem comandados por outrem,

por não fazerem uso de seu próprio entendimento já que o mesmo

para eles é entediante. Isso também poderia ser compreendido

como uma nova razão, em relação àquelas arroladas por Kant, para

que os homens permaneçam em seu estado de menoridade em

nossa sociedade atual.

Cabe aqui observarmos que, apesar de Kant tratar apenas da

preguiça e da covardia, hoje outro termo poderia ser anexado a

estes, pois há uma grande possibilidade de os homens manter-se na

menoridade em função do tédio que os rodeia. Pensar por mim

mesmo não faz nada além de me causar tédio. Para que ele não

ocorra, é necessário que eu seja pró-ativo, esteja ao tempo todo

buscando algo, e essa busca demandaria um esforço do qual nem

todos estariam sujeitos a se submeterem para assim fazerem uso

público de seu entendimento.

Sendo assim Kant lança a seguinte questão ‚Que, porém, um

público esclareça a si mesmo é perfeitamente possível‛ (KANT,

2012, p.64). Mas como? Dando-lhe primeiramente liberdade para o

desenvolvimento de suas capacidades racionais, incentivando sua

criatividade, e depois ampliando sua visão de mundo, quebrando

seus preconceitos, seus medos. Aquele que irá propor-se a tal tarefa

poderá ser facilmente confundido com um tutor, ou seja, aqueles

que comandam seu gado para que este não ande fora do cercado,

mas na verdade estes seriam os sábios que, observando que seu

público necessita de orientação e exemplo para que possam

facilmente andar com as próprias pernas sem medo das ameaças

que possam os cercar.

O homem esclarecido realiza a íntima conexão entre a cultura e a

autonomia moral e cognitiva com o objetivo de libertar-se das

amarras da ignor}ncia. ‚Sair da sua menoridade‛. Esse deve ser o

42

lema para alcançar a independência moral e intelectual, e a educação

deve ajudar a promovê-lo. (RAMOS, 2007, p.201).

Para melhor compreender esses passos que são dados por Kant

para que o homem chegue à maioridade, é necessário compreender

que somente a liberdade não é suficiente para que ele desenvolva

sua autonomia, mas a educação que este indivíduo irá receber, essa

talvez poderá fazer com que ele, além de obter a liberdade

necessária, obtenha também conhecimentos e uma visão de mundo

mais ampla capaz de o libertar das amarras dos preconceitos e dos

medos, os quais por muito tempo o prenderam a uma condição de

menoridade.

Quando é dado a alguém algo no qual ele não sabe lidar, é

necessário que o mesmo aprenda. Com relação à liberdade, o

homem necessita apreender a lidar com ela, pois não é porque a

tenho que posso fazer o que melhor me convém sem pensar sobre

as consequências de minhas ações sobre os outros. Nesse sentido,

acredito que somente a educação poderá fazer com que homem

compreenda quais são os limites para a sua ação.

Sempre haverá, de facto, alguns que pensam por si, mesmo entre os

tutores estabelecidos da grande massa que, após terem arrojado de si

o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma

estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem

para pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por

eles sujeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele

quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de

qualquer ilustração, é a isso incitado. (KANT, 2012, p. 65).

Que é então necessário para que o sujeito alcance o

esclarecimento? ‚Para este esclarecimento, porém nada mais se

exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se

possa chamar liberdade, a saber: a de fazer uso público de sua

razão em todas as questões‛ (KANT, 2012, p.65). Porém, por mais

que possamos encontrar limites a nossa liberdade, ela a partir do

momento que é constituída pelo individuo, ele não mais

43

permanecerá na condição de menoridade. Kant deixa claro que o

uso público da razão ocorre em decorrência da liberdade galgada

pelos indivíduos, e quando isso ocorre ele já não estaria mais na

condição de menoridade. Ao que parece, para alcançarmos a

autonomia necessária para sermos sujeitos integrais, além da

liberdade que nos é inerente, necessitamos também de instrução,

que provem da formação acadêmica e também de educação.

Seguindo a isso, Kant levanta a seguinte questão: ‚vivemos

agora em uma época esclarecida?‛ (KANT, 2012, p. 67) Ele mesmo

responde que não, mas afirma que vivemos em uma época de

esclarecimento. Segundo ele, falta muito para que os homens, nas

condições da época, sejam capazes de fazer uso de seu próprio

entendimento sem serem dirigidos por outrem. Contudo, podemos

perceber que ainda falta, nas condições atuais, muito para que

homem faça uso de seu esclarecimento. Por mais tempo que tenha

decorrido das afirmações de Kant, ainda podemos perceber em

nossa sociedade a condição de menoridade entre as pessoas. É mais

cômodo aceitar a opinião equivocada de outrem do que raciocinar

por si mesmo.

Sendo assim, podemos trazê-lo para a nossa realidade, pois o

que temos são claros indícios de que agora foi aberto o campo no

qual podemos lançar-nos livremente a trabalhar para tornar

progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento. De

fato, estes obstáculos são muito menores hoje. Contudo, com o

advento da tecnologia, os homens estão cada vez mais sendo

comandados por ela, não mais por seus senhores, é a internet, a

rede globalizada de informação que os guia, que os conduz pelo

mundo da informação e do entretenimento, onde o homem passa

boa parte do seu tempo conectado. Mas ela também pode ser

entendida como um meio pelo qual o homem expressa sua

liberdade, e aprimora o seu conhecimento, porém isso só é possível

se o homem compreender quais são os limites para o seu uso; não

devendo ser, portanto, desmedido.

Os limites que aqui são pensados referem-se ao próprio

entendimento que o homem deve ter acerca o uso das tecnologias,

44

da internet, pois ela deve ser usada para ampliar meu

conhecimento, e expressar minha liberdade e não somente como

um entretenimento ou para a superação do meu tedio.

Para tanto também é necessário levarmos em conta o que traz o

autor sobre os limites da liberdade, pois ‚Um grau maior de

liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do

povo e, no entanto, estabelece para ela limites intransponíveis; um

grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto

quanto possa‛ (KANT, 2012, p.71). Percebem-se aí os limites

necessários para o exercício da liberdade, pois, quando não o há, os

homens serão capazes das mais nefastas crueldades consigo

mesmos e com seus semelhantes. E quando ela torna-se servidão as

consequências são as mesmas.

Se, portanto a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu

o germe de que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação

ao pensamento livre, este atua em retorno progressivamente sobre o

modo de sentir do povo, e finalmente até mesmo sobre os principio

do governo, que acha conveniente para si próprio tratar o homem, de

acordo com a sua dignidade. (KANT, 2012, p.71).

Assim o homem possui naturalmente o instinto para o

exercício da liberdade, e o que lhe falta é a instrução para tal, esta

por sua vez vem também de sua própria natureza, pois segundo

Kant (1999, p.11) ‚o homem é a única criatura que precisa ser

educada. Por educação compreende Kant o cuidado de sua

infância, a disciplina e a instrução com a formação.

Consequentemente o homem é infante, educado e discípulo‛.

Para Zatti (2007), a autonomia intelectual é a capacidade de

seguir a própria opinião, enquanto a heteronomia é seguir a

opinião de outra pessoa. Assim,

A liberdade de pensar se opõe à coação civil que estabelece a

submissão do sujeito a leis externas não reconhecidas como racionais

e boas, o que consiste em heteronomia. A coação civil quando retira

do homem a liberdade de falar, de escrever, também retira a

45

liberdade de pensar, pois nós pensamos em conjunto com as outras

pessoas na medida em que nos comunicamos. Portanto, a supressão

da liberdade de comunicar também é supressão da liberdade de

pensar. Isso também pode acontecer quando alguém não tem acesso à

educação formal e de qualidade. Não ter acesso à escola,

normalmente faz com que o sujeito seja impossibilitado de

manifestar-se ou não sinta necessidade de fazê-lo. Isso suprime a

autonomia de pensamento e a autonomia da palavra. Aqui se percebe

a importância de condições que possibilitem a concretização da

autonomia, dentre elas, a educação de qualidade. (ZATTI, 2007, p.36-

37).

Portanto podemos concluir que para constituirmos nossa

liberdade e autonomia, necessitamos da educação, sem ela não

seria possível ao homem fazer uso de sua razão publicamente, que

segundo Kant seria essa a nossa efetiva autonomia e liberdade.

Contudo para que, a educação seja efetiva nos sujeitos ela necessita

ser disciplinada, e é isso que veremos no próximo capitulo do

presente texto, onde a partir da obra Sobre a Pedagogia, Kant

apresenta este conceito que nos auxiliará na compreensão de como

através da educação o homem pode chegar ao uso publico da

razão, ou seja, a autonomia e a liberdade.

A pedagogia para a autonomia

O presente capítulo tratará do conceito de educação que foi

elaborado por Kant na obra Sobre a Pedagogia. Essa obra não é

propriamente um tratado sobre a educação, mas é um conjunto de

textos resultantes dos cursos de Pedagogia ministrados por Kant

entre os anos de 1776 e 1787 na universidade de Königsberg e

foram postumamente publicados por seu discípulo Theodor Rink.

Para nos ajudar a compreender o conceito de educação

construído por Kant, iremos utilizar também a obra do professor

Vicente Zatti, intitulada Autonomia e educação em Immanuel Kant e

Paulo Freire, na qual o autor trata deste conceito assim como do

conceito de autonomia que foi abordado no capítulo anterior.

46

Também utilizaremos o texto da professora Barbara Freitag, A

Filosofia Iluminista e a Pedagogia da Qualidade, e o texto do professor

Rodrigo Gelamo, Reflexões Kantianas sobre a função social do ensino de

filosofia.

A ideia que perpassa toda a obra escrita por Kant é a de uma

educação pelo exercício racional que conduz à autonomia. Tendo

em vista que ‚O homem não pode tornar-se verdadeiro homem

senão pela educação‛ (KANT, 1999, p. 15). Esta afirmação nos

revela que a educação tem o papel crucial na formação dos

homens.

É pelo fato dos seres humanos nascerem um nada, por não terem

instintos que lhes determinem, que precisam ser formados pela

educação, precisam de sua própria razão para se tornarem homens.

Nesse sentido, o objetivo principal da educação será educar para a

autonomia, para que se possa fazer o uso livre da própria razão. Se

objetivarmos uma educação para a autonomia, temos que entendê-la

como formação, como processo percorrido, realizado pelo próprio

homem. (ZATTI, 2007, p.17).

Assim podemos perceber a importância de a ação educativa

seguir a experiência. A educação não deve ser puramente mecânica

e nem se fundar no raciocínio puro, mas deve apoiar-se em

princípios e guiar-se pela experiência, para que assim atinja seu

propósito que é tornar os sujeitos autônomos. Assim, segundo

Zatti,

Podemos dizer que uma educação que vise formar sujeitos

autônomos deve unir lições da experiência e os projetos da razão. Isso

porque no caso de basear-se apenas no raciocínio puro, estará alheia à

realidade e não contribuirá para a superação das condições de

heteronomia e, no caso de guiar-se apenas pela experiência, não

haverá autonomia, pois para Kant a autonomia se dá justamente

quando o homem segue a lei universal que sua própria razão

proporciona. (ZATTI, 2007, p.30-31).

47

Segundo Kant (1999, p.12), ‚o homem tem necessidade de sua

própria razão[...] e necessita formar para si mesmo o projeto de sua

conduta‛. E para tal, desde a terna inf}ncia necessita de cuidados,

disciplina e instrução para que assim seu projeto de conduta seja

construído. Para tanto, Kant divide o processo de formação,

educação em quatro estágios, o primeiro sendo o cuidado, o

segundo a disciplina e o terceiro a instrução e o quarto a

moralização.

O cuidado refere-se ao processo pelo qual o homem passa em

seus primeiros instantes de vida, já que diferentes dos animais, que

no máximo precisam ser alimentados, aquecidos, guiados e

protegidos de algum modo, o homem requer mais dedicação

(KANT, 1999, p. 11). O homem é a criatura que necessita de mais

cuidados em seu nascimento e desenvolvimento. Segundo Kant

(1999, p. 11), ‚por cuidados entende-se as precauções que os pais

tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas

forças‛.

O segundo passo desse processo consiste na disciplina que,

segundo Kant, ‚é o que impede o homem de desviar-se do seu

destino‛. Ela deve, por exemplo, conte-lo de modo que não se lance

ao perigo como um animal feroz. ‚A disciplina, contudo, é

negativa, porque é o tratamento através do qual se tira do homem a

sua selvageria; a instrução, pelo contrário, é a parte positiva da

educação‛. (KANT, 1999, p.12-13).

Sendo assim, Kant propõe que a educação deve disciplinar

para impedir que a selvageria, a animalidade, prejudique o caráter

humano. Se nada se opõe na infância e na juventude, o indivíduo

conservará uma selvageria a vida toda. Por isso a educação,

segundo Zatti,

deve ter uma parte negativa que Kant chama de disciplina. A

disciplina educa para a obediência. No entanto, a obediência possui

dois aspectos: o primeiro deve ser obediência absoluta das

determinações de um governante, e o segundo é a obediência à

vontade que o próprio sujeito reconhece como racional e boa. (ZATTI,

2007, p.32).

48

Para melhor compreendermos as ideias de Kant, recorremos a

Zatti (2007, p.32-33). Segundo ele, a ‚disciplina, que é negativa,

coage os impulsos animais para que o homem se guie pela razão e

assim, possa ser autônomo‛. Zatti compreende que, para Kant, ‚a

disciplina é extremamente necessária para que a vontade não seja

corrompida pelas inclinações sensíveis. No entanto, a disciplina

não pode tratar as crianças como escravos, elas precisam sentir sua

liberdade, mas de modo que não ofendam os demais‛. Em outras

palavras, educação para a autonomia em Kant não se funda na

disciplina, embora ela seja necess{ria para ‚domar as paixões‛ e

‚abrir espaço para a razão‛. (ZATTI, 2007, p. 32-33).

Portanto nos parece em um primeiro instante que a disciplina

proposta por Kant e o que conclui Zatti acerca dela, seria uma

submissão às leis, que aprisionariam e condicionariam o homem.

Contudo, segundo Rodrigo Gelamo,

a autonomia e a liberdade só poderiam se efetivar quando o homem

fosse humanizado, ou seja, quando passasse pelo processo de

humanização e pelo aprendizado do uso livre e autônomo da própria

razão como oposição ao aprisionamento ao estado selvagem e

irracional em que vivia anteriormente‛. Deste modo, aquilo que, a

princípio, poderia ser um indicativo de limitação da liberdade e da

autonomia é, para Kant, condição necessária para sua efetivação.

(GELAMO,[200-?], p.4).

Assim, pode-se afirmar a necessidade da disciplina no processo

de formação, que é longo e abstrato, pois, se o mesmo não for

conduzido de maneira adequada, pode levar o homem a

permanecer em seu estado de menoridade e animalidade, coisas

que Kant não deseja à humanidade.

Segundo Kant (1999, p.19),

a educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias

gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações

anteriores, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação

49

que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de

conformidade com a finalidade daquelas, e assim, guie toda a

humanidade a sue destino. Sendo assim Kant afirma que a educação é o

maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens.

Ainda para Kant (1999, p.27) ‚o homem pode ser treinado,

disciplinado, instruído mecanicamente, ou ser ilustrado, entretanto,

não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar‛.

Para tal, necessita-se de disciplina, que é a parte negativa da

educação, e direcionamento, que seria aparte positiva. Nesse

sentido, o direcionamento é a condução na prática daquilo que foi

ensinado. Assim, segundo Barbara Freitag (1994, p.20), ‚Kant

insiste na necessidade da disciplina como um pré-requisito para

futuros processos de instrução e de formação cultural, que

constituem a via de acesso do educando à autonomia e integridade

moral‛.

Chegamos ao terceiro passo do processo de formação, que é a

instrução, e essa deve-se apoiar em princípios que, segundo Kant,

seriam a formação moral dos sujeitos e que levaria também ao

quarto passo do processo de formação, que consiste na cultura

moral, tendo em vista a moralidade. Essa ‚instrução ou

direcionamento é a condução na pr{tica daquilo que foi ensinado‛

(KANT, 1999, p.30).

O primeiro período para o educando é aquele em que deve mostrar

sujeição e obediência passivamente; no segundo, lhe é permitido usar

a sua reflexão e a sua liberdade, desde que submeta uma e outra a

certas regras. No primeiro período, o constrangimento é mecânico; no

segundo, é moral. (KANT, 1999, p. 30)

Assim, podemos compreender as finalidades propostas por

Kant no que se refere ao conceito de educação, pois, segundo ele,

esse processo fundamental na formação da humanidade tem por

fim levar o homem a atingir sua maioridade, liberdade e

moralidade. Segundo Freitag (1994, p.22), ‚de modo que escolha

para sua ação fins considerados bons. Trata-se de fins que todos

50

possam aceitar e que possam transformar-se em fins para cada um

dos outros atores‛.

Segundo Zatti (2007, p.34) ‚Kant resgata o verdadeiro sentido de

educação intelectual. Ela deve ser antes de tudo um exercício da

inteligência. A educação deve ter uma finalidade interna, e o exercício

de uma faculdade contribui para o aperfeiçoamento das demais‛. ‚O

entendimento é conhecimento do geral. O juízo é a aplicação do geral

ao particular. A razão é a faculdade de distinguir a ligação entre o

geral e o particular‛ (KANT, 1999, p. 67).

Contudo, de acordo com Zatti (2007, p. 34), ‚a educação

consiste em exercer uma espécie de imposição de limites sobre o

estado da natureza, a fim de que a liberdade possa se expandir

abrindo espaço para a cultura‛.

Portanto, sem a educação, o homem seria mais um animal,

somente ela seria capaz de transformar essa animalidade em

humanidade e, assim, possibilitar ao homem fazer uso de seu

próprio entendimento e liberdade. A disciplina proposta por Kant

seria a parte negativa da educação, pois somente ela não tornaria o

homem um sujeito autônomo. Contudo, sem ela ele permaneceria

em seu estado de animalidade. Mas, seguindo a disciplina, o autor

nos propõe a ideia de instrução, e esta seria a parte positiva da

educação; pois, segundo a ideia de instrução, o homem passaria a

ser capaz de fazer uso de seu próprio entendimento. E a instrução

está estreitamente ligada à ideia de educação proposta por ele.

Seguindo-se a isso, o que iremos tratar no próximo capítulo é

uma tentativa de aproximação entre os conceitos apresentados

anteriormente. Trataremos da ideia de a filosofia ser parte

contribuinte para a formação de sujeitos capazes de fazer uso

público do próprio entendimento, e também da tese kantiana que

assume a disciplina como obrigatória para a formação, enquanto a

filosofia estaria presente no processo de instrução, que para Kant é

a parte positiva da educação. Para tal, inicialmente iremos trazer o

conceito de filosofia apresentado por Kant na obra Lógica, e em

sequência iremos discutir como esse conceito, pode fazer com que

51

o homem torne-se um sujeito autônomo, apto ao exercício pleno da

sua razão.

Autonomia no ensino de filosofia

O presente capítulo tratará do conceito de filosofia elaborado

por Kant na obra Lógica, no qual ele apresenta tal conceito e

também discute a questão de que se deve aprender a filosofar em

vez de se aprender a filosofia, do ponto de vista histórico. Para tal,

iremos utilizar alguns trechos da referida obra, assim como o texto

O conceito de Filosofia em Kant dos autores Adriano Perin e Joel

Thiago Klein, no qual os autores buscam esse conceito em quatro

fragmentos de textos escritos por Kant nos quais ele trata do

conceito de filosofia. Utilizaremos também o texto Reflexões

kantianas sobre a função social do ensino e do ensino de Filosofia, de

Rodrigo Pelloso Gelamo, em que o autor busca, a partir da obra

Sobre a Pedagogia de Kant, descrever quais seriam os ideais de

educação em Kant e qual seria o papel da filosofia nessa educação.

Buscou-se ainda relacionar o conceito de filosofia elaborado

por Kant aos conceitos vistos anteriormente, sendo eles a

autonomia/liberdade e a disciplina para assim podermos discutir o

papel da filosofia na formação de sujeitos autônomos e livres,

capazes de viver em sociedade, fazendo uso pleno de sua razão.

Sendo assim, podemos partir da seguinte citação, na qual Kant

define o conceito de filosofia na obra Lógica:

A filosofia é, pois, o sistema dos conhecimentos filosóficos ou dos

conhecimentos racionais a partir de conceitos. Eis aí o conceito escolástico

dessa ciência. Segundo o conceito de mundo, ela é a ciência dos fins

últimos da razão humana. Este conceito altivo confere dignidade, isto é,

um valor absoluto, a filosofia. E, realmente, ela também é o único

conhecimento que só tem valor intrínseco e aquilo que vem primeiro

conferir valor a todos os demais conhecimentos. (KANT, 1992, p.41).

Portanto, segundo Kant a filosofia seria a investigação dos fins

últimos da razão humana. Tal determinação acerca deste conceito é

52

também apresentada por ele no texto de Adriano Perin e Joel T.

Klein no qual os autores buscaram fragmentos de outros escritos de

Kant em que o autor apresenta uma definição acerca do conceito de

filosofia. Por exemplo,

A filosofia no sentido literal do termo, enquanto doutrina da

sabedoria, tem um valor incondicionado; porque ela é a teoria do fim

terminal da razão humana, que pode ser apenas um, do qual todos os

outros fins se derivam ou ao qual devem estar subordinados, e o

perfeito filósofo prático (enquanto um ideal) é aquele que satisfaz em

si mesmo essa exigência. (KANT apud PERIN; KLEIN, 2009, p. 168).

Nesta passagem, podemos perceber que Kant, além de tratar

do conceito de filosofia, também aborda o papel do filósofo que,

seria ‚o mestre da sabedoria pela doutrina e pelo exemplo *...+. Pois

a filosofia é a ideia de uma sabedoria perfeita que nos mostra os

fins últimos da razão humana.‛ (KANT, 1992, p.42). Essa ideia é

reforçada em sua obra Lógica, na qual trata da filosofia enquanto

um saber racional, pois ‚filosofar é algo que só se pode aprender

pelo exercício e o uso próprio da razão‛. (KANT, 1992 p. 42).

Esta ideia de filósofo, descrita por Kant, também pode ser

associada com a ideia apresentada no texto Resposta a Pergunta: Que

é Esclarecimento?, Em que afirma que existem tutores que

meramente comandam seu povo, e mestres que orientam para que

este povo possa sair de seu estado de menoridade sem medo. Estes

mestres compreenderiam também que o melhor exemplo a ser

dado, para que o público ande com suas ‚próprias pernas‛, ou seja,

com autonomia, estaria no uso do seu próprio entendimento, que

poderia ser desenvolvido através dos estudos da filosofia. Essa área

do conhecimento que rompe com a acomodação, a preguiça de

pensar, o senso comum, a explicação fácil e superficial; que é capaz

de pensar o mundo, a existência individual e coletiva, os textos e os

sistemas filosóficos. Que pensa o universo, o problema da

formação humana, da liberdade, da democracia, da justiça, da

ética, da formação de seres humanos, livres, autônomos,

comprometidos, com o presente e o futuro da sociedade,

53

Compreende aqui a necessidade de a filosofia ser utilizada como

meio para se alcançar um fim, ou seja, que através de seus estudos

o homem conseguiria fazer uso de sua razão, de seu entendimento,

e finalmente poderia contemplar a sua liberdade, algo que lhe é

natural, mas por força de seus tutores és-lhe tirada para que estes

não andem fora dos caminhos que lhes são determinados. Portanto,

segundo Gelamo, a máxima do ensino de filosofia é ensinar a

pensar, melhor dizendo, ensinar a cultivar o espírito, cultivar o

pensamento e a capacidade reflexiva do sujeito. (GELAMO, [200-?],

p. 2).

Seguindo a isso, podemos compreender que, para Kant, o

ensino de filosofia visa a formação do sujeito no uso de sua razão

para que este se torne um aufklërer e, consequentemente, possa

usar a razão com liberdade e autonomia. Nas palavras de Kant

(1999, p.15), ‚O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem

senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.‛ Por isso

a importância de se pensar a educação no processo formativo do

homem, apesar do pressuposto kantiano de que o homem já nasce

predisposto ao pensamento. Sem a educação, o homem teria de

trilhar todo o caminho rumo à humanização sozinho. Fato este

muito complexo, uma vez que a humanidade já adquiriu valores e

bens culturais durante sua história, cuja apropriação por si só, seria

algo, senão impossível, ao menos improvável.

Para tanto, podemos relacionar as afirmações anteriores com a

possibilidade de a filosofia contribuir para que o homem saia de

seu estado de menoridade para o exercício pleno de sua

maioridade e também de seu entendimento. Contudo em nossa

sociedade hoje a filosofia é vista com certo desdém, pois ela ‘a

filosofia’ apresenta-se cada vez mais em nossa sociedade

mecanicista, imediata, eficiente e de resultados rápidos, preparada

para o trabalho, como algo que não possui um saber útil, para

muitos é perda de tempo. Entretanto, se ela for vista como um

pensamento rigoroso, e que a cada momento se recomeça como

crítica social e radical do existente, uma afirmação da humanidade

dos homens, que tem seu fim em si mesma, como livre criação do

54

espírito, máxima afirmação de liberdade, então ela cumpre seu

papel no sentido de colaborar para que o homem exerça sua

liberdade e saia de sua condição de menoridade.

Sendo assim, as conclusões a que podemos chegar é que, para o

homem atingir seu estado de maioridade, ele não poderá fazê-lo

sem passar pelo processo formativo que é dado pela educação, e

consequentemente esta não se efetivará se o ensino de filosofia não

fizer parte deste processo formativo. Pois somente assim é que de

fato poderemos alcançar o Esclarecimento proposto por Kant, ou

seja, o ideal iluminista desenvolvido por ele. E, nesse processo

formativo, não se pode deixar de lado a disciplina, que, por mais

que ela seja a parte negativa da educação, sem ela não seria

possível atingirmos esse ideal, pois o homem estaria ainda preso

em sua animalidade, que segundo Kant, só é transformada através

da disciplina que é imposta aos homens desde cedo, pois, se não o

fizermos, ela permanecerá para toda vida do homem.

Hoje no Brasil o ensino de filosofia ainda passa por inúmeras

dificuldades, mas se cada professor de algum modo exaltar aos

seus alunos a busca pela maioridade, ou seja, pelo uso livre de seu

entendimento, dentro de poucos anos teremos uma massa crítica e

reflexiva, capaz de algum modo de transformar a realidade na qual

está inserida. E fazendo com que cada um que faça parte dessa

realidade também busque por esse ideal. Daí sim poderá afirmar

que estamos em uma época esclarecida.

Considerações finais

O presente Trabalho de Conclusão de Curso buscou defender

as ideias de autonomia e liberdade apresentadas por Kant e de

como essas ideias associadas à disciplina poderiam contribuir com

o ensino de filosofia, já que a mesma em si projeta esse ideal de

fazer pensar por si mesma.

Contudo, observa-se é que o ensino de filosofia no Brasil, que

já passou por inúmeras mudanças e que agora está em foco

novamente em função das reformas aprovadas para o ensino

55

médio, é de a filosofia estar caminhando, juntamente com outras

disciplinas, a atender a demanda do Estado na formação técnica e

profissional dos jovens para que estes estejam prontos para o

mercado de trabalho, e não como visam os documentos de

orientação, que este jovem esteja apto ao final do ensino médio, ao

exercício pleno da cidadania.

Portanto, cada vez mais deve-se buscar esses ideais que foram

constituídos por Kant, pois o esclarecimento, que é a palavra

utilizada por Kant para descrever a ideia de liberdade, é o homem

capaz de sair de seu estado de menoridade autoimposta, fazendo

com que tenha liberdade de tomar suas próprias decisões acerca de

sua vida, sem que haja a direção de outrem. Sem esclarecimento, o

homem está preso a qualquer tipo de imposição feita por aqueles

que detêm algum tipo de força sobre ele; sujeito a qualquer tipo de

imposição sobre seu entendimento, não permitindo a ele refletir

sobre sua condição.

Com isto, conclui-se este trabalho afirmando que, sendo a

filosofia obrigatória no ensino médio, ela deve ser trabalhada de

modo que possa ser valorizada pela sociedade e comunidade

escolar. Porém, como se sabe que a filosofia tem seu papel de

formar no aluno o senso crítico, é a partir deste conteúdo próprio

da filosofia que o professor deve instigar no aluno a vontade de

pensar por si mesmo, ou seja, de fazer uso público de seu

entendimento, tornando ele um sujeito autônomo e livre capaz de

viver plenamente em sociedade.

Referências

CORBINIANO, S. A. M. Kant e formação Humana. In.: COELHO,

I. M. (org.).Educação, cultura e formação: o olhar da filosofia.

Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2009.

FREITAG, B. A Filosofia Iluminista e a Pedagogia da Qualidade. In.

_____. O individuo em Formação. Diálogos Interdisciplinares

sobre Educação - São Paulo Cortez, 1994.

56

GALLO, S; KOHAN, W.O. Filosofia no Ensino Médio. Petrópolis:

Vozes, 2000.

GELAMO, R, P. Reflexões Kantianas sobre a função social do

ensino de filosofia. FAPESP, 2007.

KANT, I. Lógica. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

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Textos seletos. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

_____. Sobre a Pedagogia. 2. ed. Piracicaba: Editora Unicamp, 1999.

RAMOS, C, A. Aprender a filosofar ou aprender a filosofia: Kant

ou Hegel?Trans/Form/Ação, São Paulo, 30(2): 197-217, 2007.

PERIN, A. KLEIN, J,T. O conceito de filosofia em Kant. Analytica,

Rio de Janeiro, vol 13 nº 1, 2009, p. 165-196.

ZATTI, V. Autonomia e educação em Immanuel Kant e Paulo

Freire. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

Sensibilidade e formação moral: Kant e a reflexão

acerca da formação integral na natureza humana

Renata Cristina Lopes Andrade1

Suzane da Rocha Vieira Gonçalves2

Introdução

Considerando a natureza humana em suas ações, condutas e

comportamento, bem como a possibilidade do seu

desenvolvimento e formação integral via a complexa ação

educativa, a qual envolve a formação de professores, as práticas

educativas, a escola, o currículo, as políticas públicas (dentre

outros), queremos analisar, nesse momento, faculdade de desejar

da natureza humana, em particular, as suas afecções e paixões.

Nosso interesse se revela, afinal, o ser humano não sendo um ser

apenas dotado de razão é, por outro lado, um ser racional finito,

encontra-se também sujeito à sensibilidade, isso significa que a

razão não é, para o ser humano, inteiramente a senhora da sua

faculdade de querer/desejar.

Dada a constituição do ser humano, sensível e racional, ao

investigar as suas afecções e paixões, buscaremos investigar, qual a

contribuição da sensibilidade, em particular das afecções e das

paixões, à ação que possa apresentar valor moral. A

1 Professora Visitante da Universidade Federal do Rio Grande/Instituto de

Educação/PPGEDU. Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista –

Unesp/Campus de Marília. Pesquisadora dos Grupos de Estudos e Pesquisas:

‚Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade/GEPEES‛,

‚Desenvolvimento sociomoral de crianças e adolescente‛, ‚Formação de

Professores e Pr{ticas Educativas/NUFOPE‛ e ‚Trabalho, Educação e

Docência/GTED‛. E-mail: [email protected] 2 Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande/Instituto de

Educação/PPGEDU. Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal

do Rio Grande/FURG. Líder do Grupo de Estudos ‚Trabalho, Educação e

Docência/GTED. E-mail: [email protected]

58

constituição/porção sensível da natureza humana, de acordo com o

pensamento de Kant, auxilia ou atrapalha a vida moral? Segundo

Kant, qual o lugar ou papel da sensibilidade (inclinações, impulsos,

afecções, paixões) tendo em vista a ação humana em geral com

valor moral, tendo em vista a vida moral do ser humano?

Antes de nos determos na constituição sensível da natureza

humana, queremos apontar algumas considerações sobre a vontade

humana, apresentada por Kant enquanto uma faculdade de

desejar, uma faculdade de apetição ou de volição.

Para o filósofo, a vontade humana é uma faculdade capaz de

determinar-se a si própria a agir em conformidade com a

representação de certas leis, vejamos:

Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a

capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo

princípios, ou: só ele tem uma vontade (KANT, 1980, p. 123)3.

Somente o ser racional apresenta uma vontade e pode agir

segundo a representação de leis, ou seja, segundo princípios. Desse

modo, a capacidade de agir representando-se leis chama-se,

segundo Kant, vontade.

Podemos dizer que a vontade, segundo a perspectiva kantiana,

é uma faculdade própria do ser racional de agir mediante a

representação de certa normatividade. No entanto, para o caso da

natureza humana, por sua constituição racional e sensível, essa

normatividade pode estar diretamente ligada ou i) à sua

constituição sensível – à seus afetos, paixões, impulsos, inclinações

– eis uma vontade (Willkür) sensivelmente afetada, e a escolha ou

decisão por essa ou aquela ação se dá (é causada) pela

sensibilidade; ou ii) à princípios ou leis práticas, oriundos de uma

razão prática que se apresenta enquanto legisladora e se identifica

com a vontade do ser humano – eis uma vontade (Wille) não

afetada, enquanto razão de determinação, por qualquer

3 Grifos acrescentados.

59

sensibilidade, nesse caso, a escolha ou decisão, ou seja, o motivo da

ação,será por respeito, reconhecimento e adoção da lei prática.

O que queremos evidenciar é que em Kant a vontade humana é

inerente a uma faculdade/capacidade de oferecer-se leis, ou seja,

agir segundo a representação de regras ou leis, por (Willkür) ou

independentemente (Wille) da coerção da sensibilidade. Nesse

sentido, o ser racional humano pode ser determinado/movido em

suas ações por sua sensibilidade e agir segundo algumas normas,

mas também por sua razão e agir segundo/por princípios.

Se há essa dupla possibilidade, isto é, a vontade humana pode

ser movida tanto pela sensibilidade como pela racionalidade, se a

vontade pode seguir as prescrições de uma lei prática ou se render

aos impulsos sensíveis e, se, segundo a concepção kantiana de

moralidade, o verdadeiro valor da ação (o valor moral), somente é

possível, na ação precisamente por dever – reconhecimento, respeito

e adoção da lei ou princípio prático – onde é então, tendo em mente

o valor moral da ação humana, o lugar da sensibilidade, o lugar da

constituição/porção sensível da natureza humana?

Ora, se, de acordo com Kant, somente na ação precisamente

pelas prescrições de uma lei prática é que o ser humano realiza

exatamente o que deve ser feito do ponto de vista da moralidade e

a sua ação pode apresentar o seu genuíno valor, o valor moral, o

que vamos abordar é justamente a porção sensível do ser humano,

para compreendermos o seu lugar, e se ela auxilia, ou não, o pleno

desenvolvimento da natureza humana em termos da moralidade,

ou seja, na vida do ser humano enquanto um agente moral, que age

segundo valores e princípios.

A constiuição senível da natureza humana

No início do terceiro livro da Antropologia de um ponto de vista

pragmático, há uma série de definições gerais acerca de alguns dos

elementos da sensibilidade da natureza humana, por exemplo:

apetite, apetite sensível, inclinação, desejo, desejo vazio, ânsia,

desejo, paixão, afecção. Tendo em vista os nossos questionamentos,

60

vamos considerar os seguintes elementos: a inclinação, a afecção e

a paixão.

Em Kant (2006), o apetite sensível habitual, ou seja, o desejo

sensível que serve de regra ou hábito ao sujeito, chama-se

inclinação. Por apetite entende-se a autodeterminação de um sujeito

mediante a representação de algo futuro enquanto um efeito seu,

considerando que diz respeito a uma determinação segundo

representação, trata-se de a uma ação futura, que se espera algo

enquanto efeito, por vontade, voluntária.

Na Fundamentação da metafísica dos costumes Kant apresenta

uma definição de inclinação a qual é completada, posteriormente,

pela Antropologia de um ponto de vista pragmático. Na Fundamentação:

‚Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar

está em face das sensações‛ (KANT, 1980, p. 124)4. Desse modo,

podemos dizer que o apetite sensível habitual ou a faculdade de

desejar face às sensações, mediante a representação de algo futuro

enquanto o efeito de uma ação segundo ou por vontade, é uma

inclinação. O que queremos precisamente ressaltar é: a faculdade de

desejar que, quando dependente de alguma ou qualquer sensação,

temos o que podemos chamar de inclinação.

Na Antropologia Kant (2006, p.149) completa dizendo que uma

determinada inclinação que a razão do indivíduo dificilmente pode

dominar, ou não pode dominar de modo algum, é Paixão. Em

contrapartida, a inclinação sustentada por algum sentimento, por

exemplo – de prazer ou desprazer, satisfação ou dor, agradável ou

desagradável, alegria ou tristeza, amor, ira – no estado presente e

que não permite a reflexão racional aflorar no indivíduo, se se deve

entregar ou resistir ao sentimento, é Afecção.

Veja, justamente pela ausência da reflexão, a afecção, o estar

afetado, o afeto, de acordo com o filósofo, é apressada, é breve,

representa uma comoção passageira, um apetite sensível, isto é, o

que se quer ou pode querer face às sensações, sustentado por um

sentimento presente/atual, o qual pode passar rapidamente de um

4 Grifos acrescentados.

61

grau para outro. Tal brevidade torna o ponderar ou a reflexão cada

vez mais improvável inconsiderada, o que pode fazer com que o

ser humano perca facilmente a sua capacidade de ajuizamento em

suas ações. Por outro lado, a paixão, a inclinação denominada

paixão, do mesmo modo como a afecção, também se apresenta

enquanto um apetite sensível – o que se quer ou pode querer face

às sensações – porém, por não haver a presença do sentimento ou

não ser sustentada por um sentimento apenas presente/atual, não é

apressada ou breve, sendo possível, no caso da paixão, a reflexão, o

indivíduo é capaz de refletir/ponderar para alcançar o seu fim

ambicionado. O que sustenta a paixão é o próprio objeto/fim que se

quer e, por mais violenta que possa ser a paixão, ainda assim há o

espaço para a reflexão/ponderação.

Nas palavras de Kant:

O que a afecção da ira não faz a toda velocidade, ela não faz de modo

algum, e facilmente esquece. A paixão do ódio, porém, não te pressa

em se enraizar profundamente para pensar em seu inimigo (KANT,

2006, p. 150).

O que devemos compreender aqui é que tanto a afecção quanto

a paixão são estados da alma pertencentes à faculdade de desejar,

como a faculdade de desejar, nesses casos, apresenta-se

dependente das (ou de alguma) sensações, as afecções, bem como

as paixões, são caracterizadas enquanto uma inclinação.

Analisaremos primeiro a inclinação denominada de afecção.

No que diz respeito às afecções humanas, Kant aponta que, de

modo geral, o que constitui o estado de afecção não é precisamente a

intensidade ou força de um determinado sentimento ou sensação,

mas, muito antes, a ausência ou a impossibilidade da reflexão ao

ponto de não se poder comparar o sentimento atual com a soma de

todos os sentimentos. Noutras palavras, o que caracteriza o estar

ou o ser afetado, é a impossibilidade de unir ou comparar o

sentimento presente, o estado de afecção atual, com a totalidade

dos sentimentos, resumindo-se sempre a um caso em particular.

62

Mediante dois exemplos oferecidos por Kant em sua

Antropologia podemos compreender com mais precisão o que

constitui um estado de afecção e a sua grande carência, isto é, a

ausência ou impossibilidade de reflexão.

Muitos desejam até mesmo poder se zangar, e Sócrates tinha dúvida

se não seria bom se zangar às vezes; mas ter a afecção em seu poder

de tal modo que se possa refletir de sangue frio se se deveria ficar

zangado ou não, parece algo contraditório (KANT, 2006, p. 151).

O rico a quem um criado quebra por inépcia uma bela e rara taça de

cristal ao carregá-la durante uma festa, não devia dar nenhuma

importância a isso, se no momento mesmo comparasse essa perda de

um prazer com a quantidade de todos os prazeres que sua feliz

situação lhe confere na condição de homem rico. Mas se se entrega

única e exclusivamente a um sentimento de dor (sem fazer

rapidamente em pensamento aquele cálculo), não é de surpreender

que seu estado de espírito será tal como se houvesse perdido toda a

sua felicidade (KANT, 2006, p. 152).

Em um estado de afecção o sujeito não tem a capacidade de

reflexão, pois não tem a capacidade de visualizar o todo, não é

capaz de enxergar a totalidade, o que há é somente o uno, o

momento, a condição atual, o acontecimento presente, o indivíduo

é tomado por um único e exclusivo sentimento o qual impossibilita

a reflexão, desse modo, não o permite avaliar a situação vivida e

deliberar sobre as suas ações.

De acordo com Kant, as afecções são, em geral, ataques

doentios – acontecimento, casos, sintomas – e podem ser divididas

de dois modos. Em estênicas: as afecções procedentes da força ou do

excesso de força. E em astênicas: as afecções concludentes da

fraqueza, da ausência de força.

As afecções geradas por uma força (estênicas) são de

característica mais excitante e por essa razão são também, com

mais frequência, exaustivas. Em contrapartida, as afecções

procedentes de uma fraqueza (astênicas), com frequência,

afrouxam a força de vida e preparam o repouso.

63

Já a inclinação denominada de paixão, para o caso das paixões

humanas, o filósofo aponta que nesse estado o sujeito também não

é capaz de abarcar a totalidade, porém, no caso da paixão, a

totalidade não considerada no momento de uma possível

deliberação, decisão ou escolha da ação, é o todo de suas

inclinações. Lembrando que uma inclinação em Kant significa um

querer sensível que serve de regra/hábito ao sujeito, ou seja, o que

o indivíduo quer ou deseja face às sensações.

Nas palavras do filósofo: ‚A inclinação pela qual a razão é

impedida de comparar essa inclinação com a soma de todas as

inclinações em vista de uma certa escolha, é a paixão (passio animi)‛

(KANT, 2009, p. 163).

Tanto a afecção quanto a paixão, entendidas enquanto estados da

alma pertencentes à faculdade de desejar face às sensações, são

sempre unas, ou seja, o indivíduo nesses estados apenas é capaz de

levar em consideração a condição presente/atual, não é capaz de

enxergar o todo. Para o caso das afecções a totalidade não passível de

ser abarcada, o que se dá pela impossibilidade da reflexão, é a dos

sentimentos – prazer, alegria, dor, agradável, desagradável, vergonha

– há somente o momento e o sentimento atual/presente; para o caso

das paixões a totalidade não contemplada é o conjunto das

inclinações. Quando a paixão é a determinante da ação a totalidade

daquilo que eu quero ou desejo não pode ser considerado.

No primeiro caso, a afecção, há a presença de um único

sentimento na base da inclinação (do querer sensível), o qual pode

mover o indivíduo em sua conduta, escolhas, decisões e ações ou

reações; no segundo caso, a paixão, há apenas uma inclinação, ou

seja, a presença marcante de um único e exclusivo objeto do querer,

do desejo sensível, o qual também pode mover o ser humano em

sua conduta, escolhas, decisões e ações até que ele atinja

(lembrando que isso pode também não ocorrer) o seu fim sensível

ambicionado.

Levando em consideração que no estado de paixão ainda assim

a reflexão é possível ‚*...+ a paixão *...+ não tem pressa e reflete para

alcançar seu fim, por mais violenta que possa ser‛ (KANT, 2009, p.

64

150), por não se apresentar enquanto comoções passageiras e

turbulentas, pode se deixar unir à mais tranquila reflexão ou

razão5, fixando raízes profundas e concentrando toda a força de

conduta, de escolha, de ação do indivíduo em um único fim sensível

querido, conforme explica Kant: ‚*...+ se a afecção é uma embriaguez,

a paixão é uma doença que tem aversão a todo e qualquer

medicamento‛ (KANT, 2009, p. 163).

Nesse sentido, ao apontar que a conduta, a escolha, a decisão e

a própria ação do indivíduo é movida/determinada por um único

fim sensível desejado no estado de paixão, o qual pode agregar-se

com a mais tranquila reflexão/razão, temos a força de uma paixão,

ou seja, o próprio fim sensível querido, o objeto que se quer atingir,

uma finalidade específica.

Desse modo, observamos que, de acordo com o filósofo (2006,

p.164), a paixão sempre pressupõe uma máxima da ação. No estado

apaixonado, mediante a possibilidade de junção/união do desejo

sensível com a razão, ainda que se trate de uma razão prática

empírica, a paixão sempre implica uma máxima de ação.

Dito de outro modo, o estado de paixão pressupõe uma

máxima da ação e essa máxima determina o agir segundo um fim,

algo que é ambicionado, desejado, querido, o qual é prescrito

(posto ou dado) pela inclinação – a faculdade de desejar sensível –

assim, a paixão sempre pressupõe uma máxima da ação ligada a

um fim sensível querido.

Para Kant, do ponto de vista da moralidade (se há a

preocupação moral), podemos citar ao menos três problemas ao

ter/querer um objeto, um fim sensível querido, movendo ou

determinando as decisões e ações dos seres humanos, ou seja, a

escolha e a ação determinadas em função do objeto sensível

desejado.

primeiro: nada obriga o sujeito a agir desse ou daquele modo. Ou

seja, nada exige do sujeito querer sempre fazer o que deve ser feito

5 ‚*...+ a paixão, ainda que violenta, pode coexistir com a razão, pois é deliberativa

a fim de atingir a sua finalidade‛ (BORGES, 2004, p. 34).

65

do ponto de vista da moralidade. Por inclinação, ora pode fazer, ora

não, e, se faz por inclinação (enquanto condição de determinação), o

faz quando tiver a inclinação e não o faz quando (ou se) não tiver;

segundo: se o objeto não existir, se a ação não chegar ao seu objeto,

a ação não terá valor algum;

terceiro: se uma ação é boa por "inclinar-se" para tais e tais fins

sensíveis, há então o problema do valor relativo e limitado da ação.

Afinal, o valor de qualquer objeto sensível, mesmo de um desejado,

é sempre relativo, e não absoluto6.

O que devemos ter em mente, se quisermos nos manter fiéis a

proposta kantiana de moralidade, é que há a distinção entre a

matéria da vontade, isto é, o fim sensível querido, o qual pode ser

derivado do estado de paixão, diferentemente do fim sensível

querido, o objeto do desejo sensível, enquanto fundamento

determinante da vontade – de nossas escolhas, decisões e ações.

É importante dizer que o ponto de Kant é meramente que as

ações de um determinado ser humano, somente terão valor moral,

quando o princípio prático objetivo, enquanto determinante, tomar

o lugar da mera inclinação. E disso, naturalmente, é diferente de

reivindicar que o valor moral requer a ausência de toda e qualquer

inclinação, afecção, paixão. Eis o primeiro ponto a ser esclarecido

6 Vale lembrar que o parágrafo inicial da Fundamentação traz consigo a afirmação

oculta de que algo ilimitadamente bom significa algo moralmente bom, com valor

moral: ‚Neste mundo, e até fora dele, nada é possível pensar que possa ser

considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade‛

(KANT, 1980a, p. 109). Na filosofia moral de Kant moralmente bom significa

absolutamente bom, há uma equivalência entre algo ilimitadamente bom com o

valor moral (o bom moral), ou seja, para ser moralmente bom, de acordo com a

concepção de Kant, deve ser bom sem reservas. O que não parece ser o caso das

inclinações, seja ela caracterizada enquanto paixão ou afecção, que além de não ser

absolutamente boa, pode revelar intenções egoístas, pode ora levar ao bem, ora ao

mal e pode não exigir do ser humano a ação. Nesse sentido, nenhuma ação será

moralmente válida se for conduzida meramente pelo desejo sensível particular, se a

condição de determinação da ação for meramente o desejo específico.

66

no que diz respeito à esfera prático-sensível, em particular, para o

caso da paixão, da ação e do valor moral da ação.

Um segundo ponto que devemos esclarecer é que na esfera

prático-sensível7, a razão (o motivo ou o porquê da ação) não deve

satisfazer uma única inclinação, isto é, a ação não deve ser

realizada segundo um princípio que leva em consideração somente

uma única inclinação colocando todas as demais de lado, mas

antes, deve observar se aquela inclinação pode coexistir com a

soma de todas as inclinações. O outro problema do estado

apaixonado, além e em decorrência de poder se deixar guiar pelo

objeto enquanto condição, é justamente não abarcar a totalidade.

Pode haver a paixão, um fim posto pela inclinação, porém não

enquanto razão de determinação ao ponto de, por exemplo, ignorar

o todo – a totalidade das inclinações.

Tomemos o exemplo oferecido por Kant:

O desejo de glória de um homem sempre pode ser uma direção de sua

inclinação aprovada pela razão, mas o ávido de glória também

sempre quer ser amado pelos outros, ele necessita do relacionamento

agradável com os demais, da conservação de sua fortuna e coisas

semelhantes. Se, porém, é apaixonadamente ávido de glória, ele é cego

para esses fins aos quais igualmente é conduzido por suas

inclinações, e que seja odiado pelos outros, ou que fujam do contato

com ele, ou que corram o risco de empobrecer por seus gastos – isso

tudo ele não vê (KANT, 2006, p. 164).

Portanto, um desejo sensível pode ser aprovado pela razão (o

princípio formal – embora com dificuldades), porém o que ocorre no

estado apaixonado, o agir por paixão, é que o indivíduo geralmente

faz de uma parte dos seus fins, o todo, o que contradiz diretamente a

razão mesma (motivos/porquês) em seu princípio formal, vale dizer, o

fundamento incondicionado, universal e necessário. De acordo com

Kant (KANT, 2006, p. 164), o fim sensível querido em sua melhor

7 Prático: a ação considerada do ponto de vista da moralidade. Sensível: porção

sensível do ser humano – paixões, afetos, impulsos, inclinações [...].

67

índole ainda que se dirija àquilo que pertence (segundo a matéria) à

virtude, tão logo quando envolve a paixão pode ser (segundo a forma)

moralmente reprovável.

Considerando a preocupação moral e a posição de Kant, Paton

(1971, pp. 136-7) observa que o que devemos, então, é perguntar se

poderíamos agir não meramente por uma inclinação sob uma regra

a qual nos propomos mediante o objeto sensível querido, mas antes

por inclinação ou paixão e ao mesmo tempo sob um princípio

válido do ponto de vista formal, um princípio necessário e objetivo.

O que significa dizer agir sob um princípio que possui validade

(alcance) independentemente desse ou daquele querer sensível –

mesmo que haja o querer.

Há, para o caso dos desejos sensíveis, uma espécie de

hierarquia, a qual pode controlar as ações humanas, fazendo o ser

humano agir sob sua guia, porém, não se esquecendo que tais

desejos sensíveis são, geralmente, fundados por uma ‚obrigação‛

condicionada, para termos um fundamento incondicionado,

necessário e universal de nossas ações, o princípio moral que Kant

buscou – também chamada por Beck (1984, p. 82) de máxima

suprema – não pode ser governado em virtude da matéria, objeto

sensível querido, embora não haja qualquer problema em sua

existência, ou seja, em tê-lo e querer tal objeto. Eis a diferença entre

agir com paixão e agir por paixão. Um dos problemas apontado pelo

filósofo em agir precisamente por paixão é, fazer de uma parte dos

seus fins o todo – o único motivo e condição de suas ações, o que

implica, ademais, no valor condicionado, não absoluto e relativo,

da ação.

Isso quer dizer que a máxima da ação do indivíduo que age

com paixão, a máxima da ação resultante de querer um fim posto

pela inclinação, pode converter-se em uma máxima moral? Vale

lembrar nesse momento que, segundo Kant, o princípio prático

objetivo nos coloca a questão de saber se o princípio prático

subjetivo do querer pode valer ao mesmo tempo enquanto

princípio prático objetivo do querer.

68

Por fim, vale ressaltar que na obra Antropologia de um posto de

vista pragmático Kant faz um amplo alerta para o fato da fragilidade

da inclinação, seja ela uma afecção ou uma paixão, o que vale

igualmente para outras emoções, sensações e sentimentos, isto é, a

fragilidade de agir por inclinar-se a tal ou tal coisa.

Nos casos específicos das afecções e das paixões:

i) no estado de afecção o indivíduo não é capaz de reflexão, o

motivo de sua ação será sempre um único e exclusivo sentimento

(ação por afecção), e

ii) no estado de paixão, embora haja a possibilidade de

reflexão, a razão do indivíduo dificilmente pode dominar tal

estado, o querer tal e tal coisa, o objeto sensível do desejo, é

intenso, violento, marcante e acaba por mover (ação por paixão) a

vontade do indivíduo. Algumas passagens da Antropologia ilustram

essa posição:

[...] A afecção atua sobre a saúde como um ataque apopléctico; a

paixão, como uma tísica ou definhamento [...] A afecção pode ser

vista como a bebedeira que se cura dormindo, mas que depois dá dor

de cabeça; a paixão, porém, como uma dor de cabeça causada por

ingestão de um veneno ou como uma atrofia, que necessita interna ou

externamente de um alienista que saiba prescrever quase sempre

paliativos, mas contra o qual no mais das vezes não remédios radicais

[...] A afecção pode ser vista como uma bebedeira que se cura

dormindo; a paixão, como uma loucura que cisma com uma

representação que deita raízes cada vez mais fundas [...] (KANT.

2006. pp. 150-1).

A posição de Kant é que a afecção, enquanto um sentimento,

uma comoção tempestuosa e passageira, impossibilita a reflexão e,

desse modo, a própria deliberação sobre ação. A paixão, por outro

lado, ainda que violenta, pode coexistir com a razão prática, é

deliberativa, porém, há sempre uma finalidade a se atingir, desse

modo, tendo em vista a existência marcante do objeto sensível do

querer, a razão do indivíduo dificilmente pode dominar o estado

de paixão, ou mesmo querer a coexistência entre a razão e a paixã

69

o, pois mesmo que a paixão possa se referir às atitudes

deliberativas, possa coexistir com a razão prática, pode, também,

exigir, por exemplo, a mais ardilosa dissimulação, caso isso seja

necessário ou possa contribuir para obter o determinado objeto

sensível do desejo – o seu querer sensível.

Kant aponta que um indivíduo quando age por uma afecção e

a sua ação é distinta da ação com valor moral, distinto daquilo que

o dever prático ordenaria, pode ser caracterizada apenas enquanto

uma fraqueza da vontade8, enquanto que a ação por paixão quando

é distinta da ordem da razão prática, por pressupor uma máxima

da ação, pode ser mais prejudicial do ponto de vista moral, afinal a

máxima da paixão pode não poder ou querer coexistir com a

máxima moral. O objeto de uma paixão quando contrário à lei, é,

segundo Kant, malévola e resulta em vício.

Quando houver a incompatibilidade do objeto do desejo com a

máxima formal, o sujeito, por querer apaixonadamente o objeto,

pode recusar querer a máxima moral, negar ou não seguir o seu

dever prático, resultando em uma ação viciosa. Os vícios são, para

o filósofo, o grande desafio moral, ou seja, o desafio que o ser

humano, se há a preocupação moral, deve combater, daí decorre a

força moral entendida enquanto fortaleza – fortitudo moralis9.

Segundo Kant (2004), toda a força moral (virtude) se reconhece

pelos obstáculos que é capaz de superar, para o caso da virtude, o

grande obstáculo a ser superado são as inclinações da natureza

humana – a sua faculdade de desejar face às sensações, que pode,

em muitas situações, apresentar-se em conflito ou mesmo opondo-

se àquilo que o dever prático ordena fazer.

Nesse sentido, podemos dizer as consequências morais

negativas das afecções são menores do que a persistência das

máximas de uma paixão.

Quando há a compatibilidade entre a ação por afecção e a

prescrição do dever moral, trata-se de um acaso, visto que no

8 Isso tendo em vista que a afecção é caracterizada por Kant enquanto comoções

passageiras. 9 Cf. KANT, 2004, p. 41.

70

estado de afecção a reflexão e deliberação não são possíveis e,

segundo Kant, não é seguro deixar ao acaso o valor moral das

ações humanas – de longe o mais alto e sem qualquer comparação

(KANT, 1980, p. 113).

Para o caso da ação por paixão, a coexistência entre razão

prática e a paixão é possível, no estado de paixão a reflexão e

deliberação são possíveis, mas, conforme exposto, pode ser algo

difícil, o que se dá exatamente pela força do objeto sensível do

desejo indissociável do estado de paixão.

No que diz respeito à coexistência entre o estado de paixão e a

razão prática, vislumbramos duas alternativas: a) a máxima da

paixão incompatível com a máxima moral e, nesse sentido, a paixão

pode resultar em vício; b) a máxima resultante de uma paixão

compatível com a ordem da máxima moral e, nesse sentido, referir-

se a uma ação virtuosa.

Porém, mesmo quando houver a compatibilidade ou a

coexistência entre a razão prática e a paixão, a razão da ação, se há

a preocupação moral, será sempre o dever moral – o respeito, o

reconhecimento e a adoção do princípio prático objetivo –

independentemente de qualquer subjetividade e móbeis:

sentimentos, interesses, impulsos, inclinações, paixões, emoções,

afecções, mesmo que haja.

Borges (2004, p. 02), aponta que a obra moral de Kant apresenta

várias referências acerca da dificuldade de determinarmos o valor

moral das ações, visto que não é possível o acesso aos motivos e aos

móbeis alheios, a mera observação da ação não nos garante acesso à

moralidade destas. Por exemplo: ‚*...+ o merceeiro pode não

aumentar seu preço por dever ou por interesse egoísta *...+‛. Como

ter acesso aos seus motivos e móbeis?

Pensamos que, embora não verificáveis externamente e mesmo

tendo a clareza das dificuldades de acesso ou avaliação dos

motivos e móbeis da ação, a ação com valor moral pode ser

presente, eficaz e efetiva na vida humana mediante a

formação/desenvolvimento moral, formação e desenvolvimento do

71

caráter via educação, vale dizer, a educação conforme concebida

pelo filósofo.

Sensibilidade e formação moral

A moralidade em Kant diz respeito precisamente às razões ou

ao porquê da ação, às razões que um agente tem ou se dá ara agir.

O agente, tendo uma vez desenvolvido o interesse pelo valor moral

de suas ações, ou despertado à moralidade, será capaz dessa

avaliação, será capaz de investigar, saber ou conhecer os seus

móbeis e motivos10; vale reforçar: se e quando, por exemplo, a prática

educativa chamar a atenção do agente às suas ações – as suas

razões/motivos de ação, formando e aprimorando o agente moral e

ético via educação.

Sobre as finalidades da Educação de acordo com a perspectiva

kantiana, podemos dizer que o processo educacional em Kant se

apresenta enquanto:

1º) Mecânico-escolástica: que diz respeito ao desenvolvimento

das habilidades, qualidades e capacidades, por exemplo, ler e

escrever, realizar uma arte, tocar algum instrumento, formando um

ser humano hábil ou culto, o que envolve o aprimoramento da

faculdade de conhecer, proporciona um conteúdo cognitivo;

2º) Pragmática: diz respeito à prudência que, segundo Kant,

apresenta-se como uma espécie de cultura denominada de

civilidade – ‚a civilização visa formar o cidadão para que ele tome

parte ativa na vida da sociedade em que está inserido‛. Kant

aponta que as belas artes e as ciências podem ser bastante eficazes

para esse desenvolvimento;

3º) Moral: a formação moral refere-se à ética e ao intrínseco

valor das ações humanas – a saber, o valor moral. ‚Por último vem

10 Acerca da distinção entre móbiles e motivo: ‚O princípio subjetivo do desejar é o

móbil (Teibfeder), o princípio objetivo do querer é o motivo (Bewegungsgrund); daqui

a diferença entre fins subjetivos, que assentam em móbiles, e objetivos, que

dependem de motivos, válidos para todo ser racional‛ (KANT, 1980a, p. 134).

72

a formação moral, enquanto é fundada sobre princípios que o

homem deve reconhecer‛ (KANT, 1999, p. 35-36).

Há, na concepção de educação kantiana, um trio de estágios –

habilidades, prudência e moralidade – necessários para o pleno

desenvolvimento humano, o que o filósofo entende por

Humanidade. Para a plena formação do ser humano ou o

desenvolvimento de sua Humanidade, é pressuposto o

desenvolvimento da razão; a razão, segundo Kant, é a faculdade

dos princípios – princípios do conhecimento e princípios

práticos/morais.

Do ponto de vista dos princípios morais, embora Kant não

negue ou exija a recusa e a exclusão de toda afecção, paixão ou

inclinações em geral, não é seguro tê-las enquanto base da conduta

moral, enquanto a condição de determinação, o motivo ou o

porquê da ação; as escolhas (vontade/ação) humanas podem ser

afetadas (pode haver), mas não determinadas por uma inclinação –

seja ela caracterizada enquanto uma afecção (sentimento) ou paixão

(interesse direto em um objeto).

É válido apontar que, no que diz respeito às inclinações e a

razão prática, Kant aponta que estamos diante de duas espécies de

bem – o bem físico (sensível) e o bem moral (moral ou intelectual),

os quais não devem ser confundidos. A primeira espécie de bem, o

bem físico, é o bem-estar, o da segunda espécie, o bem moral, é a

virtude; tendo em vista o valor da ação, alerta Kant, a inclinação

(sentimento, desejo, impulso [...]) para o primeiro deve ser limitada

pela lei do segundo. Enxergamos esse limite enquanto o respeito,

reconhecimento e adoção do princípio prático objetivo, possíveis,

também, por meio do desenvolvimento ou formação moral do

educando. Segundo Kant, esse desenvolvimento é possível

mediante a educação, não enquanto o único caminho, mas, como

um deles. Um dos caminhos para o ensino e o cultivo da

moralidade, centra-se, embora não exclusivamente, na educação.

Ainda sobre o bem físico e o bem moral tomemos um exemplo:

a sociabilidade (Umgänglichkeit), segundo Kant, é uma virtude, no

entanto, a inclinação ao relacionamento frequentemente se

73

converte em paixão. Nas palavras do filósofo: ‚*...+ se a fruição das

relações sociais se torna presunçosa pela obstinação, essa falsa

sociabilidade cessa de ser virtude e é bem-estar que prejudica a

humanidade‛ (KANT, 2006, p. 174).

Veja, Kant não nega o bem físico (o bem-estar), ao contrário:

O purismo do cínico [...] sem bem-estar social, são formas desfiguradas

de virtude e não convidam para esta [...] abandonados pelas Graças,

não podem aspirar à humanidade (KANT, 2006, p. 178).

Porém, quando o bem-estar toma o lugar da virtude, ou seja, o

bem-físico toma o lugar do bem moral enquanto razão de

determinação da vontade – das escolhas, das ações, da conduta – e,

tendo em vista o valor moral da ação que é de longe o mais alto,

torna-se algo que pode prejudicar o ser humano e o

desenvolvimento dia sua própria Humanidade11.

Para o caso da sociabilidade Kant nos oferece alguns exemplos

pragmáticos, que auxiliam na compreensão da sociabilidade

enquanto uma virtude, bem como o bem físico assumindo o lugar

do bem moral enquanto condição das ações, vejamos.

A música, a dança, o jogo, tornam uma reunião social

silenciosa, em particular na situação do jogo, as palavras

necessárias não são capazes de estabelecer uma conversação que

requer comunicação recíproca de pensamentos, isto é, a

sociabilidade. O jogo, de modo geral, somente é capaz de

preencher o vazio da conversação após, por exemplo, uma refeição,

desse modo, não remete à sociabilidade. De acordo com Kant:

11 A Humanidade em Kant: desenvolvimento de habilidades, qualidades e

capacidades, desenvolvimento da prudência, alcance do conhecimento e da

liberdade. Para o pleno desenvolvimento do ser humano, o desenvolvimento de

sua Humanidade, é pressuposto o desenvolvimento da razão, que para o filósofo,

é a faculdade dos princípios – princípios do conhecimento e princípios práticos. A

educação é, segundo Kant, um dos mecanismos capazes desse desenvolvimento.

74

O jogo [...] é em geral a coisa que mais importa, como meio de

aquisição em que afecções são intensamente agitadas, em que se

estabelece uma certa convenção de interesses pessoais para se

saquearem uns aos outros com a maior cortesia, e, enquanto dura o

jogo, um completo egoísmo é erigido em princípio que ninguém

renega (KANT, 2006. p. 175)12.

Considerações finais

Com a análise acerca da afecção e da paixão, entendidas

enquanto elementos da constituição sensível da natureza humana,

enxergamos que, embora da óptica da moralidade kantiana, não

excluir ou negar as afecções, as paixões, bem como qualquer

inclinação, elas não se apresentam (não podem se apresentar)

enquanto um bom ou seguro guia moral.

A exclusão da paixão ou da afecção, não desconsiderando a

própria constituição dual do ser humano, isto é, um ser racional e

sensível, não seria possível, afinal a razão precisa da experiência

para reconhecer-se nela, dito de outro modo, as ideias da razão

necessitam de alguma relação com a experiência na medida em

que, sendo o ser humano um ser também sensível além de racional,

ele não pode abandonar a sua porção sensível em detrimento da

sua racionalidade. A porção sensível da natureza humana, segundo

Kant, pode ser uma boa escola, mas ela não basta, não sendo

suficiente por si só para aperfeiçoar as experiências tipicamente

humanas e torná-las conhecimentos práticos.

Seguindo com o pensamento de Kant, podemos afirmar, em

definitivo, que a paixão, a afecção e, de modo geral, a inclinação,

ou seja, aquilo que me inclina a tal ou tal coisa por esse ou aquele

móbil ou sentimento, não são boas como guias morais, não boas

enquanto a condição de determinação da ação que possa ter o seu

valor, não são capazes de conferir o valor da ação.

12 Grifos acrescentados.

75

Assim, pensamos ser correta a afirmação de que o valor das

ações humanas pressupõe a educação, uma vez que ‚por natureza

o ser humano não é um ser moral em absoluto‛ (KANT, 1999, p.

95). Movido, também, por suas inclinações, em muitas situações, o

ser humano por si só pode não apresentar a capacidade imediata

de efetivar a moralidade, de fazer o que se deve ser feito do ponto

de vista da moralidade. Para o que Kant denomina, por vezes, de o

processo de desenvolvimento de sua Humanidade, mister se faz o

auxílio do outro. O outro, segundo o filósofo, podemos encontrá-lo

com a (e na) Educação.

Referências

BECK, L. W. A commentary on Kant’s Critique of Practical Reason.

Chicago: University of Chicago Press, 1984.

BORGES, M. de L. Amor. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo:

Abril Cultural, 1980.

______. Sobre a pedagogia. Piracicaba: Unimep, 1999.

______. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Metafísifca dos costumes. Parte II: Princípios metafísicos da

doutrina da virtude. Lisboa: Ed. 70, 2004.

______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo:

Iluminuras, 2006.

______. Akademieausgabe von Immanuel Kants Gesammelten

Werken. Disponível em: <http://www.korpora.org/kant/verzeichnisse-

gesamt.html>. Acesso em 15 de agosto de 2013.

PATON, H. J. The categorical imperative. A study in Kant’s moral

philosophy. Philadelphia/Pennsylvania: University of Pennsylvania

Press, 1971.

76

77

O conhecimento poderoso e a influência dos poderosos

na conformação do conhecimento e currículo escolar

Janete Palú1

Vanessa Daiane Rauber2

Oto João Petry3

Para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola

pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento

poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente,

para além de suas circunstâncias locais e particulares. (YOUNG, 2007,

p. 1297).

Palavras iniciais

O presente artigo pretende fazer uma análise das Políticas de

Constituição e do Conhecimento Escolar4 na contemporaneidade e

1 Mestranda do PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação -Universidade

Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó-SC. Integrante do Grupo de

Pesquisa em Gestão e Inovação Educacional (GPEGIE). Professora e Assistente Técnica

Pedagógica da rede pública estadual de Santa Catarina, graduada em História e

especialista em História e Educação. E-mail:< [email protected]>. 2 Mestranda do PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade

Federal da Fronteira Sul, (UFFS), Campus Chapecó-SC. Integrante do Grupo de

Pesquisa em Gestão e Inovação Educacional (GPEGIE). Professora da rede pública

municipal de Iraceminha, SC, graduada em Pedagogia e especialista em Educação.

E-mail:<[email protected]>. 3 Doutor em Educação. Coordenador e docente do curso de Pós-graduação Stricto

Sensu em Educação – Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus

Chapecó-SC. Pesquisador e líder do Grupo de Pesquisa em Gestão e Inovação Educacional

(GPEGIE). E-mail: <[email protected]>. 4 Este artigo traz reflexões que integraram o componente curricular ‚Políticas de

constituição do conhecimento escolar ‛, ofertado na linha de pesquisa de Políticas

Educacionais, do PPGE - Programa de Pós-Graduação da UFFS, Campus Chapecó,

no ano letivo de 2018, que teve como professoras: Drª. Nilce Fátima Scheffer, Drª.

Adriana Maria Andreis e Drª. Camila Caracelli Scherma. Essas reflexões foram

apresentadas pelas mestrandas Janete Palú e Vanessa Daiane Rauber em forma de

ensaio, no encerramento da disciplina. Também fazem parte das dissertações (em

78

propor reflexões sobre o papel dos agentes hegemônicos globais na

constituição do conhecimento e conformação do currículo das

escolas públicas.

Ressaltamos que é fundamental analisar a importância do

conhecimento e o lugar que ele ocupa na escola - especialmente na

escola pública - buscando perceber como os poderosos,

representados pelo capital, pelas leis do mercado, pelos grandes

conglomerados econômicos e agências multilaterais, que

defendem seus interesses, influenciam e determinam a constituição

das políticas educacionais e, por conseguinte, a conformação dos

conhecimentos e currículos escolares.

Diante dessa situação, questionamos: Qual a função social da

escola? Como são formuladas as políticas públicas educacionais?

Que políticas constituem e mantêm a escola como ela é? Quem

influencia e determina a constituição do conhecimento e o currículo

escolar no tempo presente? Essas questões nos fazem refletir sobre

o contexto educacional atual, a fim de compreendê-lo em sua

historicidade, buscando em estudos acadêmicos e na literatura que

aborda a temática, possíveis respostas para nossas inquietudes

enquanto pesquisadores e educadores.

A escola e o conhecimento poderoso

Para dar início à reflexão, destacamos as palavras de Young

(2007, p. 1288): ‚Todo pai e todo professor devem fazer a pergunta:

‚Para que servem as escolas? *...+‛. Miranda (2005, p. 641) afirma

que é ‚*...+impossível pensar essa escola dissociada das

contradições históricas nas quais ela se constituiu e se consolidou‛.

Nesse sentido, ‚*...+as classes dominantes e subordinadas têm

tentado usar as escolas para atingir os seus mais diferentes

objetivos. (YOUNG, 2007, p. 1292).

construção) que serão apresentadas pelas mestrandas sob a orientação do

Professor Dr. Oto João Petry.

79

A origem das escolas para as massas está ligada à expansão da

sociedade capitalista, pois o objetivo da educação escolar nos

últimos 150 anos serviu ‚*...+ ao propósito de não só fornecer os

conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em

expansão do sistema do capital, mas também gerar e transmitir um

quadro de valores que legitima os interesses dominantes‛.

(MÉSZÁROS, 2008, p. 35). O autor não defendia esse modelo

educacional, visto que a escola, sobretudo a escola pública, não

pode ser um instrumento de legitimação do poder de uns poucos

sobre a grande maioria da população. É preciso resgatar seu valor

como espaço importante, com centralidade no conhecimento e não

na formação de mão de obra barata para o mercado de trabalho. A

escola é um dos espaços onde se pode promover reflexões que

permitam identificar tais propósitos que, para muitos, não são

perceptíveis, inclusive para aqueles que estão inseridos em seu

contexto.

A escola, no tempo presente, deve se constituir em um

significativo instrumento de transformação e mudança. Ela tem

uma função emancipadora e transformadora. Deve se caracterizar

pelo empoderamento do educando, para que ele possa se

instrumentalizar e ter acesso a esse grande legado da humanidade.

Afinal, como afirma Veiga-Neto (2012, p. 275), ‚*...+ é pela educação

que incluiremos no mundo aqueles que estão chegando depois de

nós‛. Por esse motivo, não podemos aceitar a ‚*...+ crescente

redução da escola a um lugar de apenas socialização *...+‛, pois essa

visão contribui ‚*...+ para aprofundar a dist}ncia entre processos de

escolarização das elites e das classes populares‛. (ibid., p. 279).

Sobre a importância das escolas como espaço de emancipação,

Young (2007, p. 1288) afirma que ‚*...+ sem elas, cada geração teria

que começar do zero ou, como as sociedades que existiram antes

das escolas, permanecer praticamente inalterada durante séculos‛.

O autor destaca que ‚*...+ para crianças de lares desfavorecidos, a

participação ativa na escola pode ser a única oportunidade de

adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar,

ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais

80

e particulares‛ (ibid., p. 1297). Ou seja, a escola pública tem um

papel fundamental na formação dos sujeitos sociais e históricos,

pois é por meio da educação que milhares de crianças,

adolescentes, jovens e adultos têm acesso ao conhecimento que

possibilita a transformação de suas vidas e da sociedade. Ela deve

preocupar-se, antes demais nada, em capacitar as pessoas a

adquirir o conhecimento poderoso, destacado por Young (2007),

que as conduza para além da experiência pessoal; conhecimento

esse que tais sujeitos não poderiam acessar se não existisse a escola

ou a universidade embasada em valores emancipatórios que

contrapõem os interesses do capital e do mercado.

O conhecimento não pode ser secundarizado na escola pública;

ele deve ser o centro do processo educativo. Isso porque, é nesse

espaço que as crianças podem ter acesso ao ‚*...+ conhecimento

poderoso, que não é disponível em casa. O conhecimento poderoso

nas sociedades modernas, no sentido em que usei o termo, é, cada

vez mais, o conhecimento especializado‛, como mostra Young

(ibid., p. 1294-1295). Dessa forma ‚O currículo tem que levar em

consideração o conhecimento local e cotidiano que os alunos

trazem para a escola, mas esse conhecimento nunca poderá ser

uma base para o currículo‛. (ibid., p. 1299).

Em relação à escola e sua importância no contexto atual, para

Dussel, ela é ‚*...+ o lugar capaz de receber os indivíduos das

diferentes camadas sociais, que pode protegê-los e oferecer-lhes

possibilidades de futuro‛. A autora adverte ainda que ‚*...+ a escola

de nosso tempo não pode renunciar ao ato de ensinar, de ampliar

os conhecimentos dos sujeitos escolares e de prepará-los para a

tarefa de renovar o mundo‛ (DUSSEL, 2003, apud SILVA;

PEREIRA, 2014, p. 891).

Percebe-se assim que a educação tem uma relevância ainda

maior no tempo presente - tempo de embates e disputas. Os

educadores não podem estar presos a seus próprios obstáculos

epistemológicos. Para Marques (1992, p. 548), ‚*...+ o problema

crucial é o do princípio organizador do conhecimento, e o que é

vital hoje não é apenas aprender, não é apenas reaprender, mas sim

81

reorganizar o nosso sistema mental para reaprender a aprender‛.

Veiga-Neto (2012) corrobora com esse pensamento ao afirmar que,

Seja na educação escolar, seja no espaço social mais amplo [...] os

fenômenos não são vistos como construções ou invenções históricas,

mas são tomados como naturais, como verdades e necessidades por si

mesmos [...] dessa forma não são problematizados (VEIGA-NETO,

2012, p. 268).

Cabe aos educadores e pesquisadores questionar a

naturalização das organizações atuais e a formação da estrutura de

pensamento, que faz o indivíduo ver o mundo de determinada

forma. Mudar o mundo e o contexto educacional é possível. No

entanto, a escola pública, com base nos valores preconizados por

Young (2007) e Mészáros (2008), parece ser uma utopia na

atualidade, especialmente em países periféricos como o Brasil. O

cenário do século XXI tem revelado como os organismos

internacionais e as políticas neoliberais defendem interesses por

meio da anulação do poder político do Estado em prol dos grandes

grupos econômicos, cujas preocupações têm sido unicamente o

lucro e o capital. Conforme Charlot (2009, 13), ‚Hoje em dia, cada

vez mais se esquece da escola como lugar de saber e se pensa nela

como caminho para o emprego‛. O autor também afirma ainda que

‚*...+ muitos alunos vão | escola para passar de ano, receber um

diploma e ter um bom trabalho mais tarde‛.

Percebe-se no contexto da prática que a atividade escolar e os

conhecimentos acessados pelas massas por meio dela constituem o

caminho formativo do aluno, no entanto ‚*...+ atr{s dessa fachada

funciona a atividade real que permanece implícita: legitimar

escolarmente e socialmente o poder das classes dominantes‛. (ibid.,

p. 04).

82

A influência dos poderosos e as implicações no campo

educacional

Vivenciamos tempos difíceis e retrocessos no cenário

educacional brasileiro, haja vista a aprovação de medidas recentes

como a Emenda Constitucional nº 95 (15/12/2016)5, que congelou os

gastos públicos e instituiu um novo regime fiscal no país, além da

Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415-16/02/2017)6. Aliado a isso,

passamos também por mudanças significativas no currículo com a

promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a

intensificação da interferência do setor privado no setor público,

incluindo o setor educacional, e muitas outras ações que

determinarão e modificarão os rumos da educação brasileira. Têm

sido realizadas alterações significativas nos textos básicos que

regulamentam a educação no Brasil, que são a Constituição Federal

de 1988 e a LDB 9394/96.

Perguntamo-nos o que estará por trás de tantas mudanças.

Para isso, podemos recorrer às transformações mundiais que estão

acontecendo nas últimas décadas. Com a globalização, as

diferenças sociais foram se agravando em nome do lucro e do

capital. Segundo Silva,

[...] Não se pode dizer que os processos de dominação de classe,

baseados na exploração econômica, tenham simplesmente

desaparecido. Na verdade, eles continuam mais evidentes e

dolorosos do que nunca. (SILVA, 2005, p. 146-147).

Percebe-se que as inovações e avanços tecnológicos não têm

sido realizados visando à melhoria da condição de vida da maioria

da humanidade, e sim aos interesses das grandes corporações, do

5Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm>.

Acesso em 01 jul. 2018. 6Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm>. Acesso

em 01 jul. 2018.

83

mercado e do capital. Dessa forma, a globalização pode ser

apresentada com a seguinte configuração, de acordo com Santos:

[...] se desejamos escapar à crença de que esse mundo assim

apresentado é verdadeiro, e não queremos admitir a permanência de

sua percepção enganosa, devemos considerar a existência de pelo

menos três mundos num só. O primeiro seria o mundo tal como nos

fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal

como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro o mundo

como ele pode ser: uma outra globalização. (SANTOS, 2010, p. 06).

Contudo, não podemos aceitar que esse mundo de

desigualdades seja natural e imutável. Como alerta Santos (2010, p.

9), ‚A m{quina ideológica que sustenta as ações preponderantes da

atualidade é feita de peças que se alimentam mutuamente e põem

em movimento os elementos essenciais | continuidade do sistema‛.

Essa máquina ideológica naturaliza a diferença e promove o

consumo como sinônimo de felicidade.

Há uma busca de uniformidade, ao serviço dos atores hegemônicos,

mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho

de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto

ao consumo é estimulado. (SANTOS, 2010 , p. 09)

Uma das formas de determinar que tipo de cidadão se quer

formar e que tipo de educação será ofertada aos atuais e futuros

cidadãos é por meio do currículo. Por isso, esse campo ganha

centralidade nas políticas educacionais e se torna alvo de disputas,

como definiu Arroyo7. Sobre a importância do currículo e seus

significados, é importante destacar que:

O currículo tem significados que vão muito além aqueles aos quais as

teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço,

7 Essas disputas foram evidenciadas pelo escritor Miguel Gonzáles Arroyo em seu

livro ‚Currículo, território em disputa‛.

84

território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória,

viagem, percurso. O currículo é nossa autobiografia, nossa vida,

curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é

texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.

(SILVA, 2005, p. 150).

Miranda, ao analisar a organização do ensino por ciclos no

Brasil, menciona que:

[...] a retórica em defesa de reformas na educação, que vai muito além

dos documentos oficiais, quer transformar corações e mentes. O

âmago das reformas não está nas mudanças objetivas, formais e

técnicas das políticas públicas [...] especialmente aquela relacionada à

educação das massas, da grande maioria da população. Essas

mudanças [...] vem se verificando na organização espaços e dos

tempos da escola pública: a escola constituída sob o princípio do

conhecimento estaria dando lugar a uma escola orientada pelo

princípio da socialidade. (MIRANDA, 2005, p. 640-641).

Diante dessas transformações, é preciso garantir que o

currículo, como instrumento para acesso ao conhecimento

poderoso, não seja secundarizado no espaço escolar, e que a escola

como espaço de emancipação e transformação dos sujeitos não seja

apenas um lugar de formação de mão de obra e treinamento que

atenda aos interesses do capital.

O currículo escolar e as propostas hegemônicas globais

Ao olhar para as definições e discussões históricas sobre

currículo, pode-se compreender as relações de poder até hoje

presentes nos conceitos e nas práticas curriculares desenvolvidas

nas escolas. De acordo com Pacheco (2003), ‚o currículo não pode

ser separado nem do contexto amplo que o define no tempo e no

espaço nem da organização escolar que o concretiza‛ ( PACHECO,

2003, p. 14, apud SILVA, 2017, p.702). Assim, ao longo da história,

85

o currículo foi organizado conforme o contexto econômico para

atender aos interesses hegemônicos das elites.

Historicamente, a conformação do currículo nas escolas

públicas brasileiras, esteve relacionada a questões sociais,

econômicas e culturais. Afinal, ‚O currículo não é um elemento

transcendente atemporal – ele tem uma história, vinculada a

formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da

educação‛. (MOREIRA; TADEU, 2011, p. 14). Considerando essa

afirmativa, ao olhar o currículo desenvolvido nas escolas públicas,

nos últimos anos, deve-se considerar as influências neoliberais que

adentram profundamente a educação.

A introdução do modelo neoliberal na organização da

educação brasileira interfere diretamente na formação de

programas e políticas educacionais. De acordo com Hypólito (2010,

p. 1338), ‚as políticas que têm definido o desenho curricular para a

educação brasileira vêm sendo delineadas e implementadas desde

o final dos anos de 1980, marcadamente como políticas educativas

de car{ter neoliberal *...+‛. Esses princípios esboçam o

desenvolvimento de currículos escolares, conformados pelas

concepções mercadológicas, tendo em vista o desenvolvimento

individual dos sujeitos.

O campo educacional, nos últimos anos, vem sendo

modificado e adequado aos interesses neoliberais, que consideram

a escola, sobretudo pública, um dos meios para inserção de suas

práticas econômicas. Com esse objetivo, organismos internacionais,

modificam os sistemas educacionais, e o modo de gerir e conduzir

os rumos da educação pública. Um dos elementos configurados

por esses organismos é o currículo escolar, que passou a ser

organizado para atender às expectativas do mercado econômico,

conduzindo os alunos ao mercado de trabalho e ao consumo.

Atualmente, no currículo escolar estão presentes princípios

neoliberais, que partem de um processo de globalização

desencadeada pelo capitalismo e avançam pelo campo educacional.

H{ uma centralidade em modificar o currículo, pois ‚na construção

espacial do sistema escolar, o currículo é o núcleo o espaço central

86

mais estruturante da função da escola‛ (ARROYO, 2013, p.13). A

partir das reestruturações curriculares, para atender seus objetivos,

os princípios neoliberais interferem diretamente no

desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

Os sentidos atribuídos ao desenvolvimento de políticas

curriculares, nessa perspectiva, concentram-se em buscar nas

capacidades individuais dos alunos e das instituições escolares o

alicerce para propagação dos seus objetivos econômicos e sociais.

Os interesses desse movimento neoliberal convergem, de acordo

com Silva (2016, p. 679), em uma formação humana baseada na

‚obtenção de resultados r{pidos e flexíveis, assim como a busca

por talentos que se reinventam a todo o momento‛.

Baseados pelos princípios neoliberais, os agentes hegemônicos

globais atuam na educação, por meio de programas, avaliações,

materiais, formação de professores, entre outros, organizando e

modificando as políticas educacionais, inclusive as curriculares. De

acordo com Cury (2017), organismos multilaterais como OCDE8,

Banco Mundial e UNESCO9 estabelecem diretrizes para a

educação, consideradas parâmetros referenciais para obtenção da

qualidade do conhecimento escolar, de habilidades e competências.

O discurso neoliberal difundido por esses organismos vem ao

encontro de um Estado fraco, da educação pública em crise, de um

discurso desestruturante sobre as administrações públicas,

colocando como solução as iniciativas e propostas dos setores

econômicos privados. Nessa lógica, o discurso neoliberal busca

expandir-se por meio da proposta de que ‚aquilo que é privado é

necessariamente bom, e aquilo que é público e necessariamente

ruim‛ (APPLE, 2004, p. 46).

Entre as inúmeras influências desses organismos no

desenvolvimento da educação nas escolas públicas, destacam-se as

suas articulações para conformação do currículo escolar em três

dimensões: a internacionalização das políticas educacionais; as

8 Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. 9 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

87

avaliações em larga escala e a privatização da educação pública. Essas são

algumas manifestações que se apresentam na educação pública

brasileira, conformando as escolas para atenderem aos princípios

de uma globalização neoliberal.

A internacionalização de modelos educativos é uma prática

difundida pelos agentes hegemônicos globais. Essas organizações

espalham seus princípios por meio de práticas dominantes,

excluindo as diferenças e a educação voltada para formação

integral dos sujeitos. De acordo com Libâneo:

A internacionalização das políticas educacionais é um movimento

inserido no contexto da globalização, em que agencias internacionais

multilaterais de tipos monetário, comercial, financeiro e creditício

formulam recomendações sobre políticas públicas [...] (LIBÂNEO,

2016, p. 42).

O currículo, nesse sentido, passa a ser organizado para atender

aos sujeitos competitivos e estimular suas habilidades individuais.

As políticas curriculares e a materialização do currículo no

espaço escolar estão articuladas com interesses financeiros e

econômicos dessas empresas que ditam as novas regras. Ressalta-se

que as críticas diante da internacionalização das políticas

curriculares relacionam-se com as práticas de padronização do

currículo escolar, como forma de controle e poder sobre o que é

ensinado nas escolas, para posterior controle dos sujeitos no

mercado de trabalho. Esse é um dos principais objetivos desses

organismos: convencer a sociedade de que o único papel da escola

é estar a serviço do mercado de trabalho.

Para Santomé, as interferências dos organismos internacionais

na educação pretendem

[...] reconduzir os sistemas educacionais a modelos de acordo com as

filosofias neoliberais. Seus objetivos são de convencer as classes

dirigentes e, o que também é muito grave, uma grande parte dos

cidadãos, de que as instituições escolares devem ter como principal e,

aliás, única meta, formar e conscientizar o corpo discente para

88

competir por postos de trabalho no atual mercado capitalista

(SANTOMÉ, 2013, p. 73).

Tal necessidade é colocada por essas organizações em um

movimento internacional. Para alcançar esses objetivos, as escolas

devem reorganizar os conteúdos que compõem o currículo escolar,

pois nessa lógica, os conteúdos válidos são aqueles que vão

capacitar os jovens para o mercado de trabalho (ibid., 2013). Assim,

o currículo escolar não está organizado com vistas à formação

humana integral, mas para desenvolver habilidades e mão de obra

para o mercado.

Outro fator determinante para conformação do currículo

escolar está relacionado aos processos de avaliação. Para efetivar

suas práticas na educação, os agentes hegemônicos globais

promovem e articulam às políticas curriculares, processos de

avaliação em larga escala. Essas avaliações são efetivadas para

retratar de maneira quantificada a qualidade da educação e

mostrar, por meio dos números, o sucesso das interferências

privadas na educação pública. Diante disso, o currículo das escolas

passou a ser estruturado para atender às demandas avaliativas.

Assim, para Thiesen,

[...] estimuladas pelos discursos oficiais e pelas pressões da mídia,

instituições escolares redesenham aspectos de seu currículo para

atender, do ponto de vista dos conteúdos, as exigências dos

instrumentos de avaliação (THIESEN, 2014, p. 200).

Dessa maneira, os agentes hegemônicos globais reafirmam as

suas lógicas de mercado. Pois, de maneira direta ou indireta,

configuram o currículo escolar em prol do desenvolvimento

educacional neoliberal.

De forma velada, as práticas avaliativas direcionadas pelos

modelos internacionais exaltam os resultados das avaliações e

propõem políticas educacionais que, com base nos resultados,

classificam as escolas de maneira comparativa, estimulam a

competição e as individualidades, fortalecem as parcerias com o

89

setor privado e relacionam, com os números obtidos nas

avaliações, os repasses de recursos financeiros (LIBÂNEO, 2017).

Para alcançar seus propósitos, as políticas internacionais

direcionam a organização dos conhecimentos escolares, por meio

de um modelo único, que busca a eficiência e eficácia. Para Arroyo

(2013, p. 13), o currículo é um dos elementos avaliados com grande

ênfase e, nesse sentido, ‚caminhamos para a configuração de um

currículo não só nacional, mas internacional, único, avaliado em

par}metro único‛. As políticas curriculares, influenciadas pelos

agentes dominantes globais, traduzem a qualidade educacional por

números e índices que quantificam o desempenho educacional.

No Brasil, essas práticas avaliativas de consolidam desde a

Educação Básica até o Ensino Superior. De acordo com Thiesen

(2014), a partir de 1990, vários instrumentos avaliativos passaram a

fazer parte das agendas educacionais brasileiras. Segundo o autor,

‚todos esses instrumentos são pautados pela lógica da aferição

estandardizada de resultados objetivos com recortes classificatórios

pela mensuração de desempenho individual‛ (p.198). A partir das

avaliações aplicadas nas escolas públicas brasileiras, o currículo

passou a ser reestruturado para atender a números e índices que,

nesse caso, traduzem de maneira nacional e internacional a

qualidade da educação brasileira.

Paralelo aos modelos de políticas internacionais e às avaliações

em larga escala, destaca-se a presença do setor privado na

educação. A privatização da educação pública é uma das

conquistas neoliberais para implantar nas escolas suas práticas

econômicas. O setor privado se faz presente nela em diferentes

âmbitos, inclusive no curricular.

O currículo escolar é conformado pelo setor privado, como

afirma Adrião:

A privatização do currículo não se refere apenas aos tradicionais

processos de compra de insumos e materiais necessários ao ensino

(livros, jogos, brinquedos pedagógicos etc.). Trata-se, mais

amplamente, da transferência para o setor privado da definição do

90

que ensinar, do como ensinar e do quando ensinar, além dos

processos de verificação da aprendizagem, ou seja da definição dos

desenhos curriculares (ADRIÃO, 2018, p. 20).

Diante do discurso da ineficiência da educação pública, o setor

privado invade a escola trazendo consigo a solução para todos os

problemas educacionais. Assim, as empresas capitalistas passam a

serem, de acordo com Paro (2016, p. 132-133), exemplos às escolas,

‚*...+ sob a alegação, falsa e interessada, de que a eficiência é

inerente ao privado, enquanto o público é necessariamente

ineficiente‛. Em meio a esse discurso manipulador, governantes e

os próprios cidadãos conferem às empresas privadas a confiança de

uma educação de qualidade.

Com o foco no mercado, o setor privado traz consigo um

pacote completo com discursos, práticas e prestações de contas que

buscam exaltar os serviços prestados. De acordo com Comerlatto

(2014, p. 10), ‚As parcerias público‐privadas e/ou o mercado têm se

ocupado em afirmar que elas possuem a receita para a

aprendizagem, como um serviço prestado a clientes‛, ou seja,

mediante práticas gerencialistas, reduzem a escola às práticas do

mercado e utilizam-se do currículo como um instrumento de

reprodução e poder de suas ideologias.

Estão presentes na educação pública brasileiras grandes

influências dos agentes hegemônicos globais e do modelo

neoliberal. As avalições padronizadas, a inserção do setor privado

na educação pública e a adoção de modelos internacionais estão

presentes na conformação das políticas curriculares brasileiras e no

dia a dia das escolas públicas. Essas interferências estão evidentes

nas discussões atuais relacionadas às políticas curriculares no

Brasil, que se referem às modificações na Lei de Diretrizes e Bases

da Educação (LDB, nº 9394/96), à Reforma do Ensino Médio (Lei, nº

13.415/2017) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

A reforma do Ensino Médio é um dos grandes exemplos dessa

forte influência. De acordo com Silva, a reforma

91

[...] propõe uma flexibilização curricular, alterando a atual

organização dos currículos, [...] criando itinerários formativos

vinculados às áreas do conhecimento e incentivando a ampliação da

carga horária. (SILVA, 2017, p.712).

Nesse percurso, o autor sinaliza alguns alertas quanto à

flexibilização curricular proposta pela reforma, pois ‚a liberdade

dada ao aluno de escolher e montar o seu currículo ensina uma

relação de consumo entre sujeito e oferta de mercadorias‛.

(VEIGA-NETO, 2002, p.182, apud SILVA, 2017, p.713).

A escola pública dos países em desenvolvimento, como é o

caso do Brasil, passa por mudanças de ordem neoliberal que

reestruturam os modelos de gestão e o currículo escolar.

Vinculados às práticas ou a políticas curriculares, as propostas dos

agentes hegemônicos globais se propagam pela educação

brasileira, desencadeando um desmonte da escola pública e a

estruturação de modelos gerencialistas. O conhecimento

selecionado torna-se um instrumento de regulação e poder

econômico e social.

Considerações finais

A educação escolar é um direito de todo brasileiro e também

uma etapa importante da vida do cidadão. É nessa fase que o

indivíduo, por meio da escola, se instrumentaliza ao entrar em

contato com o conhecimento científico historicamente acumulado e

vivencia experiências pedagógicas que contribuem para a sua

formação de maneira integral. Como afirma Cury (2017, p. 29-30),

‚*...+ Em uma democracia, perdem-se espaços em um campo,

ganham-se em outro, mas a bússola da educação como direito não

perdeu seu sentido, ainda que apontando rotas de navegação

difícil‛. Diante disso, não podemos deixar a escola pública, o

conhecimento e o currículo escolar à mercê dos interesses dos

poderosos que, por meio de políticas públicas distorcidas e com

intenções ocultas, estão modificando, conforme seus interesses, a

92

principal função social da escola que é o acesso ao conhecimento

historicamente acumulado, ao conhecimento poderoso capaz de

modificar as pessoas e a sociedade.

Enquanto profissionais e estudantes da educação pública não

devemos reproduzir os discursos hegemônicos que estão sendo

direcionados ao cenário educacional, que têm o objetivo de

desmontar a instituição escolar pública. Afinal, de acordo com

Arroyo (2013), esse campo é um território em disputa, uma disputa

que evidencia a importância do conhecimento, da escola pública

como local de emancipação; o que não vem ao encontro do

interesse dos poderosos. O autor sublinha que, ‚O fato da escola,

sobretudo pública, de seus profissionais serem tão criticados é sinal

de que incomodam, estão vivos‛ (ibid. p. 12). Diante das

adversidades dos tempos atuais, é nossa tarefa manter a escola

pública viva, para que continue disseminando o conhecimento

poderoso e não somente o conhecimento que os poderosos desejam

que as populações menos favorecidas tenham acesso. Isso tudo nos

mostra que ‚*...+ o território da escola ainda é importante para a

sociedade e, sobretudo, para as crianças, os adolescentes, os jovens

e adultos populares e para seus professores (as) ‛ (ibid., p. 12).

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95

Projeto Político Pedagógico:

desafios teóricos e práticos

Márcio Luís Marangon1

Camile Gasparini2

Introdução

Diante da temática que aborda a discussão sobre a carga

horária das disciplinas práticas nos cursos de licenciatura nas

Universidades, sob a proposta do professor crítico-reflexivo

baseado nos saberes docentes, nos desafiamos a abordar este tema

a partir de um elemento crucial à educação e, que envolve tanto a

teoria como a prática: o Projeto Político Pedagógico.

O tema do Projeto Político Pedagógico (PPP3) é de vasta

bibliografia, entretanto, mesmo sendo objeto de estudos para

professores e pesquisadores, a distância entre teoria e a prática

ainda é significativa. Parece haver ao menos duas diferenças: a

primeira, entre a teoria e a prática sobre a constituição do projeto

(mesmo quando democrático) e a segunda, entre a constituição do

Projeto e a elaboração do planejamento cotidiano dos educadores

em sua execução. Como resultado, colhem-se insatisfações por

parte de todas as esferas da comunidade escolar, pois não há

sintonia quanto aos parâmetros do agir pedagógico.

Pensando nisso, o presente trabalho pretende recuperar

questionamentos sobre o conceito de Projeto Político Pedagógico a

partir de práticas pedagógicas - e de diálogos sobre as práticas -

que se estabeleceram nos últimos anos, buscando dar um olhar da

1 Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF) 2 Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF) 3 Embora que em bibliografias mais recentes (principalmente no Rio Grande do

Sul) o conceito utilizado seja PPAP – Projeto Político Administrativo Pedagógico,

decidimos por utilizar a bibliografia tradicional, onde usa-se somente a

terminologia PPP – Projeto Político Pedagógico, acreditando que o Político já

contempla em si as questões administrativas da Escola.

96

‚pr{tica‛ para este, um olhar de educador que busca apontar

algumas dificuldades de colegas educadores em compreender o

que é o projeto, qual sua importância, como constituí-lo e como

colocá-lo em prática.

Para tanto, dividiremos este trabalho em três partes: na

primeira parte, resgataremos a conceituação de projeto e por que

ele se define como político e pedagógico na escola, assim, como são

as implicâncias desta definição para a comunidade escolar. Em

segundo momento, buscaremos refletir sobre alguns problemas

que costumeiramente rondam a constituição dos projetos nas

escolas, em alguns casos, dificultando a transformação das

mesmas. E para finalizar, em um terceiro momento, buscaremos

demonstrar alguns desafios para colocar o projeto em prática,

almejando visualizar alguns aspectos que precisam de atenção

especial.

Considerando este caminho, a intenção é demonstrar que a

constituição do Projeto Político Pedagógico nunca é simples.

Também, que o mesmo pode tornar-se um grande aliado quando

suas bases estão bem esclarecidas e quando os educadores também

estão esclarecidos quanto a sua missão e engajamento neste projeto,

mas, por outro lado, pode tornar-se uma dificuldade para toda a

comunidade escolar quando esses contextos forem ignorados.

Os desafios da compreensão

Embora pareça inusitado iniciar um diálogo sobre Projeto

Político Pedagógico falando a respeito da compreensão do mesmo,

ou de sua importância, é importante perceber que muitas escolas

ainda subestimam a importância de um projeto4. Talvez, por

imaginar que toda comunidade escolar domine sua

intencionalidade e sua importância, ignoram o fato de estudar o

que é um projeto, como ele deve ser construído e trilhado.

4 Começando por não esclarecer o seu significado.

97

Uma primeira questão esclarecedora disso é o fato de que

muitos indivíduos não são conscientes sequer de seu projeto de

vida. Não é regra, e mesmo que fosse teria sua exceção, mas

quando os indivíduos não conseguem compreender a importância

de planejar sua vida, sua caminhada, suas relações financeiras e

sociais, ou ainda, quando não compreendem a importância que sua

vida e suas potencialidades têm e em que podem contribuir

socialmente, ou como suas lacunas podem ser prejudiciais à

sociedade, dificilmente poderão compreender porque devem

planejar o andamento escolar, dado que o planejamento da escola

envolve todos estes segmentos, além de outros que são próprios da

escola.

Uma segunda questão liga-se então a esta primeira, pois, para

lembrar, a palavra projeto (do latim ‚projectum‛) significa um

‚lançar-se‛. Mas, somente o ‚lançar-se‛ tem significado limitado.

Como menciona Sartre (2005), um ‚caminho traçado‛ (de onde,

para onde) é a necessidade da existência. A condição existencial é o

‚fazer-se‛, visto que nada ‚é‛ enquanto não ‚fizer‛ algo de si. Um

indivíduo, por exemplo, não é apenas o que quer ser, mas o projeto

que está vivendo5; por isso, a existência é um ‚projetar-se‛, um

impulsionar-se para o futuro, para um objetivo a alcançar.

Assim, chega-se a conclusão que: primeiro é preciso estar claro

sobre quanto um projeto faz-se necessário para qualquer

encaminhamento e; segundo, para que o mesmo tenha êxito, é

preciso que esteja claro o objetivo que se precisa - ou deseja -

alcançar.

Desta forma, pode-se compreender quanto um projeto é

importante para a escola6 e, como também é importante ter um

objetivo claro, sobre o qual seja possível traçar um caminho entre a

escola que se ‚tem‛ e a escola que se ‚quer‛, delineando para onde

a mesma deve ir e que papel vai cumprir. Até porque, o projeto de

uma escola se constitui como um projeto de ‚vidas‛, visto que

5 Um projeto envolve não somente o indivíduo mas também o contexto que o cerca. 6 O projeto de uma escola é o projeto de ‚vida‛ desta.

98

como instituição de ensino, sustenta e organiza vários projetos que

se desenvolvem ao mesmo tempo na comunidade escolar:

educandos, pais, educadores, funcionários e gestores, cada um traz

em si anseios e projetos implícitos ou explícitos, os quais precisam -

na medida do possível - ser equilibrados com o projeto da

sociedade.

Por isso, o projeto de uma escola não pode ser somente

‚projeto‛, este Projeto, precisa ser Político e Pedagógico: político7

para organizar a escola em prol do bem comum, e pedagógico8

para organizar o processo de ensino e aprendizagem do ser

humano enquanto educando que se constituirá na concretização do

bem comum. Logo, o que ser{ este ‚bem comum‛, determinar{ o

objetivo da escola e seu processo de ensino-aprendizagem.

Então, o primeiro desafio da escola é possibilitar à comunidade

escolar a compreensão do que significa um projeto, sua

importância, para que esta se torne cúmplice do mesmo e contribua

ao saber onde se ‚quer chegar‛ com ele. Disso percebe-se a

necessidade de um primeiro equilíbrio entre a teoria e a prática,

onde a prática somente consegue desenvolver-se sob a base de uma

teoria consistente. Uma teoria esclarecedora, avivadora.

O projeto da escola não pode parecer ser somente um

documento que ‚se tem que fazer‛, mas sim, precisa ser

compreendido como o documento que conduz o andamento da

escola e por este motivo sua construção deve ocorrer de maneira

democrática, através do diálogo e da busca por aproximações entre

os diferentes desejos da sociedade. Contudo, é mister entender que

este processo traz em voga outro desafio: a compreensão da

constituição democrática do projeto.

7 Político relacionando-se ao tempo Política (de Polis), e remete-se a arte ou ciência

de organizar e administrar nações ou Estados em relação ao bem comum e a

felicidade coletiva, como a define Aristóteles em sua obra Política. 8 Pedagogia = paidos (da criança) + agein (conduzir), ato de conduzir a criança.

99

O desafio da constituição do projeto

Até aqui falamos que o primeiro desafio da escola é possibilitar

à comunidade escolar a compreensão do que significa um projeto e

qual sua importância, o que somente desenvolve-se sob a base de

uma boa teoria – esclarecedora e avivadora. Nesta segunda parte,

pretendemos reforçar tal afirmação buscando apontar, no entanto,

como enlace entre teoria e prática são indissolúveis neste processo:

se é preciso uma boa teoria para esclarecer sobre o projeto, para

que hajam esclarecidos, é preciso a participação efetiva na

discussão do mesmo. É preciso então, um ambiente democrático

verdadeiro.

Contudo, falar em democracia é outro desafio à escola, pois

seguidamente o entendimento de democracia como ‚a capacidade de

decidir os destinos‛ 9confunde a mesma com demagogia. Bobbio

(1986, p. 18, grifo nosso) traz a discussão de que o conceito de

democracia pode ser visto como ‚um conjunto de regras (primárias

ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar

as decisões coletivas e com quais procedimentos‛.

Assim sendo, a constituição democrática não é simplesmente

imaginar uma participação da comunidade escolar, nem mesmo

entender simplesmente que aqueles que são chamados à

democracia têm ‚a atribuição pedagógica‛ de decidir da mesma

maneira sobre os destinos da escola (o que não significa que sejam

menos importantes no processo), antes sim, significa que a

democracia precisa ser trabalhada e vivenciada.

Para aprofundar melhor este segundo desafio da construção do

projeto (a democracia) gostaríamos de elencar a seguir outros três

tópicos que parecem cruciais para o enfrentamento da banalização

da democracia: participação ativa, tomada de decisão e construção

de conceitos.

9 Aranha e Martins (1986, p.207).

100

a) A participação ativa

Um desafio importante na constituição democrática do Projeto

Político Pedagógico é a ‚falsa participação10‛, ou, a participação

não ativa da comunidade escolar. De maneira mais preocupante –

especificamente - da participação não ativa dos educadores, os

quais são responsáveis diretos pela ação do projeto sobre os

educandos.

Como parâmetro de participação é possível utilizar Díaz

Bordenave (1986), o qual situa três níveis de participação: ter parte,

fazer parte e tomar parte. Neste sentido, menciona que é possível

fazer parte do processo sem tomar parte do mesmo, o que ele

chama de participação passiva, a qual é diferente da participação

ativa. Segundo o autor ‚a prova de fogo da participação não é

quanto se toma parte, mas como se toma parte‛. (1986, p. 23)

Seguindo esta linha de pensamento, é importante compreender

que a participação ativa não é o simples estar presente, é a

efetivação do tomar parte no construir e no assumir a

responsabilidade pelo que foi construído coletivamente. É a ideia

de, realmente, querer compreender a importância do projeto e

construir juntamente com a comunidade escolar, de maneira

horizontal, o objetivo deste.

O que não significa, é claro, ignorar as participações

‚passivas‛. Quando se envolve a comunidade escolar para

participar das decisões de planejamento da escola é importante

estar preparado para as participações embasadas no senso comum.

Saber ouvi-las, enriquecê-las e mostrar sua importância, também

faz parte do processo de evolução da participação e do

melhoramento do processo. O esclarecimento é algo gradativo e

construtivo, não dogmático e revelador.

Assim, favorecer a conscientização da comunidade escolar é

fundamental, mais ainda quando se trata dos educadores. Quando

10 Muitas vezes, este processo é resultado de práticas parcialmente democráticas

onde a instituição escolar foi se constituindo e contínua se constituindo.

101

os mesmos não se sentem pertencidos ao processo, e não tomam

sua parte de forma ativa, corre-se o risco de comprometer todo o

andamento do projeto: o projeto torna-se um ‚peso morto‛ para o

educador e o educador torna-se um ‚peso morto‛ para a escola.

O Projeto Político Pedagógico é um projeto da sociedade que

temos e que queremos; sociedade onde nós e nossos descendentes

vivemos e viveremos. Por isso, é um projeto de cada um, que sendo

sujeito de sua própria história educativa é sujeito do mundo11

juntamente com os demais. A constituição do projeto da escola

precisa ser então um diálogo vivo, moldado sobre participações

ativas e de qualidade. É um desafio da prática, da busca pela

presença qualitativa, sem a qual nenhuma teoria - por mais

primorosa que seja – pode ser efetivada.

Por isso, buscar a participação ativa na constituição do projeto

é um desafio primordial a todas as escolas. Caso contrário, a escola

e educador terão um novo problema, o qual será exposto no

próximo item.

b) A tomada de decisão

Se a constituição do projeto precisa ocorrer através de uma

participação ativa, então, quando esta não ocorre é possível

imaginar que o processo fica debilitado já em sua constituição,

afetando o andamento do projeto. Assim, é importante perceber

que a falsa participação, afeta diretamente outro ponto da

construção e implementação do Projeto Político Pedagógico: a

tomada de decisão, o que ocasiona uma perigosa polarização das

ações da comunidade escolar.

Quando um educador não se sente pertencido ao mesmo, ele

não consegue vislumbrar como adaptar seu planejamento com o

projeto da escola, mesmo sendo este democrático. Os dois projetos

(planejamento do educador e projeto da escola) acabam

11 O Projeto Político Pedagógico é entendido neste sentido como um projeto que

traz em si aquilo que se almeja para a ‚sociedade do futuro‛ através da formação

dos indivíduos.

102

desenvolvendo-se em tempos diferentes, seguem parâmetros

diferentes e, consequentemente, podem tomar caminhos e obter

resultados diferentes.

Da mesma maneira, quando os pais e a comunidade em geral

não participam do projeto, ou não o compreendem, não conseguem

visualizar de que maneira podem colaborar para o andamento do

mesmo, o que pode relacionar-se diretamente com sua contribuição

na formação dos educandos ou na omissão da mesma. Para os

educandos é semelhante: quando estes não sabem visualizar sobre

que projeto está ancorado sua formação, raramente compreenderão

seus aspectos e como esta poderá lhes formar.

Desta forma, a escola fica fragmentada e polarizada, perdendo

a tão almejada identidade que deveria ser construída durante a

constituição do projeto. Fica à mercê de questionamentos de todas

as partes12.

Em verdade, quando na escola cada parte da comunidade

escolar ‚puxar‛ para um lado, ela padecer{ e sua queda ser{

iminente. A queda da escola não significa sua morte, mas sim, sua

‚prisão‛ em um processo circular de resolver disparidades e

problemas corriqueiros que deveriam ser resolvidos pela

concretização do Projeto. É um empecilho para atingir os objetivos

desejados, até porque, possivelmente estes próprios objetivos não

estão claros ou contam com um mínimo consenso.

Com isso, ajudar a comunidade escolar - principalmente aos

educadores - a refletir e rever as decisões e ações pedagógicas

desenvolvidas ao longo do planejamento estabelecido, colocando-

as em consonância com o projeto, é outro desafio constante às

escolas.

A escola deve estar atenta para que todos os envolvidos

estejam constantemente conscientes do que é e o projeto da escola e

12 É importante compreender que, mesmo o sistema incorporando sujeitos que

nem sempre se harmonzam ao processo – e tratar desta diversidade é sempre um

desafio -, evitar ao máximo a fragmentação da escola é fundamental para o bom

andamento do projeto.

103

seu objetivo e, de como podem participar e contribuir a partir do

coletivamente construído. Quando cada parte está ciente de seu

papel e há a preocupação da qualificação de cada uma destas

partes, torna-se possível o andamento qualitativo do mesmo em

consonância com o agir pedagógico de toda comunidade escolar -

em especial, dos demais educadores - o que lhe ajudará a alcançar

os objetivos educacionais da escola. Caso contrário, não só o

processo se perde, como também, seu aperfeiçoamento – como

podemos ver a seguir – fica prejudicado ou impossibilitado.

c) A construção de conceitos

Ora, quando o processo de constituição do projeto é somente

um ‚faz de conta‛, sem uma participação ativa e os conceitos

iniciais13 não são ‚compreendidos‛ pela comunidade escolar, surge

a pergunta: como colocar em prática aquilo que não se entende? É

bem provável que quando se utilizam conceitos não

compreendidos, na prática surgirão dualidades e confrontos,

dificultando o andamento do cotidiano escolar e da formação dos

educandos. Disso, decorre que é comum perceber em alguns

projetos uma ‚linda‛ teoria, cheia de conceitos – como democracia,

liberdade, formação integral, sociedade melhor, entre outros - mas

que na prática não se efetivam.

Por mais que pareça estranho, muitos educadores não têm uma

definição exata do que é ‚ser humano‛, ‚indivíduo‛, ‚sujeito‛,

nem mesmo do que é sociedade e sua função. Desta forma, não

conseguem compreender adequadamente o objetivo do projeto,

nem mesmo, constituir parâmetros adequados de evolução de seus

educandos.

É preciso compreender ainda que, mesmo em uma

compreensão mínima, cada conceito é carregado de

particularidades e essas particularidades são interpretadas

13 Por conceitos iniciais entende-se aqui os conceitos utilizados previamente para

iniciar a constituição do projeto, antes desse ser reavaliado e reconstruído pela

comunidade escolar a partir de suas realidades.

104

subjetivamente conforme as condições culturais de cada indivíduo,

o que interfere na definição dos conceitos que serão trabalhados no

momento de um objetivo comum.

Diante de tal constatação, na constituição democrática do

Projeto Político Pedagógico é imprescindível que os conceitos

sejam estudados, discutidos, confrontados e esclarecidos entre seus

atores. Sem o esclarecimento dos conceitos fica muito difícil traçar

democraticamente um objetivo para escola, bem como, fica difícil

saber o que é ‚fazer melhor‛ pela escola e pelos educandos, ou seja,

a tomada de decisão fica prejudicada14.

Ainda pior: em uma constituição democrática de projeto

sempre é imaginável sua avaliação e devido aperfeiçoamento, até

porque, os conceitos são constituídos e reconstituídos no decorrer

da história da comunidade, a partir de suas vivências e

necessidades. No entanto, quando não há ao menos uma

compreensão inicial sobre os mesmos, bem como, quando não há

ações coerentes com o que se espera a partir deles, também o

aperfeiçoamento dos conceitos - e, consequentemente do próprio

projeto - fica prejudicado.

Assim, é possível perceber que a construção de conceitos é para

a escola um desafio de junção entre teoria e prática, que se dá

desde o processo de participação ativa e retorna para o processo de

reconstrução e aperfeiçoamento do projeto.

Também, a partir dos três desafios colocados acima, que a

constituição do Projeto Político Pedagógico exige um grande

esforço para tornar-se efetivamente democrático. A busca pela

construção democrática exige a capacidade de fomentar a

participação ativa, a paciência e a persistência em contribuir para

esclarecer, construir e reconstruir conceitos e posicioná-los na

tomada de decisão da comunidade escolar, acreditando piamente,

que a comunidade esclarecida - nos e pelos conceitos, pela teoria e

pela prática - possa contribuir de forma mais assídua no

14 Entretanto, é importante não querer forçar uma ‚dogmatização‛ de um conceito,

pois assim, o mesmo também perderia seu significado para os indivíduos.

105

aperfeiçoamento no projeto, qualificando-o pela qualificação de sua

participação e ação pedagógica – o que incide também para

desafios sobre a prática na escola.

Os desafios sobre a prática na escola

Quanto a estes desafios, pretendemos dedicar um espaço

específico neste trabalho. Afinal, como mencionado anteriormente,

o Projeto da escola não deve estar relacionado a um ‚documento de

gaveta‛, ou seja, ser elaborado para permanecer inutiliz{vel no

cotidiano escolar. Nesse sentido, a escola precisa pelo seu objetivo

definir sua identidade, constituindo uma concepção sobre ‚o quê‛,

‚quem‛ e ‚como‛ formar, validando sua proposta pedagógica e

fornecendo condições para sua realização.

Assim, gostaríamos de nos ater sobre alguns desafios para

colocar o Projeto Político Pedagógico em prática, almejando

visualizar alguns aspectos que precisam de atenção especial sobre a

pr{tica pedagógica dentro dos ‚muros da escola‛, onde

posicionada politicamente, a mesma assume e legitima seu papel

de educadora, e por isso, é imprescindível que o projeto esteja

presente nas principais dimensões de sua rotina: no currículo, no

planejamento, na avaliação e na formação continuada dos

profissionais da educação, trazendo desafios para cada um destes

segmentos.

a) O currículo

O currículo15 (do latim Scurrere, correr) se relaciona ao percurso

que educador e educandos devem percorrer em um determinado

15 Por currículo neste texto temos como definição o pensamento de SACRISTÁN

(1998, p. 15): ‚Currículo supõe a concretização dos fins sociais e culturais, de

socialização, que se atribui à educação escolarizada, ou de ajuda ao

desenvolvimento, de estímulo e cenário do mesmo, o reflexo de um modelo

educativo determinado, pelo que necessariamente tem de ser um tema

106

tempo, objetivando atingir determinado grau de formação. Neste

contexto, ‚o currículo est{ centralmente envolvido naquilo que

somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O

currículo produz, o currículo nos produz‛ (SILVA, 1999, p. 27)

durante este percurso.

Se o currículo ‚produz‛ - não somente o educando como

também o educador - é importante refletir sobre a seguinte

questão: quem define o quê e como a escola deve ensinar? Ou seja,

quem define ou deveria definir o currículo?

Pois bem, da mesma maneira que a constituição de um projeto

democrático deve ser elaborado pelos pressupostos da democracia,

com ênfase na qualidade da participação, também o Currículo deve

ser constituído a partir desses parâmetros.

Assim sendo, o currículo não pode ser um simples programa

de ‚ensino‛, nem mesmo uma simples ‚grade curricular‛

engessada, vindo de ambiente externo (através do simples ‚copiar‛

ou adaptar de um modelo). Também não pode ser uma simples

‚lista dos conteúdos‛ para preencher ‚relatório‛ a ser apresentado

à comunidade escolar.

Por expressar diretamente os anseios do Projeto, sua

construção deve ser coerente com aquilo que a sociedade almeja, e

para isso servem como base os PCN’s. Mas, ao mesmo tempo, cada

escola e cada educador deve tomar parte de seu processo,

buscando acrescentar-lhe sua identidade e a identidade da

comunidade escolar, e a isso fica em destaque a Parte Diversificada

do currículo.

Da mesma forma, este currículo não pode estar embasado na

divisão das ações dos educadores. Logo, um currículo em

constituição deve superar parâmetros que apresentem-se

excludentes, fragmentados, utilitaristas - com disciplinas isoladas,

sem articulação ou objetivos definidos - e constituir-se sob

propostas metodológicas que primem pela promoção do diálogo,

controvertido e ideológico, de difícil concretização num modelo ou proposição

simples‛.

107

da cooperação, da interpretação cultural, enfim, da

interdisciplinaridade, almejando constituir uma formação integral,

sem deixar de olhar na amplitude social, mas também sem deixar

de oportunizar a cada educador se expressar e se realizar em sua

prática pedagógica.

Dessa maneira, o currículo, pensado e orientado pelos

princípios e valores educativos, deve ser planejado num processo

democrático com o grupo escolar, definindo as concepções

norteadoras das disciplinas: especificando conceitos e concepções

que serão referência para as ações educativas. Em suma, Santiago

(2001, p.64) esclarece que o plano curricular é:

[...] tecnicamente elaborado para organizar as ações em tempos

definidos, deve ser claro, coerente, objetivo e articulador, conferindo

unidade à proposta e iluminando as práticas. Supera, deste modo, a

concepção de plano como documento elaborado a priori, com

finalidade de direcionar e determinar as ações, para concebê-lo como

registro da intencionalidade pedagógica e das ações que buscam

alcançá-la. Será um documento que se constitui na processualidade

das práticas, indicando rumos e analisando resultados através de

avaliações sistemáticas vistas, também, como elemento mediador

entre os propósitos assumidos e a tomada de decisões.

Portanto, esse documento mostra-se um instrumento de

compreensão do mundo, de transformação social e de cunho

político-pedagógico. É resultado de um processo de construção

permanente, interdisciplinar e contextualizado, fruto da ação

individual e coletiva dos sujeitos. (VEIGA, 2004, p. 64).

b) O planejamento

Se construir um bom projeto e pensar o currículo - através de

um processo democrático com participação ativa-, são

fundamentos indispensáveis à constituição de uma boa prática

pedagógica, também se faz necessário compreender que prática

não acontece por conta própria. Assim, a concretização do Projeto

108

exige em seu processo a clareza do que se quer fazer e por quê. As

concepções inerentes ao documento necessitam revelar-se e fazer-

se presentes na ação pedagógica, o que, por sua vez, exige a

elaboração de um bom planejamento.

Porque planejar mesmo com a construção do Projeto da escola

e do currículo? A palavra latina planus (achatado) possibilita pensar

na ideia de tornar algo ‚plano‛ e, quando se est{ em um ambiente

geograficamente plano é possível ver a uma distância maior. O que

não seria diferente em relação ao ‚plano‛ das pr{ticas pedagógicas.

O ato de planejar possibilita um olhar antecipado aos

problemas que a prática do projeto pode trazer ao educador.

Certamente não o impedirá de se equivocar, mas, pode diminuir os

equívocos ou, impedir que alguns equívocos se repitam. Também o

ato de planejar possibilita maior unidade entre o trabalho dos

docentes, permitindo-os dialogar sobre suas práticas e ampliando o

espaço interdisciplinar. Do mesmo modo seria possível afirmar que

o planejamento da prática educativa permite melhor articulação

entre Projeto da escola e o trabalho cotidiano do educador, além de

proporcionar maior tempo de preparação e diminuir a

improvisação.

Dado sua importância, é possível afirmar que seria um tanto

contraditório, a qualquer educador que busque a excelência em sua

prática pedagógica, não construir um planejamento. Mas o que

seria importante para a construção deste projeto? Para Benincá

(1994, p.18-19), alguns elementos são fundamentais para

compreender e considerar:

a) Os indivíduos que compõem o processo escolar sejam

compreendidos e assumidos a partir do seu contexto sócio-

histórico e de suas práticas sociais;

b) As relações entre os indivíduos se construam no confronto

dialógico, ou seja, entre sujeito-sujeito; c) O processo escolar

seja coordenado por uma proposta construída

participativamente; d) O poder seja operado pelos sujeitos, a

partir dos princípios e objetivos acordados entre si na proposta,

sempre considerando os limites de suas possibilidades e

109

condições; e) Em toda ação pedagógica, o sujeito da ação, seja

simultaneamente, agente e paciente da própria ação; f) A

prática pedagógica dos sujeitos do processo seja fonte

permanente de reflexão e teorização e, ao mesmo tempo, seja

compreendida à luz da teoria social do materialismo histórico;

g) Os diversos sujeitos que interagem no processo escolar

constituam o sujeito-pedagógico da escola.

Diante do exposto é importante perceber que planejar não é

somente olhar para frente, mas sim, um constante ver e rever o

projeto. Poderíamos definir isso em ao menos nove pontos, os

quais não cabem aqui descrevê-los, mas, ao menos citá-los: Projeto

e currículo da escola; descrição dos educandos e sua realidade

psicossocial; metodologias de trabalho; cronograma; local de

desenvolvimento do planejamento; materiais e recursos a utilizar;

avaliação do processo e as particularidades do próprio educador

com suas experiências; com tempo e; material adequado a este.

É claro que este processo desafia o educador a um

autoconhecimento prévio, segundo o qual, o mesmo tenha definido

as tendências pedagógicas que segue e quais se encaixam melhor

no planejamento, no projeto da escola e da turma a qual será

desenvolvido o planejamento; da mesma forma suas concepções

pedagógicas, os métodos mais apropriados a seu modo de agir e a

sua didática. O que não significa que este planejamento deva

limitar-se as ações preliminares do planejamento, mas sim, que

possibilite ao educador perceber quais são suas potencialidades e

lacunas, permitindo-o tornar-se um educador melhor a cada dia a

partir de uma relação de práxis contínua.

Desse modo, vivenciar o planejamento através da concepção

do Projeto, significa assumir uma proposta com princípios e

valores pertencentes à dinâmica curricular, conteúdos de ensino,

metodologias e práticas que possibilitem à aprendizagem a

vivência da vida cotidiana, para o qual o conhecimento deve

retornar, mediado pelas experiências sociais.

110

c) A avaliação

Avaliar torna-se, frequentemente, uma preocupação para

muitos educadores. E com razão: muito tempo do planejamento e

da execução do Projeto da escola é utilizado nas avaliações. Por

isso, para compreendermos sua relevância, mostra-se fundamental

saber qual a função da avaliação na proposta curricular, qual o

papel do docente nessa atividade e em que momentos da prática

pedagógica ela se apresenta mais importante.

Afinal, a avaliação incide sobre: as interações do grupo de

educandos, as relações entre os educadores e os educandos, a

disciplina em sala de aula, as expectativas que os educadores

colocam sobre os educandos e, principalmente, sobre a valorização

ou desvalorização dos educandos na sociedade.

É importante perceber que avaliar tem a ver com olhar que o

educador coloca sobre os educandos, e nesse sentido, pode ser

tanto uma tomada de consciência sobre a evolução dos educandos,

pensando com um diagnóstico sobre o processo de ensino-

aprendizagem, ou um mero sistema de comprovação de eficácia,

aderindo a um sistema meramente quantitativo e excludente.

Neste sentido, se não refletirmos sobre o ‚quê‛ e ‚por que‛

avaliamos, somente estaremos dando resposta a determinados

condicionamentos do ensino institucionalizado, e então, pode-se

dizer que há, pelo menos, duas grandes preocupações em relação à

avaliação.

A primeira delas diz respeito ao desleixo do educador sobre a

importância da mesma. Quando a avaliação não é pensada como

um instrumento de ensino-aprendizagem, somente reproduz a

sociedade capitalista que classifica e descrimina através da simples

avaliação de eficácia, tornando-se uma forma de regulação na

educação, uma simples atribuição de valor - tendo como função

classificar, fortalecendo a competição e a desigualdade.

Um erro crucial deste modo ‚desleixado‛ de pensar a avaliação

é imaginar que a mesma deva ser padrão para todos os educandos.

111

Ora, em uma sociedade capitalista desigual, pensar em uma

avaliação padrão é alimentar a desigualdade.

A segunda preocupação é sobre a tentação de utilizar a

avaliação como forma de dominação na relação ‚professor-aluno‛.

Ou seja, o educador, utiliza a avaliação como uma maneira de

‚autoritarismo‛, que, normalmente, decorre do processo de ensino-

aprendizagem, transformando-se em um processo de

‚arquivamento de saberes‛ sem uma preocupação em

compreendê-lo. A crise de autoridade que se instala, tanto na

escola como também na sociedade16, em muitos casos, leva o

professor a ‚apelar‛ para a avaliação como um instrumento de

controle e autoritarismo, o que descarta todo e qualquer projeto

bem elaborado.

Dessa forma, almejar um Projeto Pedagógico apoiado em

princípios e valores, não quantitativos, mas sim qualitativos, que

constituam um indivíduo integralmente formado e crítico, passa,

determinantemente, por um olhar diferenciado sobre a avaliação.

Essa deve ser um processo de prognóstico e diagnóstico, que

ajude o educando e o educador a se aperfeiçoar. Com isso, a

avaliação não pode ser nem testagem, nem medida, nem mesmo

rotulação. Como diria o grande poeta Mário Quintana: "O que mata

um jardim não é o abandono. O que mata um jardim é esse olhar

de quem por ele passa indiferente".

Que avaliação se precisa então? No mínimo, que seja ‚capaz de

acompanhar o processo de construção do conhecimento do

educando, para ajudá-lo a superar obst{culos‛ (VASCONCELOS,

1998), sendo um instrumento auxiliar da aprendizagem e não um

simples instrumento de aprovação ou reprovação, que seja um

processo de percepção das necessidades, visando uma intervenção

na aprendizagem para aproximar os educandos dos objetivos

propostos. Deve ser integrada, holística e contínua.

De acordo com Méndez:

16 Como menciona Renaut (2004).

112

Necessitamos avaliar porque queremos conhecer quem ensina e

quem aprende, porque necessitamos melhorar a partir do

conhecimento proporcionado pela educação, porque é parte da

aprendizagem e ela mesma é a aprendizagem e, portanto, quem

aprende necessita reforçar sua aprendizagem com a tomada de

consciência sobre seu próprio progresso. E a avaliação desempenha

esse papel na sua função formativa. Não se constrói conhecimento

sem avaliá-lo. (2013, p. 300-301)

Nesse pensamento, o papel do docente torna-se imprescindível

por ser o formador, agente no processo de ensinar, que atua com

autonomia e responsabilidade em sala de aula, interpretando e

valorizando o saber adquirido ou aprimorado, e conforme Méndez

a ‚função do professor é assegurar que o aluno receba o apoio, o

estímulo e a orientação adequada de tal modo que esteja preparado

para novas aprendizagens‛. (2013, 306-307)

Com isso, avaliação e projeto deve estar ancorados no mesmo

pressuposto democrático, onde o objetivo final é fazer com que

toda a comunidade escolar evolua e qualifique seu ser, para

qualificar a participação na sociedade. Por isso, a avaliação deve

estar ancorada em boas teorias - que sustentem os métodos de

avaliação dos educadores - e ser na prática democrática, igualitária

(não igual) e construtiva.

d) A formação continuada

A escola como ambiente educacional enfrenta desafios

permanentes: atender as novas demandas da sociedade, as

exigências legais e da comunidade a que pertence – tentando

englobar todas estas demandas em seu Projeto Político Pedagógico.

Tal requisição exige da escola, em especial aos professores, que

busquem formar-se continuamente para que seus conhecimentos

sejam aperfeiçoados juntamente com sua experiência pedagógica.

Na vivência do projeto político-pedagógico, os envolvidos

nesse processo também precisam assumir um papel de formação

continuada. Ao longo dos estudos e discussões sobre sua própria

113

prática, cada docente contribui para a legitimidade do projeto

político-pedagógico tornando a ação pedagógica uma vivência de

discussão na escola. É, portanto, na práxis que a atitude de pensar

sobre o agir valida as próprias concepções do Projeto Político

Pedagógico.

No olhar de Benincá, a observação sobre a prática é

‚intencionada, ou seja, seleciona tema e objeto para observar, os

dados observados são registrados, ordenados, relacionados,

sistematizados e interpretados‛ (1998, p.133). Logo, por meio da

observação o docente abandona a posição de observado, como no

caso de pesquisas acadêmicas e, passa a ser o próprio pesquisador

de sua prática pedagógica.

Considerando esse elemento, entendemos que a formação

continuada dos profissionais da educação é caracterizada como um

processo de investigação-ação do projeto político-pedagógico, pois

necessita levar em consideração o contexto histórico-cultural da

escola, as inquietações e manifestações do grupo, o debate sobre as

experiências pedagógicas e a constante reflexão, análise e crítica

dos próprios envolvidos na construção e existência do projeto.

Nesse sentido, Santiago salienta a importância dos

profissionais da educação e seus desafios constantes como agentes

históricos e de responsabilidade social dentro da escola:

[...] precisam manter-se constantemente atualizados, não somente

assimilando inovações teórico-metodológicas sugeridas por teorias

produzidas em contextos estranhos à sua prática, mas sobretudo

fazendo-se, eles mesmos, pesquisadores, estudiosos e produtores de

conhecimentos na reflexão permanente e coletiva sobre as ações

educativas e o desenvolvimento curricular. (2004, p.150)

É o desafio de colocar o Projeto Político Pedagógico em

constante reavaliação. Se a sociedade muda a todo o momento

rever o projeto é importante para que o mesmo não fique

descontextualizado. Assim, a formação continuada precisa estar

ligada ao processo de revisitação de conceitos, análise da sociedade

e das práticas pedagógicas em um processo contínuo coletivamente

114

e individualmente. Também é importante que toda comunidade

escolar seja envolvida em contínuos processos de formação, para

que contribua na atualização dos conceitos e no aperfeiçoamento

contínuo do projeto.

Considerações finais

A partir de tudo o que refletimos, coloca-se a pergunta: o que é

mais importante no Projeto Político Pedagógico, teoria ou prática?

O presente texto não procurou trazer consenso, ou opiniões diretas

sobre este tema. Em verdade, a partir do exposto, buscou-se

demonstrar como no cotidiano escolar, através do Projeto Político

Pedagógico, muitos desafios se colocam para além das práticas, ao

mesmo tempo, em que dependem destas para se concretizar e se

atualizar.

Inicialmente apresentamos o desafio de conhecer o significado

e importância do projeto, algo que suscita uma teoria

esclarecedora, avivadora. Também, apontou-se que tal teoria

somente se valida através constituição democrática do projeto, que

por sua vez exige, ao menos, um processo de participação ativa,

com construção e reconstrução coletiva e contínua de conceitos e,

tomadas de decisão consonantes com o projeto.

Da mesma maneira, os desafios sobre a prática escolar se dão

para além da ‚simples pr{tica‛. Currículo, planejamento, avaliação

e formação continuada, são alguns dos desafios que, assim como na

constituição do projeto, necessitam uma práxis contínua,

alimentada por uma teoria que permita a comunidade escolar

contemplar seus fazeres e práticas e se reinventar a cada novo

desafio.

Certo, frente a tudo isso, é que o processo de formação se faz e

se refaz no decorrer da ação pedagógica e, que toda prática

pedagógica é amparada por uma teoria, por mais inconsciente que

ela seja. O perigo está em crer que é possível formar com o máximo

de excelência, sem um aparato teórico consistente, ou, também, que

115

somente um aparato teórico pode dar experiência para os desafios

cotidianos das escolas.

Por isso, parece que o desafio está em fortalecer nas escolas um

processo democrático, onde toda comunidade escolar,

coletivamente, alimente-se de boas teorias para constituir na

prática os ideais necessários para a transformação. Às

universidades, cabe o desafio de equilibrar uma formação teórica e

prática, formando educadores capazes de tornarem-se, nas escolas,

pilares para esta constituição democrática do projeto.

Referências

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político-pedagógico: novos desafios para a escola. 3. ed. Campinas:

Papirus, 2004.

117

Gestão na Universidade:

uma Questão também Ambiental

Celeste Dias Amorim1

Milton Ferreira de Silva Júnior2

Luiz Artur dos Santos Cestari3

O movimento ambientalista surge como uma nova

racionalidade que engloba e inclui o sujeito historicamente

constituído na cultura e na sociedade. Assim, na constituição

histórica desse movimento,

Além da crise ecológica, o ambientalismo pôs a nu a crise

sociocultural e a complexidade que implica uma verdadeira

transformação em busca da emancipação e da sustentabilidade

global. A partir da constatação da degradação crescente e dos riscos

gerados pela sociedade industrial, o movimento ambientalista passou

a questionar outras determinantes da crise ambiental, tais como a

distribuição do poder e da riqueza e a implicação desse fator no

equilíbrio ecológico do planeta. Ampliação e aprofundando do

movimento ambientalista permitindo desvelar o componente

ideológico da distribuição desigual de riscos socioambientais

(SEGURA, 2001, p. 38).

1 Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo PRODEMA/UESC.

Professora da Faculdade Pitágoras, unidade Vitória da Conquista. Membro do

Grupo de Pesquisa CIPED/UESB. 2 Doutor em Educação pela UFBA. Docente do Instituto de Humanidades, Artes e

Ciências Jorge Amado da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Docente

do Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento (PRODEMA/UESC) -

Mestrado e Doutorado. Vice Líder Grupo de Pesq. Tecnologias Limpas (TECLIM)

- Parceria UFSB-UFBA/PEI - PG Eng. Industrial. 3 Doutor em Educação pela UFPE. Professor Titular da UESB. Docente dos

Programas de Pós-Graduação: PPGEd/UESB e o PPGCA/UESB. Líder do Grupo

de Pesquisas sobre a Circulação de Ideias Pedagógicas no Pensamento Pedagógico

Brasileiro Recente (CIPED/UESB).

118

Esse movimento, nesse caso, traz ao ser humano um

questionamento sobre como ele é influenciado pelo modo de vida

moderno, ou seja, ele passa de uma contestação ecológica da

década de 1960, que deu visibilidade às questões ecológicas, para o

afloramento das questões socioambientais na atualidade, que passa

cultivação de valores, ou seja, ‚trata-se de um pensamento social

que implica a construção de sentidos coletivos e de identidades

compartilhadas no âmbito de uma complexidade marcada pela

redefinição de sentidos e valores‛ (BARROS, 2013, p. 63).

Essas questões tornam-se, também, espaços discursivos nas

universidades; o movimento ambientalista, em um resgate

histórico, adentra a universidade americana a partir da década de

1970. E, na década de 1980, é que esse discurso começa a permear

as universidades da Europa, do Canadá e da América Latina. No

Brasil, esse discurso começa muito timidamente em 1986, 1987 e

1988 por meio da realização dos ‚Semin{rios Nacional sobre

Universidade e Meio Ambiente‛, que ocorreram respectivamente,

nas cidades de Brasília, Belém e Cuiabá, no intuito de trazer uma

reflexão aos pesquisadores brasileiros sobre a temática emergente,

que é a questão ambiental.

A partir da década de 1990, algumas universidades brasileiras4,

fomentando a prática discursiva voltada à questão ambiental

4 Universidade de Caxias do Sul, Universidade Estadual de Feira de Santana,

Universidade Federal de São Carlos, Universidade Federal de Viçosa, Universidade

Federal de Santa Catarina, Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto Federal de

Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade do Vale

do Rio dos Sinos, Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, Universidade

Regional de Blumenau, Departamento de Química/Universidade Federal do Paraná,

USP: IQS; IQSC; CENA, Universidade de Campinas, Instituto de Química da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Química / Universidade Católica

de Brasília, Universidade Regional de Blumenau, Universidade Regional Integrada do

Alto Uruguai e das Missões, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Centro

Universitário Univates, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado de São

Paulo (UNESP), Sorocaba, Universidade Federal do Rio Grande do Sul , Universidade de

Horizontina, Universidade de São Paulo, UTFPR, Universidade do estado da Bahia

(UNEB), Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus de São Gabriel/RS,

Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto Federal do Sudoeste de Minas

119

(Quadro 1), numa ação de manutenção do campus universitário

vivo e integrando instituição/sociedade, instituem um programa de

gestão ou gerenciamento de resíduos sólidos ou um Sistema de

Gestão Ambiental, em que a instituição não só apresenta um

discurso, mas também, uma prática, pois as Instituições de Ensino

Superior (IES’) geram impactos ambientais e devem combatê-los.

Quadro 1 - Práticas de Gestão Ambiental em Universidades Acompanhamento e análise da questão de sustentabilidade ambiental

Auditoria ambiental para indicar melhorias

Coleta Seletiva

Coleta Seletiva de papel

Construções e reformas na instituição seguindo padrões de sustentabilidade

Controle de consumo de energia

Controle de consumo e reuso de água

Controle de efluentes

Controle de resíduos

Critérios ambientais para fornecedores de materiais de consumo

Cursos de formação de gestores ambientais

Departamento/área para Gestão Ambiental

Desenvolvimento de projetos de pesquisa sobre sustentabilidade ambiental

Diagnóstico dos impactos significativos para o ambiente

Disponibilização de alimentação orgânica

Disseminação dos projetos ambientais desenvolvidos dentro da instituição

Espaços verdes – controle da vegetação

Gerenciamento de Resíduos Sólidos

Gerenciamento de Resíduos Sólidos do tipo Urbano

Gerenciamento de resíduos sólidos iniciado com resíduos de papel

Gerenciamento Diferenciado de Resíduos Sólidos

Gerenciamento iniciado com reciclagem de papel

Sistema de Gestão de Resíduos Sólidos

Gestão e ao Gerenciamento Compartilhado de Resíduos Sólidos (denominado de

‘USP Recicla’)

Guia de boas práticas de ações ambientais/ sustentáveis

Inclusão no currículo de conteúdos sobre sustentabilidade ambiental

Organização de eventos sobre a questão ambiental

Gerais (IF – Sudoeste MG), Campus Barbacena, Universidade Federal da Paraíba (UFPB),

Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Campus Francisco Beltrão,

Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal Rural do Semi Árido (UFRRSA),

Campus Mossoró/RN (PEREIRA, 2012).

120

Parceria com outras Universidades para desenvolver a questão ambiental

Plano de Gestão de Resíduos Sólidos – 3Rs

Política de Gerenciamento de resíduos

Políticas de Gestão Ambiental

Preparação de um Plano de Gestão de Resíduos Sólidos após a aprovação da

PNRS

Programa de Gerenciamento de Resíduos Químicos

Programas de conscientização ambiental voltado à população

Programas de conscientização ambiental voltado aos alunos

Programas de seleção do lixo

Projeto Resíduos

Racionalização do uso de combustíveis

Recicla UNEB

Recicla UESB

Sistema de Gerenciamento de RS

Sistema de Gestão Ambiental

Soluções baseadas no padrão ISO 14001

Treinamento e sensibilização da equipe de funcionários

Uso de combustíveis alternativos

Utilização de indicadores ambientais

Utilização de material reciclado (papel)

Fonte: Engelman, Guisso e Fracasso (2009) e Pereira (2012)

As IES’ poderão, na operacionalização da sua pr{tica

discursiva, constituir um modelo a ser seguido, porque, segundo

Careto e Vendeirinho (2003), muitas vezes, o fluxo (energia;

consumo de água; geração de resíduos sólidos, químicos e

orgânicos; emissão de gases, entre outros) que ocorre em um

campus universitário é similar ao de uma cidade de tamanho médio

(Figura 1).

121

Figura 1 - Fluxos de um campus universitário

Fonte: Careto e Vendeirinho (2003)

Lembrando que, no Brasil, a política pública voltada combater

à agressão (atividades lesivas) ao meio ambiente dá-se pela Lei nº

9.605, de 12 de fevereiro de 1998. No entanto, a Política Nacional de

Resíduos Sólidos (PNRS) só foi instituída em 2 de agosto de 2010

com a aprovação da Lei nº 12.305, a qual dá ordenamento na forma

de lida com os resíduos gerados e exige dos setores públicos e

privados, nesse caso, das universidades, uma transparência no

gerenciamento de seus resíduos.

Art. 1o Esta Lei institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos,

dispondo sobre seus princípios, objetivos e instrumentos, bem como

sobre as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de

resíduos sólidos, incluídos os perigosos, às responsabilidades dos

geradores e do poder público e aos instrumentos econômicos

aplicáveis.

§ 1o Estão sujeitas à observância desta Lei as pessoas físicas ou

jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou

indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e as que

desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao

gerenciamento de resíduos sólidos. [...]

Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: [...]

IX - geradores de resíduos sólidos: pessoas físicas ou jurídicas, de

direito público ou privado, que geram resíduos sólidos por meio de

suas atividades, nelas incluído o consumo.

122

Art. 8o São instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos,

entre outros:

I - os planos de resíduos sólidos;

II - os inventários e o sistema declaratório anual de resíduos sólidos;

III - a coleta seletiva, os sistemas de logística reversa e outras

ferramentas relacionadas à implementação da responsabilidade

compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos;

IV - o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de

outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e

recicláveis; [...]

VI - a cooperação técnica e financeira entre os setores público e

privado para o desenvolvimento de pesquisas de novos produtos,

métodos, processos e tecnologias de gestão, reciclagem, reutilização,

tratamento de resíduos e disposição final ambientalmente adequada

de rejeitos;

VII - a pesquisa científica e tecnológica;

VIII - a educação ambiental. (BRASIL, 2010, s.p., grifo nosso).

Continuando o traço do resgate histórico que permeia a

trajetória da questão ambiental no âmbito da universidade, em

1999, foi aprovada a Lei nº 9.795, que institui a Política Nacional de

Educação Ambiental. Essa lei traz institucionalizada a participação

de todos os níveis de educação para trabalhar com a Educação

Ambiental, mas não traz uma obrigatoriedade, apenas um

indicativo de que deve ocorrer essa atuação. Em 2001, o movimento

ambientalista universitário ganha força com a formação da Rede

Universitária de Programas de Educação Ambiental (RUPEA). Em

2004, o governo promove um Seminário de Formação do

‚Programa Vamos Cuidar do Brasil com as Escolas‛. Esse

seminário é realizado com os reitores das universidades brasileiras

para que tomem uma posição e que as universidades atuem na

educação básica com a temática ambiental. Como resultado, é

publicada uma carta, em que as universidades comprometem-se a

trabalhar e ajudar dentro do processo na educação básica com a

educação ambiental. Em 2012, têm-se as Diretrizes Nacionais para a

Educação Ambiental (resolução CNE 02/2012), que vêm trazer uma

obrigatoriedade dessa Lei nº 9.795/1999, observando que há um

123

tempo muito grande até que ela seja operacionalizada (mais de

uma década). Em 2015, as Diretrizes Nacionais para os Cursos de

Licenciatura apresentam a questão ambiental como um dos pontos

a serem observados na reestruturação ou elaboração dos cursos de

licenciatura.

Desse modo, sendo a orientação e organização social um dos

objetivos da universidade, poderá utilizar-se do discurso da

racionalidade ambiental para auxiliar nessa tarefa, pois, de acordo

com Leff:

A problemática ambiental não é ideologicamente neutra nem é alheia

a interesses econômicos e sociais. Sua gênese dá-se num processo

histórico dominado pela expansão do modo de produção capitalista,

pelos padrões tecnológicos gerados por uma racionalidade

econômica a curto prazo, numa ordem econômica mundial marcada

pela desigualdade entre nações e classes sociais. Este processo gerou,

assim, efeitos econômicos, ecológicos e culturais desiguais sobre

diferentes regiões, populações, classes e grupos sociais, bem como

perspectivas diferenciadas de análises (LEFF, 2006, p. 62, grifo nosso).

A preocupação com os problemas ambientais é uma

preocupação social e ambiental (socioambiental), que, segundo

Grün (2005), deve ser tomada como uma preocupação educacional,

e, com isso, a Educação Ambiental seja vista como uma questão

primordial para o enfrentamento de tais problemas. Essa ocorre

pela aproximação da questão ambiental com o campo5 educacional.

A palavra educação sugere uma troca de saberes em uma relação do

indivíduo com o mundo que o cerca e com outros indivíduos que

5 Campo entendido a partir de Bourdieu (1997, p. 57) como ‚um espaço social

estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações

constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse

espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse

campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua

concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição

no campo e, em consequência, suas estratégias‛.

124

compõem a sua realidade, que compõem a trama da sua teia social. A

palavra ambiental tempera essa relação inserindo a percepção sobre a

natureza e a forma como os seres humanos integram entre si e com

ela, isto é, como se conectam com tudo que diz respeito a sua relação

com o habitat com o planeta, com a vida (TANAJURA, 2015, p. 68).

Entende-se aqui que a questão ambiental deve permear o

discurso da/na universidade, para que possa desempenhar o seu

papel de formar profissionais ou sujeitos do enunciado ou

ecocidadãos conscientes da sua subjetividade, que estabelecem

uma nova relação consigo e com a sociedade e vice-versa e que

sejam capazes de refletir/substituir o estilo de vida unidimensional

proposto pela razão instrumental.

Isso significa que a universidade pode buscar, nesse momento

de crise, uma possível alternativa entre muitas variáveis, para que

seja oferecida uma formação apropriada aos futuros profissionais,

preparando-os para os desafios, através de enfoques compatíveis

com as necessidades atuais de formação, e que o discente,

passando a profissional (enunciado do sujeito), possa levá-la ao

longo da vida, compondo, assim, um quadro de educação

permanente. Portanto, faz-se necessário mostrar alguns

movimentos ambientais, tal como veremos a seguir no contexto da

Ambientalização, da Educação Ambiental e do Desenvolvimento

Sustentável.

A ambientalização universitária

O termo ambientalização encontra respaldo inicialmente nos

trabalhos do sociólogo ambiental Frederick Howard Buttel, em

1992, com o artigo ‚Environmentalization: origins, processes and

implications for rural social change‛, e pelo antropólogo José

Sérgio Leite Lopes, professor titular do Museu Nacional da

Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), em produções

científicas a partir de 1999; é fruto do resultado da pesquisa

‚Envolvimento público no controle da poluição industrial no Brasil

125

e na Argentina‛, realizada a partir de dezembro de 1995; em 2004,

todos os artigos foram compilados em um livro intitulado “A

ambientalização dos conflitos sociais: participação e controle

público da poluição industrial‛ (LEITE LOPES et al., 2004).

Segundo Leite Lopes et al. (2004, p. 17) e Leite Lopes (2006, p.

34), ‚o termo ‘ambientalização’ é um neologismo semelhante a

alguns outros usados nas ciências sociais para designar novos

fenômenos ou novas percepções de fenômenos vistos da

perspectiva de um processo‛. O autor aponta ainda que o sufixo

(ização) comum aos neologismos, tais como industrialização,

proletarização, desindustrialização, subproletarização, curialização,

esportivização, entre outros, indica ‚um processo histórico de

construção de novos fenômenos, associado a um processo de

interiorização pelas pessoas e pelos grupos sociais‛. Nesse caso, a

ambientalização ocorre pela interiorização dos diferentes aspectos

da questão pública em relação ao meio ambiente, o que leva ao

refinamento e progressão do termo, pautado nas mudanças dos

costumes que, por algumas razões, evoluíram. No caso da questão

ambiental, uma dessas evoluções acontece por meio da

institucionalização do tema, que traz uma demanda social a ser

cumprida pelos sujeitos e instituições.

Para Carvalho e Borges (2010, p. 52), a ambientalização é

[...] o processo de internalização da questão ambiental nas esferas

sociais e na formação moral e dos indivíduos. Este processo tem sido

identificado tanto na emergência de questões e práticas ambientais

como um fenômeno novo quanto à reconfiguração de práticas e lutas

tradicionais que se transformam ao incorporar aspectos ambientais.

J{ Acselrad (2010, p. 103) entende que a ambientalização ‚*...+

pode designar tanto o processo de adoção de um discurso

ambiental genérico por parte dos diferentes grupos sociais como a

incorporação concreta de justificativas ambientais para legitimar

pr{ticas institucionais, políticas, científicas etc.‛.

126

Leite Lopes (2006) aponta que ‚o processo histórico de

ambientalização‛ provoca transformações no Estado e na vida

cotidiana (comportamento) das pessoas. O autor lembra que o

avanço da tem{tica ambiental também pode decorrer ‚conflitos,

contradições, limitações internas, assim como por reações,

recuperações e restaurações [...] relacionadas à construção de uma

nova questão social, uma nova questão pública‛ (LEITE LOPES,

2006, p. 32).

O autor aponta o ambientalismo como um meio que poderá

levar a transformações; para tanto, ele indica cinco fatores que

influenciam nessa transformação, são eles: o crescimento da

importância da esfera institucional do meio ambiente entre os anos

1970 e o final do século XX; os conflitos sociais ao nível local e seus

efeitos na interiorização de novas práticas; a Educação Ambiental

como novo código de conduta individual e coletiva; a questão da

participação; e a questão ambiental como nova fonte de

legitimidade e de argumentação nos conflitos (LEITE LOPES, 2006,

p. 36).

No fator da EA como novo código de conduta individual e

coletiva, Leite Lopes (2006, p. 45, grifo nosso) indica que ‚a

ambientalização como processo de interiorização de

comportamentos e práticas se dá através da promoção da

‘Educação Ambiental’‛. Para ele, a EA fornece códigos de

comportamentos adequados a serem empregados no dia a dia,

como também fornece outras ‚informações sobre o mundo natural,

as cadeias ecológicas, e sobre as ameaças à natureza, à paisagem, à

saúde humana e à qualidade de vida urbana, há uma ênfase numa

normatização de condutas na vida cotidiana‛.

Acselrad 2010, p. 103) aponta que a ambientalização em ‚sua

pertinência teórica ganha, porém, força particular na possibilidade

de caracterizar processos de ambientalização específicos a

determinados lugares, contextos e momentos históricos‛.

Nas universidades, a existência de ‚feudos do conhecimento‛,

que apresentam ainda uma visão positivista do mundo, estabelece

umazona de conflito, como também elas apresentam ‚uma visão

127

fragmentada e dispersa nos mais diferentes componentes

curriculares – sem que haja comunicação entre eles‛

(BUONAVOGLIA, 2015, p. 2).

Para formar um professor é preciso conhecer a educação básica no

seu contexto, na sua realidade – donos de feudos do conhecimento –

a dificuldade de alteridade no currículo por conta dos donos dos

feudos. Como incluir, por exemplo, o meio ambiente – não há

articulação para formar o professor nesta interdisciplinaridade com

as dificuldades impostas pelos feudos (SP).

Sujeitos que se acham os únicos capazes de trabalhar com o tema, e

com isso dificultam o trabalho interdisciplinar (SP).

Nesse caso, visando à ambientalização universitária, a autora

pondera que:

O processo de ambientalização universitária exige repensar a

Universidade como um sistema integrado, de modo a produzir

sinergia entre os diferentes conhecimentos nela produzidos. Para que

desta forma seja possível transpor técnica e operacionalmente os

desafios da inserção transversal da questão ambiental no meio

acadêmico, rompendo as barreiras disciplinares e, assim, propiciar o

desenvolvimento do Ensino Superior. [...]

A edificação de tais valores e conhecimentos, no âmbito universitário,

depende da capacidade da Universidade de reunir, em torno da

questão ambiental, os mais diversos tipos de saberes de forma multi e

interdisciplinar (BUONAVOGLIA, 2015, p. 4).

Assim, com a ambientalização, a universidade pode ser um

espaço sensível à emergência de novos paradigmas para auxiliar no

enfrentamento da crise socioambiental, estimulando e envolvendo

os diferentes atores e/ou actantes na implementação de

componentes que favoreçam a formação do sujeito ecológico.

128

O discurso da Educação Ambiental

A Educação Ambiental surge por meio da preocupação com a

qualidade de vida da presente e de futuras gerações, sendo

inicialmente concebida como prática de conscientização, mas vai se

transformando como meta educativa, ganhando assim espaço de

diálogo no campo educacional (CARVALHO, 2008).

Segundo o site (www.mma.gov.br) do Ministério do Meio

Ambiente (MMA), no Brasil, a EA é institucionalizada a partir da

década de 1980, com a Lei 6.902, de 27 de abril de 1981, que, entre

outras atribuições, cria as Estações Ecológicas com foco na pesquisa

e na Educação Ambiental. Em 1986, ocorre a criação do primeiro

Curso de Especialização em EA, que acontece no período de 1986 a

1988, oferecido pela parceria entre a Secretaria Estadual de Meio

Ambiente (SEMA) e a Universidade Nacional de Brasília (UnB). Em

1987, o Ministério da Educação (MEC) aprova o Parecer nº 226, que

delibera sobre a necessidade de inclusão da EA nos currículos

escolares de 1o e 2o graus. Em 1988, a questão ambiental é inserida

na Constituição Federal por meio do Art. 225, Capítulo VI - Do

Meio Ambiente, Inciso VI, que determina ao Poder Público a

promoção (não implementação) da EA em todos os níveis de

ensino: ‚promover a Educação Ambiental em todos os níveis de

ensino e a conscientização pública para a preservação do meio

ambiente‛ (BRASIL, 1988, s.p.).

A Educação Ambiental começa a fazer parte da agenda do

então Ministério da Educação e Cultura (MEC) com a Portaria 678,

de 14 de maio de 1991, que determina a inserção no campo

educacional do conteúdo da EA em todos os currículos nos

diversos níveis de ensino. Em 1993, o MEC cria os Centros de

Educação Ambiental com a finalidade de criar e difundir

metodologias em EA. Em 1994, é aprovado o Programa Nacional

de Educação Ambiental (ProNEA) - reformulado em 2004, e, em

1996, a criação dos Par}metros Curriculares Nacional (PCN’s), que

determinam a inserção da EA como eixo transversal da educação

fundamental e básica. Também em 1996, ocorre a criação da

129

Câmara Técnica de Educação Ambiental do Conselho Nacional de

Meio Ambiente (CONAMA); execução de cursos de Capacitação

em Educação Ambiental para os técnicos das SEDUC’s e DEMEC’s

nos Estados, em convênio com a Organização das Nações Unidas

para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o MEC, com a

finalidade de orientar a implantação dos Parâmetros Curriculares.

Também nesse ano foi criada a Comissão Interministerial de

Educação Ambiental no Ministério de Meio Ambiente (MMA). Em

1997, o MMA cria a Comissão de Educação Ambiental. Ocorrem

nesse ano cursos de EA organizados pela Coordenação de

Educação Ambiental (COEA) do MEC, para as escolas Técnicas e

Segunda etapa de capacitação das SEDUC’s e DEMEC’s do

convênio UNESCO/MEC. Nesse ano, o MEC promove em Brasília a

primeira teleconferência nacional de EA. Em 1999, o Gabinete do

Ministro de MMA cria a Diretoria de Educação Ambiental; a

COEA/MEC passa a formar parte da Secretária de Ensino

Fundamental; e é aprovada a Lei 9.795, de 27 de abril de 1999, que

institui a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) e

estabelece no Art. 2º e na Seção II a sua obrigatoriedade em todos

os níveis do ensino formal.

Art. 2º - A educação ambiental é um componente essencial e

permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma

articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo,

em caráter formal e não-formal.

[...]

SEÇÃO II

Da Educação Ambiental no Ensino Formal

Art. 9o - Entende-se por educação ambiental na educação escolar a

desenvolvida no âmbito dos currículos das instituições de ensino

públicas e privadas, englobando:

I - educação básica:

a) educação infantil;

b) ensino fundamental

c) ensino médio;

II - educação superior;

130

III - educação especial;

IV - educação profissional;

V - educação de jovens e adultos.

Art. 10 - A educação ambiental será desenvolvida como uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os

níveis e modalidades do ensino formal.

§ 1o - A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina

específica no currículo de ensino.

§ 2o - Nos cursos de pós-graduação, extensão e nas áreas voltadas ao

aspecto metodológico da educação ambiental, quando se fizer

necessário, é facultada a criação de disciplina específica.

§ 3o - Nos cursos de formação e especialização técnico-profissional,

em todos os níveis, deve ser incorporado conteúdo que trate da ética

ambiental das atividades profissionais a serem desenvolvidas.

Art. 11 - A dimensão ambiental deve constar dos currículos de

formação de professores, em todos os níveis e em todas as

disciplinas.

Parágrafo único. Os professores em atividade devem receber

formação complementar em suas áreas de atuação, com o propósito

de atender adequadamente ao cumprimento dos princípios e

objetivos da Política Nacional de Educação Ambiental.

Art. 12 - A autorização e supervisão do funcionamento de instituições

de ensino e de seus cursos, nas redes pública e privada, observarão o

cumprimento do disposto nos artigos 10 e 11 desta Lei (BRASIL, 1999,

s.p., grifo nosso).

Dando sequência à institucionalização da EAl no Brasil, em

2000, ocorre em Brasília o Seminário de Educação Ambiental

organizado pela COEA/MEC e curso básico de EA à distância, uma

parceria do MMA e da Universidade Federal de Santa Catarina

(UFSC). Em 2002, é lançado o Sistema Brasileiro de Informação

sobre Educação Ambiental e Práticas Sustentáveis (SIBEA) e é

regulamentada a Lei que institui a Política Nacional de Educação

Ambiental por meio do Decreto nº 4.281, de 25 de junho de 2002

(BRASIL, 2016).

No entanto, nem todas as IES’ inseriram no ensino a EA, uma

realidade que poderá ser modificada pela resolução nº 02 de junho

131

de 2012 do CNE, que Estabelece as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Ambiental, em cujo texto reconhece a

obrigatoriedade da EA.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica em

todas as suas etapas e modalidades reconhecem a relevância e a

obrigatoriedade da Educação Ambiental; [...]

Art. 1º A presente Resolução estabelece as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Ambiental a serem observadas pelos

sistemas de ensino e suas instituições de Educação Básica e de

Educação Superior, orientando a implementação do determinado

pela Constituição Federal e pela Lei nº 9.795, de 1999, a qual dispõe

sobre a Educação Ambiental (EA) e institui a Política Nacional de

Educação Ambiental (PNEA), com os seguintes objetivos:

I - sistematizar os preceitos definidos na citada Lei, bem como os

avanços que ocorreram na área para que contribuam com a formação

humana de sujeitos concretos que vivem em determinado meio

ambiente, contexto histórico e sociocultural, com suas condições

físicas, emocionais, intelectuais, culturais;

II - estimular a reflexão crítica e propositiva da inserção da Educação

Ambiental na formulação, execução e avaliação dos projetos

institucionais e pedagógicos das instituições de ensino, para que a

concepção de Educação Ambiental como integrante do currículo

supere a mera distribuição do tema pelos demais componentes;

III - orientar os cursos de formação de docentes para a Educação

Básica;

IV - orientar os sistemas educativos dos diferentes entes federados.

Art. 2º A Educação Ambiental é uma dimensão da educação, é

atividade intencional da prática social, que deve imprimir ao

desenvolvimento individual um caráter social em sua relação com a

natureza e com os outros seres humanos, visando potencializar essa

atividade humana com a finalidade de torná-la plena de prática social

e de ética ambiental (BRASIL, 2012b, s.p., grifo nosso).

Entretanto, o que se observa na redação das diretrizes é que

ela, embora reconheça a obrigatoriedade, apresenta brechas para a

não inserção curricular da EA. Vejamos:

132

Art. 7º Em conformidade com a Lei nº 9.795, de 1999, reafirma-se que

a Educação Ambiental é componente integrante, essencial e

permanente da Educação Nacional, devendo estar presente, de

forma articulada, nos níveis e modalidades da Educação Básica e da

Educação Superior, para isso devendo as instituições de ensino

promovê-la integradamente nos seus projetos institucionais e

pedagógicos.

Art. 8º A Educação Ambiental, respeitando a autonomia da dinâmica

escolar e acadêmica, deve ser desenvolvida como uma prática

educativa integrada e interdisciplinar, contínua e permanente em

todas as fases, etapas, níveis e modalidades, não devendo, como

regra, ser implantada como disciplina ou componente curricular

específico.

Parágrafo único. Nos cursos, programas e projetos de graduação,

pós-graduação e de extensão, e nas áreas e atividades voltadas para o

aspecto metodológico da Educação Ambiental, é facultada a criação de

componente curricular específico.

Art. 9º Nos cursos de formação inicial e de especialização técnica e

profissional, em todos os níveis e modalidades, deve ser incorporado

conteúdo que trate da ética socioambiental das atividades profissionais.

Art. 10. As instituições de Educação Superior devem promover sua

gestão e suas ações de ensino, pesquisa e extensão orientadas pelos

princípios e objetivos da Educação Ambiental.

Art. 11. A dimensão socioambiental deve constar dos currículos de

formação inicial e continuada dos profissionais da educação,

considerando a consciência e o respeito à diversidade multiétnica e

multicultural do País.

Parágrafo único. Os professores em atividade devem receber

formação complementar em suas áreas de atuação, com o propósito

de atender de forma pertinente ao cumprimento dos princípios e

objetivos da Educação Ambiental (BRASIL, 2012b, s.p., grifo nosso).

No Estado da Bahia, a Política de Educação Ambiental é

instituída pela Lei nº 12.056/2011 e, no município de Vitória da

Conquista, a questão ambiental é vista no Decreto-Lei nº

1.410/2007, que cria o Código do Meio Ambiente.

Essa estruturação (documentos e leis) brasileira, aqui

brevemente relatada, segundo Loureiro (2008, p. 4), leva a EA no

133

Brasil a adquirir peculiaridades, o que faz com que o país seja ‚um

destacado protagonista no cen{rio internacional‛. Em uma

retrospectiva, o autor lembra que, inicialmente, a EA insere-se por

meio de vínculos com ‚conservação dos bens naturais, com forte

sentido comportamentalista e tecnicista, e voltada para o ensino da

ecologia‛ (LOUREIRO, 2008, p. 4), mas, a partir da década de 1980,

ocorre uma aproximação com pedagogias críticas, e a questão

ambiental passa a ser vista ‚como resultado de processos

historicamente situados em formações sociais configuradas‛, em

que ‚não é possível pensar a construção da sustentabilidade sem a

mais radical e profunda mudança do padrão societário e

civilizatório vigente‛ (LOUREIRO, 2008, p. 5); nesse contexto, a EA

torna-se uma ferramenta indispensável na promoção de tais

mudanças, que se inicia por um processo individual6 para o

coletivo, fazendo refletir no sujeito a sua ação histórica, ou seja,

permitindo ao sujeito a sua visualização e/ou, como diz Foucault

(2008, 2009), a sua posição no discurso como ‚sujeito do

enunciado‛, um ‚sujeito enunciante‛, que faz diferenciar sua(s)

experiência(s) no mundo social ou, como propõe Latour (2012), em

suas associações.

[...] transformando o espaço, os meios natural e social, o homem

também é transformado por eles. [...] (no sentido subjetivo). As

transformações interna e externa caracterizam a história social e a

história individual onde se visualizam e manifestam as necessidades,

a distribuição, a exploração e o acesso aos recursos naturais, culturais

e sociais de um povo (REIGOTA, 2001, p. 15).

Nesse novo olhar sobre a questão ambiental, Loureiro (2008)

traz a EA a uma aproximação do campo educacional. Em 2008,

quando ele escreveu o texto, dizia que ‚h{ aspectos específicos do

6 Segundo Foucault (2009), para cuidar do outro, você precisa primeiro cuidar de

si. Ainda nesse sentido, ele diz que O cuidado de si ocorre em um jogo de trocas

em que o outro tem um papel fundamental, pois o ‚cuidado de si‛ reside em uma

prática social.

134

‘mundo da educação’ que precisam ser discutidos para que as

atividades tenham consequências (sic) concretas de transformação

(política de educação, estrutura curricular, gestão escolar, formação

docente etc.)‛ (LOUREIRO, 2008, p. 5, grifo nosso); HOJE, essas

questões ainda precisam ser discutidas; apesar da

institucionalização por leis, decretos e resoluções, concretamente,

pouco foi feito ou pouco se caminhou no sentido da implantação

da EA no ensino superior.

Essa visão de mundo exige posicionamentos distintos, o que

inclui ‚assumir determinada opção teórica e metodológica‛, assim

ele propõe quatros eixos condutores para a concepção da EA, os

quais são apresentados no quadro 2.

135

Quadro 2 - Eixos de concepção da Educação Ambiental

Eixos Visão emancipatória1 Visão conservadora ou

comportamentalista2

Quanto à

condição de

ser natureza

Certeza de que somos seres

naturais e de que nos

realizamos e redefinimos

culturalmente o modo de

existir na natureza pela

própria dinâmica societária

Convicção de que houve um

afastamento de nossa espécie de

relações adequadas, idealmente

concebidas como inerentes aos

sistemas ditos naturais, sendo

necessário o retorno a essa

condição natural pela cópia das

relações ecológicas

Quanto à

condição

existencial

Entendimento de que somos

constituídos por mediações

múltiplas – sujeito social

cuja liberdade e

individualidade definem-se

na existência coletiva

Sujeito definido numa

individualidade abstrata, numa

racionalidade livre de

condicionantes sociais, cuja

capacidade de mudança centra-se

na dimensão ‚interior‛

Quanto ao

entendimento

que é educar

Educação como práxis e

processo dialógico, crítico,

problematizador e

transformador das

condições objetivas e

subjetivas que formam a

realidade

Educação como processo

instrumental, comportamentalista,

de adequação dos sujeitos a uma

natureza vista como harmônica e

como processo facilitador da

inserção funcional destes na

sociedade

Quanto à

finalidade do

processo

educativo

ambiental

Busca por transformação

social, o que engloba

indivíduos, grupos e classes

sociais, culturas e estruturas,

como base para a construção

democr{tica de ‚sociedades

sustent{veis‛ e novos

modos de se viver na

natureza

Busca por mudança cultural e

individual como suficiente para

gerar desdobramentos sobre a

sociedade e como forma de

aprimorar as relações sociais, tendo

como parâmetro as relações vistas

como naturais, adotando

geralmente uma abordagem

funcionalista de sociedade e

organicista de ser humano 1Tal como comentado em obra anterior (Loureiro, 2004), entendo por sinônimo de

‚visão emancipatória‛ as abordagens libert{rias e complexas que se afirmam na

Educação Ambiental brasileira (crítica, popular, emancipatória, transformadora, no

processo de gestão ambiental, entre outras). Essas apresentam nuances em função de

elementos históricos específicos e ênfases conceituais, mas se enquadram em um

mesmo campo político e de ação educativa com o qual me identifico.(sic)

136

2 Aqui se inserem basicamente a alfabetização ecológica e as perspectivas mais

tecnocráticas e comportamentalistas da Educação.(sic)

Fonte: Loureiro (2008, p. 6)

Assim, Loureiro (2008, p. 5) alerta que, nos modos de

concepção da EA, ‚não basta a ‚boa fé ambiental‛, a sensibilização

ou a transmissão de conteúdos da ecologia, é preciso entender a

din}mica social e, particularmente, a educativa‛.

Desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade do

desenvolvimento?

A história da humanidade é constituída por períodos de

grandes conquistas, que proporcionaram ao ser humano riquezas e

vantagens, mas também por fatos que a marcaram negativamente,

como a escravidão, a fome, a destruição, as alterações de valores,

dentre outros. A busca pelo avanço do conhecimento e da

tecnologia levou o ser humano a se atirar numa aventura com

consequências imprevistas, tanto para si, quanto para a sociedade.

Isso também nos remete à pluralidade das atividades humanas na

sociedade, de forma que a atuação individual e coletiva vai refletir

no funcionamento da realidade social.

Os padrões e as interpretações socioculturais em forma de

conceito, noção, significado, classificação e dominação retêm e

acumulam o saber, provocando mudanças sociais, as quais,

segundo Araújo (2009), servem de referência para a interpretação

das situações que provocam mudanças no mundo da vida.

Sobre o mundo da vida, Habermas (1992) diz que ele é

representado por três mundos que não podem ser colonizados

nem pelo mercado, nem pelo Estado, são eles: o objetivo, onde as

afirmações verdadeiras são possíveis; o social, que estabelece como

as relações interpessoais legitimamente são reguladas; e o

subjetivo, onde as próprias experiências têm um acesso

privilegiado.

Nesse caso, no mundo da vida, o indivíduo move-se ‚pela

mudança estrutural da sociedade e se transforma à medida que

137

essa sociedade se produz‛ (HABERMAS, 1992, p. 169). Tem-se,

então, a reciprocidade de interação do indivíduo com a sociedade,

o que aponta para a autorreflexão da espécie humana, promovendo

a emancipação, em que o individual é inseparável do social,

atingindo uma racionalidade contextualizada historicamente de

forma a mudar sua visão de mundo (HABERMAS, 1992).

Na visão de mundo de objetos, e não de sujeitos é constituído

por uma sociedade unidimensional, em que as ‚falsas

necessidades‛ de consumo levam o sujeito a se ‚encontrar nas

coisas‛ e a aceitar a ‚lei das coisas‛ (MARCUSE, 1973). Então, o

sujeito acha que tem liberdade de escolha, mas o mercado torna a

liberdade um instrumento de dominação suave e confortável,

promovendo uma tendência à padronização do pensamento e do

comportamento. Portanto, ‚as ideias, as aspirações e os objetivos

que, por seu conteúdo, transcendem o universo estabelecido da

palavra e da ação são repelidos ou reduzidos a termos desse

universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de

sua extensão quantitativa‛ (MARCUSE, 1973, p. 32).

O projeto de padronização do pensamento e do

comportamento pode levar à dominação, um exemplo disso é

apontado por Oliveira (2003) quando ele traz a industrialização

como projeto de dominação na divisão social, ao mesmo tempo em

que mostra as hierarquias que são nominadas a partir desse

processo e se universalizam como desigualdades, como os países

não industrializados, que são taxados como subdesenvolvidos, e os

países industrializados, que são classificados como desenvolvidos.

Isso nos faz pensar sob que erija ocorre o modelo de

desenvolvimento econômico.

É pertinente considerar, também, que a relação do ser humano

com a sociedade estabelece-o como produto da sociedade, assim

como ele é produtor de sua manutenção. Dessa forma, de geração

para geração, vão se reconstituindo e mantendo esse modelo de

existência da sociedade e fomentando o modelo de

desenvolvimento estabelecido.

Então, nesse modelo de desenvolvimento econômico, o ser

138

humano passa a dar ênfase ao mundo das coisas, ao invés de ao

mundo da vida, pois estabelece uma relação entre o indivíduo e a

sociedade a partir de um sistema social que o torna um produto da

sociedade e o transforma em um ser unidimensional, o que nos

leva a pensar, também, a unidimensionalidade no campo do

conhecimento.

Dessa forma, um conceito, por exemplo, de desenvolvimento

construído em um determinado contexto histórico pode não dar

conta de uma realidade e ser contestado. Lembrando que a

realidade não é estanque e está sempre em movimento, em ritmo e

velocidade, maiores a cada dia, modificando a percepção de tempo

e espaço. A história de cada sociedade está entrelaçada e exige do

sujeito uma autodeterminação da sua condição de indivíduo social

uno para plural.

Isso nos leva a refletir sobre o momento histórico em que

estamos vivendo, que clama por substituir o estilo de vida que leva

ao individualismo por novas relações do ser humano entre si e do

ser com a sociedade, e vice-versa. Refletir sobre o modelo de

desenvolvimento que temos? O que queremos? E o que

precisamos?

O paradigma moderno que estabeleceu a racionalidade

instrumental apresenta-nos um modelo unidimensional. No

entanto, mais que modelos alternativos, precisamos de

possibilidades, pois um modelo parece-nos como espelho, como

reprodução, o que pode se tornar novamente unidimensional e,

consequentemente, a razão instrumental. O contrário disto é o que

propõe a racionalidade ambiental (LEFF, 2001), um projeto em que

o ser humano seja visto como pessoa, como um sujeito consciente

da sua subjetividade e/ou produtores de suas subjetivações, que

não seguem modelos, mas estabelecem em suas práticas cotidianas

possibilidades de transcendência.

O discurso promovido pela racionalidade ambiental

proporciona à sociedade refletir sobre o impacto gerado pela

racionalidade instrumental, levando o sujeito à busca nesse

momento essencial, o sentido à sua existência na vida quotidiana. É

139

nesse momento que o mercado sente que precisa manter o domínio

e começa a apropriar-se do discurso ambientalista, ‚mascarando’ a

sua verdadeira intenção.

Este texto traz assim a necessidade de refletir a questão

ambiental dentro dos ambientes universitários e a urgência de se

pensar, integrar e vivenciar na Gestão da Universidade, para tanta

as IES’ devem institucionalizarem um programa socioambiental

que integrem ensino, pesquisa, extensão e a administração

universitária.

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143

Educação escolar e violência

Deoneci Salete Bisolo Schütz1

Introdução

A criminalidade é um assunto cada vez mais presente no

cotidiano das sociedades atuais. A sociedade brasileira registra

grandes índices de criminalidade e violência que podem ser

observados em diversas esferas, como por exemplo, a violência

devido à desigualdade social ou opções sexuais, racismo, e até

mesmo contra as mulheres2. Segundo o sociólogo Emile Durkheim,

‚a criminalidade é um fenômeno social, já identificado no século

XIX como um fato próprio da existência humana, portanto fato

social‛ (Durkheim, 1897). Apesar de ser um fenômeno inerente |

sociedade, um fenômeno que chama a atenção, em especial para

este projeto de pesquisa é a revelação da violência e criminalidade

no cotidiano do ambiente escolar, ou seja, na rotina de educador e

educando.

Essa problemática ganha uma especial proporção em tempos

em que uma das questões de pauta em discussões parlamentares

aborda a redução da menoridade penal. Nesse sentido, a incidência

da expressão ‚menores infratores‛ nos meios de comunicação pode

ser compreendida como uma advertência acerca da situação desses

jovens e crianças, que de certa forma, não foram assistidas

corretamente no processo de ensino e aprendizagem, vitimadas

1Especialista em Metodologia do Ensino de História pelo Grupo UNIASSELVI

(2012/2013). Professora da rede pública estadual de Santa Catarina.E-

mail:[email protected]. Especialista em Metodologia do Ensino de

Filosofia e Sociologia pelo Grupo UNIASSELVI (2010/2011). Licenciatura Plena em

Filosofia com Habilitação em Sociologia e Psicologia Geral pela Faculdade de

Filosofia Ciências e Letras de Palmas – PR (1995). Atuou na REDE Consultoria

Treinamento em RH de Florianópolis - SC,(1996 à 2010). 2 Para mais detalhes, ver os Programas de Redução de Criminalidade em

<<http://www.brasil.gov.br>>.

144

com problemas na arena familiar, de pais com problemas, cujos

reflexos se projetam para a ambiência escolar.

Bem diz o velho ditado: ‚qual pais tal filhos‛. Ou seja, os filhos

traduzem na escola, na sociedade e em toda vida tudo o que

receberam na sua formação de base, cujos reflexos são conhecidos

como modelagem. Cabe à escola preencher essas lacunas, embora

fica entendido que a educação vem do seio familiar e à escola cabe

primeiramente o papel de ensinar.

Desse modo este artigo busca compreender e assimilar o papel

da educação na construção de uma sociedade justa e menos

violenta visando compreender as causas dessa violência na medida

em que podem ser compreendidas visto tratar-se de um assunto

extremamente delicado e complexo. Contudo, presente em todas as

esferas da sociedade moderna em que vivemos.

A educação, nesse sentido, é a base para se constituir uma nova

faceta de comportamentos, atitudes e hábitos para anistiar o

problema e projetar soluções para conseguir atingir um nível

melhor de qualidade de vida para as gerações vindouras, com

melhores perspectivas de viver em harmonia numa sociedade em

constantes conflitos e desarranjos, tanto nos níveis da juventude,

como em afazeres operacionais, seja em nível tático ou de

comando.

A contribuição educacional para uma sociedade menos violenta

Na sociedade atual, regida pela agitação e correria, mundo

onde a produção se reflete em um consumo desenfreado, é comum

identificarmos que o tempo que os jovens passam nas escolas segue

essa dinâmica que tem vários objetivos, menos o de formar

cidadãos conscientes sobre seu papel e contribuição com a

sociedade. Em muitos casos, observa-se o intrigante cenário de

desamparo social do ambiente escolar, que nos leva a conclusão de

que o processo de ensino e aprendizagem anda em paralelo à

sociedade. Estes são os casos quando se encontram os educadores

com práticas pedagógicas obsoletas, baseadas no autoritarismo, na

145

figura poderosa daquele que está de posse do conhecimento, com

os educandos despojados de qualquer base moral e ética,

resultantes da carência de valores e ideais normativos de seus

responsáveis, ou pelo menos deveriam ser responsáveis perante a

lei. Nesse contexto que se evidencia o esgarçamento entre a escola e

a sociedade, pois o que se pretende com o processo de ensino e

aprendizagem nem sempre é aquilo que é valorizado na sociedade.

Nesse sentido, permite-se a abertura para novos tipos de

relações, de modo que a violência está se refletindo cada vez mais

no meio social e na educação não seria diferente. Isto coloca em tela

de juízo um problema que deveria ser pensado não só dentro dos

meios acadêmicos ou no mundo da educação, mas ter seu respaldo

na sociedade, não deixando de lado o cerne da concepção dos

educandos que é o próprio núcleo familiar.

Atualmente, é cada vez mais evidente que os núcleos

familiares não são homogêneos, de modo que cada aluno ou

educando tem sua própria base cultural. A consciência da

existência da diversidade cultural poderia ser compreendida como

um canal de comunicação, ou o ‚fio condutor‛ como diria

Immanuel Kant, para a compreensão da necessidade de pensar

novas organizações e dinâmicas que atendam essas questões. Do

ponto de vista do educando, esse tipo de ação pode ser o ponto

diferencial no momento de compreender seus valores, seus

conteúdos escolares dentro de sua própria condição de vida.

Especialmente, mas não exclusivamente, a disciplina de

filosofia e sociologia poderiam ser vistas pelos educadores como

disciplinas em constante modificação. Nesse sentido, para além da

base comum de conhecimentos, sofrer adaptações e atualizações

com intuito de suprir os espaços ocasionados na dualidade

educando e educador. Desse modo, o educador deve ter uma

percepção preparada para acompanhar e atingir seus jovens

educandos com aulas que motivem na busca do sentido de sua

formação, mesmo que através de análise crítica da representação de

seu cotidiano desenvolvendo sempre ações sociais, políticas e

intelectuais que tenham significado no meio social.

146

Todo ser humano ao atingir certo o grau de conhecimento

sente-se inclinado às práticas educativas. Segundo Jaeger, ela é o

princípio por meio da qual a humanidade pode transmitir suas

peculiaridades físicas e espirituais (JAEGER, 1995, p.3). Neste

intuito, o autor pretende que a família fosse à base de tudo, pois,

quando o núcleo familiar está falho por algum motivo, os mais

afetados são os jovens e crianças, pois participam de todo o

desgaste dos responsáveis e ainda da situação traumatizante

vivenciada dia-a-dia. De certa forma, é dessa maneira que se

reproduz a linguagem da violência contra os valores morais e

éticos, que inevitavelmente servirão de balizas condicionantes para

o comportamento social. Pois a experiência vivida pelas crianças ou

jovens, ou seja, tudo o que eles ouvem, vive e presencia, traduz-se

em infraestrutura do comportamento e exteriorizado na escola.

Assim sendo, o aluno reproduz na escola a formação e educação de

base que recebeu de seus responsáveis.

Assim, tudo que a criança aprende e vivencia em casa fica

registrado em sua mente em forma de Registros Mentais – RM. ‚Os

Registros Mentais – RMs são gravações retidas em nossa mente e

nela introduzidos pelos órgãos de sentido, captados no meio em

que vivemos. Esses registros mentais podem ser bons ou maus,

positivos ou negativos, dando força ao que é chamado de Processo

Mental Inconsciente e que se traduzem em palavras, atos e fatos

através da retroalimentação e acabando por se manifestar na

pr{tica no futuro‛ (SCHÜTZ, p.35-37).

Esta não é uma questão inédita, e já foi brilhantemente

abordada por intelectuais como, por exemplo, as interessantes

expressões de Pappus que dizia: ‚acreditar que as coisas sempre

acontecem por acaso é uma verdadeira preguiça intelectual e

covardia cientifica‛ (PAPPUS, ); ou de Leonardo Boff; ‚toda criança

ao nascer é como um lençol branco, as marcas são adquiridas

durante seu desenvolvimento‛ (BOFF, ).

Segundo Aquino o trabalho de educar, primeiro é

responsabilidade do núcleo familiar e de toda a sociedade. À escola

cabe a tarefa de transmitir o conhecimento, mas ela deve ter visão

147

do todo. A aprendizagem só faz sentido se ligada ao processo da

vida do educando, de modo que este é assimilado conforme é a

sintonia do professor e aluno, ou seja, conforme o vínculo ou

aceitação.

Segundo Piaget (1994, p.23), ‚as crianças aprendem a respeitar

as regras que são transmitidas pela maioria dos adultos, isso

significa que a elas já chegam elaboradas, porém não na medida de

suas necessidades e interesses, mas de uma única vez através da

sucessão ininterruptas das gerações adultas anteriores‛. Percebe-se

claramente que Piaget destaca que a moralidade não é um valor

intrínseco ao ser humano que nasce com ele mesmo. Primeiro a

criança é influenciada pelos seus pais aonde é submetida a

inúmeras regras, limites e disciplinas, depois vem à escola onde é

um ambiente de socialização. Esta é a importância de se ter bem

claro sua parcela de contribuição na formação moral de seus

alunos. É esta a função do professor, Ele deve incentivar a não

violência, a não criminalidade, fazendo com que as crianças

aprendam respeitar ter limite. E consequentemente formarem

cidadãos de respeito e seus núcleos familiares equilibrados unidos

e felizes.

Este raciocínio revela por um lado os objetivos e os desafios em

se adaptar a educação escolar no século XXI e por outro lado oferta

uma proposta educacional que possa amenizar a própria violência

na sociedade.

Somente assim será possível identificar a diferença, onde todos

poderiam ter uma convivência mais justa, fraterna, humana e

igualitária, condizente com a condição da dignidade da pessoa

humana, pois é nesse ambiente que a Educação se faz e se

completa.

Segundo Aristóteles, existem três ideias absolutamente

essencial para o desenvolvimento de uma boa educação: A

primeira é a natureza do Educando, que por razão biológica irá

condicionar em muitos aspectos do comportamento do aluno. A

segunda ideia está relacionada à formação de bons hábitos. No

desenvolvimento da personalidade, o hábito não se desenvolve

148

como um passe de mágica é formado gradativamente como no dito

popular que ‚{gua mole em pedra dura tanto bate até que fura‛,

muitas vezes estimulada pela repetição. A terceira se refere que o

processo educacional sempre deve estar voltado para o

desenvolvimento da inteligência e da razão.

Para Rousseau, o homem é naturalmente bom, mas foi

corrompido pela sociedade. O educando precisa se construir como

cidadão, dentro das novas perspectivas que a globalização nos

permite. Num processo interdisciplinar, somos chamados a

construir e reconstruir a prática de novas experiências, mais

humanas e solidárias através da realidade local.

Para Paulo Freire, a formação ética acontece na educação, mais

precisamente na sala de aula, quando a sociedade, as escolas com

professores e alunos lutam por uma educação transformadora,

dialógica e conscientizadora. Na perspectiva de Freire, alunos

professores são engajados numa dimensão crítica e criativa no

processo da construção do conhecimento, onde todos ensinam e

todos aprendem num processo criador e recriador de suas próprias

experiências existenciais de origens culturais (FREIRE, 2002).

Um dos maiores desafios da educação deste século é o diálogo,

ensinar os alunos ter um pensamento crítico reflexivo, pois

desenvolve a capacidade de argumentação e de aprendizagem e

como consequência amenizando a violência. O mundo somente vai

mudar se nossos pensamentos mudarem. Em outras palavras, o

diálogo é uma relação horizontal. Segundo Freire nutre-se de amor,

humildade, esperança, fé e confiança. O diálogo, portanto, é uma

exigência existencial, que possibilita a comunicação dialógica,

ensinar e apreender são possíveis quando ‚o pensamento crítico do

educador se entrega | curiosidade do educando‛. (...) Mas, para

isso o diálogo não pode converter-se num bate papo desobrigado

que marche ao gosto do acaso entre professores e educando

(FREIRE, 2002, p.118).

O maior legado que um professor pode dar ao aluno é a

capacidade de pensar de forma independente e com

responsabilidade. Não apenas fazer de conta, mas ter a capacidade

149

de analisar dados, fatos e situações; saber dissociar o certo do

errado, saber receber criticamente os meios de comunicação, de

perceber as manipulações destes meios e ter distanciamento crítico.

A violência escolar sempre foi um problema, a qual é

exteriorizada pelos próprios alunos e pode se manifestar com mais

frequência em locais de baixa renda através de suas atitudes de

conduta, atitudes que refletem o dia a dia do educando dentro e

fora da escola.

A UNESCO, através de relatórios de Jacques Delors,

apresentou as competências que a educação precisa desenvolver: a)

Aprender a ser: ajuda o jovem desenvolver autoestima,

autoconfiança, auto determinação e a sua própria identidade; b)

Aprender a conviver: ajuda a desenvolver as relações interpessoais

comunitárias, relações de cidadania, de solidariedade, trabalhar em

grupo, enfim reconhecer o outro de forma comunicativa; c)

Aprender a fazer: possibilitar o educando a adquirir habilidades

básicas, para entrar no mercado de trabalho; d) Apreender a

apreender: que ele aprenda buscar o conhecimento; e) Apreender a

conhecer: acessar tudo que é informações de todas as formas

possíveis, ser um caçador de conhecimentos.

A educação neste século tem que ser revista e realizada numa

parceria eficaz entre escola, família, sociedade, Estado. Vale

lembrar a frase de educação atribuída | Confúcio, que diz: ‛Tu me

dizes, eu esqueço; tu me ensinas; eu lembro; tu me envolves, e eu

aprendo‛. Percebe-se, portanto, que a educação não se constitui em

mero estabelecimento de informações, mas sim de se trabalhar as

potencialidades interiores do ser, a fim de que se desenvolvam e

sejam reconhecidas.

‚As necessidades de auto realização são uma procura de

contínuo auto-desenvolvimento e de realização progressiva. Na

busca de auto realização o homem alcança as estrelas, aspira ser

mais criativo, tanto em sua vida profissional, como em sua vida

pessoal‛. (SCHÜTZ, p.85) O comportamento do ser humano tem

seus altos e baixos, mas dizer que o ser humano é violento por

150

natureza, isto mostra a fraqueza de nossos pensamentos, uma

verdadeira preguiça intelectual e covardia científica.

No entanto, um pensamento contrário provavelmente encontra

na educação uma ótima ferramenta para controle de suas emoções.

Todas as pessoas podem ser agressivas, mas não violentas,

enquanto a agressão é essencial no ser humano para sua

sobrevivência, a violência é sempre destrutiva. A educação faz

parte desse processo de dominação da violência natural, instintiva.

Segunda a opinião de Jaeger:

A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no

seu destino interior como na sua estruturação interna e

desenvolvimento social depende da consciência dos valores que

regem a vida humana. A história da educação está essencialmente

condicionada pela transformação dos valores válidos para cada

sociedade. À estabilidade das normas válidas corresponde a solidez

dos fundamentos da educação. Da dissolução e destruição das

normas, vem a falta de segurança e até a impossibilidade absoluta de

qualquer ação educativa. (JAEGER, 1995, p.4)

Um ambiente hostil prejudica as relações interpessoais

professor, aluno, escola, família que perdem cada vez mais sua

credibilidade. ‚Entendemos que o problema de indisciplina é

desafio de todos: sociedade, família, escola, professor e aluno. Não

podemos ser ingênuos, pois embora a tarefa seja de todos, nem

todos estão interessados em resolver o problema‛.

(VASCONCELOS, 1997, p.240)

Neste sentido, temos inclusive péssimos exemplos dos políticos

e autoridades que nos deixam cada vez mais estarrecidos com

péssimos exemplos e atitudes que nos envergonham, e com certeza

vai refletir nas salas de aula. Também a violência escolar pode ser

considerada como um processo que desencadeia a violência por

associação para o campo da política.

151

Conclusão

A criminalidade e violência estão intimamente ligadas ao

processo de educação de base que na maioria das vezes pode

começar indiretamente nos núcleos familiares, mas que mais tarde

se estendem à sociedade pela Educação.

Desse modo, a Educação pode ser compreendida como um

canal possível para o processo de transformação para o bem social,

para o justo e correto, em um ideal de ausência total de violência e

criminalidade, no qual os papeis dos atores principais deveriam ser

estendidos para vários âmbitos que perpassam a família, a escola e

a própria sociedade. Para isso a educação deve objetivar o

equilíbrio buscando o crescimento ético, moral, social num

contínuo processo de transformação, no qual a eficácia do combate

à violência nas escolas depende do grau de importância dada a esta

questão pelos diversos componentes da sociedade. E dessa maneira

propõem-se uma reflexão sobre esta temática que transpasse pelas

interfaces entre o macro e o micro espaço das práticas educativas.

Nesse sentido, a base educacional que o ser humano adquire

em casa influência gradativamente na maneira com a qual a pessoa

lida com a violência, esta não é uma regra, porém é algo a ser

levado em consideração. Dessa forma, acredita-se que os

profissionais da educação possuem um papel de suma importância

e devem usá-lo de modo a saber identificar os primeiros sinais da

violência que podem acabar em possíveis tragédias tais como

trágicos massacres que poderiam ser evitados com simples ações

por parte das pessoas que convivem com o agressor.

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155

Como se formam os professores nos dias atuais: um recoste

de história real refletida em teorias educacionais

Tiago Soares dos Reis1

Introdução

Quando se passa por uma determinada etapa da vida, faz-se

necessárias algumas reflexões acerca de construção do caminho

percorrido. Tendo em vista que, a cada vez que é feito essa análise

de si, o individuo tende a melhor entender o seu próprio caminho

percorrido seja esse pessoal, social ou profissional.

Fazer reflexão do caminho percorrido até o presente momento,

implica no melhor entendimento do seu passado, levando-o a

compreender o próprio presente. Essa prática é capaz de contribuir

na construção de um cidadão melhor, seja no âmbito pessoal, no

profissional ou social. Autores como Nóvoa (1992) e Pimenta

(2005), por exemplo, ao falar de formação de professores, fala da

necessidade do professor reflexivo, sendo aquele que reflete

sempre a cerca de suas ações. Para tanto, não basta ser docente pra

haver necessidade que se reflita sobre nosso próprio caminho

percorrido, nossas ações e o que influenciou nelas, mas sim basta

que sejamos pessoas humanas que busca sempre ser melhor no que

1 Possui graduação em Licenciatura em Computação pelo Instituto Federal de

Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins IFTO (2016); Especialização em

Docência de Ensino Superior pela Faculdade SULDAMÉRICA (2017). Atualmente

faz parte do quadro de docentes contratados pela Secretaria de Educação e

Cultura do Estado do Tocantins (SEDUC), com lotação na Escola Estadual Ana

Macedo Maia cidade Porto Nacional. Além disso, é professor substituto No

Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologias do Tocantins -

campus Porto Nacional. Tem afinidade em docência em Computação com ênfase

nas seguintes áreas: Informática Básica, Redes de Computadores, Arquitetura em

Computadores e Banco de Dados.

156

faz. É importante acrescentar aqui que, ao utilizar o termo

‚melhor‛ estou me referindo ao sentindo de mais eficiente.

Por haver necessidade de ser reflexivo a cerca de si próprio e

de seu caminho percorrido enquanto ser humano, nesse

manuscrito enfatizei os autores que tratam a cerca de formação

docente em paralelo às teorias da educação, devido ao fato de que,

eu me graduei, especializei, e hoje atuo e estudo na área docente.

Fazer uma autorreflexão do caminho percorrido durante o

processo de formação, significa tentar entender a si próprio. Isso se

dá ao fato de que o homem de hoje é o resultado do homem do

passado. Dessa forma, a partir do momento em que entendemos

nossa própria formação podemos entender porque agimos de

determinada maneira. O filósofo Sócrates em um de seus

ensinamentos nos fala que "uma vida que não é examinada não

vale a pena ser vivida‛. Pois a an{lise de se próprio torna possível |

melhoria do homem, uma vez que a sua função é a melhoramento

constante da espécie, da sociedade.

Que há necessidade da pessoa se encontrar em meios a tantas

teorias existentes, ou seja, se entender a partir de teóricos, é fato.

Dessa forma, o presente trabalho surgiu a partir das discursões de

leituras acerca do assunto, feitas na disciplina Teorias da Educação

no Mestrado Acadêmico em Educação ofertado pela Universidade

Federal do Tocantins – UFT. Propõe-se nesse, um estudo reflexivo a

cerca das leituras feitas e discutidas em sala de aula em paralelo a

explanação da minha formação e práticas docente.

Dessa forma, tem-se como objetivo geral fazer uma

autorreflexão do caminho percorrido na minha formação docente,

bem como em quais teorias se baseiam minha formação, assim

como também minhas próprias práticas docentes. No que se refere

aos objetivos específicos destacam-se: fazer uma análise da minha

própria formação; relacionar cada etapa em qual ou quais teorias se

baseia; fazer uma análise das minhas atuais práticas docente

levando em consideração a minha formação em consonância com

as teorias nas quais se encaixam.

157

Freire (2003), afirma que: ‚O que difere o homem e o animal é a

pr{tica de pensar, de refletir...‛. Dessa forma, ao lançarmos nos

estudos de Freire, veremos que a escrita do presente trabalho faz-se

necessária, uma vez que cria a possibilidade de uma análise crítica

de si próprio, o que permite a visão da necessidade de melhorias,

dando continuidade a evolução do homem.

Fundamentação

Com a finalidade de entender o meu próprio processo de

formação vi a necessidade de primeiro entender como funciona o

sistema educacional vigente nas escolas, para isso recorri aos

estudos do filósofo contemporâneo Michel Foucault (1989) que em

sua obra Vigiar e Punir defende que o sistema educacional é

semelhante ao sistema prisional que também se assemelha ao

sistema presente nas indústrias. Esses sistemas por sua vez impõe

que o individuo obedeça a regras que lhes são impostas.

Nas escolas também existe uma relação de poder que está

relacionada ao controle temporal do corpo em que esse pertence a

uma distribuição rigorosa no espaço, juntamente com os horários

fixos para troca de aulas que não se difere do sino dos presídios

que indica a troca de tarefas dos presos, dessa forma o sistema se

prende não no aprendizado do aluno, mas sim num adestramento

de corpo dócil, enquanto no sistema presidiário não se pensa na

reabilitação dos presos, mas sim na prisão dos corpos. Isso também

ocorre nas indústrias em que o sujeito é encarregado de exercer um

trabalho monótono e repetitivo, enquanto nas escolas são muitas as

vezes que o professor se encontra numa situação parecida, ao se

deparar com a mesma estrutura de planos de aula para todos os

dias, mesmo que ele queira fugir desse sistema ele não consegue

afinal, isso está imposto a ele, de forma que ou ele obedece ou fica

desempregado. Afinal, ambos os sistemas citados, são muito mais

cômodo a permanência do que foi apresentado do que a luta pela

modificação do que já está perpetuo na sociedade vigente.

158

Como se evidenciou acima, atualmente as escolas constitui-se

de um constante processo de vigilância. Em que não é mais preciso

obrigar o indivíduo a exercer suas obrigações, mas sim, mostrar

que ele é detento nesse processo, pois ele é vigiado constantemente

e punido se tiver fora dos padrões estabelecidos pelo sistema

escolar, e caso não realize suas atividades são reprimidos pela sua

falta de responsabilidade com seus os afazeres escolares, dessa

forma ocorre um ‚adestramento‛ em que aos poucos o aluno se

torna detento desse processo que o aprisiona não somente na

escola, mas até a sua vida adulta em que por já estar acostumado

ser governado por outros ele continua permitindo se perpetuar

nesse processo também no mercado de trabalho.

A ideia de educação baseada no tripé ‚a religião, a tradição e a

autoridade‛ em teoria foi corrompendo-se ao poucos até que

chegamos a ter a escola contemporânea dos dias atuais. Isso nos

trouxe diversas modificações de como a sociedade ver a escola e

como a própria escola se vê. Apesar dessas novas maneiras nas

quais seriam as ideais a ser praticada, existem ainda tanto por parte

de escola quanto da sociedade, situações em que a põe a educação

baseada na religião, autoridade e tradição.

Em todos os movimentos civilizatórios e de humanização do

homem, no geral, a educação possui o objetivo de melhorar o

gênero humano, levando a um processo de melhoria constante da

espécie. Com isso, a educação não objetiva manter a espécie

humana da forma que está, mas sim, busca a sua constante

melhoria de forma em que o homem de hoje sempre será o

rascunho do ser humano do amanhã (COÊLHO, 2012).

A educação segundo o filósofo Platão possui não uma

definição, mas sim finalidade que é ‚... favorecer o triunfo do

pensamento racional sobre as paixões, sobre o corpo‛. Tardif (2013)

argumenta que sua origem foi junto ao nascimento da

humanidade. Com isso nos permite concluir que em todo lugar

onde houver a existência do homem haverá educação, uma vez que

os dois andam em paralelo desde o princípio.

159

Corroborando com o pensamento de Platão, Fernandes (2010)

ao tentar definir educação, argumenta que essa não possui uma

definição exata e que a pergunta ‚o que é educação?‛ não possui

uma definição concreta, única e inquestionável. Apesar de não

poder responder ao questionamento a cerca da definição da

educação, o autor discorre em seu texto algumas explicações nas

quais não define educação, mas sim o seu papel. Sendo esse tornar

o homem livre, mostra-lo a luz.

Ainda complementando a tese defendida pelos autores Platão e

Fernandes, o teórico Coelho (2012) afirma que ‚nem toda educação

se faz por meio e no meio da aprendizagem...‛. Contudo, com base

no pensamento dos três autores, podemos concluir que não há

necessidade de escola para que haja educação, mas que essa

depende somente da existência do homem.

A finalidade da educação é o que mantém sua existência. O

que deve ser considerado mais importante no processo de

educação do homem ‚não é a escolarização, a formação do erudito,

do homem de negócios ou do funcionário do Estado, nem a

instrumentalização de crianças, jovens e adultos, e sua inserção no

mercado de trabalho, o desenvolvimento cientifico tecnológico, o

sucesso dos educandos e o aumento da produção‛. Ao contr{rio, é

principalmente a dimensão política do homem e da sociedade, a

boa vivência de ‚... todos os homens, grupos, povos e instituições,

enfim, a realização de sua dimensão humana...‛ (COELHO. 2012).

Complementando o pensamento de Coelho, o educador Freire

argumenta que é necessário que o papel da escola seja muito bem

definido, de maneira que essa venha a cumprir a sua função

enquanto protagonista da evolução da educação e

consequentemente da humanidade. A respeito da função da escola,

Freire (2003) afirma que:

Somente uma escola centrada democraticamente no seu educando e

na sua comunidade local, vivendo as suas circunstâncias, integrada

com os problemas, levará os seus estudantes a uma nova postura

160

diante dos problemas de contexto. À intimidade com eles. (FREIRE,

2003, p. 85).

Dessa forma, a escola não basta ensinar conteúdos didáticos

aos alunos, é necessário que essa prepare os seus educandos para a

vida social, de maneira que esse venha a melhor se inserir na

sociedade, engajado no seu papel de contribuir para a melhoria do

homem, da humanidade.

Bernard Charlot (1976) ao argumentar que educação é política,

menciona o problema da escola laica da Terceira República em que

foi resumido no tema proposto em 1905 aos candidatos ao

Certificado de Aptidão Pedagógica no Departamento de Haute-

Loire, om que diz, ‚é recomendado aos Professores Prim{rios,

porém ao lado, desprender-se dos incidentes da vida cotidiana e

local, e, por outro lado, ensinar a República e a democracia‛.

Analisando o trecho acima em consonância com a função do

professor dos dias atuais é possível perceber que as recomendações

ao professor de 1905 assumem a função docente do século XXI.

Contudo, ser docente não é apenas ser um expositor de conteúdos,

mas sim um preparador do aluno para a sociedade, formar cidadão

crítico e reflexivo para que esse venha melhor contribuir para a

melhoria da sociedade.

O homem é um ser inacabado e que estás sempre em evolução,

ou seja, um rascunho de si mesmo (FERNANDES. 2010). O

fragmento em destaque nos revela as consequências obtidas pelo

processo educativo, uma vez que, o motivo pelo qual o homem se

torna um rascunho é o seu próprio aprimoramento.

Por ser um rascunho de si mesmo, ‚o homem é uma criatura

estranha, por sinal o ser mais estranho do universo. Isso se dá ao

fato da sua necessidade de projeção contínua. Para isso é preciso

que esse venha a ser uma criatura criadora e não apenas criada‛

Fernandes (2010). Mais uma vez podemos observar no

pensamento do autor, como sendo a projeção de si mesmo

atribuída ao processo de educação, de buscar sempre o melhor

para si, ou seja, estar em um processo de melhoria constante.

161

Não basta ter bons professores para que uma sociedade venha

a ser melhorada através da educação. Para existir o processo de

educação de uma sociedade é necessário o empenho de toda a sua

composição. Complementando a fala dita no trecho imediatamente

anterior, Tardif (2013) nos afirma que ‚Aprender, não é somente

assimilar conhecimentos novos, é também reavaliar os antigos e

principalmente mudar a si mesmo‛. Dessa forma, nos permite a

conclusão que, para a existência de uma boa educação não basta

que se tenha bons professores, mas também que se tenha bons

alunos. Pois apenas com a reflexão e alteração de comportamentos

através de assimilação de novos conhecimentos que é possível que

seja validado o trabalho docente.

Um pouco de história

Com a finalidade de alcançar melhoria, após concluir a

educação básica em escola pública do interior do estado do

Tocantins, onde morei desde criança, mudei-me para a cidade de

Porto Nacional no ano de 2010. O motivo pelo qual decidi optar

pela migração foi o objetivo de ingressar em um curso de nível

superior. Seis meses depois, após várias tentativas em diferentes

universidades da região, consegui uma vaga no curso de

Licenciatura em Computação no Instituto Federal de Educação,

Ciências e Tecnologias do Tocantins – IFTO.

É de grande valia destacar que, em nenhum momento da vida,

estava em meus planos ser professor, ou seja, não se trata de desejo

de ser professor, no entanto ingressei em um curso de Licenciatura

por não conseguir vaga em um dos quais eu sempre almejei. O

motivo pelo o qual não era planejado seguir carreira docente é a

forma com que a sociedade a qual pertenço trata essa categoria.

Segundo Tardif (2013) ‚toda cultura é fundada sobre um registro

de diferenças cujos critérios são variáveis de uma sociedade para

outra‛, dessa forma, é possível chegar | conclusão que os critérios

de seleção da profissão a seguir da sociedade em questão tende a

exclusão do serviço docente.

162

O curso no qual ingressei é composto em sua grande maioria

por docentes que trabalham com o princípio da tradição e

autoridade, o que resulta muitas vezes em grandiosas percas para o

alunado. São docentes que acreditam que podem tudo e que o

aluno não sabe de praticamente nada, não levando em

consideração na maioria das vezes os conhecimentos prévios do

aluno ou até mesmo suas atuais condições de sobrevivência para se

manter em uma universidade.

Devido ao fato de trabalhar e por diversas vezes por uma

questão de sobrevivência não poder realizar algumas atividades

propostas por docentes, somente no início do ano de 2016 consegui

obter o título de graduado em Licenciatura em Computação. Um

ano depois da data prevista da conclusão do curso em período

normal. Ainda na mesma época empreguei-me no cargo de docente

de educação básica em uma escola de tempo integral situada na

mesma cidade na qual me graduei. Nessa passei a lecionar as

disciplinas de Educação para o Trânsito e Informática Básica em

turmas de primeiro ao quinto ano do ensino fundamental I.

O fato ter que ensinar a disciplina Educação Para o Trânsito foi

um marco que significou segurar a vaga de serviço ou cede-la a

outra pessoa, tendo em vista que caso eu me recusasse a essa

situação, no momento não serviria à escola. Apesar de não me

sentir confortável, optei por trabalhar.

Fernandes (2010) nos afirma que ‚ensinar só pode quem sabe

aprender e quem sabe também deixar o outro aprender, por isso é

que ensinar é mais difícil do que aprender. Ensinar pressupõe

maestria do aprender e do deixar aprender‛ (FERNANDES, 2010).

Dessa forma, podemos entender que eu só poderia ser professor

naquele momento caso eu soubesse aprender. Pois, para que

tivesse sucesso na docência de tal disciplina, primeiramente houve

a necessidade de aprender o conteúdo a ser ensinado, uma vez que

eu não possuía conhecimentos específicos da área a ser trabalhada

enquanto docente.

Além disso, o fragmento citado acima nos explica que ninguém

sabe de tudo, que todos sabem alguma coisa e que o professor além

163

de ensinar deve deixar o aluno aprender, esse também aprende

consigo mesmo e também com o aluno, uma vez que ninguém seja

tão desprovido de conhecimento que não seja capaz de ensinar

algo ao outro.

Dessa forma, me pus a aprender para que pudesse vir a

ensinar. O problema é que não houve um tempo prévio para isso,

pois já estava em sala de aula. Em resumo, aprendia pela manhã

para ensinar à tarde. O que me permitiu e de certa forma obrigou a

aprimorar as técnicas de aprendizado. Colocar em prática o que

Fernandes (2010) chama de maestria do saber aprender.

Apesar de ter acabado de sair de uma universidade com o

diploma de graduado em Licenciatura em Computação em mãos,

não só as aulas de Educação Para o Trânsito seria obstáculos a ser

superados com relação ao meu próprio aprendizado, mas sim, que

eu teria que aprender bastante de computação básica. Naquele

momento vi que continuaria a aprender, ou seja, que o

aprendizado iniciado na universidade se daria continuidade no ato

de ensinar. Fernandes (2010) nos afirma que é visto que o homem

não aprende somente quando lhes é ensinado, mas também

quando lhe é posto em situação de ensinar. Contudo, ‚o homem

aprende porque lhe foi dado o ofício de ensinar‛.

Vale destacar aqui que embora ocorra em escolas brasileiras, as

políticas públicas de educação no Brasil fala que o docente só pode

trabalhar em sua área de formação, no entanto, isso não acontece

por diversos motivos, nos quais por não ser objetivo desse texto,

não iremos nos aprofundar.

A busca pela própria liberdade

Ao buscar a liberdade, ou seja, a melhoria constante de si mesmo

o homem é chamado a desafiar a si próprio. A educação é a melhor

forma de encontrar a liberdade, de ver a luz, pois quem é detentor de

conhecimento é provido de liberdade. O problema é que essa

liberdade não pode ser dada por alguém. Ou seja, pode ser aprendida,

mas não pode ser ensinada (FERNANDES. 2010, p. 170).

164

Na vida pra ter sucesso é necessário buscar a liberdade que se

traduz em conhecimento. Portanto, podemos considerar que, o

sucesso alcançado da vida é dado pela busca da liberdade. Foi

exatamente isso que me motivou a buscar sempre mais, a não me

conformar com o que tenho. Não por ingratidão, mas por gostar de

sempre buscar o melhor, a maestria. Sabia eu que naquele

momento me apropriava de grande quantidade de conhecimento e

que estava adquirindo mais a cada dia, no entanto, não estava

satisfeito com a minha atual posição, na sociedade bem como

dentro do sistema educacional. Queria crescer, ser alguém que

ocupa posto mais elevado entre os intelectuais, um local em que,

no meu ponto de vista, melhor se consegue contribuir para a

melhoria da sociedade na qual faço parte.

Com o propósito de continuar fazendo valer o meu objetivo de

sempre buscar melhorias, ainda no ano de 2016 me ingressei em

uma Especialização Latu sensu em Docência de Ensino Superior

ofertada pela faculdade Suldamérica em parceria com a AEDUC.

Concluí com êxito o curso, que mais tarde veio a permitir que eu

pudesse me ingressar de docente na educação superior, assunto

que será tratado mais detalhado em linhas posteriores a essas.

Não estando satisfeito, mas agradecido em possuir o título de

Especialista comecei a pensar na possibilidade de uma nova

graduação ou um Mestrado Stricto Sensu. Agradecido por já ter

conseguido trilhar parte de um caminho espinhoso e que poucos

conseguem, não satisfeito porque sempre ver a necessidade de

crescer, me tornando assim, a cada dia um rascunho de minha

própria pessoa do dia seguinte.

Com o pensamento de sempre buscar o crescimento, concorri a

uma vaga de aluno especial no Mestrado Acadêmico em Educação

ofertado pela Universidade Federal do Tocantins – UFT onde fui

selecionado por um docente do programa, o que me deu a

oportunidade de cursar uma das disciplinas. Nos semestres

seguintes me pus a disposição dos docentes novamente e sendo

selecionado, permaneço até o presente momento na condição de

aluno especial.

165

‚Quem d{, também recebe, dando, e quem recebe, também

doa, recebendo. Por isso, quem ensina aprende , ensinando, e quem

aprende ensina, aprendendo‛... ‚ensinar pressupõe a maestria do

aprender e do deixar aprender...‛ Fernandes (2010). Nessa

perspectiva e com o objetivo de sempre aprender mais e ensinar

melhor, comecei a pensar em além de fazer mestrado, ingressar-me

em outro posto de trabalho. Pois, devido pertencer ao quadro de

docentes contratados da prefeitura, meu contrato teria que ser

renovado a cada ano, dependendo assim dos interesses de políticos

corruptos que na maioria das vezes cobram em troca o apoio

partidário para que realize a renovação do contrato. Além disso,

devido ao fato de ser apenas contrato temporário, não me permitia

uma elevação de cargo ou função dentro da instituição.

Na busca de um local em que permitisse melhores condições

de trabalho e do meu crescimento intelectual, no inicio do ano de

2017 ingressei-me na Rede Estadual de Educação, onde passei a

ministrar aulas de Matemática, Química e Física em turmas de 6º

sexto a 9º nono ano do Ensino Fundamental II em uma escola

situada em um setor pertencente à cidade de Porto Nacional - TO.

Embora no novo cargo de docente no qual vir assumir, passei a

não ministrar nenhuma aula de computação, naquele local eu vi como

uma forma de melhor conseguir crescimento. Tendo em vista as

melhores condições de trabalho, o público de alunado, bem como

também os colegas de serviço. Pois o novo posto de trabalho possui

uma boa referência perante a sociedade, enquanto o primeiro se trata

de uma escola de periferia. Porém ainda havia um problema a ser

resolvido, a continuidade do trabalho por contrato temporário junto

ao poder público, o que acaba inviabilizando algumas probabilidades.

Na rede estadual de educação na qual inserir-me na condição

de docente, fui oportunizado a poder ver de um ângulo diferente

do que eu conhecia com relação ao sistema educacional estadual.

Situei-me dentro de um sistema em que, segundo Guimarães (2012)

Estado e Ministério, aqui representado pela Secretaria de Educação

e Cultura – SEDUC, ‚em nome da qualidade da educação‛ opera

sua gestão de olho nos números e percentuais de acesso à rede

166

escolar, bem como permanência e evasão, não se preocupando

muitas vezes com o real aprendizado do aluno.

Observando de perto as regras, normas e políticas públicas, nas

quais regem as escolas estaduais no Tocantins consegui perceber

uma distorção do sentido da escola, e consequentemente de

educação. Pois são priorizados os números, como por exemplo,

índice de aprovação, de matrículas de evasão, etc.

Não só nas escolas da Rede Estadual de Ensino como também

nas municipais, as políticas públicas internas são voltadas para

ensinar o aluno para o presente, e não para o futuro. A respeito

disso, Kant nos fala que:

Não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie

humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é,

segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação. Esse

principio é da máxima importância. De modo geral, os pais educam

seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao

contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa

acontecer um estado melhor no futuro. (KANT, 2014, p. 22)

Ainda na busca de crescer, no mês de março de 2018 me

ingressei no Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologias

do Tocantins – IFTO, ou seja, no local em que cursei minha

graduação, porém, dessa vez como professor substituto. Passei a

ministrar disciplinas de Computação em cursos de Nível Médio,

Técnico Subsequente e Superior, onde permaneço até o presente

momento. No novo posto de trabalho, embora não seja um cargo

efetivo, não há interferências políticas para a minha permanecia ou

demissão do cargo, tendo em vista que, a forma de ingresso se dá

através de concurso e que é previamente acordado e documentado

com datas de admissão e de exoneração.

Mesmo de com admissão em forma de contrato temporário, ser

docente no IFTO abre caminhos diversos para a ascensão enquanto

profissional. Isso é possível devido ao fato de ser uma instituição

que possui maior qualidade de estrutura física, maior orçamento

financeiro e maior valorização do profissional em que nela atua.

167

Tardif (2013) em uma de suas escritas argumenta que ‚... o

sábio não é apenas diferente do ignorante; ele é superior. Em

outros termos, o conhecimento tem – de saída, diríamos hoje – uma

dimensão ética‛. Portanto é possível chegar à conclusão que quem

tem uma formação melhor é superior aos que possui menor

formação. Ou seja, estudar é o caminho para ser superior.

Conclusão

Ser professor não é apenas ir para a sala de aula e ensinar

conteúdos, mas sim é preparar pessoas para a vida social. Isso pode

ser feito dentro e fora da sala de aula. Pois estudando sobre os

grandes professores do passado, pode ser percebido que eles não

ensinavam em salas de aula fechadas. Para os que hoje chamamos

de antigos filósofos, sala de aula é a vida, o que significa que não

há local definido para ser transmitido ensinamento.

Apesar de nunca ter idealizado para a minha vida, me formei e

atuo direto com a educação escolar. Também por ser um docente

consciente da missão enquanto professor, não ensino apenas em

sala de aula, mas em todo o âmbito em que participo da sociedade

na qual faço parte.

Sou especialista e hoje curso mestrado, mas ainda como aluno

especial. No entanto, a pretensão é ingressar de aluno regular, podendo

assim passar ao título de Mestre em Educação. Dando sequência, é meu

objetivo fazer um Doutorado, não por título, mas porque apesar de já

ter alguns conhecimentos agregados a respeito da educação, acredito

que o curso de Doutorado é capaz de multiplicar os aprendizados já

adquiridos, bem como modificar alguns dos já existentes.

Hoje tenho o prazer de ser docente no curso em que me

graduei, sendo dessa forma, colega de serviço dos meus

professores de quando na graduação. Colegas de serviço que

apesar de tudo, não deixaram e não deixarão de serem meus

professores, pois foram esses que fizeram que eu passasse a ter

interesse pela docência.

168

É de suma importância ter professores na educação básica que

não mentalizem apenas ensinar conteúdos didáticos, mas que

assuma o compromisso de preparar cidadãos críticos reflexivos,

pois apenas formando pessoas crítica-reflexivas sobre suas atitudes

é possível tornar uma sociedade melhor.

Por ter me tornado um cidadão professor na universidade é

nela que pretendo ficar permanentemente enquanto docente. Não

somente por acreditar que esse seja o melhor local de trabalho que

um docente possa vir a atuar, mas por crer que somente dessa

forma é favorável a multiplicação da formação de professores que

realmente assume o papel de educador.

Em tempos atuais, a educação não pode ser baseada somente na fé,

poder e autoridade; uma vez que esse modelo de ensino não permite

que tornarmos pessoas melhores, pois na educação tradicional é

repetido o que foi feito no passado sem que seja analisado previamente

as consequências que cada atitude pode causar.

Referências

CHARLOT, B. A Mistificação pedagógica: realidades sociais e

processos ideológicos na teoria da educação. Editora Guanabara

1976.

_____. Da relação com o saber às práticas educativas. Editora

Cortez. 2014.

COÊLHO, I. M; GUIMARÃES, G. Educação, Escola e Formação.

2012.

FERNANDES, M. A. O Que é mesmo Educação? Ed. Educativa, v.

13, n. 1, p. 161-175. Goiânia. 2010.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia

M. Pondé Vassallo. Petrópolis, Vozes, 1987.

FREIRE, P. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez;

Instituto Paulo Freire, 2003.

GHEDIN, E. Professor reflexivo: da alienação da técnica à

autonomia da crítica. In: PIMENTA, S.G. GHEDIN, E. (orgs).

169

Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São

Paulo: Cortez, 2005.

PIMENTA, S. G. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In: In:

PIMENTA, S.G. GHEDIN, E. (orgs). Professor reflexivo no Brasil:

gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2005. p. 17-52.

SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos.

In: NÓVOA, A. (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa:

Dom Quixote, 1992.

TARDIF, C. G. M. A pedagogia: Teorias e práticas da antiguidade

aos nossos dias. Segunda Ed. Editora Vozes. 2013.

170

171

‚Sigo a minha caminhada fazendo o melhor que posso,

mas não fico | procura da turma pronta‛:

o sentido pessoal de uma professora

sobre a indisciplina na aula de inglês

Fernando Silvério de Lima1

Adolescência é quando os piores e os melhores impulsos na alma humana

lutam entre si pelo domínio.

G. Stanley Hall

Introdução

Uma pesquisa realizada pela organização para cooperação e

desenvolvimento econômico (OCDE) divulgada em 2015 pelos

principais veículos da imprensa brasileira (ÉPOCA, 2015;

GUILHERME, 2015; LOES, 2015; MORENA, 2015), indicou que o

Brasil ocupava a primeira posição, entre outros países, em

categorias de indisciplina escolar e tempo gasto para controle de

sala de aula (crianças e adolescentes). Outro dado salientado pela

mídia é que a indisciplina permanece um desafio recorrente para

mais da metade (60%) dos professores que participaram do

levantamento. Ainda que isso seja um desafio constante para

diferentes professores, como mostrado anteriormente, podemos

observar nos últimos anos casos específicos na Linguística

Aplicada sobre esse fenômeno na aula de inglês a partir do que

pensam alunos e professores (BARCELOS; LIMA; FERREIRA, 2014;

FERNANDES, 2014; SANTOS, 2007. LIMA, 2017b). Questões como

as condições insuficientes para um ensino de qualidade são

levantadas nessas pesquisas e observamos também evidências de

1 Doutor em Estudos Linguísticos pela UNESP de São José do Rio Preto

(UNESP/IBILCE) com estágio doutoral em estudos vygotskianos pela

Universidade da Califórnia, San Diego. Mestre em Letras pela Universidade

Federal de Viçosa, Minas Gerais (UFV). [email protected]

172

desmotivação e falta de interesse dos alunos, descrença sobre a

aprendizagem na escola regular e até mesmo casos de conflitos nas

interações entre alunos e professores.

Do ensino fundamental ao médio, a maior parte das turmas é

composta por adolescentes. Por ser essa uma fase específica do

desenvolvimento humano, muitas de suas características se

evidenciam na maneira como os alunos interpretam e constroem

sentido das experiências desse período, especialmente as da escola,

uma vez que é um contexto onde passam grande parte do tempo.

Enquanto o adolescente se descobre, nem sempre ele ou ela se

expressa em sala de aula da forma como os professores esperam ou

desejam, especialmente porque estes últimos percebem todo o

potencial de seus alunos nesta fase da vida. Em meio a esses

desafios, podemos considerar ser importante conhecer formas de

lidar com as turmas de adolescentes a partir do que os professores

que possuem experiências com esses alunos fazem em seu

cotidiano.

Mesmo sendo uma questão latente e contemporânea, nota-se,

de acordo com Basso (2008), a falta de preparo dos professores para

lidar com as características específicas de cada idade e seus

desafios para o ensino-aprendizagem de inglês. Isso se reforça

ainda nos cursos de formação, como no caso da licenciatura em

Letras, pela falta de espaço em sua grade para disciplinas e cursos

tão específicos como ensino para crianças ou adolescentes.

Enquanto tais tipos de mudanças não se concretizam, podemos nos

voltar para a sala de aula, considerando quais alternativas são

encontradas por diferentes professores para um problema similar.

Assim, o propósito deste capítulo é analisar, na perspectiva

docente, a construção de sentido sobre ensinar inglês para

adolescentes. Os significados que emergem para descrever o

sentido de tal experiência foram resgatados em uma narrativa de

uma professora para quem a indisciplina escolar permeia seus

relatos como grande desafio.

Para delinear essa narrativa, organizamos este artigo em seis

sessões. Após este preâmbulo, discutiremos os conceitos de sentido

173

e significado na teoria histórico-cultural e como ela fornece o

subsídio teórico para nosso estudo em Linguística Aplicada (LA).

Em seguida, apresentaremos um panorama do estudo, um perfil da

participante e os procedimentos de estudo da narrativa. As duas

seções posteriores constituem a análise: primeiro reconstituímos os

relatos para então discutirmos o sentido de sua experiência. Por

fim, proporemos algumas implicações desse estudo para

professores com desafios similares em outros contextos de ensino.

Por uma noção de sentido na teoria histórico-cultural

Diferentes campos dos estudos linguísticos tomam a

construção de sentido e significados como parte de suas

investigações. Ainda que campos como Pragmática, Semântica e

Análise do discurso se destacam por suas contribuições aos estudos

da linguagem, nos últimos anos, estudiosos dos processos de

ensino-aprendizagem têm dialogado também com perspectivas da

Psicologia do desenvolvimento (LIMA, 2018). Ao longo desta

seção, abordaremos como esse diálogo possibilita outros estudos

na Linguística Aplicada.

As noções de sentido e significado na Psicologia histórico-

cultural foram discutidas no capítulo final de Pensamento e

Linguagem (VYGOTSKY, 1934/2012), mesmo ano de sua morte.

Considerando sua trajetória nos estudos psicológicos sobre o

desenvolvimento mental humano e suas relações com as práticas

culturais da vida social, o psicólogo soviético tomou a palavra

como unidade para o estudo da consciência na relação pensamento

e linguagem.

A palavra se distingue em propriedades essenciais em relação

ao que denominamos sentido e ao significado. O sentido se

constitui de maneira fluida e é explicado por Vygotsky (1934/2012,

p.259) como ‚a soma dos eventos psicológicos‛ na consciência

humana pela palavra. Além de dinâmico, ele é complexo por ser

composto de várias zonas de estabilidade desiguais. Nessa

perspectiva, o significado é talvez a mais precisa das zonas que

174

constituem o sentido. Os significados, por sua vez, são dotados de

estabilidade, pois representam as convenções sociais da experiência

humana. Dessa forma, no entendimento de Vygotsky, o sentido da

palavra emerge do contexto e se modifica, enquanto o significado

se mantém mais estável.

A noção de sentido foi posteriormente retomada por Leontiev

(1978, 1981,2004). Partindo do pressuposto da atividade como

ponto central do desenvolvimento, considerou-a tendo em vista ‚a

interação real que existe entre o sujeito real e o mundo que o cerca‛

(LEONTIEV, 2004, p.103). Para a teoria da atividade, assim como

para Vygotsky (1934/2012), o sentido pode ser expresso pelas

significações. Dito de outra forma, Leontiev (2004) afirma que a

significação se cristaliza na palavra, que por sua vez revela os

traços do conhecimento historicamente produzido em sociedade.

Assim, na construção de sentido, as significações revelam o

conteúdo de uma consciência social que passa a fazer parte de uma

consciência individual, do sujeito que faz parte da vida social com

suas práticas culturais específicas.

Outra questão a salientar é que nessa relação, Leontiev (1981)

utiliza o termo sentido pessoal. Na teoria da atividade, para

compreender o sentido é necessário atentar para a relação entre o

motivo e o objeto da atividade. Portanto, o sentido pessoal se

estabelece entre o que move a ação do sujeito (motivo) e para qual

necessidade ele se orienta (objeto). É por isso que o sentido tem um

valor importante na ação do sujeito, uma vez que, segundo

Leontiev (2004), a atividade é uma relação criada na vida.

Ainda na relação sentido/significado, Vygotsky (1934/2012,

p.259) faz uma breve ilustração. O significado dicionarizado de

uma palavra é ‚não mais do que uma pedra no edifício que é o

sentido‛. Isso significa que no amplo espectro do sentido, o

significado encontra sua potencialidade ao ser materializado na

fala (em palavras, conceitos). Considerando o escopo deste

trabalho, tomaremos como exemplo o conceito de indisciplina para

pensar sobre sentido/significado. Diferentes autores concebem a

indisciplina escolar como distintas manifestações comportamentais

175

com diferentes intensidades que descumprem regras estabelecidas

ou destoam os objetivos centrados no processo de ensino-

aprendizagem. Esse é um de seus significados convencionados

entre pesquisadores e professores (FERNANDES, 2014; LEWIS,

2001). O sentido que as pessoas constroem sobre indisciplina, no

entanto, leva em conta a maneira que alunos e professores

interagem em sala de aula, bem como interpretam as experiências

nesse contexto. Pesquisas em LA dos últimos anos com foco na

indisciplina na aula de inglês, por exemplo, têm tratado desse

fenômeno a partir da perspectiva do aluno e do professor em temas

voltados para a pesquisa de crenças (ZOLNIER, 2007) além da

aprendizagem de inglês em diferentes contextos (FERNANDES,

2014; SANTOS, 2007) e idades (BARCELOS; LIMA, FERREIRA,

2014; BASSO, 2008; LIMA, 2017b).

Para um professor que se orienta pelo seu papel pedagógico de

propiciar o desenvolvimento dos alunos (em uma nova língua), a

indisciplina adquire um sentido específico em sua profissão, como

um empecilho ao seu trabalho e como desafio que pode ocorrer por

diferentes razões. Para um aluno adolescente, o desinteresse pela

aprendizagem escolar2 e o desejo de poder conversar livremente

com seus colegas durante a aula pode ter um sentido diferente de

seu professor, ou como sugerem Barcelos, Lima e Ferreira (2014),

de que nem sempre o aluno se reconhece como parte do problema

ou que determinadas atitudes são de fato indisciplinadas no ponto

de vista deles.

O ponto central, no entanto, é que ao considerarmos a

construção de sentido, temos que buscar a compreensão das forças

que movem o agir e as necessidades do sujeito da atividade. Em

condições desejáveis para o desenvolvimento dos alunos na

aprendizagem escolar, quando estimulados e engajados nas

práticas escolares, empecilhos como a indisciplina provavelmente

2 Pesquisas em Linguística Aplicada apontam que o desinteresse do aluno com a

aula de inglês pode estar relacionada com declínio motivacional (ZOLNIER, 2007),

conflitos entre alunos e professores (FERNANDES, 2014; BASSO, 2008; SOARES,

2007), crenças específicas (BARCELOS; LIMA; FERREIRA, 2014), dentre outros.

176

não fariam parte dessa relação. Dessa forma, em situações em que

são evidenciadas questões disciplinares, cabe compreender como

os sujeitos constroem sentido dessas relações em sala de aula.

Tendo isso em vista, buscaremos tecer tais relações a partir do

sentido construído por uma professora e suas experiências com

uma turma indisciplinada.

Procedimentos metodológicos para o estudo do sentido pessoal

A pesquisa narrativa foi selecionada por ser uma opção

metodológica que preza pela maneira como sujeitos interpretam os

eventos da própria experiência (BRUNER, 2010) e como isso se

relaciona com as decisões e a vivência dessas pessoas. No campo

educacional, a pesquisa narrativa tem sido utilizada por focalizar

momentos de reflexão sobre eventos da própria prática pedagógica

(CLANDININ, 2015; LIMA, 2017a). Para o estudo do sentido,

elaboramos um roteiro com temas para ser discutido ao longo da

narrativa, abordando as primeiras impressões de uma professora

sobre seus alunos, eventos mais marcantes e uma retrospectiva que

representasse como era para ela ensinar inglês para adolescentes.

Chamaremos de PLI, por questões éticas3, a professora

participante deste estudo. Formada em Letras (Português e Inglês)

e tendo mais de vinte anos de experiência no ensino de ambas as

línguas em uma escola pública mineira de porte médio, PLI esteve

afastada do ensino de inglês no ensino fundamental durante alguns

anos. Marcando seu retorno, a narrativa compreende relatos dos

dois anos de trabalho com uma turma de oitavo ano que

posteriormente tornou-se nono entre 2010 e 2011. Os dados fazem

parte de um estudo mais amplo do qual PLI fez parte sobre crenças

de alunos de escola pública.

3 PLI participou de uma pesquisa interventiva de mestrado escolhendo uma de

suas turmas de nono ano para experimentar e avaliar diferentes atividades

pedagógicas conduzidas pelo autor deste capítulo. Ao colaborar com a narrativa,

assinou um termo de consentimento que garantia a proteção do nome da escola,

bem como seu próprio.

177

Uma vez que seu texto estava finalizado, várias leituras foram

realizadas para demarcar os eventos narrados, bem como as

descrições pontuais feitas para caracterizar sua turma de

adolescentes. Ao fim, elaboramos uma cronologia a partir do

primeiro contato, os desafios constatados e que foram retomados

no ano seguinte, até chegarmos em suas considerações sobre seu

papel como professora que lidou com os desafios encontrados ao

longo desses anos.

Reconstituição narrativa do sentido da professora

No primeiro semestre de 2010, por ocasião da divisão de

turmas entre o quadro docente efetivo, PLI decidiu ensinar inglês

novamente no ensino fundamental após alguns anos focada apenas

no ensino médio. Uma de suas primeiras turmas era formada por

alunos de um oitavo ano. Logo no primeiro bimestre, ela

demonstrou ter estabelecido suas primeiras impressões sobre

aquele grupo, conforme descreve a seguir.

Excerto 1

Os alunos falavam muito alto, conversavam todo o tempo, gritavam,

jogavam baralho durante as minhas aulas, respondiam muito mal quando

eram chamados atenção... Para eles, andar pela sala, trocar de lugar,

responder mal a professora, maltratar os colegas, falar palavrões e gargalhar

era muito normal. Não parecia uma turma de estudantes. Parecia mais um

encontro de colegas pra farrear!

As interações com aqueles alunos na aula de inglês eram

caracterizadas pela indisciplina e isso parecia ser um fenômeno

socialmente convencionando entre aqueles alunos, geralmente

materializado de diferentes formas (conversas paralelas, gritaria,

ações inapropriadas, dentre outros). Antes de tentar concretizar os

objetivos que traçou como parte de seu trabalho de ensinar inglês,

ela precisaria interferir nessa realidade buscando uma mudança de

comportamento por parte dos adolescentes, uma vez que as ações

deles atrapalhavam as suas. O sentido inicial parecia grande

178

desafio, uma vez que a descrição do grupo enfatizava

principalmente as falhas dos alunos.

Excerto 2

Eles não têm noção da necessidade de estudar, não valorizam os estudos.

Parece que eles querem aprender, eles querem estudar, mas eles não têm uma

orientação voltada para o sucesso, porque para você obter sucesso você

precisa ter um comportamento adequado. E eu não tenho o tempo bastante

para convencê-los dessa necessidade. Porque eu precisava conhecê-los mais,

para alcançá-los mesmo. E eu pensava que se eu conseguisse fazer com que

eles se comportassem como estudantes, já estaria contribuindo e muito.

O sentido sobre ensinar aqueles adolescentes era estabelecido a

partir de uma contradição preliminar. Se de um lado eles

demonstravam potencial ou interesse para aprender, do outro

reagiam com comportamento incompatível para tal. Ao mesmo

tempo, além de considerar as condições daquele contexto, a

professora se incomodava em ter que lidar com mais esse

contratempo que já afetava a carga horária limitada da disciplina

(duas aulas semanais). Suas ações para lidar com a indisciplina

incluíram inicialmente buscar compreender a lógica adolescente

daquele comportamento para então se aproximar deles. Somente

ao final do primeiro ano, enquanto tentava ganhar a confiança do

grupo, a professora percebeu os primeiros sinais de mudança na

postura dos adolescentes. Interessada em explorar mais a fundo a

possibilidade de ensinar sem preocupar-se com esses problemas

adicionais, ela decidiu que no ano seguinte escolheria a mesma

turma. Observe o próximo relato.

Excerto 3

Não contente com o desempenho em 2010, escolhi-os como alunos em 2011,

uma vez que, sendo a mais antiga na escola, posso, se quiser, escolher as

minhas turmas. E assim, em fevereiro de 2011, lá estava eu novamente,

trabalhando com eles. Apesar de levados, eles são muito carinhosos e

engraçados. Então, isto também fez com que eu os quisesse novamente. É

muito agradável estar ao lado de pessoas carinhosas e engraçadas. E eu

179

detectei na turma, os alunos líderes. Então, a minha estratégia foi elevar os

líderes e trazer para o “positivismo”4 aqueles que eram negativos. Aqueles

menos influentes na turma, eu comecei a evidenciar suas habilidades,

valorizando-os também.

Dada sua posição de escolha das turmas entre as demais

professoras de inglês daquela escola, optou por continuar com os

mesmos adolescentes. A antiga turma de oitavo ano agora tornou-

se a turma da sala 09 formada pelos alunos aprovados do ano

anterior e algumas novas transferências de outras escolas para a

nono ano. Apesar dos problemas com indisciplina relatados

anteriormente, PLI considerou o bom relacionamento que foi

construindo aos poucos, como se ela conseguisse ver o potencial

daqueles alunos que ainda não percebiam o verdadeiro propósito

da aula de inglês.

Mesmo familiarizada com a turma, o começo do ano letivo de

PLI foi marcado novamente pela indisciplina, visto que outros

alunos agora faziam parte daquele contexto. Além de retomar as

estratégias do ano anterior, a professora agiu de diferentes formas

para manter os alunos envolvidos com a aula de inglês. A primeira

ação que emergiu no relato foi o reconhecimento dos adolescentes

mais populares, aqueles que estimulam os demais colegas a

conversar. No estudo de Barcelos. Lima e Ferreira (2014), por

exemplo, os adolescentes revelaram que os alunos mais

extrovertidos envolvem os demais colegas em uma coletividade de

conversas paralelas, risos e outras formas de agir que constituem a

indisciplina.

No caso de PLI, ao mapear esses alunos e tentar trazê-los para

seu lado, ela conseguiu envolver uma parcela importante da turma

que poderia ampliar esse alcance. Outra de suas ações envolveu, ao

invés da simples repreensão, focalizar o potencial dos alunos para

que eles abrissem mão do comportamento que não contribuía com

4 Entendemos que a professora entende este conceito como os alunos que

passaram a se envolver com as aulas evidenciando comportamento considerado

por ela como desejável, ou seja, participativo e respeitoso.

180

seu objetivo de ensinar inglês. Outros sinais de mudança foram

aparecendo, conforme ela relata no próximo excerto.

Excerto 4

[PLI compara as ações dos alunos quando começou a trabalhar com eles com

o momento atual, no nono ano]

Os meninos brigavam um com o outro, com xingamentos e até agressões

físicas. Agora, já não tenho lá, problemas de indisciplina, nem o “terror”

como antes. Eles são capazes de permanecer sentados, falam mais baixo e não

respondem mal. Podem até responder, mas com respeito. Não usam mais

palavrões, nem agressão física.

O cenário problemático do ano anterior se estabeleceu

novamente ao início do nono ano, mas segundo PLI, ele foi dando

lugar a uma postura mais coerente com os objetivos da professora.

O cenário de terror passou a ser mais respeitoso e como apontado

anteriormente, essas mudanças surgiram a partir da intervenção da

professora em lidar com a indisciplina a partir do engajamento com

a aula. Essa mudança, no entanto, não era nem total e nem

definitiva, mas era suficiente para incentivar PLI a ensinar aquela

turma.

Excerto 5

[PLI descreve como os alunos agiam na aula de inglês]

Alguns fazem com má vontade, fazem de qualquer maneira. Mas, há aqueles

que capricham, que me pedem ajuda, que dão mesmo o melhor. Nas

avaliações, percebo que alguns estudam mesmo para fazê-las bem. Como

valorizo o interesse e a vontade de aprender dos meus alunos, posso afirmar

que a maioria tem interesse. Houve um crescimento muito grande em relação

ao comportamento enquanto estudantes.

Novamente a estratégia de reconhecimento e valorização do

adolescente foi mencionada como a forma de fazê-los desenvolver

mais interesse pela disciplina Conforme sinalizado em outros

trabalhos, graus elevados de repreensão (LEWIS, 2001) nem

sempre garantem as melhores respostas dos alunos, mas a tomada

181

de consciência de que a indisciplina limita as condições de

aprendizagem pode ser esse caminho. Ao não perder de vista seu

objetivo principal de ensinar inglês, ela percebeu que aos poucos

grande parte da turma passou a se esforçar mais, o que

possivelmente a estimulava cada vez mais. O sentido inicial

conturbado passou por novas experiências da relação entre os

alunos com PLI naquela atividade educacional, e o que antes era

descrito como um cenário caótico de contradições agora significava

potencial em andamento. Considerando a questão do potencial, ela

abordou ainda a possibilidade de aprender inglês em seu contexto

de trabalho.

Excerto 6

É possível iniciar os meninos no estudo da Língua Inglesa e incentivá-los a

buscar mais. Acho que o tempo que passo com eles é pouco para incentivá-los

mais. A respeito da bagunça, é característica deles, eles não bagunçam

somente na aula de inglês, eles fazem bagunça inclusive na de matemática e

na de português (que inclusive sou eu a professora de português deles). Essa

característica é falta de orientação para um comportamento mais atencioso

nas aulas, um comportamento mais adequado. O ponto positivo de tudo isso

[da bagunça] é o fato de eu me preocupar em preparar aulas mais chamativas

ou melhores para a turma. Isto é o que venho fazendo ultimamente, tentando

sempre mostrar a eles a importância de aprender Inglês e dando a eles

alternativas para buscar a aprendizagem do idioma.

Quando a indisciplina consegue ser contornada, ensinar inglês

se torna uma possibilidade, ainda que ela tenha explicado que o

tempo disponível é insuficiente para envolvê-los mais para

aprender. A professora aparentemente aceitou a ‚bagunça‛ do

adolescente como algo não exclusivo da disciplina de inglês, mas

da vida do adolescente que tem interesses que não estão

necessariamente na sala de aula. O motivo que a faz agir é tentar,

por meio do ensino de inglês, que seus alunos se interessem em

aprender, ou em outras palavras, que eles também formem

motivos que favoreçam uma postura mais consciente e responsável

pela própria aprendizagem escolar. As reflexões de PLI, no

182

entanto, não se esgotaram no trecho anterior, pois ela considera

ainda seu papel como professora de inglês de uma escola pública.

Excerto 7

Vejo sim, possibilidade de meus meninos da sala 09 aprenderem Inglês, mas

estão aprendendo menos do que precisam e podem, não porque são limitados,

mas porque têm uma professora que trabalha com muitas turmas, não

podendo assim, atender as necessidades para uma aprendizagem maior.

Também o tempo é inferior às suas necessidades. Gostaria de ressaltar que

faço o que posso. Não cruzo os braços.

Mesmo tendo afirmado conceber a possibilidade de ensinar

inglês, essa possibilidade tem um sentido condicional, visto que a

possibilidade de ensino não depende apenas da relação aluno e

professor, mas também de sua cidade, estado e país. Sua narrativa

retratou bem os outros fatores que também cooperam para a

qualidade do ensino como a insuficiência do tempo dedicado à

disciplina, bem como a carga horária de um professor de escola

pública. Ao mesmo tempo, ela não abdicou de suas

responsabilidades, uma vez que tenta fazer a diferença dentro das

condições disponíveis. A seguir, ela explica o que orientava seu

trabalho na maneira como lidava com seus adolescentes.

Excerto 8

É preciso conversar com eles, estar mais perto, não como amigo, porque o

adolescente precisa muito é de firmeza, coerência, respeito e amor. Como hoje

em dia, os pais saem pra trabalhar e trabalham muito, às vezes, o adolescente

não têm muito convívio com eles. Aí, se somos coerentes com as ordens que

damos, se somos misericordiosos com eles, mas exigindo responsabilidade por

parte deles, alcançamos a confiança dos meninos. E aí, o trabalho fica menos

difícil. A gente precisa saber aceitar as limitações deles, porque nós também

temos limitações, e muitas...

Três traços fundamentais constituem o motivo de sua

atividade: persistência, coerência e auto-crítica. A persistência foi a

estratégia necessária para lidar com a maneira que os adolescentes

183

testam os professores diariamente quando desrespeitam sua

autoridade em sala de aula ou desconsideram os objetivos

estabelecidos para aprendizagem naquela disciplina. A coerência

foi outra estratégia necessária não apenas pelas regras introduzidas

por PLI de não tolerar indisciplina, mas por serem respeitadas e

reforçadas, mostrando limites ao adolescente. Isto foi evidenciado

anteriormente em seu relato acerca da repreensão aliada às

tentativas de fazer com que eles realizassem o que era proposto. E

por fim, a autocrítica consistiu no reconhecimento de que não

caberia naquele contexto responsabilizar a indisciplina do aluno

como única responsável pelos problemas existentes. Seu relato faz

ainda uma ressalva conclusiva sobre a situação de trabalho e o que

busca fazer em sua prática pedagógica.

Excerto 9

Então, o aluno adolescente não é o ideal, mas o professor, o sistema

educacional, o material didático também estão longe do ideal. E é isto, sigo a

minha caminhada fazendo o melhor que posso, mas não fico à procura da

turma pronta. É muito bom saber que a melhoria que alcançamos até aqui,

tem um pouquinho do meu esforço.

Apesar dos problemas evidentes, PLI sentiu que fez sua parte

enquanto as condições não mudaram. A satisfação entre todos os

problemas foi perceber sinais de melhoria de alunos que chegaram

desinteressados, mas que aos poucos começaram a participar mais,

tentando aproveitar o que ela se propôs a ensinar. A narrativa

apresentou vários desafios que facilmente poderiam ter resultado

em um conflito entre a professora e seus alunos adolescentes,

contribuindo para os significados comuns na sociedade que

representam essa faixa etária como grande desafio para os

professores. Todavia, ela mostrou também que as ações da

professora, ao serem impulsionadas por forças que reafirmavam

seu papel profissional, resultaram em possibilidades concretas de

ensinar inglês. Ainda que essas condições, segundo ela, não

representaram a totalidade do potencial que ela anseia na

profissão, sente que de alguma forma está fazendo a diferença.

184

Considerações sobre o sentido na narrativa de PLI

Após a reconstituição dos relatos de PLI sobre ensinar inglês

para sua turma de adolescentes, cabe resgatar o sentido pessoal

elaborado pela participante ao longo dessa atividade.

Consideraremos para a representação do sentido, não apenas a

perspectiva do indivíduo, mas sua relação com as necessidades

sociais que configuram a existência tipicamente humana (ensino-

aprendizagem).

Do ponto de vista da teoria histórico-cultural o sentido

compreende a interpretação do indivíduo dos fenômenos

psicológicos pela capacidade mental (VYGOTSKY, 1934/2012).

Todavia, não se trata de um isolamento da interpretação do

indivíduo, mas uma relação que se estabelece na mediação com

mundo, ou seja, em uma atividade (LEONTIEV, 1978). Ao

considerarmos a prática educativa como uma atividade, e mais

especificamente o ensino de língua inglesa, entendemos que ele se

organiza a partir de um necessidade social que engloba a formação

de indivíduos capazes de fazer uso dessa língua em diferentes

práticas sociais do mundo contemporâneo (em seu trabalho local,

em viagens ao exterior, no acesso à internet, dentre outros

exemplos). O ensino, no entanto, não se organiza aleatoriamente,

mas a partir de motivos que atuam como a esfera motivacional da

consciência (LEONTIEV, 1981, p.59), e, no plano das ações, a partir

da relação com objetivos.

Na presente narrativa, observamos que um dos motivos que

orientam PLI é o entendimento do papel do professor em propiciar

condições para aprendizagem que contribuam ao desenvolvimento

humano, neste caso do ensino de línguas. Dessa forma, a

professora inicia mais um ano letivo, mas vê seu trabalho impedido

pelo que ela descreve como comportamento indisciplinado e

desinteressado de seus alunos. Tal relação estabeleceu um sentido

inicial do ensino com os adolescentes como problemático e

contraditório. Da resistência frente a essas contradições, ela buscou

formas de lidar com a indisciplina a partir de suas ações em sala de

185

aula. Com o objetivo de contornar a situação para então buscar

formas de envolvê-los com suas propostas da aula de inglês, a

professora agiu de diferentes formas, sobretudo baseada em

tentativas de repreensão e valorização. Se de um lado houve

enfrentamento direto ao tentar mostrar que aquele comportamento

era incompatível com a atividade (ensino de línguas), do outro

houve o interesse em compreender o impacto da indisciplina a

partir dos alunos que incentivavam a turma, para que estes

pudessem participar das aulas e aos poucos mudarem o

comportamento indesejado do grupo.

Os relatos de PLI ressaltam o papel das forças internas que

movem o agir pedagógico. Não apenas do ponto de vista

individual (a professora desejando cumprir seu papel profissional),

mas do social (a contribuição para a vida em sociedade ao formar

alunos que adquirem determinados conhecimentos e os utilizam

para diferentes necessidades). Esta relação dinâmica do social que

transforma a vida individual (a consciência, as capacidades

mentais) representam o eixo central da teoria histórico-cultural.

Conforme sugerido por Leontiev (2004), o entendimento do sentido

se dá a partir não apenas da compreensão individual do sujeito,

mas da relação entre o aquilo que o faz agir (o motivo) e para

aquilo que ele age (o objeto de sua atividade). Dito de outra forma,

para compreendermos o sentido pessoal de uma professora sobre

ensinar inglês para adolescentes buscamos compreender a relação

entre o que a faz agir (o querer propiciar mais conhecimento para

seus alunos) e para que direção ela age (para conseguir ensinar essa

língua).

Entre os esforços para ensinar inglês e o real ensino que ela

conseguia propor naquelas condições, encontramos o sentido da

professora. Ensinar adolescentes foi, inicialmente, complexo pela

contradição de ter alunos com potencial e que ao mesmo tempo

eram desinteressados ou indisciplinados. O sentido foi se

modificando conforme ela agia de diferentes formas para torná-los

mais participativos, algo que ela explica como a necessidade de

mostrar direção para o aluno que nem sempre percebe nessa idade

186

a importância do que a escola oferece para sua formação. Este é

inclusive um ponto central dessa questão. O sentido se

transformou na dinâmica entre um começo tumultuoso e tentativas

posteriores de intervir de forma a suprir as necessidades (sociais)

que organizam a atividade. Apesar do senso de auto-crítica para

reconhecer que a situação atual de ensino (condições físicas, carga

horária de trabalho) não são as melhores, acredita ter

desempenhado seu papel sem se deixar derrotar pelos percalços

encontrados.

Comentários finais

Ao propormos o estudo do sentido de uma professora de

inglês com seus alunos adolescentes, observamos em seus relatos a

constituição de uma experiência dinâmica que não restringe o

aluno ao estereótipo do aluno problema. Apesar de partir dessa

primeira impressão, ao ser orientada por seu papel como

professora, PLI enfrentou o problema sugerindo ao fim ter

conseguido envolver os alunos na aula de inglês. Tendo em vista

essas considerações, podemos concluir este trabalho com duas

implicações acerca do estudo do sentido de professores. Ainda que

os contextos e os sujeitos se diferenciam em cada sala de aula, esses

resultados qualitativos podem se assemelhar com a realidade de

outros professores que lidam com eventos similares.

Em primeiro lugar, o sentido revela a dinâmica do sujeito que

interpreta um todo complexo e não fenômenos isolados da

experiência. Na atividade escolar, a professora olha para seus

adolescentes ao mesmo tempo em que olha para si buscando as

forças necessárias para não perder o foco de seu trabalho. A relação

entre ambos introduz a segunda implicação: a consciência da

professora de seu papel profissional. A narrativa de PLI nos

permite inferir que, apesar do incômodo, não se intimidou com a

indisciplina de sua turma.

Dada sua experiência como professora naquele contexto,

sentiu-se confortável em reconhecer o problema e agir. Isso reforça

187

o papel da formação de motivos, a força interna da atividade de

alunos e professores. Os resultados poderiam ter sido diferentes se

PLI tivesse se sentido intimidada pelo comportamento deles ou

tivesse ignorado o problema e conduzido suas aulas normalmente.

Estudos futuros podem considerar o sentido de professores em

início de carreira lidando com o mesmo problema. Sabemos que,

apesar de recorrer a significados estáveis do que é indisciplina

(comportamento indesejável que atrapalha a aula), o sentido

estabelecido na atividade de professores em diferentes contextos é

complexo e dinâmico, e ele deve ser explorado por mais pesquisas

em formação de professores mostrando o conhecimento produzido

por pelos sujeitos que vivenciam concretamente esses desafios.

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190

/////////

/////

191

A inserção do jovem no mercado de trabalho diante das

novas modalidades de Ensino Médio: uma intervenção com

os alunos do 3º ano do Ensino Médio da Escola de Educação

Básica Cristo Rei de São João do Oeste/SC

Daiane Formagini1

Edenilza Gobbo2

Introdução

O presente trabalho tem a intenção de analisar a inserção dos

jovens no mercado de trabalho, diante das novas modalidades de

ensino médio que estão sendo implantadas no Brasil. Educação e

trabalho são garantias fundamentais, uma vez que, não se pode

falar em vida digna sem conciliar uma educação de qualidade e a

busca por um trabalho justo, que possa garantir o bem-estar do

indivíduo, tanto na convivência familiar quanto social.

Após uma série de debates, polêmicas e instabilidade política,

passou a vigorar em 16 de fevereiro de 2017, a Lei nº 13.415, que fez

uma série de alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional – LDB, instituindo a Política de Fomento à

Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.

Entre as inúmeras mudanças elencadas pela nova legislação, é

possível apontar o artigo 24 da LDB, que traz a nova carga horária

para o ensino fundamental e médio, que de modo progressivo deve

ir das 800 (oitocentas) horas ano para 1400 (mil e quatrocentas)

horas ano, em um prazo de no máximo 5 (cinco) anos, a partir de

02 de março de 2017.

Inovar, pensar em novas possibilidades para os jovens

brasileiros é uma necessidade, priorizando sempre pela formação

1 Pós-graduanda em Direitos fundamentais da família, criança e adolescente; Graduada em

Direito e História. Professora e Advogada. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Direito. Professora dos cursos de graduação e Pós-Graduação da Universidade

do Oeste de Santa Catarina – UNOESC – campus de São Miguel do Oeste. E-mail:

[email protected]

192

plena. Neste sentido, a intenção do novo formato do ensino médio

é em dispor de novos recursos de formação, ampliando as

oportunidades e conhecimentos dos jovens no Brasil.

Entretanto, desde a ampliação da duração do ensino

fundamental de oito para nove anos, com a Lei nº 11.274 de 2006,

os alunos que tiverem 100% (cem por cento) de aprovação na vida

escolar, concluem o ensino médio com 18 (dezoito) anos de idade.

Nesta idade muitos já buscam pela inserção no mercado de

trabalho, ou então, já estão inseridos em atividades laborativas,

inclusive na condição de jovem aprendiz (política pública de

inserção dos adolescentes e jovens no mercado de trabalho).

Todavia, com a integralização do ensino médio, os jovens não

mais poderão conciliar a vida escolar com a profissional. Isto já

vem sendo sentido pelas escolas da rede estadual de Santa

Catarina, que oferecem na sua matriz curricular o ensino médio

inovador (modalidade em que os alunos frequentam a escola por

no mínimo sete períodos da semana, sendo cinco períodos no

regular e no mínimo dois períodos de contraturno).

O fato de estar mais tempo na escola, tem feito com que muitos

jovens ao completar dezoito anos de idade, quando não é mais

obrigatório estar na escola, evadam desta sem ao menos concluir o

ensino médio, em busca do tão sonhado ingresso no mercado

profissional, seja pela busca da autonomia econômica ou para

contribuir com a renda da família, uma vez que a identidade do

trabalho é um fruto histórico no extremo oeste de Santa Catarina.

Diante disso, vive-se um momento histórico em que a

frequência escolar e a inserção no mercado de trabalho andam por

caminhos distintos. Estão em choque dois direitos fundamentais: o

acesso a uma educação de qualidade e a busca por um trabalho que

possa garantir a dignidade. A consequência disso é a evasão escolar

de parte dos jovens com formação incompleta, afim de ingressar no

mercado de trabalho, pois não conseguem conciliar o tempo

presente na escola com a vida profissional.

Desta maneira, o presente estudo busca levantar quais seriam

os meios para garantir o acesso e a permanência dos jovens na

193

escola e a inserção no mercado de trabalho simultaneamente, sem

infringir estas duas garantias fundamentais, por fim foi ouvido o

público alvo, os jovens, para entender quais são as reais pretensões

destes.

Educação e trabalho

O presente artigo tem como fim a abordagem acerca da nova

estrutura do ensino médio em tempo integral ou semi-integral e a

inserção do jovem no mercado de trabalho, uma vez que duas

garantias fundamentais, educação e trabalho, estão em choque. O

fato dos educandos passarem mais tempo na escola, em período

semi-integral ou integral, durante o ensino médio, afasta estes da

possibilidade de serem inseridos no mercado de trabalho ainda no

período em que são estudantes.

Ter uma formação de qualidade é indispensável na sociedade,

neste sentido afirmam Masson e Rigoni (2017)3 que,

A educação atua como agente assegurador do respeito e da

dignidade humana. Não há que se falar em vida digna sem se

considerar as possibilidades de vivência de oportunidades

educacionais. A educação é um processo individual, mas também

social, apto a dar subsídios para a construção da personalidade

humana e condições para o desfrute de uma vida digna com

liberdade e igualdade.

Assim, ter acesso à educação é um meio de emancipação, de

consolidação do indivíduo como ser social, capaz de transformar o

local onde vive, ser agente transformador. Aumentar o tempo de

escola, é uma tentativa de repensar o ensino médio, com a intenção

de melhorar a formação disponibilizada aos educandos, pois a

3 Documento eletrônico que não consta número de página, consulta realizada no

ano de 2018.

194

educação é essencial para a formação de bons profissionais,

capazes de repensar a sociedade em que se vive.

Devido a ampliação do tempo de escola, os jovens estão

concluindo o ensino médio, em média com 18 anos de idade. Com

esta idade os mesmos já poderiam ter ingressado no mercado de

trabalho, porém o fato de estar na escola pelo período semi-integral

ou integral, os impossibilita de ingressar no mercado de trabalho

antes de concluírem o ensino médio.

A impossibilidade de conciliar escola e trabalho, de regra, tem

feito com que alguns jovens optem pelo trabalho e acabem por

evadir da escola, antes de concluir o ensino médio. Diante tais

constatações, o presente trabalho busca entender como seria

possível conciliar o tempo escolar e a inserção ao mercado de

trabalho, a fim de diminuir a evasão escolar devido a busca

profissional, pois o fato de não concluir o ensino médio, poderá

acarretar prejuízos profissionais futuros.

Direito fundamental à educação e as novas modalidades de

ensino médio

Em 1988 passou a vigorar a nova Constituição Federal do

Brasil, e entre os vários aspectos contemplados na mesma, estavam

as novas orientações para a educação brasileira. As premissas

básicas da educação bem como os princípios educacionais estão

elencadas na Carta Magna de 1988.

A prioridade da educação passou a ser a formação democrática

e cidadã, sem esquecer a capacitação para o mercado de trabalho,

com o desenvolvimento integral do ser humano. Buscar meios para

tornar a educação acessível a todos, garantir o acesso e

permanência em todos os níveis de formação, com parceria entre

família e Estado, efetivando a educação como um compromisso

social, com esta intenção que a educação deve ser pensada e

ofertada.

Complementando a legislação democrática no âmbito da

educação, foi criada em 1996 a nova Lei de Diretrizes e Bases da

195

Educação - LDB, que apresenta de maneira detalhada os direitos,

os princípios e organiza os aspectos gerais da educação brasileira.

A legislação prima pelo acesso e permanência das crianças e

adolescentes em uma escola pública e de qualidade, priorizando a

formação cidadã e integral, assegurando a educação como um dos

direitos fundamentais.

Conforme Flavia Martins da Silva (2006), os direitos

fundamentais são entendidos como garantias plenas, de acesso a

todos os seres humanos, que buscam concretizar a proteção

integral. O Estado deve buscar os meios necessários para dispor a

todo seu povo estas garantias fundamentais, uma vez que, estes

direitos se adaptam ao momento histórico em que a sociedade está

vivendo.

A educação está elencada entre os direitos fundamentais no

Brasil, deste modo, cabe ao Estado brasileiro, mais do que ofertar

educação, priorizar por meios para que ocorra acesso e

permanência a uma educação de qualidade. Priorizando o

desenvolvimento físico, moral e intelectual do ser humano, para

uma formação integral e o pleno exercício da cidadania, pensando

a educação como um mecanismo de transformação social.

Para evitar a evasão escolar, deve-se priorizar a qualidade na

educação. Conforme dispõe Amin (2014, p. 99), para que a

permanência na escola seja atingida deve-se ter bons profissionais,

boa estrutura física, bons matérias didáticos, alimentação de

qualidade e o incentivo da família sobre a importância da educação

para uma vida digna e de qualidade. Dessa forma, despertar-se-á

nas crianças, adolescentes e jovens a importância da educação para

encarar os desafios pessoais e profissionais pelos quais irão se

defrontar.

Apenas em 2009, com a Emenda Constitucional nº 59, é que o

ensino médio passou a estar contemplado como educação básica

obrigatória no Brasil, portanto é uma política pública recente.

Devido a isso, o Brasil tem hoje uma geração de jovens mais

escolarizada que os seus pais, mas que nem sempre veem sentido

196

em estar na escola ou em vincular uma maior formação escolar com

mais possibilidades no mundo profissional.

Tornar o ensino médio atraente para os jovens, fazer com que

eles tenham na escola um alicerce para uma boa formação cidadã e

profissional ainda é uma necessidade, neste sentido se faz

necessário repensar a educação, para que esta atinja aos anseios da

juventude. Nora Krawczyk (2009), destaca que diante das novas

relações de trabalho do mundo contemporâneo, o conhecimento é o

capital mais importante do trabalhador, neste sentido, ganha força

a ideia de que o ensino médio completo facilita a inserção do jovem

no mercado de trabalho.

Ainda em 2009, por meio da Portaria 971 o Governo Federal

criou o Programa Ensino Médio Inovador, com a intenção de

apoiar e fortalecer o desenvolvimento de propostas curriculares

inovadoras em escolas de ensino regular. Com está nova

modalidade buscou-se tornar o ensino médio mais acessível a

todos e criar uma escola que tenha sentido, contribuindo

diretamente na formação dos jovens, seja para o mercado de

trabalho ou para a continuidade de formação.

Em Santa Catarina, desde 2010, a Secretaria de Estado da

Educação implantou o Programa Ensino Médio Inovador

(ProEMI), em que o principal objetivo é dar oportunidades aos

adolescentes e jovens na ampliação do tempo escolar, garantindo a

formação integral com a inserção de atividades que tornem o

currículo mais integrado e dinâmico, priorizando currículos

organizados a partir de um planejamento interdisciplinar,

construído coletivamente.

O ensino médio inovador já é comum nas escolas de Santa

Catarina, onde por meio de projetos, se busca dar novas

oportunidades aos educandos, com um maior tempo de presença

na escola (sete a oito turnos semanais de aula), priorizando pela

formação integral dos jovens.

Pensando em como melhorar a formação dos jovens, dando um

maior suporte educacional é que se repensou a matriz curricular do

ensino médio, sendo que em 16 de fevereiro de 2017, passou a

197

vigorar no Brasil a Lei nº 13.415, que fez uma série de alterações na

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, instituindo

a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino

Médio em Tempo Integral, que prevê um aumento da carga horária

frequentada junto a escola, para 1400 (mil e quatrocentas) horas

ano, em um prazo de no máximo 5 (cinco) anos, a partir de 02 de

março de 2017.

Portanto, independente da modalidade de ensino médio em

que os jovens estejam inseridos, o objetivo comum é que todos

tenham acesso a uma formação básica e de qualidade, que possa

contribuir com a formação intelectual e profissional dos mesmos.

O jovem e a inserção no mercado de trabalho

Na região extremo oeste de Santa Catarina a cultura do

trabalho se faz presente desde o período da colonização, onde

desde cedo se busca inserir as pessoas nas relações de trabalho, seja

para auxiliar os familiares ou até mesmo com o objetivo de

complementar a renda da família, tendo presente a ideia de que o

trabalho dignifica.

Neste viés, afirmam Masson e Rigoni (2017)4, que

O trabalho é indispensável ao desenvolvimento da sociedade

humana, possui relevância fundamental na esfera econômica e

individual em face da sua capacidade de gerar bem-estar psicológico

ao ser humano. É por intermédio do trabalho que o homem se afirma

socialmente.

O trabalho é algo tão presente e importante entre brasileiros,

que a Constituição Federal de 1988, traz entre suas garantias

fundamentais o acesso ao trabalho. Um trabalho que garanta a

dignidade do ser humano, que possibilite a viver de forma plena

em sociedade.

4 Documento eletrônico que não consta número de página, consulta realizada no

ano de 2018.

198

Estar inserido no mercado de trabalho, faz com que o ser

humano se sinta ativo e atuante na sociedade. Neste sentido, ser

jovem, é ainda mais significativo, pois é nesta idade que escolhas

são feitas, estas decisões feitas na juventude, darão rumo ao

amanhã. Neste sentido, Souza (2003)5, diz que ‚o período

denominado juventude constitui um processo de transição em que

os indivíduos passam de uma dependência completa na infância a

uma plena autonomia que caracteriza a vida adulta‛, a busca pela

autonomia está diretamente vinculada ao trabalho.

Ser jovem não é garantia de ser inserido no mercado de

trabalho, pois a concorrência é cada vez maior e nem todos vão

atingir de imediato o que almejaram quanto a realização

profissional. A juventude vem se reinventado ao longo dos tempos,

com novas expectativas e necessidades, e neste contexto a escola e

o trabalho se fazem presentes, onde um dos principais objetivos

pela busca do conhecimento está na necessidade de inserção no

mercado de trabalho, pois é por meio do trabalho que o ser

humano se sente pleno e realizado.

A formação frágil dos jovens se faz sentida na atualidade,

quando estes chegam no mercado de trabalho com baixa

escolaridade, ou até mesmo com uma formação deficitária, o que

limita as possibilidades. Neste sentido, dispõem Almeida e

Guimarães6, que ‚a situação dos jovens no país é agravada pela

baixa escolaridade média e pela precária qualidade da educação,

deficiências que se tornam mais sérias em face das exigências do

paradigma produtivo pós-fordista‛.

Almeida e Guimarães complementam que outra característica

brasileira é a baixa idade com que os jovens buscam ingressar no

mercado de trabalho, normalmente frutos da evasão escolar,

impulsionados pela necessidade e busca de independência

financeira momentânea, sem se preocupar com o futuro a médio e

5 Documento eletrônico que não consta número de página, consulta realizada no

ano de 2018. 6 Documento eletrônico que não consta número de página e ano, consulta

realizada no ano de 2018.

199

longo prazo. O trabalho é estruturante para os jovens, em muitos

casos, o acesso ao trabalho vai delinear uma nova rota, novas

possibilidades para mudar a realidade que muitos estão inseridos,

auxiliando na construção da cidadania.

É certo que o trabalho é indispensável ao desenvolvimento do

ser humano e da sociedade, neste sentido afirmam Masson e Rigoni

(2017) que é por meio do trabalho que se almeja a independência

econômica, chegando deste modo ao bem-estar social e psicológico

do ser humano. Pois é através do trabalho que o homem se realiza,

construindo o seu existir de modo digno e pleno.

O direito ao trabalho é uma garantia do ser humano, porém, é

tarefa dos poderes públicos a efetividade desse direito. Pensando

em assegurar a inserção dos jovens no mercado de trabalho é que

foi promulgado o Decreto nº 5.598/2005, que regulamenta a

contratação de aprendizes, buscando inserir no mercado de

trabalho, os adolescentes e jovens, na faixa etária de 14 (catorze) a

24 (vinte e quatro) anos de idade, na condição de jovem aprendiz.

Deste modo, tem-se a legislação a favor da formação e inserção

dos jovens no mercado de trabalho, para que estes tenham mais

possibilidades de profissionalização, para que assim consigam

garantir os seus direitos, aumentando a possibilidade de escolhas e

a busca pela realização pessoal e profissional.

Os jovens diante do novo ensino médio e a inserção no mercado

de trabalho

É indiscutível que a educação deve prezar pela formação

integral do ser humano, preparando-o para o trabalho e a vida em

sociedade. Deve-se priorizar pelo acesso, permanência e êxito

educacional, pois com uma educação de qualidade teremos a

emancipação do ser humano, e quanto mais ampla a formação

intelectual, maior as possibilidades de acesso e sucesso junto ao

mercado profissional.

Educação e trabalho são duas garantias fundamentais, que

devem se complementar de modo harmonioso, mais do que

200

desenvolver o ser humano, devem criar novas possibilidades para

o país, pois como j{ dizia Nelson Mandela, ‚a educação é a arma

mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo‛.

O que tem se percebido é um tanto frustrante, pois diante do

ensino médio inovador que é semi-integral, ou o novo ensino

médio que é na modalidade integral, alguns jovens tem evadido da

escola antes de concluir o ensino médio. Com a maior carga horária

de horas-aulas, os jovens não conseguem conciliar escola e

trabalho, e muitos sem pensar no amanhã, optam pelo mercado de

trabalho.

Concluir o ensino médio é essencial, é formação básica. Agir

pelo momento, abandonando a escola, possivelmente trará

repercussões negativas na vida profissional dos jovens de hoje e

adultos do amanhã.

Pensando em entender as escolhas dos jovens e as angústias

que os cercam na busca pela formação e na inserção ao mercado de

trabalho, foi realizada uma pesquisa de campo, junto aos alunos do

3º ano do ensino médio inovador da Escola de Educação Básica

Cristo Rei, de São João do Oeste/SC.

Relato de experiência: pesquisa realizada junto aos alunos do 3º

ano do ensino médio da escola de educação básica Cristo Rei De

São João do Oeste/SC

Pensando em ouvir os mais interessados no assunto, os jovens,

no dia 02 de outubro de 2018 realizou-se pesquisa com os alunos

do 3º ano do ensino médio da Escola de Educação Básica Cristo

Rei. A escola pertence a rede estadual de educação de Santa

Catarina, seguindo os conteúdos previstos na Proposta Curricular

deste Estado, bem como suas normas e diretrizes. O educandário

localiza-se na Linha Cristo Rei, zona rural do município de São

João do Oeste/SC e atende alunos desde o 6º ano do ensino

fundamental até o 3º ano do ensino médio.

Inicialmente ocorreu contato com a escola, a qual sinalizou

disponibilidade para o desenvolvimento do trabalho. Em conversa

201

prévia com a equipe diretiva, foi informado que o ensino médio

adotado pela escola é o inovador, no caso em específico todos os

alunos do ensino médio frequentam a escola por sete períodos,

sendo 5 manhãs e 2 tardes, seguindo a ementa disponibilizada pela

Secretaria Estadual de Educação de Santa Catarina.

Foi informado pela direção da escola que atualmente 49 alunos

frequentam o ensino médio inovador do educandário, sendo que

destes 16 se encontram no 3º ano, prestes a concluírem o ensino

médio. Outro fato que merece destaque é que no início do ano

letivo a turma possuía 17 alunos, mas que um dos estudantes ao

completar 18 anos de idade evadiu da escola para poder ingressar

no mercado de trabalho.

Após estas informações iniciais ocorreu o momento de

interagir com os alunos do 3º ano do ensino médio, que atualmente

são 16 jovens. Em um primeiro momento foi apresentado aos

educandos a proposta do trabalho e realizado uma conversa sobre

possibilidades entre educação e trabalho. A seguir foi entregue a

cada estudante um questionário composto por 20 perguntas, que

tinham por objetivo conhecer a turma, bem como suas pretensões e

o entendimento destes sobre a escola e a busca pelo primeiro

emprego, voluntariamente os educandos responderam às

perguntas segundo o entendimento que possuem sobre o assunto.

Como já narrado anteriormente os 16 alunos do 3º ano do

ensino médio da escola pesquisada frequentam a modalidade

inovador, onde os educandos estão no educandário por sete

períodos. Destes, 12 são do sexo feminino e 4 masculinos, sendo

que atualmente 9 dos entrevistados possuem 17 anos de idade e 7

tem 18 anos de idade.

Ao serem questionados com que idade projetam concluir o

ensino médio, 5 estudantes acreditam que com 17 anos e já 11

esperam concluir com 18 anos de idade, o que dá um percentual de

68,75% de concluintes com 18 anos já completos. O que confirma as

informações já narradas anteriormente, que a maioria dos

estudantes está concluindo o ensino médio com 18 anos já

completos.

202

Mesmo considerando que dos 16 estudantes, apenas 1

respondeu já ter tido reprovação durante a vida escolar, se os

jovens tiverem 100% de êxito durante o seu período de escola, estes

na sua grande maioria concluirão a educação básica já com 18 anos

de idade.

Fonte: os autores

Apenas em 2009 o ensino médio passou a ser obrigatório na

educação básica de todo país, desde então uma série de mudanças

estão sendo implementadas, com a intenção de tornar esta fase da

vida escolar mais atrativa e significante para a formação dos

jovens. Entre estes diversos modelos já criados na educação,

segundo dados da Secretaria Estadual de Educação de Santa

Catarina, em 2016 o ensino médio inovador – ProEMI já era

adotado em 155 unidades de educação do Estado. Porém, em 2017

passou a vigorar no Brasil a Lei nº 13.415, que incentiva o ensino

médio em tempo integral, e desde então se lançou um novo

desafio, que é repensar a estrutura das escolas para atender os

novos ditames legais.

Apesar desta série de mudanças, ao indagar os jovens

estudantes sobre como estes vêem a modalidade de ensino médio

que frequentam, os sentimentos variaram entre a possibilidade de

desenvolver mais projetos o que possibilita um maior aprendizado

ao fato de os impossibilitar o ingresso no mercado de trabalho,

sendo este o entendimento da grande maioria dos participantes da

31,25%

68,75%

Idade de Conclusão do Ensino Médio

17 Anos 18 Anos

203

pesquisa. Diante tal constatação, cabe repensar e indagar se é isso

que realmente os jovens esperam em relação a educação?

Tanto que, ao serem indagados se acreditavam que a

modalidade de ensino médio que estão frequentando está

agregando mais conhecimento do que se frequentassem o ensino

médio convencional, 9 alunos acreditam que sim e 7 acreditam que

não.

O fator que aparece como sendo um dos motivos do

descontentamento da educação semi-integral é o pouco tempo

disponível para o ingresso no mercado de trabalho durante o

ensino médio, uma vez que 100% dos participantes afirmaram que

gostariam de ter tempo para o trabalho atualmente. Por outro lado

apenas 12,50% dos estudantes afirmaram ter disponibilidade de

tempo para conciliar escola e trabalho hoje em dia.

Fonte: os autores

Neste sentido, ao indagar os estudantes se estes consideram

importante ter um emprego neste momento de suas vidas, 100%

deles afirmaram que sim, entre os motivos que estes usaram para

justificar sua resposta se sobresai o fato de ir adquirindo

experiência e alguns somaram a isto o fato de ter uma renda

própria, fato que lhes daria uma maior independência.

Tal situação fica evidente ao questionar os educandos se

estes já chegaram a pensar em parar de estudar para trabalhar, pois

50% dos entrevistados afirmaram que sim, que já pensaram em

12,50%

87,50%

Disponibilidade de tempo para ingressar no mercado

de trabalho durante o ensino médio

Sim Não

204

abandonar a escola, devido a intenção de se inserir no mercado de

trabalho.

Fonte: os autores

Ao justificar tal indagação, as respostas variaram, entre o

fato de estar quase concluindo o ensino médio, por ter que seguir

determinação legal e a preocupação com o futuro, onde ter o ensino

médio concluido é visto como formação básica e considerada

indispensável por estes.

Mesmo prestes a concluir o ensino médio e havendo

pretensão ao trabalho, 62,50% dos entrevistados afirmaram que não

se sentem preparados para ingressar no mercado de trabalho,

mesmo frequentando uma modalidade ensino médio diferenciada,

que tem como pretensão a formação integral do sujeito.

A intenção de trabalhar se mostra tão presente entre os

alunos, que ao questionar os mesmos sobre qual a pretensão após

concluir o ensino médio, ninguém respondeu que pretende só

estudar, já 12,50% pretendem somente trabalhar, e a grande

maioria de 87,50% tem a intenção de continuar estudando e ao

mesmo tempo trabalhar.

50% 50%

Jovens que já pensaram em abandonar a escola para

poder trabalhar

Já pensou Não pensou

205

Fonte: os autores

Tal fato mostra que a maioria dos estudantes querem continuar

estudando, porém, os mesmos sentem uma certa frustação ao não

conseguir conciliar a vida escolar com a profissional, situação cada

vez mais presente devido ao fato da maioria dos estudantes

concluir o ensino médio com 18 anos de idade.

Resposta semelhante foi obtida ao questionar os jovens

estudantes sobre qual é a prioridade da família, uma vez que

87,50% afirmaram que a prioridade familiar é que estes estudem e

trabalhem. Já 12,50% responderam que a prioridade da família é

que estes apenas estudem, e ninguém respondeu que a família quer

que estes só trabalhem. Assim é possível perceber que nem sempre

a prioridade entre a família e os jovens estudantes se equiparam.

Ao indagar os estudantes sobre que sugestão estes dariam para

conciliar o tempo entre escola e o ingresso no mercado de trabalho,

as sugestões que se sobressaíram foi ensino médio

profissionalizante e a possibilidade de conciliar o tempo na escola

com o programa jovem aprendiz.

Considerações finais

Ao findar esta análise sobre a inserção do jovem no mercado de

trabalho diante das novas modalidades de ensino médio, por meio

de uma intervenção com os alunos do 3º ano do ensino médio da

Escola de Educação Básica Cristo Rei de São João do Oeste/SC é

12,50%

87,50%

Pretensão após concluir o ensino médio

Somente Trabalhar Estudar e Trabalhar

206

possível destacar que a maioria dos estudantes estão concluindo o

ensino médio com 18 anos de idade. Idade esta, em que a maioria

gostaria de estar inserido no mercado de trabalho, mas devido ao

tempo de frequência na escola isso não vem sendo possível.

É claro que tal desejo está arraigado a questões culturais.

Porém é preciso considerar que estes fatores podem levar gerações

para modificar-se. Desse modo, é preciso repensar o ensino médio,

tornando este período da vida escolar mais atrativo para os

educandos, onde os estudantes possam perceber que estar na

escola vai efetivamente lhes possibilitar uma boa formação, para

que quando ingressarem no mercado de trabalho se sintam seguros

e preparados é um dos grandes desafios da educação brasileira.

A grande maioria dos estudantes sabe a importância de

frequentar uma escola de qualidade para terem sucesso em sua

vida profissional, entretanto os jovens questionam a qualidade e

formação que estão recebendo. Pois não estão entendendo que as

modalidades de ensino médio atuais possam efetivamente suprir a

formação esperada.

Após tal análise, entende-se que é preciso repensar esta

importante fase da vida escolar, onde encontrar meios de conciliar

o tempo entre escola e mercado de trabalho, para a grande maioria

seria o ideal. Neste sentido, acredita-se ser possível criar parcerias

entre entes públicos e privados, para dar a possibilidade de

frequência escolar associado a inserção no mercado de trabalho na

condição de jovem aprendiz. Para isso, dever-se-ia repensar a

matriz curricular, para atender a formação solicitada pelo

programa jovem aprendiz. Assim, a escola poderia dar a formação

e as empresas oferecer o tão sonhado primeiro emprego.

207

Referências

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trabalho: evolução e desafios da política de emprego no Brasil.

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Criança e Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 7. Ed. Ver e

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STRIEDER, R. Diretrizes para elaboração de projetos de pesquisa:

metodologia do trabalho científico, v. 3. Joaçaba: Unoesc, 2009.

208

209

Visão empreendedora através de projeto de vida:

estágio das profissões, um novo caminho

para integrar escola e sociedade

Deoneci Salete Bisolo Schutz1

Introdução

A única forma de estar verdadeiramente satisfeito é fazer o que você acredita

que seja um bom trabalho. (Steve Jobs)

O presente artigo trata da experiência de um trabalho

interdisciplinar e extramuros na educação, voltado ao

empreendedorismo, na forma de um projeto aplicado na E.E.B.Pe.

Vendelino Seidel de Iporã do Oeste, escola pública da rede

estadual de Santa Catarina. Objetivando fomentar as competências,

a criatividade, a pro atividade do aluno dentro do espirito do

empreendedorismo, esse trabalho justifica-se, pois, a escola deve

cumprir a sua função social, seu papel de permitir que o aluno

construa sua própria história, para atingir tais resultados usaremos

a pesquisa, seminários e vivências com estágios de observação das

profissões com profissionais, e socialização do mesmo.

Na perspectiva de Freire, 2002, alunos e professores são

engajados numa dimensão crítica e criativa no processo da

construção do conhecimento, onde todos ensinam e todos

aprendem num processo criador e recriador de suas próprias

experiências existenciais de origens culturais.

1 Especialista em Metodologia do Ensino de História pelo Grupo UNIASSELVI

(2012/2013). Professora da rede pública estadual de Santa Catarina. Especialista em

Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia pelo Grupo UNIASSELVI (2010/2011).

Licenciatura Plena em Filosofia com Habilitação em Sociologia e Psicologia Geral pela

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas – PR (1995). Atuou na REDE

Consultoria Treinamento em RH de Florianópolis - SC,1996 a 2010. E-mail:

[email protected].

210

No mundo de hoje, com mudanças tão velozes, as novas

gerações exigem novos modelos de educação. Neste novo cenário,

o educador deve possuir características de liderança com destaque

ao líder coach. O líder coach estimula o aluno a desenvolver suas

próprias competências, postulado do CHA – Conhecimentos,

Habilidades e Atitudes.

Seguindo os pressupostos da liderança coaching, Di Stéfano,

afirma que a relação entre o líder coach e o liderado é uma relação

[...] onde o líder contribui para o crescimento do liderado que, por

sua vez, admira o respeito que o líder lhe oferece e se orgulha em

fazer parte desta interação, desejando que o seu líder se mantenha no

poder fazendo o possível para conseguir o nível de excelência que foi

estabelecido. (Di Stéfano, 2005, p. 45)

Assim sendo, o aluno é orientado e motivado para buscar as

próprias soluções, com base nos conceitos do coaching, que é um

processo que estimula reflexões para potencializar o desempenho e

o aprendizado, promovendo o desenvolvimento pessoal e

profissional (Coaching e Mentoring, p.17).

A importância de ensinar a empreender

Tente uma, duas, três vezes e se possível tente a quarta, a quinta e

quantas vezes for necessário. Só não desista nas primeiras tentativas,

a persistência é amiga da conquista. S e você quer chegar aonde a

maioria não chega, faça aquilo que a maioria não faz. (Bill Gates).

Os eixos fundamentais da proposta curricular de Santa

Catarina se estruturam na concepção de homem e na concepção de

aprendizagem. Pela concepção de homem podemos decidir que

tipo de profissional queremos formar, e nela que modelo de

sociedade queremos ter, e é pelo conhecimento e aprendizagem

que será desenvolvida.

Neste sentido, temos como preocupação a compreensão de

como as interações sociais agem na formação das funções

211

psicológicas superiores, estas, não sendo biologicamente

determinadas e sim, resultado de um processo histórico social. É

um eterno ensinar e aprender.

O maior legado que um professor pode dar ao aluno é a

capacidade de pensar de forma independente e com

responsabilidade. Não apenas fazer de conta, mas ter a capacidade

de analisar dados, fatos e situações; saber dissociar o certo do

errado. Ele deve saber aonde quer chegar, e a escola cumpre o

papel de agente social para a mediação.

Sendo assim, o processo educativo no ambiente escolar,

fundamenta-se nas atividades de aprendizagem, ou

simplificadamente, nos projetos, partindo de temas geradores,

onde o professor propõe os objetivos – finalidade, os meios –

metodologia e, principalmente, estimula a motivação. E ainda, que

seja de interesse do aluno e que faça parte do contexto dele direta

ou indiretamente. Por isso, o professor deve partir de uma

problematização material ou conceitual, das necessidades do

cotidiano do aluno para que tenha êxito.

Além disso, a motivação e a necessidade, finalidade e a

mediação podem se estabelecer em qualquer meio, ainda mais ao

se considerar todo desenvolvimento. Para os alunos o projeto foi

ousado e inovador, por terem a oportunidade de se apropriarem de

novos conhecimentos alinhados à era da informação e do

conhecimento, configurando tal prática como uma experiência que

certamente vai agregar valor na vida profissional futura.

Dessa forma, além da importância pedagógica do projeto da

convivência, o estágio, cujas bases teóricas estão acima

abreviadamente apresentadas, possibilitou o ser e conviver,

agregando assim outros valores.

Chegamos assim à função social da escola que deve ser o

cultivo da tradição, o que significa trabalhar o legado existente,

sendo o conhecimento científico e outros fatores culturais o cerne

da questão. Desta forma se permite preservar o que foi constituído

historicamente e agregar valor com novas ideias e novas formas de

aprendizagens, a fim de inseri-los na vida prática. Sendo assim o

212

projeto se preocupou em não dar receita pronta, mas fazer o aluno

tomar iniciativa e ser proativo.

Sendo assim, o projeto considerou o que a UNESCO, através

dos relatórios de Jacques Delors, afirma ser as competências que a

educação precisa desenvolver: Aprender a ser: ajuda o jovem

desenvolver autoestima, autoconfiança, autodeterminação e a sua

própria identidade. Aprender a conviver: ajuda a desenvolver as

relações interpessoais comunitárias, relações de cidadania, de

solidariedade, trabalhar em grupo, enfim reconhecer o outro de

forma comunicativa. Aprender a fazer: possibilitar o educando a

adquirir habilidades básicas, tomar iniciativa, para entrar no

mercado de trabalho. Apreender a apreender: que ele aprenda

buscar o conhecimento. Apreender a conhecer: acessar tudo

que é informações de todas as formas possíveis, ser um caçador de

conhecimentos.

Trabalho voltado às escolhas profissionais: papel da escola,

objetivos e formas de realização

A escola deve cumprir com sua função social, o de preservar o

legado historicamente constituído, mas não somente ela, a família e

a comunidade tem o dever de ajudar nesse processo, cada um a sua

parte. Só assim permitiremos que os jovens façam a sua própria

história, e cheguem à realização pessoal.

No estágio de observação do Projeto de Vida, finalizado com o

Estágio das Profissões, que tivemos a oportunidade de construir

com os alunos na disciplina sociologia, pudemos constatar que o

autoconhecimento é fator decisivo nessa caminhada. Isso contribui

para o fortalecimento das competências e especificamente do CHA

– Conhecimentos, Habilidades e Atitudes, bem como seus

significados, (Rabaglio, 2001), em que Conhecimento é o saber, a

Habilidade é saber fazer e Atitude é querer fazer. Essas práticas são

exigidas dos profissionais de alta performance, para elevar seu

nível de desempenho.

213

Outrossim, o trabalho teve ainda como meta, aprimorar e

desenvolver a personalidade, inteligências múltiplas e o controle

emocional como um fator chave de sucesso! Sem isso o

conhecimento é apenas técnico, sem as devidas habilidades

essenciais que formam o verdadeiro líder. Assim é possível aliar a

teoria com a prática.

Para atingir seu papel, a escola deve ter por objetivos num

trabalho voltado às escolhas profissionais, incentivar os alunos à

pro atividade e é nas ciências humanas que podemos dar condições

para que os estudantes desenvolvam competências, habilidades

técnicas e comportamentais complementares à formação plena em

sintonia com as exigências do novo profissional do século XXI.

Com essa nova postura os estudantes se habilitam a analisar,

compreender e posicionar-se diante da realidade política,

econômica, social, cultural e religiosa em que estão inseridos bem

como vislumbrar e compreender o mundo na atualidade, seus

reflexos nas vivências e práticas de aprendizagem. Importante

ainda, somar as contribuições da disciplina de sociologia, seus

conceitos, suas correntes e análises sociológicas, focá-lo no

empreendedorismo e inovação e assim prepará-lo para o ensino

superior e para a vida.

Assim, dentro das Ciências Humanas, na disciplina de

Sociologia, os conteúdos trabalhados com o projeto, além dos

conteúdos obrigatórios da Base nacional comum, embasaram os

estudantes para os desafios do projeto: a começar pelo conceito do

trabalho como fator histórico, em seguida desenvolvemos assuntos

como Comunicação e Linguagem corporal; Polidez e Etiqueta;

Criatividade; Chave para a Organização do projeto de Vida;

Conceitos de Competências, básicas, essenciais e individuais;

Roteiro para escolha da Universidade. Seguindo pela disciplina foi

trabalhado o assunto Estresse, o ‚branco na hora da prova‛; Ética

conceito (Kant e Rousseau) Ética Profissional e Ética Empresarial.

Além das questões relacionadas à atualidade como O Mundo

Contemporâneo; Inteligência emocional e inteligências múltiplas

de Gardner; como elaborar um currículo; Programa ORDEM 5S

214

(Edgar Schütz). Ainda, exercitar o Mindfulness ou atenção plena,

com técnicas de relaxamento, e auto hipnose, que na realidade

significam a mesma coisa, só com nomenclaturas diferentes.

A interdisciplinaridade é um aspecto que possibilita e

fundamenta um trabalho mais atual e que precisa ser desenvolvido

na escola do século XXI, sobre ela Ariana Cosme defende a ideia de

que.

[...] a importância de uma Base Nacional Comum curricular que

permita ampliar a noção do que é ser cidadão brasileiro com

formação integral na escola e é de fundamental importância, pois

possibilita o aprofundamento do ensino, contribui para a formação

social e política dos estudantes. ‚Estamos falando em formar gente

com plenitude para viver na democracia, na liberdade, com a

possibilidade de construir conhecimento útil aos outros e para si‛.

(PROFISSÃO MESTRE, março2016, pg. 23).

Dentro dessa perspectiva, formar com plenitude é abarcar

todos os aspectos da vida humana, não apenas o cognitivo, e as

ciências humanas dão uma grande contribuição na formação do ser

humano, desenvolvendo uma compreensão da vida em sociedade,

mediante estratégias que promovam o empreendedorismo e

inovação e assim, prepará-lo para o ensino superior e para a vida.

De acordo com CHARLOT, 2000, tendo igualdade de condições do

acesso ao conhecimento e permanência na escola para todos os

estudantes, para que desenvolvam processos de problematização e

emancipação.

Evidentemente que a formação humana integral deve

considerar também as novas tecnologias, por isso os professores de

informática fizeram a tabulação dos gráficos da pesquisa dentro do

projeto, e foi oportunizada uma discussão num debate sobre ética,

envolvendo as disciplinas de filosofia e sociologia, história e

geografia.

Para o sucesso do trabalho escolar, os alunos tiveram de seguir

uma metodologia estruturada e compartilhada que incluiu uma

tabela de informações dos estudantes a respeito do local de estágio

215

ou vivência, com dia e horário, isso gerou um cronograma que

ficou anexado na sala dos professores, e no mural da sala de aula

para que os educadores e os próprios alunos tivessem ciências dos

dias que fariam um trabalho extraescolar. Uma vez escolhidos os

locais de estágio, os alunos tiveram de apresentar alguns

documentos na escola como uma Carta de Apresentação, Termo de

Responsabilidade dos pais, Termo de Compromisso dos

Profissionais, Ficha de Avaliação da Convivência ou Estágios, tudo

para que o tempo destinado à prática estivesse bem organizado e

criasse neles o senso de compromisso e responsabilidade.

Para a prática de empreendedorismo, também os alunos

tiveram o Estágio de observação na profissão pretendida, uma

Pesquisa bibliográfica e virtual prévia para conhecer a profissão,

participaram de Seminários e Palestras com profissionais das

diversas áreas, como contribuição das demais disciplinas, os

professores da escola convidaram jovens universitários, ex- alunos

da escola, para uma conversa e socializar suas experiências com a

realidade fora de casa, em instituições federais e estaduais de

ensino.

Organização do tempo: cronograma

Um trabalho voltado à formação humana integral deve ter um

norte bem definido para que possa ter êxito, por isso a organização

de um cronograma do projeto. A apresentação do mesmo

aconteceu em março, na oportunidade foram mostradas todas as

etapas de funcionamento.

A princípio, trabalhamos em sala com a disciplina do

autoconhecimento, do mesmo modo estudamos as Teorias das

Inteligências Múltiplas de Gardner, enfatizando as diferenças entre

os saberes. Fizemos uma pesquisa sobre as profissões e o mercado

de trabalho, e no cenário atual, as questões trabalhistas, carreiras,

curriculum, entre outros.

Nos dias vinte e vinte um (20 e 21) de maio 2016, tivemos o

congresso das profissões, organizado pelos alunos, sempre sob a

216

nossa orientação, valendo-me de uma vasta experiência em

organização de eventos pela REDE Consultoria e Treinamento em

Recursos Humanos de Florianópolis- SC, na qual atuei por mais de

uma década. Os alunos organizaram uma agenda convidando

mais vinte (20) profissionais de diferentes áreas, e diferentes

regiões, para que cada um falasse a respeito de sua profissão. Foi o

momento em que os alunos se sentiram mais próximos dos

profissionais e os afazeres do dia a dia de cada um.

Logo após os alunos foram desafiados novamente para

buscarem seus estágios, tendo para isso um tempo de até duas

217

semanas para acertarem e combinarem a data com o profissional de

seu interesse. Surpreendentemente, todos se conseguiram a

organização para seu estágio, a primeira vivência das profissões,

que aconteceu entre dias seis a dez (06 a 10) de junho. Na

retaguarda, a escola, direção e professores colaboraram para que

este momento se tornasse realidade.

Logo após tivemos uma socialização no ambiente escolar

em que foi muito gratificante ouvir e sentir a satisfação dos alunos

com os estágios realizados. Em julho com o apoio de todo corpo

docente, uma nova experiência somou aprendizagem quando

foram convidados universitários para falarem dos cursos que

frequentam clareando ainda mais possíveis dúvidas existentes

quanto à escolha de seus cursos e futuras profissões.

Em outubro, nos dia três a sete (03 a 07), tivemos a segunda

etapa dos estágios ou vivência das profissões, oportunidade em

que os alunos puderam passar mais um dia com os profissionais de

sua escolha, aprofundando o conhecimento das atividades

inerentes, houve inclusive alunos estagiando em outros

218

municípios, além de Iporã do Oeste, como São Miguel do Oeste,

Mondaí, Itapiranga, enfim, onde conseguiram o profissional

desejado. Ao final os alunos entregaram o projeto e o relatório das

experiências vividas.

Avaliação

A avaliação é parte integrante de um bom trabalho escolar, e

uma avaliação ideal deve ser diagnóstica, na compreensão das

potencialidades e dificuldades, processual, contínua e cumulativa,

reavaliada durante todo o processo de aprendizagem,

participativa, em conselhos de classe e outras formas que envolvam

todas as instâncias da comunidade educativa, e de carácter

descritivo, no sentido de garantir a prevalência dos aspectos

qualitativos sobre os quantitativos segundo ESTEBAN, 2012. A

própria Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina diz sobre

a avaliação que

A avaliação é feita em todos os momentos formativos e eleva em

conta todo o processo histórico e sociocultural do aluno. Desde a

avaliação descritiva, à educativa entre outras formas de expressão do

estudante e de objetivos de cada área. (PROPOSTA CURRICULAR

DE SANTA CATARINA, 2014, pg. 152)

219

Vista dessa forma se faz necessário um trabalho diferenciado

com a avaliação, no qual os alunos possam ser protagonistas. Sobre

isso HOFFMANN, 2007 pondera que é nas Ciências Humanas a

maior chance dos alunos protagonizarem seus conhecimentos, pois

[...] as Ciências Humanas, no diálogo com as demais áreas do

conhecimento, contribuem para que os sujeitos tenham na escola um

espaço de vivências, experiências e de socialização de seus

conhecimentos, os quais são contextualizados, sistematizados,

reconstruídos e reelaborados. No entanto, é pertinente o

envolvimento da comunidade escolar, com a valorização de seus

saberes, para que se sinta parte deste processo e se motive a

redescobrir o mundo, outros ‚mundos‛. Assim, é preciso considerar

que no desenvolvimento das estratégias e das abordagens é

significativo que ocorra um planejamento coletivo (que envolva todas

as representações da comunidade escolar) (HOFFMANN, 2007, p

.152).

Assim, além das avaliações que cada disciplina irá propor,

também, haverá uma avaliação geral da escola, considerando-se o

projeto escrito (sobre a área ou áreas escolhidas para convivência)

contendo capa, introdução, fundamentação, referências, e anexo ao

projeto deve ter um relatório da convivência (aspectos positivos,

negativos, conclusão sobre curso a seguir, em seguida a

socialização e finalmente as avaliações os profissionais envolvidos

no estágio

Sobre este último ponto da avaliação, os profissionais liberais,

instituições, e empresas envolvidas, avaliaram os alunos nos

estágios ou vivências nos seguintes quesitos:

Interesse do aluno: 79% ótimo, 20% bom e 1% regular.

Interação com a empresa: 46% ótimo, 51% bom, 1% regular

e 2% não opinaram.

Clareza na linguagem: 51% ótimo, 47% bom, 1% regular,

não opinou 1%.

Motivação dos alunos: 78 % ótimo, 21% bom, 1% regular.

220

Quanto a assiduidade perante a carga horária estabelecida:

81% ótimo, 17% bom, 1% regular, 1% não opinou.

O aluno é organizado: 71% ótimo, 28% bom 1% não opinou.

Desempenho geral: 64% ótimo, 36% bom.

Coerência com a vestimenta: 74% ótimo, 26% bom.

Responsabilidade e comprometimento com a prática: 69%

ótimo, 28% bom, 3% não opinou.

Pontualidade: 71% ótimo, 10% bom, 16% não opinaram.

Ainda na Avaliação geral do projeto. etapas I e II os dados

obtidos foram: excelente 22%, ótimo 34%, muito bom 28%, bom

16%. Esses dados revelam a importância que os profissionais

creditaram ao projeto. Por sua vez os alunos também puderam

avaliar o projeto, onde foi lançada uma pergunta para eles: Que

nota entre zero e dez, você atribui ao aprendizado e experiência no

estágio das profissões? 64% dos alunos nota 10, 1% dos alunos

deram nota 9,9, 10% dos alunos 9,5, 1% dos alunos 9,4, 17% dos

alunos 9,0, 1% deram nota 8,9, 1% deram 8,5, 3% deram nota 8,0,

esta avaliação mostra a satisfação dos alunos, para outros,

entretanto, percebemos que o projeto limitou o tempo necessário à

prática.

Esses dados revelam a importância que os profissionais

creditaram ao projeto. Por sua vez os alunos também puderam

avaliar o projeto, onde foi lançada uma pergunta para eles: Que

nota entre zero e dez, você atribui ao aprendizado e experiência no

estágio das profissões? 64% dos alunos nota 10, 1% dos alunos

deram nota 9,9, 10% dos alunos 9,5, 1% dos alunos 9,4, 17% dos

alunos 9,0, 1% deram nota 8,9, 1% deram 8,5, 3% deram nota 8,0,

esta avaliação mostra a satisfação dos alunos, para outros,

entretanto, percebemos que o projeto limitou o tempo necessário à

prática.

221

Análise dos resultados

O empreendedorismo instiga a pessoa a buscar metas e

soluções e é isso que como coordenadora do curso passamos para

os alunos; não ter medo de enfrentar pois como ensina Timoty

Galwei, no Coaching esportivo: ‚O advers{rio que est{ na minha

cabeça, é muito mais poderoso daquele que está no outro lado da

rede‛. Isso mostra que o projeto prepara os alunos para a vida que

os espera lá fora, dando-lhes a certeza de que eles sairão muito

mais preparados, com coragem e acreditando em si mesmos, que

eles são capazes e que vão conseguir.

Considerando a questão de uma educação que envolva a

comunidade escolar, o projeto foi muito bem recebido pela

comunidade onde aconteceu, prova disso foram os relatos da

imprensa local e dos profissionais que se envolveram no projeto.

Figura 11: matéria do jornal

Para o Juiz de Direito da Comarca de Mondai- SC, Dr Rafael

Salvan Fernandes, um dos profissionais convidados, o projeto foi

uma ‚excelente iniciativa visto da aproximação do aluno aos

diversos ambiente de trabalho‛. A médica veterin{ria, Drª Naíla

Frantz, acredita que "o projeto é importante para a vivência prática,

pois favorece o aluno, e permite o contato direto com a atividade

laboral". O senhor Canísio Müller, Escritório Contábil, parabeniza

pelo projeto e coloca que o" mesmo abre espaço, horizonte e

tendências de escolha ao candidato". O Professor, Osni Simon,

E.E.B. São Lourenço," o projeto é de suma importância. Os

222

estudantes podem vivenciar as práticas dos profissionais e sentir os

prós e contra da função que futuramente pretendem seguir e tirar

as conclusões se é realmente isso que eles querem para o futuro.

Parabéns aos Organizadores do Projeto".

Também, Dr. Douglas O. Franzen achou muito interessante:

"Abre portas para a vida profissional. E é importante para

colaborar na decisão da profissão". A Odontóloga Drª. Carine Kist

achou muito bom o projeto, "pois cada aluno poderá ter mais

conhecimento sobre o que quer quanto a profissão. Ótima

iniciativa. Parabéns". Para Odontólogo, Dr. Michel Lauschner,

"Bom aprendizado e clareza para escolha profissional". O Médico

Dr Rodrigo Werlang, achou "muito importante para a escolha

profissional".

Para a Pedagoga Neusa Hahn Beilke, "contribuir com o projeto

é sem dúvida uma satisfação pessoal, pois falar da profissão de ser

professora pedagoga é falar de uma escolha apaixonada, que traz

consigo muitos desafios e muitas gratificações. Participar da

construção do conhecimento e do caráter do ser humano é tarefa

que requer muito amor, dedicação e sabedoria. Contribuir com

estes jovens, muitos deles inclusive já foi meus alunos um dia, é

uma honra".

A advogada, Dr. Elaine Julliane Chielle, diz que espera

continuidade no projeto visto a clareza e conhecimento que se

alcança para o estudante. A Arquiteta do Escritório de

Arquitetura e Urbanismo, Cristine Ferro, afirma que considera de

grande valor o contato com a profissão para ampliar o

conhecimento e ter contato com a prática.

Na segunda etapa alguns alunos continuaram com o mesmo

profissional, e outros optaram para conhecer outras áreas com

outros profissionais. Foi o caso de uma das alunas da turma 33,

Sarah, segundo a qual "Com este projeto descobri aquilo que eu

não queria ser e buscar um novo caminho." Sem perder o foco, os

elogios continuaram nos depoimentos, vejamos mais alguns:

Para a Drª Elaine Julliane Chielle, "O Projeto de grande valia

para a decisão dos estudantes saber sobre a profissão que desejam

223

assumir". Para o Médico Dr Julio Lasta," o projeto é excelente

muito esclarecedor e interessante para o aluno". Dr. Leonir

Adriano Staudt, afirma que "se constitui numa ótima iniciativa

para preparar futuros profissionais". O médico Veterinário

Fernando de Souza Ramos, diz que "o projeto é muito importante,

pelo fato de que promove o conhecimento da rotina do profissional

e desafios na carreira escolhida". Segundo a professora mestranda

em Letras, Simone Spiess Bernardi "projetos como este qualificam o

trabalho da escola, pois aproximam os alunos e o próprio

educandário da sociedade, da qual todos fazem parte.

Segundo o relato dos alunos do terceiro ano do Ensino Médio

inovador da Escola de Educação Básica Pe. Vendelino Seidel

tratou-se de uma experiência exitosa, nas palavras dos próprios:

‚Gostaríamos de parabenizar o trabalho desenvolvido pela

professora orientadora Deoneci Schutz, atuante na disciplina de

sociologia, e todos os professores pela grande oportunidade.

Acreditamos que o estágio fornecido para nós alunos foi de grande

valia, uma vez que proporcionou aos estudantes uma chance para

conhecer de perto a profissão, seus pontos positivos e também as

dificuldades enfrentadas na {rea de escolha‛.

O estágio foi uma oportunidade uma vez que no diálogo entre

o aluno e o profissional, para que desta forma possam ter uma

visão mais precisa da atuação deste, pois é importante ver na

prática o funcionamento da profissão e conversar com profissional

que atua na área, para sanar as dúvidas e realizar esclarecimentos

quanto estas, seja referente à graduação, as dificuldades

enfrentadas durante a formação profissional e pessoal, quanto às

experiências cotidianas ao desempenhar tais funções, dentre

outras."

Os profissionais elogiaram a iniciativa da coordenadora

Deoneci e pela oportunidade disponibilizada, uma vez que, muitas

vezes, alunos saem do Ensino Médio e vão à faculdade cursar uma

graduação com uma ideia equivocada do curso, o que desencadeia

a desistência de vários estudantes no decorrer deste, ou ainda, a

formação de profissionais que não se sentirão plenos ao

224

desempenhar sua função. Desse modo, a proposta do projeto foi

vista como uma boa iniciativa, principalmente por conseguir aliar a

prática e o dia a dia da profissão com as dúvidas que os jovens têm

a respeito do caminho que pretendem seguir. Portanto, como

mencionado por um provérbio Africano, ‚O conhecimento é como

um jardim: se não for cultivado, não pode ser colhido‛.

Um depoimento muito emocionante foi da educanda Gabriela,

da turma 33, segundo a qual "Deste modo, o estágio atendeu todas

as minhas expectativas, pois foi de extrema importância para

minha decisão e conhecimento da futura rotina de trabalho. Assim

gostaria muito de agradecer e parabenizar a professora Deoneci

pela iniciativa e a preocupação, pois ela nos apoiou e instigou à

pesquisa mais sobre as profissões e mercado de trabalho. Também

por ela ter me ensinado a ser muito grata com os profissionais que

me acolheram, assim fazendo que o projeto pudesse se tornar

realidade. Contanto que no dia 09/09 dia do Medico Veterinário,

pude parabenizar os veterinários que me acolheram, assim

reconhecendo o esforço e a profissão dos mesmos". Gabriela

Arnhold Jantsch.

Para finalizar, a turma 32 considera ser importante estender o

projeto, segundo ela "Este projeto é muito importante para a

escolha do nosso futuro, e deve se estender para outras escolas,

parabéns pelo incentivo".

Conclusão

Considerando os depoimentos acima apresentados, e claro, os

demais que não couberam registrar no artigo, ao final deste

trabalho, podemos perceber que o projeto teve uma grande

aceitação pelos estudantes, pois eles se sentiram desafiados, a

tomar iniciativa, estabelecer metas, buscar resultados e serem

proativos. Isso gerou neles uma grande satisfação de dever

cumprido, o sentir-se capaz, proporcionando neles autoconfiança e

otimismo, levando-os a acreditar em si mesmos, tendo como foco

225

principal os vetores de sucesso: eu vou, eu posso, eu quero e eu

consigo.

Igualmente, os profissionais envolvidos e que colaboram para

que os alunos pudessem realizar seus estágios e com quem tivemos

a oportunidade de falar, aplaudiram a iniciativa afirmando que

estamos no caminho certo de mostrar aos futuros empreendedores

os desafios que devem enfrentar na prática para desempenhar a

profissão escolhida.

Consideramos como sucesso alcançado, o fazer acontecer, o de

sair do entorno escolar e da sala de aula e proporcionar ao

estudante este tipo de experiência, o de um trabalho coletivo

família escola e comunidade e que certamente ficará marcado para

toda a vida.

Referências

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Curricular – Documento preliminar. MEC. Brasília, DF, 2015

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VASQUEZ, S.A. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

227

Uso das tecnologias nas práticas pedagógicas

com alunos da EJA nas aulas de ciências naturais

Dircelei Arenhardt1

Introdução

As tecnologias estão presentes no nosso dia a dia, não há mais

como fugir dessa realidade. Os alunos também estão inseridos

nesse contexto, portanto é necessário mudarmos e introduzirmos

as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) em

sala de aula. No ensino de ciências e biologia o discente aprende a

refletir, comparar, reorganizar, fazer síntese das atividades que

realiza. Professor e aluno devem aliar-se em clima de diálogo, de

forma prazerosa para levarem a cabo a tarefa que ambos têm: o

professor, de mediar na construção do conhecimento; o aluno, de

construir e ser protagonista do processo ensino e aprendizagem.

Para que isso aconteça, temos a disposição uma gama de TDIC que

quando utilizadas adequadamente, auxiliam na obtenção de ótimos

resultados. Sou apaixonada pela educação, e por isso me sinto

realizada quando estou em sala de aula. Porém observei que tanto

os alunos quanto a sociedade como um todo não é mais a mesma.

O volume de informações disponíveis na atualidade assume

proporções astronômicas, e exige cada vez mais de nós, mais do

que conhecê-las. Por isso a inovação é requisito indispensável ao

processo educacional escolar, nós como docentes, em conjunto com

o aluno, constituímos a instância escolar que é um dos principais

espaços e modos para oferecer formação ao ser humano.

Este capítulo buscou analisar uma prática pedagógica realizada

com alunos do ensino fundamental da Educação de Jovens e

1 Professora ACT na Educação de Jovens e Adultos/EJA, Itapiranga-SC, Professora

Orientadora do Laboratório de Biologia da Escola de Educação Básica Cristo Rei,

São João do Oeste (SC). Mestranda em Educação, PPGE/ URI (Campus Frederico

Westphalen), membro do GPE - Grupo de pesquisa em Educação/URI.E-

mail:[email protected]

228

Adultos-EJA, da Escola Itapiranga de Santa Catarina, e através

dessa experiência, analisar e ressignificar esta prática a partir dos

saberes e teóricos do campo da Educação na Cultura Digital.

Este processo é bem apresentado por Paulo Freire (1998),

quando diz:

O professor representa a base de todo o trabalho. Sem o seu

desenvolvimento, pouco se pode realizar. É preciso estudar, ter

iniciativa, e aprender-executar-refletir sobre o aprendido. Modificar o

que for necessário. Exige-se, nesse processo, abertura, ousadia,

colaboração e dedicação [...]. É ele quem orienta as investigações dos

alunos, incentiva o modo como cada aluno constrói seu próprio

conhecimento [...]. O professor envolve-se em um processo que o

mobiliza internamente: aprender uma coisa nova leva-o a instaurar

um diálogo consigo mesmo. Aprender, atuar com os alunos, analisar

sua ação pedagógica e modificá-la permite-lhe, com o passar do

tempo, desenvolver uma metodologia de trabalho própria

constantemente aberta a nova reformulação (p. 60).

O crescimento, tanto populacional como tecnológico, produziu

alterações culturais e sociais que permitiram a cada geração impor-

se e desenvolver não somente as suas próprias ideias, mas também

adotar e definir novos perfis por meio de comportamento,

linguagem, moda, música, arte, e a forma como utilizam e

vivenciam a tecnologia.

O momento histórico contemporâneo é especial, porque

vivemos uma era de profundas transformações em todas as áreas

do conhecimento, da cultura e da vida social. Nossas crianças e

jovens estão rodeadas de informações, as quais chegam através de

imagem, som, um mundo interativo. Contudo, quando o aluno

chega na sala de aula se defrontam com livros didáticos, quadro,

pincel e professores que muitas vezes ainda reproduzem uma

conduta de detenção do conhecimento, o que torna as aulas

monótonas. Para que isso não aconteça é necessário introduzir

questões que estão presentes no dia-a-dia que habitam esse cenário,

e por que não utilizar as TDIC?

229

Borges e Moraes (1998) nos mostram isso ao descreverem:

Ensinar é ajudar os alunos a construírem para si novos esquemas de

pensamento, com os quais eles procuram explicar a realidade. Ainda

que as ideias dos alunos sejam precárias e suas hipóteses

incompletas, convém fortalecer a crença na sua própria capacidade

de encontrar solução dos problemas. (BORGES; MORAES, 1998, p.

25)

As Leis de Diretrizes e Bases e a Constituição Federal 88,

deixam bem claro sobre a Educação B{sica: ‚*...+ dever da família e

do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de

solidariedade humana, tem por finalidade o pleno

desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho‛. (LDB, p.27, 1996).

Sabemos que mais de dezoito mil brasileiros não sabem ler e

escrever, esses na sua grande maioria, por motivos mais diversos,

tiveram esse direito negado, seja por necessidade de trabalhar, e

não podendo usufruir do mesmo.

Portanto, é com o novo, com novas descobertas, com novos

desafios que somos convidados a construir e reconstruir o

conhecimento, especificamente aqui, junto ao ensinar Ciências

Naturais na disciplina de Biologia e Ciências. Afinal, contribuímos

significativamente com a base de todo o conhecimento, ou seja, é

parte significativa do início da formação que a criança, adolescente

e o jovem vão adquirindo aos poucos para dar sustentação para a

sua vida, e quando adulto, conseguem associar o seu cotidiano com

os temas estudados e que também traz um sentido para que

continue estudando.

Ultrapassamos o tempo de memorização de conteúdo, de

repetição dos textos de livros que não preveem a interação do

aluno com objeto em estudo. A atividade experimental hoje deve

resultar na formulação de hipóteses, na análise das ideias e na

elaboração de relatórios que realmente expressem os novos

argumentos construídos pelo estudante.

230

Os recursos de tecnologia de informação e comunicação são

hoje, parte do dia-a-dia de grande parte dos alunos. Ainda que se

manifeste a ideia de que os acessos aos recursos informacionais, em

especial a internet, não são democráticos e acessíveis a todos em

igualdade, não se pode desconsiderar que o uso das TDIC possui

uma gama de oportunidades, que trabalhadas com critério, podem

favorecer o processo de ensino-aprendizagem.

Pensando nesse contexto que analisarei minha experiência

docente desenvolvida no segundo semestre de 2014, com alunos do

ensino fundamental da EJA, onde foi desenvolvido um trabalho de

pesquisa que se utiliza das TDIC.

Sobre as possibilidades de inovações pedagógicas, contamos

com a utilização de diferentes recursos, como: computadores,

câmeras digitais, celulares, vídeo games, internet, projetores, entre

outros, denominadas Tecnologias Digitais de Informação e

Comunicação (TDIC) (LINSINGEN, 2010).

Repensando as aulas de Ciências Naturais, e fazendo uma

retrospectiva de como foi meu tempo de escola, onde a educação

nesta época era bastante rígida, o que remetia a punições severas

para aqueles com comportamento fora do padrão, não tínhamos

oportunidade de falar em aulas interativas, atrativas, nem ao

menos práticas dinâmicas. Se observarmos no decorrer do período

histórico, o aprendizado, podemos perceber uma grande diferença.

Sendo assim, necessitamos de novas metodologias capazes de

promover o ensino da disciplina de Ciências e Biologia, de uma

forma mais eficiente e prazerosa.

Sou adepta de que seja necessário repensar as aulas de

Ciências, assim como as de Biologia: O que é ensinar Ciências e

Biologia na atualidade? Como ensinar Ciências e Biologia de uma

forma mais atrativa, e acima de tudo, prazerosa? Para que isso seja

possível é necessário primeiro definir responsabilidades do

professor, rever o trabalho conjunto entre professor e aluno e

ressaltar o uso das Ciências Biológicas e do avanço da tecnologia.

O trabalho docente é uma atividade que envolve planejamento,

convicções e opções sobre o futuro do homem e da sociedade. Esse

231

trabalho sempre acontece com objetivos bem traçados, possíveis de

realizar e de avaliar. O ato de planejar é o momento em que o

professor deve selecionar os conteúdos, procedimentais e

atitudinais, a serem incorporados aos conteúdos conceituais, para

garantir assim uma formação integral do sujeito, de maneira que

ele possa atuar na sociedade como um cidadão competente,

aprendendo de uma forma prazerosa.

Para se desenvolver um bom planejamento, e

consequentemente uma aula dinâmica, prazerosa e interativa,

também seja preciso observar e entender o currículo como uma

forma de política cultural, que demanda alcançar as categorias

sociais, culturais, políticas e econômicas. Pois as dificuldades de

ensino/aprendizagem muitas vezes são oriundas da

desestruturação familiar que as crianças vivem, do baixo poder

aquisitivo das famílias e isso reflete na sala de aula. Pois o sistema

capitalista favorece uma minoria, e exclui uma grande parte das

escolas e da sociedade, como podemos observar nas colocações de

Michael Apple (2002, p. 45):

*...+ A din}mica da sociedade capitalista gira em torno de ‘classe da

dominação dos que detêm o controle das propriedades dos recursos

materiais, sobre aqueles que possuem apenas a força de trabalho, essa

característica de organização de economia na sociedade capitalista,

afeta tudo aquilo que ocorre em outras esferas sociais, como a

Educação e a cultura’. *...+.

A busca por maiores informações bibliográficas, seja on line, ou

práticas dentro da educação, são relevantes porque esta, torna cada

vez mais claros os conhecimentos, por meio da reconstrução, bem

como o uso gradativo do método científico (observação,

formulação de hipóteses, experimentação e comunicação).

Precisamos encorajar a utilização habitual dos conhecimentos

adquiridos, pois é assim que se torna possível satisfazer as

necessidades pessoais e, ao mesmo tempo, auxiliar o aluno para a

preparação para a vida.

232

Em Ciências e Biologia, assim como nas outras disciplinas, faz-

se necessário a presença de estratégias que integrem várias

habilidades, como observar, descrever, classificar, comunicar,

refletir, relatar, estabelecer conexões. Ajudar o educando a

desenvolver essas capacidades por meio da organização das tarefas

de aprendizagem é tarefa do mediador, sendo também uma

verdadeira construção de conhecimento. Assim, o professor e o

estudante aliam-se no processo de forma prazerosa.

O professor é o grande acompanhante em todo processo de

ensino aprendizagem, pois a ele compete problematizar os

assuntos a ser estudado, auxiliar nas reflexões, interpretar o

material didático, orientar como devem ser feitas as observações. E

por que não utilizarmos dos recursos que estão disponíveis como

as TDIC, para realizarmos práticas pedagógicas mais

diversificadas, e que atraia mais a atenção do aluno, já que são

recursos que os alunos na sua grande maioria já utilizam no seu dia

a dia? Para realizar essas atividades também já estão disponíveis

softwares, entre os que podemos citar estão o portal do professor,

onde disponibiliza uma gama de oportunidades e programas a

serem utilizados.

O professor está sendo desafiado em suas aulas, por estar

rodeados com inúmeras tecnologias que fazem parte também da

rotina dos alunos. Nesse contexto é preciso que a escola e os

professores assumam uma postura aberta e interrogativa para com

o estudante, uma vez que, com o auxílio dessas tecnologias, seja

possível oferecer aulas mais dinâmicas onde ambos se sintam

desafiados à aprendizagem.

A tecnologia por si só não muda o processo de ensino e

aprendizagem, mas seu processo de integração pode propiciar uma

busca reflexiva e sugerir mudanças e novas estratégias para a

educação. Sobre esse ponto de vista, Porto (2006, p. 43) compartilha

que: ‚as tecnologias permitem novas formas de pensar, de agir e de

comunicar-se de maneira habitual e corriqueira‛.

Alba (2006) corrobora, ao afirmar que as tecnologias da

informação e comunicação indicaram grandes e positivas

233

mudanças nas formas de se comunicar, relacionar e viver em

sociedade:

Desde o surgimento da informática, por exemplo, são muitas as

expectativas geradas [...] sobre o seu potencial para obter a

individualização e a melhoria das aprendizagens, o alcance da

intervenção educativa e os êxitos dos alunos com necessidades

especiais (p. 131).

A intervenção do professor é fundamental nos momentos em

que o aluno não consegue avançar, ou nos momentos que precisa

ser desafiado a buscar situações novas, possibilitando-lhe a

oportunidade de aprimorar o seu trabalho (ALMEIDA; VALENTE,

2011). Nesse sentido compete ao professor orientar o aluno para:

[...] empregar as funções e operações propiciadas pelas TDIC para a

comunicação, a busca de informações, a representação do

pensamento, o engajamento na produção colaborativa de

conhecimentos, o registro de suas produções e a reformulação das

mesmas, a publicação e a socialização dos resultados (ALMEIDA;

VALENTE, 2011, p.74).

Para estes mesmos autores, implantar as TDIC nas escolas é

um processo muito maior que simplesmente prover acesso à

tecnologia e automatizar pr{ticas educacionais. Elas devem: ‚estar

inseridas, integradas aos processos educacionais, agregando valor à

atividade que o aluno ou o professor realiza‛ (ALMEIDA;

VALENTE, 2011, p.74).

O professor deixa de ser o ‚dono do saber‛ ou o transmissor

único, mesmo porque, muitas informações o aluno adquire através

dos diferentes meios de comunicação disponíveis no seu dia-a-dia,

como o jornalístico (impresso, televisivo e radiofônico), livros,

computadores, celulares, tablets, entre outros. Portanto, o

profissional da educação passa a ser o agente questionador

também do aprender, e não apenas do ensinar, bem como o elo

entre o conhecimento e a aprendizagem.

234

Acerca desta perspectiva, Silva (2001) nos lembra quando

afirma que:

O impacto das transformações de nosso tempo obriga a sociedade, e

mais especificamente os educadores, a repensarem a escola, a

repensarem a sua temporalidade. E continua. Vale dizer que

precisamos estar atentos para a urgência do tempo e reconhecer que a

expansão das vias do saber não obedece mais a lógica vetorial. É

necessário pensarmos a educação como um caleidoscópio, e perceber

as múltiplas possibilidades que ela pode nos apresentar, os diversos

olhares que ela impõe, sem contudo, submetê-la à tirania do efêmero

(SILVA, 2001, p. 37).

As TDIC fazem parte do nosso dia-a-dia e este fato por si só, gera

a necessidade dos profissionais, da área educacional ou não,

adquirirem novas habilidades e competências para utilizá-las

adequadamente. Utilizar as TDIC adequadamente significa criar

mecanismos para se apropriar delas e integrá-las aos objetivos de seu

trabalho.

Até que ponto alunos e professores podem viver a exclusão

tecnológica? Nas palavras de Castell (2004):

A internet é o tecido das nossas vidas. Se as tecnologias da

Informação são o equivalente histórico do que foi a eletricidade na

era industrial, na nossa era poderíamos comparar a internet com a

rede elétrica e o motor elétrico, dada a sua capacidade para distribuir

o poder da informação por todos os âmbitos da atividade humana. E

mais, tal como as novas tecnologias de geração e distribuição de

energia permitiram que as fábricas e as grandes empresas se

estabelecessem como as bases organizacionais da sociedade

industrial, a Internet constitui atualmente a base tecnológica da forma

organizacional que caracteriza a Era da informação: a rede

(CASTELL, 2004, p. 15).

Para o autor Kenski (2007) ao falarmos em tecnologia, é preciso

entender o seu conceito, como: ‚conjunto de conhecimentos e

princípios científicos que se aplicam ao planejamento, à

235

construção e a utilização de um equipamento em um

determinado tipo de atividade.‛(p.24)

Sobre o avanço tecnológico e sua importância dentro do

contexto educacional podemos concordar com o que cita Takahashi

(2000 apud PRETTO; PINTO, 2006,) que afirma:

A rapidez com que a Internet se alastrou pelo mundo foi um

fenômeno surpreendente para todos. Dados apresentados no Livro

verde do Programa Sociedade da Informação no Brasil demonstram

que o rádio levou 38 anos para atingir um público de 50 milhões de

telespectadores nos Estados Unidos, enquanto o computador levou

16 anos, a televisão,

13 anos, e a Internet, em apenas quatro anos, atingiu a marca

de 50 milhões de internautas (p. 25).

Sendo assim, aponto que o objetivo dessa prática é: analisar e

avaliar uma prática, a qual foi desenvolvida com alunos do ensino

fundamental da EJA de Itapiranga. O trabalho inclui analise da

prática.

A prática consistia em realizar uma pesquisa e posterior visita

a uma propriedade rural, para relacionar teoria com prática. Os

alunos utilizaram o laboratório de informática para buscar

informações a respeito da atividade de bovinocultura leiteira desde

a década de 60 até os dias atuais (lembrando que a pesquisa foi

realizada em 2014).

Esse tema foi escolhido por ser uma fonte de renda para a

maioria das propriedades da nossa região, sendo portanto, algo do

dia a dia dos alunos. Alguns dos alunos da turma ainda vivem essa

realidade e outros na infância e adolescência, viveram essa

realidade, o que atraiu ainda mais a sua atenção.

Desenvolvimento

As Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC),

cada vez mais se tornam presentes em nosso cotidiano, trazendo

mudanças em vários setores da sociedade. Uma das inovações

236

pedagógicas é a utilização de diferentes recursos, como

computadores, câmeras digitais, celulares, internet, projetores,

entre outros, denominadas Tecnologias Digitais de Informação e

Comunicação.

Nesse sentido, as Tecnologias Digitais de Informação e

Comunicação (TDIC) podem promover uma melhor qualidade do

ensino, auxiliando a superar as formas tradicionais de

ensino/aprendizagem que se baseiam em transmissão de

conhecimentos e buscando um aprendizado ativo, com crescimento

e avanços nesse processo.

Os serviços da Internet, no Brasil, estão disponíveis desde o início dos

anos 1980. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por meio do

Conselho de Desenvolvimento Nacional e Tecnológico (CNPq), criou

a Rede Nacional de Pesquisa (RNP). No entanto, nessa época as

universidades públicas brasileiras já estavam conectadas à Rede

Bitnet graças a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que

sustentava um canal direto com os Estados Unidos subsidiado pela

própria UFRJ, disponibilizado para todas as universidades públicas

do Brasil. Com isso, a RNP iniciou a instalação das ‘chamadas

autoestradas’ da informação brasileira, criando os Pontos-de-

Presença (POPs) nos estados, conectando dezenas de milhares de

computadores, principalmente nos centros de pesquisas e instituições

de ensino superior (PRETTO, 2001, p. 20).

Pretto (2008) entende a necessidade das tecnologias no espaço

escolar, porém, como Belloni (2005), faz crítica ao uso delas como

um mero instrumento sem a adoção de uma metodologia em que

elas auxiliem de fato no processo ensino-aprendizagem. Nas

palavras do autor: ‚as tecnologias não são complementares, mas

essenciais para a nova forma de pensar e produzir conhecimentos.

Se coloco as tecnologias na escola como instrumentos, essa escola

fica sem futuro, apesar da cara de moderna‛ (PRETTO, 2008, p. 34).

Pretto (2008) chama atenção para a necessidade de qualificação

no uso das tecnologias:

237

A presença de tecnologias mais simples, como os livros impressos, ou

de outras mais avançadas, como os computadores em rede,

produzindo novas realidades, exige o estabelecimento de novas

conexões que as situem diante dos complexos problemas enfrentados

pela educação, sob o risco de que os investimentos não se traduzam

em alterações significativas das questões estruturais da educação (p.

81).

A integração das TDIC no ambiente escolar vem ocorrendo

gradativamente, onde se percebe que os professores buscam de

forma tímida, à utilização dos recursos que dispõem. Dessa forma,

o desafio de incrementar e superar as dificuldades aparece

constantemente nas práticas dos professores, sendo assim:

É fundamental que os professores que vão fazer uso destas

tecnologias tenham capacidade de reconhecer tanto as vantagens, as

limitações e os cuidados que devem ser tomadas, como também as

implicações do uso destas tecnologias para a educação em particular

e para a sociedade como um todo, para que esses instrumentos

possibilitem uma melhora efetiva da qualidade das aulas ministradas

(DANTAS, 2005, p. 15).

Nota-se que esse processo de integração das tecnologias às

práticas pedagógicas é algo novo para os professores, pois eles

ainda não conhecem ou não partilham de modelos ou referenciais a

serem seguidos e/ou utilizados quanto a metodologias e

experiências de outros professores.

Acredito que assim como as tecnologias estão mudando e se

aperfeiçoando como podemos observar, o celular que no início só

tinha a função de comunicação sonora com outra pessoa, hoje já

serve para inúmeras outras funções, entre elas estão a de enviar

mensagens, arquivos, imagens, participar de um chat com uma

pessoa ou várias ao mesmo tempo. Pensando dessa forma também

é possível modificar a forma de ensinar, não se atendo apenas ao

quadro e ao livro didático.

238

Nossos alunos estão inseridos nessa nova mudança

significativa que vem acentuando-se nos últimos anos que é a

necessidade de comunicar-nos através de outras linguagens para

além dos sons, mas ainda com imagens e textos, integrando

mensagens e tecnologias multimídia. Sendo assim, torna-se

urgentemente problematizar essas mudanças e acolher de forma

planejada e organizada essas mudanças. Não proibir o uso das

tecnologias, mas acolhe-las e o que irá aproximar e atrair o aluno

ainda mais à sala de aula, principalmente em se falando alunos

jovens.

Dessa forma, as TDIC podem aparecer como recurso

importante nas ações pedagógicas do professor. Este terá um papel

de problematizar a fim de criar situações que despertem nos alunos

o senso crítico sobre as informações ali recebidas. Nesse processo,

deve-se aprender por meio delas, com elas e em interação com os

diversos contextos, que extrapolam virtualmente o ambiente

tradicional de ensino.

Neste sentido, a família, a escola e a sociedade como um todo,

sentem os reflexos dessas mudanças. As gerações mais novas que

frequentam a CEJA de Itapiranga chegam à escola tendo acesso as

mais variadas e inúmeras fontes de informação, diferente das

gerações anteriores, que ainda percebem e veem a figura do

professor, como sendo o principal detentor do conhecimento.

No desenrolar dos processos de ensino e de aprendizagem

urge respeitar a subjetividade de cada aluno, especialmente no que

se refere a sua percepção, suas experiências anteriores na

elaboração de novos conhecimentos, pois o ambiente deve ser

permeado de boas relações, num espaço onde todos têm voz e vez.

Nossa postura diante dos alunos, embora deva ser de humildade,

compreensão, acolhida de suas experiências (consideradas como

conhecimentos prévios) principalmente os alunos do CEJA, é

auxilia-lo no processo de relacionar essa experiência com a teoria

trabalhada em sala de aulas.

Acredito na ideia de que quando o conteúdo escolar se

aproximar da vida prática, é uma das formas que o professor tem

239

para auxiliar o aluno a tornar mais complexo seu conhecimento

sobre determinado tema. Todo questionamento, mesmo que pareça

sem sentido aparente, merece uma atenção especial. Não se deve

dar uma resposta pronta, mas, sim, deve-se ajudar o aluno a

encontrar sua própria resposta. As disciplinas de Ciências e

Biologia são dotadas de conteúdos que envolvem fenômenos da

natureza, bem como atividades que nos cercam no dia a dia.

Sabemos que a partir do momento que o estudante começa a se

questionar: ‚Por que isto é assim?‛, ‚Como funciona este ou aquele

objeto?‛, ‚E se fosse assim, como funcionaria?‛, ‚De que é

constituído?‛, ‚Ser{ que isso é prejudicial ao meio ambiente e a

saúde?‛, E assim por diante, passa imediatamente a formular suas

hipóteses para explicar essas situações. O questionamento é,

portanto, um fio condutor das aulas de Ciências e Biologia, isso

leva o aluno a empenhar-se na procura de soluções para as

perguntas formuladas, e dessa forma ele constrói e reconstrói

verdades e conhecimentos já estabelecidos. Desse modo, o aluno,

com a mediação do professor, e com o auxílio das tecnologias,

amplia seus conceitos ou elimina as formulações equivocadas.

Para o aluno, o questionamento é uma via de aproximação

inicial aos conhecimentos a serem construídos nas aulas de

Ciências Naturais ou em qualquer outra disciplina. A pesquisa, que

sempre inicia com uma pergunta, lança-se para observação, para

experimentação, para seleção de material de consulta, para

integração das diferentes áreas de conhecimento conforme o objeto

e os objetivos a serem alcançados.

Em Ciências Naturais, nas disciplinas de Ciências e Biologia,

faz-se necessário a presença de estratégias que integrem várias

habilidades aos alunos, como observar, descrever, classificar,

comunicar, refletir, relatar, estabelecer conexões. Ajudar o

educando a desenvolver essas capacidades por meio da

organização das tarefas de aprendizagem é tarefa do mediador.

Assim, o professor e o estudante aliam-se no processo de

aprendizagem, pois muitas vezes os conteúdos são extensos e

complexos, onde há a necessidade expressiva da memorização de

240

conceitos e nomes. Desta forma, é importante que os professores

procurem alternativas que tornem as aulas mais instigantes e

interessantes, o que pode auxiliar para que a aula se torne uma

matéria menos maçante e monótona, o que resulta numa motivação

dos alunos.

Pensando dessa forma que desenvolvi uma atividade com a

turma do Ensino Fundamental do CEJA. A mesma foi

desenvolvida na disciplina de CCTT- Ciências Cultura e Tecnologia

e Trabalho. A atividade se desenvolveu no segundo semestre de

2014. Os alunos foram desafiados a realizar uma busca de

informação com auxílio das TDIC. A proposta que naquela ocasião

foi realizada, baseia-se nos seguintes princípios de Plano de Aula:

A proposta era fazer pesquisa bibliográfica, textos on line, em

livros, revistas, sobre a atividade de Bovinocultura Leiteira desde a

década de 60 até os dias atuais. Como a atividade de Bovinocultura

leiteira está presente na maioria das propriedades de nossa região,

e assim é uma das fontes de renda, foi pensado nesse tema.

Levantar questões como estrutura física dos ambientes utilizados

para a atividade, gestões genéticas, rações, plantel, equipamentos

para realização das atividades.

O objetivo geral é que o aluno perceba a importância e a

relação entre o trabalho, meio ambiente, tecnologias, auxiliam no

aprendizado e na construção da identidade. Os objetivos

específicos baseavam-se em: Utilização das tecnologias no

desenvolvimento da produção do leite; Utilização das tecnologias

em sala de aula; O trabalho em harmonia com o meio ambiente;

desenvolver o protagonismo.

As atividades foram desenvolvidas, aliadas a utilização de

recursos didáticos-pedagógicos como: textos atuais, multimídia,

pesquisa na internet, apresentação da pesquisa através do power

point, visita a uma propriedade para avaliar e observar a realidade

com a pesquisa realizada.

Lembro-me quando propus a atividade aos alunos da EJA. No

início não aceitaram muito bem a ideia, pois estavam no primeiro

ano de retorno as aulas, no qual alguns ficaram até 12 anos sem

241

estudar, o que os deixou um pouco aflitos. A maioria também não

fazia uso das tecnologias em casa, portanto não tinha familiaridade

com os mesmos, mas no decorrer da pesquisa, acabaram se

envolvendo e desenvolveram um ótimo trabalho. Confesso que tive

receio também, afinal a turma não havia aceitado muito bem,

devido as questões aqui citadas, como pouco conhecimento das

tecnologias, e não haviam realizado nenhum trabalho nesse

sentido.

Muitas vezes eles têm medo e receio do novo, afinal já tiveram

experiências árduas, por isso em um primeiro momento, eles

apresentam resistência, até mesmo, por não saber utilizar as TDIC,

no sentido para busca e aprofundamento de assuntos relacionados

ao cotidiano, bem como utilizar outras ferramentas disponíveis aos

mesmos, (editor de texto, power point, câmera digital, celular para

filmagem, sites confiáveis).

Resultados

O Trabalho envolvia a busca sobre maiores conhecimentos e

principalmente tecnologias envolvidas na produção da atividade

bovinocultura leiteira. Desde o desenvolvimento de melhoramento

genético nas pastagens, melhoramento genético bovino,

alimentação (ração,) estrutura físicas existente nas propriedades

para o desenvolvimento da atividade leiteira; as tecnologias de

produção referentes às instalações, equipamentos, manejo e

conhecimento. Os alunos foram divididos em grupos, no qual cada

grupo fez pesquisa de determinado assunto no laboratório de

informática, rede online, a respeito das informações solicitadas.

Num segundo momento passaram essas informações para

Power Point, e apresentaram para toda turma. Após o levantamento

dos dados bibliográficos e apresentação, os alunos foram visitar

uma propriedade do Sr. Dário e Maria Schuvengber, na Zona

Rural, Linha Santa Cruz, Itapiranga. Onde observaram o que

haviam pesquisado e a realidade em seu contexto.

242

Essa atividade foi escolhida porque contemplou vários

aspectos das práticas pedagógicas com a utilização de diversas

ferramentas tecnológicas, bem como pode-se observar, um bom

entrosamento e envolvimento por parte dos discentes. Além de

trazer resultados positivos. No decorrer do trabalho realizado não

foram exigidos dos alunos que observassem questões de

bibliografia, o qual foi repassado em outro momento.

Na atividade feita utilizaram inúmeras TDIC: computador,

máquina digital, sala de informática e data show. Na sala de

informática utilizaram os computadores num primeiro momento

para realizar a busca de informações on line sobre atividade de

bovinocultura leiteira, desde a década de 60 até os dias atuais. A

pesquisa consistia em observar e analisar a estrutura física,

implementos agrícolas, alimentação (ração e pastagem), genética,

entre outras. Após obterem a busca de informações, realizaram

uma apresentação no power point e apresentaram aos demais

colegas, como haviam sido divididos em grupos, cada grupo ficou

responsável por realizar uma parte da busca de informações, e

posterior apresentação em sala de aula, com o auxílio da data show

e computador. A câmera digital foi utilizada para tirar fotos e

gravar vídeos com os proprietários.

Na visita, foram tiradas fotos e produzidos vídeos com os

proprietários onde compartilharam sua experiência. Os alunos,

após a visita, fizeram um relato sobre o que mais chamou sua

atenção, em relação ao conteúdo pesquisado e a prática vivenciada.

Utilizei nomes fictícios.

“Foi uma visita com muitas agregações para o nosso conhecimento, podendo

assim enriquecer o nosso conhecimento a cada dia mais” Joao

“Pode ser observado que cada vez mais existe evolução de modernidades nas

propriedades do nosso querido interior, sempre sendo feito melhorias e

evoluindo e crescendo com as tecnologias que veio para ajudar nosso

agricultor, suinocultor etc” José

“Hoje existem maquinas que facilitam os trabalhos até mesmo dentro das

grandes firmas e bacias leiteiras...” Maria

243

“Tivemos a oportunidade de ver perto o processo que não foi muito diferente

da nossa pesquisa” Dirce

“Foi uma oportunidade muito valiosa, nos proporcionou observar a

realidade” Lurdes.

Alguns dos pontos relevantes da atividade realizada, foram a

alegria e o conhecimento adquirido por parte dos alunos de uma

forma mais dinâmica e com o auxílio das tecnologias. Quando

comentavam com alegria e satisfação que o que pesquisaram foi

parecido com a realidade que visitaram, inclusive. Houveram

algumas questões a serem revistas, como: falta de anotação de

bibliografias utilizadas no desenvolvimento do trabalho, alguns

alunos não se dedicaram como esperava-se, poderia ter envolvido

mais as tecnologias, realizado mais vídeos e fotos.

Ao analisar bibliografias e a prática, é possível observar e

perceber que o aluno tem mais facilidade em aprender com o uso

das tecnologias, pois conseguem esclarecer dúvidas do dia a dia, de

uma forma mais dinâmica e descontraída, interagindo e

relacionando teoria e a prática.

O aluno ainda não tem muito presente a questão de procurar

com o auxílio das tecnologias suas dúvidas no dia a dia. E esse é o

nosso papel como professores, e nada melhor do que propor

atividades em sala de aula, sejam elas, em grupo ou individual. No

início o aluno se sente desafiado e até incapaz, pois não deve o

conhecimento que adquiriu, e o proporcionou um novo olhar sobre

as TDIC, os alunos ficaram muito feliz, no decorrer do

desenvolvimento s atividades, onde puderam observar e perceber

os resultados obtidos, com o auxílio da tecnologia.

Conclusão

Quando se pensa que a Ciência e a tecnologia fazem parte de

nosso dia-a-dia, torna-se mais fácil entender porque é tão essencial

que os estudantes tenham oportunidade de se apropriarem dessas

244

tecnologias em sala de aula, afinal, as mesmas possibilitam que os

alunos interagem de uma maneira mais dinâmica e participativa.

Observar que em um simples trabalho é possível o

envolvimento de várias TDIC: Sala de informática equipada com

computadores e internet, data show, câmera digital, o que torna a

aula mais prazerosa e consegue envolver bem o discente.

Ao analisar bibliografias e a prática, foi possível observar e

perceber que os alunos têm mais facilidades em aprender com o

uso das tecnologias, onde conseguem esclarecer dúvidas do dia a

dia, de uma forma mais dinâmica e descontraída, interagindo e

relacionando teoria e a prática.

Trabalhar teoria e prática, com visita in loco, os alunos são

capazes de entender e aprender de forma mais criativa e prazerosa.

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246

247

Teoria crítica e tecnologia educacional

Celoy Mascarello1

Introdução

O objetivo central deste texto é refletir, fundamentando-se

principalmente no pensamento de Adorno, de Horkheimer e de

Marcuse, alguns pressupostos da teoria crítica e as novas

tecnologias no contexto educacional.

Sociedade da informação, do conhecimento, da aprendizagem

são algumas das muitas e variadas rotulagens, constituídas pela

sociedade moderna em um momento de revolução tecnológica

nunca antes presenciada, ou no mínimo com aceleradas

transformações, se deve em grande parte |s novas tecnologias,

capazes de transformar informações, em sinais digitais ou bits2.

Essas novas tecnologias são aptas a estabelecer comunicação e

transferência de dados entre si devido | sua capacidade de

convergência com uma ampla variedade de redes, principalmente a

internet.

As NTIC’s estão em ritmo de expansão, embrenhando-se no

meio social e gerando impactos significativos. Surge assim, uma

‚nova questão social‛ (CASTEL, 1998, p.495) que est{ diretamente

relacionada com as novas formas de acumulação do Capital e de

inserção das variantes tecnologias no ritmo social.

A educação, como uma prática social, inserida neste contexto,

não poderia ficar imune a estas transformações, sendo preciso

refletir sobre sua função, organização e finalidades no mundo

contemporâneo permeado pelas novas tecnologias. De acordo com

a percepção de Berticelli (2006, p.152):

1 Mestranda em Educação, UNOCHAPECÓ, Servidora Pública Estadual - GERED

Xanxerê, [email protected] 2 Menor unidade de informação que pode ser armazenada ou transmitida na

comunicação de dados.

248

E evidente que conceitos como ensino, aprendizagem, didática,

pedagogia similares necessitam de uma ampla ressignificação, assim

como o conceito de currículo, programas etc. Em tempo algum,

educadores e educandos dispuseram de artefatos tão poderosos de

abrangência tão ampla e útil para construir sua própria educação,

independente de um lugar privilegiado, a tradicional escola. Com

isto, a dinâmica da episteme do processo de educar(se adquire

movimento, uma outra dinâmica, muito mais ligada a processos auto-

organizacionais, muito mas ligada a processos complexos em que se

configure como dinâmica inicial onde se desencadeiam dinâmicas

construtivas/descontrutivas..

Nessa dinâmica de educação a Teoria Crítica poderá favorecer

e contribuir para a reflexão sobre a inserção das novas tecnologias

nos processos pedagógicos.

Breves considerações sobre o iluminismo, razão instrumental e a

razão crítica

A noção de razão aqui tratada, leva em consideração a sua

formulação pelos pensadores iluministas. Alguns elementos do

Iluminismo foram o avanço científico, pensamento

antropocêntrico, o pensamento filosófico mais voltado para o

individuo, a questão da liberdade e principalmente a crença no

avanço continuo da ciência e do progresso.

O Iluminismo foi um movimento filosófico, literário, artístico e

político característico do século XVIII que defendia a garantia das

liberdades individuais e os direitos do cidadão contra o poder

abusivo. Os filósofos iluministas afirmavam que os indivíduos são

iguais por natureza e que a desigualdade existente entre eles era

resultado do tipo de sociedade na qual viviam. A justiça

prevalecerá somente quando existir a igualdade entre as pessoas e

a liberdade de expressão. (JAPIASSU; MARCONDES, 2008).

Em linhas gerais os iluministas acreditavam que os avanços

com relação ao método cientifico e o pensamento filosófico

poderiam levar a humanidade ao conhecimento da natureza e do

249

próprio homem. Esse conhecimento levaria a construção de um

bem estar e de uma felicidade uma vez que seria conhecida as leis

que regem o comportamento da natureza, do homem dos

fenômenos naturais em geral.

De acordo com Pucci (1994) o inicio do século XX demonstrou

que o raciocínio iluminista apresentava problemas, as duas guerras

mundiais evidenciaram que o modo como o homem faz a ciência e

o conhecimento também é influenciado por outros fatores que os

iluministas não levaram em conta. No contexto das guerras

mundiais a ciência foi usada entre outros, para fazer bomba

atômica, aviões bombardeios, armas de destruição em massa, ou

seja, o conhecimento não levou o homem a felicidade e ao

progresso.

Nesse contexto em 1925, surgiu a escola de Frankfurt na

Alemanhã, seus principais pensadores foram Theodor w. Adorno,

Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, entre outros.

Para esses pensadores a razão iluminista aqui descrita em linhas

muitos sucintas é instrumental, pois não proporcionou naquele

contexto uma reflexão objetiva sobre os fins e finalidades do

conhecimento. Aquela razão acabou por ser usada como

instrumento de dominação. A ciência foi feita com propósitos e nos

exemplos das guerras mundiais, um dos propósitos foi a

aniquilação de povos.

A Ciência, portanto, instrumental, vai ser um instrumento de

dominação ideológica, científica e também política. É o

conhecimento sendo usado para valorização de algo que está fora

do humano, algo que está nas grandes decisões políticas de grupos

e classes sociais de poder e também de instituições econômicas

muito fortes.

Segundo a escola de Frankfurt essa é a razão instrumental,

esse tipo de conhecimento contribui para reforçar relações de

poder. A Proposta da escola de Frankfurt é a construção de uma

teoria critica que rompesse e superasse os limites dessa razão

instrumental, revelando as relações de poder que são construídas

com o próprio saber, com a própria ciência e conhecimento. A

250

razão critica, portanto construiria uma reflexão sobre os meios e as

finalidades do conhecimento. Através da Dialética do

Conhecimento, os filósofos da escola de Frankfurt procuraram

desenvolver um raciocínio no qual a ciência e a vida concreta dos

seres humanos são pensados num movimento contraditório do

real, revelando o lado obscuro que ciência instrumental acobertou.

(NOBRE, 2004; PUCCI,1994).

Os avanços das tecnologias sob o prisma da Teoria Crítica

A Teoria Crítica teve seu início associada à tradição Iluminista,

no entanto Adorno e Horkheimer escreveram em 1947 a Dialética

do Conhecimento, em que fazem severas críticas ao iluminismo e

propõem uma reformulação da razão iluminista. Através da

Dialética do Conhecimento, propunham uma racionalidade que

reconhecesse os próprios limites, que questionasse constantemente

o sujeito e respeitasse o objeto de estudo, uma racionalidade crítica.

A partir desse panorama, Nobre (2004) e Pucci (1994) destacam

que a Teoria Crítica refere-se ao conjunto sistemático de posições

teórico-científicas, produzidas pelos idealizadores da escola de

Frankfurt, especialmente, por Adorno e Horkheimer: a

fundamentação dialética da problemática teoria e prática para

investigar e analisar os processos econômicos e sociais de

consolidação do capitalismo e da burguesia, da industrialização

acelerada, das mudanças radicais nos costumes e nas condições de

vida, da exploração do homem pelo homem.

De acordo com Horkheimer ‚[...] a teoria crítica não almeja de

forma alguma apenas uma mera ampliação do saber, ela intenciona

emancipar o homem de uma situação escravizadora‛. (1983b,

p.156). Em resumo, a teoria Critica busca demonstrar que é

possível o rompimento de predisposições de aceite e conformismo

com os preceitos do poder dominante.

A teoria critica e sua correlação com o projeto emancipatório

torna-se importante para a crítica da sociedade atual. Entender o

que está acontecendo no contemporâneo polariza muitas

251

discussões cotidianas. A esperança positivista de redenção da

humanidade na esteira da revolução tecnológica está seriamente

avariada neste conturbado inicio início do século XXI. A previsão

de uma era de bem estar, riqueza, entendimento, realizações e

comunhão materializou-se grande parte em sofrimento, dúvida,

angústia, incerteza, desilusão, irracionalidade e barbárie.

Sobre a revolução tecnológica a

Os filósofos da Escola de Frankfurt preocuparem-se com a forma pela

qual a tecnologia estaria moldando e estruturando as ideias e o

pensamento do homem. Segundo eles, a suposta liberdade apregoada

pelo sistema capitalista de livre mercado seria uma ilusão, pois a

maneira de pensar estaria cada vez mais condicionada pelas

mensagens impostas pelos meios tecnológicos de comunicação.

(RODRIGUES, 2001, p..107),

A atual revolução tecnológica perpassa pela informática, pelas

telecomunicações, pela robótica e pela inteligência artificial. Os

grandes avanços tecnológicos giram em torno da eletricidade e da

eletrônica, sendo impossível negar que serão esses conhecimentos

científicos que contribuirão para agravar vários problemas sociais,

entre eles a exclusão e o preconceito .

A domesticação na sociedade tecnológica ocorre por meio de

promessa que jamais se realizará: a de que todos terão acesso aos

avanços da tecnologia. Exemplo disso é o fato de estar nas mãos de

uma minoria o acesso aos procedimentos médios mais avançados,

cujos indivíduos desfrutam dos melhores medicamentos, por

simplesmente poderem pagar por esses serviços. É o caso dos

sujeitos que se tornam ‚mais sujeitos‛, portanto, menos sujeitados,

por disporem dos equipamentos ou procedimentos tecnológicos de

ponta. Tudo isso sem falar dos exemplos mais simples e mais sutis. O

consumo da tecnologia, na atualidade, é um dos fatores de

diferenciação de classes, uma forma ‚rebuscada‛ de exclusão e

preconceito. Quem não está em sintonia com o seu tempo tecnológico

não pertence as minorias.(BAIBICH-FARIA; MENEGHETTI, 2008,

p.79).

252

É fato que hoje as tecnologias se desenvolvem e se tornam

obsoletas em curto espaço de tempo. As pessoas se veem perdidas

em meio a tanta informação, ciência e técnica. Existe uma corrida

sem precedentes para alcançar e conseguir tais inventos, para

entendê-los, possuí-los e dominá-los, mas tal apreensão torna-se

impossível, pois toda a hora surgem novidades num ritmo

alucinante.

Através de uma rápida análise contextual, percebe-se um

tempo marcado por profundas contradições, pois paralelo ao

grande avanço científico e tecnológico, visualiza-se o aumento do

número de desempregados, a miséria, o individualismo e o

consumismo. Paralelo ao avanço da medicina, existe a

desvalorização da vida, o aumento da violência, a falta de valores.

Juntamente com a alta tecnologia da comunicação nos configura-se

a solidão, o medo, a depressão e a dificuldade das pessoas

aproximarem-se.

Tais situações, por certo, reforçam a opinião de Mészáros

(2002) de que a tecnologia não é neutra.

Este postulado da neutralidade material/instrumental é tão sensato

quanto a ideia de que o hardware de um computador pode funcionar

sem o software. E até mesmo quando se chega a ter a ilusão de que

isto poderia ser feito, já que o 'sistema operacional' etc não precisa ser

carregado separadamente de um disquete ou disco rígido, o software

relevante já estava gravado no hardware. Por isso, nenhum software

pode ser considerado 'neutro' (ou indiferente) aos propósitos para os

quais foi inventado. (MÉSZÁROS, 2007, p. 575).

Adorno (2000) contribui, afirmando que a essencialidade

humana não é algo que está dado e que não muda mais. Ela é

justamente a interrelação de pessoas e processos, que apesar se

serem determinados pela sociedade enquanto seres sociais e pela

história enquanto seres históricos, cada um também determina a

sua sociedade e consequentemente toda a história.

253

Pode-se aprender muito sobre o atual entrelaçamento, entre

progresso e regressão, com o conceito das possibilidades técnicas. Os

procedimentos mecânicos de reprodução desenvolveram-se

independentemente do que deve ser reproduzido e adquiriram

autonomia. Eles passam por progressistas e o que não faz parte deles

passa por reacionário e provinciano. Essa crença é fomentada de uma

maneira tanto mais radical quanto mais as super aparelhagens, a

partir do momento em que ficam minimamente inutilizadas,

ameaçam transformar-se em maus investimentos. (...) O fervor

fascinado com que se consomem os processos mais recentes não

conduz apenas a uma indiferença ao que é fornecido, mas favorece

todo um refugo estacionário e uma idiotice calculada. (ADORNO,

2000, p. 103).

Adorno (2003) questionou se de fato o homem contemporâneo

conquistou sua autonomia ou apenas criou formas mais

sofisticadas de dominação.

Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como

acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a

técnica. Isto tem sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito

elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes

consequências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a

técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se

vincula ao ‚véu tecnológico‛. Os homens inclinam-se a considerar a

técnica como sendo algo em si mesma, esquecendo que ela é a

extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito

de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são

fetichizado, porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se

encobertos e desconectados da consciência das pessoas. Afirmações

gerais como estas são até convincentes. Porém uma tal hipótese ainda

é excessivamente abstrata. Não se sabe com certeza como se verifica a

fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde

está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela

supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um

sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior

rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com essas vítimas em

Auschwitz. (ADORNO, 2003, p. 132-133).

254

Não é necessário muito esforço para o reconhecimento de que

as tecnologias, para além de uma imagem idílica, encobrem um

poder que determina a vida humana. De acordo com Grinspun

(2001) a educação faz parte desse contexto social e sua participação

na sociedade é de grande importância, não somente pela formação

dos indivíduos atuantes nesta sociedade, mas, sobretudo, pela

habilidade de criação que ao homem está destinado no seu próprio

processo de desenvolvimento, para que ele seja capaz de criar,

usufruir e refletir sobre as tecnologias.

Educação e formação na sociedade tecnológica: contribuições da

teoria crítica

Educação é um conceito complexo. Diz respeito ao

desenvolvimento humano, em suas trajetórias de vida, desde o

momento de seu nascimento até sua morte. Refere-se às múltiplas

formas de organização social que possibilitam as transformações da

pessoa a fim de que ela possa atingir graus mais elevados de

realização pessoal e bem-estar social.

A educação é o processo pelo qual o homem/a mulher se torna

sempre mais capaz de se ligar ao mundo, na medida em que se torna

capaz de compreender o mundo (saber o mundo - λογια; νοος –

faculdade de pensar. A ponte entre o mundo e o homem é o saber, o

conhecimento. (BERTICELLI, 2006, p.138).

A educação de uma sociedade tem identidade própria. Todas

as mudanças que passa a sociedade, exige por sua vez um sistema

educacional renovado; o mercado de trabalho precisará de pessoas

mais qualificadas, com mais instrução, criativas, que pensem, que

tenham domínio das novas tecnologias, que sejam politécnicas,

com conhecimento de cultura geral e com ampla visão da realidade

e principalmente que sejam capazes de antever situações.

255

Sobre a necessidade de um espaço educacional renovado,

Berticelli (2006, p.15) destaca:

O tempo e o espaço, agora relativos, configuram um novo de ver. "A

partir da emergência dos grandes meios de comunicação, assim como

o tempo, o lugar (τόπος) adquiriu sentidos inteiramente novos. O

virtual diz respeito tanto ao tempo quanto ao espaço. [...] Uma nova

escola se configurou: a escola heterotópica, independente de tempo

para percorrer o espaço portanto, a educação também se tornou

heterotópica. Pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo e em

tempo real. Com isto, a demanda de nossa competência auto-

organizacional cresceu vertiginosamente e, para tanto, dispomos de

novos e poderosos dispositivos tecnológicos, que contribuem no

traçado de um novo desenho epistêmico do processo de educar,

assim como determinou um novo educando que já não é mais,

definitivamente, o mesmo de algumas décadas atrás.

Nesse contexto educacional não haverá lugar para horizontes

fechados onde só seja aceita a certeza científica. ‚A educação para a

vida na sociedade tecnológica deve incluir, sem dúvida, o

aprendizado dos princípios que regem o funcionamento das

técnicas e o das m{quinas, com as quais todos haverão de lidar‛.

(RODRIGUES, 2001, p.121).

Durante muito tempo a educação privilegiou a razão,

segmentou o conhecimento. Hoje sabe-se que é importante

proporcionar situações em que os alunos participem ativamente do

seu processo de construção do conhecimento. Os conteúdos devem

ser ‚integrados entre si não mais como um quebra-cabeça de peças

perdidas, mas numa teia de fios inter-relacionados e leves, tecidos

por mentes unificadas e mãos afetivas‛ (CELANO, 1991 p. 34), ou

seja, a passividade do aluno no processo educacional deve ser

revertida. Segundo Piaget, (1970, p.):

O principal objetivo da educação é criar homens que sejam capazes

de fazer coisas novas e não simplesmente repetir o que outras

gerações fizeram; homens que sejam criativos, inventores e

descobridores; o segundo objetivo é formar mentes que possam ser

256

críticas, que possam analisar e não aceitar tudo que lhes é oferecido.

A formação de mentes criticas, destacadas por Piaget, encontra

sentido em atividades que permitam o aprender participando,

adotando atitudes diante das situações, examinando, estabelecendo

novas relações entre informações, e escolhendo recursos adequados

para a resolução dos problemas. ‚A formação para a criticidade é a

formação para a liberdade. A liberdade começa no pensamento, no

intelecto, para se manifestar no agir, na ação‛. (BERTICELLI, 2006,

p.132).

A discussão sobre formação crítica é um processo bastante

complexo, pois tem que ser entendido como entrelaçamento com a

educação.‚ Formação crítica é formação para a liberdade

intelectual, na busca da liberdade real num contexto educacional

que subentende a educação como processo complexo e auto-

organizativo.‛ (BERTICELLI, 2006, p.132). Tal discussão demanda

atenção sobre os objetivos da educação, Adorno (2000) traz uma

contribuição importante para a compreensão do seu papel na

formação do ser humano em sua totalidade, um ser capaz de

questionar, pensar, produzir conhecimento.

Aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em

relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e

estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este

sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é

apenas o desenvolvimento lógico-formal, mas ele corresponde

literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é

o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos

termos que procuramos expor, a educação para a experiência é

idêntica à educação para a emancipação (ADORNO, 2000, p.151).

Dessa forma, trata-se de perceber as instituições educacionais

como instancias de possibilidades, de emancipação e de luta para

transformação social. Para Saviani:

257

Uma teoria do tipo acima enunciado impõe-se a tarefa de superar

tanto o poder ilusório (que caracteriza as teorias não-críticas) como a

impotência (decorrente das teorias critico-reprodutivistas), colocando

nas mãos os educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o

exercício de um poder real, ainda que limitado (2001,p.31).

Isto posto, importa considerar a teoria educacional como uma

forma de teoria social, contextualizando as funções sociais

concretas que a escola exerce em termos políticos, neste caso, é

expressão de uma teoria sobre a sociedade, homem e cultura. As

instituições de ensino devem ser tomadas como espaço de

preparação de sujeitos para a emancipação.

A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar minha

concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada

modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar as

pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão

de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do

que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto

seria inclusive da maior importância política; sua ideia [de H. Becker

– NV], se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é:

uma democracia com o dever de não apenas funcionar; mas operar

conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma

democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade

de quem é emancipado. (ADORNO, 2003, p. 141-142).

Nessa acepção, uma educação tecnológica articulada entre o

conhecimento e as relações sociais e políticas mais amplas torna-se

um requisito indispensável para que o processo de ensino e

aprendizagem resulte em efeitos formativos, pois a função

educativa, neste caso, não se restringe ao que ocorre no interior

das instituições de ensino. Antes, configura-se como mediação com

a sociedade.

[...] para que serve, então, uma educação tecnológica? Arrisco uma

resposta: para formar um indivíduo, na sua qualidade de pessoa humana,

mais crítico e consciente para fazer a história do seu tempo com

258

possibilidade de construir novas tecnologias, fazer uso da crítica e da

reflexão sobre a sua utilização de forma mais precisa e humana, e ter as

condições de, convivendo com o outro participando da sociedade em que

vive, transformar essa sociedade em termos mais justos e humanos. Há

momentos de conhecimento da tecnologia, de sua relação com a ciência,

da compreensão do binômio tecnologia e progresso e suas repercussões

nas relações sociais. (GRINSPUN,2001, 29).

Essa perspectiva ratifica o pensamento de que o

desenvolvimento crítico e autônomo possibilitado pela educação

possui a tarefa de romper com a consciência coisificada, que se

origina nas relações unilaterais entre tecnologia/usuário. Segundo

Adorno (1996, p. 396), ‚a consciência coisificada altera a própria via

da experiência que é substituída por um estado de indiferença,

marasmo e alienação‛.

A problematização sobre a inserção das novas tecnologias na

educação, de forma crítica e reflexiva deve encaminhar no

cotidiano escolar a revisão e desnaturalização da reprodução de

receitas prontas.

Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os

processos sociais mais abrangentes de reprodução estão

intimamente ligados. Consequentemente, uma reformulação

significativa da educação é inconcebível sem a correspondente

transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da

sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente

importantes funções de mudança. Mas, sem um acordo sobre esse

simples fato, os caminhos dividem-se nitidamente. (MÉSZAROS,

2007, p. 196).

Segundo Demo (2011, p. 9), ‚Embora não se possa negar o

potencial humanizador da educação, no capitalismo comparece

sempre como serviçal da lógica abstrata da mercadoria‛. No

entanto, para o autor, nesse espaço o aluno deveria ser estimulado

a pensar, a questionar a realidade, não se satisfazer com as

aparências: ‚Ler a realidade para Paulo Freire era precisamente

questioná-la, confrontar-se com ela, para poder mudar, intervir.‛

(DEMO 2011, p. 9).

259

O modo como o individuo se insere e intervém na sociedade

revela a a sua consciência crítica. Manifestando-se sobre o tema, o

educador Paulo Freire (1980, p.16) afirma:

A conscientização é isto; tomar posse da realidade; por esta razão, e

por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da

realidade. A conscientização produz a desmitologização. É evidente e

impressionante, mas os opressores jamais poderão provocar a

conscientização para a libertação: como desmitologizar, se eu

oprimo? Ao contrário, porque sou opressor, tenho a tendência a

mistificar a realidade que se dá à captação dos oprimidos, para os

quais a captação é feita de maneira mística e não crítica. O trabalho

humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da

desmistificação.

Eis que superar o instrucionismo imposto historicamente na

educação é uma tarefa que engloba inúmeros impasses, mas que é

necessária quando se vislumbra o rompimento daquilo que

Adorno denominou de consciência coisificada.

Portanto, não basta apenas munir as escolas com as novas

tecnologias, é imprescindível mudar sua estrutura organizacional e

o papel dos educadores precisa ser revisto. Sendo assim, a

organização de tal processo carece de um pensamento reflexivo, de

atitudes colaborativas e de protagonismo de todos os envolvidos

no contexto. A utilização dos recursos tecnológicos sem um

direcionamento discursivo e reflexivo incorre no favorecimento do

controle e dominação.

A tecnologia, como modo de produção, como a totalidade dos

instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da

máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e

perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do

pensamento e dos padrões de comportamentos dominantes, um

instrumento de controle e dominação. (MARCUSE, 1999, p.73)

260

Sendo assim, aderir à formação dos alunos por meio das TDIC,

sem a necessária crítica, é, no mínimo, preocupante, tornando-se

necessária a problematização das contradições presentes na

formação pela educação sob o amparo da técnica, uma vez que:

Um mundo como o atual, em que a tecnologia ocupa posição-chave,

produz pessoas tecnológicas, afinadas com a tecnologia. [...] Por outro

lado, a atual atitude para com a tecnologia contém algo de irracional,

patológico, exagerado. [...] As pessoas tendem a considerar a tecnologia

como algo em si, como fim em si mesmo, como uma força com vida

própria, esquecendo-se, porém, que se trata do braço prolongado do

homem. Os meios – e a tecnologia é a essência dos meios para a auto-

preservação da espécie humana – são fetichizados, porque as

finalidades – uma existência digna do ser humano – são encobertas e

arrancadas do consciente humano. (Adorno, 2010, p. 132).

Também para Lévy (1999), as discussões acerca de processos

de formação mediados pelas NTIC’s exigem novas reflexões sobre

as relações com o saber. As NTIC’s têm promovido uma maior

velocidade no surgimento e na renovação dos conhecimentos, pois

‚Pela primeira vez na história da humanidade, a maioria das

competências adquiridas por uma pessoa no início de seu percurso

profissional estarão obsoletas no fim de sua carreira‛ (LÉVY, 1999,

p. 157).

Outro fator relacionado ao surgimento de novas relações com o

saber refere-se ao fato de que as TDIC apresentam características

que possibilitam amplificar, exteriorizar e modificar numerosas

funções cognitivas humanas. Nessa perspectiva, entende-se que as

NTIC’s potencializam a disseminação dos conhecimentos. Lévy

(2010, p. 159-160) ressalta que:

[...] como essas tecnologias intelectuais, sobretudo as memórias

dinâmicas, são objetivadas em documentos digitais ou programas

disponíveis na rede (ou facilmente reproduzíveis e transferíveis),

podem ser compartilhadas entre numerosos indivíduos, e aumentam,

portanto, o potencial de inteligência coletiva dos grupos humanos.

261

Considerando a inteligência coletiva, há que se refletir sobre a

cultura digital, ou seja sobre o conjunto de práticas, crenças e

atitudes que são desenvolvidas utilizando os recursos digitais. A

cultura digital altera as possibilidades de produção de novas

relações com o saber. Sobre essa mudança, Lévy afirma que:

A primeira constatação diz respeito à velocidade de surgimento e de

renovação dos saberes e savoir-faire. Pela primeira vez na história da

humanidade, a maioria das competências adquiridas no inicio de seu

percurso profissional estarão obsoletas no fim de sua carreira. A

segunda constatação fortemente ligada à primeira, diz respeito à

nova natureza do trabalho, cuja parte de transação de conhecimentos

não pára de crescer. Trabalhar, quer dizer, cada vez mais, aprender,

transmitir saberes e produzir conhecimentos. Terceira constatação: o

ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam,

exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas:

memória (banco de dados, hiperdocumentos, arquivos digitais de

todos os tipos), imaginação (simulações), percepção (sensores

digitais) tele presença, realidades virtuais, raciocínios (inteligência

artificial, modelização de fenômenos complexos) (LÉVY, 1999, p.157).

A inclusão das novas tecnologias no campo educacional pode

representar um avanço significativo na organização escolar e

curricular, alterando as formas de ensinar e aprender, criando uma

nova cultura pedagógica que implica rever a organização do

tempo, do espaço, do papel do professor e aluno e, especialmente a

questão metodológica.

Dessa forma, compete as instituições de educação que optarem

por incorporar as NTICs em suas práticas o envolvimento com

estudos e pesquisas que reflitam sobre relações sociais, cultura

popular, hegemonia capitalista, ética, entre outras questões que

são fundamentais, provocativas e moralmente pertinentes e que na

maioria das vezes, mesmo que inconscientemente são

ignoradas. As questões incluem aspectos da filosofia e a

epistemologia do design instrucional.

262

Considerações Finais

A filosofia da tecnologia já percorreu um longo caminho desde

a escola de Frankfurt. Adorno, Heidegger e Marcuse são

pensadores, que através da Teoria Crítica, inspiram a reflexão

sobre o contexto atual à luz de seus condicionamentos e

fundamentos, sobressaindo a dimensão ética de um mundo imerso

em tecnologias em todos os setores sociais.

A ciência e a tecnologia modificam cada vez mais o cenário

cotidiano. ‚a modernidade traz um saber funcional |s vezes

distante de um saber pessoal. As forças produtivas esquecem este

tipo de saber e a ‚m{quina‛ dinamiza, movimenta e substitui o

homem‛. (GRINSPUN, 1999, p.62).

Neste sentido, a Teoria Crítica favorece a discussão sobre os

pontos principais entre a educação e a técnica em suas diversas

formas. Em um mundo em que a microeletrônica, a biotecnologia,

a nanotecnologia se fazem presentes e importantes no

desenvolvimento da humanidade, com todos os seus progressos e

perigos, há que se refletir sobre seus processos e seus possíveis

impactos ao bem comum.

Sendo assim, a inserção das NTICs nas instituições de ensino

não deve acontecer meramente pelo tecnicismo, determinismo ou

conformismo a uma realidade, e sim necessita um posicionamento,

conhecimento e envolvimento de todos. A utilização das NTICs no

contexto educacional rompe relações pedagógicas habituais,

descentraliza fontes de atenção, de modo que professores e alunos

se tornam aprendizes. A função do professor é modificada. Ele

deixa de ser um mero informante e passa a interagir com o aluno,

construindo junto o conhecimento e o saber necessário para a sua

formação e para uma educação libertadora.

Em resumo, a Teoria Crítica oferece uma plataforma para

conciliar muitos pontos conflitantes de reflexão sobre a tecnologia.

Se alunos e professores não se questionarem criticamente a respeito

do seu modo de agir frente as inovações tecnológicas, isto é, sobre

263

os valores e representações que dão sentido ao seu modo de ser e

de viver diante dos aparatos digitais, correm o risco de perderem a

consciência de si mesmos e do sentido do seu ser na sociedade.

Só através de uma abordagem que é ao mesmo tempo crítica e

empiricamente orientada é possível entender o mundo na luz de

suas potencialidades.

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265

Interação social e a relação de ensino aprendizagem

na educação infantil

Angélica Dalla Rizzarda1

Introdução

A educação infantil no Brasil e no mundo vem crescendo

significativamente nas últimas décadas. Conforme o Referencial

Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) e a Diretrizes

Curriculares Nacionais da Educação Básica (2013); a partir do

século XIX, com o aumento intensificado da urbanização, a

demanda do próprio capitalismo, do ingresso da mulher no

mercado de trabalho e a organização da estrutura familiar, emergiu

condições para o desenvolvimento econômico e sociopolítico.

É na educação infantil que a criança tem a oportunidade de

desenvolver sua identidade, autonomia, suas habilidades

psicomotoras, sensoriais e perceptivas. É o ambiente escolar que

proporciona e estimula o contato com o próximo, o brincar, a

estimulação das linguagens verbais e corporais possibilita que a

criança se desenvolva de forma global, ou seja, garante que a

mesma tenha uma maior socialização e interatividade.

É nesta fase de escolaridade que a criança deve ‚estabelecer

vínculos afetivos e de troca com adultos e crianças, fortalecendo a

sua auto-estima e ampliando gradativamente suas possibilidades

de comunicação e interação social.‛ (BRASIL, 1998, p. 63). Desta

forma é inerente ao educador proporcionar espaços de

convivências capazes de fazer com que as crianças interajam entre

1 Graduada em História Licenciatura pela Universidade Paranaense- UNIPAR

(2016). Graduada em Pedagogia pela Uninter (2018). Pós-graduada em Educação

do Campo pela Faculdade São Braz de Curitiba- PR (2017). Mestranda em História

com ênfase em Espaço, Economia e Sociedade pela Universidade de Passo Fundo-

UPF (2017-2018). Tem experiência na área de educação, atuando como docente nos

diversos níveis da Educação Básica. Contato: [email protected].

266

si e com o ambiente em que estão inseridos, através da exploração

do mesmo.

Este artigo pretende discutir e trazer reflexões sobre a relação

de ensino aprendizagem e interação social na educação infantil.

Deste modo se faz necessário compreender o olhar do educador

voltado para o planejamento pedagógico dentro da educação

infantil, e qual é o papel do educador no processo de interação

dentro do ambiente escolar.

O brincar na educação infantil

O desenvolvimento de brincadeiras na educação infantil é de

extrema importância. Ele pode ser qualquer coisa; pode ser um

cachorro brincando com o seu rabo, ou uma criança brincando com

um carrinho, boneca, um pote de margarina, por exemplo, todos

nós brincamos e o que muda são, as formas e os tipos de

brincadeiras. As crianças são muito criativas, transformam objeto

em um brinquedo, criando situações de faz-de-conta, aonde uma

caixa de pasta de dente se transforma em um carrinho.

Para que a criança desenvolva uma boa capacidade de fazer as

atividades e de criar, é preciso que haja um grande empenho dos

professores de educação infantil e séries iniciais, para que tragam

materiais e brincadeiras novas, pois assim estarão despertando o

interesse, das crianças pelo lúdico e assim possibilitando que elas,

criem vínculos de amizade com as outras crianças.

A brincadeira é uma linguagem infantil, é através delas que as

crianças estarão contando o que acontece no dia a dia. Quando

estão brincando, as crianças imaginam situações e as representam

através de brincadeiras simbólicas como a de: super-heróis, bruxas,

fantasmas, fadas, entre outros.

De acordo com Vygotsky (1998, p.38), um dos principais

representantes dessa visão, ‚o brincar é uma atividade humana

criadora, na qual imaginação, fantasia e realidade interagem na

produção de novas formas de construir relações sociais com outros

sujeitos, crianças e/ou adultos‛. Tal concepção se afasta da visão

267

predominante da brincadeira como atividade restrita à assimilação

de códigos e papéis sociais e culturais, cuja função principal seria

facilitar o processo de socialização da criança e a sua integração à

sociedade.

Os sinais, objetos e espaços durante o brincar, valem e

significam outra coisa do que se aparenta ser, a brincadeira

favorece a autoestima da criança, brincar contribui assim para a

interiorização de determinado modelo de pessoa adulta. Para

brincar é preciso deixar que as crianças tenham um pouco de

independência para escolher seus parceiros e os papeis que vão

desempenhar durante a brincadeira. Cabe ao professor organizá-

los para que brinquem de forma organizada e produtiva.

As brincadeiras têm um papel muito importante, pois, através

delas, a crianças aprendem ludicamente em uma relação com as

demais crianças, em um exercício de socialização e divisão, que

levará para toda a vida. O brincar proporciona nas crianças

algumas necessidades básicas, que podem ser a de: escolher seus

parceiros, de criar fantasias, experimentar novas sensações perante

uma determinada brincadeira, conhecer e valorizar a si mesmo e as

suas próprias forças.

Um olhar para o planejamento pedagógico

O planejamento pedagógico é um instrumento indispensável

para a construção da identidade profissional do educador e para

desenvolver de suas ações. Este deve ser pensado a partir do olhar

que a criança traz, da sua curiosidade e do que já possuí de

conhecimento prévio.

Para que as intervenções somem positivamente e como um

processo pedagógico, o educador precisa planejar e repensar suas

ações. Pois esta intenção pedagógica transforma o conhecimento

empírico do sujeito, em conhecimento científico. Possibilitando

também que o educador identifique os diferentes saberes e formas

de aprendizagem.

268

Entende-se que a dinâmica que envolve o meio educacional é

de ações planejadas, pensadas, e compartilhadas. O papel do

educador é de proporcionar espaços de troca de conhecimento,

debate, construção e reconstrução de ideias. De acordo com Baso

(1998, p. 46), o educador caracteriza-se por ser um mediador entre

o aluno e sua formação e as esferas de vida social. O olhar do

educador para Educação Infantil deve ser acolhedor, humanizado,

pois o educar, cuidar e brincar são elementos indissociáveis. E o

planejamento pedagógico deve compreender toda esta dinâmica.

O papel do educador no processo de interação

O docente é um dos principais agentes socializantes no

ambiente escolar, por isso destacamos:

Cabe ao professor propiciar situações de conversa, brincadeiras ou de

aprendizagens orientadas que garantam a troca entre as crianças, de

forma a que possam comunicar-se e expressar-se, demonstrando seus

modos de agir, de pensar, e de sentir, em um ambiente acolhedor e

que propicie a confiança e a auto-estima. (BRASIL, 1998, p. 31).

No entanto, a capacidade de interagir também se desenvolve

quando a criança está sozinha, não sendo necessária a intervenção

de um adulto, nas brincadeiras expressam ações, organizam seus

pensamentos e podem criar novas formas de interagir.

Por isso o educador deve estar atendo e perceptível ao que a

criança traz dentro do ambiente escolar. O educador precisa ser

flexível e através das práxis pedagógicas repensar e refletir sua

própria prática. Utilizando então estratégias e metodologias de

ensino que sejam capazes de favorecer a troca de saberes e relações

interpessoais.

É necessário que o educador perceba que a criança também

precisa da sua individualidade, pois estes momentos também são

significativos para seu aprendizado ‚auxiliar as trocas entre as

crianças e, ao mesmo tempo, garantir-lhes o espaço da

269

individualidade‛ (BRASIL, 1998, p. 31). Partindo desta

conceituação, é importante que o educador torne possíveis

momentos em que crianças de diferentes faixas etárias possam se

sociabilizar. São nestes momentos que a interação de linguagem, de

diferentes saberes torna possível à evolução do aprendizado.

O papel do educador então é mediar à construção dos saberes,

permitindo momentos de troca de conhecimentos, promovendo o

respeito, laços afetivos, constituindo características que compõem

sua identidade.

Outro aspecto a ser analisado é o espaço em que a criança tem

acesso dentro do ambiente escolar. O espaço bem organizado e

direcionado é um fator facilitador das interações, propiciando o

estímulo para a conexão das ações. A criança precisa ter espaço

para deslocar-se, podendo de forma livre movimentar-se entre os

espaços internos e externos das salas de aula, do pátio e nas

dependências da escola.

Deste modo a criança pode explorar, brincar, interagir com os

diferentes ambientes e relacionando-se com pessoas de diferentes

idades, classes sociais, culturas, condições específicas como

crianças com necessidades especiais, enfim, possibilitando a criança

a construir e reconstruir saberes, exercer sua autonomia, relações

com o próximo, estimulando-as a convivência global.

Nessa perspectiva, conforme o Referencial Curricular Nacional

para Educação Infantil (BRASIL, Vol. 2. 1998, p. 31):

Propiciar a interação quer dizer, portanto considerar que as diferentes

formas de sentir, expressar e comunicar a realidade pelas crianças

resultam em respostas diversas que são trocadas entre elas e que

garantem parte significativa de suas aprendizagens. Uma das formas

de propiciar essa troca é a socialização de suas descobertas, quando o

professor organiza as situações para que as crianças compartilhem

seus percursos individuais na elaboração dos diferentes trabalhos

realizados.

Nesta perspectiva, é importante ressaltar que o ser humano é

um ser social, e que seu desenvolvimento global é assegurado

270

através das interações sociais. Conflitos, diálogos, sentimentos,

ideias, soluções, debates, são elementos indispensáveis na trajetória

do processo da aprendizagem.

Portanto se aprende através do convívio social. A escola é um

espaço que deve assegurar a criança todo este desenvolvimento

através dos diferentes espaços de interação. Por isso, permitir essa

interação desde o nascimento é indispensável. As construções da

identidade e da autonomia da criança dependem diretamente da

interação que a mesma estabelece com o ambiente em que se

encontra.

Interação social e sua contribuição no processo de ensino

aprendizagem

A educação infantil é, conforme o artigo 29 da Lei de Diretrizes

e Base da Educação Brasileira – LDB (1996) ‚primeira etapa da

educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral

da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico,

psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família

e da comunidade‛.

É na educação infantil que a criança desenvolve sua identidade

e autonomia, é no ambiente escolar que se proporciona e se

estimula o contato com o próximo, o brincar, possibilita que a

criança se desenvolva de forma global, ou seja, garante que a

criança tenha uma maior socialização e interatividade com outras

pessoas de diferentes faixas etárias.

A interação da criança com o ambiente escolar permite a

construção social, de identidade, subjetividade, aprendizado,

desenvolvimento cognitivo e de linguagem verbal e corporal.

Percebe-se este fato na troca que se constrói entre professor e aluno,

como por exemplo, a discussão de determinado assunto, a

exposição de um conteúdo, uma contação de história, um debate,

até uma metodologia mais simples, a roda de conversa que

assegura esta interação verbal.

271

Essa interação está presente também na relação entre alunos,

quando estes estabelecem um diálogo, contam alguma novidade,

ao se expressarem nas brincadeiras, e na fala egocêntrica que faz

parte do desenvolvimento da criança.

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil

(1998, p. 31) sinaliza que ‚a interação social em situações diversas é

uma das estratégias mais importantes do professor para a

promoção de aprendizagens pela criança‛. Desta maneira, os

Indicadores da Qualidade na Educação Infantil apontam que:

A instituição de educação infantil é habitada por um grupo de

adultos e por um grupo de crianças. É, portanto, um espaço coletivo

de convivência, onde acontecem interações entre crianças, entre

crianças e adultos e entre adultos. Sendo uma instituição educacional,

essas interações devem ser formadoras, no sentido de que devem ser

baseadas nos valores sociais que fundamentam sua proposta

pedagógica. (2009, p. 43).

Fazendo um recorte e direcionando para Educação Infantil,

percebe-se que a interação social entre educador e educando está

mais presente, pois há uma necessidade maior de um adulto fazer

parte constantemente no processo de desenvolvimento das

atividades e no desenvolvimento cognitivo e motor dos alunos.

Conforme Souza e Ortega:

É importante então garantir trocas significativas entre adultos e

crianças e oportunizar trocas entre as próprias crianças,

principalmente por meio da brincadeira, bem como dar tempo e

espaço para que elas desenvolvam atividades em pequenos grupos,

incentivando-as a se expressarem, a exercerem a curiosidade e a

criatividade e a negociarem ações e decisões. (s/d, p.4).

A troca de afeto, a relação estabelecida entre cuidar e educar, a

comunicação que se estabelece entre educador e aluno são

fundamentais para o processo de crescimento e desenvolvimento

272

intelectual e autônomo, proporcionando a troca de saberes, de

aprendizagens e o enriquecimento dos laços afetivos.

Para Vigotsky (1998, p. 108) ‚o aprendizado é mais do que a

aquisição de capacidade para pensar; é a aquisição de muitas

capacidades especializadas para pensar sobre v{rias coisas‛.

Portanto, essa troca de afeto, linguagem, expressões, ou seja,

promovendo e resultando no ensino-aprendizagem trata-se de um

processo fundamental, objetivando a proposta pedagógica.

A criança interage com o meio desde o momento de seu

nascimento. A relação que o bebê estabelece com o ambiente e com

os indivíduos é uma gama de possibilidades interativas, então é a

partir deste momento que o universo de significado é ampliado.

Desta forma, aprimorar esta relação de interação que a criança

deve ter desde seu nascimento, é importante para o processo de

ensino-aprendizagem, contribuindo constantemente no

desenvolvimento cognitivo, motor, afetivo. É de grande relevância

que o ambiente escolar da educação infantil proporcione trocas

constates entre os sujeitos da mesma faixa etária bem como a

interação entre diferentes faixas etárias, cabendo ao educador

mediar à relação do educando com o conhecimento, provocando

avanços significativos na aprendizagem.

De acordo com Kishimoto (2002) o jogo é considerado uma

atividade lúdica que tem valor educacional, a utilização do mesmo

no ambiente escolar traz muitas vantagens para o processo de

ensino aprendizagem, o jogo é um impulso natural da criança

funcionando, como um grande motivador, é através do jogo obtém

prazer e realiza um esforço espontâneo e voluntário para atingir o

objetivo, o jogo mobiliza esquemas mentais, e estimula o

pensamento, a ordenação de tempo e espaço, integra várias

dimensões da personalidade, afetiva, social, motora e cognitiva

A educação infantil era vista como um lugar improvisado, do

qual frequentavam crianças de baixa renda, surgindo este para

atender as necessidades da mulher operária, sendo considerado um

local de ‚depósito de crianças‛. Pensava-se que as crianças eram

273

uma tábula rasa2, ou então, julgadas como adultos em miniaturas;

no sentido de que, não havia nada a oferecer as crianças que

pudesse ser considerável para o seu desenvolvimento e sua

aprendizagem.

A concepção e entendimento de infância que se tem hoje é de

uma criança que constrói o seu próprio processo de aprendizagem,

sendo um sujeito participativo e compreendido dentro das suas

etapas desenvolvimento.

Nesta perspectiva a interação social, os laços afetivos e os

diferentes significados que a criança constrói dentro do ambiente

escolar são significativos e determinantes para a construção do seu

aprendizado. O papel do educador é compor esta construção de

identidade, proporcionando um ambiente interativo e como troca

de conhecimentos.

É a partir das interações que a criança constrói o conhecimento

e toma consciência do seu ‚eu‛, como um ser independente dos

demais, socializando-se, interagindo e relacionando-se com o

próximo. ‚A criança é um ser social e, assim necessita da presença

de outros seres humanos para efetivar suas possibilidades como

pessoa‛. (ARRIBAS, 2004, p. 48).

Devem-se educador os professores durante sua graduação a

levar para dentro da sala de aula o lúdico, o que se faz de

diferencial nas aulas e trás a curiosidade do aluno para a prática. O

professor bem preparado, forma alunos preparados para o início

da trajetória no ensino fundamental e nos demais níveis da

educação.

É exatamente nesta direção que a colaboração de uma

perspectiva sociocultural construtivista é bastante oportuna. Por

um lado, abre perspectivas concretas para o desenvolvimento de

novas práticas culturais que sublinham o papel fundamental das

interações e relações sociais no contexto do desenvolvimento e da

educação.

2 Expressão usada por John Locke que significa folha de papel em branco.

274

Por outro, a perspectiva salienta a importância do sujeito ativo,

intencional e consciente na promoção de objetivos educacionais

específicos, dentre eles os sociais, apontando para o valor de

metodologias micro genéticas que auxiliam o educador a

identificar e analisar aspectos centrais da estrutura e da dinâmica

interacional no contexto cultural das atividades pedagógicas.

Considerações finais

Neste contexto, voltado nas interações que se desenvolve na

educação infantil entre crianças de 0 a 5 anos de idade,

considerando esse trabalho como uma oportunidade para refletir,

agir e avaliar o processo de desenvolvimento dos discentes,

perante as situações de interação social, buscamos mostrar a

importância da interação entre professores/alunos e entre

alunos/alunos na educação infantil.

O espaço familiar é o primeiro meio de socialização, nele a

criança aprende valores e conhecimentos que nortearão sua vida. A

escola por sua vez, exerce a função de preparar o indivíduo para o

exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Assim vimos à importância do convívio da criança no meio

social. A família e a escola possuem responsabilidades e deveres no

processo de ensino-aprendizagem da criança.

Dessa forma, família e escola devem estabelecer relações de

cooperação para auxiliar, incentivar e acompanhar o

desenvolvimento pleno da criança. Cabe as duas instituições

parceria para produzir um ambiente saudável, de boas relações

para que o aprendizado seja produtivo e proporcionar a formação

integral do indivíduo.

Dessa forma, a educação infantil pode passar a ser entendida

não mais como assistência e caridade para as crianças brasileiras,

mas sim, como um espaço educacional e de formação para a

cidadania. Logo, o educador infantil que anteriormente não

necessitava de formação e sim de ter boa vontade e gostar de

crianças, hoje demanda escolarização e formação na área.

275

As crianças da atualidade necessitam de uma ampla

atualização em relação às brincadeiras, as quais com a atualidade

tecnologia vêm sido esquecida e substituída pelos meios

tecnológicos. Criança deve brincar e ser estimulada em sua

infância. Além da interação, a brincadeira, o brinquedo e o jogo

proporcionam mecanismo para desenvolver a memória, a

linguagem, a atenção, a percepção, a criatividade e habilidade para

melhor desenvolver a aprendizagem.

Nessa perspectiva, as brincadeiras, os brinquedos e os jogos

vêm contribuir significamente para o importante desenvolvimento

das estruturas psicológicas e cognitivas da criança.

Observamos não somente na educação infantil, mas em outras

etapas da vida do ser humano que o lúdico faz parte e ajuda

constantemente na fixação e absorção do conteúdo por parte dos

alunos, visto que o conhecimento é construído pelas relações

interpessoais e trocas recíprocas que se estabelecem durante toda a

formação integral da criança.

Portanto, a introdução de jogos e atividades lúdicas no

cotidiano escolar é muito importante, devido a influência que os

mesmos exercem frente aos alunos, pois quando eles estão

envolvidos emocionalmente na ação, torna-se mais fácil e dinâmico

o processo de ensino-aprendizagem. A criança aprende brincando,

interagindo e se desenvolvendo em meio a outras crianças.

Deste modo, podemos nós professores perceber dificuldades e

devaneios no aprendizado da criança e intervir na forma mais

segura e necessária. E para concluir, o aluno não é tão somente o

sujeito da aprendizagem, mas, aquele que aprende junto ao outro o

que o seu grupo social produz, tal como: valores, linguagem e o

próprio conhecimento.

Referências

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Guanabara, 1986.

276

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VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo:

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277

Ludicidade por meio da literatura infantil e da música:

um projeto de extensão voltado

para formação de professores

Roberta Taís Recktenwald1

Carolaine Schreder2

Maicon Bonmman dos Santos3

Sílvia Natália de Mello4

Considerações Iniciais

O presente trabalho surgiu de uma prática realizada no Estágio

Supervisionado III Ensino Médio Curso Normal, que é um

componente obrigatório do Curso de Licenciatura Plena em

Pedagogia da Faculdade Três de Maio (SETREM). No intuito de

realizar uma Oficina Pedagógica, criou-se um projeto de Extensão

Universitária para ser desenvolvido por alunos do curso de

Pedagogia sob orientação da professora do componente curricular.

Para tanto, escolheu-se as turmas do Ensino Médio- Curso Normal

do Instituto Estadual de Educação Cristo Redentor, localizado no

município de Cândido Godói/RS.

Neste projeto foi abordado o tema: Ludicidade por meio da

Literatura Infantil e da Música, que se fazem indispensáveis a

serem trabalhados em um curso de formação de professores, uma

vez que, estão presentes no cotidiano escolar contribuindo

significativamente para a aprendizagem e desenvolvimento das

crianças.

1 Acadêmica do 8º Semestre do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da

Faculdade Três de Maio (SETREM). [email protected] 2 Acadêmica do 8º Semestre do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da

Faculdade Três de Maio (SETREM). [email protected] 3 Acadêmico do 8º Semestre do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da

Faculdade Três de Maio (SETREM). [email protected] 4 Professora Mestre em Educação nas ciências na Faculdade Três de Maio

(SETREM). [email protected]

278

Dessa forma, vê-se em ambos os temas, tanto a Música como a

Literatura, elementos que contribuem para construção do gosto

pela leitura e recursos que despertam a imaginação e a

criatividade. Britto (2003) traz que isso são formas lúdicas que

conquistam a atenção e o gosto por aprender e a partir dessa

metodologia pode-se trabalhar temas variados para desenvolver a

parte afetiva, cognitiva, social e motora.

Estes, também são uma forma de expressão, pois através disto

as crianças se comunicam, demonstrando sentimentos, emoções e

atitudes que devem ser observadas e trabalhadas. Portanto, a

ludicidade, envolvendo tanto a Literatura Infantil quanto a Música,

são fatores determinantes da personalidade e identidade do sujeito

e que devem fazer parte do cotidiano e práticas educativas, assim

como nos fala Abramovich (2006).

Frente aos muitos desafios que se encontram na escola, aqui

especialmente se pensando na Educação Infantil e Séries Iniciais do

Ensino Fundamental, por ser a área de formação que o Curso

Normal abrange, é preciso pensar nas diferentes estratégias

pedagógicas e metodologias para auxiliar e facilitar o processo de

ensino e aprendizagem.

Diante disso, pensou-se no tema da ludicidade percebendo a

importância de ser trabalhado com os alunos do Ensino Médio-

Modalidade Normal, que atuarão na área da educação e precisam

ser frequentemente motivados a serem professores criativos,

inovadores que buscam estratégias de ensino que constroem o

gosto em aprender nos seus alunos e que irão contribuir no

desenvolvimento dos mesmos.

Ainda, os acadêmicos que realizaram a oficina, estão

produzindo e disseminando os conhecimentos aprendidos na

faculdade, ou seja, está-se compartilhando e articulando

conhecimentos científicos com a comunidade, buscando

transformar a realidade daquele local, de forma a conscientizar e

fazer com que os alunos busquem em sua atuação profissional uma

educação de qualidade.

279

Metodologia

Esta prática pedagógica foi vivenciada através do componente

curricular de Estágio Supervisionado III - Ensino Médio-

Modalidade Normal no 6º Semestre do curso de Licenciatura Plena

em Pedagogia da Sociedade Educacional Três de Maio- SETREM. A

partir de então, realizou-se uma Oficina Pedagógica através de um

projeto de Extensão Universitária.

O Projeto foi desenvolvido no Instituto Estadual de Educação

Cristo Redentor, no Município de Cândido Godói-RS, com as

turmas do Ensino Médio- Curso Normal, totalizando 55

participantes. Nesta Oficina, trabalhou-se com o tema Ludicidade

por meio da Literatura Infantil e da Música.

O trabalho possui abordagem qualitativa, com caráter

descritivo, onde foram registradas reflexões, apontamentos e

observações (LOVATO, 2013). Ainda, usamos o método de

pesquisa-ação, o qual acreditamos tornar a prática docente mais

crítica e eficaz, concordando com Abdala, quando afirma que o

procedimento metodológico da pesquisa-ação

[...] seria a melhor forma de apreender a realidade, pensá-la na

fluidez de seu processo e, principalmente, possibilitar o envolvimento

ativo das professoras na realidade a ser investigada. Desse modo, a

pesquisa-ação seria um instrumento para compreender a prática,

avaliá-la e questioná- la, exigindo, assim, formas de ação e tomada

consciente de decisões (2005, p. 386).

Sendo esta prática integradora, foi necessário a participação e

a reflexão de todos, realizando-se 4 horas de Oficina Pedagógica

com discussões e atividades sobre a temática Ludicidade por meio

da Literatura Infantil e da Música.

No momento inicial deu-se a acolhida dos normalistas e os

participantes foram desafiados a pensar sobre alguns

questionamentos para uma conversa inicial. Apresentou-se o

conceito de ludicidade e a importância da música e da literatura

infantil para o desenvolvimento do educando. Após os acadêmicos

280

contaram uma história onde os participantes envolveram-se

dramatizando com movimentos, demonstrando assim, uma

maneira possível de realizar esta prática.

A próxima atividade esteve relacionada à ritmo, o qual foi

conceitualizado. Logo, a atividade envolveu trabalho em equipe,

coordenação, atenção e concentração, utilizando copos de plástico

para fazer o som e pequenas cantigas.

No momento seguinte, em duplas foi feito um círculo externo

e outro interno que através da rotatividade entre os colegas

cantaram e realizaram os gestos com as duplas da música palmas,

coxa e bumbum. Para dar continuidade, formaram-se duplas onde

um observava e outro se movia de acordo com o som- como se

fosse um boneco movido. A cada tipo de ruído, o participante

reagia de acordo com sons que foram colocados, entre eles

estridentes, relaxantes calmos, engraçados, aflitos<(chuva,

suspense, trovões<).

Em seguida, dividiu-se os estudantes em 5 grupos e cada um

pode escolher um dos livros de Literatura Infantil que foram

disponibilizados. Cada grupo teve aproximadamente 20 (vinte)

minutos para se organizar e conversar, preparando uma contação

de história a partir do livro escolhido. Puderam dispersar-se pelos

diferentes ambientes da escola e ocupá-los também no momento da

socialização, como o pátio externo, auditório, pátio com

brinquedos, embaixo de uma árvore.

Para este exercício grupal foi preciso criatividade, expressão e

autoconhecimento de forma a refletir se cativaram a atenção do

grande grupo. Também ressaltou-se algumas técnicas e maneiras

de contar histórias, como a importância de entrar no personagem,

alterando sua voz e demonstrando os sentimentos que surgem

durante a história como o suspense, surpresa, cansaço, alegria e

fazer os movimentos que a história traz em cada situação.

Após, os acadêmicos mediadores da oficina, realizaram a

contação da história ‚Medo‛, para a qual os participantes

vendaram seus olhos e passaram por alguns obstáculos, como um

281

caminho que estimulou o tato dos pés e diferentes sensações,

trazendo um pouquinho do sentimento abordado pela história.

No momento final, para uma despedida bem animada e lúdica,

como a proposta desta oficina, todos foram convidados a cantar e

dançar a música ‚Tchuê, tchuê!‛. Ainda, havia a proposta de

realizar a corrente do positivo, onde cada participante falaria uma

palavra que descreve a experiência da oficina pedagógica, porém

não foi realizado devido a falta de tempo.

Resultados e Discussão

No campo da educação busca-se constantemente formas

diferenciadas e inovadoras que possam vir a qualificar o processo

de ensino-aprendizagem. Nesta perspectiva, tem-se como

possibilidade as oficinas pedagógicas. Estas oficinas podem ser

entendidas como um local para aprender, onde são trabalhadas

algumas habilidades e competências dependendo do objetivo da

mesma (PIMENTA, 2013, p. 162).

Além disso, as oficinas pedagógicas proporcionam maior

interação entre os participantes, sendo um momento bom de ser

vivenciado, onde o resultado da oficina é devido a participação,

colaboração e cooperação de todos. Pimenta nos diz que ‚*...+ a

observação e a com-vivência, mediadas pelo trabalho, são os

aspectos centrais do ensino e da aprendizagem.‛ (2013, p.163). Isto

quer dizer que, para se ter estes bons resultados, o grupo precisa

saber ter a sensibilidade de perceber o outro e suas ideias, bem

como, compreender as situações mantendo atitudes de respeito,

diálogo, para vivenciar este momento com o todo, e como parte

deste todo.

Para a organização de uma oficina pedagógica,

PIMENTA(2013) diz que dispõe-se de três momentos essenciais:

a) Sensibilização- neste momento inicial é importante realizar

atividades/questões que despertem a curiosidade sobre o tema que

será abordado, e ainda perceber os saberes prévios que os

participantes tenham sobre o mesmo. Ou seja, ver e ouvir.

282

b) Aprofundamento- Momento central da oficina. É ali onde se

aprofunda as questões sobre o tema, propõe-se reflexões.

c) Compromisso- Momento final, onde depois de dialogar e

pensar sobre o tema, apresenta-se sugestões de compromissos,

atitudes e ações a serem desenvolvidas, o que cada um

compromete-se a fazer no dia a dia frente ao que aprendeu. Espera-

se que a experiência de participar de oficinas pedagógicas possa

auxiliar cada participante a repensar sua prática, além de

interagirem, refletirem, assumindo os compromissos, em vista de

favorecer ‚*...+ uma pr{tica educativa dialógica, participativa e

democrática. (PIMENTA, 2013, p. 172).

Ludicidade

Lúdico segundo Piaget (1975) e Winnicott (1975), envolve três

conceitos que são: a brincadeira referindo-se a ações espontâneas

ao realizar uma atividade; o jogo que é uma brincadeira que

envolve certas regras, geralmente estipuladas pelos participantes

e/ou jogadores; e o brinquedo que é objeto da brincadeira. Estes

fazem parte da infância e isso é ludicidade. Através dela, a criança

está interagindo com outras pessoas, com o mundo e também com

ela mesma. Por isso se faz tão importante no desenvolvimento, pois

é a partir destas relações que se constrói conhecimento.

Assim sendo, também se faz indispensável no processo

educativo, pois é através da ludicidade que se pode facilitar a

compreensão de determinado assunto, de cativar o interesse e

atenção das crianças, criando o gosto de aprender e estar no

ambiente escolar. Sabe-se que há muitos conteúdos para serem

trabalhados durante um ano letivo, mas não estamos descartando

ou diminuindo a importância destes, mas sim os enriquecendo

através dessa estratégia de ensino que é a ludicidade.

O Ensino Médio- Modalidade Normal, que no momento é

abordado, forma professores para trabalhar na Educação Infantil e

Séries Iniciais do Ensino Fundamental, ou seja, atua com alunos

que estão em fase peculiar de desenvolvimento, e por isso este

283

curso também precisa apresentar a influência da ludicidade para o

desenvolvimento dos educandos, para que estes futuros

profissionais tenham a ludicidade presentes em suas práticas, o

que procurou-se oportunizar no momento da oficina.

Hoje não se tem mais alunos passivos e sim ativos que

participam e se envolvem nas atividades e a ludicidade pode

auxiliar, facilitar e fortalecer essas características que são

importantíssimas para o desenvolvimento de um sujeito crítico. É

através do brincar que a criança cria, recria, representa, reflete e

constrói. Por isso vê-se como essencial no processo pedagógico.

A educação lúdica é uma ação inerente à criança e aparece sempre

como uma forma transacional em direção a algum conhecimento, que

se redefine na elaboração constante do pensamento individual em

permutações constantes com o pensamento coletivo. (ALMEIDA,

1995, p.11)

O brincar é uma necessidade da criança e importantíssimo

para o desenvolvimento de um psicológico saudável. Assim, hoje

percebe-se que a maioria das crianças passa a maior parte do

tempo do dia nas escolas e por isso que é de responsabilidade da

escola e do professor tornar este espaço mais atraente e que

possibilite aprendizagens significativas para as crianças, podendo

se utilizar a ludicidade.

Brincando o sujeito aumenta sua independência, estimula sua

sensibilidade visual e auditiva, valoriza sua cultura popular,

desenvolve habilidades motoras, exercita sua imaginação, sua

criatividade, socializa-se, interage, reequilibra-se, recicla suas

emoções, sua necessidade de conhecer e reinventar, constrói seus

conhecimentos. (DALLABONA, 2010.p.4)

Trabalhar na área da educação é um grande desafio, pois está-

se em constante processo de contribuição na formação de um ser

humano e cidadão. Assim a escola deve cativar a construção de

284

conhecimento e não impor ela, para isso se faz necessário inovação

e motivação do profissional para o progresso do seu aluno.

Trabalho por meio das histórias e da música

A música é uma importante ferramenta pedagógica e há

diferentes possibilidades de trabalhar com ela, envolvendo gestos,

expressões, dança, sons dos animais e do meio ambiente. Dessa

forma, oportuniza-se o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e

social, pois o corpo estará em movimento e juntamente será

trabalhado a memória, o raciocínio lógico, apreciação de sons e

integração.

O ensino da música não tem o objetivo de formar músicos, mas

sim estimular as potencialidades e a criatividade dos alunos, como

forma de contribuir para a formação desses sujeitos. Mas é

imprescindível que haja um bom planejamento e uma

contextualização das atividades a serem desenvolvidas. E ainda,

principalmente em relação à música, é preciso fazer boas seleções,

uma vez que, não se pode cair no senso comum e apenas levar em

consideração seu gosto pessoal, mas sim a cultura e os saberes

envolvidos na cantiga.

[...] importa, prioritariamente, a criança, o sujeito da experiência, e

não a música, como muitas situações de ensino musical consideram.

A educação musical não deve visar à formação de possíveis músicos

do amanhã, mas sim à formação integral das crianças de hoje.

(BRITO, 2003, p.46).

Contudo, esta ferramenta permite facilitar o processo de

concentração, bem como da atenção, pois é algo que requer maior

percepção auditiva. Também se faz necessário ter uma visão crítica

frente à letra para que se possa entender qual tema está sendo

trabalhado e se o assunto é pertinente para aquele momento e do

interesse dos alunos.

285

Atenção especial deveria ser dispensada ao ensino de música no nível

da educação básica, principalmente na educação infantil e no ensino

fundamental, pois é nessa etapa que o indivíduo estabelece e pode ser

assegurada sua relação com o conhecimento, operando-o no nível

cognitivo, de sensibilidade e de formação da personalidade.

(LOUREIRO,2003, p.141)

Portanto, vê-se a relevância do ensino da música em todos os

níveis de ensino, pois além do aluno trazer sua bagagem cultural

ele também poderá fortalecê-la ou reformulá-la, uma vez que, ela

faz parte da construção da identidade do sujeito e os professores

são mediadores deste processo. Assim, percebe-se a importância de

abordar esse tema e que ele esteja presente no currículo de cursos

para formação de professores, pois é preciso compreender a

importância e a contribuição da música na educação.

Nesta mesma perspectiva podemos trazer o trabalho através de

histórias, onde a criança pode exercitar o imaginário, a criatividade

e a curiosidade, assim como nos traz Fanny Abramovich (2006, p.

17), que através de uma história pode-se ‚também suscitar o

imaginário, é ter a curiosidade em relação a tantas perguntas, é

encontrar tantas ideias para solucionar questões (como as

personagens fizeram<). É a possibilidade de descobrir o mundo

imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos

vivemos *...+‛.

Quando a criança ouve as histórias ela se põe no lugar dos

personagens, sentindo as mesmas emoções que eles, a mesma

autora anteriormente citada destaca que ‚é ouvindo histórias que

se pode sentir (também) emoções importantes, como a tristeza, a

raiva, a irritação, o bem-estar, o medo , a alegria, o pavor, a

insegurança, a tranquilidade e tantas outras *...+‛ (ABRAMOVICH,

2006, p. 17). Emoções que é fundamental que a criança viva nesta

idade, mas de uma forma diferente, onde apenas se põe no lugar

do personagem, podendo a qualquer momento fechar o livro e

voltar ao mundo real.

Vale ressaltar ainda que é através de uma história que o

professor pode iniciar e/ou dar continuidade a um conteúdo, como

286

por exemplo geografia, história, sociologia e até mesmo filosofia e

política, pois uma história pode muito bem retratar um contexto

histórico, ou uma paisagem ou relevo de uma determinada região,

ao mesmo tempo que trata de questões morais e éticas que

permeiam nossa sociedade, uma bom exemplo de uma história que

trata disso tudo é a história infantil De carta e carta de Ana Maria

Machado.

Mas contar uma história, não é simplesmente ler uma história,

Fanny Abramovich nos traz muito bem acentuado esta arte que é

contar histórias:

Para contar uma história - seja qual for - é bom saber como se faz.

Afinal, nela se descobrem palavras novas, se entra em contato com a

música e com a sonoridade das frases, dos nomes< Se capta um

ritmo, a cadência do conto, fluindo como uma canção< Ou se brinca

com a melodia dos versos, com o acerto das rimas, com o jogo das

palavras< Contar histórias é uma arte< é tão linda!!! É ela que

equilibra o que é ouvido com o que é sentido, e por isso não é nem

remotamente declamação ou teatro< Ela é o uso simples e

harmônico da voz. (2006, p. 18).

Assim vemos a importância do preparo para se contar uma

história, pois conhecendo a história previamente, para se ter uma

melhor entonação da voz, destacar momentos de alegria e de

suspense. E assim trazer os personagens à vida, mas o mais

importante é demonstrar interesse pela história e prender a atenção

de quem está lhe ouvindo, fazer com que elas se sintam parte da

história, se pondo no lugar das personagens, e vivam as mesmas

emoções que a personagem vive.

É através destas vivências que podemos ajudá-la a solucionar

seus próprios dilemas particulares, pois faz parte do processo de

crescimento de qualquer criança ‚querer saber mais sobre aflições,

tristezas, dificuldades, conflitos, dúvidas, sofrências, descobertas

que outros enfrentam, para poder compreender melhor as suas

próprias, faz parte das interrogações de qualquer ser humano em

crescimento<‛ (ABRAMOVICH, 2006, p. 98). E h{ histórias

287

específicas para cada uma destes dilemas que cada pessoa enfrenta

em sua infância.

Portanto, a ludicidade está interligada com a música e com a

literatura infantil uma vez que, através delas envolve-se jogos e

brincadeiras, enriquecendo as práticas do cotidiano escolar. Diante

das colocações acima, foram atingidos os objetivos desta oficina

pedagógica, pois os participantes demonstraram pela sua

participação nas atividades propostas e nos constantes diálogos e

reflexões exercidos, que compreenderam os conceitos abordados

procurando relacioná-los com os exemplos de ações que podem vir

a ser realizadas, e principalmente sua interligação com o cotidiano

e contexto escolar.

Como resultados positivos, pode-se destacar que o desafio da

contação de histórias em grupos foi realizado com grande êxito. Os

grupos conseguiram organizar-se no pouco tempo que tinha,

buscaram materiais extras, preparam o ambiente e dedicaram-se

para uma bela socialização. Ao final da apresentação de todas as

histórias, dialogou-se destacando os aspectos positivos e os

aspectos a ser melhorados, bem como dicas de contação de

histórias e o cuidado na escolha dos próprios livros de literatura

infantil.

Ao final da oficina, não conseguiu-se realizar a corrente do

positivo como momento de compromisso, devido ao tempo.

Todavia, quem sentiu-se encorajado expôs em poucas palavras o

que levava deste encontro. A partir da Oficina realizada, interagiu-

se com um grupo de futuros professores, que responderam muito

bem a proposta de fazer diferente, buscando sempre o melhor para

os seus alunos, e buscando se qualificar mais através do

desenvolvimento do projeto.

Assim, os participantes terão um diferencial, o de usar a

criatividade, a ludicidade como motivação e contribuição para a

aprendizagem de seus alunos, conhecendo algumas ideias

referente a Música e Literatura Infantil que se fazem essenciais em

sua área de atuação.

288

Dessa forma, se percebe a importância da extensão para tornar

o conhecimento acessível e contribuir para determinado grupo

social, tendo-o como elemento construtivo do processo

educacional, cumprindo com a seguinte função: ‚Combinar o

máximo da qualidade acadêmica com o máximo de compromisso

social.‛ (NETO apud BUARQUE, 2002, p.38).

Considerações Finais

Buscando repassar os conhecimentos aprendidos na faculdade

para torná-los acessíveis a outras pessoas pensou-se neste projeto

de Extensão. Com esse intuito, pode-se auxiliar na formação dos

futuros profissionais da Educação de forma a buscar novas

metodologias e estratégias que contribuam para a aprendizagem

dos alunos.

Assim, se coloca em exercício a aproximação entre teoria e

prática, e enquanto acadêmicos do Curso de Pedagogia também há

um crescimento quando se consegue articular os três grandes eixos

de Ensino, Pesquisa e Extensão. Voltamos à academia com

aprendizado e experiência única que também acarretará em nossa

qualificação.

Portanto a Relevância Social deste projeto é contribuir na

Formação de Professores que primam por uma educação de

qualidade, que se preocupam com o desenvolvimento e

aprendizado de seus alunos, onde através de uma oficina

pedagógica trabalhou-se habilidades e competências para criar um

bom planejamento e realizar uma boa aula Lúdica com Literatura

Infantil e Música.

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avaliação da prática docente. Ensaio: aval.pol.públ.Educ.[online].

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Piracicaba. 3º Edição. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002.

290

291

Formação continuada em questão:

o que dizem os professores de educação infantil

em um município do interior baiano?

Zenaide Viana Soares Fortunato1

Palavras iniciais

As demandas do tempo imprimem, no decorrer da história,

novas especificidades para a educação em todas as áreas do

conhecimento. Nesse sentido, o perfil dos profissionais desta área

frente aos novos desafios também é alterado. As atividades

docentes, para atender às demandas que atingem as instituições

também são modificadas em suas concepções e suas formas de

construção do saber. Nesse cenário de mudanças, a partir da

década de 1980 do século XX, as ações para formação continuada

de professores no Brasil foram intensificadas; entretanto, foi na

década de 1990 que essa formação passou a ser considerada como

uma das estratégias fundamentais para o processo de construção

de um novo perfil profissional da educação.

No contexto atual da política educacional, foi atribuído à

formação continuada de professores, papel relevante como meio

para melhorar a sua prática pedagógica. Vale destacar a Lei nº.

9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDBEN)), que definiu os níveis de qualificação para atuação

docente na educação básica, assim como o atual Plano Nacional de

Educação (PNE), Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 (BRASIL,

2014), que revela preocupação com a qualificação docente para a

educação básica.

Entendemos que a formação continuada é um meio pelo qual

docentes, mediante os conhecimentos adquiridos em cursos,

1 Mestra em Ensino pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.

Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, campus de Bom

Jesus da Lapa, Bahia. Contato: [email protected].

292

oficinas, palestras, grupos de estudo, dentre outros, com o intuito

de refletir, de compreender e de considerar uma excelente atuação

nas práticas escolares, tornam-se também cada vez mais críticos,

reflexivos e motivados. Autores como Imbernón (2010), Gatti (2008)

e Candau (1997) ressaltam que a formação deve ser encarada como

um processo permanente, integrado no dia a dia dos professores e

da escola e não como uma função que intervém à margem dos

projetos educacionais.

Para entender o contexto da formação docente específica,

precisamos compreender as nuances que envolvem a conjuntura

desse profissional no que se refere à atuação, à formação acadêmica

(graduação) e à prática pedagógica; em seguida, averiguar essa

formação no contexto da atuação.

Nesse sentido, nesta pesquisa, direcionamos o olhar para a

Formação Continuada de Professores da EI, partindo da seguinte

questão: Quais os discursos de professores atuantes na EI sobre as

implicações da formação continuada nas suas práticas docentes? A

partir dessa questão inicial, buscamos apreender o discurso dos

professores em relação ao referido problema, tendo como objetivo

geral: analisar discursos de professores atuantes na EI sobre as

implicações da formação continuada nas suas práticas docentes; e

como objetivos específicos: analisar as concepções de formação

continuada de docentes da EI; investigar se houve modificações na

prática pedagógica de professores da EI como resultado da

formação continuada.

A motivação para a realização da presente pesquisa nasce

primeiramente da minha trajetória profissional, por meio da qual

me inseri no campo da EI e da formação de professores. Iniciei a

minha carreira docente, lecionando na EI e nos anos iniciais do

Ensino Fundamental; com o passar do tempo, passei a atuar no

Normal Médio, bem como na formação de professores em exercício

e, atualmente, leciono no Ensino Superior, no curso de Licenciatura

em Pedagogia do campus XVII da Universidade do Estado da Bahia

(Uneb). Optamos pelo diálogo com professores de EI por conta da

nossa atuação nesse campo.

293

Este texto apresenta um recorte da pesquisa que realizamos

durante o período do Mestrado em Ensino, na qual buscamos

aprofundar questões teóricas e práticas acerca da formação

continuada no contexto do município de Bom Jesus da Lapa. Nesta

pesquisa, realizamos entrevistas semiestruturadas com seis

professoras dos Centros Municipais de Educação Infantil no

referido município, nas quais dialogamos com as docentes acerca

da temática em questão.

O recorte aqui apresentado trata das análises a partir dos

discursos das professoras entrevistadas a respeito da temática em

questão. Esse texto é subdividido em dois eixos de análise: a

concepção de formação continuada e os impactos da formação na

prática das docentes. Todas essas análises foram realizadas à luz de

postulados de Michel Foucault eleitos para esta pesquisa e de

autores da Formação Continuada, como Imbernón (2010), Nóvoa

(1995), Gatti (2008), Prada (1997) e Candau (1997).

Concepção de formação continuada

A concepção de formação continuada é relativamente

recente, visto que tal conceito foi sendo elaborado ao longo das

últimas décadas por meio do desenvolvimento de discussões entre

diversos grupos de pesquisadores e educadores ligados à temática.

Nesse contexto, foram sendo atribuídos diversos conceitos, com

base nos quais alguns sinônimos da Formação Continuada foram

sendo concebidos.

Prada (1997) aponta diversos conceitos comumente

associados à formação continuada, dentre os quais: capacitação,

qualificação, aperfeiçoamento, reciclagem, atualização, formação

permanente, especialização, aprofundamento, treinamento, re-

treinamento, aprimoramento, superação, desenvolvimento

profissional, profissionalização, compensação.

Mediante as concepções de formação continuada abordadas

por Prada (1997), percebemos nas falas das docentes aproximações

com tais conceitos. A maioria dos termos tratados pelo autor

294

denotam processos meramente técnicos, numa concepção que o

autor denomina de mecanicista. Na fala da professora A, notamos

um distanciamento dessa concepção ao abordar aspectos de uma

formação reflexiva:

A Formação Continuada é uma exigência da LDB 9394/1996. Os

professores necessitam conhecer as leis que regem seus direitos e

deveres. É algo essencial e urgente, e não meramente para

desenvolver artefatos técnicos, mas, principalmente, como espaço

para o diálogo, a reflexão e troca de experiências. É a oportunidade

do educador avaliar o trabalho que está sendo feito e se reorganizar,

muitas vezes, até se redescobrir (PROFESSORA A).

Na fala da referida professora, aparecem alguns aspectos que

podem estar relacionados com os conceitos de saber, poder e

governamentalidade, anunciados por Foucault. Ao citar a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional, afirmando que os

professores precisam conhecer as leis que regulamentam os seus

direitos e deveres, a professora em questão remete-se ao uso do

poder pelo Estado. Para Foucault (2009), o poder não está limitado

a uma instituição ou a um conjunto de instituições, mas se encontra

diluído na estrutura social e nas relações historicamente

estabelecidas. Nesse sentido, embora o poder não se encerre em

uma instituição específica, algumas instituições detêm status de

poder constituído sócio-historicamente, dentre elas, a instituição

estatal.

Embora o poder seja constantemente associado aos seus efeitos

negativos, de repressão, de exclusão, percebemos na promulgação

de determinadas leis que o poder também gera efeitos benéficos a

determinados grupos, por exemplo, ao assegurar o direito à

formação continuada dos professores por meio do dispositivo

legal, como afirmou a professora A. Nesse sentido, o próprio

Foucault (2009) afirma que o Poder não é algo negativo, mas que

também pode produzir bons efeitos na sociedade a depender do

uso que se faz dele, assim, o poder pode tanto ser um instrumento

de exclusão e repressão, como pode ser um produtor de saber.

295

O poder estatal, ao se utilizar do seu governamento, ao longo

dos avanços legais inerentes à educação, especificamente no que

tange à formação dos professores, gerou avanços que

possibilitaram o crescimento profissional de muitos professores e

garantiu o direito a uma formação mais adequada; nesse sentido,

ficou clara a relação entre o poder e os efeitos de saber gerados por

essas leis.

Outro elemento que aparece nas falas das docentes diz respeito

à Formação continuada enquanto espaço para discussão e reflexão

sobre as práticas cotidianas dos professores em exercício do

magistério na EI, como vemos na fala das professoras A e C,

transcritas abaixo:

A formação continuada deve proporcionar aprofundamento das

temáticas educacionais e apoiar-se numa reflexão sobre a prática

educativa (PROFESSORA A).

A formação continuada é de grande importância para o professor,

pois possibilita momentos de novas aprendizagens, com discussões e

reflexões sobre a prática pedagógica (PROFESSORA C).

A formação é um espaço privilegiado para reflexão da prática

pedagógica, à luz das teorias e dos diálogos estabelecidos nesse

espaço, já afirmavam autores como Nóvoa (1995). O referido autor

afirma ser esse espaço também um lugar de compartilhamento de

saberes entre os professores, de favorecimento de uma

aprendizagem coletiva e de reflexão sobre as ações e vivências nos

ambientes educativos.

A fala da professora D corrobora com a concepção de

atualização, conceituada por Prada (1997, p. 88) como uma ‚*...+

ação similar à do jornalismo; informar aos professores para manter

nas atualidades dos acontecimentos‛. J{ a fala da professora F

remete à ideia de aperfeiçoamento, a qual, segundo Prada (1997, p.

88), ‚implica tornar os professores perfeitos‛.

A formação continuada sempre traz novidades, teoria, métodos que

ajudam a facilitar nosso trabalho (PROFESSORA D).

296

[...] uma coisa sempre estudando [...] aperfeiçoando [...] e que o

professor não pode parar, ele tem sempre que estar aperfeiçoando

(PROFESSORA F).

Tais concepções são alvo de crítica, visto que reduzem a

Formação Continuada a procedimentos puramente mecanicistas;

nesse sentido, ela passa de um espaço de reflexão constante e de

formação permanente do docente à simples aquisição de novas

metodologias de ensino, as quais o professor não conhecia, daí a

crítica de Prada (1997) ao afirmar que tal compreensão assemelha-

se à concepção de educação bancária2, reduzindo-a à aplicação de

protocolos, metodologias prontas ou técnicas de transferência de

conhecimento. Tal conceito apresenta-se demasiadamente limitado

diante da potencialidade da formação continuada no subsídio à

prática docente. Ambas as concepções recebem críticas semelhantes

às da educação bancária, visto que atribuem à formação continuada

um papel meramente técnico, isolando as reflexões e a crítica desse

espaço. Nesse sentido, nota-se uma perspectiva de formação que

pouco contribui com o desenvolvimento da prática do professor e

com a promoção de melhorias no ensino, visto que assume um

papel simplesmente informativo.

A fala da professora E sinaliza um elemento distinto das

demais falas: a ideia de que a formação continuada deve acontecer

fora da escola na qual o docente leciona. Tal concepção também

parte de uma noção incipiente de formação, visto que autores como

Nóvoa (1995), afirmam que as escolas devem ser os espaços de

referência da formação; outra autora que reforça essa ideia é

Candau (1997) que apresenta como eixo de investigação a escola

enquanto espaço de aprendizagem e formação.

Com relação à formação continuada ao longo de suas carreiras,

todas as professoras entrevistadas afirmaram já ter participado

2 Entendida pelo autor na perspectiva Freireana, onde essa concepção é tida como

aquela que enxerga o professor como detentor do conhecimento e os alunos como

meros depositários dos saberes acadêmicos, num processo acrítico de ensino pela

mera transmissão dos conhecimentos (FREIRE, 2016).

297

dessas atividades formativas, as quais se distinguem entre diversas

ações posteriores à formação inicial. As professoras B e D

mencionaram a realização de curso de pós-graduação Lato Sensu

em psicopedagogia e a professora C mencionou a realização de

cursos online acerca da EI e sobre inclusão. Todas as professoras

entrevistadas mencionaram ter participado de formação

continuada por meio de ações esporádicas do Poder Público

Municipal, por exemplo, as jornadas pedagógicas que acontecem

anualmente. Nesse sentido, quaisquer atividades formativas

realizadas após a formação inicial caracterizam formação

continuada. Tal visão corrobora o que fora definido por

Nascimento (2008), segundo a qual a formação continuada abrange

qualquer atividade formativa realizada pelo professor que está no

exercício do magistério.

O roteiro de entrevista contava com uma questão sobre a

política de formação continuada no município. Nessa questão,

objetivamos saber se a formação continuada é uma política do

município ou são ações pontuais. A professora C, afirmou que a

formação continuada é uma política pública do município.

Entretanto, ao analisarmos os complementos das respostas obtidas

para essa questão, percebemos que vigora entre elas a visão de que

é uma política pública simplesmente por ser realizada sob a

organização da prefeitura municipal, no entanto essas acontecem

de forma esporádica, como ações isoladas ao longo do ano, como

percebemos na fala abaixo:

Sim, praticada sob a perspectiva clássica, caracterizada pela

realização de atividades que enfatizam o ato de ‚refazer o ciclo‛,

atualizar a formação recebida (PROFESSORA A).

As falas das professoras, como já mencionamos acima, revelam

que o que se chama de formação continuada no município de Bom

Jesus da Lapa são cursos oferecidos por empresas que ocorrem

uma vez ao ano, na condição de jornadas pedagógicas. Tais cursos

não se configuram como formação continuada, mas, simplesmente,

298

como ações de atualização, que, como vimos nas falas de Prada

(1997), são alvo de críticas.

Nas falas das professoras D e F, fica explícito que é realizado

apenas um curso curto, percebemos que a relação entre a editora e

a prefeitura se dá pelo uso dos livros didáticos comercializados por

esta empresa, que ministra os cursos no intuito de divulgar os seus

produtos. Ao arguirmos sobre a realização destes cursos de

formação, afirmaram as docentes:

É um curso organizado pela Editora Moderna com o apoio da

prefeitura (PROFESSORA D).

A prefeitura ajeita. No primeiro dia é uma palestra, fala de educação

de uma forma geral, no segundo dia, vamos para um local

apropriado para realizar as oficinas. (PROFESSORA F).

Apenas uma das professoras considerou que a formação

continuada não é uma política pública do município. Afirmou a

docente:

Acho que não porque não dá uma continuidade. A editora fica de

voltar e aí não vem, o pessoal da secretaria que complementa, que

conclui (PROFESSORA E).

A respeito dessa fala, notamos aí o aspecto da descontinuidade

da formação. Nesse sentido, reforçamos a ideia apresentada por

Candau (1997) como crítica a esse modelo formativo, no sentido de

que a formação deve ser contínua e abranger todo o cotidiano do

professor, portanto, mobiliza estruturas, saberes para promover a

aprendizagem cotidiana do docente no exercício da profissão. Não

devem ser desconsiderados os aspectos do dia a dia do professor.

A professora A afirma que as formações no município são

realizadas ‚*...+ sob a perspectiva cl{ssica, caracterizada pela

realização de atividades que enfatizam o ato de ‚refazer o ciclo‛,

atualizar a formação recebida‛.

Tal afirmação, como já vimos, é alvo de críticas, visto que

reduz a formação continuada a um papel meramente técnico ou à

299

função de um jornalista de informar, atualizar. Nesse sentido, os

cursos realizados demonstram-se insuficientes em relação à prática

das professoras no município em questão; carecem, pois, de uma

formação que se prolongue no cotidiano das docentes e que

promova reflexões e autoavaliação constante das professoras sobre

as suas práticas.

Algo que é consenso entre as docentes é que a formação

continuada nesse município acontece por meio de um curso

realizado pela editora moderna em parceria com a Secretaria

Municipal de Educação; tal curso, conforme a concepção que

defendemos neste trabalho, não se constitui como formação

continuada, visto que é apenas uma ação pontual, esporádica, que

carece de ser ampliada.

Tais discursos revelam uma lacuna a ser superada no referido

município. Percebemos com a fala das docentes que não há uma

política de formação continuada em Bom Jesus da Lapa, desse

modo, há uma irregularidade em relação às exigências legais. Ao

refletir sobre a formação de professores, Mühl (2017), ancorando-se

no pensamento de Benincá, destaca que são observados três

enfoques na formação dos professores: ‚o processo informal e

espontâneo, o processo formal e institucionalizado e a formação

como pr{xis‛ (MÜHL, 2017, p. 119). Para o autor, as duas primeiras

formas de conceber a formação, que são as mais notadas

atualmente, apresentam diversos limites, a primeira por se basear

no senso comum e na ideia de que o professor aprende

simplesmente na prática (o que caracteriza uma visão ingênua) e a

segunda, tem seus limites pois ancora-se numa visão externa e trata

a formação como mera atualização e aquisição de informações.

Nesse sentido, o autor destaca a necessidade de refletir

criticamente o senso comum pedagógico a fim de transformá-lo em

uma ‚pr{xis emancipadora‛. Longe de uma visão ingênua de que

só a prática, por si só, é formadora e/ou de que formação é

sinônimo de aquisição de conhecimentos novos, faz-se necessário,

antes de mais nada, um tratamento crítico de ambas as visões para

transformar, unir prática e teoria, na construção de uma práxis

300

pedagógica. (MÜHL, 2017, p. 120). No contexto dessas discussões,

ao analisarmos os discursos das docentes, percebemos que o curso

que é tratado como formação continuada no município em questão,

se encontra marcado pela ideia de que a formação é um espaço de

atualização, como um ‚processo formal e institucionalizado‛,

entretanto, percebemos, como assinala Mühl (2017), a necessidade

dos professores em unir teoria e prática no cotidiano das salas de

aula de EI.

Os impactos da formação continuada na prática das professoras

Com relação às contribuições da formação continuada na sua

prática docente, as professoras B e C consideram que as formações

têm grande impacto sobre a sua prática, com base nas falas que se

seguem.

Foi de grande valia. Proporcionou elementos teóricos e práticos no

âmbito legal da Educação infantil (PROFESSORA B).

A formação contribuiu de forma significativa para aprendizagens de

novos saberes e para o aprimoramento da prática pedagógica

(PROFESSORA C).

As falas transcritas acima apresentam uma contradição em

relação às demais, visto que, para as outras professoras

entrevistadas, não houve contribuições do curso de formação

realizado, em vistas da forma como esse curso é realizado, como já

foi mencionado anteriormente.

As professoras D e E consideram que as formações ajudam,

porém apresentam algumas ressalvas.

Ajuda um pouco, mas cada criança é de um jeito e, às vezes, eles

falam só de um tipo de criança, só de uma faixa etária... E a gente que

tem que fazer as adaptações (PROFESSORA D).

Ajuda, embora nem todos gostem, mas dá uma segurança, um norte.

Mas a editora fica de voltar e não vem, o pessoal da secretaria que

complementa (PROFESSORA E).

301

Analisando essas falas e as comparando com as concepções de

formação continuada que apresentamos nesta pesquisa,

percebemos que as contribuições dos cursos oferecidos pela editora

não são suficientes, nem contribuem significativamente para a

prática das professoras em Bom Jesus da Lapa, visto que esses

cursos não equivalem à realidade dessas docentes, de modo que as

próprias professoras, particularmente, precisam adaptá-los, como

afirmou a professora D.

A formação, para ser de qualidade, precisa partir do cotidiano

dos professores em questão, partir da sua realidade e extrapolar

para realidades teóricas, epistemológicas, legais e/ou para os

exemplos oriundos de outras realidades. Nesse sentido, para a

professora A:

[...] as contribuições não são significativas, são rasas, e as formações

são simplesmente momentos de reciclagem.

Ao confrontar as falas das docentes, notamos que não há um

consenso entre elas, em determinados momentos. Até na fala de

uma mesma pessoa, em dados momentos surgem contradições, nas

quais, por vezes, a entrevistada afirma, numa mesma fala, como no

caso da professora B, que as formações foram de grande valia na

sua prática, porém trouxeram poucas contribuições, visto que eram

distantes da realidade local, ou por serem ações esporádicas,

isoladas ao longo do ano. Nesse sentido, associando com as ideias

de poder discutidas por Foucault (2009), percebemos que a própria

composição dos discursos relaciona-se com as relações de poder

abrangido pela ação discursiva. As alterações no discurso,

mediante esferas de poder estabelecido, refletem os aspectos

repressivos do poder, que são, muitas vezes, observados no

contexto das relações dos profissionais com o poder público. O

receio de retaliações por parte das estruturas de poder, por vezes,

conduz os professores, condicionados como funcionários, a alterar

302

os seus discursos, distanciando-se da crítica ao Poder Público

estabelecido.

A professora F, em sua fala, revela um dado preocupante:

Como por enquanto foram essas jornadas, elas são mais para uma

socialização dos professores, porque as coisas que eles falam a gente

já faz [...] não deixa de acrescentar um pouco [...] sempre bom, mas

não é exatamente o que a gente precisa, coisas da realidade da nossa

sala de aula. Também tem uns módulos trazidos por professores,

indicados pela editora, para orientação do módulo, depois eles

prometem voltar [...] mas não voltam e os técnicos da Secretaria

Municipal de Educação vêm complementar o trabalho da editora

(PROFESSORA F).

De acordo com essa fala, percebemos a insuficiência de uma

formação que ocorre de forma isolada e distante do contexto dos

professores em questão, assim como também notamos na fala da

professora D. Ao afirmar que as jornadas funcionam como

momentos de socialização entre os professores, a docente revela

que a formação, a reflexão e os elementos necessários à prática

docente perdem espaço em vistas de uma capacitação repetitiva

(cujos elementos abordados já são conhecidos pelos professores).

Outro aspecto importante na fala transcrita acima, é o

distanciamento entre a teoria e a prática, entre o conhecimento

trazido pelos técnicos da editora e a realidade das salas de aula em

questão. Nesse contexto, mobiliza-se um saber específico, os

saberes acadêmicos trazidos pelos livros didáticos. A esse respeito,

vemos nas discussões de Antônio Nóvoa uma direção para a ação

dos formadores de professores. Para o autor, ‚*...+ o esforço de

formação passa sempre pela mobilização de vários tipos de saber:

saberes de uma prática reflexiva; saberes de uma teoria

especializada; saberes de uma milit}ncia pedagógica‛ (NÓVOA,

1995, p. 28). E complementa: ‚*...+ trata-se de um objetivo que só

adquire credibilidade se os programas de formação se

estruturarem em torno de problemas e de projetos de ação e não

em torno de conteúdos acadêmicos‛ (NÓVOA, 1995, p. 30).

303

Portanto, segundo o autor, a formação continuada só faz sentido,

só cumpre bem a sua função, quando parte das realidades dos

docentes em questão, e não simplesmente garanta a apropriação de

conceitos acadêmicos.

Nesse sentido, sobre a relação entre os cursos de formação

continuada oferecidos e os problemas vivenciados nas instituições

do município, as professoras afirmaram não haver relação. Para

algumas delas, as formações relacionam os conteúdos, porém

aspectos do cotidiano das escolas não são considerados, como

vemos nas falas das professoras A e F:

Não há relações com o nosso cotidiano (PROFESSORA A).

Os módulos (apresentados pela editora) trazem essa relação referente

aos conteúdos, mas os problemas que nós vivenciamos não são

abordados, às vezes, nas falas dos professores, uma coisa e outra

(PROFESSORA, F).

Em relação à avaliação da metodologia e das propostas de

formação, destacamos nas falas das docentes:

Pouco enriquecedoras. [...] As propostas das formações das quais

participei precisam ser ressignificadas. Abandonar o conceito de que

formações são cursos, treinamentos feitos dentro ou fora da

instituição que se trabalha (PROFESSORA A).

É preciso trabalhar mais a dinâmica de conteúdo. Se prende muito a

um único elemento. Por exemplo, a análise do livro didático. Às

vezes, o professor sai com muitas interrogações, deixa muitas lacunas

e contradições no que se refere à dinâmica das ações pedagógicas

(PROFESSORA B).

A metodologia é boa, mas nem todos conseguem alcançar o que é

proposto. Eles trazem um modelo que nem é do Brasil, têm que

alcançar uma meta, uma organização, é como se fosse uma empresa

que vem para alinhar. Como eu já disse, ajuda, tudo que a gente

aprende de novo contribui, mas eu ainda acho que deveria ser uma

proposta contínua (PROFESSORA E).

Muita coisa a gente compreende, aproveita e consegue adaptar,

outras não. Eu penso assim [...] quando é uma formação contínua que

304

ela acontece permanente, causa muito efeito positivo, mas essas que

acontecem esporadicamente não acrescentam muito (PROFESSORA

F).

As falas acima nos recordam concepções de formação

continuada que foram muito criticadas ao longo das décadas, as de

que um determinado curso ou atividade complementar num

período isolado do ano é bastante. Todas as professoras

entrevistadas demonstraram insatisfação em relação à ausência de

uma política de formação de fato contínua no município. Como

apontaram as próprias docentes, as formações que ocorrem no

município de Bom Jesus da Lapa, embora não sejam ruins, são

pouco significativas devido a alguns fatores como a

descontinuidade, a linguagem demasiadamente acadêmica, o

distanciamento com a prática das docentes e em relação à realidade

local. Portanto, ainda se fazem necessárias nesses cursos

apropriações da linguagem, prolongamento das atividades no

decorrer do ano letivo, adaptações dos conteúdos às realidades

locais, às peculiaridades da educação na região. Tais alterações nas

formações realizadas no município em questão podem

potencializar as atividades formativas e gerar reflexos positivos na

educação local. Nesse sentido, percebemos que a formação

continuada de professores da Educação Infantil em Bom Jesus da

Lapa carece de determinadas adaptações, sem as quais elas

constituem simplesmente um curso a mais no currículo das

docentes, mas que dialogam pouco com a sua prática.

A professora B, apontou que a formação continuada realizada

no referido município é meramente voltada para o livro didático,

como meio de divulgação do material da empresa. Esses cursos não

se constituem como subsídios à prática do professor, especialmente

na EI que deve trabalhar com linguagens distintas para favorecer

os aspectos afetivos, cognitivos, sociais e psicomotores das

crianças, não devendo ser meramente livresco. Fica claro em

algumas falas das docentes, que aquilo que se chama de formação

continuada no contexto em questão, é um curso ministrado por

305

uma editora que comumente vem ao município para realizar

atualizações sobre os materiais didáticos produzidos pela mesma.

Alguns aspectos mencionados pelas docentes merecem

destaque. Um deles é a concepção de formação, distante da

realidade das docentes, a qual é alvo de críticas, conforme disse

Imbernón (2010, p. 9):

[...] não podemos falar nem propor alternativas à formação

continuada sem antes analisar o contexto político-social como

elemento imprescindível na formação, já que o desenvolvimento dos

indivíduos sempre é produzido em um contexto social e histórico

determinado, que influi em sua natureza. Isso implica analisar o

conceito de profissão docente, a situação de trabalho e a carreira

docente, a situação atual das instituições educacionais (normativa,

política e estrutural, entre outras), a situação atual da educação

básica, nas etapas da educação infantil, dos ensinos fundamental e

médio, uma análise do corpo discente atual e da situação da infância

e da adolescência nas diversas etapas da escolaridade total da

população [...] Não podemos separar a formação do contexto de

trabalho, porque nos enganaríamos em nosso discurso. Ou seja, tudo

o que se explica não serve para todos nem se aplica a todos os

lugares.

Essa ideia abordada pelo autor destaca-se pela questão de que

somos indivíduos sociais, históricos, políticos. Por isso, as nossas

ações, inclusive no campo profissional, partem daquilo de que

somos constituídos enquanto concepções da nossa sociedade.

Assim, a formação não pode ser isolada desses contextos. Outro

aspecto importante é o de que nenhuma prática é universal visto

que somos diversos, distintos uns dos outros e nem todas as

práticas que servem a uns servem a todos. Assim, uma formação

que queira ser eficaz precisa necessariamente estar inserida no

contexto sociopolítico dos indivíduos formados.

A fala da professora E explicita que essa formação é

meramente técnica, excetuando-se a reflexão crítica acerca das

demandas da EI e do próprio trabalho pedagógico, de modo que os

306

cursos são como atualizações de uma empresa que, como afirmou a

professora, ‚vem para alinhar‛. Tal concepção remete |s ideias que

Prada (1997) discutiu em seu trabalho, da formação como uma

reciclagem ou como adaptação a metodologias e práticas que nem

sempre correspondem às realidades do local em questão.

Recordamos a necessidade, como afirma Mühl (2017), de

fugirmos de dois discursos muito corriqueiros no contexto da

formação de professores: o primeiro de que a prática é por si só

formadora e o segundo de que basta a teoria para formar o

professor. Ambas são limitadas. A prática sem crítica, sem reflexão,

sem teoria é mutilada e a teoria sem prática é insuficiente,

inexpressiva. Ambas precisam uma da outra, se retroalimentam.

Desse modo, é preciso unir teoria e prática nos espaços formativos

em busca de uma práxis que emancipe tanto aos professores

quanto aos alunos.

A respeito de características consideradas importantes para a

formação continuada, as docentes afirmaram:

A formação continuada deve proporcionar atualizações,

aprofundamento das temáticas educacionais e apoiar-se numa

reflexão sobre a prática educativa, promovendo um processo de

autoavaliação (PROFESSORA A).

Uma formação de longo prazo que contribua mais a fundo com os

pressupostos teóricos e legais a fim de fundamentar de forma

contextualizada as práticas educativas do professor, para, assim,

proporcionar uma educação efetiva e libertadora (PROFESSORA B).

Essas formações, primeiro, deveriam consultar a nossa realidade, até

porque a nossa realidade é diferente do Paraná, São Paulo, eles

trazem os exemplos de lá (PROFESSORA F).

Levando em conta as falas acima, percebemos que, além dos

elementos que destacamos a seguir, os discursos apresentam, em

sua grande maioria, enunciados próprios de uma concepção

generalista de formação continuada. Para estas análises destacamos

alguns aspectos mencionados pelas professoras que corroboram as

discussões sobre a formação continuada implementadas nesta

307

pesquisa. Sobre tais aspectos, destacamos a seguir três elementos

que poderiam vir a contribuir com a formação continuada de

professores em Bom Jesus da Lapa, caso fossem observados nos

cursos realizados no município.

Primeiro: A formação como processo reflexivo a partir da

prática do professor (NÓVOA, 1995; GARCIA, 1999). A esse

respeito, podemos fazer uma relação das falas das professoras a

partir do campo teórico destacado em questão. Conforme esses

autores, deve a formação levar em conta que o cotidiano das salas

de aula é desafiador para os docentes e que, a cada dia, surgem

novas demandas, as quais carecem de novos conhecimentos, por

isso refletir sobre a prática favorece uma aprendizagem baseada na

própria experiência do professor e é importante para a construção

de um saber da experiência, como apontou Tardif (2007).

Segundo: A formação deve acontecer de forma permanente

(IMBERNÓN, 2010, GARCIA, 1999; GATTI, 2008). Esta é uma outra

ideia que carece de ser urgentemente levada em conta nesse

município, visto que as professoras e a literatura apontam para o

fato de que formações esporádicas não contribuem com a

profissionalização dos docentes. Nesse sentido, retomamos as

metas 15 e 16 do atual PNE, as quais visam à formação em nível de

Pós-Graduação para 50% dos professores da educação básica e a

ampliação de cursos para os professores no exercício do magistério.

Terceiro: A formação deve partir efetivamente da realidade dos

docentes em questão (CANDAU, 1997; NÓVOA, 1995). Outro

ponto que merece destaque é o fato de que a formação do professor

não pode se dar isolada do contexto sócio-histórico-político no qual

esse se encontra. As atividades formativas devem, antes de mais

nada, partir das realidades locais, das necessidades de cada

professor, das peculiaridades de cada espaço de atuação.

308

Considerações finais

Com a necessidade de dar fechamento a esta pesquisa, embora

ainda permaneçam muitas possibilidades em aberto, e na tentativa

de compreender à questão levantada com o objetivo de analisar

discursos de professores atuantes na EI sobre as implicações da

formação continuada nas suas práticas docentes, percebemos que

as implicações das formações realizadas no município de Bom

Jesus da Lapa apresentam algumas inconsistências, de modo que

não contribuem de forma efetiva com a prática dos professores.

Embora seja notada uma iniciativa do governo municipal em

proporcionar espaços de formação para os professores da Rede

Municipal de Ensino, faz-se necessária uma adequação dessas

iniciativas às propostas das teorias e às exigências da legislação

educacional vigente.

Em relação às concepções de formação continuada das

docentes participantes da pesquisa, pudemos perceber que estas

apresentam em seus discursos alguns enunciados que são próprios

da concepção de formação continuada que apresentamos neste

trabalho, a exemplo da ideia de que a formação deve ser contínua,

crítica, reflexiva e que deve partir das realidades dos docentes,

tomando as escolas como lugares de referência.

Ao analisarmos os impactos da formação continuada sobre as

práticas das docentes entrevistadas, os discursos destas revelaram

que não há muita interferência da formação, visto que, segundo as

docentes, o município de Bom Jesus da Lapa não conta com uma

política de formação continuada de professores de acordo com as

proposições de um processo formativo contínuo. O que se

denomina de formação continuada, na verdade, é um curso

oferecido por uma editora em parceria com a prefeitura, que não

parte da realidade local, não considera as especificidades da

docência naquele município, de modo que as contribuições são

rasas.

Com base nessa constatação, afirmamos a necessidade de o

município dar maior atenção à formação dos profissionais da

309

educação. Faz-se necessário que a Secretaria Municipal de

Educação, consciente das prerrogativas legais e dos movimentos

teóricos atuais acerca da formação docente, promova momentos

formativos ao longo de todo o ano para os professores; tais

momentos não precisam ser necessariamente fora da instituição

onde o docente leciona, mas devem tomar a escola como lugar de

referência e partir sempre das realidades locais para possibilitar aos

professores momentos de reflexão sobre as suas práticas em sala de

aula.

Faz-se necessária uma maior atenção do poder público no

favorecimento de ações formativas e uma participação efetiva dos

professores e professoras na busca pela garantia do direito à

formação, que é uma exigência da LDBEN. Nesse sentido, ações

pontuais, como o fortalecimento das Atividades Complementares

(AC’s), a promoção de atividades semanais de formação nas

próprias instituições e/ou de momentos de socialização, reflexão

entre professores, são possibilidades de promoção de melhorias na

prática docente. Para tanto, faz-se necessária a ruptura com uma

concepção tecnicista, mecânica de formação, pensada como

atualização, reciclagem.

A partir da análise dos discursos implementada nesta pesquisa,

fica o desafio de transformar em práticas as disposições legais e as

discussões teóricas, no intuito de inserir as crianças no contexto de

um ensino de qualidade, para que a partir da materialização desses

discursos, haja um impacto real na formação dos docentes, nas

ações pedagógicas, nas instituições.

Referências

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Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União,

Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez. 1996.

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Educação - PNE e dá outras providências. Brasília, DF, 2014. Disponível em:

310

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Acesso em: 10 mar. 2017.

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2016.

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um problema recorrente na formação pedagógica. In: MÜHL, E. H.;

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prática no cotidiano dos educadores: relatos e reflexões de

experiências formativas. Curitiba: CRV, p. 119-132, 2017.

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modelos, dimensões e problemática. In: CANDAU, V. M. F. (Org.).

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Taubaté. Cabral Ed. Universitária, 1997.

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 8. ed.

Petrópolis: Vozes, 2007.

311

Por uma ecologia do homem:

educação, ética complexa e a harmonização das relações

no ecossistema das humanidades

Pyerre Ramos Fernandes1

A ecologia do homem

O vocábulo ecologia, cuja etimologia remete à união de dois

termos gregos (‚oikos‛ = ‚casa‛ e ‚logos‛ = ‚estudo‛), tem a sua

definição cl{ssica centrada no ‚estudo da casa‛, ou seja, o estudo

dos seres vivos em suas interações e relações com o ambiente em

que vivem, conceito esse amplamente difundido não só entre os

biólogos mas também, de modo geral, entre os leigos instruídos2.

Os estudos da Ecologia abrangem diversas instâncias de

relações, seja entre indivíduos da mesma espécie, ou dentro de

uma mesma comunidade, seja entre espécies distintas,

comunidades distintas. Essas relações abrangem também o meio

ambiente e os elementos abióticos que o compõe. Dentro dessa área

do conhecimento biológico, destacam-se uma série de conceitos,

como o de população (indivíduos de mesma espécie convivendo

num mesmo espaço-tempo), comunidade (conjunto de populações

que dividem o mesmo espaço-tempo), ecossistema (conjunto de

elementos bióticos e abióticos que interagem entre si por meio de

processos de permuta energética). Num determinado ecossistema,

os indivíduos se relacionam intra ou inter especificamente e essas

relações podem ser harmônicas ou desarmônicas.

1 O autor é Biólogo, Mestre em Ensino pela Universidade Estadual do Sudoeste da

Bahia – UESB – Vitória da Conquista. Tem interesse por estudos de filosofia,

sociologia, epistemologia. Contato: [email protected]. 2 Conceito atribuído ao médico polonês Ludwik Fleck (1896 – 1961) que, em sua

obra ‘Gênese e Desenvolvimento de um fato Científico‛ (2010), afirma que o

conhecimento circula entre coletivos distintos, um deles é o dos ‚Leigos

Instruídos‛, que não são especialistas, entretanto recebem informação sobre

determinados fatos científicos e detêm algum conhecimento a respeito deles.

312

Tomando como base esse universo conceitual, apresento, na

tessitura destas reflexões, a metáfora da Ecologia do Homem, à

qual compreendo como o estudo, a análise da forma como os

homens interagem, entre si, no ambiente, não sob o ponto de vista

biológico, mas no âmbito social. Nesse contexto, compreendo que

as humanidades, em suas diversas manifestações, convivem

constantemente, trocam energia nesse ecossistema chamado

sociedade e carecem de reflexão constante, sobretudo quando

percebemos o avanço da barbárie, da desarmonia, do desequilíbrio

ecossistêmico.

Um outro conceito importante em Ecologia e que extraí para

esta reflexão é o de diversidade. A diversidade biológica é uma

ideia fulcral nos estudos ecológicos. H{ quem diga que ‚a

diversidade enfeita o mundo‛, quem assim falou o fez sabiamente.

No campo das Ciências Naturais, chamamos de diversidade

biológica - Biodiversidade, ao conjunto heterogêneo de seres vivos

que compõem a fauna e a flora dos diversos ecossistemas existentes

no planeta; é o grau de variação, de diferenciação dos organismos

vivos. Partindo desse conceito, chamo metaforicamente, de

diversidade do ecossistema das humanidades aos multiformes

conjuntos de seres humanos que habitam todos os cantos da terra.

Somos muitos, crescemos e nos multiplicamos, colonizamos o

mundo (muitas vezes de forma irresponsável) e não podemos nos

esquecer que somos diversos. Diversidade que se encontra

impressa desde o nosso código genético e se manifesta nas nossas

características morfológicas, nos nossos comportamentos, nas

nossas formas de pensar, de agir, enfim, de ser. Evoluímos na/da

diversidade. Chegamos onde chegamos enquanto espécie devido a

ela, portanto, de modo algum podemos negá-la. Ser diverso é inato

ao ser humano.

O pensamento Moderno, baseando-se na dicotomia radical

entre natureza e cultura, promoveu na ciência e, consequentemente

na educação e na cultura, a amplificação de uma série de

rachaduras, de divisões. Esse discurso impregnou todos os

ambientes, muito embora, como afirmara o filósofo Bruno Latour,

313

essa dicotomia era muito mais retórica do que prática. Para o

filósofo, na prática, os conceitos da modernidade eram pouco

praticados, visto que os próprios modernos criaram muitos

‚híbridos‛, elementos que pertenciam tanto ao domínio da

natureza quanto ao da cultura. Outro atenuante desse conceito da

modernidade, diz respeito à própria impregnação da ciência pela

humanidade do cientista, fato que os defensores dos ideais da

modernidade insistem em negar. Vimos nas últimas décadas a

diluição de muitos aspectos desse paradigma, um exemplo claro é

utilizado pelo filósofo: basta olhar um jornal. Ali se encontra, numa

mesma coluna, uma infinidade de informações sobre os mais

variados temas, de política, a pesquisas científicas, religião, esporte,

culinária, fofoca, dentre outros tantos elementos (LATOUR, 2016).

Diante dessas controvérsias, o homem pós-moderno atravessa

uma grave crise de identidade e valores. Herança da modernidade,

essa crise encontra sua raiz no fato de que, nos tempos modernos,

tornou-se convenção e paradigma científico a mutilação do homem

e essa dissecação exacerbada, rendeu-lhe uma grave perda no

sentido de humanidade. De certo modo, ao proceder desta maneira

septada, a Ciência Moderna roubou do homem o sopro da vida, o

elemento anímico que o tornava humano de fato. Os efeitos

catastróficos dessa desumanização invadiram uma grande parcela

das instituições e dos espaços onde as pessoas convivem.

Vivemos marcados pela insegurança, pelo medo, pela

violência, pelo desrespeito, pela violação de direitos fundamentais.

Para além das patologias sociais a que somos constantemente

submetidos, vivemos numa corrida maluca que nos coloca como se

estivéssemos sob constante ameaça, sob ataques recorrentes, como

afirmara o filósofo Byung-Shul Han (2015), recorrendo à ideia de

animal laborans de Hannah Arendt, o qual ocupa-se de várias coisas

ao mesmo tempo, contudo, não pode ocupar-se de si mesmo para

não ‚ser devorado‛, para não perder espaço.

Diante dessa herança, tem o homem pós-moderno o grande

desafio de avançar enquanto ser; de romper com paradigmas

sectários, mutiladores, promotores de divisões; de reatar o cordão

314

umbilical que ligava o homem à sua fonte materna de vida, de

humanidade.

Nesse contexto, nos cabe pensar também o papel da ciência e

da educação, as quais são grandes pilares de construção da nossa

sociedade. É hora de ligar os pontos, de praticar a Complexidade3

da ciência, da educação, do ser. O homem, enquanto um ser

Complexo, é também um ser ecológico. Ser humano exige

relacionar-se com outros seres humanos e também não-humanos.

No sentido de compor aquilo que aqui denominei de Ecologia

das Humanidades¸ uma urgente tarefa dos profissionais engajados

na educação e na ciência é de romper com o abismo entre aquilo

que o físico e romancista Charles Percy Snow denominou de Duas

Culturas; religar, portanto, cultura científica e cultura humanística.

Estabelecer diálogos para que os sujeitos diversos compreendam

que todas as ciências são ao mesmo tempo naturais e humanas,

visto que, são conduzidas por homens que, por sua vez, carregam

as marcas da natureza e da sociedade, da biologia e da cultura

(SNOW, 2015).

Vivemos marcados pela desumanização desses campos. Se

quisermos ver um exemplo disso, basta olhar os artigos científicos,

dissertações e teses; mesmo os mais recentes, muitos ainda insistem

em impessoalizar a escrita, em despir-se de sujeito, embora

saibamos que o sujeito está a todo o tempo imbricado nesse

processo. Citamos pessoas em nossos escritos, sem sequer enxerga-

las como pessoas, nos esquecemos que a pesquisa é um encontro de

gente, ficamos apenas no nível do ‚Silva (2010)‛, ‚Ferreira (2009)‛,

etc. Nas referências bibliográficas, abreviamos os nomes, só o

último sobrenome aparece. Onde estão as identidades desses

sujeitos? Quem são eles? O que fazem da vida? Não importa, não

nos interessa. Nessa teia de impessoalidade, não estabelecemos

relações, nos esquecemos do que somos. Antes de quaisquer

3 Refiro-me aqui à ideia central do Pensamento Complexo de Edgar Morin, que se

alicerça na ideia de união entre polaridades outrora separadas pelo pensamento

moderno, no intuito de construir o Complexus, o tecido no qual tudo se encontra,

tudo dialoga, tudo se une.

315

títulos, somos gente. É preciso, como diria Morin, Ciurana e Motta

(2003), enxertar a ciência com humanidade, reintroduzir o sujeito

que pensa àquilo que é pensado, romper com essa lógica de

separação entre sujeito e objeto, relacionarmo-nos com nossos

pares, mesmo sem nunca os ter visto, mas, reconhecendo suas

trajetórias, suas histórias, suas pessoalidades. A ciência, por

conseguinte, a educação, não são inumanas, tampouco sobre-

humanas, é urgente humanizar esses espaços.

A ânsia por humanização me consome! Trago como marca de

vida a utopia de que os homens um dia venham a ser realmente

humanos. Tenho dedicado os meus estudos recentes, inclusive a

minha pesquisa de mestrado, a essas questões, de modo particular,

nos contextos de ensino. Como diria Edgar Morin, caminhamos

construindo uma itinerância rumo ao desenvolvimento da

hominização, contudo, muitos passos ainda nos separam desse

cenário. Temos o grande desafio de formar pessoas e não

meramente mercadorias para alimentar os postos laborais.

Em minha pesquisa de mestrado, parti da história extraída de

um conto de ficção científica4, no qual um ente não humano, um

robô, dedica a sua vida a tornar-se um homem para chamar a

atenção dos educadores ao fato de que estamos seguindo um

caminho inverso. No texto dissertativo, escrevi Um Testamento de

Andrew Martin, dialogando com professores sobre reflexões e

estratégias que devemos realizar no intuito de promover

humanização. Esse testamento traz um diálogo possível de ser feito

com quaisquer pessoas, em quaisquer espaços, visto que,

precisamos dedicar-nos à nobre tarefa de sermos humanos e

humanizadores dos ambientes onde convivemos.

Nesse contexto, precisa a educação, no âmbito social, revestir-

se de valores humanísticos para promover um diálogo que

extrapole os muros das escolas e atinja outros espaços, outros

indivíduos, outras instituições. A ‚Educação para a era planet{ria‛

(MORIN, CIURANA e MOTTA, 2003), requer de nós o

4 O Homem Bicentenário, de Isaac Asimov (1980).

316

estabelecimento de diálogos, a construção de pontes, a união em

torno de um projeto humanizado de vida em sociedade, formando

pessoas para viver e colaborar nesse sistema.

Família, sociedade e formação humana

Não podemos falar na formação dos sujeitos humanos, sem

falar do papel das famílias na construção da sociedade. As famílias,

creditadas no imaginário popular como as primeiras instituições

educadoras das crianças e jovens, não se diferem das demais

instituições humanas e também atravessa larga crise, muitas vezes,

as gerações mais velhas sequer conseguem dialogar com as mais

jovens. Nesse cenário, ganham espaço contra valores como

intolerância e desrespeito.

As famílias, não só as de hoje, são espaços de sectarismos, de

seguimento de padrões baseados nos mitos, crenças e dogmas

sobre os quais se assentam as bases das subjetividades com as

quais uma determinada família é formada.

Não é à toa que lemos diariamente nos jornais e revistas as

histórias de conflitos entre famílias de distintas comunidades e com

costumes divergentes. Esse dilema acompanha o mundo a muito

tempo. São muitas vezes cristãos x semitas x islamistas x ateus x

hindus e assim sucessivamente, numa cadeia quase que

interminável de conflitos, disputas, divergências. São vizinhos x

vizinhos; família ‚a‛ x família ‚b‛ e assim sucessivamente.

Diante desse cenário que se descortina cotidianamente aos

nossos olhos é válido questionar: com base em que as famílias

educam? No epicentro dessa questão, percebo uma problemática

cancerígena que é causadora de muitos conflitos: a educação

familiar comumente é unilateral. Tal unilateralidade tem como

consequências a radicalização de relações verticais, a

desconsideração do respeito às diversidades; a abertura de portas a

contra valores como desrespeito, intolerância, violência. Tudo isso

317

não graças a um mistério da iniquidade5 que assola os homens, mas

devido aos valores unitários formantes da psique das pessoas nos

primeiros anos de vida; ao contato com um único sistema de

crenças e verdades; ao contato excessivo com o igual, que conduz à

rejeição ao distinto.

Tudo isso, na perspectiva do filósofo Han (2015) gera uma

grande violência, a violência da positividade, que ocorre quando nós

negamos o diverso, não sabemos conviver com o distinto, que se

torna negativo, objeto de repulsa. Essa violência é mais perigosa do

que qualquer outra, visto que é silenciosa. ‚Desenvolve-se

precisamente numa sociedade permissiva e pacificada [...] Habita o

espaço livre de negatividade do igual, onde não se dá nenhuma

polarização entre inimigo e amigo, interior e exterior ou entre o

próprio e o estranho‛ (HAN, 2015, p. 19). Essa sociedade livre da

negatividade do igual é aquela na qual se aprende a conviver apenas

com o aquilo com que se tem comunhão. Nela, a apresentação do

diverso é um risco. Aprende-se a conviver bem entre iguais, mas

não se aprende a conviver com diferentes. Isso implica no risco de

um colapso social, daí a afirmativa do filósofo de que ‚a

positivação do mundo faz surgir novas formas de violência‛ (p.

19), tem sido muito comuns manifestações como racismo,

homofobia, transfobia, xenofobia, sexismo, misoginia, dentre

outras tantas formas de violência.

Diante disso, se as famílias, enquanto entidade formadoras, se

constituírem em espaços de negação do diverso, onde se aprende a

conviver somente com o igual, temos então um risco grande

instalado, que pode afetar a todo o Ecossistema das Humanidades

de forma negativa. Nesse contexto, é comum ouvirmos relatos de

conflitos entre determinadas famílias e as escolas, que são

instituições onde, de um jeito ou outro, a diversidade de apresenta

de maneira multiforme.

5 Na crença cristã, diz respeito ao mal que habita ao mundo, uma força oculta que

seduz e corrompe aos homens, impelindo-os a realizar as mais ímpias ações,

mesmo que estes já tenham sido redimidos por Deus.

318

Ao discutir tais questões, não tenho o objetivo de destruir as

distintas subjetividades, regimes de credos, crenças, dogmas e

doutrinas seguidas pelas famílias, pelo contrário, que cada um

edifique os seus costumes com base nos preceitos que acredita,

quero, entretanto, incentivar nesses espaços a prática do diálogo

entre partes diversas e do aprendizado do respeito ao diferente,

visto que, embora muitos elementos nos distingam, somos todos

um só e o mesmo gênero humano.

Abrir as portas dos lares ao diálogo respeitoso, mesmo em

situações de discordância, significa abrir as portas da sociedade

para importantes transformações no caminho da humanização. É

tarefa também das famílias, ensinarem às crianças e jovens a

importância do respeito para o bem estar social.

Escola, educação, diversidade e ética

Tendo discutido acerca de uma das grandes instituições

educadoras, a família, cabe então pensarmos a função da escola

nesse contexto. A escola, também na condição de instituição

formadora, têm um importante papel no desenvolvimento da

hominização.

Sou um professor preocupado com os rumos da humanidade,

estaríamos caminhando rumo ao abismo e à promoção da barbárie?

(MORIN, 2011a). Em sua obra Rumo ao Abismo? Ensaio sobre o

destino da humanidade Edgar Morin põe em choque algumas das

bases da civilização ocidental, confrontando os frutos do progresso

científico-tecnológico que nos puseram numa situação de

calamidade. O progresso veio acompanhado da barbárie, da

desumanização, da construção em escala progressiva de armas de

destruição em massa. Multiplicam-se os conflitos, as guerras, o

ódio, a intolerância. Diante do desenvolvimento e globalização do

mercado, estamos divididos entre ilhas de riqueza e oceanos de

misérias. Nos comunicamos cada vez mais, porém nos separamos

na mesma medida. Ao passo que nos unimos e nos solidarizamos

com catástrofes, estamos também dispostos a destruir o outro para

319

manter o status hegemônico. Tudo isso, seria então o fim do

mundo? O apocalipse que se aproxima? Ou na verdade o princípio

de uma grande metamorfose?

Nesse livro, para além da apresentação do crítico cenário que

nos cerca, o autor traz uma mensagem de esperança. Primeiro

porque não há metamorfose sem dor. É preciso adentrar o casulo,

sofrer com os processos biológicos inerentes à metamorfose para

transformar-se em borboleta. Nesse sentido, o mundo só pode ser

salvo por uma alternativa que agregue simultaneamente

conservação e transformação; transformação que começa em cada

ser humano. O caos é certo, mas a esperança no resultado dessa

metamorfose precisa prevalecer (MORIN, 2011a).

É nesse cenário caótico, que desponta uma das mais nobres

tarefas da educação em nossos tempos: a de contribuir com a

humanização do mundo. Nesse contexto, a educação desponta

como a arte ensinar os homens a serem humanos e não meramente

de ensinar os conceitos e os tratados científicos – os conceitos não

devem ser rejeitados, mas também não devem ser superestimados.

É necessário educar para o respeito ao outro na sua

singularidade e na sua diversidade, bem como para o

(re)conhecimento da diversidade que é característica inata,

inclusive genética, do ser humano, e para a garantia do direito

fundamental à liberdade.

Nesse cenário de caos, do qual as escolas não estão isentas,

percebemos muitas incongruências no processo, as quais

embargam o desenvolvimento da humanização. Muitas vezes,

percebemos os espaços escolares marcados por disputas violentas.

Nos nossos dias, percebemos, por exemplo, o acirramento de

dissensões motivadas por questões ideológicas, político-

partidárias, dentre outras. Assistimos atônitos a muitos conflitos

entre pessoas do nosso convívio. Nesse sentido, penso haver uma

impossibilidade de convivência entre as retas práticas escolares e a

doutrinação, motivada por quaisquer vieses. Escolas não são

espaços de doutrinação, mas de liberdade. Às igrejas as doutrinas,

às escolas os saberes com toda a sua diversificação!

320

Nesse sentido, um ponto a ser destacado sobre o papel da

escola diante desse cenário diz respeito a pensar a educação

enquanto espaço de transfiguração, de formação de consciência

sócio-histórica-política; as escolas enquanto espaços de formação

de pensamento crítico, de politização do pensamento, de ampliação

dos sentidos, de amplificação da consciência, da humanidade, tudo

isso, com respeito a todos em suas singularidades.

Obviamente, a construção desse cenário de transfiguração,

pressupõe uma base ética, um princípio de desenvolvimento

pautado em valores humanísticos. Pensando nisso, vale uma

menção a um grande filósofo do século XVIII, cujo pensamento não

foi bem aceito entre os seus contemporâneos e se demonstrava

demasiadamente díspar dos dogmas da comunidade na qual o

mesmo ora estava inserido. Falo do filósofo Benedictus de Spinoza,

cujas ideias causaram estranhamento na comunidade judaica da

qual o mesmo fazia parte e lhe renderam a excomunhão.

Spinoza, defende na Ética, que os homens são perfeitos na sua

natureza, porém, por não conhecerem bem a perfeição que lhes é

própria, incorrem no erro, diante disso, a empreitada do ser

humano durante a vida é justamente a de transcender de um

patamar primário do conhecimento (denominado de conhecimento

da imaginação ou da opinião pelo filósofo) para um patamar ideal,

adequado. Para Spinoza, existem três gêneros do conhecimento, o

primeiro – da imaginação – é constante causa de erros, o segundo –

o conhecimento da razão e o terceiro, o gênero ideal, denominado

de conhecimento ou ciência intuitiva. Este patamar é ideal, pois

nele, o indivíduo tem um conhecimento claro e distinto das coisas,

das suas causas e efeitos, consegue distinguir claramente o que lhe

afeta e regular os sentimentos, direcionando-os, pela razão, para a

perfeição, por ele denominada de Beatitude da mente (SPINOZA,

2016).

Nessa perspectiva, o indivíduo ético é aquele que consegue,

regular retamente os seus afetos, usufruindo das potências da sua

mente, sem negar aquilo que o afeta, porém, direcionando-os para

o que é correto e justo. Em outras palavras, é aquele que aprendeu

321

a utilizar bem do que lhe afeta e é capaz de afetar positivamente

aos que o cercam (SPINOZA, 2016).

Tomo esse princípio ético de Spinoza como um princípio

civilizatório, visto que, como disse anteriormente ao explicar a

metáfora adotada neste texto, somos ecológicos, nos relacionamos,

tanto dentro quanto fora das nossas comunidades. O ato de

relacionar-se socialmente gera uma constante rede de afetações.

Afetamos uns aos outros, somos mutuamente afetados e, em meio

a essa rede de relações, afetamos a todo o ecossistema que nos

envolve. Nesse sentido, o reto uso dos afetos por meio da razão é

necessário. Tal fato serve também para pensarmos que tais valores

são indissociáveis, estão imbricados no complexo da psique

humana. Precisam ser tratados com a devida responsabilidade.

Outro filósofo que nos apresenta pressupostos éticos para uma

civilização humanizada é Edgar Morin. Em O método 6: ética, o

autor nos convida a pensar a ética humana de duas maneiras,

primeiro, uma auto-ética, que representa um princípio de

individualização, o qual permite ao sujeito a autoanálise, o

autoconhecimento, a autocrítica, que permite ao sujeito reconhecer-

se a si mesmo, às suas singularidades, às suas qualidades e

defeitos, que implica no desafio do pensar-se bem. Essa auto-ética,

contudo, deve desencadear no sujeito uma ética para o outro, para

a convivência, a cordialidade, o respeito, a solidariedade, a

empatia, a liberdade, a tolerância, a amizade, o amor, dentre outros

valores. Todos esses princípios, desembocam então numa ética do

gênero humano, a antropo-ética que, ao reconhecer e assumir a

condição humana, deve conduzir os sujeitos a importantes

reformas, transformações, eu diria, transfigurações. Transfigurar o

mundo, a humanidade, as relações humanas em todas as esferas.

Transfigurar o pensamento, o conhecimento, a ciência, a educação.

Transfigurar a vida, metamorfosear o mundo fazendo com que

surja um ecossistema equilibrado e harmônico, nesse sentido,

transpor os abismos com esperança de um futuro melhor, de um

mundo transfigurado (MORIN, 2011b).

322

Transfigurar é necessário, para que possamos trazer para o

cotidiano de cada sujeito alguns princípios do desenvolvimento da

humanização, os quais julgo como inalienáveis. Nas palavras de

Morin, Ciurana e Motta (2003, p. 105):

[...] o desenvolvimento deveria ter como finalidades: viver com

compreensão, solidariedade e compaixão. Viver melhor, sem ser

explorado, insultado ou desprezado. Isso supõe que, no

prosseguimento da hominização, exista necessariamente uma ética do

desenvolvimento, sobretudo porque já não há uma promessa e uma

certeza absoluta de uma lei do progresso (MORIN, CIURANA e

MOTTA, 2003, p. 105).

Claro que tal visão não é ingênua. Não podemos subestimar as

dificuldades que nos cercam. Nesse sentido, o próprio Morin

(2011b) afirma que existe uma ecologia das ações segundo a qual,

nem sempre os efeitos de uma ação são os planejados pelo autor da

mesma, contudo, tais efeitos dependem ‚*...+ das condições

próprias ao meio onde se acontece‛ (p. 42), por isso, ‚*...+ ao

considerar o contexto do ato, a ecologia da ação introduz a

incerteza e a contradição na ética‛ (p. 42).

Transportando tais conceitos para a educação, devemos pensar,

antes de mais nada, em humanizar os espaços das escolas, em

harmonizar as relações que estabelecemos nas instituições

educacionais. O contexto educacional e o científico, que se

imbricam a todo instante e se retroalimentam, carecem

urgentemente de ser nutridos com os valores e princípios dessa

ética civilizatória. É preciso pensar esses espaços para além da

produção do saber, como espaços de relações humanas, nesse

sentido, como espaços de afetos. É necessário pensarmos Ciência e

Ensino como espaços de constante atividade humana e não

inumana. Cientistas e professores não são super-homens.

Nesse complexo, julguei necessário discutir a ciência, visto que

a atividade educacional é comumente tida como espaço de

reprodução dos saberes produzidos pelos cientistas, saberes estes

acostumados a separar o homem em partes cada vez menores. A

323

educação, que bebe na fonte da ciência, absorveu por séculos esse

líquido envenenado por mutilações constantes. A modernidade

continua a deixar suas marcas no tempo, mesmo em nossos dias

‚pós-modernos‛. Seguimos o itiner{rio de uma ciência separada

em áreas cada vez mais distantes, nas quais há pouco ou nenhum

diálogo. Enquanto pesquisadores, nos formamos na arte de

produzir um volume cada vez maior de informações e, enquanto

educadores, como diria Leopoldo de Meis (2002), nos

especializamos em sintetizar esse tsunami de informações para

torna-las apreensíveis aos alunos. Em meio à avalanche da

produção na qual surfamos, nos esquecemos da essência das

coisas, da nossa própria essência. Educação e Ciência tornam-se

assim, palcos de constantes contradições.

O volume anual de produções científicas nas diversas áreas do

conhecimento é assombroso. Assusta qualquer um que se depare

com os livros, artigos, ensaios, etc. A saúde desses profissionais

caminha na contramão desse processo, produzimos ao passo que

nos matamos (MEIS, 2002).

Em Narrativas de uma Ciência da Inteireza, Maria da Conceição

de Almeida (2012a), nos recorda os problemas da clássica ruptura

entre a cultura científica e a cultura humanística. Aprovamos os

estatutos de um verdadeiro culto a uma ciência neutra e objetiva,

onde o sujeito e o objeto estão definitivamente separados. A ciência

rompe com quaisquer princípios holísticos, divorcia-se das

subjetividades e se casa com a manipulação fria de objetos. Todos

esses discursos, na verdade, são mitos alimentados pela própria

comunidade científica e pelos educadores ao longo de muitos

séculos. O racionalismo científico é mitológico por um motivo

simples: a ciência é uma construção humana e as subjetividades

imprimem as suas marcas em quaisquer atividades humanas.

Todo cientista é um observador que se inquieta a partir de suas

experiências de vida, de suas subjetividades, de sua cultura e

história, dos saberes construídos ao longo de sua vida. As

subjetividades do cientista são condicionantes da atividade

cientifica. Como afirma a autora, nada sabemos senão pela nossa

324

própria experiência; a própria leitura dos fenômenos tem em si as

marcas das subjetividades do sujeito cognoscente. Nesse sentido, as

atividades científicas agregam em suas histórias, as paixões, as iras,

as revoltas, as alegrias, as conquistas, enfim, os diversos

sentimentos que marcaram o pesquisador durante o ato de

pesquisar (ALMEIDA, 2012a).

Somos razão e demência, já anunciara Edgar Morin. Somos um

misto de sensível e inteligível, de sabedoria e loucura, de

conhecimento e instinto. As paixões nos movem em quaisquer

atividades que realizamos. Navegamos no mundo sobre o barco da

nossa razão acossado pelos ventos das nossas paixões. Nesse

sentido, uma ciência pensada para uma educação condizente com

os princípios anunciados nestas reflexões, precisa religar a cultura

científica e a humanística, promovendo certo sincretismo entre

ambas. É preciso produzirmos, mas não para cumprir meros

preceitos acadêmicos, ou para ‚engordar o lattes‛, mas essa

produção precisa ser movida pelo desejo constante de, marcados

por encontros, transmitir uma mensagem ao mundo. Pesquisar é

isso, educar também.

Portanto, opondo-nos ao cientificismo, é preciso abrir mão dos

princípios da racionalidade técnica imperantes nas nossas

atividades científicas e educacionais, e promovermos uma Ciência

e Ensino (Com)paixão, que se voltem para os valores éticos de

produção de uma sociedade civilizada, humanizada. Precisamos de

uma ética da beleza e da leveza em oposição à rigidez e ao

cientificismo que separa, que pouco dialoga, que promove

rachaduras.

O mundo, transformado em palco de grandes barbáries precisa

voltar-se para o desenvolvimento pautado num princípio ético de

humanização, o qual passa por atitudes simples como a boa

convivência; os ciclos de amizade; a cordialidade; cortesia; hábitos

como saudar as pessoas com ‚bom dia‛, ‚boa tarde‛, ‚boa noite‛; o

apoio aos que sofrem, empatia. Tudo isso são decisões pessoais e

cotidianas. Ao optar pela rejeição às perversidades e às barbáries,

fazemos a nossa parte na composição desse complexo de relações

325

que é a sociedade; a escola pode e deve fazer a sua parte na

disseminação dessa cultura (MORIN, 2011b).

Ao falar da Ética Complexa como princípio de vida, Maria da

Conceição de Almeida faz uso da metáfora do abraço, utilizada por

Edgar Morin. Nessa metáfora estão contidos muitos elementos,

desde o singular (de quem abraça ou é abraçado) ao plural (aqueles

que estão entrecruzados dentro dos braços um do outro); o abraço -

tanto a ideia, como a ação - é utilizado como metáfora pela autora

para falar da Ética Complexa, enquanto estética de vida. Ora,

Almeida (2012b) afirma que a ética clássica, marcada pela

moralidade, como um parâmetro de conduta, repleta de valores

homogêneos e universais do comportamento humano, não dá

conta de um pensamento que busca integrar noções antagônicas,

bem como experimentar a polifonia das formas de ser humano que

existem e podem vir a existir. Nossa ecologia é polifônica, somos

uma multiplicidade de humanidades e a Ética Complexa visa

comportar todas estas expressões, correspondendo desse modo ao

paradigma da sociedade pós-moderna. Ora, numa sociedade que

pouco aprendeu a lidar com o múltiplo, uma ética polifônica,

tratada metaforicamente pela dinâmica do abraço, carece de ser

multiplicada, de ser praticada, não como dogma, mas, como diria

Conceição Almeida, como estética de vida. Nesse contexto, o

abraço desponta como ‚*...+ a expressão corporal do acolhimento, o

ato de envolver, a forma que permite conter, cingir e abranger,

então uma ética da complexidade se expressa por uma estética da

vida marcada pela plasticidade dos corpos e da alma‛ (ALMEIDA,

2012b, p. 237).

Dentro dessa estética de vida, cabem muitos outros elementos,

um deles me foi despertado pelo filósofo Byung-Chul Han, ao

abordar a ideia de Vida contemplativa. É urgente rompermos com o

paradigma do animal laborans, já mencionado neste texto, para

tanto, as pessoas precisam de tempo para si, tempo de qualidade,

para meditação, introspecção, para exercícios de

autoconhecimento, de autorreflexão. É necessário transformar a

preocupação em sobreviver em preocupação com o Bem Viver. A

326

qualidade de vida é um aspecto essencial e para isso, precisamos

do saudável hábito de dialogar conosco mesmos, do sono profundo

para o repouso do corpo e do tédio profundo para o repouso da

alma, do pensar. O homem hodierno é pobre de equilíbrio, para

alcança-lo, carece de reflexão, de contemplação (HAN, 2015).

Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova

barbárie. Em nenhuma época os ativos, isto é, os inquietos, valeram

tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas

quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o

elemento contemplativo (NIETZSCHE, apud HAN, 2015, p. 37).

Outro elemento a ser incentivado e bem vivido por todos é a

Espiritualidade, esta que está associada ao elemento contemplativo

e é extremamente útil como via de ascensão e alcance das beatitudes

da mente, anunciadas por Spinoza (2016). Tratamos aqui a

espiritualidade como elemento crucial nesse ecossistema. Não de

uma espiritualidade dogmática, radical ou até extremista, mas de

uma prática holística de contato com o interior e o exterior, como

uma percepção do sagrado de há em cada pessoa humana, em cada

elemento da natureza, em cada coisa viva ou não viva,

estabelecendo assim uma harmonia entre todos os componentes

desse ecossistema. Spinoza (2016), que fora um judeu professo,

pensava em Deus como esse ente vital, imanente. Nesse sentido,

rejeitando o dogma da transcendência divina, passou a enxerga-lo

sob uma ótica panteísta de modo que, de acordo com as suas

ideias, tudo é sagrado e perceber a sacralidade que há em tudo é

uma das expressões da Beatitude.

Outro elemento que nos serve nesse caminho de

transfiguração, diz respeito à contemplação do belo que se

manifesta nas diversas expressões artísticas. A arte tem o dom de

apontar caminhos mesmo quando a própria ciência falha. Ademais,

a vida sem o belo é entediante. A sutileza das cores na composição

de uma pintura; a harmonia dos acordes na polifonia de uma

orquestra; o contágio das emoções numa peça de teatro; o

327

aguçamento dos sentidos ao assistir um filme; tudo isso deve fazer

parte do cotidiano das pessoas e permear também as práticas

escolares. A nossa ecologia abrange muitos elementos, não somos

uma população unitária, tampouco uma comunidade

hermeticamente fechada, blindada e impenetrável, ao contrário,

somos um misto de cores, sons, sabores, jeitos, formas... A arte é

crucial no Pensamento Complexo, ela é indispensável, nos

possibilita vias de acesso às tão esperadas religações que

necessitamos em nossos tempos. É preciso, portanto, que tenhamos

a delicadeza de nos atentar mais a esses elementos.

Que não nos falte o amor!

É praxe deixarmos algumas palavras finais sempre que

escrevemos um texto. Pois bem, a minha palavra final é amor. O

ato de educar é, certamente, uma ação profissional, que deve ser

tratada como tal por todos, sejam professores, sociedade ou

poderes públicos, todavia, como em qualquer outra atividade

humana, é preciso que haja amor.

Morin, num de seus escritos, faz uma bela afirmação:

Onde não há amor, não há mais do que problemas de carreira, de

dinheiro para o docente, e de aborrecimento para o aluno. A missão

supõe, evidentemente, fé na cultura e fé nas possibilidades do

espírito humano. A missão é, portanto, elevada e difícil, porque

supõe, simultaneamente, arte, fé e amor (MORIN, CIURANA e

MOTTA, 2003, p. 99).

Nos é necessária a crença e a esperança de que um mundo

melhor é possível, porém, sem amor, elas se atrofiam, perdem o

sentido. Por isso, encerro este diálogo com um fragmento do

belíssimo poema de Paulo no qual o mesmo tece uma verdadeira

ode ao amor:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver

amor, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine.

328

Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os

mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de

transportar montanhas, se não tiver amor, não sou nada. Ainda que

distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que

entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de

nada valeria! (I Coríntios, 13, 1-3)

Referências

ALMEIDA, M.C. de. Narrativas de uma Ciência da Inteireza. In:

_____. Ciências da Complexidade e Educação: razão apaixonada e

politização do pensamento. Natal: EDUFRN, p. 13 – 37, 2012a.

_____. Complexidade e Ética Como Estética de Vida. In: _____.

Ciências da Complexidade e Educação: razão apaixonada e

politização do pensamento. Natal: EDUFRN, p. 13 – 37, 2012b.

ASIMOV, I. O Homem Bicentenário. São Paulo: Hemus, 1980.

FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo

Horizonte: Fabrefactum, 2010

HAN, B-S. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia

simétrica. São Paulo: ed. 34, 2016.

MEIS, L. de. Ciência, Educação e o Conflito Humano-Tecnológico.

São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2002.

MORIN, E. Rumo ao Abismo? Ensaio sobre o destino da

humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011a.

_____. O Método 6: Ética. 5 ed. Porto Alegre: Sulina, 2011b.

_____. ; CIURANA, E-R; MOTTA, R.D. Educar na Era Planetária: O

Pensamento Complexo Como Método de Aprendizagem no Erro e

na Incerteza Humana. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

SNOW, C. P. As Duas Culturas: Uma Segunda Leitura. São Paulo:

EDUSP, 2015.

SPINOZA, B. de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

329

Seção 2 - A História e seus múltiplos olhares

330

331

Quem precisa da história?

A pertinência dos estudos históricos

e de sua difusão no Brasil atual

Maria Claudia de Oliveira Martins1

A história nunca esteve tão presente, contada e recontada em

conversas amistosas ou conflituosas, nos diferentes espaços

públicos, físicos e virtuais. No Brasil atual, em muitos momentos,

assuntos como a ditadura militar ou a escravização negra

estiveram na ordem do dia. De outra feita, o ofício do historiador

jamais esteve em tal grau desprestigiado, questionado em seus

propósitos e práticas, além da própria produção historiográfica

colocada sob suspeição. Afinal, quem precisa do conhecimento

histórico produzido pelos esforços das pesquisas, quando basta

uma opinião pessoal ou ainda, um projeto individual ou coletivo a

atender, para que releituras de fatos e processos históricos,

descompromissadas com a verdade, sejam gestadas? Hoje, há uma

multiplicidade de pessoas produzindo vídeos e outros materiais no

qual se relatam versões muito peculiares, particulares (para dizer o

mínimo), da história nacional e mundial.

Certamente se pode contra-argumentar que a verdade não tem

um proprietário e que, por isso, não é possível a nenhuma área do

conhecimento reivindicá-la, bem como definir o que é verdadeiro,

diante do fato de que podem haver ‚muitas verdades‛ sobre um

mesmo fato. Realmente, a verdade é algo complexo e a ninguém é

dado o poder de ser o seu único guardião, sabendo-se que ela é

multifacetada e não absoluta; portanto, impossível de se tornar

exclusiva. O que não significa que inexistam ‚critérios de verdade‛,

condições que devem ser atendidas para que algo adquira caráter

verdadeiro. Reis (2000 p.328), pautando-se na noção de ‚verdade‛

apresentada por Kant, afirma que

1 Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo/RS.E-mail:

[email protected]

332

[...]só é "verdadeiro" o que pode ser formulado em linguagem

humana, verificável por uma experiência criticada e controlável.

"Verdade" refere-se ao conhecimento humano possível e controlável,

lógico, racional, coerente, comunicável. A noção de "verdade" refere-

se a um conhecimento humano, seguro e "dizível". A razão deve

estabelecer seus limites para conhecer e, enquanto pura razão,

renunciar ao inefável saber absoluto".

Também se sabe ser saudável ao conhecimento que

sobrevenham diferentes olhares e contribuições, enriquecendo e

(re)atualizando de forma pertinente o saber. Porém o que preocupa

e faz acionar o sinal de alarme é justamente o desinteresse,

desconfiança e até a negação de estudos históricos pautados pelo

rigor científico e pelo comprometimento ético, enquanto são

difundidas informações questionáveis. A quem interessa estimular

este estado de coisas?

De acordo com Mario Marcelo Neto (2017 p.168),

a historiografia deve se preocupar hoje principalmente com questões

éticas. As tecnologias nos permitiram ter acesso a fontes

inimagináveis, das formas mais diversas possíveis. Levantamento e

organização de dados é, de longe, um papel muito reduzido do que o

historiador pode exercer. Exaltar a potencialidade das discussões

teóricas sobre a compreensão de dada realidade, e a discussão sobre

formas éticas e morais de falar do passado é algo que tem de ser

enfrentado.

O alerta acima citado, coloca como desafio maior ao

historiador os cuidados com a ética nestes tempos de amplo acesso

e difusão de informações, dado que a chamada sociedade da

informação, da mesma maneira que facilita a consulta ao que já e

produziu e está em produção, por outro lado esconde junto a si,

concomitantemente, muita desinformação. Os pesquisadores

Vladimir Brito e Marta Pinheiro informam que a desinformação

333

tanto pode estar ligada a ausência de informação, manipulação ou

engano proposital (BRITO E PINHEIRO, 2015 p.5).

O que não exclui nossa responsabilidade de autoavaliação

como historiadores cujo tarefa abrange a pesquisa, produção e

propagação ou compartilhamento do conhecimento histórico. Uma

vez que muitas pessoas diariamente tomam contato com

(des)informações, o que faz com que não procurem pelas mesmas

nas produções historiográficas? E nesse caso, também questionar: -

Em que momento (não no sentido temporal, mas no sentido causal)

nos apartamos da sociedade em geral com quem deveríamos

interagir e contribuir para, segundo Marc Bloch (2001, p.45), ‚*...+

desabrochar o homo sapiens‛, ou seja, possibilitar o ‚encontro‛

entre o homem e o saber em nossa área de atuação?

Tal é o problema que conduziu à produção deste artigo, cuja

proposta é analisar a situação acima relatada a partir do meio

acadêmico, sem descurar da imprescindível autocrítica ao modo

como é produzido e difundido o conhecimento histórico, com

vistas à compreensão de como chegou-se ao cenário atual.

A história para além da Academia

Durval Muniz de Albuquerque, em artigo recente, evoca de

forma pertinente o escritor angolano José Eduardo Agualusa e seu

livro O vendedor de passados, ao afirmar que a história, tão temida

em seu potencial uso político por parte dos historiadores, tem sido

utilizada por grupos e pessoas como instrumento de poder e para a

sua manutenção, com reinvenções de um passado que as fortaleça,

perpetue e legitime (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017 p. 165). Ao

fazê-lo, toca em um ponto nevrálgico da questão: a força da história

em despertar a criticidade e revelar a historicidade de fatos e

processos faz com que muitos intentem controlá-la, urdindo

versões adequadas aos seus objetivos, mas descomprometidas com

os princípios básicos para que o conhecimento produzido se

distancie dos achismos ou se eleve do senso comum.

334

De forma surpreendentemente atual, Bloch (2001, p.101)

aborda o mesmo tema, asseverando:

Há, enfim, uma forma mais insidiosa do embuste. Em lugar da

contraverdade brutal (plena e, se me permitem, franca) há a soturna

manipulação: interpolações em documentos autênticos; na narração,

acréscimos sobre um fundo toscamente verídico, detalhes inventados.

Interpola-se, geralmente, por interesse. Acrescenta-se, com frequência

para enfeitar.

Como se vê, o historiador francês não doura a pílula e sua

escrita, embora originalmente produzida no entreguerras, pode ser

considerada em consonância com o tempo presente. É espantosa a

frequência com que se tem hoje, relativizações e distorções quanto

a fatos históricos do Brasil e do mundo.

A escravização de africanos e seu compulsório transporte para

a América no período moderno é um dos temas em voga e que

cabe ser aqui mencionado, mesmo que de forma resumida, a título

de exemplificação. A escravidão, ao ser recontada de forma

generalizante e simplista, é subtraída em suas características

racialistas e mercantis. Naturalizada e equiparada anacronicamente

a toda e qualquer prática escravista ocorrida ao longo da trajetória

humana, recebeu versões que distorcem um dos processos

históricos mais marcantes para a humanidade. Mesmo a

equiparação com a escravização praticada por povos africanos

dentro de seu continente, desde séculos antes da chegada dos

europeus, sinaliza uma tentativa de minimizar e invisibilizar este

processo de violenta dominação e mercantilização de pessoas

oriundas da África.

Sobre as relações passado/presente, Hobsbawn (1998, p. 36)

afirmava que,

A postura que adotamos com respeito ao passado, presente e futuro

não são apenas questões de interesse vital para todos: são

indispensáveis. É inevitável que nos situemos no continuum de nossa

própria existência, da família e do grupo a que pertencemos. É

335

inevitável fazer comparações entre o passado e o presente [...]. Não

podemos deixar de aprender com isso, pois é o que a experiência

significa.

As palavras de Hobsbawn reforçam o quanto o conhecimento

pode ser ‚perigoso‛, particularmente para aqueles que não se

afeiçoam ao esclarecimento das massas. Destarte, não é difícil

concluir o que ganham aqueles que o detém o poder ou almejam

alcançá-lo, com o apagamento do passado ou ao desabonarem

pesquisas. Na medida em que se esforçam por esvaziar e

desacreditar estudos históricos, mais facilmente podem manipular

o povo. Em caso de temas específicos como a escravidão

supracitada, se descomprometem em discutir a construção e o

aprofundamento de desigualdades no país, bem como os modos de

superá-las. Tomam também por desnecessários os atos de

esclarecimento e combate aos preconceitos, entre outras reflexões

que poderiam por em marcha a exigência de ações

transformadoras.

Por sua vez, a distorção dos acontecimentos e dos processos

históricos fornecem a condição para que se difunda a versão mais

‚confort{vel‛, aquela que mais calhe | manutenção de redes de

poder e são aceitas e alimentadas pelas crenças, medos,

preconceitos e ideologias daqueles que com elas tomam contato.

Ademais, obscurecer o passado contribui para o não

questionamento ao presente, favorável a quem não deseja ser

interpelado. Marc Bloch (2001, p.63) é incisivo ao afirmar que ‚*...+

a ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão

do presente; compromete, no presente, a própria ação‛. Isso

porque, face o desconhecimento, muitos indivíduos há que se

deixam simplesmente guiar ou, ainda, se apassivam e desperdiçam

oportunidades preciosas de serem sujeitos atuantes na construção

de seus destinos (individualmente e/ou de forma coletiva). Por sua

vez, entre aqueles que têm o ensejo de agir, conhecer é a base

fundamental para marcar posições e até mesmo para se indignar;

daí a importância de resistir à intencional obnubilação do passado.

336

Obviamente, também não se está a afirmar que as cooperações

à produção e difusão de conteúdo histórico por parte de não-

historiadores devam ser necessariamente desprezadas. Ao

contrário, a colaboração mútua para a resolução de problemas

complexos pela via da interdisciplinaridade, é sempre bem vinda.

A contribuição dos pesquisadores de diferentes áreas pode agregar

muito, desde que pautada em critérios que lhe confiram

credibilidade.

O que sucede em anos recentes é o crescimento de vozes que,

sem o poder outorgado pelo estudo e pelo conhecimento, alheia

aos critérios de verdade anteriormente mencionados, externam em

diferentes mídias suas revisões pouco confiáveis de fatos e

processos, que carecem de análises mais acuradas quanto à sua

receptividade. Porém, mesmo sem nos fixarmos especificamente

neste aspecto, mas considerando brevemente a questão, há que se

deduzir que, uma vez que os revisionismos supracitados

encontram acolhida em um número expressivo de pessoas que os

reverberam, entende-se que devem fazer sentido para

determinados grupos ou setores da população e possivelmente

coadunam com ideias e posicionamentos dos indivíduos,

aproximados por valores, identidades e discursos compartilhados.

Diante disso, para Souza (2008,p.184), é oportuno ‚penetrar nas

formas de comportamentos humanos, nos quais a vontade é ativa,

para averiguar por que os seres humanos, que são o objeto dos

nossos estudos, resolveram agir como tal‛. Tarefa

reconhecidamente mais difícil, tanto quanto mais no presente

estejam os comportamentos que observe. Essa a grande dificuldade

dos estudos do tempo atual, o não-distanciamento. Não os

impedem de ocorrer, por certo, mas requerem cuidados

redobrados dos pesquisadores.

De outra parte, mais do que olhar criticamente para o outro, é

pertinente fazer a autocrítica da produção e disseminação do

conhecimento a partir do meio acadêmico, perguntando a nós

mesmos: - Que ‚ruídos‛ inibem ou impedem nossa comunicação

direta com a população em geral? De que forma a ‚história dos

337

historiadores‛ pode (re)assumir seu papel, dado que em outros

momentos já teve maior relevância (como no séculos XIX e XX)?

Que transformações ou correções de rumos são desejáveis e

necessárias? Indubitavelmente não dispomos de respostas prontas

para serem aplicadas, tal e qual uma receita de bolo. No entanto,

apresentamos na sequência as ponderações de alguns estudiosos

que refletiram sobre essas questões, apresentando nossas alocuções

alinhadas com seus apontamentos.

Ruídos na comunicação

Conforme Fanaia (2008, p.15-16), do historiador se espera

‚rigor do trabalho, a acuidade investigativa, o cotejamento

escrupuloso das informações e o tratamento exaustivo das fontes,

perpassados por um elemento ainda mais difícil: uma narrativa ao

menos palatável e convincente‛. Este último item talvez seja o que

tem se mostrado mais difícil de ser colocado em prática, algo que

ainda soa como meta a atingir. Isso porque as produções

acadêmicas, em geral, parecem produzidas tão somente para o

diálogo entre pares, revelando-se pouco inteligíveis e instigantes ao

leitor externo à Academia.

As próprias normas que regem a produção historiográfica,

vinculadas às exigências formais para a confecção de trabalhos

acadêmicos, a fim de que sejam aceitos em seu meio, comumente

têm como efeito colateral, limitar o autor a seu ambiente (no

sentido de espaço de produção e reprodução), afastando o leitor

comum. A estes últimos, a escrita elaborada na Academia soa-lhes

maçante, complicada, por vezes beirando as raias do

incompreensível. Desse modo, não é de surpreender que as versões

simplificadas (e simplificadoras), ou seja, aquelas que não se atém

ao aprofundamento de discussões e que apresentem linguagem

envolvente sejam as que recebem acolhimento maior. Sem falar,

também, das revisões historiográficas que enveredam pelo

caminho do escândalo, dos fatos picantes ou inusitados, porque

estas atraem ainda mais a atenção de milhares de pessoas.

338

De acordo com Giovani Levi (2014, p.8)

[...] há uma deseducação do público a respeito do conhecimento

histórico. O conhecimento histórico tem entrado no sentido comum

não como complexidade, mas como simplificação. Nisso (nesse

contexto), podemos introduzir todas as formas de escândalo. [...]

Devemos ter em conta que trabalhamos em uma época em que o

papel do historiador ficou muito reduzido. Há um público com um

senso de história muito diferente do que existia há 30, 40, 50 anos.

Diante de tempos novos, nos quais a informação é produzida e

circula por diferentes e renovados modos/veículos de difusão, urge

repensar no meio acadêmico o nosso fazer. Logicamente, não para

que façamos a adesão ao que reprovamos, mas em nome da

recuperação da relevância do conhecimento pautado no

compromisso com princípios éticos e com a verdade.

Analisando os desafios para a escrita da história no século XXI,

José D’Assunção Barros sugere alguns pontos sobre os quais a

mesma deva se pautar. Assim, destaca a importância da busca por

novas interdisciplinaridades, da variação de suportes e uma maior

abrangência (autoral, de temas e de público), bem como recomenda

o foco na responsabilidade social, criatividade ao escrever e no

incitamento à criticidade (BARROS, 2018 p.2). A proposta básica

daquele pesquisador envolve, basicamente, atualizar a

historiografia. Em certa medida, aos historiadores, que se

reinventem como produtores e difusores do conhecimento

histórico. Sugestões oportunas, que podem ajudar a diminuir o

distanciamento com a sociedade.

Para as análises que almejamos desenvolver a seguir, os três

últimos itens são especialmente relevantes. Começando pelo

incentivo à criticidade, ferramenta útil para vencer as tentativas de

manipulação e para que os sujeitos adquiram consciência de si e de

suas potencialidades, superando o apassivamento.

A criticidade está diretamente ligada à responsabilidade social,

proposta por Barros como missão persistente, árdua, na qual a

história nunca perca o seu sentido de resistência, duramente

339

conquistado, após se desvincular do papel de legitimadora do

poder e dos poderosos, ao qual os historiadores foram chamados

(por séculos!!) a desempenhar. Que não se deixe calar ou inibir,

mesmo em períodos difíceis à prática historiográfica. Segundo

aquele autor, que em nome desta mesma responsabilidade, não se

perca de vista a importância de evidenciar o que chama de

‚história de todos os lados‛ (2018, p.8). Ou seja, que não se relegue

novamente ao esquecimento ou ao ostracismo determinadas

pessoas, grupos e fatos. Trata-se, sobremaneira, de não abrir mão

em prover recursos para a formação do pensamento histórico,

oferecendo à sociedade o contato com múltiplas concepções e

abordagens.

No que tange à criatividade no fazer historiográfico, é

necessário assinalar que todo esforço criativo, em nome de sua

originalidade, não pode estar submetido a pressões; eis aí uma

dificuldade em tempos de prazos exíguos e exigências de

produção. Barros, no entanto, não adentra tal discussão e sugere o

emprego da criatividade por parte do historiador sob a forma de

agregação da arte à escrita, de modo a tornar as narrativas mais

fluidas e agradáveis, em um cuidadoso processo de artesanato que

aproxime a obra e o leitor (BARROS, 2018 p.10).

Aborda-se, neste ponto, o velho dilema quanto a quem ‚fala‛ o

historiador, ou seja, a que público. A si mesmo? Aos demais

pesquisadores de sua área de estudos e conhecimento? Levando-se

em conta a função social da história, no sentido de auxiliar para

que a sociedade melhor se compreenda e ao mundo em que

vivemos, bem como que as experiências passadas possam oferecer

aprendizado, então a escrita do historiador, que é a sua ‚fala‛,

precisa se fazer compreensível, adequada ao leitor (sem prescindir

das informações fundamentais), de tal forma que este não se

desmotive de conhecê-la. E é neste sentido que José D’Assunção

Barros (2018, p.11) entende que ainda temos muito a melhorar,

porque nossas narrativas não somente carecem de variações de

estilo, como devem romper as amarras da linearidade. Em suas

palavras,

340

[...]é possível dizer que a escrita dos historiadores tem apresentado

soluções relativamente modestas para o tratamento do tempo

narrativo: de modo geral, tem-se um tempo tratado linear e

progressivamente, com um encaminhamento facilmente previsível e

incapaz de surpreender o leitor.

Ainda com relação ao aspecto da produção e difusão

historiográfica, é possível pensar que aos historiadores, cujo

trabalho é tão intimamente ligado ao tempo, seria aconselhável

voltar-se mais à concepção grega Kairós, de tempo oportuno,

qualitativo, conforme definido em Quirim (2015, p.69).

Também na mitologia, o próprio modo como Kairós, irmão

mais novo de Khronos, é descrito fisicamente, pode ser aplicado a

argumentação ora desenvolvida: sua figura é a de um homem com

um grande topete à frente da cabeça, mas que é desprovido de

cabelos na parte de trás; que tem asas nos pés e que, portanto, se

não for pego no momento exato de sua passagem, não mais o será.

A descrição do personagem mitológico, aqui tem por

finalidade concluir coerentemente a reflexão iniciada: diante dos

questionamentos quanto ao papel da história, do historiador e da

historiografia nos tempos atuais, urge ser constantemente

reavaliado o nosso fazer e a relação com a sociedade, diante da

função social que no destinamos a cumprir. Cabe que nos

atualizemos e façamos a adequação ou adaptação do que

produzimos, não só às linguagens, como aos meios de circulação

de saberes da atualidade. E, ainda que nosso tempo seja o do

ontem, hoje e amanhã, saber que há momentos que, se passarem,

levam consigo significativas oportunidades é fundamental para

pensarmos em bem aproveitá-lo. Assim é em relação ao que

avaliamos que se pode mudar, na historiografia, no sentido do que

se pode melhorar, a fim de que sua disseminação mantenha e

receba acréscimos de qualidade, com maior alcance. Esse momento

é o agora, é hoje.

341

Considerações finais

Os estudos em história dialogam constantemente com o

passado e o presente e deles se utilizam para projetar o futuro.

Conforme foi dito anteriormente, há uma relação direta com o

tempo, e são muitas de nossas inquietações do presente que nos

levam a viajar pelos documentos, por diferentes temporalidades,

pelo que já foi e é escrito por outros pesquisadores, em busca de

respostas. Respostas que não contém toda a verdade, nem

espelham fielmente o que passou, mas que fornecem elementos

confiáveis, embasados em fontes analisadas com muito cuidado e

rigor e que têm contribuído para que o homem conheça melhor a si

mesmo, ao passado e aprenda com as experiências anteriores.

Contudo, parece crescer de forma progressiva o

distanciamento entre as pessoas em geral e a produção acadêmica.

No espaço que surge entre um e outro, diferentes vozes se têm

levantado e essas vozes, muitas vezes, prestam desserviços ao

conhecimento histórico, o que nos conduziu à proposta para este

artigo: analisar a construção e difusão dos conhecimentos históricos

na atualidade e o papel do historiador no cenário brasileiro atual.

Certamente muitas discussões ficaram por fazer e as

argumentações possíveis não se esgotam entre aquelas

apresentadas aqui. Servem, nada obstante, para provocar reflexões

e convidar a que outras produções possam adir mais materiais

sobre estes assuntos, principalmente neste momento brasileiro em

que a ‚história dos historiadores‛ é questionada e, por vezes, até

colocada sob suspeição. É exatamente em momentos como esse que

temos que nos fazer presentes, patenteando resistência.

Evidentemente, não na forma de enfrentamento, mas de

reafirmação da seriedade de nossas pesquisas em história e da

ratificação de sua função social.

342

Referências

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que a profissão de historiador não é regulamentada? História

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SOUZA, M.C.R. de. A função social do historiador existe? Revista

Opsis v.8 n, 11. UFG- Universidade Federal de Goiás, 2008.

343

A prática da libertação no Oeste catarinense:

educação, formação religiosa e movimentos socais

Ivan Luís Schwengber1

Leonel Piovezana2

Introdução

O presente texto é uma investigação de alguns movimentos de

educação religiosa e popular que ocorreram no extremo oeste

catarinense nas últimas três décadas na região de Chapecó, em

especial aos processos formativos que forma protagonizados pela

Diocese de Chapecó, durante o bispado de Dom José Gomes. Esta

investigação pretende investigar o impacto na formação do ethos –

no modo de ser do povo desta região e alguns reflexos para a

atualidade.

O Brasil tem vivido nessa segunda década do século XXI o

advento de movimentos multifacetados na sociedade brasileira que

após um período de ausência da renovação das lideranças, tem

presenciado o surgimento de jovens lideranças, ao nosso ver,

alguns destes movimentos muito comprometidos com ideais

antidemocráticos e opressores, o que descaracterizam lutas

históricas dos movimentos populares que estavam vinculados a

resistência e a luta pela justiça social. Quanto aos movimentos de

2013, Scherer-Warren (2014) demonstra as contradições internas

dos movimentos, e a subjetivação das pautas, principalmente no

que tange a busca da conquista do direito de certas minorias, tem-

se circunscrito sobre si mesmo: ‚Cada agrupamento, dentro de sua

autonomia no evento, apresentava sua demanda ou protesto por

1 Mestre em Educação pela UNOCHAPECO, proferssor da rede pública estadual

de Santa Catarina, grupo de pesquisa Educação Ambiental Freireana Escolar.

[email protected] 2 Doutor em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul -

UNISC, Brasil (2010). Professor Titular do Mestrado em Educação da

Universidade Comunitária da Região de Chapecó. leonel@unochapecó.edu.br

344

meio de cartazes, representações estéticas ou palavras de ordem‛

(SCHERER-WARREN, 2014, p. 420). A heterogeneidade e a

fragilidade política geraram manifestações, dentre elas a mais

contraditória que contra o direito de manifestar. Grupos foram

para as ruas, caracterizando-se como apolíticos ou neutros

supostamente, numa cruzada contra a corrupção política, acabaram

rechaçando os valores democráticos e os direitos humanos

fundamentais.

Nossa análise desse cenário parte de um pressuposto de que

toda a educação libertadora no aspecto coletivo deve levar ao

processo de democratização da sociedade: ‚A democracia que,

antes de ser forma política, é forma de vida, se caracteriza,

sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no

comportamento do homem‛ (FREIRE, 1967, p. 81). A democracia

enquanto regime político, sustenta-se na participação do povo,

enquanto sujeitos conscientes e integrados e transformadores de

sua realidade. Para Freire no livro: Educação como Prática de

Liberdade (1967) a educação dialógica é práxis privilegiada para a

libertação.

Na região do extremo Oeste catarinense, que circunscreve a

diocese de Chapecó, no último quarto do centenário passado,

houve o surgimento de um grande número de lideranças ligadas

aos movimentos sociais, que lutaram por justiça. Um território,

marcado por uma história de opressão desde a Guerra do

Contestado (1912-1916) e dos processos fundiários provocados

pelas colonizadoras a mando dos coronéis, que disputavam o

direito no e do território caboclos, indígena e de pequenos

proprietários rurais. Para (AURAS, 1997), a partir de 1968, teve no

bispado de Dom José Gomes a consolidação de princípios

libertadores que contribuíram decisivamente para a formação de

lideranças, que a princípio eram religiosas, mas que participam

ativamente da sociedade, resultando em processos decisivos na

caracterização regional, político, econômico, ambiental e social.

Cabe observar que recorte espacial ‚na Diocese de Chapeco‛ e

recorte temporal ‚a partir do bispado de Dom José Gomes‛ é uma

345

opção metodológica para situar o objeto de pesquisa. A opção

ideológica pela ‚educação popular e católica‛, não reduz |

circunscrição de uma educação confessional e nem tem com único

protagonista um sujeito histórico, a pessoa de Dom José Gomes,

mas uma história e uma sociedade feita pelo povo. Assim, tanto o

movimento popular deve resultar numa formação de uma

sociedade democrática, com participação popular, independente

do credo religioso, e portanto, como intercultural; como por outro

lado a centralidade da figura histórica de Dom José Gomes, que co-

protagonizou, sabendo compreender a história e modo de ser do

povo da região, capturando e impulsionando este processo de

educação popular.

O horizonte histórico e epistemológico, mas não determinista, é

que este movimento está inserido dentro dos movimentos

emancipatórios que ocorreram na América Latina, como a Filosofia

da Libertação, Teologia da Libertação e Pedagogia da Libertação.

Para nosso estudo faremos uma opção discursiva e epistémica de

investigar a partir de Paulo Freire.

As estas opções metodológicas cabem uma observação

pertinente a fim de evitar uma redução: a opção metodológica pela

Educação Libertadora, é partir do pressuposto de que a educação

libertadora é conscientizadora e defensora de uma sociedade

democrática, e quando estes dois princípios não são garantidos, ela

se torna transformadora da realidade, e em casos de opressão, ela

se torna uma forma de resistência. Esta observação é decisiva para

não incorrermos num reducionismo ideológico e metodológico,

que impede de compreender a inediticidade do presente recorte de

investigação.

A formação libertadora foi uma condição de educação popular

que contribuiu decisivamente transformação da comunidade em

questão. Problematizamos o movimento formativo desse povo no

contexto regional a partir de suas conquistas. Com embasamentos

na pedagogia da libertação de Paulo Freire (ano), retratada nas

346

práticas do Círculo de Cultura3, que de certa retratam a prática

educativa, uma revolução copernicana na pedagogia nas palavras

de Dussel: ‚Se trata de una revolución copernicana pedagógica que

esta lejos de haber sido comprendida‛ (DUSSEL, 1998, p. 431). Uma

revolução pedagógica que permite libertar os oprimidos, em suma

o povo excluído, que Dom José Gomes se referia.

O projeto de libertação

A hipótese que levantamos aqui é que o projeto formativo da

diocese de Chapecó inseria-se no movimento latino-americano de

libertação, que tem na educação a principal referência a obra de

Paulo Freire. Partiremos da investigação de duas categorias

fundamentais a conscientização e a democratização:

Em primeiro lugar, contradiziam a vocação natural da pessoa — a de

ser sujeito e não objeto, e o assistencialismo faz de quem recebe a

assistência um objeto passivo, sem possibilidade de participar do

processo de sua própria recuperação. Em segundo lugar,

contradiziam o processo de ‚democratização fundamental‛ em que

estávamos situados. (FREIRE, 1967, p. 56).

O núcleo do argumento são as duas condições necessárias para

a libertação, descritas por Freire: por um lado, o desenvolvimento

de sua vocação natural de ser sujeito; por outro lado, o

desenvolvimento da democratização fundamental. No primeiro

caso, a libertação ocorre através da consciência crítica, que é a

abertura dialógica do homem com a sua realidade. No segundo

caso, a libertação ocorre na sociedade democrática, que naquele

momento histórico da sociedade brasileira. Na ‚sociedade em

tr}nsito‛ (FREIRE, 1959, 1967), est{ situada entre a ‚sociedade

fechada‛ e a ‚sociedade aberta‛, a sociedade em tr}nsito é uma

3 A obra de Paulo Freire especialmente os ‚Círculo de Cultura‛ e o projeto

emancipador foi objeto de pesquisa de mestrado A Ecopedagogia enquanto Educação

Ambiental como Prática da Liberdade (2018).

347

sociedade em processo de abertura, de democratização onde o

povo ainda é massificado, não participa de forma consciente de seu

mundo. (SCHWENGBER, 2018, p.43).

A educação emancipadora pretende revitalizar a humanização,

que, de alguma forma, encontra-se comprometida na história em

que o ser humano participa, uma transformação para o ser mais

(FREIRE, 2016a). Tal educação como projeto de libertação é uma

emancipação do sujeito através da educação e na integração e

participação do mundo em que está inserido. (FREIRE, 1967). A

desumanização é produzida intencionalmente pelos seres

humanos. A educação tem a função de autolibertação, de ajudar o

estudante a ajudar-se: O respeito à autonomia e à dignidade de

cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou

não conceder uns aos outros‛. (FREIRE, 2002, p. 66).

O projeto libertador, dos quais a pedagogia é uma extensão

insere-se no contexto da América Latina, acreditam no

conhecimento enquanto uma conscientização: ‚Freire, Fiori e

Dussel descobrem que o conhecimento é possível e que ele é um

dos elementos mediadores do processo de transformação social

[....] o simples conhecimento não basta para a mudança social.‛

(DAMKE, 1995, p. 69). Ao tratar da democratização fundamental

(FREIRE, 1967) da sociedade como um conjunto de lutas, em todos

os níveis, chamadas na época de Reformas de Base: Freire insere

seu projeto de alfabetização e conscientização neste contexto: ‚A

sua grande contribuição, porém, não está só na crítica ao sistema

educacional, mas também a formulação pedagógica para ajudar a

sociedade a tornar-se democr{tica‛ (DAMKE, 1995, p. 28). A

educação, ao tratar de consciência e superação do analfabetismo,

está contribuindo para a democratização da sociedade brasileira.

Na educação com a cultura, o conceito antropológico de

cultura (FREIRE, 1967), seja ela oficial na representação do Estado,

seja na disputa por espaços sociais, é política e, portanto,

ideologicamente, não é neutra. A escola, as formações possuem um

projeto pedagógico também é político, firmando o compromisso da

escola com a sociedade, com a democracia, com qualidade de

348

conhecimentos que permitam a participação dos alunos na

sociedade. O projeto de libertação está para Freire alicerçado ao

conceito antropológico de cultura, o homem um ser inacabado é

capaz de tomar consciência e se libertar.

A condição formativa é a conscientização crítica diretamente

arrimada com a racionalidade: ‚A consciência crítica é o nível mais

elevado. Nele os fatos são aprendidos e explicados por suas

relações causais, pelas determinações e pelos condicionamentos. A

unidade constante entre reflexão e ação é própria deste est{gio‛.

(DAMKE, 1995, p. 56). A necessidade de se comprometer com a

libertação enquanto projeto social faz com que se aproxime da

dialética, da práxis que se compromete com a transformação social.

Uma libertação histórica e social. ‚Entra, aí, a teoria do

conhecimento como condição necessária, embora não suficiente,

para compreender e para tentar mudar intencionalmente a

realidade‛. (DAMKE, 1995, p. 70). O comprometimento de uma

educação com a transformação social supera a noção de

conhecimento escolar isolado e fragmentado. Uma educação

comprometida com a libertação, que não se esgota no

conhecimento enquanto pura teoria, mas no caráter operativo, de

práxis integrada e liberadora.

Uma educação enquanto instrumento de libertação, não

enquanto instrumentos de interesse de outros, mas um

instrumento que o próprio estudante tem para se auto libertar.

Estas práticas emancipadoras ocorrem no reconhecimento dos

sujeitos envolvidos, do diálogo entre educadores e educando, em

uma sociedade esta é uma condição fundamental para uma

pedagogia humanizadora. (GOELZER, OLIVEIRA e SANTOS,

2015, p. 54). A experiência formativa libertadora de Paulo Freire

são os Círculos de Cultura, que tem no diálogo com o povo

oprimido seu instrumento de libertação. (SCHWENGBER, 2018).

Os ‚Círculos de Cultura‛ que foi desenvolvido por Paulo

Freire em experiências educativas, especialmente a de Angicos:

‚Quem, de qualquer ponto do país ou do exterior, chegasse a Natal

em 1963, certamente seria contaminado pelo clima de participação

349

e entusiasmo que domina o estado, e contagiava o Nordeste e

outras unidades do Brasil‛ (FERNANDES e TERRA, 1994, p.16).

Esta experiência foram sintetizadso por Paulo Freire no seu livro

Educação como Prática da Liberdade 1967). A experiência de Angícos,

depois foi reduzido did{ticamente ao chamado ‚método Paulo

Freire‛, que o proprio Freire em uma entrevista nega ter sido autor

de um método, mas de um espistemologia (PELANDRÉ, 2002).

Para nosto objetivo proposto parar a educação popular religiosa

desenvolvida na igreja, basta a noçao de formação enquanto

conscientização e participação (que está no base de uma sociedade

democrática).

A formação popular religiosa libertadora

Até o início da década de 1980 a Diocese de Chapecó (extremo

oeste catarinense) é predominantemente rural, chegando ao final

dessa década com uma população dividida entre campo e cidade.

(SABRAE/SC, 2013, p. 15). Dom José Gomes chega na diocese de

Chapecó em 1968 (permanecendo até 1999), sob a esteira do

Concílio Vaticano II (1962-1965), a igreja faz a opção pelos pobres,

imprimindo inúmeras alterações litúrgicas. O objeto deste estudo é

sua concepção de formação pastoral e os efeitos na formação dos

sujeitos. Havia uma preocupação de qualificar a participação do

povo a partir da formação. Um exemplo desta preocupação é em

1972, Dom José Gomes, juntamente com Plínio Arlindo de Nês,

participa e lidera o movimento que resulta no surgimento da –

Fundação de Ensino e Desenvolvimento do Oeste (FUNDESTE),

que resultou na Universidade Comunitária da Região de Chapecó

(UNOCHAPECÓ), a partir de 2001. ‚A fundação da FUNDESTE

esteve ligada à política de interiorização do ensino Superior em

Santa Catarina e, principalmente, à organização de um amplo

movimento na região Oeste, reivindicando a instalação de uma

instituição de ensino superior (UCZAI, BRUGNERA e MARCON,

2002, p.137-138).

350

A educação emancipadora envolvia algumas técnicas de

conscientização e participação. As técnicas de formação para

emancipação tinham no diálogo – escuta e fala – sobre problemas

cotidianos da comunidade/círculos sua forma de engajar nos

problemas para além de si mesmo.A formação do e com o povo

ocorre por diferentes momentos, formação oferecida na Diocese

(exemplo Cursos Bíblicos, coordenadores da catequese, juventude)

como as desenvolvidas nas comunidades através das pastorais e

grupos de reflexões. O modelo era muito similar aos do Círculo de

Cultura desenvolvidos por Freire. Na Educação como Prática de

Liberdade (1967), em seu Anexo, Freire desenvolve uma metodologia

de conscientização através da noção de Cultura Popular: em uma

nota de rodapé afirma o que vai se tornar emblemático na Pedagogia

do Oprimido (1969): “Ninguém ignora tudo. Ninguém tudo sabe”

(FREIRE, 1967, p.104). Esta inversão radical, que permite

compreender que existe cultura nos excluído e oprimidos. Uma

educação que se pretende libertadora precisa partir da

conscientização com o mundo e com a cultura dos oprimidos, dar

voz ao oprimido, um aprener a dizer a sua palavras.

A formação ocorria em três frentes, a formação pastoral,

grupos de reflexão e teologia para leigos (UCZAI, BRUGNERA e

MARCON, 2002). O diálogo entre e com o povo simples liberta, é o

processo de integração que eram formados nas comunidades, que

se utilizavam de material produzido pela diocese: ‚Os encontros

eram realizados pelos próprios leigos, incentivando o

protagonismo dos leigos para que fossem sujeitos do processo

formativo. A discussão em cada encontro era orientada pelos

subsídios que a Diocese produzia‛ (BRESOLIN, 2017, p. 42).

Partindo das angústias e dos problemas de cada grupo para

desenvolver a conscientização e a participação. A pesquisa

qualitativa (BAUER e GASKELL, 2002, p.65), com perguntas

semiestruturadas com pessoas que tinham participaram da

formação e exerceram algum tipo de liderança formativa.

Quanto à formação pastoral, a catequese ocupava lugar central.

A pastoral centrada na catequese, foi um processo essencialmente

351

formativo pedagógico, pois assume o compromisso as crianças e

jovens, mais propensos as mudanças da sociedade. ‚A formação

catequética tinha uma nova concepção didática, centrada em

pequenos grupos, acompanhando as etapas da vida das crianças e

dos adolescentes: pré-eucaristia, eucaristia e perseverança‛

(UCZAI, BRUGNERA e MARCON, 2002, p. 142). Que depois

resutam em Grupos de ovens e outros movimento da sociedade

religioas e civil. A diocese se unifica numa diâmicas de formação

dos Coordenadores de Catequese constiuidos por leigos. Toda

formação, partia dos anseios do próprio povo, a partir da

organização de pequenos grupos que problematizavam sua

realidade. Deste processo formativo resulta uma formação mais

participativa e especialmente a inclusão das mulheres. A forma de

organização das atividades ‚sempre que era possível a gente

sentava em círculo’ relata Regina Schwengber, coordenadora

paroquial da catequese, ao falar a semiótica de organização, muito

semelhante à situação 10 do Círculo de Cultura retratado por Paulo

Freire (FREIRE, 1967, p. 143), que servia como orientação para o

diálogo.

Os grupos de reflexões, constituíam as Comunidades Eclesiais

de Base (CEBs) tinham na base problematizar o meio em que vive,

com situações concretas da vida e ações para solucionar, as sempre

com a participação de todos.

Para concretizar os princípios dos Grupos de Reflexões era preciso

romper com a metodologia bancária, centrada exclusivamente na

hierarquia. Por isso, os grupos utilizavam o método do VER-

JULGAR-AGIR, consagrado no documento conclusivo da

Conferência Episcopal de Medelím (UCZAI; BRUGNERA;

MARCON, 2002, 150).

O espírito libertador perpassa decisivamente as reflexões, para

emancipação dos oprimidos. Benildo Kappes, morador de Mondaí,

fruto deste processo formativo atuante na pastoral da juventude e

pastoral da terra, depois exerceu cargo de líder sindical, descreve

assim seu percurso formativo:

352

Tudo começou com a pastoral da juventude, grupos de jovens a nível

de comunidade, região, paróquia, microrregião de paróquias e

diocese Sempre participando de linha de frente dos grupos de

formação, ou seja, participava da organização. O que me influenciou

e sempre me motivava era o padre Belmiro Rauber e depois fui

entrando em outros movimentos sociais, como atingidos por

barragens e movimento sindical. Sempre tinha encontros para

Formação de lideranças a nível município, paróquia, região e diocese.

(ENTREVISTA KAPPES, 2018).

A metodologia do material mesclava orações, cantos e

diálogos, vejamos algumas práticas. Num livro usado na época

‚Grupos de Cristão de Bases‛ (1981), percebe-se o fundamento

antropológico muito sólido, próximo ao ‚conceito Antropológico

de Cultura‛ de Paulo Freire. Em que a igreja parte nos problemas

existências do povo, aproximando a Igreja da religião popular. Um

canto que foi emblemático que retrata o espírito formativo da

época: ‚Todo esse povo se libertar{. Pois Jesus Cristo é Senhor do

Mundo. Nossa esperança realizará. Jesus manda libertar o povo. E

ser cristão é ser libertador. Nascemos livres para crescer na vida.

Não para ser pobres e nem viver na dor‛ (CAPUCHINHOS, 1981,

p. 85). Era comum nestes momentos de reflexão trazer além dos

problemas expostos, traziam-se algum alimento ou material de

partilha.

Resultados da formação religiosa libertadora

O resultado deste processo formativo da igreja resultou em

muitos movimentos sociais. Vejamos:

Em 1978 a Peste Suína Africana ameaçava dizimar a criação de

animas na região. A Diocese de Chapeco e Comissão da Pastoral da

Terra, organizaram um ato no Estádio Índio Condá, com cerca d

e20 mil pessoas no dia 15 de outubro 1980. (FIORENTIN e ORO,

2002).

353

Quanto ao apoio ao agricultores, destaca-se que o sindicalismo

foi pautado nos gurpos de formação, principalente questionando a

função do sindicato, o que de certa forma provocou uma a

renovação das lideranças sindicais em meaos dos anos oitenta. O

que causou a Diocese, e principalmente a Dom José Gomes alguns

embaraços, sendo que num entrevista foi enf{tico ‚A Igreja não

precisa da bênção dos líderes sindicais para orientar os cristãos

quanto assuntos como terra, sindicalismo, coperativismo,

participação política‛ (citado por FIORENTIN e ORO, 2002, p.194)

Neste período da Diocese de Chapecó, se envolve com a

questão da Terra através do CPT (Comissão Pastoral da Terra),

mantendo relações com o MST (Movimento dos Sem Terra). A

primeira foi a fazenda ocupada pelo movimento foi a Burro Branco

em Campo Êre em junho de 1980, em que o apoio da Diocese foi

decisivo para o não despejo4. Esta autonomia do povo em seu

movimento, foi enfatizada quando após 1985 duas mil e quinhentas

pessoas forma envolvidas e o governo do estado ofereceu um avião

para negociar com o Bispo e este afirmo que ‚O MST tem sua

coordenação. Portanto, é com eles que vocês devem negociar o

conflito‛. (FIORENTIN e ORO, 2002. P.213).

O relato de uma ligação telefônica feita por Dom José Gomes

em 25 de maios de 1985, após a ocupação em Abelardo Luz

demostram seus princípios libertadores, pois apesar de considerar

apressada a ocupação, declara apoio a luta pelos direitos:

Eu não queria que os Sem Terra ocupassem agora, porque sofre

muitas pressões. Eles não me obedeceram, não pediram sua benção.

Pensando bem, fizeram a coisa certa. É um movimento que pretende

ser autônomo, as decisões políticas tem que ser deles. O método

usado de ocupação é novo, mas é dele. Defendemos o direito que o

povo tem de lutar pela terra‛ (FIORENTIN e ORO, 2002, p.209).

4 ‚Assim, como afirma o Jornal *o Estado 07/10/1980+, ‘graças | intervenção da

Comissão pastoral da Terra e o bispo de Chapecó a ação de despejo não foi

executa‛ (FIORENTIN e ORO, 2002, p.206),

354

Nas pesquisas e estudos que realizamos com as lideranças

emergiram do processo formativo, enquadram-se em formações

que passavam pela compreensão dos problemas fundamentais do

seu tempo: ‚De uma educação que levasse o homem a uma nova

postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço‛

(FREIRE, 1967, p.96). Esta postura diante de situações opressoras,

leveram a diocese e Dom José Gomes, a e extender o diálogo e a

consicentização com grupos não ligados diretamente a religião,

mas às relações políticas de setores excluídos da sociedade, que se

tranformaram nos movimentos socias.

Na relação com o Estado de Direito, a justiça aos que não tem o

estatuto de cidadão plenamente garantidos, aos excluídos, a forma

de inclusão, de justiça social requer romper a barreira da exclusão,

e para isto precisa ampliar o conceito de cidadania e de justiça aos

que antes eram negados. A libertação para quem é oprimido e

excluído necessita romper com a situação estabelecida.

A conscientização, passa pela formação individual de cada

sujeito, que adquire o conhecimento como uma ferramenta de

emancipação e integridade frente aos problemas cotidianos de sua

existência. A participação democrática no meio, do e com o povo,

produzindo cultura a partir de sua realidade, tornando uma práxis

de transformação da realidade em que está inserido. A libertação é

essencialmente a libertação coletiva, se for individual é uma forma

de opressão.

A formação religiosa, se não for hermeticamente fechada em

princípios fundamentalistas, promovem a emancipação e

humanização na sociedade laica. A igreja que participa de seu

povo, de processo de emancipação, que seja, em pequenos grupos

de pastoral, promove os valores cristãos.

Todos ressaltam a importância e se vêm sujeitos históricos,

graças aos processos de formação. Muitas conquistas foram feitas,

ressaltando o papel das mulheres na Instituição Igreja, vanguardas

dos movimentos feministas, na educação, na saúde com as

medicinas alternativas e processo inclusivos no sentido amplo. A

355

indagação do texto é se dentro de uma sociedade em que a

comunidade, a igreja e os movimentos sociais perderam seus

valores, em que a falta de tempo, o excesso de opinião, o trabalho e

as redes sociais ressaltam o individualismo e capitalismo, é se a

formação religiosa ainda tem poder de libertação? Esta dúvida não

somente incorre na formação religiosa, ela se estende a formação

formal, em que as humanidades estão sofrendo perdendo espaço, e

vertiginosamente estamos tratando da formação como preparação

para o mercado de trabalho.

A história recente do país tem mostrado que os valores da

sociedade democrática, dos direitos humanos, que pareciam ter

sido aceitos no Ethos brasileiro, tem e estão em risco, estão

cambaleando frente a movimentos fundamentalista, nos diversos,

incluindo igreja, escolas, direitos de gênero, de inclusão...

Considerações finais

A aproximação entre a teologia da libertação e a pedagogia da

libertação no caso específico da Diocese de Chapecó, no bispado de

Dom José Gomes nos permitiu ver as vantagens quando a religião

se compreende como formadora e educadora. Investir da formação

popular, através dos grupos de reflexão, catequese e estudos

bíblicos, aproxima e engaja os fins escatológicos a vida concreta, a

historicidade do povo.

A teologia da libertação que faz sua opção pelo e com o povo

excluído parte partir do sofrimento, de suas lutas e buscas. Um

Deus que adquire face, adquire história de pessoas que estão a

margem da sociedade, a margem de um estado de direito, e que

precisa necessariamente questionar a estrutura existente. Neste

sentido Freire já alertava que é uma educação radical, perigosa e

ameaçadora, assim, o caso da Diocese de Chapecó, tanto como em

outros casos em que faz a opção concreta pelos excluídos, torna-se

uma igreja transformadora.

A transformação tem como pressuposto a conscientização. Os

grupos de formação religiosa deste período eram dialógicas, em

356

que o povo se inseriu nos problemas em que estavam imersos, no

processo freiriano da tomada de consciência à conscientização ou

consciência crítica. Este é o pressuposto básico da libertação, o

sujeito querer se libertar de sua situação. Uma consciência que

nunca é individual, mas sempre é um processo coletivo e em

movimento. Uma consciência que precisa constantemente se inserir

em novos problemas sociais e históricos, mas sempre numa

dialética coletiva.

A segunda momento, que não ocorre descolado do primeiro, é

a ação que envolve esta consciência crítica, uma consciência que se

materializa através da práxis. Uma ação coletiva e transformadora

da realidade. Quando se trata de se inserir numa realidade, esta

inserção ela se da através da participação democrática, porém

quando estes direitos são negados, quando as pessoas são

excluídas ou oprimidas, esta participação é sempre reativa, sempre

transformadora da realidade. Esta transformação é uma dialética,

que muitas vezes pode resultar num conflito, numa opção radical

como afirmava Freire.

Concluímos neste pequeno ensaio os valores humanos não

estão dados, precisam constantemente serem exercitados e

oxigenados pelos diversos setores da sociedade, sempre aberto a

renovação e a atenção aos anseios do povo. Ouvir, lutar com o

povo permite promover uma sociedade mais justa, ouvir quem está

do lado de fora, o outro, o oprimido, este talvez seja o maior legado

da obra de Paulo Freire e de Dom José Gomes.

Referências

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Gomes: mestre e aprendiz do povo. Chapecó: Argos, 2002. p. 125-

167.

359

Impasses na colonização de Porto Novo/SC:

intrigas, rivalidades e processos judiciais

Maikel Gustavo Schneider1

Introdução

O projeto de colonização Porto Novo, fundado em 1926, na

região extremo-oeste do Estado de Santa Catarina, foi planejado,

organizado e promovido pela Volksverein für die Deutschen

Katholiken in Rio Grande do Sul - Sociedade União Popular para

Alemães Católicos no Rio Grande do Sul2, associação fundada em

1912 pelos padres Jesuítas.

Quando da idealização do projeto de colonização, almejou-se

comercializar os lotes aos alemães católicos residentes no Rio

Grande do Sul, vez que o escritório central da Volksverein estava

situado em Porto Alegre e sua atuação estava voltada para aquele

estado.

Desse modo, a colônia Porto Novo demonstrou um início

surpreendente. Já nos primeiros anos de fundação, recebeu

inúmeros imigrantes, oriundos, em sua maioria, das colônias

velhas do Rio Grande do Sul, que já não ofereciam mais lotes

disponíveis para aquisição.

Contudo, conforme veremos neste estudo, nem só de progresso

viveu o projeto Porto Novo, vez que também enfrentou

acontecimentos peculiares, envolvendo intrigas, rivalidades,

contrapropaganda e, inclusive, processos judiciais, a partir de 1931,

1 Advogado (OAB-SC 46.551) e Historiador. Graduado em Direito, pela

Universidade do Oeste de Santa Catarina, campus de São Miguel do Oeste/SC.

Mestre em História, pela Universidade de Passo Fundo. Pesquisador do Grupo de

Pesquisa do CNPq "Núcleo de Estudos de História da Imigração". E-mail:

[email protected]. 2 Os nomes Sociedade União Popular para Alemães Católicos no Rio Grande do

Sul, Sociedade União Popular ou Volksverein poderão ser empregados em

diferentes momentos e situações históricas desta escrita, sem prejuízo ao contexto

ao qual se referem

360

o que acabou influenciando na diminuição dos lotes

comercializados.

Colônia Porto Novo: o sonho jesuítico cristão

‚Porto Novo ser{ o ponto de partida para a colonização das grandes

florestas do noroeste. Ali, onde os grandes países da América Latina

se encontram, ali está a terra para o século XX. A partir daí o

desenvolvimento se dar{ por si.‛3

É possível afirmar que o projeto da colônia Porto Novo surgiu

como uma possibilidade concreta nos dias 3 e 4 de janeiro de 1926,

quando uma comissão da Volksverein4, acompanhada de dirigentes

da empresa Chapecó-Pepery Ltda.5, realizou a primeira inspeção na

{rea de terras localizada no extremo-oeste do Estado de Santa

Catarina, na divisa com o Estado do Rio Grande do Sul e com a

Argentina, para instalação de uma colonização da associação.

Posteriormente, em um novo encontro, no dia 25 de janeiro de

1926, após horas de reunião, concretizou-se oficialmente a compra

e venda dos 100 lotes iniciais, de aproximadamente 25 hectares

cada, somando 2.500 hectares, para a instalação da colônia Porto

Novo, vez que ‚as terras são excelentes, cobertas com mata virgem,

tem abundantes aguadas, o clima é benéfico e salubre, terreno

3 Profecia de Pe. João Evangelista Rick, SJ. (ROHDE, 2012, p. 37). 4 A Sociedade União Popular para Alemães Católicos do Rio Grande do Sul,

conhecida pelos colonos como Volksverein, nasceu em 1912, quando da realização

do IX Congresso Geral dos Alemães Católicos do Rio Grande do Sul, em Venâncio

Aires. Naquela oportunidade, estabeleceu-se como principal objetivo da

Volksverein ‚a defesa dos interesses dos alemães católicos‛, com especial atuação

na abertura de novas áreas de colonização. 5 Rosane Marcia Neumann trata com propriedade acerca da Empresa Chapecó-

Pepery Ltda e seu administrador Hermann Faulhaber no artigo ‚Colonizadora

Meyer e Empresa Chapecó-Pepery: interfaces‛, publicado na obra organizada por João

Carlos Tedesco e Rosane Marcia Neumann, ‚Colonos, Colônia e Colonizadoras:

aspectos da territorialização agr{ria no Sul do Brasil‛, volume III, Porto Alegre:

Letra&Vida, 2013.

361

ondulado e tem exuberante vegetação6‛ (RAMBO, 2011, p. 260).

Figura 1 - Mapa de Santa Catarina.

Em destaque localização dos atuais municípios de Itapiranga, São João do Oeste e

Tunápolis – região que a partir de 1926 recebeu o projeto de colonização Porto

Novo. Fonte: http://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2009/12/mapa-sc-

municipios.jpg. Acesso em: 20 out 2018.

No interstício de janeiro a junho daquele ano, foram realizadas

mais três reuniões no intuito de detalharem o negócio e assinarem

os respectivos contratos, reuniões essas onde a Volksverein

aproveitou para adquirir mais lotes, vez que a Central das Caixas

Rurais, respons{vel por financiar o sonho jesuítico, liberou novos

recursos financeiros para o empreendimento.

A primeira celebração religiosa que marcou oficialmente o

estabelecimento da nova colônia aconteceu em 11 de abril de 1926.

Nesta oportunidade, foram levados para Porto Novo os primeiros

comprados e outros interessados em adquirirem lotes, além dos

religiosos e diretores da Volksverein. Na obra ‚Reminiscências‛, de

Pe. Max Von Lassberg, ele apresenta um relato acerca desse

momento que marcou a fundação de Porto Novo:

*...+ chegamos em Porto Novo apenas no s{bado. Não havia nem casa,

6 Trecho da ata da reunião de 25 de janeiro de 1926, onde concretizou-se a compra

dos cem lotes iniciais da empresa Chapecó-Pepery Ltda, localizados no Extremo-

Oeste de Santa Catarina.

362

nem cabana e nem barraca, mas um bonito pomar de laranjeiras. Nele

acampamos, mais de trinta pessoas, e ascendemos v{rios fogos. Perto

da noite, começamos a armar entre duas {rvores o altar para a missa

da manhã seguinte. Como pano de fundo estendemos entre as

{rvores uma capa limpa e nela fixamos um crucifixo. Armamos a

mesa com varas e folhas e a ornamentamos com flores e palmas do

mato. Fixamos as velas em duas estacas fincadas no chão. Depois de

cuidar das coisas de Deus, cuidamos de nós. Tínhamos o suficiente

para comer e cada qual armou a sua cama onde e como mais lhe

agradou. Dormimos bem. O misterioso rumor do grande rio

misturou-se com os nossos sonhos. Pelas 8 horas começamos a Santa

Missa. Os homens rodearam o altar numa atitude solene e piedosa.

Naquela magnífica catedral de Deus, imploraram a bênção do alto

sobre a nova colônia. Alguns comungaram durante a missa.

Cantaram em comum, rezaram em comum e em comum ouviram a

minha pregação. Até o prato dos óbolos *coleta+ circulou para assim

demonstrar a participação no verdadeiro sacrifício. Fora combinado

que aquela Santa Missa seria para os fundadores da colônia presentes

e o que sobrasse destinar-se-ia para missa pelo bom êxito e o

progresso do empreendimento. E o saldo foi consider{vel. E assim

aconteceu a primeira missa na nova colônia e ao mesmo tempo a data

da sua fundação. De comum acordo escolhemos São Pedro Canísio

como patrono. Est{vamos em 11 de abril de 1926, primeiro domingo

depois da p{scoa (LASSBERG, 2002, p. 124-125).

Pelos dados da época, bem como a partir da narrativa acima,

na instalação da colônia Porto Novo estiveram presentes

aproximadamente 30 pessoas, o que indica que o restante dos 100

compradores de lotes investiram seu capital no empreendimento,

recebendo um lote como garantia. Possivelmente, parte dos

mesmos se instalaram posteriormente na colônia, mas não todos.

Muito embora o grupo inicial tenha sido composto por

aproximadamente 30 pessoas, os primeiros compradores de terras

de Porto Novo somaram 113 adquirentes, originários dos

municípios de Cruz Alta, Encantado, Erechim, Estrela, Lajeado,

Montenegro, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, Santo Antônio

da Patrulha, Santa Cruz, São Leopoldo, São Luiz, São Sebastião do

363

Caí, Soledade, Taquari, Taquara e Venâncio Aires. A revista Sankt

Paulusblatt, n. 6, de 1926, registrou os nomes, os locais de origem e

os municípios de procedência desses compradores. Vejamos:

Tabela 1 – Primeiros compradores de terra de Porto Novo em 1926 NOME LOCAL DE ORIGEM MUNICÍPIO

Albin Binsfeld General Osório Cruz Alta

Josef Binsfeld General Osório Cruz Alta

Mathias Binsfeld General Osório Cruz Alta

Benjamin Delavy Nova Brescia Encantado

Johann Flach Nova Brescia Encantado

Alban Schoffen Nova Brescia Encantado

Bernhard Welchen Nova Brescia Encantado

Nikolaus Both Três Arroios Erechim

Nikolaus Hentz Barro Erechim

Josef Klein Três Arroios Erechim

Albert Neff Estrela Estrela

Dr. Ulrich Neff Corvo Estrela

Karl Rohde Corvo Estrela

Rober Timm Estrela Lajeado

Arthur Albrecht Sampaio Lajeado

Senhor Behl Sampaio Lajeado

Nikolaus Beuren Conventos Lajeado

Reinhold Follmann Arroio do Meio Lajeado

Josef Friedrich Forqueta Lajeado

Philipp Friedrich Forqueta Lajeado

Jophann Kappes Canudos Lajeado

Antônio Lima Arroio do Meio Lajeado

Adolf Paiter Sampaio Lajeado

Wihelm Richter Sampaio Lajeado

Heinrich Rockenbach Conventos Lajeado

Johann Rockenbach Conventos Lajeado

Friedrich Röglin Forqueta Lajeado

Bernhard Schönhals Conventos Lajeado

Karl Watzlawoski Sampaio Lajeado

Jakob Weizenmann Lajeado Lajeado

Alfred Wolf Forqueta Lajeado

Johannes Hofer Bom Princípio Montenegro

Josef Steigleder Porto Clemente Montenegro

Franz Veit Bom Princípio Montenegro

364

Peter Veit Bom Princípio Montenegro

Georg Fischer Xingu Palmeira

Anton Johann Xingu Palmeira

Galdin Renner Neu Württemberg Palmeira

Johann Schäfer Neu Württemberg Palmeira

Johann Vogt Água Azul Palmeira

Nikolaus Dresch Colônia Weidlich Passo Fundo

Emil Gehlen Cochinho Passo Fundo

Josef Hammes Colônia Selbach Passo Fundo

Peter Hilgert Colônia Selbach Passo Fundo

Franz Junges Colônia Selbach Passo Fundo

Manoel Klauck Colônia Selbach Passo Fundo

Nikolau Löff Cochinho Passo Fundo

Ferdinand Gerisa Passo Fundo

Edmund Schädler Não-Me-Toque Passo Fundo

Berthold Bergütz Cochinho Passo Fundo

Leopoldo Wolfart Colônia Selbach Passo Fundo

August Wüst Não-Me-Toque Passo Fundo

Peter Agner Campinas Santo Ângelo

Karl Angst Boa Vista Santo Ângelo

Heinrich Fritsch Buricá Santo Ângelo

Heinrich Hammes Boa Vista Santo Ângelo

Karl Kliemann Boa Vista Santo Ângelo

Albin Löblein Passo da Pedra Santo Ângelo

Jakob Sausen Boa Vista Santo Ângelo

Jacob Becker Rolante Santo Antônio da Patrulha

Mathias Deufest Santa Cruz Santa Cruz

Robert Eich Santa Cruz Santa Cruz

Peter Finkler Santa Cruz Santa Cruz

Jakob Franz Sinimbu Santa Cruz

Josef Hackenhar Serro Alegre Santa Cruz

Edmundo Kunzler Santa Cruz Santa Cruz

Karl Ludwig Chaves Santa Cruz

Erich Ludwig Chaves Santa Cruz

Fridolin Ohland Santa Cruz Santa Cruz

Serafin Rech Trombudo Santa Cruz

Franz Braun Dois Irmãos São Leopoldo

Ludwig Koch Novo Hamburgo São Leopoldo

Wilhelm Koch Novo Hamburgo São Leopoldo

Johann Finger Serro Azul São Luiz

Josef Franzen Serro Azul São Luiz

365

Karl Gemwey Serro Azul São Luiz

Anton Kieling Serro Azul São Luiz

Friedrich Knapp Serro Azul São Luiz

Nikolaus Knob Serro Azul São Luiz

Josef Tem Caten Serro Azul São Luiz

Peter Temoller Serro Azul São Luiz

Jakob Theobald Serro Azul São Luiz

Theodor Anschau Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Peter Heck Feliz São Sebastião do Caí

Ferdinand Petry Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Peter Phillipsens Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Albin Ruschel Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Alfred Stahl Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Edwin Stahl Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Franz Stahl Nova Petrópolis São Sebastião do Caí

Wilhelm Hochscheid Sobradinho Soledade

Arnhold Konzen Sobradinho Soledade

Aldred Caye Bom Retiro Taquari

Wunibald Scheeren Bom Retiro Taquari

Josef Schöler Quilombo Taquara

Otto Schöler Quilombo Taquara

Wilibald Schöler Quilombo Taquara

Arthur Ansen Brasil Venâncio Aires

Leopold Hackenhar Santa Emília Venâncio Aires

Nikolaus Hackenhar Grão Pará Venâncio Aires

Wilhelm Hackenhar Santa Emília Venâncio Aires

Josef Hackenhar I Santa Emília Venâncio Aires

Josef Hackenhar II Travessa Venâncio Aires

Willibald Hickmann Santa Emília Venâncio Aires

Herrmann Kiest Linha Serra Venâncio Aires

Josef Reis Santa Emília Venâncio Aires

Emil Royer Mariante Venâncio Aires

Jakob Schwendler Harmonia da Costa Venâncio Aires

Josef Schwendler Harmonia da Costa Venâncio Aires

Anton Seidel Brasil Venâncio Aires

Robert Seidel Isabela Venâncio Aires

Christian Stülp Grão Pará Venâncio Aires

Fonte: SANKT PAULUSBLATT, n. 6, 1926. Memorial Jesuíta da Unisinos.

Da análise desses 113 compradores de terras, é possível

constatar a predominância dos nomes e sobrenomes de origem

366

alemã. Entretanto, os sobrenomes indicam possíveis compradores

de origem holandesa, austríaca, polonesa, teuto-russa, luso-

brasileira e francesa, o que fragiliza o argumento da

homogeneidade étnica alemã utilizado pela historiografia

dominante. Ademais, a tabela revela que os primeiros compradores

de terras eram originários de colônias particulares, que

caracterizavam-se pela miscigenação étnica e religiosa nos

assentamentos existentes no estado Rio-grandense.

A maioria dos compradores são origin{rios das ‚velhas‛ e

‚novas‛ colônias existentes no Rio Grande do Sul que j{ não

ofereciam mais terras suficientes para os filhos também

estabelecerem-se naquele local. Porém, da lista acima, verifica-se

que 41 são de colônias particulares novas, situadas na região do

Planalto do estado do Rio Grande do Sul. Além disso, ao que tudo

indica, há um significativo número de compradores com

sobrenomes holandeses – Caten e Hackenhar – originários de um

pequeno grupo que se estabeleceu em Santa Cruz, no local

emancipado de Venâncio Aires.

Por oportuno, é corriqueiro na tabela acima encontrarmos

ainda sobrenomes iguais que são oriundos do mesmo local,

podendo-se cogitar a existência de irmãos e irmãs que migraram

juntos para Porto Novo, a fim de iniciarem uma nova vida no

estado Catarinense.

Os primeiros meses representaram os mais complicados da

colonização. Os Jesuítas, convictos de que estavam no caminho

certo, não cessavam de comprar lotes da empresa Chapecó-Pepery

Ltda. Ao final de todas as compras de terras da empresa Chapecó-

Pepery Ltda., chegou-se ao total de 583.975.705,40 metros

quadrados de área (o equivalente a 58.397 hectares), que foram

divididos em aproximadamente 2.340 lotes de terra.

Conforme é possível verificarmos, as compras de lotes pela

Sociedade União Popular aconteceram de forma gradativa.

Contudo, nem sempre condiziam com os recursos financeiros

disponíveis no caixa da associação. Assim, precisamos registrar a

participação fundamental da Central das Caixas Rurais, que

367

financiou o empreendimento, vez que uma Caixa Rural sozinha

não conseguiria juntar os recursos suficientes para as aquisições de

tantos lotes, e disponibilizou linhas de financiamento especiais

para a aquisição de terras em Porto Novo.

O mapa elaborado pela Volksverein, datado de 31 de março de

1929, apresenta a demarcação inicial dos lotes coloniais,

abrangendo a sede e as Linhas Santa Tereza, Laranjeira e Baú:

Figura 1 - Mapa do centro de Porto Novo em 1929

Fonte: Arquivo da Prefeitura Municipal de Itapiranga.

369

A an{lise do mapa permite localizarmos os lotes urbanos,

medidos no centro da colônia, e das ch{caras, demarcadas nas

Linhas Santa Tereza, Baú e Laranjeira, que contornavam a sede da

colônia. Acerca dos lotes rurais, mais distantes da sede, estes irão

aparecer nas demais linhas. Assim, Porto Novo possuía a seguinte

organização territorial, partindo do centro: lotes urbanos, ch{caras

e, por fim, lotes rurais.

Outra característica que não pode passar despercebida é o fato

dos lotes serem demarcados de maneira a possuírem acesso | {gua.

Assim, sua localização evidencia a direção do Rio Uruguai, Rio

Macaco-Branco, Lajeado Laranjeira, Lajeado Baú e Lajeado

Itapiranga, garantindo, desta forma, acesso dos moradores aos

recursos hídricos, implicando também na irregularidade dos

mesmos, sendo extremamente retangulares.

No ano de 1930, Porto Novo presenciou seu maior progresso,

comparado com os anos que decorreram desde sua fundação

(1926). Estima-se que o número de habitantes atingiu nesse ano o

patamar de 1.200 pessoas, onde 360 colônias já estavam ocupadas,

das 800 que haviam sido demarcadas pelos agrimensores até

aquele momento (ROHDE, 2012, p. 148).

Nas palavras de Maria Rohde, colona de Porto Novo

A vinda de novos colonizadores era constante e assegurada. Mesmo

durante os dias da revolução daquele ano [1930], chegavam novas

famílias de Santa Cruz e de Colônia Selbach. Além das 52 famílias que

imigraram nos primeiros meses do ano, chegaram, também, várias famílias

teuto-romenas da Bessarábia, destacando-se como agricultores muito

progressistas. Profissões e ofícios diversos já tinham seus

representantes em nosso meio. Hotéis, olarias, serrarias e moinhos

eram em número suficiente para atenderem à demanda (ROHDE,

2012, p. 148). (Grifo nosso).

No mesmo sentido, André Werle explica que ‚não eram

imigrantes vindos diretamente da Europa os primeiros colonos a se

instalar nas terras de Porto Novo, mas os descendentes daqueles

370

que durante o século XIX haviam migrado ao Rio Grande do Sul‛

(WERLE, 2001, p. 136).

O relato de Maria Rohde (2012) evidencia outra questão, ainda

mais peculiar, acerca da suposta homogeneidade e colonização

fechada que instalou-se em Porto Novo, defendida por parcela da

historiografia, tanto municipalista quanto acadêmica. Nesse ponto,

a autora é categórica ao relatar a chegada de várias famílias teuto-

romenas da Bessarábia1, em 1930, que em nada confundem-se com

alemães natos.

A Tabela 1 traz os nomes dos primeiros compradores de terras

de Porto Novo, apontando a existência de indivíduos oriundos de

locais onde havia predominantemente outras etnias e confissões

religiosas, além de sobrenomes que, possivelmente, não possuem

vinculação com a origem alemã. Logo, será que Porto Novo

realmente pode ser caracterizada como sendo uma colonização

fechada e homogênea? Será que somente alemães católicos

residiam naquela colônia? Os dados que revelamos fazem pairar

dúvidas em um contexto formado, até então, por certezas. Em

verdade, eles supõem uma colonização privada, direcionada aos

alemães católicos, mas que não impedia a aquisição de lotes por

compradores que não fossem da etnia e da religião desejada. A

sustentabilidade financeira do empreendimento, nesse caso,

também era considerada.

1 Sobre essas famílias originárias da Bessarábia, sabe-se que elas foram atraídas,

em 1928, para laborarem nas plantações de café no estado de São Paulo. Contudo,

não se habituaram ao local, tampouco ao clima e ao trabalho, e migraram para o

Sul do Brasil, sendo convencidas, por meio dos religiosos da Companhia de Jesus,

a instalarem-se na colônia Porto Novo. Por oportuno, não localizamos

documentos sobre essas famílias junto ao arquivo da Volksverein, no Memorial

Jesuíta da Unisinos.

371

Impasses da colonização: intrigas, rivalidades e processos

judiciais

Nem só de progresso viveu a colonização da Sociedade União

Popular localizada no extremo-oeste de Santa Catarina. A

existência de intrigas, rivalidades, processos judiciais,

contrapropaganda das outras colonizadoras, concorrência entre

Porto Novo e Sede Capela para se estabelecer a sede do distrito e,

ainda, diante da formação de outra colônia para teuto-católicos em

São Carlos/SC, que absorveu parte dos pretensos adquirentes de

terras, trouxeram a crise ao empreendimento da Volksverein e, em

consequência, a diminuição de vendas dos lotes coloniais a partir

de 1931.

Sobre a contrapropaganda da colônia, em suas memórias, Pe.

Rick destaca que este trabalho era realizado por agentes dispostos

em locais estratégicos do Rio Grande do Sul, vez que a maioria dos

compradores de terras eram originários daquele estado. Esses

agentes eram responsáveis por desviarem os colonos de Porto

Novo, incutindo-lhes informações que, para os religiosos, eram

inverídicas:

Também me foi dado observar como age a contrapropaganda.

Houve, em primeiro lugar, alguns sócios da Volksverein, e entre ele

até mesmo ex-funcionários dele, que se deixaram persuadir a

trabalhar contra Porto Novo. Desde Santa Maria, estabeleceram-se em

toda parte agentes, principalmente nos hotéis e nos trens, para

‚desconversarem‛ as pessoas a respeito de sua viagem a Porto Novo.

Até na barca de Porto Feliz ‚rebaixava-se‛ bastante a colônia porto-

novense. Contou-me determinado jovem senhor que ele no trem

apenas conseguira safar-se do agente pelo fato de lhe dizer que não

iria comprar terras em Porto Novo. Em Barril, hoje Frederico

Westphalen (no hotel), em Palmeiras das Missões (no hotel), em Santa

B{rbara e em toda parte, apareciam esses ‚senhores‛ agentes. O que

eles evidentemente querem é ganhar dinheiro, ou seja, 200$000 por

cabeça. Esta já importa uma boa remuneração, quando consegue

372

afastar alguém por lisonjas de Porto Novo e conquista-la para outra

colônia (Pe. Rick. In: RABUSKE; RAMBO, 2004, p. 177).

Além dessa contrapropaganda, outro fator que ocasionou

queda na venda dos lotes foi a concorrência de outras colônias com

estrutura semelhante a Porto Novo, como o caso de São Carlos/SC,

que absorveu parte dos compradores de terras que dirigiam-se

para Porto Novo, ao apresentar preços mais acessíveis para

aquisição de lotes, distante desta apenas cem quilômetros e

administrada pela Companhia Territorial Sul Brasil2.

Outra polêmica que também abalou a credibilidade do

empreendimento da Sociedade União Popular envolveu o lote n.º

29, da Linha Sede Capela, gerando um processo judicial na

Comarca de Porto Alegre - RS. Acerca desse fato, imperioso

registrar que esse lote havia sido reservado para construção da

igreja e da escola paroquial naquela linha. Contudo, após ajustes

por parte dos dirigentes da Volksverein, a construção foi alterada

para o lote n.º 01 daquela mesma linha. Entretanto, a decisão não

foi devidamente comunicada aos religiosos, que iniciaram a

construção da escola no lote anteriormente demarcado.

Nesse meio tempo, Albano Volkmer, membro da diretoria da

Sociedade União Popular, procedeu a venda de oito lotes na Linha

Sede Capela, todos ao colono Arthur Tannhauser, sendo que o lote

n.º 29 encontrava-se junto dessa venda. Contudo, Tannhauser era

protestante e havia adquirido os lotes por sugestão de Volkmer,

vez que desejava apenas investir seu dinheiro. Logo, não estaria

nos planos do comprador residir na colônia.

Desta forma, houve severos desentendimentos entre os

dirigentes da colônia e alguns religiosos, que não admitiam a

presença de um protestante, tanto que nessa época os religiosos da

2 A Companhia Territorial Sul Brasil, a partir de 1925, recebeu diversas concessões

de terras localizadas na região Oeste do estado de Santa Catarina para fins de

colonização. Conforme afirma D’Eça (1929, p. 29), até 1930, a Companhia havia

organizado as colônias de Cascalho, Passarinhos, Palmitos, São Carlos, Ilha

Redonda e Iracema.

373

Sagrada Família abandonaram Porto Novo em virtude desse fato,

deixando a colônia a cargo exclusivo dos Jesuítas, vez que até então

essas duas ordens religiosas atuavam naquela colônia.

Posteriormente, houve ainda um processo judicial envolvendo

esse caso do lote n.º 29, aforado por Albano Volkmer contra

Hermann Rüdiger, uma vez que este acusava Volkmer

publicamente, com edição de um panfleto inclusive, de

irregularidades cometidas na direção da Sociedade União Popular,

como o recebimento de propina pela compra e venda de terras e

pelo envolvimento no caso do lote n.º 29. Ao final do processo,

Hermann Rüdger sofreu condenação e Volkmer viu sua honra

limpa e julgou-se recompensado.3

O que mais chama atenção no fato acima é o registro de que

um protestante adquiriu oito lotes de terras na colônia Porto Novo.

Assim, voltamos a indagar: será que o argumento da

homogeneidade étnica e religiosa era mera propaganda para atrair

os compradores? Será que realmente Porto Novo foi um

empreendimento exclusivamente para alemães católicos? Será que

o capital e sua disponibilidade encontrava-se acima da questão

étnica e religiosa, não sendo este um caso isolado? Conforme

narrado, Arthur Tannhauser estava procurando um meio para

investir seus recursos financeiros e somente adquiriu os oito lotes

por sugestão de Albano Volkmer. Ademais, a Sociedade União

Popular necessitava comercializar os lotes disponíveis já que as

condições financeiras da colonizadora não se apresentavam de

forma favorável. Em verdade, precisava-se de recursos financeiros

nos caixas da Volksverein e, diante disso, não se mostrava viável os

3 O contexto e os fatos envolvendo o caso do lote n.º 29, bem como o processo

judicial, encontram-se descritos na obra de Maria Zilles Magno Nunes: ‚O começo

de Porto Novo: uma colônia para teuto católicos no processo de expansão colonial

no sul brasileiro (1912 – 1933)‛. Em conversa com a autora, descobriu-se que o

processo judicial transformou-se em um livro, onde Albano Volkmer buscou

honrar sua imagem publicamente. Contudo, somente houve a tiragem de três

exemplares do livro, em virtude dos custos, sendo que estes não foram

encontrados para análise.

374

dirigentes afastarem compradores de terras, mesmo aqueles que

objetivavam somente a especulação, como Arthur Tannhauser.

Nesse aspecto, a historiografia dominante narra que em Porto

Novo não era permitida a especulação financeira, onde os lotes

deveriam ser adquiridos e, no prazo máximo de dois anos, deveria

acontecer a ocupação do lote pelo comprador. Ora, aquele que

compra oito lotes de terras será que não adquire-os para aguardar a

valorização imobiliária e, posteriormente, revendê-los? Além disso,

uma volutuosa aquisição de oito lotes favorece de sobremaneira a

situação financeira de qualquer colonizadora e ainda auxilia a

compor os dados de lotes vendidos no período.

Sem titubear, esses fatos trouxeram crise ao empreendimento

da Sociedade União Popular e, em consequência, a diminuição das

vendas dos lotes. Assim, nesse período alterou-se a imagem da

associação e da própria colônia, onde estas passaram para um

cunho mais comercial, apresentando estratégias de mercado e

competitividade frente às outras colonizações.

Nesse cenário, a Volksverein, vendo-se em uma situação onde as

vendas sofreram queda em virtude dos fatores acima, abriu um

espaço de terras até então esquecido em Porto Novo, localizado em

área menos povoada e com menos infraestrutura, onde alguns

caboclos instalaram-se quando foram expulsos do centro da

colônia, denominada de Linha Glória, inaugurando nesse local

novas possibilidades para aquisição de lotes rurais. Desta forma,

quem comprasse lotes nessa nova área – Linha Glória e terras

adjacentes - não estava vinculado ao prazo de dois anos para

assentamento. Além disso, os preços desses lotes eram menores em

relação ao restante da colônia.

Conclusão

Conforme evidenciamos neste estudo, a colônia Porto Novo,

cuja colonização foi articulada e desenvolvida pela Sociedade

União Popular, conhecida entre os colonos como Volksverein, sob a

liderança dos Padres Jesuítas, atraiu colonos originários

375

inicialmente do estado do Rio Grande do Sul. Suas terras eram

descritas como promissoras, férteis e de excelente qualidade para o

desenvolvimento da agricultura, sendo elas apresentadas como

alternativa para um futuro melhor frente ao esgotamento de lotes

do estado vizinho.

Porto Novo, descrita muitas vezes pela historiografia como

uma colonização homogênea e fechada para alemães católicos,

revelou-se, neste estudo, como sendo um local em que viviam

colonos de outras etnias e, inclusive, religiões. Assim, em que pese

o discurso ser no sentido da homogeneidade étnica e religiosa, o

fator financeiro da colonizadora prevalecia e o requisito de ser

alemão católico, dito como essencial, era deixado de lado em

muitos momentos.

Até o início da década de 1930, como apurado no estudo, a

maioria dos moradores estabelecidos em Porto Novo eram

originários do Rio Grande do Sul, sendo responsáveis pelas

aquisições de grandes levas de lotes.

Contudo, repita-se, nem só de progresso viveu Porto Novo.

Nesse sentido, revelamos que a existência de intrigas, rivalidades,

processos judiciais, contrapropaganda das outras colonizadoras,

concorrência entre Porto Novo e Sede Capela para se estabelecer a

sede do distrito e, ainda, diante da formação de outra colônia para

teuto-católicos em São Carlos/SC, que absorveu parte dos pretensos

adquirentes de terras, trouxeram a crise ao empreendimento da

Volksverein e, em consequência, a diminuição de vendas dos lotes

coloniais a partir de 1931.

Desta forma, diante de tais impasses, os administradores da

colônia viram-se compelidos a realizarem novas estratégias para

ocupação dos lotes, como a demarcação de novos espaços, a fim de

receber imigrantes originários diretamente do continente Europeu,

a oferta de benefícios aos compradores, como auxílios com as

viagens, a formulação de propagandas mais agressivas e

chamativas e, por fim, a locação de lotes a fim de promoverem a

ocupação daqueles disponíveis.

376

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379

A valorização rápida das terras da Companhia Territorial

Sul Brasil é uma coisa certa e garantida

Luiz Fernando Ferrari1

Introdução

As companhias colonizadoras objetivavam a comercialização

das terras adquiridas junto ao governo catarinense a partir da

década de 1920. A colonização tinha como propósito a

comercialização das terras no oeste catarinense, aos grupos que

tivessem condições de adquirir a sua titulação.

O modelo de colonização empregado pelas empresas

colonizadoras na região Oeste catarinense, promoveu a propagação

da publicidade de suas terras via os jornais, revistas e kalenders.

Essas publicações aguçaram o imaginário dos pequenos

agricultores e propiciaram uma grande onda migratória,

geralmente do Rio Grande do Sul, visando, principalmente, o

excedente populacional das antigas áreas coloniais gaúchas.

Diante disso, o Oeste catarinense tornou-se um cenário

marcante frente à publicidade das terras da região impulsionada

pela Companhia Territorial Sul Brasil. O presente estudo trata das

singularidades relacionadas à publicidade, propaganda e à

comercialização das terras da região Oeste catarinense, promovidas

pela Companhia Territorial Sul Brasil. Dentro desse contexto,

procurou-se desenvolver a discussão em torno dos métodos

utilizados pela companhia em revistas e jornais, kalenders e

agenciadores ou mostradores, que procuravam divulgar as terras

na região Oeste catarinense.

1 Doutorando em História Regional pela Universidade de Passo Fundo (UPF).

Professor da rede estadual de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Bolsista CAPES.

380

A terra transformada em mercadoria

O processo da fronteira agrícola na região Oeste catarinense e a

atuação das companhias colonizadoras demonstraram que as

autoridades catarinenses, através da colonização, poderiam

assegurar a posse efetiva da região denominada Contestado. Nesse

âmbito, o governo procurou facilitar as concessões de terras no

início do século XX às empresas colonizadoras particulares para

atuar na região. Assim, associou-se o interesse do governo, das

empresas de colonização e dos grupos de pequenos agricultores

que possuíam aspiração em adquirir lotes agrícolas.

Nesse sentido, Ianni considera que, ‚*...+ A aliança entre a

empresa privada e o Estado, sob a égide do grande capital, era uma

operação econômica e política que garantia a implantação dos

projetos, a formação da empresa agropecu{ria *...+‛ (1979, p. 227).

Diante disso, ‚A colonização foi articulada por empresas que

perceberam que a terra enquanto mercadoria era excelente para a

reprodução do capital através do seu comércio‛ (HEINSFELD,

2014, p. 221). A terra foi transformada em mercadoria, comércio,

instrumento de troca, e inserida no âmbito de reprodução do

capital como propriedade privada, potencializada pelas grandes

empresas colonizadoras. Dentro desta ótica, Ianni considera que,

[...] Tanto as terras devolutas como as terras ocupadas, todas as terras

estão sendo necessariamente apropriadas de forma privada, segundo

os estatutos jurídicos estabelecidos pelo poder estatal, em âmbito

federal ou estadual. Tanto as terras devolutas federais e estaduais,

como as terras ocupadas em tempos recentes ou antigos, todas as

terras estão em processo de apropriação privada, legitimada pelo

poder estatal. Como objeto e meio de produção, a terra passa a fazer

parte das condições de produção de mercadorias, de valores de troca;

ela mesma é transformada em mercadoria [...] (1979, p. 162).

O desenvolvimento da região Oeste ficou a cargo de empresas

colonizadoras particulares. Por isso, o governo fez concessão de

terras para promover a colonização e a infraestrutura necessária,

381

ou seja, proporcionar a ‚ocupação definitiva da região‛,

construindo estradas para o transporte e o deslocamento dos

pequenos agricultores. Com essas medidas, o governo almejava o

desenvolvimento e a organização da região ao restante do Estado.

Em conformidade com Radin,

O fato de o Estado confiar às companhias colonizadoras a

direção desse processo e se omitir ou ser conivente com seus

procedimentos demonstra que atendia a uma complexa teia de

interesses particulares traçada no período. Nesta teia, o Estado

também buscou se eximir de diversas responsabilidades

relacionadas à infraestrutura das áreas coloniais. Para a construção

de estradas, negociou a tarefa com as companhias colonizadoras,

que também iniciaram o oferecimento escolar e foram

paulatinamente repassando-o às comunidades e à igreja, as quais

difundiram diversas outras atividades pedagógicas e assistenciais

(2009, p. 24).

Esse controle ocorreu com a Companhia Territorial Sul Brasil,

respaldada e negligenciada pelo poder público, mostrando que a

colonização significava todo o processo de efetivação das

companhias colonizadoras na divisão e comercialização dos lotes

de terra. Essa divisão foi facilitada para a venda desses lotes, pois

havia a necessidade devido as características físicas da região. A

partir do processo migratório, ocorreu a reconstrução do espaço.

Carbonari (2009), considera que as regiões não se explicam por

tipologias, mas sim, por processos que se criam historicamente e

que se vinculam à expansão do processo capitalista que ordena os

espaços.

Os ‚espaços considerados vazios‛ pelo Estado e pelas

companhias colonizadoras foram viabilizados. Para tanto, a

pequena propriedade familiar apareceu como uma alternativa

significativa para esse processo de colonização, no qual, Radin,

analisa que ‚estrategicamente, o governo brasileiro estimulou a

colonização com a finalidade de ocupar esses espaços vazios [...]

pela pequena propriedade de agricultura familiar, que se constituiu

na principal alternativa *...+‛ (2009, p. 25).

382

A terra passou a ter um valor de renda em capital e a

propriedade privada percorreu por constantes recriações, surgindo

várias formas de mudança de renda da terra, tendo, com isso, uma

correlação de forças e de produção de relações sociais. As terras

próximas aos núcleos coloniais propiciavam preços mais altos em

relação a outras áreas. A comercialização, com o apoio do Estado,

utilizando-se dos pequenos agricultores, tornou-se um grande

negócio para os empresários e para os grandes proprietários. As

colonizadoras definiram a prática da comercialização das terras e,

conforme ocorria a procura, os preços aumentavam.

Nessa perspectiva, a terra passa a ser dividida em lotes e

registrada pelos órgãos públicos, dando-lhes a existência legal. A

partir disso, a escritura pública legitima, atesta o seu

pertencimento. Em contrapartida, a terra não é mais considerada

pelo termo de posse, causando a intrusão do que já estava

estabelecido antes do processo ‚colonizatório‛. Radin (2009),

sublinha que o governo catarinense teria regularizado os trabalhos

de medição e a situação das terras devolutas ocupadas por

intrusos, tornando assim possível atrair ao Estado a corrente

migratória e promover a fixação do colono ao solo.

A estrutura agrária do Brasil tinha por influência o latifúndio,

mas na área da região Oeste catarinense prevaleceu o minifúndio.

Essa proposta em dividir em pequenos lotes facilitava a

comercialização com valores mais acessíveis. Também havia uma

variação nos valores quando os lotes de terras estavam próximos a

ferrovias e estradas, a núcleos já estabelecidos. Os lotes mais

distantes ou de difícil acesso e dependendo do relevo sofriam uma

variação no preço.

A colonização no Brasil meridional não deveria se concentrar

em áreas favoráveis ao desenvolvimento do latifúndio. Para tanto,

a colonização passou a ser planejada pelos governos, seja centrais

ou estaduais (HEINSFELD, 2014). Dessa forma, a colonização não

ocorreu de forma espontânea, mas sim, com pequenos

proprietários, surgindo a formação de núcleos coloniais pioneiros,

as chamadas colônias velhas. A gradativa expansão demográfica

383

proporcionada por imigrantes à procura de terras novas, para a

formação de novos núcleos, originou as chamadas colônias novas.

Nesse contexto, Vicenzi considera que,

[...] sobretudo imigrantes casados adquiriam uma colônia, para

explorá-la, nas terras postas à disposição pelo governo ou

particulares. A chegada dos filhos aumentava a força de trabalho e,

portanto, a produção. Ao crescerem e casarem-se, os filhos buscavam

um novo lote, prosseguindo o ciclo iniciado pelos pais. Famílias já

constituídas mudavam-se igualmente para abandonar terras já

cansadas (2017, p. 303).

Frente à expansão colonial agrícola no Rio Grande do Sul,

promovendo um esgotamento das terras à disposição ou

especulação imobiliária, o colonizador atravessou o rio Uruguai em

direção ao Oeste de Santa Catarina, dando início a uma intensa

migração para a região. Dentro desta ótica, a região representou a

continuidade da vida no campo, através da manutenção das

atividades desenvolvidas no Rio Grande do Sul. Ao governo

catarinense interessava garantir a posse e o domínio da região.

Promover a criação de novos núcleos coloniais agrícolas,

legitimava seu poder sobre esse território.

Por meio da propaganda intensa, os agentes utilizavam todos

os meios para persuadir os pequenos agricultores. Visitavam as

casas até convencer determinado membro da família. As

companhias ofereciam facilidades aos pequenos agricultores e

incitavam o ganho econômico que poderiam ter em pouco tempo

nas novas colônias. A publicidade e as propagandas realizadas

principalmente, no Rio Grande do Sul, foi um fator que contribuiu

para despertar o imaginário sobre o Oeste catarinense.

O alvo da companhia Sul Brasil era as famílias numerosas,

podendo ser considerado um ponto crucial para a migração das

velhas colônias rio-grandenses. Havia ainda, a possibilidade em

adquirir glebas subsequentes, assim permitia que as famílias

ficassem unidas usando como argumento, o preço das terras no Rio

Grande do Sul. Outra justificativa utilizada era que, além de

384

manter suas relações socioculturais, o pequeno agricultor poderia

conviver com integrantes do mesmo credo ou etnia. Tais recursos

poderiam atrair com mais facilidade o pequeno agricultor.

Acredita-se que os migrantes optaram por essa região, pois

tinham como propósito a manutenção dos padrões

socioeconômicos e culturais existentes no Rio Grande do Sul. O

colono buscava avaliar as condições da região Oeste catarinense, de

posse dessas informações, poderia construir uma comunidade de

acordo com sua cultura. As informações oportunizavam uma

avaliação e uma escolha sobre o Oeste catarinense. Nodari

esclarece como era esse processo: ‚*...+ através de agentes das

companhias colonizadoras, de cartas de familiares e de amigos que

já haviam migrado, notícias e propagandas publicadas em jornais e

anúncios de rádios, livros, manuais, panfletos, almanaques e

pregações de padres e pastores *...+‛ (2002, p. 35).

Quem há um ano não vê nossas terras, não as reconhece mais

A comercialização das terras adquiridas junto ao governo

catarinense, se tornou o principal objetivo das companhias

colonizadoras para atingir um retorno imediato e honrar o

compromisso assumido. Com frases como ‚Quem há um ano não

vê nossas terras, não as reconhece mais‛, utilizadas nas suas

publicações de jornais, revistas, kalenders, a Companhia Territorial

Sul Brasil chamava a atenção dos pequenos agricultores para

adquir os lotes de terras.

Para tanto, a Companhia Territorial Sul Brasil organizou um

grande esquema de publicidade e persuadiu grupos das principais

colônias do Rio Grande do Sul. Divulgou a ideia de que as terras

seriam comercializadas em pequenos lotes aos grupos que

desejavam adquirir, promovendo o progresso esperado pelo

governo à região Oeste catarinense. Dentro desta ótica, a

divulgação das terras a serem comercializadas, passou pela

publicidade em jornais, revistas e kalenders (NODARI, 2017). A

Companhia Territorial Sul Brasil utilizava-se de revistas e jornais,

385

como Volksblatt e a Paulusblatt, para realizar a propaganda de suas

terras (WERLANG, 2002).

As formas de propaganda utilizadas para cativar o colonizador

eram as mais variadas. Em conformidade com Nodari (2002, p. 36),

‚*...+ os anúncios e as reportagens dos jornais, os almanaques

anuais, os cartazes que eram fixados em pontos estratégicos,

panfletos, livros e, principalmente, os agentes contratados pelas

companhias‛.

Mas por que vender terras em pequenos lotes? As

colonizadoras justificavam esse método, pois a difusão da pequena

propriedade facilitaria na cobrança de impostos e dificultaria o

avanço do latifúndio na região. A esse respeito encontrou-se a

seguinte colocação de Radin, ‚*...+, a preocupação dos empres{rios

se relacionava menos à questão política do modelo agrário

adequado para a região e mais à possibilidade de criar condições

que facilitassem a comercialização lotes‛ (2009, p. 168). Em geral, as

companhias colonizadoras não possuíam um entendimento de

política agrária, mas tinham o propósito de comercializá-la.

O colonizador Sul Brasil que em sua maioria pertencia a

empresários rio-grandenses, tornou-se uma das principais

empresas responsáveis pelo povoamento sistemático da região

Oeste catarinense.

Protagonizaram uma migração dirigida a grupos que se

adequassem aos padrões estabelecidos pelo governo e pela

companhia colonizadora, isto é, a povoação e a colonização

deveriam ocorrer de forma pacífica, organizada, metódica. Mas que

grupos seriam considerados ideais para preencher os requisitos

propostos? Principalmente os pequenos agricultores de

ascendência ítalo-brasileira, teuto-brasileira e teuto-russa

estabelecidos no Rio Grande do Sul, Paraná e outras regiões de

Santa Catarina, os quais já estavam inseridos num modelo a ser

empregado na região, as pequenas e médias propriedades

agrícolas. Dessa forma, esses grupos criaram a expectativa de

recriar as práticas socioculturais desenvolvidas nas regiões de que

eram oriundos.

386

A Companhia Territorial Sul Brasil utilizou várias técnicas para

persuadir o pequeno agricultor, entre as quais, induzir um

determinado membro da família já que este poderia influenciar os

demais integrantes. Para tanto, as famílias numerosas tornaram-se

um fator de disputa entre as colonizadoras. A presença dos amigos

e os vizinhos poderia exercer certa influência no processo

migratório.

A perspectiva de adquirir grandes pedaços de terras e de um

futuro promissor foi uma das políticas utilizadas pela companhia, o

que mexeu com o imaginário do pequeno agricultor. Enfatizavam

também que os colonizadores poderiam obter ganho rápido,

disposição de preços acessíveis e conseguir os títulos de

propriedade, além da facilidade de adaptação ao ambiente natural

(RADIN, 2009). A partir do momento em que a terra se tornou

mercadoria, atribuiu-se o valor de troca. Assim, passou a ser uma

fonte de renda. A colonização adquiriu aspecto de comercialização

de vasta área de terra, mas com valor de mercado, explorando os

recursos naturais da região Oeste catarinense.

O Estado não se preocupou mais com a organização de núcleos

coloniais como estratégia nacional, mas sim, adquiriu caráter de

valorização da terra por meio de sua comercialização. Para o

pequeno agricultor, o Oeste catarinense surgiu como um novo

espaço para a formação de uma classe de pequenos produtores

agrícolas e comerciantes ascendentes, em sua maioria teutos e

ítalos. Nesse sentido, percebe-se que os diferentes grupos possuíam

realidades opostas ao modelo de sociedade e colonização adotados

na região. Conforme referência de Radin,

entende-se que os diferentes grupos em questão, os empresários da

colonização, as autoridades estaduais, os migrantes colonos e os

povos indígenas e caboclos, possuíam interesses e visões distintas do

processo de colonização e do tipo de sociedade que foi sendo

construído e reconstruído. Decorrentes dessas diversas concepções e

discursos sobre a sua realidade concreta tramaram-se várias disputas,

umas mais facilmente percebidas, outras mais vedadas, mas que

387

direcionaram muitos dos atos cotidianos de cada um dos grupos

(2009, p. 21).

As cidades do Oeste catarinense têm por característica a

ostentação dos nomes das grandes famílias regionais, bem como

dos coronéis da época e de suas empresas colonizadoras. Antes da

chegada dos colonizadores do Rio Grande do Sul, os indígenas e os

caboclos foram os responsáveis pela ocupação do espaço na região

catarinense; ocupação e cultura que raramente foram mencionadas

pela história oficial (MARQUETTI, 2008). A postura das

autoridades foi tolerante com as práticas dos colonizadores em

relação às populações que ficavam à margem da ótica capitalista.

Um progresso rápido e contínuo

Através de manchetes de notícias em jornais, revistas e

kalenders como ‚um progresso r{pido e contínuo‛, a Companhia

Territorial Sul Brasil buscava chamar a atenção dos pequenos

agricultores rio-grandenses, utilizando as vantagens de suas terras

no Oeste catarinense, garantindo aos pequenos agricultores o

acesso ao lote, bem como, a fertilidade da terra a possibilidade de

plantio e comercialização dos bens produzidos.

Quanto ao empreendimento de comercialização das terras, a

companhia, além de publicar propagandas em revistas, jornais,

kalenders, utilizava-se de um meio mais eficiente, o convencimento

das pessoas pelos agentes ou propagandistas, em geral pequenos

agricultores. Estes que, possuíam credibilidade e conhecimento das

terras para fazerem o trabalho de divulgação corpo a corpo.

A forma mais eficaz de propaganda foi enviar vendedores para

as regiões de colonização no Rio Grande do Sul, com a finalidade

de promover a divulgação das terras no Oeste catarinense. Para ser

um agente propagandista dessas companhias, havia a necessidade

de preencher alguns requisitos, como ‚*...+ ser ou ter sido colono,

ser conhecedor de terras, ou ser comerciante e, ainda dispor de

círculo relativamente amplo de parentes ou de amigos a quem

388

oferecer a terra, além de ter credibilidade *...+‛ (NODARI, 2002, p.

37). Sob perspectiva semelhante, Renk (2006) considera que, para

ser agente propagandista era essencial ser conhecedor de terras, ter

sido ou ser pequeno agricultor e, ainda, dispor de um ambiente

favorável de amizades ou de conhecidos a quem poderia oferecer a

terra.

Porém era essencial ao propagandista ser confiável, assim,

poderia recrutar os interessados em adquirir lotes de terras. Diante

das ofertas, os agentes propagandistas estavam em condição de

representantes da Companhia Territorial Sul Brasil para oferecer as

terras aos compradores. As antigas colônias formavam um grande

cenário para a divulgação, e posteriormente, a comercialização.

Geralmente, os agentes propagandistas estavam entre os primeiros

migrantes ou lideranças das comunidades nas antigas colônias. Os

pequenos agricultores eram conduzidos até as áreas oferecidas

para reconhecer e efetuar a aquisição do lote.

Os agentes propagandistas eram responsáveis por apresentar

os lotes pelo mapa ou levar os pequenos agricultores para fazerem

o reconhecimento dos lotes a serem adquiridos. Assim, poderiam

ficar no acampamento montado pela companhia até improvisar o

seu nas terras adquiridas.

Uma prática comum dos propagandistas era passar de casa em

casa e convencer o pequeno agricultor rio-grandense, que no Oeste

catarinense existiam terras baratas e de boa qualidade, onde

poderiam produzir milho, mandioca, feijão e batata. Outro artifício

utilizado era a propagação da existência de animais, como o tigre,

aguçando o imaginário dos caçadores. Quando a colonização

estava em franco desenvolvimento, muitos agentes traziam os

pequenos agricultores com o objetivo de conhecerem as terras da

região.

Outro aspecto da colonizadora era a criação de uma

infraestrutura para cativar os compradores, como a doação de uma

área de terra para a Igreja, escola, serrarias e ainda colaborar na sua

construção. Utilizavam os mapas como meio de divulgação e

venda, entre os quais a existência de quedas de água para

389

instalação de serrarias e moinhos, além do clima mais saudável do

estado. Os propagandistas levavam um mapa das terras a serem

comercializadas com os lotes demarcados e numerados. Um

expressivo número de pequenos agricultores nem ao menos

conhecia a região ou os lotes que iriam comprar, a sua

espacialidade como morros, rios, fauna e flora. Schuh, considera

que,

[...] A viagem para as novas terras era dispendiosa, além de exigir

tempo para deslocamento. Quem dispunha de um pouco mais de

recurso financeiro fazia a escolha do lote pelo mapa, mas antes de

efetuar a aquisição vinha conhecê-lo. Caso gostasse, fazia a aquisição

e já tomava as providências iniciais para instalação de sua família.

Muitas vezes, um ou dois homens da família se deslocavam para as

novas terras para providenciar a derrubada da mata, preparar o local

de construção da casa e abrir as primeiras roças [...] (2011, p.34).

Quando a venda era efetuada, o agenciador recebia um percentual

sobre a comercialização dos lotes. Estes eram motivados pelos 10%

que receberiam sobre o valor da venda, que era repassado pela

companhia contratante. Para Nodari,

os agentes utilizavam todos os meios que estavam à sua disposição

para persuadir as pessoas a comprarem terras das companhias que

eles representavam, pois somente assim teriam bons ganhos. No caso

dos agentes da Cia. Territorial Sul Brasil, os mesmos agentes

recebiam um percentual de 10% sobre o valor da venda. Vários

agentes visitavam pessoalmente todas as casas, de uma determinada

comunidade, em que os argumentos por eles utilizados, geralmente,

eram convincentes [...] (2002, p. 37).

A maior parte dos pequenos agricultores que adquiriram terras

da Companhia Territorial Sul Brasil teve o município de Palmitos e

São Carlos como porta de entrada, pois, as terras no Rio Grande do

Sul estavam enfraquecidas ou com um valor comercial elevado.

Inúmeras famílias se dirigiram para novas áreas em busca de

390

melhores condições, para realizar um novo começo. Nesse âmbito,

as famílias teriam dificuldade em se manter no Rio Grande do Sul e

havia a necessidade de procurar novos lotes de terras para os filhos

recém-casados para que pudessem manter a atividade agrícola,

mas agora em terras catarinenses.

São Domingos para italianos, Palmitos para protestante, São

Carlos para católico

Para facilitar a acomodação e a organização, a Companhia

Territorial Sul Brasil, sob direção de Carlos Culmey, seguia alguns

critérios, Werlang (2002) aponta que os pequenos agricultores

foram distribuídos de tal forma que os ‚teuto-brasileiros católicos,

teuto-brasileiros evangélicos e ítalo-brasileiros católicos‛, ficariam

em localidades distintas.

Esta política de ação da companhia objetivava evitar possíveis

conflitos e facilitar o deslocamento entre as comunidades ao ensino

e proporcionar o atendimento religioso. Essa diretriz pode ser

percebida nas propagandas que a companhia realizava em jornais,

revistas e nos kalenders, com a finalidade de predeterminar os

locais dos lotes de terras que os grupos de pequenos agricultores

deveriam adquirir em conformidade a sua etnia e seu credo

religioso, pelo menos no início da década de 1920, início da atuação

dessa companhia colonizadora. Neste enfoque, a companhia

organizou as comunidades da seguinte maneira: as terras que

estavam localizadas entre os rio Chapecó e Barra Grande estavam

reservadas aos teuto-brasileiros católicos. Dessa organização,

surgiram os municípios de São Carlos, Pinhalzinho, Saudades e

Cunhataí.

As terras que se localizavam do rio Barra Grande até o rio São

Domingos, que compreende o município de Palmitos, ficaram

delimitadas para os teuto-brasileiros evangélicos. As terras que se

localizavam além do rio São Domingos até o rio Iracema foram

inseridos os ítalo-brasileiros, originando o município de Caibi. As

que compreendiam entre o rio Iracema e o rio das Antas foram

391

ocupados por teuto-russos evangélicos, originando o município de

Riqueza. Os teuto-russos ocuparam uma área reservada para os

teuto-brasileiros católicos (WERLANG, 2002). A ilustração 1

demonstra que a companhia direcionava os pequenos agricultores

que viessem a adquirir um lote de terra de acordo com sua

etnicidade ou seu credo religioso.

Ilustração 1: Propaganda da Companhia Territorial Sul Brasil.

Fonte: Jornal Staffetta Riograndense, Caxias do Sul, 1929 -11- 06, p.04. Disponível em:

http://liquid.camaracaxias.rs.gov.br/LiquidWeb/App/View.aspx?c=71780&p=3&Miniatura=false

&Texto=false. Acesso em: nov. 2016.

Essa prática não era exclusiva da Companhia Territorial Sul

Brasil, pois outras companhias também utilizavam deste artifício,

como a Chapecó Pepery Ltda., que em sua propaganda no jornal

Staffetta Riograndense de Caxias do Sul enfatizava sua

‚Colonizzazione cattolica non si ricevono prostestanti‛. A companhia

evidenciava que sua colonização era para católicos e não para

protestantes. Isso demonstra sua preferência e seu direcionamento

392

dos pequenos agricultores desejados por esta companhia. A

ilustração 2 destaca que a companhia ressaltava sua colônia

católica, não permitindo a presença de protestante, o que

demonstra a sua preferência pelo credo religioso dos pequenos

agricultores que viessem a adquirir um lote de terras em sua área

de atuação. Também é possível inferir que a colonizadora Chapecó

Pepery Ltda destacava algumas vantagens de aquisição de um lote

de suas terras. Todas as colônias podiam ser cruzadas de carro por

estradas já existentes, seja qual for o pequeno agricultor que tivesse

interesse em comprar lote(s) além de ter três meses de moradia

grátis até ter construir a sua própria casa.

As terras em geral eram planas e férteis com água

abundante, possuindo um clima temperado. Essas terras tinham o

conhecido ‚mato branco‛, rico em madeira, sendo uma {rea

propícia para produzir alfafa e cana-de-açúcar.

Ilustração 2: Propaganda da Companhia Chapecó Pepery Ltda.

Fonte: Jornal Staffetta Riograndense, Caxias do Sul, 1929 -11- 06, p.04. Disponível em:

http://liquid.camaracaxias.rs.gov.br/LiquidWeb/App/View.aspx?c=71780&p=3&Miniatura=false

&Texto=false. Acesso em: nov. 2016.

393

Nesse processo de colonização havia a preocupação em

propiciar o atendimento religioso e educacional pela implantação

de escolas e igrejas. Werlang (2006) enfatiza a necessidade de uma

organização comunitária assentando pequenos agricultores teuto-

brasileiros católicos, teuto-brasileiros evangélicos e ítalo-brasileiros

católicos em lugares diferentes, a fim de evitar conflitos, facilitar a

prática da sua religiosidade e o exercício da educação.

As colonizadoras sabiam que a religiosidade dos pequenos

agricultores era grande, portanto, havia a necessidade de

possibilitar o atendimento religioso para atrair novas famílias.

Tendo em vista essa especificidade, a formação de núcleos

coloniais era fundamental para o progresso da colonização. O

sucesso do progresso desses núcleos, em conformidade com

Werlang (2002, p. 43-46), estava atrelado | ‚existência de estradas,

comércio e o atendimento religioso e educacional atrairia novos

pequenos agricultores que já não vinham deslumbrados por belas

propagandas, mas a partir das informações de parentes e

conhecidos instalados na região‛.

A sistematização dos núcleos populacionais, aliada à

concretização das estradas, do comércio e da assistência religiosa e

educacional, foi vital para o ‚progresso da colonização‛ nas terras

da companhia. Não só as propagandas contribuíram para esse fato,

mas também as informações fornecidas pelos parentes e

conhecidos estabelecidos na região Oeste catarinense.

Essa companhia planejou a maior parte dos núcleos urbanos

que estavam em terras de seu domínio, uma vez que havia o

compromisso com o governo do estado em demarcar os núcleos a

uma distância máxima de trinta a quarenta quilômetros um do

outro. Dessa forma, reservou terrenos para as praças, hotel, escola,

igreja e cemitério. As cidades planejadas desde o início da

colonização com os locais previamente definidos para a estrutura

básica foram Palmitos, São Carlos, Maravilha, Saudades, Cunha

Porá (WERLANG, 2006).

Essa prática facilitava a colonizadora instalar o colono em

diferentes áreas quando vendia as terras, tendo como fator de

394

destino para este ou aquele local a origem étnica e religiosa.

Acreditava-se, dessa maneira evitar conflitos na competência de

organizar as comunidades e implantar as escolas e igrejas. Prática

essa que permaneceu até 1945, quando o ensino público foi

implantado, fazendo com que os diferentes grupos mantivessem

sua língua e seus costumes (WERLANG, 2006).

Com a colonização e fixação de famílias de pequenos

agricultores na região Oeste catarinense, era de se esperar que,

mais cedo ou mais tarde, algo precisaria ser feito para promover a

educação dos filhos dos pequenos agricultores.

Nesse contexto, visando criar um atrativo para valorizar as

terras, a Companhia Territorial Sul Brasil providenciou a vinda de

uma escola para Maravilha. Era importante que o recém-formado

povoado tivesse uma escola, pois, sem dúvida, isso era interessante

para os pequenos agricultores que desejavam instruir seus filhos.

Portanto, colonização, religião e educação caminhavam de

mãos dadas. Esta combinação era muito utilizada pela companhia

para convencer os pequenos agricultores, bastava oferecer-lhes a

possibilidade da prática religiosa e, principalmente, a educação

para seus filhos. Nesse sentido, Werlang, traduz perfeitamente essa

situação:

A religiosidade dos colonizadores da região era grande, e a

companhia, por sua vez, sabia que era fundamental possibilitar o

atendimento religioso para atrair novas famílias. O templo também

servia de escola. Na falta de igrejas, as aulas eram ministradas na casa

do professor. Percebe-se, entre os entrevistados de origem alemã,

uma maior preocupação com a alfabetização dos filhos. Koehler

(Palmitos, 18 jan. 1991) conta que, no começo, as famílias tiveram que

pagar o professor, mas, mesmo assim, eles saíram da Linha Barra

Grande para morar em Três Pinheiros, para facilitar o acesso à escola

para seus filhos (2006, p. 68)

Quando em algumas comunidades não havia um espaço

adequado para ministrar as aulas ou até mesmo as reuniões da

comunidade, a igreja muitas vezes era o lugar indicado. A

395

alfabetização dos filhos dos camponeses sempre foi preocupação

presente nas famílias, e consequentemente, a busca pela facilidade

de acesso à escola e do professor que iria ministrar as aulas.

Considerações finais

Neste trabalho, mostrou-se a importância da publicação e

divulgação das terras da Companhia Territorial Sul Brasil para o

processo de consolidação e comercialização no Oeste catarinense.

No decorrer deste artigo, realizou-se um esforço

interpretativo da publicação e da singularidade de uma das

maiores companhias territoriais que atuou na região.

A publicidade desenvolvida pela companhia teve como

característica, a homogeneidade étnica e religiosa nas primeiras

décadas de sua colonização, atraindo pequenos agricultores,

principalmente das principais colônias rio-grandenses. Graças às

propagandas estampadas em periódicos e aos propagandistas que

aliciaram os grupos, formou-se a nova colônia no Oeste

catarinense.

Dessa forma, traçou-se o perfil de algumas práticas

desenvolvidas pela companhia na região. A comercialização das

terras tinha por base algumas metodologias preestabelecidas pela

companhia, com o intuito de atrair os pequenos agricultores.

A companhia direcionou a venda de lotes de terra aos grupos

de perfil desejado. Atualmente, ainda é muito marcante esta

diferenciação nos municípios que surgiram na área que a

companhia atuou.

Nesse cenário, a Companhia Territorial Sul Brasil se

estabeleceu com suas diversas técnicas e táticas e soube abordar as

inseguranças e as esperanças dos pequenos agricultores

estabelecidos no Rio Grande do Sul, Paraná e outras regiões de

Santa Catarina. Isso demonstrou, que a companhia possuía

condições de oferecer e manter subsídios aos grupos que se

dispusesse a adquirir lotes de terras e assim iniciar uma nova vida

no Oeste catarinense.

396

Destarte, evidencia-se a necessidade de estudos dos processos

migratórios e das atuações das companhias colonizadoras na região

Oeste Catarinense, visando compreender a construção e a

significação dentro da sua especificidade.

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ZARTH, P.A. Do arcaico ao moderno. O Rio Grande do Sul agrário

do século XIX. Ijuí: Unijuí, 2002.

398

399

O sentimento imigrante

e a grande guerra

Marinilse Marina Busato1

Considerações iniciais

A Primeira Guerra Mundial, também conhecida como a

Grande Guerra, ocorreu em um cenário de intensos conflitos e

insatisfações, tanto políticas quanto econômicas. O estopim para o

início do conflito foi o assassinato do arquiduque Francisco

Fernando2, herdeiro do trono Austro-Húngaro, e de sua esposa,

Sofia de Hohenberg, durante uma visita a Sarajevo, capital da

Bósnia. O atentado foi executado por Gavrilo Princip, integrante do

grupo conhecido como Mão Negra, na data de 28 de junho de 1914,

um mês após o assassinato, em 28 de julho de 1914, foi oficialmente

declarada a Primeira Guerra Mundial.

Conforme comentado, o assassinato do futuro imperador da

Áustria-Hungria e de sua esposa, foi apenas a fagulha que

incendiou a Europa, e consequentemente se alastrou para diversas

partes do globo. O quadro que estava sendo pintado anteriormente

a ‚Grande Guerra‛ era de neocolonialismo3, de disputas

1 Doutoranda em História pela Universidade de Passo Fundo-UPF. Bolsista Fapergs. 2 Também encontra-se a grafia do nome como Francisco Ferdinando. 3 A industrialização do continente europeu marcou um intenso processo de

expansão econômica. O crescimento dos parques industriais e o acúmulo de

capitais fizeram com que as grandes potências econômicas da Europa buscassem a

ampliação de seus mercados e procurassem maiores quantidades de matéria-

prima disponíveis a baixo custo. Foi nesse contexto que, a partir do século XIX,

essas nações buscaram explorar regiões na África e Ásia. Gradativamente, os

governos europeus intervieram politicamente nessas regiões com o interesse de

atender a demanda de seus grandes conglomerados industriais. Distinto do

colonialismo do século XVI, essa nova modalidade de exploração pretendia fazer

das áreas dominadas grandes mercados de consumo de seus bens industrializados

e, ao mesmo tempo, polos de fornecimento de matéria-prima. Além disso, o

grande crescimento da população europeia fez da dominação afro-asiática uma

alternativa frente ao excedente populacional da Europa que, no século XIX, que

400

territoriais, por bens de consumo, por recursos naturais, e

consequentemente por poder, fatores associados com as unificações

de partes da Europa, como é o caso da Alemanha, que como

consequência cresceu de forma significativa, na economia,

tecnologia e como resultado na indústria, representando perigo

para a Inglaterra, que era tida como detentora da indústria, com

destaque na indústria naval.

Além destas questões, podemos somar o desejo de revanche da

França que havia perdido as regiões da Alsácia e Lorena (ricas em

recursos naturais, como carvão mineral) para a Alemanha, durante

o processo de unificação, além da questão dos Bálcãs que

envolviam disputas principalmente entre os Impérios Austro-

Húngaro e Russo pelo controle dos países na região. Portanto,

alianças em prol dos interesses europeus já haviam sido criadas

antes do conflito mundial, sendo apenas intensificadas durante o

processo da guerra, formando dois blocos, cujas principais nações

foram divididas entre Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Áustria-

Hungria), e a Tríplice Entente (Grã-Bretanha, França e Rússia),

além dos países aliados que foram incorporados aos blocos

conforme o conflito tornava-se mundial, pois ‚o conjunto desses

fatores explica o surgimento de uma nova expansão colonial que

determinou uma partilha do mundo e consequente rivalidade

econômica e política dos principais países industrializados‛

(WERNET, 1991, p. 12). Em 1915, a Itália mudou de bloco, em troca

de promessas inglesas de receber colônias alemãs na África, e

territórios ao norte da Itália sob o domínio austríaco.

À vista dos interesses econômicos, políticos, territoriais entre

outros, associados ao assassinato do arquiduque Francisco

abrigava mais de 400 milhões de pessoas. Apesar de contarem com grandes

espaços de dominação, o controle das regiões alvo da prática neocolonial

impulsionou um forte acirramento político entre as potências europeias. Os

monopólios comerciais almejados pelas grandes potências industriais fizeram do

século XIX um período marcado por fortes tensões políticas. Em consequência à

intensa disputa dos países europeus, o século XX abriu suas portas para o

primeiro conflito mundial da era contemporânea. Informações retiradas e

disponíveis em: http://brasilescola.uol.com.br/historiag/neocolonialismo.htm

401

Fernando e de sua esposa, eclodiram como resultado na Primeira

Guerra Mundial. Lembrando que a Europa recentemente havia

passado por intensos conflitos regionais, em prol de domínios

territoriais e unificações, como a alemã e a italiana. Dessa forma,

pretendemos demonstrar como a questão das unificações na

Europa representam além da economia, o sentimento de

pertencimento, que acompanhou as jovens gerações de filhos de

europeus e descendentes para o além-mar, em nosso estudo,

trataremos em específico a questão da Itália, já que diferente da

Alemanha não prosperou conforme o esperado após a unificação,

levando muitas famílias a emigrarem com destino a América

Latina, e em específico da região italiana do Vêneto para o estado

brasileiro do Rio Grande do Sul, com ênfase durante o período de

1876-1901, que é considerado mais significativo em números de

imigrantes instalados na região.

Logo, percebe-se que de 1876 até 1914, ano que eclodiu o

grande conflito, havia se passado apenas 38 anos do início da saída,

em grande escala, de italianos da península. Ou seja, com uma

emigração tão recente e com sentimentos mal resolvidos, de

suposto pertencimento e/ou até mesmo como uma oportunidade

de crescimento social, levou um determinado número de jovens

filhos de italianos com moradia na América Latina a alcançar o

desejo de retorno a ‚p{tria mãe‛, participando como voluntários na

guerra. Além disso, é importante salientar que ‚a Alemanha e a

Itália em função da unificação política entraram por último na

corrida colonialista‛ (WERNET, 1991, p. 12). Dessa forma,

acreditamos que as unificações na Europa, além de alterarem o

mapa, também fizeram surgir diversos movimentos, de migrações

internas, além-mar, e até mesmo reconstruções de nacionalismos e

identidades culturais.

Contexto da unificação italiana

Além de inúmeros conflitos internos, a Itália lutava contra as

invasões francesa e espanhola. Inicialmente foram obrigados a

402

submissão da Espanha, entre 1559-1713, mas devido a Guerra da

Sucessão Espanhola, a Áustria passa a dominar parte do território

italiano. Ou seja, além das invasões espanholas e austríacas, e em

consequência das Guerras Napoleônicas, o norte e o centro da Itália

foram invadidos. Neste cenário é pertinente salientar que diversas

famílias de burgueses enriqueceram e/ou ampliaram

significativamente capital em função do comércio marítimo,

portanto, o território italiano era bombardeado tanto por invasões

estrangeiras, devido à proximidade fronteiriça e consequentemente

interesses em ampliação territorial de nações vizinhas, quanto pela

rivalidade entre as famílias de importantes comerciantes, que

disputavam espaço e capital, fazendo com que a Itália fosse

caracterizada por Estados rivais, já que estes grupos familiares

tornaram-se os principais ‚senhores de terras‛, e

consequentemente da economia.

Ainda, com o passar dos séculos e com a evolução da

tecnologia marítima, além da Itália, outras partes da Europa

passaram a aventurar-se em alto mar, mas focando em cruzar o

Atlântico, e assim competir economicamente com a Itália. Dessa

forma, a península inicia um processo de pauperização em relação

a população campesina, e consequentemente a proximidade

fronteiriça com outras nações permitiu diversas invasões e

domínios territoriais, especialmente na região do Vêneto. À vista

disso, suas repúblicas perderem a autonomia política, já que as

regiões italianas passaram a ser disputadas com maior intensidade,

‚na verdade, a península se tornou um território colonial das

potências Imperiais do continente‛ (CARNIERI, 2013 p. 26).

Referente a definição de fronteira, Lia Osório Machado, afirma que

‚a fronteira est{ orientada ‚para fora‛ (forças centrífugas),

enquanto os limites estão orientados ‚para dentro‛ (forças

centrípetas). A fronteira é considerada uma fonte de perigo ou

ameaça porque pode desenvolver interesses distintos aos do

governo central‛ (MACHADO, 1998). Assim, o contexto político

que definia a Europa anterior a Primeira Guerra Mundial já era de

disputas.

403

A posição de negação e resistência da população em aceitar a

dominação estrangeira, levou a ênfase e criação de um sentimento

nacionalista, fato que não ocorreu de imediato, até mesmo em

função do sentimento de pertencimento regional, mas para tanto,

iniciou-se um processo de ressurgimento das veias históricas,

trazidos a luz pela burguesia intelectual italiana do século XIX,

para assim, fomentar o discurso de nação, neste sentido dá-se

origem ao Risorgimento.

O movimento conhecido como Risorgimento, tinha como

objetivo unificar a Itália em prol da expulsão de um inimigo

comum, o Império Austríaco, para isso contou com o apoio da

França que havia perdido o domínio do território vêneto para a

Áustria, mas sob o comado da dinastia de Savoia4 que temia o

fortalecimento dos pensamentos republicanos e democráticos na

Itália. Assim, em 1866, a Itália recupera a região do Vêneto, e passa

a investir com grande ênfase no ideal do nacionalismo, ‚esse

processo de construção imagética dos pais da pátria, a qual ficará

marcada indelevelmente, terá forma e conteúdo voltado para a

educação popular – escola e exército-, fazendo parte de uma

multiplicidade de esforços para a formação patriótica e dinástica

dos jovens italianos‛ (BENEDUZI, 2011 p. 55).

A grande problemática em torno do sentimento nacionalista é

que a maioria dos contandini5, acostumados a inúmeras invasões

estrangeiras, empobrecidos e com costumes mesclados e próprios

4 Casa di Savoia, é uma das mais antigas famílias nobres europeias, presentes

desde o século X no território do Reino da Borgonha, onde depois fundou um

Ducado no século XV, e foram os responsáveis pela unificação italiana em 1870,

através da liderança e apoio político ao rei Vittorio Emanuelle II. 5 Poderia ser usado o termo camponês, o qual seria uma tradução possível ao

termo citado, porém decidiu-se manter o referido termo por pensar-se que o

mesmo empregava uma situação específica do camponês italiano de fins do século

XIX. Este trabalhador do campo que dividia a situação de pequeno proprietário e

trabalhador das grandes propriedades dos Signori (grande proprietário rural). Esta

explicação foi retirada da obra de Luís Fernando Beneduzi (2005) intitulada

‚Nostalgia, alegoria e restus: processos de desconstrução na elaboração identit{ria

vêneta no Rio Grande do Sul‛.

404

do Vêneto, viam com olhos desconfiados a imagem que estava

sendo criada em torno do rei Vittorio Emanuelle II6, chamado pelos

apoiadores da unificação italiana de ‚pai da p{tria‛.

Sabe-se que o Vêneto foi anexado oficialmente ao Reino da

Itália, em 1866, mas que este local engloba muitas particularidades

se comparada com as demais regiões da Itália recém unificada, pois

a República de Veneza, entre os séculos XV e XVI estendeu seus

limites por toda a região vêneta (Bérgamo, Bréscia e Mântua, na

Lombardia, e Udine, no Friuli). Em função da conquista de Veneza

pelas tropas de Napoleão em 1797, as dominações no território

dividiram-se entre franceses e austríacos, até a vitória final de

Vittorio Emanuelle II, proveniente da Casa de Savoia, que

instaurou a monarquia em toda península unificada. Então, com a

invasão da França a cidade de Veneza em 1797 partiu o território

do norte da Península Itálica com a Áustria até o ano de 1815,

quando o Império Habsburgo domina o Vêneto. Dessa forma de

1796 até 1865, foram mais de sessenta anos de contato com os

austríacos, de matriz germânica, portanto a mescla de costumes,

mesmo sendo com o ‚inimigo‛, era inevit{vel.

Após a anexação do Vêneto ao Reino (1866), Roma foi tomada

pelo rei (1870), assim a unificação da península fundou-se em um

único Estado7. Neste sentido é importante frisarmos que o então

Papa Pio IX, declarou-se prisioneiro voluntário do Estado italiano,

não aceitando as negociações com o rei, ou seja, a tomada de Roma

foi conflituosa e polêmica, pois ‚o Papa (...), consciente de sua

influência sobre os católicos italianos e desejando conservar o

poder da igreja (...) proibiu os católicos italianos de votarem nas

eleições do novo reino‛ (CARNIERI, 2013, p. 29). Essa situação

conflituosa é chamada de Questão Romana, sendo que os empasses

entre o governo italiano e a Igreja Católica que iniciaram

6 Ortografia de acordo com o escrito italiano. 7 A região do Vêneto está localizada no nordeste da Itália, sendo formada

atualmente por sete províncias: Belluno, Pádua, Rovigo, Treviso, Veneza (capital

da região), Verona e Vicenza.

405

oficialmente em 1861, encerraram somente no ano de 1929, através

do Tratado de Latrão8, durante o governo de Benito Mussolini9.

Portanto, a unificação italiana se tornava inviável perante a

resistência do Papa que contou com o apoio militar francês, ou seja,

a França jogava duplamente nesta situação, conforme os interesses

políticos, pois apoiou ‚os Savoia‛ na expulsão dos austríacos do

território Vêneto, já que haviam perdido espaço, mas em

contrapartida, pela pressão dos católicos franceses, passam a apoiar

o Papa Pio IX na defesa de Roma. Desse modo, a anexação de

Roma com o Reino da Itália ocorre somente em 1870, em função da

retirada das tropas francesas em solo italiano, neste período ocorria

a unificação alemã, assim os povos germânicos liderados pelo

Reino da Prússia declaravam guerra à França.

8 O Tratado de Latrão, "Tratado de Santa Sé" ou "Tratado de Roma-Santa Sé" é um

dos tratos feitos em 1929 entre o Reino de Itália e a Santa Sé, dando fim à "Questão

Romana". Os tratos consistiam em três documentos: Um reconhecimento total da

soberania da Santa Sé no estado do Vaticano, uma concordata regulando a posição

da religião católica no Estado, uma convenção financeira acordando a liquidação

definitiva das reivindicações da Santa Sé por suas perdas territoriais (Estados

Pontifícios) e de propriedade. 9 Benito Amilcare Andrea Mussolini (Predappio, 29 de julho de 1883 —

Mezzegra, 28 de abril de 1945), foi um político italiano que liderou o Partido

Nacional Fascista e é creditado como sendo uma das figuras-chave na criação

do fascismo. Tornou-se o primeiro-ministro da Itália em 1922 e começou a usar o

título Il Duce desde 1925. Mussolini também criou e sustentou a patente militar

suprema de Primeiro Marechal do Império, junto com o rei Vítor Emanuel III da

Itália, quem deu-lhe o título, tendo controle supremo sobre as forças armadas da

Itália. Mussolini permaneceu no poder até ser substituído em 1943; por um curto

período, até a sua morte em 1945, ele foi o líder da República Social Italiana.

406

Figura 1- Reino da Itália antes e pós unificação

Fonte: Fazendo História Nova. Disponível em:

<http://fazendohistorianova.blogspot.com.br/2014/09/congresso-de-viena-e unificacoes.html>.

Acesso em: 19 abr. 2017.

Por conseguinte, após a anexação, era de extrema urgência e

necessidade trabalhar com a questão do pertencimento,

principalmente pelo posicionamento contrário do Papa, que

poderia ser um divisor de águas em um território cuja maioria da

população era formada por católicos, e que em função das invasões

estrangeiras, nem sempre teve liberdade em suas crenças religiosas.

Assim, os intelectuais do período buscavam explanar sobre a

ressurreição da Itália, ou seja, tentavam despertar de maneiras

distintas o sentimento nacionalista, já que para os vênetos era

importante sentirem-se ‚donos‛ de seu território, além da

expectativa em torno dos novos valores dos impostos, que eram

abusivos durante a dominação austríaca.

A construção do nacionalismo

Para acender a chama nacionalista italiana era preciso pensar

além dos escritos intelectuais, era necessário inflamar o povo

através de ‚instrumentos‛ de identificação, assim, muito passou a

ser investido em monumentos em praças, com bustos de

integrantes da Casa de Savoia, principalmente do rei Vittorio

Emanuelle, e dos percursores da unificação italiana, os líderes: -

407

Giuseppe Manzini (1805-1872); Camilo Benso (o conde de Cavour,

1810-1861) e Giuseppe Garibaldi (1807-1882), este último de suma

importância para o processo de construção de uma identidade

italiana e nacionalista, pois provinha das camadas mais baixas da

sociedade, fator que despertava a identificação e confiança de

grande leva dos cidadãos venezianos.

Assim, deu-se início a lenta construção do nacionalismo e

consequentemente de uma identidade italiana. Para Gellner (1983,

p. 169), ‚o nacionalismo não é o despertar das nações |

autoconsciência; ele inventa nações onde elas não existem‛.

Portanto, as lideranças italianas passaram a trabalhar na construção

de laços de identidade com as populações regionais, já que para os

contadini a identificação era com a região, com seu paese10 e não com

a nação. Neste sentido Bourdieu defende que;

a procura dos critérios objetivos de identidade regional ou étnica

não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios

(por exemplo, a língua, o dialeto ou o sotaque) são objetos de

representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de

apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os

agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de

representações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnas,

etc.), ou em atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica

que têm em vista determinar a representação mental que os outros

podem ter destas propriedades e dos seus portadores (BOURDIEU,

2012, p. 12).

Existe um significativo debate de importantes estudiosos em

prol do nacionalismo, podemos citar Hobsbawn (2008), e sua

abordagem em torno da representação do nacional, onde acredita

que as tradições são inventadas pelas elites para justificar a

importância das nações. Ainda, Stuart Hall (2011), que defende que

as alterações estruturais transformaram as sociedades do século

10 Paese não é apenas a vila, ou a localidade, mas um conjunto de relações afetivas,

plena de significados imagéticos e relacionais, utilizados na Itália. (BENEDUZZI,

2011, p. 15).

408

XIX, através do nacionalismo cívico ou ético, relacionados com a

globalização.

Também Guibernau (1997), acredita que o nacionalismo é ‚um

sentimento relacionado a uma pátria, uma língua, ideais, valores e

tradições comuns, e também com a identificação de um grupo de

símbolos (uma bandeira, uma determinada canção, peça de música

ou projeto) que o definam como ‚diferente‛ dos outros‛

(GUIBERNAU, 1997, p. 52). Enquanto que para Smith (1997), nas

sociedades não ocidentais de formação das nações, o elemento

nacionalista assume maior import}ncia, ‚essa import}ncia, e daí o

papel da ‚invenção‛ e da ‚construção‛ na formação da identidade

nacional, varia consideravelmente, dependendo em grande parte

da configuração étnica local preexistente‛ (SMITH, 1997, p. 127).

De qualquer forma, e independente da opinião sobre o conceito

nacionalista, todos os estudiosos concordam com o significado

político em torno do tema - nação. Partindo deste princípio, de que

existe uma relação tênue entre o nacionalismo e o regionalismo,

Beneduzi (2011), defende que, ‚quando se est{ falando sobre a

ideia de nação, não se quer dizer que na Itália havia de fato uma

coesão, uma comunidade nacional ligada por profundos vínculos

de italianidade‛ (BENEDUZI, 2011, p. 53).

Portanto, a política, ou a maneira de fazer política, era

responsável pelas novas resoluções e formas de sentir-se um

italiano, conforme as palavras de Massimo d`Azeglio, ‚os italianos

são feitos‛. Assim, acreditamos que o método do discurso, foi

fundamental para fomentar o sentimento nacionalista, afinal a luta

pela unificação era além de costumes e sentimentos de pertença,

era por esperança de melhoria de vida, e até mesmo de

sobrevivência.

Entre os ideais do movimento em prol da unificação, estavam a

conquista da liberdade política na Itália, impulsionada pela

burguesia que aspirava limitar os poderes da monarquia

absolutista, - enquanto a população camponesa empobrecia- além

dos democratas, como era o caso de Garibaldi que pretendia um

maior envolvimento da população em questões políticas, somado

409

ao desejo de liberdade das forças estrangeiras, principalmente em

torno das regiões italianas fronteiriças, que fomentaram invasões

estrangeiras distintas, como exemplo, a invasão austríaca no norte,

e espanhola na parte sul da Itália.

Após todo contexto em prol dos movimentos do risorgimento e

da unificação italiana, que envolveu diversos setores: político,

administrativo, cultural, intelectual e civil, o quadro a partir de

1870 estava formado. Todas as mesclas culturais e fronteiriças,

assimiladas pelas invasões estrangeiras foram trabalhadas no

decorrer dos anos para serem no mínimo amenizadas, mas para a

população vêneta, o que mais atormentava não eram os múltiplos e

mistos hábitos, mas sim, o rumo político e consequentemente

econômico que a Itália iria tomar.

Mesmo após a unificação, não houve melhoria significativa da

economia. Ao invés dos impostos abusivos pagos aos ‚inimigos‛, a

partir de então, seriam pagos a monarquia e aos senhores feudais,

ou seja, os contandini da grande Itália continuavam a mercê da

política, do feudalismo11 e da crise econômica. Somente mudaram

os impositores, as obrigações de pagamentos, o alto valor das

terras, a fraca dieta alimentar, prosseguiam. Em vista disso, e de

uma série de outros fatores associados, os italianos, iniciam sua

própria revolução – abandonar o seu paese, em busca de melhorias

condições de vida, que não foram conquistadas nem mesmo após a

unificação, dando início a grande emigração para o Brasil, em

específico para o Rio Grande do Sul.

A emigração vêneta para o Rio Grande do Sul e o retorno para a

guerra

O maior fluxo emigratório para o Rio Grande do Sul abrange o

período entre 1876 e 1901, em prol do frágil quadro econômico e

político da Itália, e associado a propaganda imigracionista para o

11 Apesar do período estudado ser posterior a Idade Média, a Península Itálica

permanecia em um sistema semelhante ao feudal- estes senhores também eram

conhecidos como ‚i Signori”.

410

Brasil, onde era prometido principalmente terra para os imigrantes

instalados no estado sulista. Porém, os imigrantes que chegaram ao

Brasil após 1854, em nosso estudo a maioria vênetos, tiveram que

pagar pelas terras adquiridas, ainda que, no ano de 1867 tivesse

sido criado um novo regulamento que estimulava a emigração

mediante algumas vantagens, entre elas o pagamento da terra que

poderia ser feita em até dez anos, a gratuidade da viagem do Rio

de Janeiro até o lote colonial, além de auxílio para os recém-

chegados e assistência médica e religiosa por doze anos. Em função

do grande número de imigrantes que direcionava-se para a região

Sul, o acordo foi suspenso e manteve-se apenas o crédito para

aquisição de terras, e 15 dias de trabalho para a abertura de

estradas.

Portanto, os interesses relativos à emigração para o Brasil

possuíam características distintas. Em São Paulo, a chegada de

imigrantes italianos representava a substituição gradual da mão de

obra escrava nas lavouras de café. Já no Rio Grande do Sul, o

processo foi colonizatório, ou seja, com o objetivo de formar, em

pequenos lotes, colônias agrícolas essenciais para a produção de

gêneros alimentícios, além da defesa da fronteira, e do

‚branqueamento‛ da população.

Á vista disso, fica evidente que o chamamento da propaganda

imigracionista para o Brasil, era pensado com interesses

específicos. Logo, os imigrantes com melhores condições

financeiras foram encaminhados para o sul do país, portanto,

apesar de pobres, os imigrantes provindos da República de Veneza

ainda possuíam melhores condições de vida do que o restante que

se instalou nos cafezais do estado paulista.

O maior desejo dos emigrados era: ser dono da sua terra. Vale

salientar outros fatores que norteavam a vida dos venezianos, entre

eles: a religião e o desejo de sua prática livre, de uma identidade

cultural, um sentir-se pertencer, e o acúmulo de capital. Ambições

comuns para a maioria dos povos, mas praticamente impossíveis

de serem realizadas na Itália da época, pois, uma parcela

significativa dos imigrantes era pobre.

411

Esses imigrantes viram na Mérica a oportunidade não somente

de melhorar de vida, mas também de reconstruir o cotidiano

deixado para trás. Assim, após instalarem-se no Rio Grande do Sul,

mesclaram seus costumes e idiomas das diferentes regiões da Itália,

principalmente do Vêneto, com outras culturas. Ou seja, mesmo

partindo de uma Itália unificada, todo o processo de nacionalismo,

regionalismo e sentimento de pertença, ocorria de forma lenta,

portanto, defendemos que ainda no período de 1860 até 1900,

período de maior emigração para o Brasil, os imigrantes não se

sentiam ligados a Itália, mas sim a sua província. Este fator,

associado a oportunidade de uma nova vida ítala no RS, fomentou

a mescla de novos costumes, dando origem ao que é conhecido

atualmente como uma cultura do talian12.

É interessante que mesmo atingindo estabilidade econômica no

Brasil, os descendentes das famílias italianas, evidenciam ‚o amor

pela It{lia‛, destacando nas festas de família, as cores de sua

bandeira na decoração, e as cantigas e costumes italianos, como o

vinho, em uma mescla com o tradicionalismo rio-grandense, como

o churrasco e o local das confraternizações, por exemplo, os

CTGs13. Isto é apenas uma amostra dessa miscelânea de adaptações

de que os imigrantes e seus descendentes fazem uso. Há

geralmente nestes encontros familiares, a bandeira da Itália em

evidência, mas deixando de lado simbologias específicas da região

do Vêneto, ou das suas províncias, locais de partida dos patriarcas

das grandes famílias. Para o historiador italiano Giovanni Levi.

A identidade italiana no Rio Grande do Sul não existe, é uma mescla

de loucuras. O problema é que não é a mesma loucura, são muitas

12 O Talian é um idioma, também chamado de dialeto, e assim é denominado

porque é a forma como uma língua é realizada em uma região específica,

configurando-se, então, como uma variedade linguística. Ele é falado

principalmente pelos imigrantes italianos e seus descendentes no sul do Brasil e

consiste na mistura do italiano gramatical com palavras do português brasileiro,

englobando também um misto de costumes, portanto também é chamado de

cultura do talian. 13 Centro de tradição gaúcha.

412

loucuras. Se aceitarmos as diferenças vamos fazer a pergunta: Porque

alguém faz referência à identidade? Um motivo é para discriminar o

outro. Outra pergunta: porque fazer parte de uma identidade? Ela

serve para nos diferenciar dos outros, dizendo que somos diferentes

(LEVI, 2015, p. 254).

A busca por uma suposta identidade ítala no Rio Grande do

Sul é muito comum, pois a herança imaterial que foi transmitida

por gerações é o país de partida, mesmo que os imigrantes italianos

se identificassem mais com a província do que com o país, o foco

central da memória imigrante é a Itália, e o sentimento que por

serem descendentes de italianos ainda fazem parte da Europa.

Como prova disso, temos o alto índice em busca da cidadania

italiana.

Neste sentido, os imigrantes saíram de uma pátria recém

unificada, onde estavam sendo trabalhadas algumas questões

importantes, como o sentimento de pertencimento nacional,

adaptações de idiomas e de culturas distintas, principalmente em

prol das fronteiras, e cujo o desejo girava em torno da possibilidade

na aquisição de terras. Portanto, criou-se uma cultura ítala no Rio

Grande do Sul, onde os filhos destes imigrantes italianos também

sentiam-se mais europeus do que brasileiros, mas a questão é que

esta Itália de partida dos antepassados foi modificada durante as

décadas posteriores a unificação, os sentimentos de italianidade

foram construídos, e os emigrantes muitas vezes eram vistos pelos

compatriotas que permaneceram na Europa com olhos de

desconfiança e até mesmo de abandono.

À vista disso, em um curto período da unificação oficial

italiana (1870), até o encerramento da grande leva da emigração

italiana para o Brasil (1900), até o eclodir da Primeira Guerra

Mundial (1914), foram apenas alguns anos, mas tempo suficiente

para descendentes de italianos aderirem a guerra ao lado da Itália,

mesmo não tendo obrigação legal para tal ato. Em contraponto,

partindo do princípio de que os italianos partiram da Europa em

busca de melhores condições de vida, e também como uma forma

413

de revolução, já que a unificação não trouxe melhorias

significativas para o povo, e esclarecendo que a maioria dos

italianos no exterior não aderiu a guerra, sendo a Itália considerada

como a p{tria ‚matrigna‛, ou seja, a madrasta que negligenciou os

filhos em dificuldade, que agora, tão distantes, nem mesmo

consideraram a possibilidade de retornar para defender o reino do

qual se sentiam vítimas sacrificadas‛ (RUGGIERO, 2016, p. 302).

Fica evidente que o sentimento nacionalista dos jovens

descendentes de italianos foi impulsionado por outros fatores.

A decisão foi motivada por uma série de outras questões, entre as

quais a grande curiosidade e a possibilidade única de poder visitar

‚gratuitamente‛ os lugares de origem, fortemente idealizados nos

anos da juventude. Como se podia ler já no edital oficial da primeira

chamada enviado por Roma e divulgado em todos os consulados e

vice-consulados, o governo italiano se comprometia com o

pagamento da viagem de ida e volta, além da concessão de uma

anistia a ‚todos os desertores e aos que deixaram de servir quando

chamados para o serviço obrigatório‛, e de um auxílio ‚|s famílias

dos reservistas indigentes que sigam para a It{lia‛ – Correio do Povo,

1915 b (RUGGIERO, 2016, p. 304).

Neste sentido, o estudo da Primeira Guerra Mundial, abre

brecha para analisarmos o contexto da guerra por outro viés.

Apesar da aquisição de terras no Brasil, a maior parte dos

imigrantes continuaram por décadas a sofrer com impostos e

pobreza, quando fala-se em colonização é preciso pensar em luta,

principalmente de sobrevivência em outro país, que pouca ou nada

em estrutura oferecia para esses imigrantes, sendo que no primeiro

conflito mundial os filhos destes europeus partem para a Europa

com o intuito de participar da guerra. Essa dualidade torna-se

interessante, pois se pensarmos no contexto italiano da partida, do

descontentamento da população mesmo após a unificação, não

encontra-se sentido para filhos de europeus nascidos no Brasil

aderirem a guerra. Em contrapartida, o sentimento com o qual as

famílias vivenciavam a Itália afetou o desejo e curiosidade em

414

conhecer a pátria de origem, associado a propaganda das mídias, e

até mesmo vendo a emigração de retorno como uma nova

oportunidade de melhoria sócio econômica, levou um número

significativo de jovens a aderirem a guerra.

Antônio de Ruggiero, relata a trajetória de Olyntho Sanmartin,

filho de italianos, que participou como voluntário de guerra, aos 18

anos de idade, partindo da cidade de Santa Maria da Boca do

Monte, com destino a Itália. Sanmartin escreveu um livro

autobiográfico contando sobre o desejo de conhecer a Europa, e a

inveja que viria a causar em seus amigos conterrâneos que

preferiram ficar no Brasil a participar da guerra. Como o país

aderiu a guerra somente em 23 de junho de 1915, o rapaz

acreditava que seria um conflito de curta duração, e que em

seguida a sua chegada na Europa o conflito terminaria. Encantado,

‚lembrava a ótima hospitalidade recebida em Porto Alegre, |s

custas do governo italiano, em um bom hotel com apetitosos

manjares, frutas, cigarros, bebidas‛ (SANMARTIN, 1997 apud

RUGGIERO, 2016, p. 303), mas esta suposta ‚alegria‛ durou

somente até o início da viagem, onde a bordo do transatlântico

‚Cavour‛, procedente de Buenos Aires, o jovem e outros milhares

de reservistas italianos em péssimas condições de viagem

percebem o descaso por parte do Estado italiano.

A decepção percebida ao longo da travessia em um navio sujo, pouco

confortável e cheio de parasitas, se confirmou na hora da sua chegada

ao porto de Gênova, onde nenhuma multidão estava esperando

aqueles jovens tratados como heróis em terra brasileira. Não havia as

bandeiras tricolores, as fanfarras, a comida, as frutas, os cigarros e as

bebidas que as autoridades ofereciam do outro lado do oceano à

véspera da partida. Pelo contrário, Olyntho percebeu um clima de

pesado de difidência e hostilidade (...). A maioria dos soldados

continuavam na ilusão de que tudo ainda era pago por conta do

governo. Com pouco dinheiro no bolso, muitos deles aproveitaram a

ocasião para comer em abundância antes de descobrir que nada era

de graça (...) um deles na hora de acertar a conta desapareceu sem

pagar. Olyntho, que por acaso tinha sentado ao seu lado, apesar de

415

nem conhecer o camarada, teve que quitar a dívida (...). Esforçou-se

em reivindicar as suas razões, articulando com dificuldade um

discurso em italiano, a sua segunda língua, aprendida em casa e

provavelmente ainda viciada pela influência do dialeto Vêneto, mas

não encontrou a compreensão dos concidadãos que ele defenderia no

conflito (RUGGIERO, 2016, p. 305).

Ruggiero (2016) prossegue relatando através da análise

biográfica de Olyntho Sanmartin, sobre a decepção do brasileiro

em terras italianas, o difícil conflito na região de fronteira, o frio, o

forte treinamento militar, o horror das trincheiras, e a hostilidade

italiana para com os voluntários descendentes na guerra. O rapaz

possivelmente acreditara que haveria no mínimo gratidão pelo ato

de defender uma pátria que era sua somente no imaginário – ‚mais

uma vez sonhei em regressar, fugir dessa terra mal-agradecida,

ingrata, sem consciência e sem honestidade internacional. E

carreguei comigo, daquela hora em diante o peso dessa repulsa‛

(SANMARTIN, 1957, apud RUGGIERO, 2016, p. 305).

Através dessa análise nota-se como a Itália de partida dos

imigrantes e a herança imaterial passada de pai para filho fez com

que muitos jovens partissem com destino a ‚Grande Guerra‛,

confiantes de que faziam parte da Europa, mas as duras penas,

percebem que esta não era a realidade que os aguardava.

Quando a guerra eclodiu, eram milhões os italianos expatriados e

descendentes em todos os lugares do mundo. Deles, cerca de 1.200,00

foram chamados para lutarem na pátria de origem, pois possuíam os

requisitos legais para fazê-lo. Desse total recrutáveis, só 304 mil

responderam positivamente (...). No caso brasileiro, é difícil

estabelecer um número exato de repatriamentos, mas com uma boa

margem de aproximação pode-se dizer que foram em torno de 12 mil

os jovens que se apresentaram às armas, entre voluntários e

convocados, pouco mais de 10% do total. A grande maioria- quase

dois terços- provinha do estado de São Paulo. No Rio Grande do Sul

foram aproximadamente 4 mil os convocados, e atenderam

positivamente entre 400 e 500 indivíduos, somando os compulsórios e

os voluntários (RUGGIERO, 2016, p. 302).

416

Acredita-se que a questão do voluntariado para guerra

também foi influenciada pelos jornais e revistas de caráter

patriótico, que buscavam enaltecer a pátria de origem. Portanto,

apesar do baixo número de jovens – se comparado com os registros

de italianos morando fora do país- terem respondido a convocação,

ainda é significativa a participação de milhares na Primeira Guerra

Mundial. Portanto, fica evidente que a origem da Itália conhecida

pelos descendentes, mesmo recém unificada, é da Itália ainda se

adaptando a uma nação, dessa forma, os costumes, crenças e

hábitos encontrados pelos soldados que aderiram a guerra eram

apenas resquícios daquilo que conheciam como a pátria dos pais,

‚ligados como eram aos regionalismos e localismos da recém

unificada pátria de origem, amadureceram no exterior uma

paradoxal nostalgia pelo ‚amor | p{tria‛ (FRANZINA, 2004, p.

242).

Em função de problemas de saúde, Olyntho Sanmartin é

liberado da guerra antes do final, mesmo assim, não permanece na

Itália, retorna ao Brasil, que descreve como sendo este o seu país.

Logo, a emigração de retorno a pátria de origem também torna-se

frustrada, pois o imaginário que se constrói é da Itália descrita

pelos antepassados, em que muito pouco, ou nada, se assemelha a

Itália consolidada na pós unificação. Assim, vive-se uma dualidade

e/imigratória, de fazer parte de uma país ainda vivo no imagético

das famílias, onde sentem-se pertencentes, e em contrapartida a

frustração vivenciada por aqueles que voltaram a Europa, mas não

se adaptando, retornam para o Brasil.

Desfecho da ‚Grande Guerra‛

A supremacia econômica e política que a Europa exercia sobre

o mundo entrou em declínio a partir deste conflito. Conforme o

comentado, alguns fatores além da morte do herdeiro do Império

Austro-Húngaro e sua esposa, impulsionaram a Primeira Guerra

Mundial, entre eles, conforme explica Wernet (1991), destacamos as

principais tensões entre os países.

417

_ Anglo-germânica: motivada pelo desenvolvimento

econômico da Alemanha, devido a agressiva política externa

liderada por Otto Von Bismarck, chanceler do Império de 1871 a

1890, responsável por compor uma série de alianças diplomáticas,

voltadas principalmente para o Leste europeu, colocando a

Alemanha no centro das relações europeias. Além disso, o

Imperador Guilherme II criou a maior frota naval de guerra do

continente, com o objetivo de uma futura disputa com a Inglaterra,

além de apoiar o Império Austro-Húngaro em função do interesse

sobre os Bálcãs.

_ Franco-alemã: onde aconteciam conflitos em função da

Alemanha querer isolar a França, e conquistar a Alsácia e Lorena -

ricas em recursos naturais - durante o processo de unificação do

país, e ainda;

- Pangermanismo: união dos povos germânicos na Europa

central;

-Pan-eslavismo: a Rússia entrava em ‚defesa‛ dos povos

eslavos, e do revanchismo, a França tinha como principal objetivo

reaver a região da Alsácia e Lorena (WERNET, 1991).

Além desses fatores que impulsionaram a guerra, podemos

somar - a crise dos Bálcãs em 1808, onde a Áustria anexou a região

da Bósnia-Herzegovina, afetando os interesses da Sérvia e da

Rússia, desencadeando o movimento nacionalista sérvio, que

lutava pela independência da Sérvia, tendo como destaque o grupo

conhecido como Mão Negra, cujo integrante foi responsável pela

morte do herdeiro ao Império Austro-Húngaro. Portanto, com as

alianças formadas, dava-se início ao conflito com a pretensão que

fosse de curta duração, mas o que ocorreu foi o contrário, passando

por etapas como:

- Guerra dos movimentos: 1914-1915, com destaque a

Alemanha que invade a Bélgica para penetrar em solo francês;

-Guerra das trincheiras: 1915-1917, onde a Itália troca de lado,

fazendo parte da Entente;

418

-Entrada dos Estados Unidos da América: em 1917,

‚justificada‛ pelos altos investimentos realizados com a Inglaterra

e a França.

Dois principais acontecimentos foram decisivos para o término

da guerra. A entrada dos EUA ao lado da Entente, em abril de

1917, e a retirada da Rússia, em dezembro de 1917, devido a

revolução em curso no país que derrubou o czar Nicolau II. Desta

forma, os bolcheviques passaram a liderar a Rússia que

enfraquecida não retorna a guerra, assinando o Tratado de Brest-

Litovski.

Assim, com os Estados Unidos ao lado da Entente, e com a

chegada de mais de um milhão de soldados, além da ajuda

complementar de países da América Latina, levados a guerra em

função da pressão americana, fez com que os aliados da Alemanha

fossem derrotados. Wojciech Skrzatek, destaca:

As vitórias dos aliados fizeram com que no final de setembro o

comando alemão começasse a exigir a imediata conclusão da paz com

base nos 14 pontos do presidente dos EUA Woodrow Wilson (1856-

1924). As negociações iniciadas pelo governo alemão com o objetivo

de assinar o armistício coincidiram também no tempo com os

acontecimentos revolucionários na Alemanha, que levaram à

abdicação, no dia 9 de novembro, do imperador Guilherme II e ao

final do II Reich Alemão. Já dois dias depois (...) foi assinado o

armistício entre os aliados e a Alemanha (SKRZATEK, 2014, p. 289).

Portanto, com a derrota da Tríplice Aliança, foi assinado o

Tratado de Versalhes, ‚cujas condições, impostas aos vencidos,

deviam evitar a eclosão de um novo conflito em escala mundial, e

aos vencedores dar a garantia de governar o mundo‛ (SKRZATEK,

2014, p. 289). As duras cláusulas do Tratado de Versalhes alteraram

ainda mais o mapa da Europa, sendo as principais:

A Alemanha deveria entregar a Alsácia Lorena à França; Eupen e

Malmedy à Bélgica; a parte setentrional de Schleswig Holstein à

Dinarmarca e largos trechos da Pomerânia e da Prússia Oriental à

419

Polônia. As minas de carvão da região do Sarre seriam cedidas à

França que poderia explorá-las durante quinze anos; a Prússia

oriental seria separada do resto da Alemanha pelo ‚corredor

polonês‛, que daria acesso ao mar B{ltico (para os poloneses) via

Dantzig que seria transformada em numa cidade livre sob o controle

da Liga das Nações14; a Alemanha perderia todas as suas colônias na

África, Ásia e Oceania. As cláusulas militares eram as seguintes: o

exército alemão seria reduzido a um contingente máximo de cem mil

homens- seria um exército profissional; a Alemanha não poderia

possuir armamento estratégico como forças aéreas, canhões pesados e

submarinos. A frota alemã deveria ser entregue aos aliados. A

margem esquerda do rio Reno seria desmilitarizada (WERNET, 1991,

p. 56).

Além dessas cláusulas, haviam outras que determinavam que a

Alemanha teria sido respons{vel pela ‚eclosão da Primeira Guerra

Mundial, assumindo totalmente os prejuízos que a guerra causara,

enquanto que o bloco dos vencedores impôs pesadas indenizações

a Alemanha de guerra, onde o valor seria fixado em 33 bilhões‛

(WERNET, 1991). Ainda, seguiram outros tratados ao de Versalhes,

o Império Austro-Húngaro e o Império Turco foram

desmembrados, a Bulgária também perdeu territórios, assim como

foram criados novos Estados que separavam a Rússia socialista da

Europa capitalista. Enquanto a Itália que trocou de bloco e brigava

por territórios com a Áustria desde tempos remotos acabou por

receber;

O Trieste, o Tirol do Sul e a península da Ístria. Além disso, o Império

Austro-Húngaro foi desmembrado, formando a Hungria, a

Tchecoslováquia e a Iugoslávia. Outra parte do território do Império

Austro-Húngaro foi para a Polônia. A República da Áustria tornou-se

um pequeno país sem acesso ao mar (WERNET, 1991, p. 58).

14 Em 1919 por iniciativa dos países vencedores da Primeira Guerra, foi criada a

Liga das Nações, que tratava-se de uma organização internacional, cujo papel

principal seria o de assegurar a paz, mas conforme ocorrido no cenário do pós

Primeira Guerra Mundial, a sociedade das nações foi falha.

420

Figura 2: Europa após 1918

Fonte: LEONE, Alba Rosa. Orientarsi nella storia. Milão: RCS Libri e Grandi Opere, 1995.

Por conseguinte, os EUA, cujo presidente era Woodrow

Wilson, não concordando com os termos do Tratado de Versalhes,

opta por uma política de isolamento no pós-guerra. O tratado de

Versalhes e outros que foram feitos após o grande conflito,

fomentaram o espírito revanchista, em especial da Alemanha,

portanto o documento que ironicamente também é chamado de

tratado de paz, impulsionou as motivações para a Segunda Guerra

Mundial (1939-1945), fazendo com que novamente o mundo

vivesse os horrores da guerra.

Considerações finais

Procuramos, a grosso modo, demonstrar que a Europa poucos

anos antes da Primeira Guerra mundial passara por processos de

unificações, com destaque para a Alemanha que cresceu

significativamente neste período, e em contraponto a Itália, que

permanecia em um sistema de escassez econômica, como

421

consequência, milhares de imigrantes italianos partem da pátria

com destino ao Brasil, em específico da região do Vêneto para o Rio

Grande do Sul. Neste sentido, é importante frisarmos que a

emigração alemã para o estado mais meridional do país ocorreu em

massa, mas em períodos distintos da italiana. Os emigrantes

alemães, em número mais significativo, partiram para a América

Latina, e outras partes do globo em um período anterior a

unificação alemã, e também, de forma tardia, após a Primeira

Guerra Mundial, por medo de um novo conflito futuro, já que o

sentimento de revanche sempre foi forte naquele país.

Ainda, buscamos explanar sobre a questão de sentimentos de

pertencimento e nacionalismo, cujos conflitos regionais e/ou

mundiais podem despertar nos imigrantes, pois, uma leva

significativa de descendentes de italianos partiram do Brasil com

destino a guerra, tendo como motivações desde o espírito

aventureiro, a curiosidade em conhecer a pátria de origem dos

pais, e até mesmo, como uma oportunidade de melhoria e

crescimento sócio econômico. Em contrapartida ao sentimento de

pertencimento dos imigrantes italianos, foi a recepção na Itália,

onde encontraram além do cenário da guerra, a hostilidade e

pesado treinamento militar, portanto, percorrendo o caminho de

retorno ao Brasil. Assim, percebemos que os conflitos mundiais

também podem ser vistos como uma oportunidade de emigração

de retorno permanente, fato que para a maior parte dos descentes

de italianos não ocorreu, já que o imagético criado pelos filhos

destes italianos nascidos no Rio Grande do Sul, em nada se

assemelhava com o cenário encontrado.

Além disso, tratamos brevemente sobre as etapas da guerra, de

movimento e de trincheira, e as causas que fomentaram o grande

conflito. Portanto, a Alemanha tendo perdido o apoio da Itália, e

com seus aliados derrotados, principalmente com a entrada dos

EUA na guerra, ainda buscou lutar sozinha, mas devido à pressão

dos líderes junto ao governo alemão assinou o Tratado conhecido

como Versalhes, que impôs duras penas tanto no âmbito militar,

quanto territorial, com perda de cerca de 12% de território e 12% da

422

população, e consequentemente no que diz respeito a economia, a

política, e enfim, atingindo todos os setores da sociedade.

Por conseguinte, a Primeira Guerra Mundial, no plano

internacional, determinou o fim da hegemonia europeia, dando

espaço para os Estados Unidos, que conseguiu lucrar com o

conflito. Quanto a Alemanha, mesmo sendo obrigada a assumir

integralmente a culpa e arcar com os prejuízos em torno de 33

bilhões de dólares, motivada pelo desejo de revanche, e

consequentemente, este sentimento aflorou na Europa,

oportunizando ideologias totalitárias – como por exemplo, o

nazismo alemão e o fascismo italiano- eclodindo no mundo o

horror da Segunda Guerra Mundial.

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SMITH, A. D. A Identidade Nacional. Lisboa, Gradiva, 1997

424

425

A liga brasileira dos aliados e

a primeira guerra mundial

Pâmela Pongan1

Introdução

Já faz mais de 100 anos da Primeira Guerra mundial, a qual

desencadeou diversos reflexos, mudando mentes, corpos e espaços,

não apenas nos países que participaram de forma direta neste

conflito. Ao que se refere ao Brasil, único país sul-americano a

integrar o grupo de beligerantes, é pouco analisada em sua

historiografia sua participação bem como os impactos sofridos pelo

país entre os anos de 1914-1918. De modo geral, esses estudos

acerca da Grande Guerra e seus desdobramentos no Brasil se

concentram em suas consequências econômicas e políticas. Porém,

existem expressivas fontes históricas – sobretudo na imprensa –

para um estudo diversificado sobre este período, as quais podem

auxiliar de forma significativa na compreensão acerca dos impactos

da Primeira Guerra entre os diversos setores da sociedade

brasileira em tal período.

O presente trabalho busca analisar essas fontes com a

finalidade de perceber os impactos desse conflito para o Brasil.

Assim parte de uma pesquisa focada na atuação da Liga Brasileira

pelos Aliados, grupo este composto, em sua maioria, por

intelectuais brasileiros localizados no Rio de Janeiro, cujo cerne

inicial era divulgar a causa dos países da Entente no país. Ainda,

este trabalho busca perceber o desdobramento da guerra sobre a

visão dos intelectuais brasileiros, fazendo a análise de seus

discursos e posicionamentos, na busca de perceber suas posições.

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação de História em História Regional na

Universidade de Passo Fundo – PPGH/UPF. Bolsista PROSUP/CAPES. E-mail:

[email protected]

426

Para tal, utilizou-se da análise de fonte e materiais publicados na

imprensa fluminense do período.

Os artigos e as propagandas são de páginas dos jornais de

grande circulação à época. Na imprensa fluminense, ocorriam

assíduos debates, divergentes opiniões, seja em relação às ações da

referida entidade, bem como por discordâncias em relação aos

favoritismos evidentes nas análises da guerra feitas por seus

publicistas. Nesses escritos, tornava-se nítida a não existência de

uma homogeneidade, seja por parte dos leitores, ou por

colaboradores do período acerca do conflito europeu. Existindo

uma gama rica e variada de assuntos referentes aos reflexos da

Primeira Guerra Mundial no Brasil, o presente artigo pretende

contribuir na percepção de tais reflexos.

A imprensa brasileira a partir da Liga Brasileira dos Aliados

durante a Primeira Guerra Mundial

A Primeira Guerra Mundial, em todos os seus aspectos, foi

vista como um acontecimento único da história da humanidade,

pois o mundo modificou-se profundamente após seu fim. O

cenário político mundial passou a ser dividido entre derrotados e

vencedores, e ambos tendo que lidar com as consequências do

conflito. Os soldados, ao longo de todo o combate, lutavam pela

sobrevivência não somente sua, mas de todo seu país.

Este período refletiu em um impacto significativo sobre o

Brasil, principalmente no aspecto econômico, que sofreu

consequências como o baque das oligarquias cafeeiras e o estímulo

ao empenho da industrialização. Nesse período, a polícia nacional

sofria a adoção da República como modo de governo, pela elite

política e letrada com o intuito de atribuir um forte caráter

nacionalista. Na capital fluía o desejo de modernidade e progresso.

Nesse contexto, surgem a influência de alguns membros da elite

fluminense, esses atores político-culturais, os quais agiam nas duas

esferas, pois ocupavam cargos públicos, atuando assim na vida

427

política do país, simultaneamente ao exercício do papel de

criadores e mediadores culturais.

Nos debates intelectuais, ficava nítido o caráter extremista do

combate, abordando conceitos como barbárie, civilização e

nacionalidade, chegando a surgir comentários de que o conflito

representava o fim da civilização moderna. Ao longo de toda a

guerra, países acusavam seus oponentes de barbárie, buscando

denegrir a imagem do inimigo e ganhar a opinião pública,

justificando suas ações como tentativas de finalizar o conflito.

Cotidianamente, esses intelectuais expunham suas opiniões e

conclusões na imprensa através da publicação de livros, ou mesmo

através de conversas nas confeitarias. A noção de modernidade

compreendida por esses ‚intérpretes‛ baseava-se nas noções de

progresso, civilização e nacionalidade. O desencadear da Primeira

Guerra Mundial na Europa disponibilizou novos elementos para o

pensamento da construção da nacionalidade e da modernização

brasileira. Por meio da reflexão sobre o confronto europeu,

percebeu-se a eclosão de diferentes projetos de Brasil, constatados

nos embates intelectuais da imprensa fluminense.

Um exemplo é o Império Alemão, que foi diversas vezes

apresentado como uma nação de bárbaros, que visavam propagar a

irracionalidade e a escravidão pelo mundo; sendo assim, lutar

contra eles significava defender a humanidade e seu progresso. No

Jornal do Commércio, um artigo original do periódico inglês The

Spectator, deixa claro essa visão, afirmando que a destruição do

Reich é uma ação para alcançar a paz:

São porventura incapazes de ver que se não conquistarmos a

Alemanha, e por nossa indolência e humanitarismo doentio,

deixarmos que ela nos conquiste, terá triunfado a causa do mal? O

Universo, agrilhoado ele todo, será como uma vasta e apavorante

prisão para os inimigos do Kaiser, um lugar onde nenhum homem

poderá chamar sua a sua própria alma, um inferno sobre a terra, para

todos os que amam a luz e a liberdade. (Jornal do Commércio, 1916)

428

Os intelectuais do Brasil logo assumiram as discussões diante

do conflito na Europa, abordando todos os seus aspectos, mas

pendendo para o lado que traria vantagens ao país em relação às

potências mundiais. As opiniões diferiam entre os que defendiam a

união aos aliados, conhecidos como aliadófilos; outros visavam um

alinhamento com os alemães, chamados de germanófilos; e havia

ainda os que apoiavam a neutralidade.

Apesar das divergências no pensamento, os três grupos tinham

consciência que, independente do posicionamento do Brasil em

relação ao conflito, o país estava em um momento delicado e

decisivo de sua política internacional, mesclando interesses

mundiais com necessidades nacionais, assim como o

direcionamento escolhido seria crucial para seu papel no cenário

político internacional no pós-guerra.

O pensamento baseava-se em torno do posicionamento

brasileiro diante do conflito, e, por meio das conclusões

encontradas, expunha-se a cadeia reflexiva sobre o futuro nacional.

As discussões marcavam as páginas de periódicos cariocas, como o

Jornal do Brasil e o Jornal do Commércio, onde eram publicadas

colunas a respeito do conflito todos os dias, além de cartas

endereçadas aos jornais publicadas na íntegra. Assim, os

defensores da neutralidade viam ficar cada vez mais frágil essa

posição, diante das pressões internas e externas. Entretanto,

permaneciam combatendo os argumentos que defendiam a entrada

do país na guerra, sob acusações de falta de patriotismo, alegando

que somente a neutralidade era capaz de manter os interesses

brasileiros.

No Jornal do Commércio e no Jornal do Brasil, as notícias sobre

a guerra eram apresentadas de maneiras divergentes. A publicação

e as notícias sobre a guerra em ambos eram diárias. O Jornal do

Commércio expunha na primeira página as notícias referentes ao

conflito, na seção ‚Telegramas – A Guerra‛. Existia uma boa

quantia de notas curtas sobre as batalhas, algumas invasões, o

falecimento de comandantes, declarações de governos entre outros;

as declarações de opiniões, geralmente, faziam parte das seções

429

‚Gazetilha‛ e ‚Publicações a pedidos‛, respectivamente, na

segunda e últimas páginas, antecedendo as propagandas.

No Jornal do Brasil, por sua vez, as notícias sobre o confronto

eram expostas na segunda ou terceira página; declarações de

opiniões, em geral, eram expostas na seção ‚Notici{rios‛ ou mesmo

soltas em um emaranhado entre o meio e o final do número. Em

sua maioria, eram cartas e artigos endereçados às redações desses

jornais, anônimos, ou assinados, comentando a guerra, em alguns

momentos com o tom de indignação, e em outros com tom de

perplexidade, entretanto nunca deixavam de mencionar o Brasil, e

a perspectiva brasileira, na busca de extrair lições para o futuro

político, econômico e cultural da nação.

O grupo dos germanófilos alegava que, ao lado dos alemães, o

Brasil alcançaria o progresso técnico, pois para eles a Alemanha era

exemplo de renovação. Os aliadófilos, em contrapartida,

afirmavam que o país deveria entrar na guerra ao lado da Tríplice

Entente. Este grupo reunia jornalistas, políticos e escritores, em sua

maioria cariocas, admiradores da cultura francesa e a favor do

rompimento total do Brasil com a Alemanha.

Dentre os argumentos usualmente utilizados por esse grupo, estava a

ideia de oposição entre a civilização latina e a civilização germânica.

Desconsideravam qualquer elemento positivo vindo da cultura

germânica, ressaltando seus aspectos de conquista e devastação, sua

atitude predatória para com as demais, principalmente em relação à

civilização latina. Esses intelectuais invocavam a história para

corroborar os seus argumentos, procurando demonstrar como, desde

a Antiguidade, com o assalto do Império Romano pelas tribos

nômades, a civilização latina encontrava-se ameaçada pelo furor

germânico de conquista. A Alemanha, principal reduto desta cultura,

era vista como um país de bárbaros, arrebatada constantemente de

ímpetos dominadores que ameaçava a humanidade como um todo e

a civilização latina, em particular, buscando a sua completa

aniquilação. (PIRES, 2011, p.03)

430

Dentre algumas personalidades que o compunham estavam

Ruy Barbosa, Paulo Barreto, Graça Aranha e Olavo Bilac, que ‚*...+

segundo suas opiniões, representariam o verdadeiro ideal de

liberdade e democracia para o mundo, defendendo-o contra a

barb{rie germ}nica.‛ (PIRES, 2011, p.03). A partir deste princípio, a

Inglaterra e a França estavam lutando não por interesses

particulares, mas pela sobrevivência da humanidade civilizada e

latina. Assim, o pensamento brasileiro entrava em concordância

com o pensamento aliadófilo europeu, que defendia o

aniquilamento do Império Alemão, pois viam neste uma ameaça à

civilização e | liberdade. ‚Assim, o Brasil, enquanto pertencente |

cultura latina, deveria demonstrar apoio para com seus pares.‛

(PIRES, 2011, p.04)

Existia uma maior quantia de notícias referentes às ações da

Tríplice Entente, o que pode ser consequência de um contato maior

agências de notícias provenientes destes países, como por exemplo

a Agência Havas, com sede em Paris. Mesmo assim, ambos os

jornais se usavam de um tom da neutralidade em suas notícias,

respeitando, inicialmente a posição oficial do governo brasileiro. O

Ferro, fogo e ideias deveria ser espaço para a manifestação das

opiniões, porém era outro. Sua primeira página era deixada, e a

segunda e terceira era onde publicava-se sem nenhum destaque,

juntamente a outras temáticas, como casos políticos nacionais

resenhas de livros, ações tomadas pelo Congresso, dentre outras.

Desta forma, cada navio brasileiro atacado por submarinos

alemães era visto por estes intelectuais como uma ação que exigia

retaliações à altura por parte do governo brasileiro, cobrando isso

através de colunas publicadas em diversos jornais cariocas, e tendo

neste posicionamento uma forma de o Brasil mostrar solidez e não

se acovardar diante dos inimigos. Para eles, outra covardia era a

neutralidade. Se manter neutro era se omitir da responsabilidade

de proteger a liberdade do mundo, em prol de propósitos

econômicos. Alguns intelectuais chegavam a afirmar que a

neutralidade era sinônimo de consentir com interesses alemães,

431

conforme afirma Reis Carvalho, após um navio brasileiro ser

interceptado por submarinos alemães.

A hecatombe produzida pela inércia e tibieza dos governantes de

todos os países não é só um crime alemão, é também um crime dos

neutros. Quem cala, consente, já o disse a sabedoria popular. Pois

bem, os neutros calaram, os neutros consentiram. (CARVALHO,

1916, p.3 In: Jornal do Commércio)

Estes não poupavam críticas ao posicionamento político do

país no conflito, condenando abertamente a neutralidade, alegando

ser por medo de represálias alemãs. Graça Aranha, em um artigo

publicado no Jornal do Commércio, fala sobre isso:

Que é que nos retém em dar todo o nosso auxílio positivo aos

aliados? Os interesses!... Então, por consideração a alguns traficantes

boches das nossas grandes cidades e por consideração às colônias

alemãs esparsas em nosso território, mentiríamos o nosso passado,

renegaríamos o nosso ideal, repudiaríamos os nossos deveres para

com essa nobre civilização que nos foi dada no sangue dos nossos

antepassados europeus? (ARANHA, 1916, p.07)

Em 22 de janeiro de 1916, F. Mende de Almeida Junior publica

um artigo no Jornal do Commércio, defendendo que o governo de

Wenceslau Brás, ao não declarar apoio à Inglaterra e à França,

mostrou sua intimidação diante do Reich alemão.

O governo brasileiro julgou necessário desde o início da luta européia

em 1914 declarar que conservava uma atitude absolutamente neutra

entre os beligerantes. Isto é, o governo do Brasil, temendo represálias

comerciais, financeiras ou talvez mesmo materiais do Império

Germânico, não quis ter a coragem de afirmar a sua solidariedade ao

mundo moral, com os princípios de direito aos quais o seu

Embaixador em Haya em 1907, deu o apoio solene de sua assinatura.

(ALMEIDA, 1916, p.09)

432

Em relação aos germanófilos, os aliadófilos contestavam

duramente, defendendo que estes eram minoria na população

brasileira, atraídos, de maneira geral, pelo progresso econômico e a

cultura alemã. Diante dos germanófilos, F. Mendes de Almeida

Júnior fez a seguinte declaração:

Poucas foram as vozes dos que maravilhados pelo esplendor das

armaduras luzidias dos teutões, se deixaram iludir por tais

aparências e preferiam entoar hossanas em louvor das hordas que

iam conscientemente atacar e tentar destruir as mais belas

concepções da mentalidade humana [...]. O ouro germânico ou a

covardia moral entre os brasileiros uma meia dúzia de ovelhas

desgarradas: a ignorância determinou algumas deserções do bom

campo, e, umas e outras, para maior punição delas, tiveram para

chefiá-las elementos completamente estranhos à nossa

nacionalidade (ALMEIDA, 1916, p.09).

Os germanófilos eram acusados de renegar o amor e o orgulho

pela pátria em nome de vantagens econômicas particulares.

Visando combater as ideias propagadas por esse grupo, e

convencer a opinião pública, os aliadófilos promoveram diversas

mobilizações em prol dos aliados, organizando e estruturando

grupos espalhados pelo país, como por exemplo, a Liga pelos

Aliados, no Rio Grande do Sul, e o Comitê dos Aliados no Estado

da Bahia. Estes grupos eram compostos, em sua maioria, por

intelectuais, que organizavam propagandas positivas sobre os

aliados e criticavam os inimigos.

Entre estes grupos destaca-se a Liga Brasileira pelos Aliados ou

somente Liga Brasileira, fundada em 1915, no Rio de Janeiro, por

personalidades como Olavo Bilac, José Veríssimo e Nestor Victor,

Alberto de Oliveira, os senadores Paulo de Frontin e Artur

Azevedo, entre outros políticos e intelectuais fluminenses. ‚Tinha

como presidente honorário o senador Ruy Barbosa, e como

membro do Comitê Executivo e representante no exterior, Graça

Aranha. ‛ (PIRES, 2011, p.06).

433

Este grupo foi formado com o objetivo central de promover os

aliados diante a população brasileira, conquistando a simpatia do

público diante da causa. Seu termo de adesão, publicado no Jornal

do Commércio, afirmava: ‚Por estarmos convencidos na guerra

atual a verdade, a justiça e a razão que, aliadas, combatem o

militarismo e o imperialismo alemães, declaramos aderir à

fundação de uma liga, com o fim de prestar assistência moral e

beneficência a essas nações. ‛ (VERÍSSIMO, 1915, p.02). J{ Graça

Aranha declarou ser o objetivo do grupo: ‚organizar as simpatias

brasileiras em prol da França‛ (ARANHA, 1915, p.2). Além de

visar alertar aos brasileiros sobre a ‚*...+ ameaça do chamado perigo

alemão, definido como a ambição do Kaiser de apossar-se de uma

parcela do território brasileiro, através das colônias alemãs

localizadas no sul do país‛ (PIRES, 2011, p.07).

Qualquer cidadão podia se integrar na Liga; bastava residir no

Brasil e declarar por escrito sua adesão a mesma. Também eram

aceitos estrangeiros, desde que nascidos em países neutros e

declarassem simpatia aos Aliados. A atuação da Liga Brasileira

influenciou o surgimento de outros grupos semelhantes em outros

Estados brasileiros, como a Liga Paranaense pelos Aliados, no

Paraná, e a Liga Pró-Aliados, no Espírito Santo.

A Liga Brasileira manifestava-se, sobretudo, nos jornais da então

capital federal. Moções, manifestos, artigos e correspondências

trocadas com autoridades da Tríplice Entente, eram, com freqüência,

publicados nos periódicos fluminenses, como instrumento de

propaganda aliadófila. Os trâmites administrativos eram expostos,

como a renúncia do professor Dias de Barros à vice-presidência,

alegando falta de tempo para dedicar-se às obrigações do cargo,

assim como a posterior eleição do intelectual Sá Vianna como seu

substituto. (PIRES, 2011, p.08).

Estas organizações também promoviam eventos atacando os

alemães e provendo a causa Aliada no conflito, trazendo para o

Brasil intelectuais e artistas nascidos em países aliados. Um

exemplo ocorreu em 1916, quando a Liga Brasileira trouxe para o

434

Rio de Janeiro o artista plástico holandês Luis Raemackers,

conforme divulgado no Jornal do Commércio:

A Liga inaugura amanhã, às 13 horas, numa das dependências do

pavimento térreo do Liceu de Artes e Ofícios, gentilmente cedido

pelo seu ilustre Diretor, Sr. Bittencourt da Silva, uma exposição de

136 famosos desenhos do artista holandês Luís Raemackers,

inspirados pela guerra e condenatórios da barbárie alemã. É uma

coleção de 136 zincogravuras trazidas ao Rio pelo Sr. John Bland,

redator do Times de Londres [...] A entrada é franca. (Jornal do

Commércio, 1916, p.04)

A maior parte destes eventos tinham o intuito de arrecadar

fundos para os Aliados.

Em janeiro de 1916, promoveu um grande festival no Campo de

Santana, para angariar auxílio às vítimas belgas da guerra, então

ocupada pela Alemanha, e, em julho do mesmo ano, trouxe Juanita

de Frézia, atriz francesa, para a realização de uma palestra sobre os

efeitos da guerra, conforme a divulgação feita no Jornal do

Commércio. A Liga Brasileira organizou comemorações da Queda da

Bastilha, no Teatro Lírico, doando metade da renda dos ingressos aos

soldados franceses cegos em decorrência das batalhas. (PIRES, 2011,

p.09)

Nesta ocasião, o deputado Irineu Machado aproveitou para

fazer duras críticas ao Império Alemão, alegando serem ameaças a

toda humanidade, além de afirmar ser a França maior

representante da população latina. Sendo assim, o Brasil teria com

os franceses vínculos indestrutíveis. O Jornal do Commércio

publicou parte de seu discurso, onde declara:

Minhas senhoras, meus senhores. Quis a Liga dos Aliados que me

coubesse a honra de enviar a sua saudação à França, à grande França

de 1916. [...] A data de hoje [...] é também um dia de júbilo popular

porque significa o valor da influência francesa sobre a evolução

política do nosso país e a profunda ação das idéias, do pensamento,

435

da cultura em uma palavra – da civilização francesa na formação da

nossa mentalidade e da nossa alma nacional. [...] Enquanto a França

domina o coração e a inteligência dos homens e dos povos, os

cientistas alemães se esforçam vãmente em conquistar a hegemonia

germânica no globo: mas como os processos prussianos são os da má

fé e o da violência, o da força [...] A Alemanha não pode ser amada na

terra. (MACHADO, 1916, p.04)

Obviamente, surgiram reações contrárias diante de tais

declarações e ações. Lima Barreto, ex-membro da Liga, ironizou ao

chamar a organização de ‚sociedade musical e dançante‛

(AZEVEDO, 2001, p.203), diante do grande número de eventos

culturais promovidos pelo grupo. Já o Jornal O Imparcial acusou a

entidade de distanciar-se dos objetivos defendidos por seu

fundador, José Veríssimo, após sua morte, o que teria resultado na

saída de membros, como de Nestor Victor, entre outros, além de

evidenciar os interesses dos aliados acima dos nacionais. O Jornal

do Commércio reproduziu as críticas em seu periódico:

Desde, porém, que a Liga com outros orientadores, dentre os quais há

apenas um ou dois nomes de responsabilidade, toma outro rumo,

tentando comprometer os interesses nacionais e desvirtuando a sua

missão com incursões em terrenos que lhe são vedados, parece que a

instituição não pode mais usar dos nomes de que a princípio se

prevaleceu, e deve esclarecer quais são, realmente, os responsáveis

pelas suas deliberações atuais. (Jornal do Commércio, 1916, p.04)

No mesmo periódico, o Jornal do Commércio traz também as

críticas feitas por Afonso Bandeira de Mello: ‚pois que numa série

de artigos anteriores sobre o mesmo assunto penso ter deixado

assaz provada a inutilidade da Liga para a causa dos Aliados, bem

como a sua ação perniciosa para os nossos interesses. ‛ (MELLO,

1916, p.03). Porém, a Liga Brasileira mantinha boas relações com os

intelectuais aliadófilos europeus, dos quais recebia apoio

incondicional. Graça Aranha, como representante internacional da

entidade, participou de inúmeros eventos na capital francesa, como

436

do Comitê Franco-Brasileiro, em 1916. Além disso, todas as ações e

manifestações organizadas pela Liga Brasileira eram noticiadas em

periódicos internacionais, como o artigo de Louis Guillaine,

especialista francês em América Latina, que escreveu sobre o caso

de navios alemães estarem ancorados em portos brasileiros, este

noticiado no Jornal Havas, e no Brasil, no Jornal do Commércio:

Pareceria aos demais estranho que o Brasil, por causa dessa concessão

justamente qualificada de humilhante e injuriosa pela Liga dos

Aliados do Rio de Janeiro, renuncia-se ao soberano direito e ao

exercício das suas próprias leis, por diferenciar para com um país que

não se preocupou de lhe resguardar as legítimas suscetibilidades, os

interesses da sua vida econômica. (Jornal do Commércio, 1916, p.01)

A imprensa brasileira deixava transparecer que a Liga era a

expressão da opinião pública do país, como no caso do artigo do

historiador François Aulard, publicado na revista Dépeche de

Toulouse, a respeito do discurso de Ruy Barbosa em evento

realizado em Buenos Aires. A seguinte afirmação é publicada no

Jornal do Commércio:

Diz o Sr. Aulard que foram os bem sucedidos esforços da Liga pelos

Aliados que criaram o estado de espírito de que se gerou aquela

manifestação. Cita os membros diretores da Liga, prestando

homenagem à sua atividade fecunda e à sua inteligência, e descreve a

maneira como a Liga ampliou o movimento da simpatia que já

naturalmente existia pela França. (1916, p.01)

A Liga mantinha contato direto com embaixadores e

diplomatas de países aliados, através de correspondências. Estas

cartas expressam agradecimentos, demonstrações de apoio, doação

aos soldados, felicitações por avanços no front ou por aniversários

e condolências em caso de mortes. A própria Liga divulgava essas

correspondências nos jornais cariocas, servindo assim como

divulgadora dos interesses ingleses e franceses. Era essa função que

os aliados esperavam da Liga, para afirmar diante da população

437

brasileira a importância dos aliados na luta pela liberdade e justiça

diante da ameaça alemã.

O Jornal do Commércio publicou uma carta de Artur Peel,

embaixador inglês no Brasil, solicitando da Liga 500 exemplares da

conferência L’[merique en face de la conflagration européene, de

Sá Vianna, que iriam ser utilizadas como propaganda. A

correspondência afirmava: ‚O Ministro das Relações Exteriores da

Grã-Bretanha considera que a tese que desenvolveste dá apoio

moral de um grande valor à causa da justiça e, por esse motivo, S.

Ex. deseja fazer onde ela ainda não est{ conhecida (...)‛ (Jornal do

Commércio, 1916, p.06).

A Liga atendeu rapidamente o pedido, reimprimindo os

exemplares e distribuindo em revistas e jornais, nacionais e

internacionais, de forma gratuita. ‚Esta não seria a última

publicação com intenção propagandística promovida pela Liga

Brasileira. Em junho de 1917, chegava ao Brasil o livro Le plan

pangermaniste démasqué: Le redoutable piège berlinois de la

partie nulle, escrito pelo jornalista francês André Chéradame.‛

(PIRES, 2011, p.11).

André Chéradame, em seu livro, buscou ‚documentar a

opinião pública aliada e neutra acerca do plano berlinez de

dominação mundial‛ (CHÉRADAME, 1917, p.LXIV). Seu objetivo

central era a criação da Confederação Germânica da Europa

Central, formada pelos países do Leste Europeu e a Áustria-

Hungria, além da Rússia e as colônias africanas. Segundo o autor, a

Alemanha teria como alvo de cobiça o Brasil, já que a maior parte

dos alemães que residiam na América do Sul estavam localizados

da região sul brasileira. Este plano pangermanista tem sua primeira

versão datada de 1895, modificada em 1911.

Mas é no Brasil, principalmente, cuja parte meridional é muito

especialmente cobiçada pelos alemães, que se torna deverás

interessante contraprovar a evolução de tais idéias. [...] Nestas ricas

províncias, os alemães, conservando a língua, as tradições, os

prejuízos da metrópole, são senhores quase absolutos. [...] Os demais,

isto é, 400.000 são aparentemente súditos brasileiros, mas em virtude

438

da lei de Delbrück, uma considerável parte deles, ficaram sendo ou

tornaram-se de novo dedicadíssimos súditos de Guilherme II.

(CHÉRADAME, 1917, p.294)

A Lei Delbrück, estabelecida em 22 de julho de 1913, afirmava,

conforme citada por Chéradame:

Não perderá a sua nacionalidade de Estado todo aquele que, a seu

pedido, tiver recebido antes da aquisição da nacionalidade de Estado

estrangeira, a aprovação por escrito da autoridade competente do

Estado (d’onde é) origin{rio, em vista da conservação da

nacionalidade de Estado. O cônsul alemão deverá ser ouvido

previamente por ocasião de se conceder esta aprovação.

(CHÉRADAME, 1917, p.291).

O próprio Chéradame afirmava que seu livro tinha por

objetivo a vulgarização, voltado para os menos letrados com

caráter preventivo, buscando repassar conhecimentos sobre a

guerra e a ameaça do plano berlinez. Também visava alertar a

população dos países neutros e aliados os perigos das ideias

pangermanistas, para que estes pressionassem seus governos

diante desta ameaça. Segundo o autor, este estava esquecido no

pré-guerra, sendo lembrado apenas por intelectuais na Rússia,

Inglaterra e França. Em seu livro, chama os defensores do

pangermanismo de alucinados e fantasistas. Seu livro chegou ao

Brasil em 1917, publicado pela Editora Garnier, conhecida por

publicar as obras dos integrantes da Liga Brasileira. Esta edição era

composta por 31 mapas que ilustravam a ‚grande justeza das

previsões do autor‛ (CHÉRADAME, 1917).

A edição ainda conta com o prefácio de Graça Aranha, com o

título O Brasil e o Pangermanismo, onde afirma a ameaça alemã

sobre o continente americano, em especial sobre o Brasil, que

estaria sendo dominado através da imigração silenciosa de alemães

e diante das transações financeiras e comercias, reforçando assim o

discurso já propagado pela Liga. Era nítido o empenho dos

integrantes da Liga Brasileira dos Aliados em divulgar o alerta

439

sobre a ameaça alemã para todos. A união da Liga e de Chéradame

para emitir esse alerta diante do pangermanismo e do perigo

alemão ocasionou movimentação dos adeptos da política de

reaproximação entre Brasil e Portugal.

Desenvolvido desde o início do século XX por intelectuais dos dois

lados do Atlântico, com a intenção de estreitar os laços políticos,

econômicos e culturais luso-brasileiros, esse movimento apontava a

associação entre os dois países como a principal forma de se

resguardarem contra as investidas imperialistas do Segundo Reich.

Temendo o domínio alemão da região do Atlântico Sul, postulavam a

ação unificada dos seus governos no cenário internacional,

cooperando entre si no âmbito diplomático e econômico, formando

uma comunidade luso-brasileira. (PIRES, 2011, p.13)

Uma das representações desse movimento é a revista

Atlântida, que relacionava cultura, artes, literatura e sociedade dos

dois países. A revista, lançada em 1915, por dois entusiastas da

aproximação entre Portugal e Brasil, o político português João de

Barros e o escritor brasileiro João do Rio, tinha o objetivo de

incentivar a formação de uma comunidade luso-brasileira. Estes

contavam com o apoio do deputado João de Menezes, do

historiador Henrique L. de Mendonça e do poeta Olavo Bilac. O

propósito do movimento não deixava dúvidas, era classificar Brasil

e Portugal ‚países irmãos‛ (OLIVEIRA, 1915, p.202), sendo

Portugal a ‚p{tria-mãe‛ (OLIVEIRA, 1915, p.196) e o Brasil o ‚filho

próspero‛ (OLIVEIRA, 1915, p.196); e seus povos viveriam num

‚mesmo ideal‛ (BARROS, 1915, p.03).

Assim, por natureza, a relação entre Portugal e Brasil deve ser

fraternal, pois conforme defendido em algumas publicações do

movimento, Portugal era essencial para o progresso brasileiro,

processo iniciado na colonização e contínuo com o a imigração,

enquanto o Brasil é responsável pela preservação da latinidade e da

raça lusa. Nas edições mensais da Atlântida, o pangermanismo e o

perigo alemão são citados como responsáveis pela distância entre

os dois países, pois a Alemanha é representada como hostil aos

440

países latinos, que, apesar de ter uma excelente produção

comercial, intelectual e militar, é bruta e dificilmente destrutível.

O pangermanismo, por sua vez, configuraria como uma ameaça

concreta em relação ao Brasil, tendo a face dos imigrantes de origem

germânica, ameaçando formar uma América do Sul alemã. O

estímulo e a priorização da imigração portuguesa para o Brasil, por

conta das semelhanças raciais e culturais, e o estreitamento dos laços

lusobrasileiros era a solução apontada no mensário para resguardar o

Brasil desses males. (PIRES, 2011, p.14)

Estes ideais serão defendidos ainda depois do fim da guerra,

como em 1919, quando Graça Aranha afirma as vantagens da união

luso-brasileira como chance para a ascensão do Brasil entre as

grandes potências e como combate ao perigo alemão. Essa

permanência no discurso deixa clara a influência da Atlântida com

a Liga, pois ambas defendiam a distância entre os países latinos e a

Alemanha, diante do caráter predatório do segundo sobre o

primeiro, além de serem contrários à imigração alemã em

territórios brasileiros, considerando como ameaça à nacionalidade,

diante do perigo alemão e dos ideais pangermanistas.

Na revista, membros da Liga frequentemente publicavam seus

artigos e escritos.

Vitor Vianna escreveu um artigo sobre a importância da preservação

da cultura e língua portuguesa no Brasil para a preservação da

nacionalidade, mencionando a resistência dos imigrantes alemães,

italianos e polacos ao processo de assimilação; Olavo Bilac, em

ocasião de sua visita a Lisboa, foi recebido com um banquete em sua

homenagem oferecido pela Atlântida, por ser um importante parceiro

na causa defendida pelo mensário. De todos esses casos, o de Graça

Aranha é o mais notável. O escritor possuiu uma participação mais

ativa, assumindo o cargo de diretor e representante da revista em

Paris, e recebendo, inclusive, a Ordem de Cristo por serviços

prestados a Portugal. (PIRES, 2011, p.14)

441

Através desses textos, é possível identificar três

posicionamentos em relação à Guerra: um que apoiava a Alemanha

e seus aliados; outro que defendia a Tríplice Entente; ou mesmo o

que mantinha a neutralidade em sintonia com a posição oficial.

Vale observar que, que em nenhum desses posicionamentos, era

defendida a entrada efetiva do Brasil na guerra, na contribuição de

armas e homens. Tais manifestações se davam em torno da

aprovação dos motivos e ações de um ou outro lado, a qual desses

o Brasil tinha o dever de delegar o seu apoio moral.

Assim, fica nítida a ativa e extensa rede de letrados que unidos

em Brasil e Portugal, diante da ideia de um perigo alemão

existente, durante a Primeira Guerra Mundial, além do medo da

concretização do plano pangermanista, apresentado por

Chéradame, tornaram-se argumentos de defesa da Liga Brasileira

dos Aliados diante do seu ideal de nacionalidade brasileira,

tornando-a uma nação civilizada e moderna. A união entre o

movimento defensor de uma comunidade luso-brasileira e a

Revista Atlântida reuniu forças que pretendiam lançar seus países

como potências mundiais, buscando na ascendência latina e no

combate ao pangermanismo uma chance de integrar esse grupo

restrito. Entretanto, a questão estava centrada na construção da

nacionalidade dos dois países, que sonhavam em reconquistar o

prestígio perdido no passado de glórias, além de buscarem provar

para o mundo seu valor e importância, apresentando sua linhagem

e grandeza.

Considerações Finais

Para alguns grupos sociais, a Primeira Guerra Mundial teve

como consequência catalisar as mudanças mentais, sendo sinal de

novos tempos que viriam; para outros, a mesma apenas confirmou

antigas certezas. Assim, em julho de 1919, com a assinatura do

tratado de paz, a Liga Brasileira pelos Aliados acaba por encerrar

suas atividades. Esta, durante sua existência, fora marcada por

polêmicas, dissidências entre seus membros, além de uma ferrenha

442

campanha em prol dos Aliados no Brasil. Entretanto, pode-se notar

que a mesma acabou por extrapolar seu ideal inicial que era o de

prestar a assistência moral e beneficência a essas nações.

No Brasil, no período da Primeira Guerra, evidencia-se o

posicionamento dos atores político-culturais que buscaram utilizar-

se do conflito como pano de fundo para realização de diagnósticos

do país, tentando influir no direcionamento das atitudes

apresentadas pelo governo e conformar uma ‚opinião pública‛. A

Liga Brasileira pelos Aliados, utilizada no debate sobre a guerra,

expressa o desejo pelo progresso, pela conquista de uma nação

moderna, e, acima de tudo, pelo reconhecimento de tal condição

por parte da comunidade internacional. A associação auxiliou a

exposição de opiniões em relação a diversos temas onerosos à

intelectualidade brasileira do Século XX. Em suas páginas, os

boletins, as conferências e artigos fluminenses, que eram

publicados periodicamente estampavam uma preocupação com a

formação de uma cultura nacional, uma nacionalidade brasileira.

Consolidou-se uma cultura pátria relacionada de forma direta à

Europa greco-latina, esta como herança da colonização portuguesa.

O que se torna evidente não só através da afirmação do

alinhamento natural do governo federal aos Aliados, mas também

pelo repúdio ao imigrante alemão, esse retratado como sujeito

estranho e desagregador dentre a nação.

A confirmação feita pela Liga Brasileira pelos Aliados

evidencia-se na conduta do Segundo Reich no conflito mundial. A

associação vai muito além das preocupações com a nacionalidade

mostrando- se como lugar de ação política. Diversos de seus

membros eram indivíduos que possuíam cargos dentro dos

poderes do Estado, se mostrando assim ativos no cenário político

na década de 1910. A relação com a política era algo comum entre a

intelectualidade brasileira do período, a qual se mostrava ávida em

fazer parte da edificação da República à pouco fundada. A liga, na

tentativa de influenciar as tomadas de decisões e ações do governo

perante a Guerra, buscou arrecadar destaque dentre os quadros do

poder, e, dessa maneira, não só na significância para os seus

443

integrantes, mas também a participação nos projetos em prol da

nação brasileira.

Partindo dessas percepções, o impacto da Guerra apresenta

novos nuances, que vão além da influência sobre a economia

brasileira e o preço do café. Esse conflito acaba por auxiliar na

compreensão do pensamento dos intelectuais brasileiros, da busca

na construção da nação e do sentimento nacionalista nas primeiras

décadas do século XX; baseando-se em uma reflexão acerca da

Guerra e suas consequências, os membros da Liga pelos Aliados

pensavam sobre o futuro almejado para o Brasil, futuro este que

dependia da construção de uma nacionalidade brasileira.

Referências

AZEVEDO, M.H.C. Um senhor modernista: biografia de Graça

Aranha. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001.

CHÉRADAME, A. O plano pangermanista desmascarado: a

terrível cilada berlineza da partida nula. Paris: Garnier, 1917.

GUIMARÃES, L.M.P. (org.) Afinidades Atlântidas. Rio de Janeiro:

Quartet, 2009.

HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-

1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

_____. A Era dos Impérios: 1871-1914. São Paulo: Companhia das

Letras, 1995.

HOLLANDA, S.B. de (org.) História Geral da Civilização

Brasileira. Vol. 8 Tomo III. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro. 1916 a 1917. Disponível em:

< http://www.jb.com.br/edicoesanteriores/> Acesso em: 18 de

março de 2018.

JORNAL DO COMMÉRCIO. Rio de Janeiro. 1916 a 1917.

Disponível em: < http://jconline.ne10.uol.com.br/acervodigital/ >

Acesso em: 14 de março de 2018.

444

PIRES, L. C. A Liga Brasileira pelos Aliados e o Brasil na Primeira

Guerra Mundial. IN: Anais do XXVI Simpósio Nacional de

História – ANPUH: São Paulo, julho 2011.

445

Memória e movimentos sociais:

a greve dos professores de Manaus em 19831

James da Costa Batista2

Introdução

O ano de 1983, foi um ano de importância para o movimento

docente do Estado do Amazonas. Nele os docentes impulsionaram

o enfrentamento ao poder hegemônico, criando dentro da luta dos

trabalhadores de diversas categorias que se mobilizaram nesta

década, um protagonismo. A memória do período é objeto deste

estudo por conta da necessidade de se compreender a luta dos

professores, contudo, faz-se necessário a captação da subjetividade

que a memória necessita. Assim, trazemos à tona, a análise do

professorado num momento que [ainda] causa diversos

sentimentos aos entrevistados, ocasionando até um enlace nos

acontecimentos o que demanda metodologicamente e teoricamente

análises especificas.

Apoiamo-nos neste estudo à História Social do Trabalho.

Vencida a crise na qual esteve envolvida na década de 19903, a

História do Trabalho teve um aumento quantitativo e qualitativo

em produções acadêmicas ligadas aos trabalhadores apoiadas na

“ampliação do leque temático, dos limites cronológicos, da própria noção

de história do trabalho e uma maior diversidade nos recortes geográficos”

1 Este texto faz parte da pesquisa para construção da Dissertação de Mestrado pelo

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas

denominada ‚Da Lousa | Luta: Organização, Mobilização e luta dos professores

amazonenses na década de 1980‛. 2 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal do Amazonas – PPGH UFAM. Professor da Educação

Básica pela Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino do

Amazonas – SEDUC AM. E-mail: [email protected] 3 Cf. BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. A historiografia da classe operária

no Brasil: Trajetória e tendências. In: FREITAS, Marcos Cézar de (Org.).

Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 152-154.

446

(BATALHA, 2002). Procura-se ainda afastar-se do modelo de

história do trabalho ligado aos estudos paulistas e cariocas, e que

acabaram ao longo do tempo, representando a generalização do

que seriam pesquisas sobre o Brasil, embora que estas fossem

regionais. Para Silvia Petersen

*...+ houve uma tendência dos autores estenderem ao ‚Brasil‛ o que

na verdade correspondeu ao centro do país. Em outras palavras, o

que era também um estudo regional (embora indubitavelmente da

região política e economicamente hegemônica) ganhou uma

dimensão nacional ou global. (PETERSEN, 1995).

Ainda, sabedores de que “a redução da história do trabalho ao

operariado fabril era inaceitável” (BATALHA, 2006, p. 89), outros

temas, questões e categorias socioprofissionais passaram a ganhar

relevância, por isso, propomos uma análise apontada a uma

significativa mobilização de uma categoria de trabalhadores do

serviço público amazonense: os professores.

Greves de professores ainda são poucos discutidas e

exploradas na historiografia regional o que abre uma brecha para

investimento nesse objeto pelo viés dos movimento sociais

contemporâneos4. Esses movimentos sociais surgiram num

momento conturbado da história nacional onde diversos grupos

sociais e categorias socioprofissionais buscavam alargar as

dimensões da cidadania no Brasil5, lutando por melhorias, fossem

elas no âmbito social, político ou econômico. (TILLY, 2010).

O termo movimentos sociais foi se fortalecendo e ganhando

novas dimensões na transição dos séculos XX para XXI, onde tais

mobilizações apareceram fortalecendo o combate às péssimas

4 Cf. SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas

dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988. 5 GOHN, Maria da Glória. História dos Movimentos Sociais: a construção da

cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola, 1995; CARVALHO, José Murilo de.

Cidadania no Brasil: o longo caminho. 15ª ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2012.

447

condições de salários e de trabalho, o que resultou em organização

das diversas categorias que buscaram a resolução dos problemas

vividos por estes. Para Charles Tilly:

Construir um forte movimento social pró-democracia é sempre uma

tarefa da sociedade civil quando operando sob um ambiente político

opressivo.... Um ponto de partida seria ser capaz de definir o que é

um movimento social. Como o nome sugere, movimentos sociais são

organizações inclusivas compostas por vários grupos de interesses.

Os movimentos sociais devem envolver os estratos significativos da

sociedade, como os trabalhadores, os grupos de mulheres, os

estudantes, os jovens e o componente intelectual. Esses vários setores

de interesses da sociedade serão articulados em torno de uma

insatisfação comum que, na maioria dos casos, será a percepção

comum da falta de democracia em um contexto político específico.

(TILLY, 2010, p. 133).

A busca por melhores condições, acabou levando o

professorado manauara à mobilização e assim, à greve que acabou

rumando à radicalização na luta contra o governo estadual - a

Greve de Fome.

Ditadura Civil Militar e Memórias

Em 1964 um cenário de crise6 instaurada no governo João

Goulart, possibilitou aos militares uma atitude intitulada de

Movimento Revolucionário, resultando no Golpe de Estado do dia

31 de Março de 19647. Contudo, optaremos aqui pelo termo

6 Sobre a crise instaurada no governo de João Goular, Cf. CODATO, Adriano Nervo. O

Golpe de 1964 e o regime de 1968: aspectos conjunturais e variáveis históricas. História:

Questões e Debates, Curitiba, nº 40, p. 11-36. 7 Sobre a Crise instaurada no Governo de João Goulart, Cf. SILVA, Francisco Carlos

Teixeira da. A modernização autoritária: do Golpe Militar à redemocratização 1964/1984.

In: LINHARES, Maria Yeda (org.). História Geral do Brasil. 3ª ed, Rio de Janeiro,

Campos, 1990, p.351-385, e FERREIRA, Jorge , GOMES,Angela de Castro. 1964: o golpe

que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no

Brasil. 1. ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

448

Ditadura Civil Militar para denominar no governo dos militares

entre os anos de 1964 a 1985, período onde ocorreu a participação

de parte da sociedade civil na consolidação do governo ditatorial.8

Neste contexto,

O mês de março de 1964, portanto, é um momento crucial na

trajetória do governo Goulart. [...], conduzindo variados grupos

sociais a uma posição de veto a Goulart. Quer dizer, o governo, nesse

mês, consegue, por razões diversas, entre as quais a ameaça

comunista é o destaque, que setores militares e civis, quer os que já

estavam conspirando, quer os que não o faziam, se posicionem de forma

radical contra o presidente. Uma mudança que deve ser bem entendida,

pois, mesmo não surpreendendo, ganha força de maneira rápida e

dramática, tendo desdobramentos para a maneira como o golpe

acaba ocorrendo. (CARVALHO, 2012, p. 157-158).

O Historiador José Murilo de Carvalho, descreve o período

ditatorial dividido em três fases: a primeira entre 1964 a 1968

caracterizado por momentos de repressão e resfriamento das

mobilizações, enquanto que num campo econômico, um fraco

desempenho; segundo de 1968 a 1974, marcado pela edição do AI-

5, um período de violenta repressão, principalmente política, mas

período de aquecimento econômico, contudo, sem alta no salário

mínimo, fato descrito como arrocho salarial. O terceiro momento

que vai de 1974 a 1985, é marcado pelo processo de abertura

política e a eleição indireta em 1985 onde foi eleito o civil Tancredo

Neves para a Presidência da República. Ainda neste último

período, acentua-se a instabilidade econômica no país, acentuada

pela crise petrolífera e o aquecimento dos movimentos sociais no

Brasil.

O fim do bipartidarismo, em 1979, foi outra ação que fortificou

o processo de abertura política no país, pois partidos vigentes no

8 Para um entendimento sobre a discussão da participação Civil na Ditadura Militar,

recomenda-se a leitura de FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações

teóricas e historiográficas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 05 ‐ 74.

jan./abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5965/2175180309202017005

449

período da ditadura9, deram lugar a novas siglas partidárias. A

ARENA, transformou-se no Partido Democrático Social (PDS) e o

MDB no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o

Partido Popular (Partido Popular), este segundo fruto de uma ala

moderada, mas que se fundiu novamente com o PMDB, tempos

depois. Com o retorno dos exilados após a lei de anistia, a cisão dos

trabalhistas do PTB, ocorreu a criação do Partido Democrático

Trabalhista (PDT) sob liderança de Leonel Brizola, que retornara do

exílio. Em 1980, surge o Partido dos Trabalhadores (PT), que tinha

em seu corpo, centenas de militantes oriundos da Igreja Católica,

sindicalistas e metalúrgicos paulistas. (CARVALHO, p. 175-176).

No fim da década de 1970, com as greves dos metalúrgicos do

ABC Paulista, ocorre uma efervescência dos movimentos sociais e

um reforço às ações de luta em prol dos interesses dos

trabalhadores. Assim, neste ‚aquecimento‛ das mobilizações, o

movimento dos trabalhadores acabou interferindo em novas

relações políticas, pois, dentro desses acordos, essa massa não

estava inserida, o que levou a um reforço nas ações de labutadores

de diversas categorias.10 Assim, o que se viu, foram categorias

buscando o alcance dos seus direitos, onde os metalúrgicos

paulistas foram uma das categorias importantes nesse processo de

enfrentamento político. Para Santana, nesse contexto

Após a Greve de 1978, tornaram-se possíveis outras mobilizações, em

um processo que consolida e amplia com as greves metalúrgicas em

9 Até o fim do bipartidarismo em 1979, existiam dois partidos que deveriam em tese

ter papel de posição e oposição. A ARENA – Aliança Renovadora Nacional, fundada

em 1966, fazia o papel de ‚situação‛ em apoio ao governo vigente. O MDB –

Movimento Democrático Brasileiro tinha uma postura oposicionista, contudo de

forma controlada pelo governo militar. 10 Os novos partidos surgidos com a abertura política se articulavam com o poder que

se instalava neste momento de transição, deixando os trabalhadores aparte de tais

negociações. Para melhor compreensão, recomenda-se SANTANA, Marco Aurélio.

Trabalhadores em Movimento: O sindicalismo brasileiro nos anos de 1980-1990. In:

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano: regime militar e

movimentos sociais em fins do século XX, 2. Ed. Rio de Janeiro: C. Brasileira, 2007.

450

1979 e 1980, às quais, em volume ainda maior que na anterior, se

incorporam outras categorias (bancários, petroleiros, professores etc.)

em todo o país, em uma verdadeira ascensão da classe trabalhadora

no Brasil no período. (FERREIRA; DELGADO, 2007, p. 289).

A partir da compreensão do quadro em que se posicionou os

movimentos sociais no momento de transição do regime de

exceção para o democrático, analisamos as memórias de três

professores envolvidos com as mobilizações da década de 1980. No

entanto, temos que entender que a memória deve ser analisada

como um elemento seletivo pois ‚nem tudo fica gravado. Nem tudo

fica registrado” (POLACK, 1992, p. 4). Portanto, essas lembranças

não podem trazer à tona uma objetividade, no que se refere

principalmente a datas, personagens e monumentos.11 Para Polack,

a memória

[...] é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa.

A memória também sofre flutuações que são função do momento em

que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações

do momento constituem um elemento de estruturação da memória.

(POLACK, 1992, p. 4).

Neste contexto, de análise das memórias dos entrevistados,

nos apoiamos na História Oral como metodologia, buscando

através dessa subjetividade12 das fontes obtidas - as fontes orais –

não uma verdade absoluta, mas a visão do entrevistado sobre os

assuntos apresentados. Deste modo, faz-se necessário compreender

que a categoria docente, em tal momento, é caracterizada pelo

enfrentamento contra o poder hegemônico – o governo estadual - e

assim, a História Oral será um meio de se fazer essa categoria não

hegemônica ser ‚ouvida‛, j{ que as classes dominantes j{ contam

11 No caso de interesse a este trabalho, datas e personagens, estarão tendo um suporte

da imprensa manauara à memória dos entrevistados. 12 Cf. PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e

significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, vol. 1, nº 2, dezembro de 1996, p.

59-72.

451

com intenso registros escritos, porém mais uma vez salientamos

que tais fontes precisam ser apoiadas nos diferentes tipos suporte

teóricos e metodológicos. Para Alessandro Portelli

A História Oral não reside onde as classes operárias falam por si

próprias. [...] Fontes Orais são condição necessária (não suficiente)

para a história das classes não hegemônicas, elas são menos

necessárias (embora de nenhum modo inúteis) para a história das

classes dominantes que têm tido controle sobre a escrita e deixaram

atrás de si um registro escrito muito abundante. (PORTELLI, 1997, p.

13).

O resultado das entrevistas, as transcrições, são o que serão

analisados como fontes, merecida de uma análise tão criteriosa quanto

as fontes escritas, devida a subjetividade que resultam dela. Por isso

[...] é importante dizer que não se trata de fazer "história oral" em

oposição ao domínio escriturístico moderno; isto é, contrapor

escritura versus oralidade, mas sim de refletir acerca de um tipo

especial de fonte, sem entendê-la como registro do que já está posto,

no sentido de expressão outra realidade, de pertencer a ela, o que

pode atingir por meio de métodos adequados. (GUIMARÃES NETO,

2012, 16-17).

Aloysio Nogueira de Melo, um dos entrevistados nesta

pesquisa, foi um personagem importante no processo de

fortalecimento do movimento docente, sendo o primeiro presidente

da Associação Profissional dos Professores do Amazonas (APPAM)

em 1979. Escolheu para conceder entrevista, no Departamento de

História da Universidade Federal do Amazonas, por este motivo,

instituição onde lecionou durante anos, por ela – a Universidade -

estar ligado intimamente à sua própria história. Nogueira começou

a se envolver com a docência ainda na década de 1950, em um

curso preparatório para admissão ao Colégio Amazonense Dom

Pedro II, popularmente conhecido em Manaus como o Colégio

Estadual. Neste período, substituiu professores mesmo ainda

452

sendo aluno, dedicando-se a partir daí às disciplinas de História e

Geografia. Estava certo da docência pois “tinha que arrumar um

emprego que me oferecesse condições de sobrevivência quase imediata”13,

lembrou o professor em sua entrevista. Concluído o Curso de

Magistério no Instituto de Educação no Amazonas (IEA), foi cursar

Filosofia na Universidade do Amazonas (UA) na década de 1960,

em virtude de não haver o curso de História na capital

amazonense. Neste interim, já era professor da rede estadual de

Educação. O então professor de História, foi Diretor do Colégio

Estadual do Amazonas em 1971 (BATISTA, 2018, p. 261). Após a

conclusão da graduação em Filosofia, é convidado para lecionar no

curso de História que estava sendo criado na UA no início da

década de 1980, contudo, não se afastou da docência na educação

básica, estreitando ainda mais, laço com o movimento dos

professores deste segmento. A década de 1980, torna-se para o

educador, um período que urgia a necessidade de fortificar o

movimento dos professores, a partir dos exemplos do ABC

Paulista, o que descambou na organização dos movimentos

docentes em Manaus, ou como ele expressa, no ‚fortalecimento‛ da

luta dos professores manauaras.

[...] em setenta e cinco [...] todo esse período me dedicando e tal, me

veio à oportunidade de fazer um concurso na PUC (Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo), concurso pra mestrado... e eu

fui né? Era para história. Cheguei lá... daí eu enfrentei o concurso que

a maioria lá eram graduados em história também né? mas eu era

graduado em filosofia, [...] em mil novecentos e setenta e cinco e

setenta e seis, eu conclui todos os créditos né, todos os créditos, mas

só que daí eu fiquei mais um ano e tal, lá, fazendo pesquisas,

levantamentos e tudo, movimentos dos trabalhadores na Unicamp

por exemplo [...]. Então na realidade daí é que vem uma história

interessante, [...] a PUC de São Paulo passou por uma repressão

violenta [...] uma invasão da polícia na PUC, eu estava lá nesse

período, [...], nós tínhamos ido preparar um movimento contra a

13 Nogueira, Aloysio. Entrevista gravada o dia 06 de Junho de 2017, realizada por

James Batista, digitada, p. 2

453

própria ditadura e preparamos e quando foi no início da tarde, no

final da tarde eu disse para o pessoal que eu não podia ficar, eu tinha

um problema de saúde também muito sério e eu tava com uma dor

de cabeça violenta e eu tive que ir embora, eu disse olha eu não vou

poder aguentar e ficar pra noite, e foi nessa noite que a polícia entrou

na PUC, não deixou pedra sobre pedra, prendeu todo mundo que

estava lá, professores e alunos e deixaram essas pessoas no relento até

o dia seguinte para levar pra cadeia. Quer dizer, foi uma coisa

terrível, daí eu passei a me dedicar diuturnamente a romper com essa

[inaudível] em defesa da democracia né? E lutar contra essa situação.

Foi quando eu fiquei lá e quando em setenta e nove eu já estava em

Manaus, [...] eu conversando com vários outros professores e ex-

alunos da própria universidade e eu tinha uma grande influência

também no Estado, começamos um trabalho de organização dos

professores. Ai é que nasce realmente a criação da APP, a criação não,

o fortalecimento da APPM, APPM né? APPM, então era Associação

Profissional dos Professores de Manaus, então aí já é uma história

que dá, é uma história que traz as questões que envolve de uma tal

maneira o deslanchar desse processo da APPAM depois [inaudível]

SINTEAM e que vai culminar com esse trabalho chamado ‚Batalha

do Igarapé‛, então, mas começa ai nesse processo.14

O Partido dos Trabalhadores, teve uma forte influência no

movimento docente do Amazonas. Parte dos professores da rede

pública, participou da fundação do partido regionalmente, tendo como

referência a liderança de Luís Inácio Lula da Silva nas greves paulista

do fim da década de 1970. Assim, há uma relação do enfrentamento

paulista com a organização dos professores manauaras. Nogueira se

entusiasma ao falar da criação do partido no Amazonas e o contato que

teve com o líder petista, assim como a amizade que se construiu a partir

deste contato. Ombreada com a construção do movimento dos sociais e

dos professores15, a criação do PT no Estado do Amazonas, é visto pelo

14 Ibid., p. 3-4. 15 Mesmo a fundação do PT no Estado tenha sido iniciada com os professores

manauaras, o partido também se envolveu na organização de trabalhadores de

outras categorias que foram sendo agregados aos movimentos sociais que se

reanimavam a época. Para conhecimento de outras categorias que se mobilizaram

454

docente como impulso na organização do professorado por melhores

condições de vida e trabalho. Para ele:

A partir desse momento é que me veio o impulso de participar com

todo afinco nesse trabalho, é, de movimento sociais e de organizações

né? Daí também esse grupo de professores muito deles quase todos

se dedicaram na fundação do PT no Amazonas... foi quando eu

larguei tudo praticamente, larguei mestrado, larguei tudo né pra

fundar o partido onde eu andei por toda essa região de motor,

dormindo em rede, andando de canoa para criar um partido, e nós

criamos em setenta e nove, setenta e nove depois do movimento dos

professores [...] quando em dezembro deste mesmo ano de setenta e

nove, eu e o professor Ribamar[...] que nós nos organizamos lá em

São Paulo [...] como elemento de distribuir panfleto e tal etc... Ali né?,

Mas não tinha contato com o Lula direto... Em dezembro de setenta e

nove foi quando eu fui com o Ribamar Bessa no sindicato dos

metalúrgicos falar lá com ele, que daí nós tínhamos o respaldo de

várias pessoas que tinham ido conosco pra abrir uma brecha lá, por

que era tanta gente pra falar com ele, jornalista e tal e quando o rapaz

foi lá, olha bora lá pra trás que ele vai nos atender. é mesmo? Não

demorou ele (Lula) abriu a porta: ‚Entra‛. Conversamos quase uma

hora, foi quando eu conheci o Lula. Daí foi outra relação que eu

mantive com ele e por muitos anos, ele vinha pra minha casa

almoçava, jantava, a gente fazia movimentos aqui em Manaus,

visitava os bairros, fazia comício ai, tinha uma relação fantástica.16

O professor Gerson Gonçalves Medeiros, de 68 anos, foi um

dos envolvidos nesta transformação da instituição dos professores.

Sua experiência docente iniciou como professor estatutário desde

1976. Começou ainda pelo primário, depois avançando na carreira

do magistério. Neste percurso prestou concursos para o primeiro e

na década de 1980, recomendamos: SANTIAGO, Célia. Clandestinidade nas linhas de

montagem: A greve dos metalúrgicos de Manaus. Manaus: EDUA, 2015 e REIS

FILHO, Milton Melo dos. A saga dos operários em Manaus – 1980. Manaus: EDUA,

2013. 16 Ibid., p. 6

455

segundo grau17 onde lecionou a disciplina de História nas unidades

públicas de ensino da capital amazonense. Hoje é professor

aposentado das Secretarias de Educação do Estado do Amazonas e

do Município de Manaus. Atualmente continua envolvido nos

movimentos sociais do Amazonas, atuando como membro do

Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e assessorando o Sindicato

dos Trabalhadores dos Correios e Telégrafos no Amazonas. Para

ele, o movimento docente manauara foi um dos pioneiros no

aquecimento dos movimentos sociais no Amazonas, pois

[...]não havia luta, não havia nada e nós já estávamos fazendo

renascer a luta sindical aqui, a partir lá do ABC Paulista, fique bem

claro isso! É de 78 quando espoca a luta lá em São Paulo, no ABC

Paulista, que nós trouxemos pra cá, vamos fazer o enfrentamento

aqui, a Universidade começou a discutir... os professores começaram

a discutir, a SESAU18 começou a discutir, metalúrgicos começou a

discutir, a FETAGRI (Federação dos Trabalhadores na Agricultura)

também e nós começamos também... mas foram os professores e os

metalúrgicos também que mais se tornaram evidentes nesse processo.

Então foi feito isso. Só que ainda em mil... isso foi feito em setenta e

nove, ainda em mil novecentos e setenta e nove[...]19

Para o professor Gerson, Aloysio Nogueira é visto como uma

liderança importante no movimento dos docentes, tendo em vista a

maneira de liderar e organizar o enfrentamento dos professores

Aloyzio Nogueira, exatamente, um companheiro que veio do

processo, professor de História da Universidade do Amazonas, onde

lá também começou o processo da luta política, e nesse processo da

luta política ele também trabalhava no Estado, além da Universidade

ele também trabalhava no Estado, (...). Tava tudo se formando, então

17 O ensino de Primeiro e segundo Graus equivalem hoje aos de ensino

Fundamental e Médio, respectivamente, na Educação Básica. Cf. Lei 9.394 de 20 de

Dezembro de 1996. 18 Secretaria Estadual de Saúde - SESAU 19 MEDEIROS, Gerson. Entrevista gravada no dia 05 de Junho de 2017, realizada

por James Batista, digitada, p. 1.

456

onde tinha células se apresentando pra luta política a gente tava junto

nessas reuniões, fazendo reuniões todo tempo e levando professores

e de outras categorias pra fazer esse processo da luta política,

organizando como nós poderíamos fazer essa luta, passamos um

tempão sem nada, a experiência tava dando certo no ABC Paulista, a

gente tava pegando todas as informações do que tava acontecendo, a

pauta de reinvindicações nacional, de como tava sendo conduzido, e

a gente não poderia ficar de fora desse processo. Então Aloyzio

conduziu muito bem dois mandatos que ele fez, conduziu muito essa

luta política aqui (...) na luta política no Estado do Amazonas. Ele foi

bem por que ele sempre tinha abertura. Por que ele fez o processo

aberto? Por que ele trabalhava em cima de princípios. E qual era o

princípio? O princípio da autonomia. A gente muito esse princípio da

autonomia, que bem podia ser em relação ao Estado, ao governo ou

ao próprio partido, entendeu? Princípio da democracia, que é aberto

pra todos, que independe, aqui não depende do partido político A, B

ou C, todos aqui são associados, e pode até ter partido político,

alguém ser de partido político, mas aqui não, aqui são os sindicalistas

exercendo uma tarefa, era essa a estratégia nossa... isso que ele

colocava também. Ele é apartidário, mas não significa que ele não seja

político, todo movimento é político. (...) E o Aloyzio sempre foi muito

aberto, por que pra princípio foi aprovado em plenária num

congresso nosso esse princípio básico pra gente fazer a luta política,

então ele sempre respeitou as opiniões. A divergia ela faz parte do

processo burocrático e a gente queria entender melhor como a

categoria estava vendo todo esse nascer, renascer da luta sindical no

Estado do Amazonas. Ele conduziu muito bem isso aqui.20

João Ricardo Bessa Freire, outro entrevistado, teve atuação também

no movimento dos professores nas décadas de 1970-1980. Professor do

Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas,

descreve sua atuação como docente durante o período Militar, onde

lecionou em escolas públicas da capital amazonense. Freire foi

entrevistado no dia 03 de Junho de 2017, em sua residência, o que

proporcionou uma certa tranquilidade para sua narrativa. Sobre sua

atuação como professor no período civil-militar ele expõe

20 Ibid., p. 3.

457

A minha trajetória como professor no ensino médio e sobretudo no

ensino superior foi um pouco com essa preocupação, quer dizer uma

postura mais pragmática, trabalhar o ensino pra uma realidade

concreta, pra resolver problemas concretos seja como professor de

Moral e Cívica ou OSPB (Organização Social e Política do Brasil)21

quando inicie minha carreira na década da Ditadura Militar e depois

como professor de História na própria UFAM (Universidade Federal

do Amazonas). Então eu tenho já quarenta e dois anos de experiência

no magistério. Fui professor no ensino fundamental, ensino médio e

Ensino superior e também professor de Curso de Pós-Graduação. 22

Algumas medidas para a implementação da transição da ditadura

para a democracia, foram dadas por exemplo, com o fim do Ato

Institucional nº 5 em 1978, assim como a Lei de Anistia23, que embora

privilegiasse os dois lados (militares e exilados), colaborou muito no

processo da transição devido o retorno de várias personalidades

contrárias ao governo militar. Para Silva, a Anistia

Decretada pelo governo, sem negociação com a oposição em 28 de

Agosto de 1979, a anistia assegurou que não haveria revanchismos –

uma das principais preocupações das Forças Armadas -, pois o

perdão não consentiria que os militares envolvidos com a repressão

fossem julgados ou condenados por atos praticados em nome do

governo ou das Foças Armadas. (SILVA, 2007, p. 270).

Outra medida importante, foi a permissão para eleições diretas

para governadores em 1982, junto às eleições para o Congresso

Nacional. Esse fato mostrou-se como uma oportunidade para a

oposição, tendo em vista ter ganho “em nove dos 22 estados, inclusive

21 Vigentes desde 1969, por meio do Decreto Lei nº 869 de 12 de Dezembro do

mesmo ano, as disciplinas de Moral e Cívica e Organização Social e Política do

Brasil (OSPB), criadas no contexto ideológico da Ditadura Civil Militar, tinha

como objetivo que iam da ‚preservação do espírito religioso ao aprimoramento do

caráter (...).” Cf. BATISTA, 2018, p. 256-257. 22 FREIRE, João. Entrevista gravada no dia 03 de Junho de 2017, realizada por

James Batista, digitada, p. 2. 23 Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.

458

nos mais importantes como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e

conseguiu maioria na Câmara dos Deputados” (SILVA, 2007, p. 177).

Neste contexto das eleições diretas para os estados, chega ao poder

Gilberto Mestrinho pelo Partido do Movimento Democrático

Brasileiro (PMDB) numa disputa com Josué Filho do Partido

Democrático Social (PDS) em 1982.

Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo, começou na política

amazonense, ainda na década de 1950 como prefeito de Manaus, na

época indicado por Plínio Coelho. Ainda nesta década, em 1959,

inicia seu mandato como Governador do Estado do Amazonas,

onde rompe com Coelho, numa disputa pelo domínio político do

Estado. Em 1962, reata politicamente com Plinio Coelho auxiliado

por João Goulart, onde em outubro do mesmo ano, elegeu-se

Deputado Federal pelo território de Roraima, contudo, em Abril de

1964, teve seus direitos cassados pelo AI-1 que expurgou diversos

políticos do cenário político brasileiro. Com o processo de abertura

política, retornou ao governo do Amazonas com as eleições diretas

para governadores no ano de 1983.

Aloysio Nogueira teve uma relação de enfrentamento com

Gilberto Mestrinho, por conta do movimento dos professores. Ele

relata parte da trajetória de Mestrinho, assim

(...) conheço o Gilberto desde a década de sessenta, tive contato com

ele. Ele era praticamente um garoto quando assumiu o governo pela

primeira vez aqui. (...) Foi quando ele [Plinio Coelho] convida o

Gilberto Mestrinho para trabalhar com ele, e é nesse processo é que o

Mestrinho ele aparece na cena de Manaus como um funcionário

público né? Que falasse professor né? Ele tinha uma escola ali, outra

acolá, que ele não foi professor que hoje nós temos a concepção, mas

ele se dedicava a esse tipo de trabalho muito bem, e o Gilberto foi na

realidade passando a influência dele, ele era um populista mesmo no

ponto de vista de passear de noite né por aí. Muito bem, esse pessoal

todo dessa política populista você sabe que eles foram cassados né,

isso em sessenta e quatro, tanto é que o Plinio voltou no segundo

governo dele, depois do primeiro governo do Gilberto foi o Plinio

eleito né? No segundo governo do Plinio ele foi cassado quando

459

estava num festival folclórico de Manaus ali na praça General Osório,

onde é o Colégio Militar tem uma praça ali... Ele tava discursando

quando disseram pra ele que ele ia ser cassado ali, e de fato foi né? ele

foi cassado (...)24.

A postura do governador frente ao movimento dos professores, é

apresentada como uma divergência partidária, tendo em vista os

professores terem engrossados a criação do PT na década de 1980,

assim, criando no cenário da política amazonense, um quadro de lados

antagônicos que colocou o governo de Gilberto Mestinho um lado e o

professorado manauara de outro. Na memória de Aloysio Nogueira,

percebeu-se uma narrativa que girou em torno do enfrentamento dos

docentes contra o governo, deixando aparente o modo diferente de

política que o PT praticava, oposicionando assim à postura de

Mestrinho e seu partido desde a transição do Movimento Democrático

Brasileiro para o PMDB. Portanto

(...) e daí vem esse grande movimento MDB né? movimento MDB, e é

nesse processo é que surge por exemplo o PT rompendo com isso.

Com esse tipo de política né? mais uma série de partidos, sobretudo

PCB e o PCdoB eles fecham com a figura de Gilberto, (...). Muito bem,

o Gilberto assume num combate, num combate à ditadura pra

assumir o governo como sendo um governo democrático, perfeito?

Essa é a grande palavra (...) Muito bem, em oitenta e dois Gilberto sai

candidato, o PT sai com candidato também, o PT não tem, sai sozinho

praticamente, mas as outras forças todas foram para o guarda-chuva

do PMDB era um grande partido, era guarda-chuva esse é que é a

verdade, o PT não! Qual é essa diferença? Essa diferença vai influir

no movimento, por que nós, por exemplo APPAM, ele teve um

enfrentamento muito firme contra o ultimo governo da ditadura, era

o professor da universidade José Lindoso, nessa época fazendo

parênteses a negociação que nós tivemos com o governo Lindoso, (...)

e eu fui o dirigente que sentou a mesa de cara com ele, daí é que o

pessoal observa e diz é a nossa liderança, tá vendo? (...) Então, (...) o

24 Nogueira, Aloysio. Entrevista gravada o dia 06 de Junho de 2017, realizada por

James Batista, digitada, p. 7

460

Gilberto estava por fora com o apoio desses partidos políticos e nós já

dizíamos na época, nós vamos ter problemas, por que a maneira

como o Gilberto governa, ele vai repetir o que fazia antes, não deu

outra.25

Gerson Medeiros, quando questionado sobre o ex-governador,

tem um certo zelo na entrevista, possibilitando perceber a mudança

de postura na sua narrativa quando o assunto se relacionou a

Mestrinho. Foi perceptível uma tonalidade de voz mais baixa e

palavras mais lentas, dando a aparência de que a narrativa fosse

um momento mais cauteloso para o professor. Questionado sobre o

ex governador, ele indagou

Era mal visto. Só de você ver. Você pune o professor, ele não se via

assim eleito pelos professores, mas eleito pelo povo do Amazonas,

primeiro por que ele chamava de grupelho nós ali que estávamos a

frente da luta, então ele era muito mal visto pela categoria dos

professores. Esse é um aspecto interessante de ser visto. Depois, pelo

fato desta repressão ter acontecido ele ficou pior ainda.26

Gerson viveu alguns momentos da repressão que o chefe do

Executivo impôs aos professores na década de 1980. Para ele, esse

passado tem uma grande relevância para si e para o movimento

dos docentes manauaras, por conta da reflexão que pode ser feita

até os dias atuais, dado isso, podemos entender que este fato está

relacionado com o que Alistair Thomson chama de Reminiscência

que são ‚passados importantes que compomos para dar um sentido mais

satisfatório à nossa vida *...+” (THOMSON, 1997, p. 57)

Relatos por exemplo da demissão de professores estatutários27

que eram dispensados diariamente, durante uma das greves dos

professores, traz à tona uma memória, que parecia trágica para o

25 MEDEIROS, Gerson., p. 8 26 MEDEIROS, Gerson., p. 9. 27 Regime de Trabalho, onde o servidor adentra ao serviço público através de

Concurso Público, adquirindo assim estabilidade no emprego.

461

momento, mas que foi de suma importância no processo de luta

dos docentes. Sobre esse fato Gerson explica

Foi em mil novecentos e oitenta e três, [...] esse momento aí foi

importante pra nós de profunda reflexão. É que de madrugada

chegava a lita dispensando, o Gilberto Mestrinho dispensando,

exonerando os professores estatutários. Saia em Diário Oficial. Então

saia a lista de quinze, vinte e cinco, aí eu sei que quando chegava de

manhã aí vinha a última lista, os ‚caras‛ eram terríveis. Aí quando os

‚caras‛ pegavam aquilo, meu Deus do Céu era um alvoraço por que

eles estavam na luta política. Aí foram setenta e cinco professores na

realidade que foram dispensados. Mas como a gente estava muito

bem organizado, então a sociedade entendeu que os professores

tinham razão e foram conosco nesse processo,[...]. Gilberto deu uma

recuada, primeiro ele suspendeu as exonerações dos setenta e cinco,

aí eles voltaram pro trabalho, foi fundamental pra sequência da luta.28

Memórias da Greve

A Greve dos professores de Manaus, iniciou em Novembro do

mesmo ano, após negativas do Governo do Estado em atender as

demandas dos professores, onde a principal era um reajuste de 120%

no salário da categoria. Organizados sob a direção da APPAM, no dia

08 os professores iniciaram com uma Paralização Didática29, que com o

passar dos tempos se tornou uma Paralização Geral. A resposta do

governo veio em forma de Ato Administrativo que suspendeu 75

professores que passariam por processo de demissão, mesmo estes

sendo estatutários. Após Assembleia Geral, com a participação de mais

de cinco mil professores, no dia 01 de Dezembro optou-se pela Greve

de Fome iniciadas pelo Presidente da APPAM Professor Barbozão e

Francisco Lemos.

Se personificando desde 1982 devido a problemas referentes a

atrasos salariais dos docentes dos municípios interioranos do

28 MEDEIROS, Gerson., p. 4-5. 29 Ação onde os docentes iam para as Unidades Escolares, mas não lecionavam

conteúdo didático.

462

estado, a contratação de professores temporários em ano eleitoral,

quando havia concursados aguardando a chamada para nomeação

e o não pagamento do 13º salário, a mobilização de 1983 trouxe

outra característica diferente de movimentos anteriores: a

participação do interior do Estado destacando-se os municípios de

Itacoatiara e Fonte Boa. (DIEDERICHS, 1997, p. 92)

As tentativas de negociação eram infrutíferas, e a postura de

Mestrinho com os docentes, se mostravam complicadas para o

êxito das demandas docentes. Gerson Medeiros expõe essa situação

Aí como a gente já vinha no processo de uma luta, de organização, de

conversa desde setenta e nove, nossa conversa com os professores, já

é a APPAM que vem a frente desse processo de luta, daí que nós

levamos a proposta pro governador, pra ele avaliar. O governador ele

estava assumindo estas questões, e ele deu prazo pra responder o

documento dos professores que era um elenco de reinvindicações

muito grande, mas como disse, o fundamento dela, os eixos

principais a gente não podia perder de vista isso aí. Então o Gilberto

foi postergando o tempo... ele fazia acusações metendo até

movimentos políticos, que ele tinha sido eleito democraticamente

pelo povo aquela coisa toda, que achava que realmente não dava pra

responder aquela questão por que estava assumindo, que não tinha

como responder.30

Não havendo um entendimento, a resposta do governo, como

já foi posto aqui, foi ameaçar os professores com demissão. Mesmo

que o afastamento dos educadores tenha causado danos, os

mesmos continuaram seus atos de manifestação. Iniciando a Greve

de Fome na Igreja de São José Operário (DIEDERICHS, p. 28-29).

Nogueira lembra deste fato, com entusiasmo, pela maneira como se

organizou o movimento naquele momento para as ações da greve

de 1983, mesmo não tendo sido um dos grevistas de fome. Para ele

Rapaz isso ai movimentou, de uma... encheu assim aquele Olímpico

Clube. Rapaz uma assembleia monstruosa rapaz, eu não estava

30 30 MEDEIROS, Gerson.,p. 5.

463

dirigindo a entidade a época porque o dirigente [inaudível] setenta e

nove oitenta, depois passaram pra outro, quem estava dirigindo essa

entidade, ele até morreu o dirigente, o Barbosa, Barbosa, mas o

Barbosa não tinha, é isso que eu te digo não tinha a oratória e não

tinha a capacidade de agregar o... ele foi praticamente atropelado

rapaz, sem querer: ‚pode ser, não você vai e faz a proposta‛. Então eu

é que falava, eu que dirigia, enfim retomei todo aquilo que eu fazia

antes desse movimento, então tanto é que surgiu a greve de fome,

sabe essa igreja aqui da praça quatorze ali na Duque de Caxias, na

Visconde de Porto Alegre? como é o nome? São José Operário, rapaz,

eu nunca tinha visto aquilo rapaz, o Ricardo Bessa foi um dos que

entrou em greve né de fome, o Barbosa o também, o presidente

entrou em greve de fome, como é que, desistir da presidência, como é

que pode, ele foi, que dizer ele foi, daí deixou o flanco aberto né, mas

daí tinha um grupo que o apoiava, e nós seguramos a barra, rapaz foi

uma parada (...)31.

João Freire, foi um dos grevistas, que participaram da greve de

fome substituindo o então presidente da APPAM, Professor

Barbosa. A greve de fome, ocorrida durante a negociação com o

Governo do Estado, foi um evento de grande importância para os

entrevistados, tendo em vista a comoção social que causou na

sociedade amazonense. Podemos perceber que o evento se

entrelaça na memória destes com outros que estão temporalmente

distantes. Neste ponto expomos a ligação das memórias sore a

greve de fome, a demissão sumária dos docentes, a Assembleia de

sete mil professores em 1983 e a caminhada até o Palácio Rio Negro

em 1985 com o enfrentamento a Policia Militar.32

31 Nogueira, Aloysio., p. 13. 32 O movimento dos professores manauaras ocorrido em Abril de 1985, foi uma

mobilização que culminou em uma caminhada dos docentes do Colégio

Amazonense D. Pedro II até a Sede do Governo do Estado do Amazonas que neste

ano funcionava no Palácio Rio Negro, também na Avenida 7 de Setembro na

Capital Amazonense. Forçando o governo a abrir negociação com os professores, a

APPAM organizou a caminhada que foi acompanhada pela imprensa, deputados

e trabalhadores de outras categorias. No dia 29 de abril, no trajeto da caminhada o

governo posicionou mais de dois mil Policiais Militares que acabaram reprimindo

464

A memória também é constituída por três elementos:

acontecimentos, personagens e lugares. Os acontecimentos estão

ligados a pessoas que viveram um fato pessoalmente ou por tabela.

Acontecimento por tabela, diz respeito a importância que um fato

tem no imaginário da pessoa dando a incerteza da participação ou

não deste. O segundo elemento da memória são os personagens,

que na mesma perspectiva dos acontecimentos, pode estar presente

na memória por tabela. Por fim, os lugares, outra parte da

memória, constitui-se de uma lembrança pessoal, mas ‚pode

também não ter apoio cronológico‛ (POLACK, 1991, p. 2-3).

Esse apoio cronológico, ou as datas, dentro da memória é

descrito por Polack

Além dessas diversas projeções, que podem ocorrer em relação a eventos,

lugares e personagens, há também o problema dos vestígios datados da

memória, ou seja, aquilo que fica datado como data precisa de um

acontecimento.33

Freire, agrupa em sua memória a realização de uma assembleia

acontecida no Olímpico Club em Manaus, no ano de 1983, com a

caminhada ao Palácio Rio Negro no ano de 1985

Em oitenta e cinco, sete mil professores no Olímpico, lotamos o

Olímpico, as arquibancadas do Olímpico. Sete mil professores e aí

aprovamos a nossa pauta de reinvindicação pro governador e uma

delas era a questão salarial e a questão democrática também, a

liberdade das escolas, a eleição para diretores de escola, que a gente

havia conquistado no governo anterior da Ditadura que ele havia

o movimento violentamente os professores. Após a Crônica de José Ribamar Bessa

Freire, a caminhada entra para a memória dos Professores como a ‚Batalha do

Igarapé de Manaus.‛ Para maior conhecimento sobre a crônica, Cf. FREIRE, José

Ribamar Bessa. ‚A Batalha do Igarapé de Manaus‛. In: Essa Manaus que se vai.

Manaus: Instituto Census, 2012, p. 43-46. Sobre o Movimento de 1985, há uma

pesquisa em desenvolvimento para construção da Dissertação de Mestrado

denominada: ‚Da Lousa | Luta: Organização, Mobilização e luta dos professores

amazonenses na década de 1980.‛ 33 Ibid., p. 3

465

tirado, ou seja, ele fez pior que a Ditadura. Quando nós tentamos o

diálogo pra tentar levar nossa pauta de reinvindicação, ele disse que

não ia atender e não quis atender e nós dissemos que nós iríamos

invadir o Pal{cio, aí ele respondeu: ‚Se invadir o Pal{cio, eu vou

meter a peia nos professores‛.34

Medeiros atrela dentro desses recortes distinto, a participação

do representante da Igreja católica em 1985, quando este estava

associado a greve de fome, demonstrando a dificuldade que a

memória tem em relacionar ao evento data e nomes

A gente se uniu e foi andando e tal, e na Joaquim Nabuco tinha um

outro batalhão com baioneta apontando pra gente, quando a gente

chega em frente ao Palácio, a gente percebe benzinho que aquela

Polícia de Choque tava todinha dentro do Palácio, aqui na Cultura

que é o Palácio do Governo, todo mundo ali e eu disse: Rapaz, vai dar

merda. Isso vai dar merda! É que o Chico Queiroz foi se apresentar

dizendo seu sou o Chico Queiroz, Presidente da Assembleia e nós

viemos aqui conversar com o governador sobre a pauta dos

professores. Até o Dom Milton esteve presente nessa reunião, mas o

Dom Milton foi em oitenta e três... é tanta coisa pra estar

lembrando...35

Aloysio Nogueira, destaca uma relação entre a reunião no

Olímpico Club e greve de fome com a caminhada de 1985

[...] daí nós entramos com o, protocolamos né com o nosso

documento reivindicatório, [...], então Gilberto acompanhou o

movimento, daí é que vem se alastrou uma série de repressão em

relação ao movimento, tanto é só pra te dar um exemplo, ele demitiu

sumariamente uns, acho que uns setenta professores, sai nos jornais

rapaz o nome de cada um, tem alista deles sumariamente demitidos.

Eu por exemplo, eu e minha mulher fomos demitidos sumariamente.

Agora como é que você concursado é demitido sumariamente? Rapaz

isso aí movimentou, de uma, encheu assim aquele Olímpico Clube

34 FREIRE, João., p. 13. 35 MEDEIROS, Gerson., p. 7.

466

rapaz uma assembleia monstruosa rapaz eu não estava dirigindo a

entidade a época porque o dirigente (inaudível) setenta e nove

oitenta, depois passaram pra outro, quem estava dirigindo essa

entidade, ele até morreu o dirigente, o Barbosa[...]. Então eu é que

falava, eu que dirigia, enfim retomei todo aquilo que eu fazia antes

desse movimento, então tanto é que surgiu a greve de fome, sabe essa

igreja aqui da praça quatorze ali na Duque de Caxias, na Visconde de

Porto Alegre? [...] São José Operário, rapaz, eu nunca tinha visto

aquilo rapaz, o Ricardo Bessa foi um dos que entrou em greve né de

fome, o Barbosa o também, o presidente entrou em greve de fome,

como é que, desistir da presidência, como é que pode, ele foi, que

dizer ele foi, daí deixou o flanco aberto né, mas daí tinha um grupo

que o apoiava, e nós seguramos a barra, rapaz foi uma parada, foi lá

veio cá e nada do governo atender né, com, negociar pelo menos,

fazer pelo menos uma negociação, nada, foi quando nós nos

mobilizamos pra fazer uma caminhada do colégio estatual ao palácio

rio negro que era ali na sete de setembro e que nós fossemos pedir

uma negociação. A primeira que nós marcamos, nós tivemos que

desmarcar por que foi a morte do Tancredo Neves, a segundo foi

quando se efetivou né, tava até com chuva, um pouco e chuva e tal.36

Após esse ato, com apoio de representantes políticos e

religiosos, a greve é suspensa e a categoria tem como conquista

eleições diretas para Diretores de Escolas e a discussão de um piso

salarial. Embora tenha ocorrido certas conquistas pelos docentes

em 1983, ocorreriam ainda na administração de Gilberto Mestrinho

outros movimentos reivindicatórios como o caso da Caminhada ao

Palácio Rio Negro em Abril de 1985.

Conclusão

O movimento dos docentes do Amazonas iniciou-se antes do

fim do período ditatorial, acompanhando as lutas do ABC Paulista

no fim da década de 1970. O protagonismo docente no movimento

36 Nogueira, Aloysio., p. 14.

467

das categorias amazonenses é perceptível ao ponto que delas

ocorreu um impulso aos outros trabalhadores que buscaram por

direito. A memória, um instrumento frágil por corroer-se com o

passar do tempo, traz aos entrevistados uma oportunidade de

rememorar um acontecimento marcante aos professores daquele

período. A radicalização do movimento – A Greve de Fome – é tão

importante na memória que se confunde com outro ato distante

quase dois anos – A caminhada de abril de 1985 onde se confrontou

professores e policiais – e que dado momento confunde-se no valor

de ações do movimento docente. Assim, continuamos na análise de

movimento tão importante, assim como o período, da trajetória dos

movimentos sociais na transição da Ditadura Civil Militar para a

Democracia.

Referências

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51-84.

469

Processo crime como fonte de pesquisa

Leandro Mayer1

Marclei Ines Gossler2

Notas introdutórias

Este capítulo contextualiza o processo criminal instaurado

contra Padre Paulo Hobold, que figura como acusado de crime

contra a segurança nacional no Processo Crime 5.126. A denúncia

que recai sobre o religioso é de tecer sérias críticas contra as

relações do Brasil com os Estados Unidos, incitando fiéis católicos

contra adeptos da religião ‚Batista‛ em Orleans/SC. O caso é

tratado como ‚grave‛ e ‚capaz de criar um ‘caso’ de consequências

imprevisíveis‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 5).

Com a normatização de condutas do Estado Novo, modelo

autoritário de governo, a população de origem imigrante alemã,

concentrada principalmente na região sul do País, sofreu

repressões. Partindo do pressuposto de que a normatização da

Campanha de Nacionalização passou por leituras e interpretações

dos agentes oficiais envolvidos, responsáveis pela implementação e

o cumprimento da lei, entende-se que o processo como um todo foi

peculiar, a depender dos envolvidos, da resistência e da repressão.

Desse modo, parte-se de um contexto macro-histórico, para

verificar, em escala reduzida, as respostas singulares.

Os Processos Crime, além de serem inéditos em estudos

acadêmicos, são capazes de revelar aspectos não abordados em

outros campos de análise. Sobre a relevância das fontes,

concordamos com Ginzburg (1991), que afirma que um documento

realmente excepcional pode ser muito mais revelador do que mil

documentos estereotipados. Já Dosse (2009) enaltece que a

1 Doutorando em História pela UPF. Bolsista FUMDES/UNIEDU. Assistente

Técnico Pedagógico da rede pública da Secretaria de Estado da Educação de Santa

Catarina. E-mail: [email protected]. 2 Bacharel em Administração pela SEI/FAI. E-mail: [email protected].

470

descoberta de documentos novos e até então inacessíveis

possibilita novas leituras, oferecendo ao historiador, uma seara

única. É fato também que a documentação criminal é o espaço onde

se dá voz aos anônimos, cujas vozes para Rosemberg (2009) se

cruzam, esbarram e se complementam.

Padre Paulo Hobold e o sermão da discórdia

O padre foi denunciado à Delegacia de Ordem Política e Social

e investigado pela Delegacia Regional de Polícia de Tubarão que

considerou em relatório à DOPS ser verdadeira a denúncia

apresentada contra o padre, dando detalhes do ocorrido. Conforme

o relatório, foi inaugurado em 26/01/1944 em Orleans um templo

da Igreja Batista, ocasião em que os católicos celebravam a festa de

São Sebastião, tendo comparecido à inauguração diversas

autoridades, entre elas, o Juiz e Promotor Público da Comarca e o

prefeito da localidade, o que não teria sido bem visto com bons

olhos pelo sacerdote, que ‚numa explosão toda clerical, um ou dois

dias depois, explorando a ignorância e o fanatismo de seus

paroquianos, atacou do púlpito da igreja católica, em linguagem

violenta, não só os organizadores do templo Batista, como também

taxou os brasileiros que ali foram de maus patriotas‛ (P. C. 5.126,

1944, p. 5).

Em sua fala, o padre teria pronunciado que ‚os americanos que

ali estavam, além de pregarem uma falsa religião, eram espiões dos

Estados Unidos que atuavam no Brasil‛, para o que o relatório

considera que o padre descambou do campo religioso para o

terreno da política internacional ao tecer ‚os mais severos

comentários e críticas contra as relações do Brasil com os Estados

Unidos‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 5), criticando a união entre brasileiros

e norte americanos. Conforme depoimentos de testemunhas, o

discurso do padre foi previamente preparado, pois notoriamente

fez uso de anotações contidas em rascunhos.

Em 23 de março foram intimadas as testemunhas para depor

sobre o caso, entre elas, o acusado, padre Paulo Hobold.

471

Em 27 de março foi ouvido o depoimento de Francisco Dutra

Junior, Serventuário da Justiça, que disse conhecer o acusado.

Confirmou os fatos contidos no relatório e afirmou que presenciou

o sermão do padre realizado no púlpito da igreja católica em

28/01/1944, tendo este criticado ‚a conduta do presidente Roosevelt

com relação ao Brasil, afirmando estar este empenhado na

desagregação moral da família brasileira‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 8).

Teria mencionado também que aqueles que ‚andavam fazendo

discursos em festas cívicas não passavam de maus brasileiros e

verdadeiros traidores da p{tria‛, fato que a testemuha atribui aos

indivíduos que participaram da inauguração do templo Batista e

fizeram uso da palavra. Finaliza que o sermão do padre foi

‚violento‛, fugindo de sua finalidade de car{ter religioso.

No mesmo dia, o médico Antônio Dib Mussi também foi

inquerido. Disse conhecer o padre acusado, porém, não sabe

definir o ponto de vista deste diante do panorama internacional,

contudo, diante do sermão que assistiu em 28 de janeiro daquele

ano, o religioso foi infeliz nas colocações, ao afirmar que ‚a religião

batista era desagregadora da unidade religiosa brasileira e,

consequentemente, as pessoas que esposavam a mesma e que

ainda ao mesmo tempo faziam discursos em solenidades cívicas

não passavam de maus brasileiros e mesmo traidores da p{tria‛ (P.

C. 5.126, 1944, p. 9). O padre ainda teria mencionado que não havia

necessidade de pastores americanos virem ao Brasil no intuito de

pregar religião, visto que nos próprios Estados Unidos existia

grande número de pessoas sem religião, colocando assim, em

dúvida as reais intenções da vinda de pregadores ao Brasil.

Em 28 de março foi ouvido Antônio da Silva Cascaes Junior,

funcionário público municipal. Também confirmando conhecer o

padre, mas sem precisar as tendências politicas do referido, se disse

surpreendido com o sermão realizado pelo sacerdote,

considerando que ‚pela linguagem violenta fugia por completo de

sua finalidade religiosa descambando para crítica das relações

entre brasileiros e americanos‛. O padre teria dito que os pastores

protestantes não vinham com uma finalidade religiosa

472

propriamente dita, pois se assim fosse, não deixariam um ‚grande

número de crianças sem assistência religiosa para vir ao Brasil, país

estranho, pregar religião‛. Fez menção também ao presidente

Roosevelt, mencionando que o mesmo teria afirmado ser

necess{rio combeter a religião católica, portanto, ‚deveria a família

brasileira precaver-se contra a infiltração de outras religiões que

nada mais visavam senão o desagregamento da família brasileira‛

(P. C. 5.126, 1944, p. 10).

Na mesma data também foi ouvido Manoel Bertoncini, coletor

federal. Afirmando que participou do sermão do padre, considerou

que ‚o referido pregador fez referencias violentas contra a religião

batista descambando para crítica das relações mantidas entre

brasileiros e americanos‛. O padre teria acusado os mission{rios

americanos que quando ‚vinham para o Brasil traziam além da

religião outros objetivos suspeitos bem como ainda dissiminavam a

discórdia no seio da família brasileira‛. Quanto aos frequentadores

da igreja batista, taxou-os de traidores da pátria, dizendo-se

admirado destes frequentarem uma igreja cujos ‚ministros eram

suspeitos‛, criticando que ‚mais tarde ditos frequentadores

vinham fazer discursos nas solenidades cívicas‛ (P. C. 5.126, 1944,

p. 11).

Por fim, também na data de 28 de março é ouvido o acusado,

padre Paulo Hobold. Em suas declarações falou que era natural

daquele município3 e que atualmente exerce o cargo de coadjutor

da paróquia. Denominou-se brasileiro, assim como seus pais e

avós, porém, mencionou que seus bisavós eram de nacionalidade

alemã. Interrogado sobre as denúncias que recaíam sobre ele,

confirmou que realmente realizou sermão na data mencionada no

inquérito, e de ter ‚taxado de maus brasileiros e traidores da p{tria

aqueles que frequentam seitas religiosas protestantes‛, justificando

que com a fala visou atingir pessoas da cidade que frequentavam

as solenidades religiosas da aludida igreja batista. Sobre as críticas

sobre os pastores, argumentou que o templo religioso batista foi

3 Orleans/SC.

473

inaugurado em parceria com ministros da mesma religião ‚vindos

de fora‛, o que considerou um erro, pois em seu entender, estes

pregadores ‚não tinham em mira somente a religião e sim outras

finalidades ocultas‛, questionando a vinda destes ministros norte

americanos ao Brasil quando existem ‚milhões de pessoas e

inúmeras aldeias sem assitência religiosa nos Estados Unidos, era,

pois, de admirar que os referidos ministros não se preocupassem

com a sua p{tria e viessem para o Brasil fazer pregações religiosas‛

(P. C. 5.126, 1944, p. 12).

No entender do denunciado padre Paulo Hobold, esta maneira

de agir destes ministros americanos dava ‚margem a suspeitas,

querendo mesmo crer que a finalidade da vinda deles à nossa

pátria visa, além da religião, outros objetivos, servindo aquela

apenas para mascarar as suas verdadeiras finalidades‛. Dadas as

circunstâncias, confirmou que criticou as pessoas que

frequentavam as seitas religiosas protestantes e ainda iam ‚|s

solenidades cívicas fazer discursos patrióticos, pregando a união e

patriotismo aos brasileiros quando, na realidade, praticamente lhes

faltava autoridade para isso‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 12). Para o padre,

os frequentadores estavam traindo a união religiosa e moral da

pátria, bem como, auxiliando os ministros em seus planos ocultos.

Declarou ainda que mais de uma vez ‚incentivou seus fiéis a

combaterem as seitas protestantes que se propagam não só nesta

localidade como também, num modo geral, no resto do Brasil, a

fim de evitar o desagregamento moral e religioso da família

brasileira‛. Contudo, negou que tivesse criticado a união amistosa

existente entre brasileiros e americanos e que em várias

solenidades cívicas pregou o patriotismo, ‚incentivando brasileiros

a lutarem pela defesa da pátria contra os ideais totalitários ou outro

que porventura venha ameaçá-la em sua soberania‛ (P. C. 5.126,

1944, p. 12).

Em 4 de abril, Lourenço Alves de Deus, Delegado Regional de

Polícia de Tubarão, em seu relatório concluiu que as denuncias

contra o padre Paulo Hobold eram verídicas e se confirmaram ao

longo do inquérito, sendo através de depoiumentos das pessoas

474

inqueridas quanto pelas próprias declarações do acusado. Destacou

que o padre em seu sermão

em vez de cingir-se com a sua crítica dentro, exclusivamente, do

campo religioso, buscou no terreno das relações internacionais, para

ilustrar os seus argumentos, fatos que, no momento, vão de encontro

com os princípios esposados pela maioria dos povos americanos, isto

é, a chamada política da ‚boa vizinhança‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 13).

Para o delegado, o padre

procurou, ainda, afim de evitar que seus paroquianos fugissem do

seio da igreja católica, incutir-lhes na mente que, os ministros

religiosos americanos que para o Brasil vem pregar, trazem, além do

objetivo religioso, outros ocultos... dando, assim a entender, que, algo

perigoso e, consequentemente, merecedor de cautela, existia nas

ações dos referidos ministros (P. C. 5.126, 1944, p. 13).

O relatório aponta que essas declarações poderiam ‚trazer

sérias antipatias aos espíritos menos precavidos contra um dos

aliados do Brasil na luta pela liberdade humana‛ (P. C. 5.126, 1944,

p. 13).

Na mesma data, os autos do inquérito são remetidos à

Delegacia de Ordem Política e Social em Florianópolis, onde foram

examinados em 13 de abril pelo Delegado Adjunto da DOPS

Arnaldo Martins Xavier, que em despacho, devolveu novamente os

autos à Delegacia Regional de Tubarão, solicitando que fosse ser

investigado se as acusações proferidas pelo padre Paulo Hobold

atingiam as autoridades que compareceram na inauguração do

templo batista, considerando também ser necessário

verificar se as palavras proferidas pelo padre Hobold poderiam ser

motivo de incitamentos de fiéis católicos contra a religião batista,

contrariando os princípios constitucionais que garantem a liberdade

de cultos religiosos, devendo a autoridade prevenir qualquer

atentado contra pessoas ou bens por motivo religioso (P. C. 5.126,

1944, p. 13).

475

Dado o retorno dos autos à Delegacia Regional em Tubarão,

foram intimados para prestar esclarecimentos o prefeito e o juiz de

direito da comarca. Nas declarações do prefeito de Orleans José

Antunes Matos, disse que foi convidado para assistir à inauguração

do templo religioso batista em 26 de janeiro na qualidade de

autoridade m{xima do município, que conhece h{ ‚quarenta e três

anos igrejas batistas neste município e pode, portanto, afirmar que

as mesmas sempre acataram as ordens das autoridades com o

máximo respeito sem nunca procurar perturbar a ordem pública ou

espalhar discórdias no seio da família brasileira‛. Sobre pregadores

religiosos norte americanos falou que de tempos em tempos, há

alguns anos, fazem ‚pregações nesta zona, sem nunca haverem

provocado distúrbios de qualquer natureza ou, mesmo

manifestado intenções ocultas, capazes de ameaçar a segurança

nacional‛. O depoente se disse admirado pelas declarações do

padre, considerando que seu ataque aos que compareceram à

inauguração caluniou a imagem destes como ‚traidores da p{tria e

desagregadores da família brasileira‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 15).

O prefeito advertiu sobre a gravidade das afirmações

proferidas pelo sacerdote, considerando que a maioria da

população católica da zona é de ‚nível intelectual bastante

inferior‛, sendo a sua maioria composta por colonos. Nesse

sentido, enaltece que ‚obedecer cegamente a orientação dos padres

católicos, fácil seria a incitação dos fiéis católicos contra adeptos da

religião batista‛, embora reconhece que não houve nenhuma

manifestação exteriorizada partida dos fiéis católicos, no entanto,

finaliza que ‚é bem possível que ficasse plantada no seio das almas

simples e rudes germens de prevenção psicológicas contra os

batistas‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 15).

O juiz de direito da comarca de Orleans em seu depoimento,

afirmou que foi convidado e participou da inauguração do tempo

batista na condição de juiz de direito da comarca, tendo em toda

solenidade ‚reinado a mais perfeita harmonia, não se notando

entre os adeptos da aludida religião, qualquer manifestação de

476

car{ter político‛, afirmando que entre os oradores que discursaram,

estes ‚não só fizeram pregações religiosas, como teceram hinos de

louvores | nossa p{tria‛. Sobre as críticas proferidas dois dias após

pelo padre Paulo Hobold em seu sermão, taxando os brasileiros

que compareceram | inauguração de ‚maus brasileiros e traidores

da p{tria‛, o juiz entende que tais afirmações ofendem ‚não só a

dignidade de brasileiro, como a dignidade funcional‛. Menciona

que a população é em quase sua totalidade católica, ‚tendo nos

padres católicos seus guias não só espirituais, como orientadores

da vida privada, sendo portanto, consequentemente fácil a estes,

em torcendo a verdade dos fatos, implantar a dissidia e a revolta

no seio da população, e o ódio desta contra os americanos‛ (P. C.

5.126, 1944, p. 17). Finaliza afirmando que após o ‚violento e

injurioso sermão‛ do padre, a população católica se conteve, não se

rebelando contra os adeptos da religião batista, por serem ordeiros

e repeitadores da ordem.

Os autos do inquérito novamente retornam à Delegacia de

Ordem Política e Social de Florianópolis em 9 de junho de 1944. A

pedido do Delegado Adjunto da DOPS, ainda foi intimado para

depor o promotor público que na época dos fatos atuava em

Orleans. Seu depoimento ocorreu em 26 de junho, mencionando

que soube que o padre Paulo Hobold teria proferido ataques às

autoridades participantes da inauguração do templo da igreja

batista, ‚taxando-as de quintas-colunas e criticando a união

brasileira norte-americana‛. Declarou que durante a inauguração

não foram ‚feitas referências a quaisque espécies |s autoridades do

país ou a qualquer outra religião‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 18).

As folhas 17 e 18 do Processo-Crime contém informações sobre

a vida pregressa do indiciado e o Boletim Individual de registro

junto à Delegacia de Polícia do Distrito de Orleans. Conforme

consta, as infrações cometidas pelo padre Paulo Hobold estão

previstos nos artigos 27 e 28 do Decreto-Lei 4.766.

O relatório conclusivo do inquérito é assinado pelo Delegado

Adjunto da DOPS Arnaldo Martins Xavier e data de 27 de junho de

1944. Nele consta que ficou provado que o padre Paulo Hobold da

477

igreja católica de Orleans, em sermão pregado em púlpito, criticou

as religiões protestantes de preferência ‚batista‛, tecendo críticas

também sobre as relações internacionais do Brasil com os Estado

Unidos, ‚dizendo que a conduta do presidente Roosevelt, com

relação ao Brasil era de ‘desagregação moral da família brasileira’ e

que os ‘indivíduos’ que ‘andavam fazendo discursos em festas

cívicas, não passavam de maus brasileiros e traidores da p{tria’‛

(P. C. 5.126, 1944, p. 22). O relatório afirma também que

o padre Paulo Hobold, não se limitou aos fatos acima narrados,

passando em seguida a incitar fiéis ‚católicos‛ contra a igreja

‚batista‛, como se verifica em suas declarações de fls., confissão

suficiente para demonstrar o perigo que poderá advir, de um

sacerdote que não respeita os direitos constitucionais da liberdade de

cultos. ‚... que por mais de uma vez o depoente incentivou os seus

fiéis a combaterem as seitas protestantes que se propagam não só

nesta localidade como também, num modo geral, no resto do

Brasil...‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 18).

Referindo-se às declarações do padre que afirmou que seus

bisavós eram de nacionalidade alemã, o relatório considera que

este fato basta ‚para compreendermos a razão pela qual os

americanos principalmente os da igreja batista, são considerados

espiões, dos Estados Unidos, trabalhando na desagregação da

família brasileira‛ (P. C. 5.126, 1944, p. 18). Reforça que, pelas

provas dos autos, o acusado infringiu os artigos 27 e 28 do Decreto-

Lei 4.766 de 1 de outubro de 1942. Por fim, remete os autos para o

Egrégio Tribunal de Segurança Nacional, onde o processo é

recebido em 11 de julho.

Dada a entrada dos autos no Tribunal, o procurador do

Tribunal de Segurança Nacional Eduardo Jara manifestou-se em 4

de agosto pelo arquivamento do processo, argumentando:

Contra PAULO HOBOLD, foi instaurado pela polícia de Santa

Catarina, inquérito sob o fundamento de que o mesmo, como

sacerdote, criticou de modo hostil a igreja protestante. Tal incidente

478

se originou da inauguração de um templo religioso, cuja solenidade

nela compareceram o Prefeito, o Promotor e o Juiz local. O indiciado

numa explosão de intolerância religiosa atacou aquelas autoridades e

os adeptos da religião adversa, atribuindo aos Norte-Americanos o

uso de uma falsa religião, classificando-os de espiões no Brasil.

Trata-se de mero incidente local. É o resultado de incompatibilidades

pessoais, sob a feição de contendas religiosas e políticas e que não vão

além do município de Tubarão.

Não há, assim, delito a punir. Opino pelo arquivamento do presente

inquérito (P. C. 5.126, 1944, p. 24).

Em julgamento, os juízes do Tribunal acordaram, em 29 de

agosto de 1944, por maioria dos votos, deferir o pedido de

arquivamento do Inquérito, considerando que os autos não

ofereciam qualquer indício de culpabilidade do acusado.

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Fonte primária

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Hobold, instaurado em 1944. Acusação: Crime contra a segurança

nacional. Disponível no Arquivo Nacional (fichário TSN – Tribunal

de Segurança Nacional).

479

História oral: resgate da receita culin{ria ‚dampfnudel‛, com

sabor de infância

Franciele Thomé1

Carlete Maria Thomé2

Introdução

Para a realização deste trabalho, foi coletado uma narrativa

oral/história oral, de uma vovó muito querida, Maria Amélia Back

Soehn. Ela, em seus relatos, nos falou das dificuldades enfrentadas

na época da colonização na pequena cidade de Itapiranga. Nos

falou das recordações do passado, nos relatou um pouco da sua

história de vida e da sua deliciosa receita dos ‚Dampfnudeln‛, que é

o nosso objeto de pesquisa. Neste projeto foi descrito um pouco

sobre a história oral como metodologia de ensino, abordando sobre

a identidade e memória. Descrevendo o resgate histórico da vovó e

apresentando a metodologia, objetivos e desenvolvimento da

atividade.

História oral como metodologia de ensino

Para a realização do nosso trabalho, escolhemos o método de

história oral, que consiste em realizar uma entrevista. O trabalho

com a metodologia de história oral é um conjunto de atividades

anteriores e posteriores aos depoimentos. Anteriormente realiza-se

a pesquisa e o para a preparação dos roteiros das entrevistas que é

a ‚peça fundamental para a aquisição dos detalhes procurados‛

(MEIHY; HOLANDA, 2010, p. 40). Posteriormente, foi realizado

um levantamento de dados. Diante disso, podemos observar que,

1Acadêmica do Curso de Pedagogia, UCEFF – Itapiranga/SC. E-mail:

[email protected] 2 Doutoranda PPGL, UPF - Passo Fundo/RS. [email protected]

480

[...] em história oral de vida, na medida do possível, deve-se trabalhar

com o que se convencionou chamar de ‚entrevistas livres‛; em

história oral temática, o que deve presidir são os questionários [ou

seja, os roteiros de entrevista], que precisam estabelecer critérios de

abordagem de temas. As perguntas e as respostas, pois, são partes do

andamento investigativo proposto (MEIHY e HOLANDA, 2010, p.

35)

As entrevistas da história oral são fontes para a compreensão

do passado, ao lado de documentos escritos, fotos, imagens, e

outros tipos de registro. ‚O trabalho com a história oral diz

respeito, sobretudo a uma metodologia de pesquisa que se baseia

em fontes orais. Essas fontes registram a experiência vivida, o

depoimento de um indivíduo ou de vários de uma mesma

coletividade.‛ (SCHMIDT 2009, p. 162).

Caracteriza-se por serem produzidas a partir de um estímulo,

pois o pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas.

Tornando o estudo da história mais concreto, facilitando a

compreensão do passado e das experiências vividas por outros

pelas novas gerações. ‚É necess{rio entender que o trabalho com a

oralidade consiste numa fonte diferenciada para captação de

informações, a qual está muito relacionada com o estudo da

história local.‛ (SCHMIDT 2009, p. 163).

O trabalho com história local, principalmente ao utilizarmos a

entrevista oral como metodologia, contribui para o reconhecimento

de cada pessoa como sujeito histórico pertencente à comunidade,

que também é um espaço onde se vive e produz sua própria

história. Thompson, afirma que a história oral contribui para o

resgate da história nacional, como podemos observar,

A história oral pode dar grande contribuição para o resgate da

história nacional, mostrando-se um método bastante promissor para

a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a

memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a

memória do homem. A memória de um pode ser a memória de

481

muitos, possibilitando a evidência de fatos coletivos. (THOMPSON,

1992 p.17)

A proposta da metodologia da História Oral, fundamentada

na construção da identidade e de memórias, se encaixa com as

metas propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),

para o ensino de História e Geografia dos anos iniciais. De acordo

com o PCN a disciplina de História espera que:

Ao longo do ensino fundamental, os alunos gradativamente possam

ler e compreender sua realidade posicionar-se, fazer escolhas e agir

criteriosamente. Nesse sentido, os alunos deverão ser capazes de:

utilizar métodos de pesquisa e de produção de textos de conteúdo

histórico, aprendendo a ler diferentes registros escritos, iconográficos,

sonoros. (BRASIL, 1997, p.33).

Percebe-se assim, que o ensino de História tem como

compromisso, a preparação para a formação do cidadão, sujeito de

sua própria construção de história, propondo uma reflexão sobre o

passado próximo da realidade do aluno e o ajudar a se perceber

como participante dessa construção. A metodologia da História

Oral amplia e diversifica a compreensão dos alunos sobre a

diversidade das fontes históricas, ampliando a ideia de que todo

registro do passado deve se tornar um estudo da História.

Assim, o uso da História Oral como uma alternativa para o

ensino de História oportuniza a construção de identidade, memória

e cultura no meio educacional. Essa metodologia pode ser

construída pelos próprios alunos, utilizando o gênero da entrevista

para re/construir e resgatar a história de algum lugar ou de

alguém, deste modo pode-se perceber que essa metodologia é

muito importante para a construção da identidade social e auxilia o

educando para que ele se perceba como sujeito ativo da História e

não como mero expectador.

482

Identidade e memória

Na aplicação da história oral pode se perceber que a

identidade do ser é formada dia após dia, com base nas suas

experiências sem que ele perceba. Hall cita que,

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através

de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência

no momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imagin{rio’ ou

fantasiado sobre a sua unidade. Ela permanece sempre incompleta,

est{ sempre ‘em processo’, sempre sendo formada (2006, p. 38)

Diante disso, ao entrevistarmos pessoas diferentes pode-se

perceber que a identidade se torna única a cada indivíduo, através

da realidade de cada um. O indivíduo é moldado diante da

diferença. A identidade para Mendes (2002, p. 504), é ‚socialmente

distribuída, construída e reconstruída nas interações sociais‛.

Diante dos grupos de convivência, família, amigos e comunidade.

Hall aborda que,

as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela.

Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é

apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que

não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido

chamado de seu exterior constitutivo, que o significado „positivo‟ de

qualquer termo – e, assim, sua „identidade‟ – pode ser construída

(2011, p. 110).

A nossa identidade está em constante transformação, ela tem

como base as nossas vivências e experiências de vida, muitas vezes

que ao longo da vida são esquecidas. Mendes (2002, p. 504), cita

que ela é ‚socialmente distribuída, construída e reconstruída nas

interações sociais‛.

Nesta perspectiva, nossa identidade quanto ser humano pode

estar em constante mudança, podendo ser modelado pelos

483

processos globalizados e sendo influenciada pelas diversas

culturas, ela

muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou

representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada

ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes,

descrito como constituindo uma mudança de uma política de

identidade (de classe) para uma política de diferença (HALL, 2006, p.

21).

Através da interação com diferentes pessoas é visível que todos

somos diferentes, únicos e próprios, possuindo diferentes formas

de pensar, agir e ser. Nossa identidade é o que nos forma e

é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos

inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento

do nascimento. [...] Ela permanece sempre incompleta, está sempre

„em processo‟, sempre „sendo formada‟. [...] Assim, em vez de falar

da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de

identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade

surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós

como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é „preenchida‟ a

partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós

imaginamos ser vistos por outros (HALL, 2006, p. 38-9).

Como seres humanos que passamos por tantas realidades e

experiências de vida, o nosso passado nos guarda tantas

lembranças que fazem parte de nossa identidade. Este resgate de

memória é de suma importância, pois com base nas experiências já

passadas nós, seres humanos nos auto avaliamos perante nossos

atos na sociedade, nos percebemos e nos identificamos como

sujeitos. A memória é fonte de ligação social, o qual associa o

presente com o passado, pensando ainda no futuro, ela

é acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do

passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo: „a memória

é de fato mais um enquadramento do que um conteúdo, um objetivo

484

sempre alcanç{vel, um conjunto de estratégias, um „estar aqui‟ que

vale menos pelo que é do que pelo que fazemos dele (CANDAU,

2011, p. 9).

Porém, Santos (2004, p.59) aborda que a memória não dever ser

vista apenas como uma ação de voltar a uma lembrança do

passado. ‚Ela deve ser entendida como um processo din}mico da

própria rememorização, o que estará ligado à questão de

identidade‛.

Somente buscamos por lembranças quando somos estimulados

a lembrar de algo, por questionamentos ou quando visualizamos

algum caso que já fez parte de nossa vida algum dia. Pollak (1989,

p. 9) afirma que a memória é uma ‚operação coletiva dos

acontecimentos e das interpretações do passado que se quer

salvaguardar‛. Est{ ‚é um fenômeno sempre atual, um elo vivo no

eterno presente [...] Porque é afetiva e mágica, a memória não se

acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças

vagas, telescópicas, cenas, censura ou projeções‛ (NORA, 1993, p.

9). Na história oral, esses momentos de memória poderão vir à

tona, mais detalhados ou não. Isso tudo depende das condições do

sujeito quanto a sua capacidade.

A identidade decorre a questão da construção das noções de

diferença e de semelhanças. Nesse aspecto, é importante a

compreensão do ‚eu‛ e a percepção do ‚outro‛, do estranho, que

se apresenta como alguém diferente. Para existir a compreensão do

‚outro‛, os estudos devem permitir a identificação das diferenças

no próprio grupo de convívio. Ter atitudes de preconceito e

descriminação é tratar diferente o nosso semelhante, por não ser o

que somos, como destaca Tomaz Tadeu da Silva,

Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da

identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto

original relativamente ao qual se define diferença. Isto reflete a

tendência de tomar aquilo que somos como sendo norma pela qual

descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por sua vez, na

perspectiva que venho tentando desenvolver, identidade e diferença

485

são vistas como mutuamente determinadas. Numa visão mais

radical, entretanto, seria possível dizer que, contrariamente à

primeira perspectiva, é a diferença que vem em primeiro lugar.

(SILVA, 2008, p.75-76).

Para entender melhor a identidade e diferença precisamos ter

bem claro que para examinar os sistemas de representações faz-se

necessário exercer uma relação entre cultura e significado, segundo

Kathryn Woodward (in SILVA, 2008, p.17) ‚a representação,

compreendida como um processo cultural estabelece identidades

individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se

baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou?

Quem eu poderia ser? Quem eu quero ser?‛.

Piere Nora faz uma distinção entre memória e história,

destacando que a memória se apropria da história, ocasionando o

que ele chamou de ‚lugares de memória‛.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há

memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso

manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios

fúnebres, notariar atas, porque essas operações não naturais. É por

isso a defesa pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos

privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que

levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória.

Sem vigilância comemorativa, a história depressa as varreria. São

bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não

estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de

constituí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que elas

envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não

se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e

petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória (NORA, 1993,

p. 13).

Jacques Le Goff define a memória como uma fonte para

conservar informações do passado, pois as memórias são coletivas

fundamentadas na história e na antropologia, como destaca:

486

A memória, como propriedade de conservar certas informações,

remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,

graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações

passadas, ou que ele representa como passadas. (GOFF, 1990, p. 423).

A memória coletiva tem como base as lembranças que os

indivíduos recuperam enquanto integrantes de um grupo, e que a

memória individual é fortalecida pela memória coletiva, porém,

com uma construção propriamente individual. Para Halbwachs

(2006):

Se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base

um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto

integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas

apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior

intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada

memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,

que esse ponto de vista muda segundo as relações que mantenho com

outros ambientes (HALBWACHS, 2006, p.69).

Negar ou exilar a memória no passado, segundo Ulpiano

Bezerra de Meneses (in BOSI, 1999, p.185), ‚é deixar de entendê-la

como força viva do presente. Sem memória, não há presente

humano, nem tampouco futuro‛.

Entendemos que a memória não é imutável, mas sim está em

constantes mudanças, pois a memória diz respeito não ao

conhecimento do homem no passado, mas o conhecimento da

dimensão temporal do homem. Vem ao encontro com o que

Maurice Halbwachs (2006) destaca sobre a memória coletiva, pois

para o homem entender melhor o seu passado ele precisa recorrer

às lembranças de outros, assim determinados pela sociedade, tendo

suporte um grupo limitado no tempo e espaço.

Vindo ao encontro que Margarida de Souza Neves (in

ESBOÇOS, 2004, p. 14) defende, ela considera que é função da

memória estabelecer os nexos entre passado, o presente e o futuro;

procurando salvar o passado, não somente como mero resgate

487

histórico, mas sim um processo direcionado a atuar no presente e

orientar os caminhos do futuro.

Michael Pollak traz presente às ideias do sociólogo Maurice

Halbwachs, a fim de demonstrar que a memória não é somente um

fenômeno individual, mas também coletivo, para Pollak (1992):

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo

relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs,

nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser

entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e

social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e

submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes

(POLLAK, 1992, p. 2)

Somos frutos da nossa memória, fizemos parte de uma história

(que est{ em constantes mudanças) para formar este ‚eu‛ que

somos que é a nossa identidade.

Resgate histórico da vovó

Aquele cheirinho que sempre alegra, aquele gostinho de quero

mais... é o que o ‚Dampfnudeln‛ nos traz. Por esta razão, nossa

receita escolhida foi esta. Um prato típico dos descendentes da

família Soehn, trazido da Romênia e tradicionalmente preparado

nos dias de hoje. A vovó Maria Amélia Back Soehn foi a escolhida

para ser a nossa entrevistada, por ela ter mantido este prato típico e

por fazê-lo tão delicioso e especial.

Maria Amélia conta que nasceu no dia nove de julho de 1933

no Rio Grande do Sul, e quando ainda era bem jovem, a família

toda veio para Santa Catarina, fixando residência em Linha Ipê

Popi – Itapiranga/SC. Em seus relatos, conta que iniciou a escola

com sete anos, ‚mesmo simples os professores eram bem

competentes e respeitados pelos alunos‛. Teve uma infância

muito pobre e não havia brinquedos, eles próprios inventavam

suas brincadeiras. Usavam muito a imaginação: ‚Para brincar de

boneca utilizamos pedaços de madeira enrolados em panos.

488

Quando todos se reuniam, brincávamos de roda, esconde-esconde,

sapata...‛. Por serem em muitos na família, todos trabalhavam na

propriedade, cada um tinha seus afazeres: ‚Levar os bois na roça,

tirar leite, limpar a casa, fazer pão, pegar lenha e graveto para fazer

fogo‛ e para ela o mais bonito era ‚fazer a comida com as panelas

grandes e cheias, nunca passamos fome‛.

Ela também frisou que para casar, precisava saber trabalhar. A

família era muito religiosa.

Maria Amélia gostava muito de ir a bailes e reuniões dançantes

no centro comunitários aos domingos de tarde. Em um desses

domingos, ela conta que conheceu Johannes, que a tirou para

dançar.

Ela se casou muito jovem, com 16 anos de idade, em 1949.

Johannes à levou para Linha Laranjeira, longe de sua família, onde

os familiares vivos residem até hoje. Em Linha Laranjeira iniciaram

uma nova família, tiveram 14 filhos, uma falecida, e enfrentaram

diversas dificuldades.

Para entender a sua cultura também tivemos que recorrer a

dados históricos. Família Söhn vieram em 1930 para Porto do Rio

Grande/RS. Em seguida, se deslocaram de carroça para Porto Feliz

- hoje Mondaí, dois dias depois vieram para Porto Novo - hoje

Itapiranga, através de balsas improvisadas pelo Rio Uruguai, numa

distância de 60 km, porque Itapiranga era uma colônia de católicos,

já que Porto Feliz era habitada por evangélicos. Johannes, seu

marido, sempre conta que também ficaram dois dias hospedados

no Volksverein – Sociedade União Popular (associação dos alemães

católicos do Rio Grande do Sul, fundada pelo Pe. Teodor Amstad,

em 1912), na qual tiveram que, de forma urgente, escolher uma

colônia e ir produzir. Escolheram um lote em Linha Laranjeira no

meio do mato (com o dinheiro das economias), cerca de 5 km da

cidade. Não haviam estradas, somente piques feitos de enxada.

Mais tarde, Volksverein mandou uma patrola para auxiliar na

abertura de estradas, pois tudo era mata nativa. Porto Novo

pertencia a Chapecó, ‚foi comprada em etapas, a partir de 28 de

janeiro de 1926, pelas Sparkassen do Estado do Rio Grande do Sul

489

para o Volksverein, para que esta entidade iniciasse a formação de

uma colônia a ser ocupada exclusivamente por alemães - natos ou

descendentes - de religião Católica Apostólica Romana‛.

(JUNGBLUT, 2000, p. 73). Conforme Mayer (2017), o projeto Porto

Novo se formou nos alicerces germânicos e católicos,

O projeto de colonização Porto Novo tinha suas peculiaridades, entre

elas aceitar somente compradores de terras que fossem de origem

germânica e católica, o que formaria, portanto, uma colonização

étnica e confessional sustentada sob os alicerces do germanismo e do

catolicismo. A colonização foi planejada, organizada e promovida a

partir de 1926 pelo Volksverein für die Deutschen Katholiken in Rio

Grande do Sul, fundada em 1912 pelos jesuítas de São Leopoldo/RS

(MAYER, 2017, p. 24).

Intensivas propagandas trouxeram novos agricultores para

colonizar as terras de Porto Novo, pois as colônias velhas do Rio

Grande do Sul já estavam ficando insuficientes,

Intensa propaganda através da revista SKT. Paulusblatt da ‚colônia

nova de Porto Novo‛ ocorreu nas colônias velhas do Rio Grande do

Sul, cujas terras estavam ficando escassas devido ao esgotamento do

solo, começaram a perder e vigor e ficar menos acessíveis,

incentivando os descendentes de imigrantes a migrar em busca de

regiões de colonização, favorecendo para que muitos colonos, em sua

maioria jovens, buscassem a nova colônia em formação às margens

do rio Uruguai no lado catarinense, que a essa altura parecia ser uma

terra muito promissora para o desenvolvimento da agricultura.

(MAYER, 2017, p. 24)

As migrações significam movimentos de pessoas,

deslocamentos que acontecem por vários motivos, no entanto,

razões econômicas e políticas são sempre determinantes. Para

Chueiri e Câmera (2010), às razões econômicas, relaciona-se à falta

de condições dignas de sobrevivência, ‚sujeitos ou grupos de

sujeitos mais vulneráveis que fogem da pobreza, da miséria, da

polícia, etc em busca de melhores oportunidades de vida e de

490

trabalho que possam satisfazer as suas necessidades básicas –

alimentação, saúde, educação, cultura etc.‛ (CHUEIRI; CÂMERA,

2010, p. 159). Portanto, segundo as autoras, razões políticas,

relaciona-se | ‚impossibilidade do exercício de seus direitos, ou

melhor, é quando a liberdade, a igualdade – e seus

desdobramentos – ficam impedidas de ser exercitadas‛. (CHUEIRI;

CÂMERA, 2010, p. 159). Sendo assim, a emigração é ao mesmo

tempo uma forma de abandono, existe um distanciamento da terra

natal, e uma dificuldade em se instalar numa outra nação (falta de

documentos, dificuldade com a língua, entre outros). Nesse

sentido, independentemente do que motiva a migração, para

Chueiri e Câmera (2010), sempre há fatores graves o suficiente para

tornar o deslocamento a melhor opção, ou ao menos a única

possível. O processo de acolhimento e de pertencimento a uma

nova cultura, uma nova nação, em virtude do deslocamento, faz

com que o imigrante se sente um estranho, afastado de sua casa, ao

invés de proximidade, como podemos observar a seguir,

Chamamos de centro a casa ou o lar, os quais, por sua vez, nos dão

uma sensação de proximidade, de pertencimento e de acolhimento.

Assim, algo é tão mais distante quanto mais afastado de casa está (no

sentido de se ter um mundo). Pode haver um ou vários centros, isto é,

temos uma casa, uma cultura, uma identidade que pode ser étnica,

nacional ou religiosa. Da mesma forma que pode haver uma ou mais

periferias, na medida em que há culturas outras, outras identidades e

há lugares onde não nos sentimos em casa, onde somos, assim,

estrangeiros, estranhos. (CHUEIRI; CÂMERA, 2010, p. 170).

Levando em consideração, a história de emigração, a

necessidade de se instalar em outras propriedades e nações, ou

ficar na sua pátria, com possível ameaça de extermínio dos

bessarabianos, mãe de Johannes, Mariana Volk Söhn, chorava por

diversas vezes de saudade de sua terra e familiares que nunca mais

pode rever. Sonhava em um possível retorno!

A cultura, tradições e a culinária se adaptava com a da

Alemanha, Romênia e brasileira, utilizando alimentos que

491

cultivavam. Um dos pratos que a Mariana mais fazia era o

‚Dampfnudeln‛ e foi esse entre muitos pratos que ela ensinou |

Maria Amélia a preparar.

Maria Amélia relata que adorava preparar esse prato, pois

todos gostavam de apreciá-lo. Hoje ela está com 85 anos de idade e

bastante debilitada de saúde, e por este motivo ela não consegue

mais prepará-lo. Porém, seus filhos e netos continuam a prepará-lo,

tentando encontrar o segredo que deixava o prato mais especial!

Receita: ‚Dampfudel” Massa:

2kg de farinha de trigo

1 colher de sal

2 colheres de fermento de pão

2 colheres de banha

Água morna.

Juntar todos os ingredientes numa

bacia e adicionar água morna até

atingir a massa de pão. Deixar

descansar até dobrar de tamanho. Em

seguida, fazer umas bolinhas com a

massa e deixar descansar aproximadamente por mais 20 minutos. Em

uma panela grande, colocar 1 litro de água e 02 colheres de banha. Ao

ferver colocar as bolinhas de massa e fechar bem, podendo abrir a panela

somente ao ouvir a banha fritando.

Molho:

3 kg de carne de frango caipira cortado

Sal e temperos a gosto

Banha para fritar

Farinha de trigo para engrossar o molho

4 colheres de nata

Metodologia, objetivos e desenvolvimento da atividade

A metodologia utilizada neste trabalho foi da História Oral,

feita por meio da entrevista. Tivemos como objetivo geral,

492

desenvolver a metodologia de ensino de História Oral através de

práticas de memória e identidade cultural por meio do resgate de

receitas culinárias e tradições familiares. Tendo como objetivos

específicos:

Compreender a história da vovó por meio da entrevista,

para levantamento de dados;

Conhecer os costumes, espaços e vivências de antigamente

para perceber as diferenças da atualidade;

Perceber através da história contada como é o

relacionamento da vovó com o seu passado conforme suas

lembranças;

Descobrir novas receitas culinárias, conhecendo assim a

tradução e gastronomia mais antiga.

Para realização das perguntas, procuramos conhecer um

pouco da história da vovó Maria Amélia, realizando um roteiro de

entrevista:

1. Relate como foi a sua infância, quais eram as brincadeiras?

Como era a escola e o trabalho?

2. Conte-nos fatos importantes que ocorreram durante sua

vida, nascimento, casamento, filhos...

3. As meninas eram preparadas para serem donas de casa?

Como era esse preparo?

4. Como e com quem você aprendeu a cozinhar?

5. Com quem você aprendeu a fazer o ‚Dampfnudeln‛?

Gostava de preparar esse prato?

A entrevista foi acompanhada pela filha da Maria Amélia, a

Irma Jacinta Soehn Thomé (mãe de Carlete e Franciele), pelo fato

da vovó estar debilitada e ter dificuldades em entender a língua

portuguesa.

Após a entrevista foi realizado um levantamento de dados e a

montagem de um vídeo utilizando a gravação da entrevista.

493

Conclusão

Diante da História oral posta em prática na forma de

entrevista, é perceptível a importância de nossa identidade e

memória enquanto sujeito na sociedade. Somos sujeitos ativos, com

história de vida, de fracassos, superações, e tudo interfere na nossa

forma de agir, pensar e ser. O trabalho foi bastante significativo,

nos proporcionando um olhar mais amplo quanto a nossa

identidade e ao resgate de memórias, que muitas vezes são

esquecidas ou deixadas de lado. Ir ao reencontro de memórias nos

faz seres humanos mais curiosos e participativos na sociedade em

que vivemos.

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495

Zacarias de Góes e Vasconcelos: o personagem

do Brasil imperial numa perspectiva biográfica1

Jaqueline Schmitt da Silva2

Palavras introdutórias

Uma pequena discussão sobre ‚o que se tem dito‛ na

historiografia e demais escritos sobre Zacarias de Góes e

Vasconcelos é a intenção desse pequeno texto. O personagem em

foco foi um estadista reconhecido durante o Segundo Reinado.

Ocupou diversas posições, em cargos políticos e administrativos,

envolveu-se em debates e contendas políticas, a exemplo da crise

ministerial em 1868, possuía uma oratória e retórica admirada,

conforme indicam os escritos de seus contemporâneos e

posteriores.

Escrever sobre textos biográficos e relatos que analisam o

caráter e aspectos subjetivos e ações de personalidades, sejam elas

públicas ou não, exige um pensar sobre o gênero biográfico em si.

O debate sobre a biografia como prática historiográfica transita

entre uma possibilidade de lidar com problemáticas históricas,

enfrentando temas com um novo olhar, ao mesmo tempo em que

carrega uma carga de críticas e um período de ostracismo. Ou seja,

trabalhar a biografia na história traz à tona contradições e críticas,

mas também contribuições.

No intento de refletir e observar o conteúdo de uma pequena

seleção de escritos acerca de Zacarias de Góes e Vasconcelos, bem

como alguns elementos de como ficou delineada a trajetória

1 Uma versão do trabalho foi apresentada no Simpósio Tem{tico ‚História política:

fontes, objetos e abordagens‛, durante o IV Congresso Internacional História,

Regiões e Fronteiras, ocorrido na Universidade de Passo Fundo, em outubro de

2018. 2Professora Seduc-RS. Mestra e doutoranda em História (PPGH-UPF). E-mail:

[email protected]

496

política de tal personagem no contexto político imperial, enfoco a

questão da biografia como instrumento de estudo da História.

Escritos sobre Zacarias

Entre as obras que mencionam Zacarias de Góes e Vasconcelos,

e que segundo Cecília Helena de Salles Oliveira, delineiam a

memória que a história construiu em torno de tal figura política,

estão a crônica O velho Senado, escrita por Machado de Assis,

Reminiscências, do Visconde de Taunay e Um estadista do Império, de

Joaquim Nabuco. Escritas por monarquistas, foram publicadas

após a morte de Zacarias de Góes. A obra Tipos políticos: o

conselheiro Zacarias, elaborada pelo republicano Albino Pereira dos

Santos, foi publicada ainda em 1871, antes da morte do

personagem (OLIVEIRA, 2002, p. 16).

Há controvérsia sobre sua origem. Alguns biógrafos postulam

que seus descendentes foram os primeiros portugueses a chegar na

Bahia e que seu pai havia enriquecido com a extração e comércio de

madeira, a exemplo de Túlio Vargas. Albino Pereira dos Santos,

contemporâneo e adversário de Zacarias de Góes, afirmou que este

era de uma família pobre e filho ilegítimo (OLIVEIRA, 2002, p. 10).

Machado de Assis, que cobriu as sessões do Senado na década

de 1860, registrou suas nuances na crônica O Velho Senado, que foi

publicada originalmente na Revista Brasileira, em 1898.

Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor

dos golpes. Tinha palavra cortante, fina e rápida, com uns efeitos de

sons guturais, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando ele

se erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém.

Sentava-se à esquerda da mesa, próximo de Nabuco. Quando

se aproximava de alguém ‚era-lhe lhano e simples, amigo e

confiado‛ (Machado de Assis, 1994). As pessoas que frequentavam

sua casa falavam sobre a sua postura polida entre seus livros e de

como era um gosto poder ouvi-lo.

497

Taunay relatou na sua obra Reminiscências, em seção

denominada Zacarias de Góes e Vasconcelos, a figura notável que

constituía o referido estadista. ‚Alto, magro, anguloso, rosto

comprido, olhar duro, tez biliosa, boca sardônica, nariz afilado,

queixo pontudo, testa larga, tinha o seu quê de Guizot nos modos

secos, altaneiros, autorit{rios *...+‛ (TAUNAY, 1923, p. 23). A

reconhecida erudição do político permitia-lhe falar de qualquer

matéria, estudar e esmiuçar com dedicada atenção todos os

assuntos trazidos no parlamento, direcionado seu discurso aos fins

desejados com segurança e convicção.

Passando por diversos cargos na vida pública, de conservador

à liberal, chefe dos progressistas, presidente do conselho de

ministros até 1868, senador pela Bahia, Taunay observou que

Zacarias de Góes, teria se tornado um oposicionista feroz. Não

havia temor e dizia ‚*...+ {speras verdades, nuas e cruas a

advers{rios e correligion{rios. ‛ (TAUNAY, 1923, p. 24).

‚A base do sistema representativo é e deve ser a desconfiança‛.

Segundo Taunay, esse aforismo era base da filosofia seguida por

Zacarias. Censurava a todos e raros lhe faziam frente às críticas.

Nos mais difíceis anos da guerra contra o Paraguai, a Câmara dos

deputados lhe concedia todo o apoio, sem restrições. Pelos receios

que criava nos colegas, era um dos mais respeitados e influentes

entre os liberais. (TAUNAY, 1923, p.24).

No Senado, os debates mais fortes não eram comuns. Taunay

ressaltou a sutileza que predominava naquele parlamento. ‚Se

havia semideuses em política, eram os senadores do tempo da

monarquia‛. O imperador costumava dizer que as posições mais

invejáveis no Brasil era a de senador e professor do Colégio Pedro

II. Cotegipe recordava um dizer de Montezuma, quando os ânimos

pareciam se exaltar: ‚Nada de brigas. Lembremos que temos de

viver juntos até ao último dia de vida‛. Outro dizer comum era:

‚Senhores, só h{ um poder que me curve | sua vontade, é a morte‛

(TAUNAY, 1923, p. 25). Tais frases ressaltavam o caráter vitalício

da câmara alta, dentro do sistema de monarquia representativa que

predominava no Brasil.

498

Entretanto, Zacarias de Góes era um caso à parte. O senador

não colocava limites em matéria de realizar aos colegas as mais

duras críticas. Era capaz de interromper seu discurso em

momentos de auge devido à conversa dos colegas. As brigas com

Rio Branco e principalmente, com Cotegipe, eram constantes.

Quando este era ministro da Marinha no gabinete 16 de julho, de

Itaboraí, Zacarias chegou a mencionar sua rotina particular para

questionar sobre os motivos dos atrasos nos despachos de

expedientes de sua pasta. Dizia Zacarias que o ministro acordava

tarde, lá pelas 10 horas, até ajeitar-se levava uma hora e almoçava

às 11 horas, chegava ao Senado às 12 horas, quando ali ficava ou ia

à Câmara, até as 16 horas, em casa recebia muitas pessoas, jantava

às 19 horas e meia, ia ao teatro às 22 horas, retornava às 23 horas e

recolhia-se à meia noite ou mais. Cotegipe deu sua resposta à

Zacarias, quando disse que o senador acordava às 6 horas, tomava

banho frio, bebia café com leite com torradas e estudava até às 9

horas. Após almoçar, vestia-se com demora, devido ao tempo para

escolher as sobrecasacas e ver qual ficava melhor. Até às 16 horas

ficava no Senado criticando a todos. Jantava às 17 horas, saía para a

Misericórdia às 18 horas e meia, às 20 horas reunia-se com as irmãs

de caridade até as 21 horas e meia. Às 22 horas deitava para

dormir, o que Cotegipe chamou de o sono dos beatos, feliz pelo

cumprimento de suas obrigações. Após o discurso, Zacarias teria

ido falar com Cotegipe e pedir que para as notas taquigráficas

retirassem a parte sobre as irmãs de caridade. (TAUNAY, 1923, p.

26-29).

No debate sobre a Lei do Ventre Livre, Zacarias se destacou

dos outros membros liberais, como Nabuco, Souza Franco, Saraiva,

pois criticou de forma ferrenha a proposta do governo e se aliou

aos conservadores como Itaboraí, Muritiba, Jaguary e São

Lourenço. Defensor da monarquia, na visão de Zacarias, tal regime

de governo permaneceria por muito tempo no Brasil, pois o povo

era capaz de nela vislumbrar a garantia de seus direitos e

liberdade. (TAUNAY, 1923, p. 29- 32).

499

Um Estadista do Império, de Joaquim Nabuco, é obra crucial

sobre a política naquela época. O autor, através de um vasto acervo

deixado por seu pai, conta a história de José Thomaz Nabuco de

Araújo entrecortada pelos dilemas políticos do império. Joaquim

Nabuco destacou o caráter de Zacarias de Góes como o mais

implacável censor que a tribuna parlamentar já havia conhecido.

Comparou a existência de Zacarias com a existência de um

religioso, a quem não cabia amizades e relacionamentos pessoais,

que pudessem impedir de alguma maneira o cumprimento do

dever. Para Nabuco, não havia em Zacarias nem afeição e nem

fraqueza, nem vícios e sentimentalismo. Seu modo de tratar

mantinha os políticos à distância. Um dos poucos que ele tratou

com igualdade e admiração foi Paraná, que, no entanto, possuía

uma personalidade diferente daquele de Zacarias, pois era aberto,

apaixonado e dedicado nas suas amizades. De forma metafórica,

Nabuco ressaltou que Paraná era força de atração, Zacarias de

repulsão, porém havia em ambos a força de domínio (NABUCO,

1897, p. 116-117).

Joaquim Nabuco ressaltou, entretanto, que a principal

característica de um estadista, Zacarias não possuía. Quando votou

contra a lei de 28 de setembro apresentada pelo governo

conservador, mesmo sendo um projeto original do partido liberal,

demonstrou não ter uma visão dos interesses do país e ser somente

partidário, o que na visão daquele político e escritor do período, o

diferenciava da personalidade política de Paraná.

Mais do que Paraná, ele tinha, porém, a vastidão, a agudeza, as

aptidões diversas, a intensa cultura da inteligência, cuja irradiação

fria mostrava não haver nela nenhum foco de imaginação ou de

sentimento. Mais ainda do que Paraná, ele tinha também, é forçoso

confessar, a força do isolamento em que se mantinha; a sua

estranheza a negócios, interesses e influências que cercam sempre a

política; a espinhosidade que o revestia, força essa que o habilitou a

ser o censor, à moda romana, do nosso meio político, dos seus

menores erros, desvios e azares (Nabuco, 1897, p. 118).

500

Antônio Pereira Batista, no livro Figuras do Império e outros

ensaios, ressaltou o perfil singular de Zacarias. Impecavelmente

vestido, rígido e intransigente. Os seus contemporâneos diziam

que não contente com sua semelhança física a Guizot, imitava-o na

moral. Vivia para o seu partido político, o qual Nabuco acusou ser

sua religião. Era um homem de hábitos regulares. Sabia-se que

havia terminada a sessão no Senado pela sua chegada na rua do

Ouvidor. Quando chegava ao seu escritório, trocava a sobrecasaca

por brim (BAPTISTA, 1931, p. 23).

O livro de Túlio Vargas sobre o político do império Zacarias de

Góes e Vasconcelos, denominado O Conselheiro Zacarias (1815-

1877), foi construído a partir dos autores conhecidos e já citados,

além de discursos e documentação inédita, como um diário obtido

com os descendestes do estadista. Uma homenagem ao centenário

da morte, a biografia foi publicada em 1977 e constitui uma

construção heroica acerca do personagem. Zacarias teve papel

significativo para o estado do Paraná, foi nomeado presidente da

província na ocasião de sua criação, responsável pela organização

política, econômica e administrativa. Documentos sobre esse

período são abordados com enfoque no trabalho de Vargas, como a

recepção de Zacarias no Paraná para o início de seu governo.

Os adjetivos atribuídos ao conselheiro Zacarias são positivos,

exemplificados já no seu prólogo escrito por Edilberto Trevisan, da

Academia Paranaense de Letras, no qual atribuiu a intenção do

livro em ‚conseguir captar a rica existência de nosso Presidente‛,

considerado ‚um guerreiro da tribuna parlamentar de seu tempo‛,

cuja presidência da província do Paraná teria sido um governo

‚equilibrado e escrupuloso‛, um político que se admite

controverso, porém ‚de imbatível honestidade‛. Na introdução,

Vargas aponta que os seus contempor}neos não lhe perdoavam ‚a

ortodoxia ultramontana, nem a independência dos arrebatamentos

políticos‛, por isso expunham uma imagem distorcida do político.

Com visível admiração, enfoca o caráter corajoso e rebelde de

Zacarias, ao mesmo tempo que ressalta sua figura: ‚culto e

talentoso, álgido e amorável, sensível e desassombrado, fecundou a

501

coerência do comportamento na busca incessante do seu modelo

ideológico‛ (VARGAS, 2007, p. 11).

A biografia tem início com o nascimento de Zacarias de Góes e

Vasconcelos, em Valença, na Bahia, em 5 de novembro de 1815, e

fim com sua morte, em 29 de dezembro de 1877. O território de

Valença fazia parte da Capitania de Ilhéus e dependia da Vila de

Nossa Senhora do Rosário de Cairu. O autor ressalta o contexto

predominante no início do XIX, quando o Brasil foi elevado à

categoria de Reino, bem como as rebeliões emancipacionistas e

todo um ar revolucionário que teria inspirado aquela figura

política (VARGAS, 2007, p. 16-17).

Zacarias foi batizado na Igreja Nossa Senhora do Amparo e teria

sua personalidade marcada por forte devoção religiosa. O autor

utiliza o termo ‚predestinada criança‛, para mencionar a ocasião em

que ele recebe os óleos batismais das mãos do Frei José das Dores, um

carmelita descalço. O termo utilizado pelo autor, caracteriza algo

comum nas histórias de vida, quando se indica a existência de um

‚projeto original‛, a partir do qual os acontecimentos se

desencadeariam de forma cronológica. Em outro ponto do texto, Túlio

Vargas ressalta que Zacarias possuía convicções doutrin{rias ‚desde

sua juventude‛, princípios que o mantinham distante das tentações do

poder (VARGAS 2007, p. 115).

Tais elementos no texto biográfico podem ser compreendidos

quando analisamos um personagem complexo como Zacarias de

Góes, que perpassou diversos cargos, espaços sociais e políticos ao

longo do Segundo Reinado. Assim, os relatos que buscam seguir

uma linha coerente de acontecimentos diante de um personagem

multifacetado, podem acabar por constituir o que Bourdieu

chamou de ilusão biográfica

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é,

como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com

significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão

retórica, uma representação comum da existência que toda uma

tradição literária não deixou e não deixa de reforçar (BOUDIEU, 2006,

p. 185).

502

Os pais de Zacarias, Antônio Bernardo e Maria Benedita de

Assunção Menezes e Vasconcelos, casaram-se em 15 de setembro

de 1799. Sua família construiu um sobrado em Valença, na praça

Principezinho, atual praça Zacarias, local onde Zacarias nasceu

(VARGAS, 2007, p. 18). O pai de Zacarias, Antônio Bernardo,

desfrutava de boa reputação e estima por ser moderado com a

família, filhos, escravos e amigos. Quando da independência do

Brasil, em 1822 fez parte da luta contra as forças de Lisboa na

capital da Bahia. Preocupava-se com a educação dos filhos. ‚Todos

viviam absorvidos pelos livros. O pai dava o exemplo‛ (VARGAS,

2007, p. 19). Quando faleceu em 1825 devido a um aneurisma no

peito, deixou o sobrado, dinheiro e vinte escravos. O primogênito

João Antônio, então com 22 anos, assumiu o comando da família,

possuía boa posição devido à sua eleição como vereador em

Valença um ano antes. João Antônio concluiu seus estudos para a

Academia de Coimbra e encaminhou seus irmãos Zacarias e

Manuel nos estudos de latim. Os estudos de João Antônio em

Coimbra duraram dois anos. O irmão de Zacarias acabou

envolvidos nas lutas políticas entre facções miguelistas e d. Maria

II e teve que regressar para o Brasil, acompanhado de Francisco

Gonçalves Martins, que viria a ser o visconde de São Lourenço. O

visconde de São Lourenço exerceria influência sobre a vida de

ambos os irmãos. João Antônio e Gonçalves Martins concluíram

seu curso em Olinda, sendo que ao segundo coube o cargo de

secretário da escola. Após, Gonçalves Martins se elegeria deputado

geral. Zacarias era dedicado aos estudos: ‚*...+atravessava as

madrugadas debruçado sobre os compêndios, tal a sua sofreguidão

de aprender‛. Latim, grego e retórica eram estudos que

habilitavam a conseguir cargos nobres. Se impôs disciplina

rigorosa, meditação e estudo. ‚Era-lhe habitual resistir longas

horas com os pés dentro d’{gua fria para ludibriar o sono.

Trouxera do berço o poder da perseverança e a intuição da

supremacia. Nada o detinha‛ (VARGAS, 2007, p. 20).

503

A academia de Olinda, em Pernambuco, foi o destino

acadêmico de Zacarias de Góes, assim como de outros políticos que

alcançaram postos significativos em seu tempo. Os mais altos

cargos políticos no Brasil daquele período, eram ocupados por

personalidades letradas, que faziam parte de uma pequena minoria

privilegiada que possuía acesso ao ensino superior e ao mundo das

letras. O personagem em questão compunha o que José Murilo de

Carvalho chamou de ‚uma ilha de letrados, num mar de

analfabetos‛. A formação de Zacarias, com cunho jurídico, assim

como a de seus contemporâneos, fossem eles formados em

Coimbra ou nas faculdades de Direito de São Paulo ou de Olinda,

possuía uma essência em comum, nos conhecimentos,

pensamentos e habilidades. Assim a elite imperial obteve nos

cursos superiores um ponto de unificação ideológica

(CARVALHO, 2013, P. 65). Além de cursar Direito em Olinda e

doutorar-se, seria aprovado em concurso para lente da instituição,

posição que chegou a assumir e desempenhar.

Zacarias viajou de Valença até Salvador, onde desembarcou dia

9 de janeiro de 1833. De lá seguiu num paquete de linha para

Olinda, ocasião em que conheceu outro jovem que seguia o mesmo

destino, era João Maurício Wanderley, futuro barão de Cotegipe,

com quem Zacarias viria a ter embates e conviveria na mais alta

política do país. Olinda era uma cidade pequena, silenciosa,

envolta em vivências acadêmicas. O rio Beberi e sua quietude, a

paisagem, o convento dos Beneditinos que abrigava a Academia,

‚*...+ mais silêncio e retiro que em Olinda, só nos túmulos‛,

segundo Zacarias. O barão de Penedo lembraria da velha Olinda,

com poucos habitantes e isolada. Era semelhante à antiga Coimbra,

de onde alunos vinham concluir seus bacharelados. O curso era

sério e exigido, entre os professores havia nomes notáveis.

(VARGAS, 2007, p.21-23). Zacarias formou-se em 6 de outubro de

1837 juntamente com 54 colegas, sendo 16 baianos. Ao sair da

escola de Olinda, possuía renome, amizades como a de Gonçalves

Martins, que era secretário da escola e acabou por tornar-se

admirador e incentivador de Zacarias, levando-o para o partido

504

conservador. Gonçalves Martins viria a se tornar deputado geral,

Ministro do Império, presidente da Bahia duas vezes. Receberia o

título de barão de São Lourenço (VARGAS, 2007, p. 24-25).

Túlio Vargas reforça a visão da Bahia como um ‚celeiro de

talentos‛, inspirado na citação de Joaquim Nabuco: ‚Os estadistas

baianos possuíam um grau superior a todos os outros a adaptação

pronta, a flexibilidade impessoal, que constitui o temperamento

político‛ (NABUCO, 1897, p. 3).

Na trajetória política de Zacarias, foi nomeado presidente da

província do Piauí e após, Sergipe. No Piauí realizou obras públicas,

pontes, iluminação, criação de hospitais, organizou burocracia

administrativa, fez reformas educacionais e criou o Liceu, bem como

investimentos em estradas. Ao final de seu governo, havia 18 escolas

públicas para homens com ensino primário, com 598 alunos, e 3 para

mulheres com 59 (VARGAS, 2007, p. 35-36). Em Sergipe o sucesso

obtido no Piauí não se repetiu, embora o quadro de rivalidades

políticas se equiparasse. Numa de suas primeiras medidas, elevou

Laranjeiras à categoria de cidade e autorizou a compra de um relógio

público com peças de bronze da Igreja do senhor do Bonfim para

colocar na igreja de São Cristóvão. Tal fato gerou críticas e polêmicas.

O relógio comprado foi desmontado e suas peças enterradas em

vários pontos da cidade. Tal episódio marcou um início de

humilhação para Zacarias, que teve sua autoridade ferida e ordenou a

busca dos objetos do relógio nas casas, templos e cemitérios

(VARGAS, 2007, p. 37). Foi Zacarias quem propôs a mudança da

Academia de Olinda para Recife, considerava fundamental a

ampliação da educação superior e que as faculdades evoluíssem para

as Universidades. Gonçalves Martins, que havia sido bem-sucedido

para combater os praieiros em Pernambuco, bem como em sua

administração na Bahia, utilizou do prestígio e indicou seu protegido

Zacarias para o Ministério da Marinha (VARGAS, 2007, p. 46-48).

Em 6 de setembro de 1853, Honório Hermeto Carneiro Leão,

visconde de Paraná, assumiu a presidência do Conselho. A missão

era pacificar as correntes partidárias saquaremas e luzias. A

formação do ministério era conservadora e liberal, sob o parâmetro

505

de moderação conservador. Para presidir a recém-criada província

do Paraná, foi designado Zacarias de Góes, nomeado em 17 de

setembro de 1853. Entretanto, não iria desacompanhado. Casou-se

com Carolina, nascida em Paris, mas registrada na legação do

Brasil. Era filha de Domingos de Mattos Vieira e Joana Carolina

Leite de Castro Vieira. Com 14 anos incompletos, estudava no

colégio Sion, em Paris, antes de se casar. De acordo com Túlio

Vargas, fazia parte da tradição oral que ela havia sido prometida a

Zacarias ao nascer. O casamento foi realizado em 8 de outubro de

1853. Após passar a lua de mel em Paris, o casal seguiu ao Paraná.

O Jornal do Comércio em 23 de novembro, publicava relato sobre a

recepção de Zacarias em Paranaguá, local que chegou em 6 de

dezembro, recebido com festa e pompa, cumprimentado pelas

autoridades da cidade, com diversas solenidades. No dia seguinte,

houve ‚Te Deum‛ na igreja matriz, | noite representou-se Othelo.

No dia seguinte foi oferecido um baile. (VARGAS, 2007, p. 54-60).

Um dos pontos altos da carreira de Zacarias de Góes, foi sua

transição do partido conservador ao liberal. A publicação do

opúsculo Da natureza e limites do poder moderador, no ano de 1860 é

considerada um marco dessa inversão política. A obra, reeditada

em 1862, é considerada uma versão liberal da teoria e prática do

poder moderador: ‚*...] entendido como referência para o estudo

do poder Moderador e para a compreensão da estrutura e

funcionamento do Estado imperial, como se fosse a síntese dos

princípios elaborados pelos liberais ao longo de todo o período

mon{rquico‛ (OLIVEIRA, 2002, p. 15).

Cecília Helena de Salles Oliveira destacou: ‚Na década de 1860,

verificou-se intensa discussão a respeito do poder Moderador, e seu

significado foi abordado tanto no plano da teoria jurídica quanto no

da pr{tica de governar‛ (OLIVEIRA, 2002, p. 27). Desde a outorga da

constituição em 1824 o poder Moderador já sofria críticas. Frei Caneca

recusou-se a jurar a Constituição, acusando o poder Moderador de ser

‚chave mestra da opressão da nação brasileira‛. A divisão dos

poderes se dava da seguinte maneira:

506

O poder Legislativo era composto por suas Câmaras, sendo a dos

deputados de caráter eletivo e temporário e o Senado de caráter

eletivo e vitalício. O poder Executivo, chefiado pelo imperador, era

exercido pelos ministros. O poder Judiciário era formado pelos juízes

de Direito vitalícios e pelos jurados. Finalmente, o poder Moderador

foi definido como ‚chave de toda a organização política‛ e era

‚delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da

nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele

sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos

demais poderes políticos‛ (OLIVEIRA, 2002, p. 27).

A pessoa do imperador, conforme o texto constitucional, era

inviolável e sagrada, sem responsabilidade alguma. Previa-se um

Conselho de Estado, composto por dez membros vitalícios, sem

participação dos ministros, nomeados pelo monarca. Em 1827 foi

aprovada uma lei que prenunciava responsabilidades, delitos e

punições a que estavam sujeitos ministros e conselheiros, cujo

julgamento se daria pelo Senado. Todo o debate que se desenrolou

na década de 1860 e as fundamentações utilizadas por Zacarias

estavam interligados com os preceitos da Constituição. As

prerrogativas do poder Moderador e a tese da responsabilidade

dos ministros pelos atos do desse poder já eram debatidas nas

décadas anteriores e criticadas por políticos liberais como Teófilo

Otoni e Feijó. ‚Dentro e fora do Parlamento, as opiniões se

dividiam a respeito da competência do rei: caberia a ele apenas

‘reinar’ ou também ‘governar’? ‛ (OLIVEIRA, 2002, p. 28-29).

Durante o período regencial, o poder Moderador continuou

vigente, porém sem o poder de dissolver a Câmara dos Deputados.

Em 1834, foi extinto o Conselho de Estado, mas não o 4º poder.

A partir da lei de 23 de novembro de 1841, o poder Moderador

se consolidou e o Conselho de Estado se modificou. Passou a ter 12

membros ordinários e 12 extraordinários ou suplentes, nomeados

pelo imperador e que contavam com auxílio dos ministros. O

imperador só consultaria o Conselho se desejasse, tendo em vista

que a consulta deixou de ser obrigatória e tornou-se facultativa.

Assim, as propostas de Zacarias refletiam todo um contexto

507

político do período da 1860, mas também traziam consigo uma

pauta já conhecida.

Em 1860 se elegeu uma minoria liberal, principalmente nos

centros urbanos. Na ocasião, os conservadores Zacarias e Nabuco

realizaram uma articulação para aproximar conservadores

moderados dos liberais, numa tentativa de isolar os conservadores

‚emperrados‛, que giravam em torno do eixo saquarema

fluminense. A articulação conseguiu derrubar o gabinete de Caxias

em 1862. Foram seis gabinetes liberais ou progressistas que se

sucederam até 1866, ocasião em que Zacarias (à frente do Partido

Progressista) se articulou e reassumiu o controle do Conselho de

Ministros, onde permaneceu até 1868 e a intervenção do

imperador. ‚A queda de Zacarias, tramada em parte pelos

conservadores, a partir da pressão que Caxias exercia sobre o

gabinete como comandante das tropas no Paraguai, assinalou a

volta dos conservadores ao poder‛ (SALLES, 2009, p. 59).

Para a queda do gabinete Zacarias em 1868, duas justificativas

foram indicadas: a conflitante situação criada com a indicação feita

pelo ministério liberal de Caxias para o comando das tropas no

Paraguai e o inconveniente gerado com a indicação feita pelo

imperador de Salles Torres Homem para o cargo de senador pelo

Rio Grande do Norte. Os biógrafos de Zacarias apontam como

característica central para o fim do último gabinete progressista, as

atribuições do poder moderador, o que gerou uma contenda entre

o imperador e o presidente do Conselho de Ministros. Após a

demissão de Zacarias, os conservadores voltaram ao poder, com

Itaboraí nomeado Presidente do Conselho. ‚Mas as repercussões

do episódio foram muito mais graves, motivando a organização

não só de um novo partido liberal como das agremiações

republicanas‛ (OLIVEIRA, 2002, p. 13). Após tal episódio, Zacarias

se notabilizou por fazer oposição aos ministérios conservadores a

partir do Senado.

Para Túlio Vargas, na já mencionada biografia, a queda do

gabinete após a indicação de Salles Torres Homem para presidir a

província do RN, a qual o gabinete se opôs por não considerar

508

acertada, pode ser entendida como um incidente provocado pelo

imperador para causar a demissão. ‚Este daria a sua despedida o

tom dram{tico de uma censura | Coroa‛. O autor citou uma nota

escrita pelo imperador à margem de um livro de Joaquim Nabuco,

na qual ficou posto que o pretexto foi construído. Na anotação feita

pelo imperador, ele menciona não ter cedido a respeito da escolha

do Senador devido ao seu desejo, de terminar com honra e proveito

às relações externas, a guerra contra o Paraguai. D. Pedro estaria

certo de não conseguir prolongar a conciliação entre Caxias e

Zacarias e necessitava harmonizar os fatos militares e políticos.

Sendo assim, a escolha senatorial teria sido um incidente

arquitetado para trazer os conservadores novamente ao poder. ‚O

ministério liberal não podia continuar com a permanência de

Caxias à testa do Exército‛ (VARGAS, 2007, p. 110-101).

Zacarias contribuía com crônicas na Revista Popular, do Rio de

Janeiro. Não poupava críticas ao imperador. No Manifesto do

Centro Liberal foi publicado em 31 de março de 1869 no Jornal do

Comércio, Zacarias estava entre os nomes, além de Teófilo Ottoni,

Nabuco de Araújo, Francisco Otaviano, Furtado e Souza Franco. ‚O

manifesto foi eloquente resposta ao gravíssimo erro cometido pelo

Imperador ao destituir o Gabinete liberal de Zacarias, e adotava

teses eminentemente políticas, entre as quais a responsabilidade

dos Ministros pelos atos do Poder Moderado‛. (VARGAS, 2007, p.

113). Os radicais não escondiam simpatias pelos republicanos e se

uniram no Clube da Reforma. Após o Manifesto Liberal, veio o

Manifesto Republicano, publicano no jornal A República, em 1870.

A Coroa tentava minimizar o sentido antimonarquista.

Zacarias recebeu convite de São Vicente, em 12 de outubro de 1870,

para compor o Conselho de Estado. A recusa causaria uma onda de

críticas a Zacarias, que o acusavam de desmerecer a Coroa. Em

1871, se discutia a Lei do Ventre Livre no parlamento. Zacarias

analisou que a visão de Paranhos mostrava somente um lado da

questão, não satisfazendo aos desejos do país e nem dos

escravizados. Colocou-se contra a lei. José de Alencar também se

posicionou contrário, ao que apelidou de lei sinistra, pois colocava

509

em questão uma contradição: pais escravos e crianças libertas

(VARGAS, 2007, p. 114-118).

No Senado, apenas Zacarias e mais três pessoas votaram contra

a Lei do Ventre Livre. Na Câmara dos deputados foram 65 votos

que garantiram a aprovação, contra 35. Em seu discurso, Zacarias

ressaltava o caráter liberal da emancipação dos escravos.

Considerava necessários ajustar tal lei a fim de propor uma solução

abrangente e definitiva. O governo queria atender aos interesses da

emancipação, sem prejuízos à agricultura, principal atividade

econômica. Para Zacarias, a escravidão não havia nascido da lei e

sim da ignorância e preconceito dos homens. O papel do legislador

não era criar, mas reconhecer os fatos existentes. Para o senador,

não só a força criou a escravidão, mas a má interpretação dos textos

bíblicos. Ressaltava o progresso da ciência e a unidade da espécie

humana, para o estadista, as leis não haviam criado o estado servil,

mas haviam tolerado e garantido (VARGAS, 2007, p.118-123)

Zacarias era apegado à sua terra natal, pelo menos uma vez

por ano visitava Valença. Sua visão espiritual, seu apego à fé, está

relacionado com sua infância, à luz do catecismo. Com tanto apreço

à religião, não foi surpresa quando saiu em defesa do bispo de

Olinda, D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, na questão religiosa,

quanto este estava com problemas com o Supremo Tribunal de

Justiça, acusado de violar as leis civis e desrespeitar a Coroa. Tal

fato aumentaria a crise da monarquia (VARGAS, 2007, p. 127).

Apesar do réu ser condenado, o perfil de Zacarias ganhou destaque

com a ocasião.

Túlio Vargas ressaltou com relação a Zacarias: ‚Poucos se

atreviam a revidar-lhe o dado arremessado‛. O próprio visconde

de São Lourenço, seu mentor, sem mencionar o nome de Zacarias,

disse que criara uma águia, em alusão à sua independência.

‚Inadmitia vassalagem, a humilhante dependência que escraviza o

homem. Esse impulso de autodeterminação foi sempre um traço

marcante do caráter de Zacarias, sem deixar vestígios de

ingratidão, porque todos lhe reconheciam um inato sentido de

liderança‛ (VARGAS, 2007, p. 133).

510

Alguns pensamentos suscitados

Analisar textos biográficos escritos sobre um personagem do

período imperial, faz parte de uma tentativa de compreender, além

das contribuições realizadas ao assunto, as lacunas existentes,

suscitando questionamentos e possibilidades de lançar novos olhares

sobre aquele contexto social e político. O caráter de Zacarias de Góes

foi debatido, sua subjetividade e suas ações evidenciadas. Como disse

Benito Bisso Schmitd (SCHMITD, 2012, p. 199)

*...+ biografar é evidenciar o ‚fazer-se‛ do personagem enfocado ao longo

do tempo, e que tal movimento não é linear e unidirecional, mas

contextualmente delineado, sujeito, pois, a diferentes injunções e ritmos,

bem como a incertezas, descontinuidades, oscilações e incoerências.

Pierre Bourdieu fez críticas pertinentes ao gênero biográfico e

aos perigosos de mergulhar numa ilusão retórica, seguindo uma

perspectiva linear dos acontecimentos, a tendência de crer na vida

como um todo, com início, meio e fim. O biografado, ou, as pessoas

têm a propensão de selecionar acontecimentos e aspectos de sua

vida, dando-lhes sentido e conexão, causas e fins, e contam com a

cumplicidade do biógrafo, que é levado a aceitar essa ‚criação

artificial‛ (BOURDIEU, 2006, p. 184-185). Os textos lidos acerca do

personagem Zacarias, trazem uma perspectiva exaltada do

personagem, patriótico ou não, é um consenso a propensão

daquele estadista para a oratória, o discurso, a retórica, bem como a

dedicação nas questões políticas e ideológicas. De acordo com os

autores, a tribuna era levada a sério, os debates sobre os aspectos

políticos eram dedicados. Zacarias ia além de suas preocupações

com a estética e a moda, demonstrava, na visão dos autores,

possuir um projeto de poder que, para Joaquim Nabuco, chegava a

ultrapassar a esfera dos interesses nacionais para se tornar pessoal.

Túlio Vargas heroicizou Zacarias de Góes, incorruptível, opositor,

como já havia pautado o visconde de Taunay. Multifacetado, o

personagem em questão é vislumbrado como ponto chave para

511

interpretar a complexidade política da história do Brasil no período

imperial, especialmente na conturbada década de 1860.

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512

513

Seção 3 - Vozes e olhares interdisciplinares

514

515

A educação patrimonial como possibilidade

de sensibilizar nos sujeitos o ato pela preservação

do patrimônio arquitetônico

Tarcisio Dorn de Oliveira1

Camile Iris Koch2

Maiara da Rosa Grubert3

Introdução

A educação como a legitimação do outro (arquitetura do

passado) e o diálogo possível entre os distintos, arquitetura do

passado e a arquitetura contemporânea, como ensina Freire (2000),

deve gerar um processo dialógico entre os sujeitos que ensinam e

os sujeitos que aprendem. Nessa perspectiva, Dropa e Oliveira

(2015) observam que é possível conhecer o conceito de educação

patrimonial e sua relação com a dimensão educativa, quando um

grupo de pessoas se encontram para construir e dividir novos

conhecimentos em relação ao patrimônio arquitetônico, ocorrendo

um processo de investigação para identificar, entender e

transformar, de alguma maneira, a realidade que nos cerca.

O patrimônio arquitetônico dá substrato para a construção da

cidadania, uma vez que está diretamente ligado ao direito à

memória, identidade e pertencimento. Premissas estas, que

1 Doutorando em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Mestre em Patrimônio Cultural pela

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Bacharel em Arquitetura e

Urbanismo pela Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ. Docente dos Cursos de

Engenharia Civil e Arquitetura e Urbanismo da UNIJUÍ. Líder do Grupo de

Pesquisa Espaço Construído, Sustentabilidade e Tecnologias - GTEC

(DCEENG/UNIJUÍ). E-mail: [email protected] 2 Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. E-mail: [email protected] 3 Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. E-mail:

[email protected]

516

propiciam o acesso aos bens materiais, que representam o passado,

a tradição e a história de cada sujeito. Souza (2008) observa que os

lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este

momento particular da nossa história. A história é a reconstrução

sempre problemática e incompleta do que não existe mais, tendo

em vista que os locais de memória são os meios de transmitir para

as gerações aquilo que já não existe.

Diante disso, Callai (2005) destaca que a cultura de cada povo e

de cada sociedade apresenta suas marcas e tem ligações com a

possibilidade de os sujeitos possuírem uma identidade, no sentido

de pertencimento ao lugar. A autora salienta que reconhecer sua

identidade e seu pertencimento é fundamental para qualquer um

se entender como sujeito e, que pode ter, em suas mãos, a definição

dos caminhos da sua vida, percebendo os limites que lhe são postos

pelo mundo e as possibilidades de produzir as condições para sua

vida.

Assim, a arquitetura patrimonial assume um papel que acaba

por contribuir na formação da identidade de um local, na formação

de grupos, de categorias sociais e no resgate da memória,

desencadeando assim uma ligação entre o sujeito e as suas raízes.

Tomaz (2010) analisa que o cuidado ao preservar o patrimônio

arquitetônico de uma cidade reflete na preservação da memória

local, valorizando, assim, o contexto social de qualquer ambiente

que possua significado para os sujeitos, pois não é possível

preservar a memória de um povo sem, ao mesmo tempo, preservar

os espaços por ele utilizados e as manifestações cotidianas de seu

viver.

O patrimônio diz respeito às maneiras do ser humano existir,

pensar e se expressar, bem como nas manifestações simbólicas dos

seus saberes, em práticas artísticas e dentro de um sistema de

valores e tradição. Burda e Monastirsky (2011) lembram que o

patrimônio arquitetônico de uma cidade deve, sobretudo, servir

para a educação e o reconhecimento do cidadão local, para depois

transformar-se num atrativo que, em constante análise, pode

517

apresentar-se interessante para aquele que busca conhecer a cultura

do outro.

A arquitetura patrimonial pertence à comunidade que a

produziu e que a compõe e, na qual, a consciência voltada para

preservar, sem dúvida, contribui para que os que estão por vir

possam usufruir dessa herança, de modo a garantir que, por meio

dos testemunhos do passado, aqueles possam compreender o

processo de desenvolvimento da identidade desse espaço. Nessa

perspectiva, Rocha (2012) complementa que a preservação torna-se

fundamental, no que diz respeito ao desenvolvimento cultural de

um povo, uma vez que reflete em sua formação sociocultural.

Seguindo essa linha de pensamento, Callai (2005) sinaliza que,

partindo do fato de que a gente lê o mundo ainda muito antes de

ler a palavra, a principal questão é exercitar a prática de fazer a

leitura do mundo, tendo em vista que a leitura do mundo é

fundamental para que todos nós, que vivemos em sociedade,

possamos exercitar nossa cidadania.

Desse modo, para a elaboração do presente artigo4 foram

realizados levantamentos bibliográficos desenvolvidos com base

em material já elaborado, constituído de artigos, periódicos,

monografias, dissertações, teses e livros, o que tornou possível

avaliar o conhecimento adquirido e trazer comprovantes científicos

para destacar os conceitos, discussões e conclusões consideradas

importantes. A partir dos dados obtidos, realizou-se a análise e

interpretação das informações, mesclando-as de maneira a

conseguir uma maior compreensão sobre o tema abordado. Assim,

o presente ensaio5 intenta refletir sobre a educação patrimonial

como possibilidade de construir nos sujeitos o sentimento de

4 Desenvolvido junto aos Grupos de Pesquisa Espaço Construído,

Sustentabilidade e Tecnologias – Gtec e Ensino e Metodologia em Geografia e

Ciências Sociais – GEMGCS da Universidade do Noroeste do Estado do Rio

Grande do Sul – UNIJUÍ. 5 O presente texto conta com apoio da Agência de Fomento FAPERGS através do

Edital 02/2017 – PqG, Processo 17/2551-0001 173-2, Projeto – Escala de análise

como ferramenta intelectual para educação cidadã: O estudo da cidade como o

lócus de vida da população.

518

preservação da arquitetura, vista como patrimônio, e o (re)

conhecimento da cidade com vistas à promoção e à vivência da

cidadania, reforçando a identidade e o pertencimento com o local.

Desenvolvimento

A criação do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional teve como finalidade promover, em todo o país

e de modo permanente, a preservação do patrimônio por meio do

tombamento, da conservação, do enriquecimento e do

conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional. Desta

forma, tornou-se aparelho de alcance nacional, destinado a exercer

ação enérgica e permanente, de modo direto ou indireto, para

conservar e enriquecer o nosso patrimônio histórico e artístico e,

ainda, para torná-lo conhecido. Patrimônio é palavra de origem

latina, derivada de pater e, em sentido amplo, significa pai,

podendo assumir variados significados, sendo que originalmente

foi relacionada à herança familiar, mais abertamente aos bens

materiais, sendo esta a primeira associação à palavra, a qual hoje

possui mais significados.

O patrimônio arquitetônico e a cidade possuem grande

relevância para a identidade e a memória urbana, pois abrangem

significativa diversidade de bens históricos, culturais e ambientais.

Nesse sentido, Dias e Machado (2009) entendem que compreender

o valor da memória, da identidade e do conhecimento da história,

bem como a preservação do patrimônio torna-se um fator

importante na formação da cidadania e dos sujeitos visando o

desenvolvimento local dos espaços urbanizados. César, Dhein e

Uez (2011) reforçam o patrimônio como:

[...] construção social, que tem como premissa a preservação

memorial da essência da comunidade. A paisagem, como reflexo da

produção humana no espaço tem um caráter inato de patrimônio. Ela

deve estar inserida nos programas de educação patrimonial, ação que

tem por um de seus objetivos, valorizar o patrimônio cultural.

Através da preservação e da valorização, há um desenvolvimento

519

social, possibilitado pelo olhar crítico e holístico sobre o processo

histórico desta comunidade (CÉSAR; DHEIN; UEZ, 2011, p. 468).

O patrimônio arquitetônico como protótipo de uma obra de

arte dá-se na coletividade, sendo a resposta do movimento que

ocorre em determinado tempo e espaço, ligando-se diretamente à

história, identidade e pertencimento. Preservar tais vestígios evoca

o suporte à memória, estabelecendo um vínculo no processo de

aprendizagem social e no processo de construção da cidadania.

Canani (2005) afirma que o patrimônio está relacionado a um bem

que pertence ao paterno, tão valioso que justifica sua herança e

preservação, por nela estar incutida a memória e a identidade de

quem o deixa e de quem o herda.

O patrimônio, conforme Souza (2008), não abrange apenas

edificações e monumentos ou sua tradição sócio e cultural, mas

também seus bens culturais, materiais e imateriais, bem como o

conhecimento, a documentação que registra esse conhecimento,

além de suas formas de divulgação. Constitui patrimônio cultural

brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira (BRASIL, 2000). Oliveira e Callai (2017)

entendem que os bens patrimoniais:

[...] pertencem à comunidade que os produziu e que a compõem,

onde a consciência em preservar, sem dúvida, contribui para que os

demais possam usufruir desta herança e, que por meio destes

testemunhos do passado, possam compreender o processo de

desenvolvimento da identidade e pertencimento desse espaço

(OLIVEIRA; CALLAI, 2017, p. 148).

A intensificação do debate sobre as pedagogias que se utilizam

da diversidade de experiências em uma perspectiva

multidisciplinar na educação formal e não formal refletem-se nas

discussões atuais trazendo a educação patrimonial como

possibilidade de preservação das edificações, com relevância

520

morfológica e cultural. Rousseau (1973) reforça a ideia de que a

educação não deve se limitar somente ao ambiente da escola, a

programas rígidos ou ainda a determinadas instituições oficiais,

deve ser vista como uma ação global do crescimento e do

desenvolvimento do sujeito em todas as suas necessidades. No

Brasil, foi a partir do Semin{rio ‚O Uso Educacional de Museus e

Monumentos‛ realizado em julho de 1983, por iniciativa do Museu

Imperial, em Petrópolis /RJ, que a perspectiva da educação

patrimonial foi, de fato, reconhecida.

Cerqueira (2005) observa que a educação valoriza, cada vez

mais, seu papel como formadora da cidadania, pois a escola não

somente transmite conhecimentos, os quais futuramente serão a

base da formação profissional, mas sobretudo forma cidadãos.

Nesse sentido, Santos (2007) complementa que despertar os sujeitos

para a utilização do patrimônio arquitetônico local como ponto de

partida no processo ensino-aprendizagem implica no

fortalecimento da identidade cultural. O autor destaca ainda que o

uso da metodologia da educação patrimonial pode possibilitar à

comunidade que descubra e perceba os valores e as

particularidades de sua identidade cultural. Assim, para Oliveira e

Callai (2017):

[...] a educação patrimonial, possibilita várias interpretações,

tornando-se um instrumento importante de promoção e vivência da

cidadania, podendo defini-la, como um ensino centrado nos bens

culturais, onde a metodologia toma estes bens como ponto de partida

para desenvolver tarefas pedagógicas que consideram tais bens como

fonte primária do ensino consequentemente gerando a

responsabilidade na busca, na valorização e na preservação, onde o

processo educativo tem como objetivo levar os sujeitos a utilizarem

suas capacidades intelectuais para a aquisição e o uso de conceitos e

habilidades, na prática, em sua vida diária e no próprio processo

educacional (OLIVEIRA; CALLAI, 2017, p. 148).

A educação patrimonial procura despertar, por meio da

educação, a importância de inserir os assuntos culturais no

521

processo de ensino e aprendizagem dos sujeitos, possibilitando por

meio de um trabalho coletivo, o reconhecimento das manifestações

culturais do entorno e valorizando seu próprio patrimônio. Neste

sentido, Casco (2006) aponta que organizar projetos educativos

voltados para disseminar valores culturais, como forma de resgatar

e preservar, recria e transmite esse patrimônio às gerações futuras,

sobretudo, um projeto de formação de cidadãos livres, autônomos

e sabedores de seus direitos e deveres.

Provocar situações de aprendizado, pela educação patrimonial,

consiste em atuar sobre o processo cultural, seus produtos e

manifestações, despertando nos sujeitos o interesse em resolver

questões significativas para a vida pessoal e coletiva. Horta,

Grunberg e Monteiro (1999) observam que a educação patrimonial

pode ser compreendida como um processo permanente e

sistemático de trabalho educacional, centrado no patrimônio

cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento

individual e coletivo. Neste caminho, o contato direto com as

evidências e manifestações materiais da cultura proporcionam um

trabalho que levam os sujeitos a um processo ativo de apropriação

e valorização de sua herança cultural.

A educação patrimonial, segundo Teixeira (2008), viabiliza a

formação de indivíduos capazes de conhecer a sua própria história

cultural, pois ao trabalhar questões referentes ao patrimônio, são

observados e estabelecidos fortes subsídios para a construção do

conhecimento, da valorização e da preservação desses bens (sejam

eles materiais, imateriais, naturais ou construídos). Dessa forma, a

educação patrimonial tem uma função estruturante na formação do

cidadão, que segundo Rangel (2002) é:

[...] promover, a partir do meio, sobre o meio e para o meio, a

percepção da importância de preservar nosso patrimônio cultural,

buscando a apropriação dos bens culturais por parte da sociedade

brasileira, co-gestora, fruidora e principal destinatária desses bens, e a

sua participação direta e efetiva nas ações de proteção de nossos bens

culturais (RANGEL, 2002, p.16).

522

Os processos educativos primam pela construção coletiva do

conhecimento e diálogo constante entre o sujeito e sua

comunidade, tendo em vista que a educação patrimonial é uma

forma de conscientizar os sujeitos da importância de preservar seus

bens, que são os registros dos acontecimentos da história de um

lugar, de uma sociedade e que muitas vezes se perdem por falta de

incentivo ou pela perda da identidade da comunidade que sofre as

mudanças e interferências do mundo globalizado. Dropa e Oliveira

(2015) observam ainda que a cidade deve ser vista como uma

expressão da cultura do povo, onde no espaço urbano as marcas da

história ficam muito claras, no traçado de suas ruas, na projeção de

suas praças, na arquitetura de seus edifícios, no conjunto de seus

quarteirões.

A educação patrimonial é um processo permanente e

sistemático de trabalho educacional tendo o patrimônio

arquitetônico, como fonte elementar de conhecimento e

desenvolvimento individual e coletivo. Oriá (2001) destaca que tal

proposta interdisciplinar de ensino deve estar voltada para as

questões inerentes ao patrimônio compreendendo desde a

inclusão, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de

temáticas ou de conteúdos programáticos que versem sobre o

conhecimento e a conservação do patrimônio até a realização de

cursos de aperfeiçoamento e extensão para os educadores em geral,

de forma a habilitá-los a despertar, nos sujeitos e sociedade, o senso

de preservação da memória urbana e o interesse sobre o tema.

A sensibilização da sociedade pela educação patrimonial torna-

se fundamental para reconhecer e preservar a cultura e o espaço

urbano. Como conceitua Grunberg (2007), educação patrimonial é

o processo permanente e sistemático de trabalho educativo, que

tem como ponto de partida e centro o patrimônio cultural com

todas as suas manifestações. Assim como o conceito de patrimônio

foi se moldando com o tempo, o de educação patrimonial precisa

ser desmistificado, isto é, ter seu papel reconhecido, uma vez que

se apresenta como elemento chave no trabalho com a cidadania e

na formação de sujeitos ativos e conscientes, em que a reflexão

523

acerca de aspectos relativos ao saber fazer das diversas culturas,

bem como sobre os demais elementos materiais que compõem

nosso cotidiano, leva, consequentemente, a um trabalho de

conscientização do espaço urbano ao qual se pertence (CASTRO et

al., 2010).

Nesse sentido, Grunberg (2007) faz referência e menciona a

importância da motivação dos sujeitos na participação de

propostas de educação patrimonial. Ainda nessa perspectiva,

Assunção (2003, p.55) entende que ‚o patrimônio constitui uma

herança histórica, deixada pelas gerações anteriores, que cabe a

todos preservar para que seja transmitida |s gerações vindouras‛.

A autora (2003) acredita ser possível estabelecer uma relação de

aproximação do indivíduo com o patrimônio por meio da educação

patrimonial, a qual contribui para a formação de um cidadão

consciente dos seus direitos e deveres, que compreenderá a

importância da preservação dos bens culturais para a preservação

da memória e da identidade de um povo ou nação e da

necessidade da ação de proteger e escolher seus bens patrimoniais.

Oliveira e Callai (2017) observam que o patrimônio arquitetônico:

[...] possui a capacidade de estimular a memória das pessoas, e por

isso, é alvo de estratégias que visam a sua promoção e preservação,

onde a preocupação em protegê-lo começou no início do século XX,

sendo criadas a partir daí várias normativas, comissões e conferências

para estabelecer critérios para proteger e conservar o patrimônio. A

importância de entrelaçar situações de ensino e aprendizagem com o

que se denomina de preservação da arquitetura surge junto a

movimentos sociais que buscam uma autonomia e a valorização da

cultura local e global (OLIVEIRA; CALLAI, 2017, p. 147).

Soares (2003) chama atenção para o fato de que por meio da

educação patrimonial, pode-se promover a conscientização do

papel de cada sujeito como formador-perpetuador da memória e

do patrimônio arquitetônico de sua sociedade. Dimenstein

(2017) reforça que a temática educação patrimonial é um

movimento que visa recuperar, valorizar e (re) significar a

524

trajetória seguida por outros que, a seu modo e em outros tempos,

se debruçaram sobre a importante tarefa de encontrar ferramentas

para valorizar e preservar a memória. É fundamental para a

construção coletiva de uma nova percepção das ações educativas

nesse campo. A cidade como uma forma de texto nos remete a

diferentes leituras e interpretações do espaço, este, carregado de

diversos significados. A opção da preservação, pela educação

patrimonial, está diretamente ligada à valorização da identidade

individual e coletiva das cidades.

Conclusão

Ao determinar cultura como um fenômeno social

produzido pelo homem, pode-se, estritamente, considerar o

patrimônio arquitetônico como uma produção social, e, por

consequência, cultural. Assim, é notável que a arquitetura, vista

como patrimônio edificado, se liga diretamente à história, à

memória e à construção da identidade de uma sociedade. Para

registrar então sua história, comunidades deixam marcas no lugar

onde vivem para identificá-las com sua história individual e

coletiva materializando assim, nestes espaços, sua identidade, suas

tradições e seus costumes. É necessário perceber que, tanto a

educação popular como a educação patrimonial, são parte de um

processo que possibilitam ao sujeito perceber sua condição na

sociedade e, assim, como escolher o que deve ser eleito como

patrimônio. Portanto, não é possível esperar que os sujeitos de

qualquer local valorizem aquilo com o qual não se identificam.

A educação patrimonial baseada na identificação e interação

com o bem cultural amplia as possibilidades de aprendizado e

facilita a compreensão da história local e o estabelecimento da sua

relação com os temas mais amplos. O patrimônio arquitetônico

fortalece o testemunho da intervenção humana no ambiente

construído, pois sua preservação relaciona-se em salvaguardar o

passado, as vivências e as transformações ocorridas em certo tempo

e espaço. Dessa forma, oferece subsídios fundamentais acerca do

525

passado das cidades, tendo em vista que nele habita possibilidades

que contribuem para a formação da memória, identidade e

pertencimento, como também para a formação da sociedade e das

categorias sociais desencadeando uma forte ligação entre o sujeito e

suas raízes. Preservar o patrimônio arquitetônico implica na

melhoria da qualidade de vida da comunidade e na garantia do

exercício da memória e identidade local.

A ligação de educação e preservação do patrimônio é

fundamental para a formação do indivíduo, pois o processo

educacional centrado na arquitetura mostra-se como um

instrumento de gestão e alfabetização cultural capacitando os

sujeitos para a leitura e compreensão do universo sociocultural em

que estão inseridos. Logo, este processo destaca-se como uma

possibilidade de construção da identidade, participação,

democracia e cidadania, ao mesmo tempo em que se valoriza a

arquitetura patrimonial local, introduzindo a construção de um

conhecimento conjunto, apropriado e elaborado coletivamente. O

patrimônio pertence à comunidade que o produziu. Então, pensar

na salvaguarda dos bens arquitetônicos é uma questão de

consciência histórica e de cidadania. Se os sujeitos souberem

reconhecer, valorizar e preservar tais evidências alocados no

espaço urbano terão dado um gigantesco passo para garantir o

bem-estar social e a emancipação cultural das futuras gerações.

Diante disso, percebe-se a educação patrimonial como uma

forma de interpretação das marcas do passado deixadas no

patrimônio de cada sociedade no decorrer do tempo e considera-se

que a destruição dessas marcas, equivale a silenciar informações.

Isto é, significa apagar períodos do cotidiano da trajetória histórica

e privar as gerações presentes e futuras do seu direito aos seus bens

culturais. Desse modo, é necessário repensar as práticas atuais e

incorporar de maneira mais efetiva a educação patrimonial como

um mecanismo importante para a análise e questionamentos mais

profícuos sobre a questão de valores éticos, estéticos e

socioambientais da sociedade, uma vez que o conceito de

patrimônio vai sendo paulatinamente desvinculado da noção

526

tradicional em consagrar bens que acentuam apenas a presença do

Estado. Hoje o termo ampliou-se e falar em patrimônio é falar de

valores.

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O único bem patrimonial tombado de Ijuí/RS

prédio do extinto Tiro de Guerra nº 337

Tarcisio Dorn de Oliveira1

Franciele Zientarski Engerroff2

Laura Barbosa de Jesus3

Considerações Iniciais

Ao longo do desenvolvimento das cidades é comum que

edificações de cunho patrimonial sejam demolidas, devido ao

abandono, concedendo lugar a estruturas contemporâneas com

características e traços atuais. Entretanto, com a demolição,

observa-se, que parte da história de um determinado lugar é

esquecida (ou até mesmo extinta), dando vez a novas percepções, a

novos estilos arquitetônicos e a novas funções sociais. Pelo ato da

preservação patrimonial, Sá (2015), destaca que

independentemente da forma como a edificação está, ela traz

consigo ensinamentos carregando a mensagem de que a

arquitetura está ali, mostrando sua importância e imponência para

o espaço. Mesmo abandonado, o patrimônio arquitetônico fala,

mantendo-se presente e atuante, dando singularidade ao lugar.

A preservação faz com que a memória de uma cidade

mantenha-se viva, pois a arquitetura conta parte da história dos

1 Doutorando em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Mestre em Patrimônio Cultural pela

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Bacharel em Arquitetura e

Urbanismo pela Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ. Docente dos Cursos de

Engenharia Civil e Arquitetura e Urbanismo da UNIJUÍ. Líder do Grupo de

Pesquisa Espaço Construído, Sustentabilidade e Tecnologias - GTEC

(DCEENG/UNIJUÍ). E-mail: [email protected] 2 Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. E-mail: [email protected] 3 Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. E-mail: [email protected]

530

antepassados. Nesse sentido, Mota, Cavalcante e Feitosa (2015)

afirmam que entender a memória, como um meio ou veículo de

recordação, faz com que essas recordações existam não apenas

como lembranças de um vivido longínquo, mas que nos forneçam

entendimentos e interpretações do que existe hoje, como resultado

da evolução do que havia no passado. Assim, as edificações

patrimoniais fornecem o entendimento de como começou uma

cidade, para onde a malha urbana se expandiu e como se deu a

evolução de determinado centro urbano. Sem preservação, muitos

elementos importantes da memória urbana se perdem em meio aos

destroços das demolições.

Nesse sentido, a preservação da memória coletiva é de suma

importância para as mais variadas áreas, cada uma com sua

peculiaridade, mas todas com o compromisso social e, por isso, se

dá a importância da conscientização do motivo pelo qual se deve

preservar. Sá (2015) ressalta que o patrimônio cultural edificado

normalmente é preservado por ser um elemento histórico, uma

obra-prima, mas independentemente a identidade existe e a

questão mais importante é a percepção. Pela falta de uma educação

do olhar, a identidade acaba sendo apenas subliminar e não

consciente. Desse modo, é preciso, exercitar o olhar, aprender a

associar, a relacionar e a comparar a arquitetura e sua ambiência.

O presente ensaio teórico4 trata-se de uma pesquisa descritiva

através de um levantamento bibliográfico e documental, os quais

buscaram elencar pontos com a finalidade de gerar reflexões acerca

da temática da preservação e salvaguarda do patrimônio histórico

e cultural com o intuito de aprofundar o entendimento a respeito

do tema abordado. Assim, este texto5 intenta refletir sobre a

4 Desenvolvido junto aos Grupos de Pesquisa Espaço Construído,

Sustentabilidade e Tecnologias – Gtec e Ensino e Metodologia em Geografia e

Ciências Sociais – GEMGCS da Universidade do Noroeste do Estado do Rio

Grande do Sul – UNIJUÍ. 5 O presente texto conta com apoio da Agência de Fomento FAPERGS através do

Edital 02/2017 – PqG, Processo 17/2551-0001 173-2, Projeto – Escala de análise

como ferramenta intelectual para educação cidadã: O estudo da cidade como o

lócus de vida da população.

531

preservação do patrimônio e como este contribui na formação da

identidade e da memória da cidade. Para isso, traz observações

pertinentes sobre a temática do tombamento apresentando o único

prédio tombado de Ijuí / RS - o Extinto Tiro de Guerra nº 337 -

situado na área urbana central da cidade, buscando compreender

sua importância (estética, histórica e/ou cultural) e como estes bens

edificados se relacionam dentro do espaço urbano.

Desenvolvimento

As reflexões propostas a partir dos autores consultados tornam

possível avançar no sentido de promover leituras e reflexões sobre

a relevância do tombamento de edificações no contexto de

conservar e preservar estruturas de edificações de cunho

patrimonial, tendo em vista que elas contribuem para o resgate da

história local da cidade, auxiliando na construção da identidade

social das gerações futuras. Nesse sentido, algumas reflexões são

propostas a seguir.

Tombamento do patrimônio histórico e cultural

Lúcio Costa (1902-1998) arquiteto e urbanista brasileiro conduz

os leitores a perceberem a arquitetura, como bem durável,

concebido de maneira estrutural e orgânica, na medida do corpo

do homem, sentido em termos de espaço e de volume. Na visão do

autor a arquitetura é algo para ser vivida transcendendo a simples

atividade de projetar (seu modo de ver a arte como manifestação

normal de vida permeia todo o texto), introduzindo o passado não

como coisa pretérita, mas como permanência evidenciando ainda

seu pensamento sobre o homem, a ciência e a tecnologia. Sugere

aos professores e acadêmicos diferentes maneiras de vivenciar a

arquitetura e produzir conhecimentos como:

a) identificar a arquitetura como arte, valorizando-a enquanto

representativa da nossa cultura;

532

b) compreender a importância da arquitetura dentro do contexto

histórico e social;

c) valorizar o trabalho arquitetônico, identificando-o com ideais,

valores e necessidades sociais.

d) identificar as principais características de estilos arquitetônicos e

sua época;

e) compreender a interação homem/meio ambiente e o reflexo no

equilíbrio ecológico;

f) identificar tipos de habitação, localização, materiais de construção,

levando em consideração as necessidades de abrigo e proteção;

g) conhecer as características de sua comunidade, estabelecendo

comparações com as de outras comunidades e em especial com as de

Brasília (COSTA, 2002, p. 147-148).

Nesse sentido, utilizando os postulados propostos por Costa

(2002), pode-se observar que a arquitetura é um processo ativo de

conhecimento, relacionando-se com a memória, identidade e

pertencimento. A história, a memória, a identidade e o

pertencimento podem ser reconstruídos e entendidos por meio da

arquitetura, possibilitando um conhecimento crítico e uma

apropriação consciente dos bens patrimoniais por parte dos

sujeitos. Logo, estes quesitos são fundamentais nos processos de

salvaguarda e proteção do patrimônio arquitetônico. Patrimônio

pode ser definido como um bem material que tenha relevância para

a cultura e identidade de uma determinada população, trazendo

consigo diferentes significados e a sua preservação é de interesse

tanto público quanto privado.

Schirru (2017) complementa que o patrimônio, por meio dos

edifícios culturais, conta a história da comunidade, pela forma que

eles foram construídos, pelos eventos importantes que ocorreram e

principalmente pelo papel nos agrupamentos sociais. Para

Camargo (2002), Assunção (2003) e Fonseca (2005) patrimônio é o

conjunto de bens culturais de propriedade de todos os cidadãos e

com valor reconhecido para uma região e humanidade. O valor

simbólico atribuído a objetos, a artefatos ou a construções, parte da

importância que lhes são atribuídas pela memória coletiva, então,

533

na medida em que elegem determinados monumentos, passaram a

atribuir a eles um valor como patrimônio.

Para tanto, a relevância da preservação desses bens torna-se

fundamentais, pois documentam e transmitem às gerações por vir,

as referências de um tempo e de um espaço singular, que jamais

serão revividos, apenas revisitados (quando lhes atribuímos

determinados valores). Nesse contexto, Magalhães (2006) e

Machado (2010) complementam que a cultura e a memória são os

principais fatores de coesão entre a identidade e o patrimônio,

tendo em vista que a cultura é um patrimônio coletivo produzido

pelo conjunto da sociedade.

Entende-se por patrimônio arquitetônico (histórico e/ou

cultural) qualquer edificação que caracterize parte da história de

um local, cidade ou município. Desse modo, é necessário aprender

a desenvolver um olhar crítico quanto às edificações, pois muitas

vezes só percebe-se o patrimônio pela sua exuberância

arquitetônica, deixando passar despercebidas muitas outras

edificações, por possuírem uma arquitetura mais simplificada.

Nesse viés, Rocha (2012) observa que o patrimônio não se limita

apenas no sentido de herança, mas refere-se também aos bens

produzidos pelos nossos antepassados, que resultam em memória

histórica e cultural. Quando uma edificação é caracterizada como

um patrimônio e é tombada, ela tem maior importância por se

tornar oficialmente parte da história de um lugar.

Em uma retomada histórica, é possível perceber que o

patrimônio histórico e cultural no Brasil não contava com proteção

alguma até que foi criada a Constituição Federal de 1934, a qual

encarregava apenas o estado de salvaguardo do patrimônio.

Posteriormente, no ano de 1937, foi elaborado o Decreto nº 25 que

estabelecia normas sobre a preservação e cuidados com o

patrimônio. Primeiramente tal decreto atuou somente no âmbito

federal, mas depois de um tempo passou a ser empregado nos

estados e municípios. O referido Decreto define o patrimônio como

o conjunto dos bens cuja conservação seja de interesse público, que

534

por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, por

seu excepcional, possuem grande valor bibliográfico ou artístico.

No Brasil podem ser tombados bens públicos e privados não

importando a quem pertençam, porém não é possível utilizar o

tombamento como instrumento de preservação de bens que

tenham apenas interesse individual. Ele deve apresentar interesse

coletivo. Alguns exemplos de bens que podem ser tombados são:

fotografias, livros, acervos, mobiliários, utensílios, obras de arte,

edifícios, ruas, praças, bairros, cidades, regiões, florestas, cascatas,

entre outros bens móveis ou imóveis, bens corpóreos (existência

física, não somente jurídica), que façam parte da história e da

cultura de um conjunto de pessoas. O Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul – IPHAE

observa que todo o patrimônio público ou particular, móvel ou

imóvel, cultural ou ambiental, que tiver importância para a

sociedade poderá e deve ser inscrito nos Livros Tombos e, com

isso, ser formalmente tombado, isto é, tornar-se oficialmente

reconhecido, a fim de ser protegido e preservado.

O tombo pode ser efetuado em edificações que contenham a

história dos nossos antepassados. Assim, depois que um bem é

tombado, ele deve continuar sendo preservado com as

características que possuía originalmente na data da sua inscrição

no livro do tombo. O ato de tombar uma edificação não cria

qualquer impedimento para a venda, aluguel ou herança de um

bem, porém, a intervenção nesses locais é restritiva, como por

exemplo, se for vendido o proprietário deve mantê-lo conservado

sem alterar as fachadas e sua estrutura. Portanto, não se alteram

também as características fundamentais da propriedade privada,

especialmente a compra, a venda e a hereditariedade que são as

questões fundamentais desta. O tombamento pode então ser

considerado uma ferramenta de reconhecimento e proteção dos

bens materiais construídos, que apresenta diretrizes que defendem

a salvaguarda destes bens que possuem significado para a

sociedade. O tombamento é o instrumento mais eficaz, tornando

possível a intervenção do poder público na esfera privada no

535

intuito de proteger determinado patrimônio, seja ele histórico,

cultural, ambiental, entre outros.

Prédio do Extinto Tiro de Guerra 337

Ijuí é uma cidade localizada no Noroeste do Estado do Rio

Grande do Sul, fundada em 19 de outubro de 1890. A cidade

acolheu imigrantes de várias nacionalidades e, atualmente, é uma

das cidades mais importantes da região Noroeste do Estado. Sua

população (estimada) no município é de 83.330 mil habitantes e a

sua área territorial é de 689,387 km² (IBGE, 2017).

Devido à diversidade étnica da cidade, resultado da imigração

de mais de onze povos europeus, o município é conhecido como

capital da cultura do Rio Grande do Sul, razão pela qual realiza

anualmente a Festa Nacional das Culturas Diversificadas

(FENADI), sendo atualmente conhecida como a Terra das Culturas

Diversificadas, Cidade Universitária, Colmeia do Trabalho, Terra

das Fontes de Água Mineral e Portal das Missões.

Em 1896, no Brasil, foi fundada a Confederação Brasileira de

Tiro pelas Forças Armadas, que tinha como principal finalidade

preparar cidadãos para defender a pátria. Sendo assim, no contexto

histórico e cultural, a única edificação tombada é a que pertenceu

ao Tiro de Guerra de Ijuí numerado como a de número 337 no

Brasil. A edificação foi então nomeada como ‚Tiro de Guerra 337‛,

localizada na Rua Álvaro Chaves, nº 254, a qual foi construída em

meados de 1917 conforme Figura 1.

536

Figura 1 - Tiro de Guerra 337 em meados da década de 1970

Fonte: Museu Antropológico Diretor Pestana (2018)

O Tiro de Guerra manteve-se por apenas 27 anos em sua função

original, isto é, para a finalidade para a qual foi construído. O Tiro de

Guerra nº 337 foi tombado não por sua arquitetura, mas sim por seu

valor histórico para o município de Ijuí e o legado que a edificação

teve no passado, assim como a sua relevância para a comunidade. Seu

tombamento seu deu a nível municipal como ilustra imagem a seguir:

Figura 2 – Tombamento do imóvel

Fonte: Prefeitura Municipal de Ijuí (2018)

537

Diante disso, é possível inferir que as edificações mais antigas

atraem olhares que instigam a imaginação e, ao mesmo tempo,

olhares que apreciam a salvaguarda e manutenção deste

patrimônio e não é diferente com a edificação 337. Dessa forma,

Schirru (2017) complementa que o patrimônio cultural de uma

cidade faz reluzir as vivências de um povo, contribuindo para a

preservação de uma sociedade. E ainda, Segundo Lucchese (2004,

p. 36):

O tiro de Guerra apenas funcionou de 1917 a 1944, tendo passado por

suas fileiras 1310 sócios, 25 turmas de reservistas formados e ele só

paralisou suas atividades devido a instalação definitiva da Guarnição

Federal em Ijuí que passou a utilizar o prédio para atividades

reservistas até 1993 ano em que o prédio deixou de possuir qualquer

finalidade cívica ou social.

O prédio do Tiro de Guerra faz reluzir a história de quem ali se

associou, de quem ali serviu como reservista, deixando a

imaginação livre de quem também hoje o observa. A forma e a

fachada da edificação do Tiro de Guerra produz uma alusão

quanto ao seu uso original e, quando observada, traz para a

imaginação, de quem a contempla, uma referência a aspectos

militares, bem como um pouco da história que ali se sucedeu.

Neste contexto, Lucchese (2004 p. 38) reforça que:

A arquitetura do imóvel, por ter a função militar, é do tipo

fortificação. A platibanda junto a cobertura é uma estilização

acastelada, que são parapeitos recortados a intervalos regulares para

a colocação das peças de artilharia e originalmente a cobertura eram

do tipo ‚francesas‛.

A edificação é de posse do município de Ijuí e nele funciona a

Secretaria de Ação Social e, até o momento, ela já sofreu várias

reformas, sendo ocasionadas diversas mudanças nos componentes

originais, como por exemplo, as janelas de madeiras foram

substituídas por aberturas de ferro, porém a estrutura inicial nunca

538

foi alterada. Figueira (2007) cogita que uma possibilidade para a

conscientização da importância da conservação do Patrimônio

imóvel nas cidades seria por meio da educação patrimonial, que

tem a possibilidade de desenvolver um trabalho de sensibilização

e, consequentemente, conscientizar a população em relação à

preservação do patrimônio natural e cultural, permitindo assim a

manutenção da identidade cultural de uma sociedade. Desta

forma, a própria identidade social e a memória coletiva passariam

a ser valorizadas, preservadas e difundidas, quando compreendido

o seu valor, ao mesmo tempo em que se deve promover junto à

sociedade o sentimento de pertença na cooperação para a

preservação de marcos e monumentos históricos, memoriais e

edificações antigas das cidades.

Conclusão

Na contemporaneidade, o descaso com as antigas construções é

bastante preocupante. Por não apresentarem um estilo atual, estas,

acabam sendo vistas com maus olhos e então, consequentemente,

acabam sendo demolidas como se não possuíssem valor algum.

Ainda impera o pensamento que só se dá valor a um bem, quando

este gera lucro e riqueza, não valorizando a referência que ele

representa, inexistindo a compreensão de que a arquitetura é a

materialização de um desenvolvimento de outrora e, por isso, a

necessidade de sua preservação. A indiferença com estas

edificações, que são portadoras de referência e identidade, pode

causar grandes fatalidades, como a demolição e, como

consequência, afetar a memória dos diferentes grupos formadores

da sociedade do lugar. Quando se perde uma edificação, perde-se

também a memória emocional, capaz de gerar diversos

sentimentos ao patrimônio e a sua ambiência de entorno.

O Plano Diretor Participativo de Ijuí é pobre em diretrizes que

defendam a salvaguarda de prédios de interesse histórico e

cultural. O único vestígio de defesa à proteção destes é a Lei nº

1977 de 1984, que dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico e

539

cultural do município de Ijuí, que foi regulamentada pelo Decreto

nº 1056 de 1985 e revogada pela Lei nº 5630 de 2016, que institui o

Plano Diretor Participativo do Município de Ijuí. No entanto, o

Plano Diretor, apenas no artigo 23, faz menção ao patrimônio

histórico, cultural e paisagístico, em que as intenções são valorizar

e incentivar o uso, conservação e restauração. Diante disso,

percebe-se que Ijuí / RS possui mínimos instrumentos que

colaboram com a preservação de prédios com valor arquitetônico,

histórico e cultural na cidade.

Pelo fato de Ijuí não possuir uma efetiva legislação que preze

pela preservação, propicia a extinção da arquitetura de épocas

passadas, além da história da formação do espaço urbano,

deixando em dúvida, por vezes, de onde, para onde e como se

iniciou o desenvolvimento de determinado espaço da cidade. É

imenso o valor da importância do tombamento, pois uma

edificação com muitos anos de idade revela seu valor nos

diferentes traços de sua fachada, que não são encontrados iguais ou

semelhantes com facilidade nas ruas da cidade. O tombamento tem

como principal função proteger e resguardar o patrimônio

instigando o resgate da história e da cultura, tanto para as gerações

atuais, como para as gerações futuras.

A possibilidade de tombamento não congela os bens materiais

para a sua utilização, pelo contrário, eles devem ser usados e

aproveitados, devendo inclusive ter função social, isto é, serem

ocupados para atividades diversas, a fim de manterem-se como

elementos dinâmicos, a exemplo, do Prédio do Extinto Tiro de

Guerra nº337, que atualmente abriga a Secretaria de Ação Social de

Ijuí. O uso constante e a manutenção adequada do bem tombado

evita o acúmulo de problemas de conservação e consequências

mais graves, como a deterioração gradativa e a necessidade de

realizar intervenções maiores. A preservação arquitetônica é

essencial para que a identidade de uma edificação, considerada

patrimônio, não se perca, tendo em vista que a arquitetura é

testemunho vivo de épocas passadas e, desse modo, a história

540

contada por meio das construções e o que elas representaram deve

ser igualmente preservada e relatada.

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(Especialização em Turismo e Desenvolvimento Sustentável) –

Centro de Excelência em Turismo, Pós-Graduação Lato Sensu,

Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

IJUÍ-RS. Lei nº 1977, 01 de Março de 1984. Dispõe sobre a proteção do

patrimônio histórico e cultural do município de Ijuí.

IJUÍ- RS. Decreto nº 1056/1985. Regulamenta a Lei nº 1977, de 1

de março de 1984, que dispõe sobre a proteção do patrimônio

histórico e cultural do município de Ijuí.

IJUÍ-RS. Lei complementar Nº5630, de 24 de maio de 2012. Institui

o Plano Diretor Participativo do Município de Ijuí, Consolida a

541

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outras providências.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE.

Disponível em: < http://www.cidades.ibge.gov.br. Acesso em 26 abr 2018.

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542

543

Metodologia de gestão Lean

e sua relação com a qualidade em saúde

Larissa Evangelista Ferreira1

Adriane Karal2

Danúbia Jacomo da Silva Cardoso3

Introdução

A gestão em enfermagem é definida pelo gerenciamento da

assistência de enfermagem e tem como objetivo planejar os

recursos necessários, elevando a qualidade do serviço e do cuidado

prestado (PEREIRA et al. 2015). Assim, a gestão ou gerência podem

ser tratadas como algo científico e racional, do qual se procedem a

análises e relações de causa e efeito (MORORÓ et al., 2017). Os

teóricos, Taylor e Fayol, com suas propostas enfatizando,

respectivamente, tarefas e estruturas de uma organização, servem

até hoje como referência para as ações de profissionais que atuam

diretamente como gestores.

Nos últimos anos diversas experiências têm sido desenvolvidas

nos serviços de saúde para implementar sistemas de gestão da

qualidade e aplicar a filosofia de gestão pela qualidade. A

enfermagem tem consciência da sua responsabilidade diante da

qualidade do cuidado que presta ao paciente, à instituição, à ética,

às leis e às normas da profissão, assim como da contribuição do seu

desempenho na valorização do cuidado e satisfação dos pacientes

(RÉGIS; PORTO, 2011).

1 Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Gestão do Cuidado

em Enfermagem. Modalidade Mestrado Profissional da Universidade Federal de

Santa Catarina. E-mail: [email protected]. 2 Enfermeira. Mestranda do Mestrado Profissional em Enfermagem na Atenção

Primária à Saúde da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail:

[email protected]. 3 Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Gestão do Cuidado

em Enfermagem. Modalidade Mestrado Profissional da Universidade Federal de

Santa Catarina. E-mail: [email protected].

544

Atualmente, a qualidade em saúde é um termo bastante

pesquisado, polêmico e que pode ser entendido sob diversos

enfoques. Na área da saúde, a definição de qualidade torna- se

mais ou menos ampla dependendo do quão ampla é a definição de

saúde e da responsabilidade da equipe clínica no seu atendimento.

Significa que os envolvidos nos atos de saúde estão constantemente

preocupados quanto às propriedades, benefícios e malefícios dos

serviços prestados e desenvolvem atividades de aferição e

aperfeiçoamento, para uma maior satisfação dos que necessitam

desses serviços. Sendo assim, gestão da qualidade é a adoção de

programas desenvolvidos internamente ou segundo padrões

externos, capazes de comprovar um padrão de excelência

assistencial, a partir da melhoria contínua da estrutura, dos

processos e resultados (CARVALHO, et al. 2004).

Garantir a qualidade é, basicamente, um esforço para achar e

superar problemas com qualidade. Ou seja, é modificar o

desempenho e o comportamento dos profissionais, das instituições

e dos sistemas em direção a práticas mais apropriadas e aceitáveis

em termos de resultados e custos para a saúde (CALDANA, et al.

2013).

Nos serviços de saúde, a qualidade deve ser enfatizada,

principalmente porque o cuidado prestado ao usuário é consumido

durante a sua produção, tornando-o diferente da produção de

bens, em que é possível separar o produto com defeito sem maiores

consequências. Ocorre igualmente no trabalho de enfermagem,

como nos demais serviços de saúde, à medida que os bens são

produzidos são consumidos no ato da produção, não podendo ser

estocados e comercializados posteriormente (WEIRICH et al. 2009).

Apesar da complexidade do processo de trabalho em saúde,

espera-se que o enfermeiro, utilizando o conhecimento científico do

cuidado e ferramentas adequadas, seja capaz de desempenhar um

papel de gestor dos serviços de saúde, dentro de uma perspectiva

participativa, onde o objetivo é alcançado pelo esforço coletivo e

não pela união de esforços individuais.

545

Segundo Hausmann e Puduzzi (2009), as atividades gerenciais

realizadas pelos enfermeiros buscam assegurar a qualidade da

assistência de enfermagem e o bom funcionamento da instituição.

Portanto, cabe a esse profissional a busca por estratégias que

agreguem valor ao seu processo de trabalho gerencial com a

finalidade de alcançar o melhor resultado assistencial possível.

A melhoria do processo de cuidado oferecido nos ambientes de

assistência à saúde acontece desde os primórdios do atendimento

médico-hospitalar com o intuito de aprimorar a efetividade das

ações e oferecer um amparo de qualidade aos usuários desses

serviços. O pensamento Lean é um modelo de gestão que tem

despontado como um referencial para o alcance dessa qualidade

assistencial aliado a melhoria contínua dos processos

(MAGALHAES et al. 2016).

O pensamento Lean consiste em uma abordagem sistemática

que permite a identificação e eliminação do desperdício nos

processos produtivos, tendo como foco principal agregar qualidade

e entregar ao cliente somente o que ele considera como valor. Em

outras palavras, Lean é a maximização do valor para o cliente por

meio de um processo eficiente e sem desperdícios. Na saúde, isso

significa fornecer serviços que respeitem e atendam às preferências

e necessidades dos pacientes (MAGALHAES et al. 2016).

Nos últimos meses tem-se observado a difusão do termo Lean

nos veículos de comunicação relacionados à área da saúde.

Motivadas por este fato, este trabalho tem como objetivo refletir

sobre conhecimento científico do pensamento Lean na área da

saúde, destacando suas características e contribuições para a

qualidade do cuidado em saúde e enfermagem. A metodologia

aplicada foi revisão narrativa, que possibilita conhecer as diferentes

contribuições científicas disponíveis sobre determinado tema

(MARCONI & LAKATOS, 2007). A revisão bibliográfica foi

realizada no período de julho de 2018, sendo realizada busca de

trabalhos científicos na BIREME (Biblioteca Regional de Medicina)

e Scielo (Scientific Electronic Library Online) e Google Scholar e

546

selecionados os trabalhos científicos considerados relevantes para a

construção deste artigo.

Características da metodologia Lean

Com o início na indústria automobilística, a metodologia Lean

superou o setor da indústria e hoje é uma abordagem atual em

outros seguimentos, como a área da saúde. Sua origem data da

década de 50, onde o maior objetivo era identificar e eliminar

desperdícios, focando na redução de custos, aumento da qualidade

e otimização da velocidade de entrega.

Em um cenário pós Segunda Guerra Mundial, os países

ocidentais encontravam-se com poucos recursos de pessoas,

espaço, materiais, consequências de dois ataques atômicos e entre

outros. Neste contexto, a Toyota e Ohno chegaram à conclusão que

a produção em massa nunca viria a funcionar ali, era necessário

desenvolver um sistema fábrico novo para poderem sobreviver no

mercado mundial, focando em ser competitivos em qualidade e

preço, com variedade de produtos. Foi deste modo que surgiu o

Sistema de Produção da Toyota (TPS), o qual metodicamente

elimina o desperdício e orienta o foco na satisfação do cliente. Mais

tarde, este viria a ser adotado por outras empresas japonesas,

evoluindo para a filosofia Just-In-Time (JIT) e posteriormente para

o conceito de Lean Thinking, o pensamento enxuto (PINTO, 2006).

Sendo assim, baseado nos métodos da Toyota, o pensamento

Lean leva a melhores resultados com menos esforço, espaço,

dinheiro e tempo, em comparação com o sistema tradicional de

produção em massa, priorizando a máxima segurança, empenho e

motivação dos colaboradores, encurtando o fluxo do processo

produtivo através da eliminação de desperdício (LIKER;

MORGAN, 2006).

O Lean é uma filosofia de gestão voltada para melhoria de

processos baseado em tempo e valor, desenhada para assegurar

fluxos contínuos e eliminar desperdícios e atividades de baixo

valor agregado (MAGALHÃES, et. al., 2016). Segundo Womack et

547

al. (1996), valor é definido como todas as características do produto

desejadas pelo usuário, e o desperdício é, resumindo, tudo aquilo

que não apresenta valor para o cliente.

Para Graban (2013), a eliminação do desperdício pode ser uma

das formas de aumentar a qualidade dos serviços de saúde. Para o

autor, os oito tipos de desperdícios consistem em: falhas (tempo

gasto fazendo alguma atividade incorretamente); superprodução

(fazer mais que o demandado pelo cliente ou produzir antes da

demanda surgir); espera (espera pelo próximo evento ou pela

próxima atividade de trabalho); excesso de processamento (fazer

trabalho que não é valorizado pelo cliente ou causado por

definições de qualidade que não se alinham com as necessidades

do paciente); potencial humano (desperdício e perda derivados de

funcionários que não se sentem engajados, que não se sentem

ouvidos ou que não percebem apoio as suas carreiras); transporte

(movimento desnecess{rio de ‚produto‛); movimento (movimento

desnecessário dos funcionários no hospital) e estoque: custo do

estoque excessivo representado em custos financeiros, custos de

armazenagem e transporte.

A metodologia de produção Lean reúne as atividades de toda a

organização desde a gestão de topo, passando pelos operários, até

aos fornecedores, combinando vantagens das produções artesanais

e em massa, ou seja, a capacidade de reduzir custos unitários e

aumentar significativamente a qualidade (RIBEIRO, 2013).

A produção enxuta é uma prática para melhorar a produção

por meio de ciclos de planejamentos, com habilidade dos gerentes

para criar um ambiente propício para o sucesso da implementação.

De modo bem simples, a produção enxuta é uma forma de se

produzir mais com cada vez menos (menos esforço humano,

menos equipamento, menos tempo e menos espaço) e, ao mesmo

tempo, oferecendo aos clientes cada vez mais aquilo que eles

desejam (PESTANA, 2013).

A abordagem enxuta está baseada em uma série de princípios

que norteiam as operações de uma organização na busca de maior

qualidade, aliada à maior eficiência, o que tem trazido excelentes

548

resultados em termos de excelência operacional e lucratividade nos

diversos setores em que tem sido aplicada, inclusive na área da

saúde, em que recebe a classificação de Lean Helthcare.

O Lean e a qualidade em saúde

No setor de saúde, assim como na indústria, é possível reduzir

e eliminar os desperdícios, criando uma cultura de melhoria

contínua em toda organização. Segundo Graban (2013), o lado

técnico do Lean pode ser descrito como as ferramentas e métodos

que são implementados, como exemplo, o Kanban, 5S, Kaizen e

Gerenciamento Visual.

Nas décadas de 80 e 90, o conceito de ‚Qualidade‛ passou a

circular nos meios de comunicação, levando as empresas a

transformarem-se, com vistas ao futuro, pela necessidade de

sustentabilidade. O planejamento, a revisão de processos e o

acompanhamento de performance, assim como melhorias

constantes, passaram a ser vitais para o posicionamento das

organizações no mercado. Os Sistemas de Qualidade foram

adotados na busca de competitividade, de eficiência e eficácia dos

processos e dos altos índices de desempenho com resultados de

sucesso (CALDANA, 2013).

De fato, nos últimos anos a qualidade é considerada um

componente estratégico na maioria dos países do mundo,

independentemente do nível de desenvolvimento econômico e do

tipo de sistema de saúde adotado. Nesse sentido é preciso superar

aquela concepção que considera o discurso da qualidade como

uma prerrogativa dos países ricos de recursos e com um sistema de

saúde avançado (SERAPIONE, 2009).

Graban (2013) refere que o despertar pelo tema qualidade da

assistência à saúde decorre de múltiplas razões que podem ser

destacadas pelo incremento das demandas por cuidados de saúde,

custos crescentes para a manutenção dos serviços e limitados

recursos disponíveis, usuários mais exigentes e conscientes de seus

direitos, reivindicação tanto dos profissionais de saúde que

549

desejam condições dignas e éticas de trabalho, como dos governos

responsáveis pelo financiamento do sistema de saúde.

Para alcançar excelentes resultados de melhorias é necessário

inovação nos processos de trabalho, na busca de melhores

resultados e redução de custos. A prática enxuta disseminada pela

metodologia Lean é hoje um diferencial nas empresas, atuando com

o mínimo de desperdícios, otimizando tempo e espaço, com

flexibilidade e criando uma cultura organizacional de melhoria

contínua (MOREIRA, 2012). Segundo Souza (2008), diversos

autores têm atribuído sucessos ao Lean Healthcare, pelo fato de

gerar resultados de melhorias expressivos e principalmente

sustentáveis.

Há especialistas que consideram que o uso do Lean será crucial

para lidar com os atuais desafios da saúde (LAPÃO, 2016). O Lean

já apresentou resultados positivos relacionados com o desempenho

de alguns sistemas de saúde. Esses passam pela diminuição do

tempo total que os pacientes gastam nos cuidados, no aumento do

número de pacientes que podem ser atendidos, na redução do

tempo de espera, no aumento da satisfação do paciente assim como

dos funcionários, na redução de horas extras, na diminuição dos

custos com estoques e principalmente na redução do tempo de

distância das movimentações para o paciente e para os

funcionários. Estes refletem na redução do número de erros e

incidentes, pois é desenvolvida uma assistência mais ágil e hábil,

utilizando os mesmos funcionários, mas sendo possível em um

ambiente de trabalho estável, com procedimentos claros e

padronizados, de maneira a criar as bases para a melhoria

constante e onde o entusiasmo e valorização dos funcionários seja

visível (POKSINSKA, 2010).

Na literatura também encontramos algumas publicações e

trabalhos científicos que relatam os benefícios na aplicação na

metodologia Lean para aumento da qualidade do processo em

cuidado.

Pestana et al. (2013) apresenta um modelo teórico de

organização do cuidado ao paciente em morte encefálica e o

550

processo de doação de órgãos balizado pelas principais ideias do

pensamento Lean, desvelando possibilidades de melhoria desse

processo. Essa melhoria advém de um planejamento e organização

do cuidado através da manutenção preventiva dos equipamentos;

um o sistema de informação será efetivo e atualização profissional.

Da mesma forma, Araújo et al. (2016) descreve aplicação das

ferramentas do Lean em um hospital público localizado na cidade

de Petrolina-PE, através de em diversos setores. Através da

aplicação de metodologias com 5S, Gerenciamento Visual e Kaizen

foi identificar desperdícios e mitigá-los, a fim de inserir novos

conceitos visando à prática da melhoria contínua no ambiente

hospitalar, aumentando a eficiência dos serviços na instituição.

A melhoria contínua da qualidade assistencial requer

avaliações sistemáticas dos cuidados prestados aos usuários dos

serviços de saúde, visando à identificação dos fatores que

interferem no processo de trabalho da enfermagem. Percebe-se os

reflexo da aplicação da metodologia Lean na qualidade dos serviços

oferecidos. Porém convém destacar que para que se alcance

qualquer resultado em programas de qualidade aplicados à saúde,

é primordial uma eficiência da gestão hospitalar, sendo

imprescindível também, para o bom funcionamento de um

hospital, pois ela é responsável por relacionar a estrutura existente

e os processos dos serviços oferecidos rotineiramente em um

hospital, tendo como foco a primazia do atendimento ao paciente

(LONGARAY, 2015).

Considerações finais

O setor da saúde tem sido alvo de vários estudos de gestão,

adotando ferramentas que permitem garantir a qualidade e

eficiência de suas atividades, sendo que instrumentos como o Lean

se mostra simples e eficaz no que diz respeito a eliminar gastos e

satisfazer o cliente.

Portanto é notório que o enfermeiro em busca de aprimorar a

prática do cuidar, está se ocupando cada dia mais com a gestão dos

551

serviços, implantando e implementando ações para qualidade e

segurança do paciente nas instituições de saúde, uma vez que se

destaca neste exercício, pois tem a capacidade de interagir

interdisciplinarmente e diretamente com o paciente, compreender

seus desafios e assim planejar a assistência que será oferecida.

Neste sentido a metodologia Lean pode auxiliar o enfermeiro gestor

e sua equipe a promover uma assistência em saúde de qualidade,

usando o que tem disponível e sem demandar grandes recursos.

Assim na era digital onde o acesso a informação é instantâneo,

os pacientes exigem dos serviços e profissionais de saúde um

atendimento cada vez melhor, com mais qualidade e

resolubilidade, e para acompanhar essa evolução é necessário

maior investimento no treinamento, capacitação em serviço,

olhando sempre para suas operações de forma que seus processos

gerem valor para o paciente, atendendo suas expectativas, de seus

familiares, governo e sociedade.

Ainda se observa a necessidade de quantificar os efeitos do

Lean, a dimensão e grau da sua aplicação, nos serviços de saúde

com investigações científicas, já que os dados analisados se tratam

de implementações exitosas em determinados serviços, através de

práticas e registros. Com o intuito de recolher e analisar os dados

concretos de medida dos vários indicadores, aferir até que ponto

estão de acordo com a filosofia Lean e de que modo podem ser

melhorados, seguindo os princípios da mesma.

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Pesquisas e escritascontemporâneas:

dialogando com apluralidade de vozes

Cláudia FuchsIvan Luís Schwengber

Leandro Mayer Jenerton Arlan Schütz

(Organizadores)

(Mario Osorio Marques)

Por isso escrever é preciso, para encontrar-se a si mesmo sendo mais forte do que se é, para a longa e tortuosa busca do Outro de um desejo mais paciente. Importa em duplo desconhecimento: o do que somos e podemos e o de outrem que misterioso nos aguarda. Trabalhado pela dúvida inaugural da criação, o escrevente busca achar-se, descobrir-se, dizer-se para além das circunstâncias imediatas.

No ato de escrever um dos interlocutores é um leitor ausente e desconhecido, apenas virtual, o que deixa o outro, o escrevente, em extrema solidão, entregue a si mesmo e ao estar sozinho na própria casa ante uma imensidão vazia, sabendo-se, no entanto, espiado e policiado. Leva-o a morrer em si mesmo, como diria Rousseau, para se descobrir vivo.

Escrever é o começo dos começos. Depois é a aventura. Uma mochila com alguns poucos pertences do ofício artesanal, uma bússola, vale dizer um título que resuma o problema, ou tema, e a hipótese de trabalho. Uma lâmpada para iluminar os caminhos à medida que se apaga a luz do dia. E desse jeito que a teoria ilumina e conduz a prática, mas só quando a própria prática a deslocou para a situação a que deve servir e produzir adequada. Por isso, de saída não se pode saber quais nossos interlocutores. Surgirão eles durante a caminhada. Isso faz parte da aventura.

O que é escrever...?

Boa leitura!

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Mestranda em Educação nas Ciências (Unijuí), Especialista e m G e s t ã o E s c o l a r (Uniasselvi), Licenciada em P e d a g o g i a ( U C E F F -Itapiranga/SC). Professora da Rede Municipal de Ensino do Município de Ijuí/RS. Bolsista CAPES. E-mail:

Cláudia Fuchs

M e s t r e e m E d u c a ç ã o (Unochapecó), Especialista em Metodologias de Ensino de Filosofia e Sociologia (Educon) e Gestão Escolar (Uniasselvi), L i c e n c i ad o e m F i lo s o f i a (FAFIMC). Professor da Rede Pública de Ensino do Estado de S a n t a C a t a r i n a . E - m a i l : [email protected]

Ivan Luís Schwengber

ISBN. 978-85-7993-603-6

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Leandro MayerDoutorando em História (UPF), Mestre em História (UPF), Especialista em Educação (UCEFF-Itapiranga/SC) e Especialista em Tecnologias

e m E d u c a ç ã o ( P U C - R J ) , Licenciado em Filosofia (PUC-RS). Professor da Rede Pública de Ensino do Estado de Santa

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Jenerton Arlan Schütz Doutorando em Educação nas Ciências (Unijuí), Mestre em

E d u c a ç ã o n a s C i ê n c i a s (Unijuí), Especialista em Metodologia de Ensino de

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