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eBook - Educação - Demerval Saviani - A Escola e Democracia

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  • SUMRIO O PROBLEMA.............................................................................................................3 AS TEORIAS NO-CRTICAS ....................................................................................5

    A PEDAGOGIA TRADICIONAL...............................................................................5 A PEDAGOGIA NOVA.............................................................................................7 A PEDAGOGIA TECNICISTA................................................................................12

    AS TEORIAS CRTICO - REPRODUTIVISTAS ........................................................17 TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO ENQUANTO VIOLNCIA SIMBLICA........18 TEORIA DA ESCOLA ENQUANTO APARELHO IDEOLGICO DE ESTADO (AIE)...............................................................................................................................23 TEORIA DA ESCOLA DUALISTA .........................................................................27

    PARA UMA TEORIA CRTICA DA EDUCAO.......................................................32 POST-SCRIPTUM .................................................................................................35

    ESCOLA E DEMOCRACIA I .....................................................................................39 A TEORIA DA CURVATURA DA VARA ................................................................39 O HOMEM LIVRE..................................................................................................42 A MUDANA DE INTERESSES............................................................................44 A FALSA CRENA DA ESCOLA NOVA ...............................................................46 ENSINO NO PESQUISA..................................................................................49 A ESCOLA NOVA NO DEMOCRTICA ..........................................................52 ESCOLA NOVA: A HEGEMONIA DA CLASSE DOMINANTE ..............................54

  • AS TEORIAS DA EDUCAO E O PROBLEMA DA MARGINALIDADE

    O PROBLEMA

    De acordo com estimativas relativas a 1970, "cerca de 50% dos alunos

    das escolas primrias desertavam em condies de semi-analfabetismo ou de

    analfabetismo potencial na maioria dos pases da Amrica Latina. 1 Isto sem se

    levar em conta o contingente de crianas em idade escolar que sequer tm acesso

    escola e que, portanto, j se encontram a priori marginalizadas dela.

    O simples dado acima indicado lana de imediato em nossos rostos a

    realidade da marginalidade relativamente ao fenmeno da escolarizao. Como

    interpretar esse dado? Como explic-lo? Como as teorias da educao se

    posicionam diante dessa situao?

    Grosso modo, podemos dizer que, no que diz respeito questo da

    marginalidade, as teorias educacionais podem ser classificadas em dois grupos.

    Num primeiro grupo, temos aquelas teorias que entendem ser a educao

    um instrumento de equalizao social, portanto, de superao da marginalidade.

    Num segundo grupo, esto s teorias que entendem ser a educao um

    instrumento de discriminao social, logo, um fator de marginalizao.

    1 Tedesco, 1981, p. 67

  • Ora, percebe-se facilmente que ambos os grupos explicam a questo da

    marginalidade a partir de determinada maneira de entenderias relaes entre

    educao, e sociedade. Assim, para o primeiro grupo a sociedade concebida como

    essencialmente harmoniosa, tendendo integrao de seus membros. A

    marginalidade , pois, um fenmeno acidental que afeta individualmente a um

    nmero maior ou menor de seus membros o que, no entanto, constitui um desvio,

    uma distoro que no s pode como deve ser corrigida. A educao emerge a,

    como um instrumento de correo dessas distores. Constitui, pois, uma fora

    homogeneizadora que tem por funo reforar os laos sociais, promover a coeso

    e garantir a integrao de todos os indivduos no corpo social. Sua funo coincide,

    pois, no limite, com a superao do fenmeno da marginalidade. Enquanto esta

    ainda existe, devem se intensificar os esforos educativos; quando for superada,

    cumpre manter os servios educativos num nvel pelo menos suficiente para impedir

    o reaparecimento do problema da marginalidade. Como se v, no que respeita s

    relaes entre educao e sociedade, concebe-se a educao com uma ampla

    margem de autonomia em face da sociedade. Tanto que lhe cabe um papel decisivo

    na conformao da sociedade evitando sua desagregao e, mais do que isso,

    garantindo a construo de uma sociedade igualitria.

    J o segundo grupo de teorias concebe a sociedade como sendo

    essencialmente marcada pela diviso entre grupos ou classes antagnicos que se

    relacionam base da fora, a qual se manifesta fundamentalmente nas condies

    de produo da vida material. Nesse quadro, a marginalidade entendida como um

    fenmeno inerente prpria estrutura da sociedade. Isto porque o grupo ou classe

  • que detm maior fora se converte em dominante se apropriando dos resultados da

    produo social tendendo, em conseqncia, a relegar os demais condio de

    marginalizados. Nesse contexto, a educao entendida como inteiramente

    dependente da estrutura social geradora de marginalidade, cumprindo a a funo

    de reforar a dominao e legitimar a marginalizao. Nesse sentido, a educao,

    longe de ser um instrumento de superao da marginalidade, se converte num fator

    de marginalizao j que sua forma especfica de reproduzir a marginalidade social

    a produo da marginalidade cultural e, especificamente, escolar.

    Tomando como critrio de criticidade a percepo dos condicionantes

    objetivos, denominarei as teorias do primeiro grupo de "teorias no-crticas" j que

    encaram a educao como autnoma e buscam compreend-la a partir dela mesma.

    Inversamente, aquelas do segundo grupo so crticas uma vez que se empenham

    em compreender a educao remetendo-a sempre a seus condicionantes objetivos,

    isto , aos determinantes sociais, vale dizer, estrutura scio-econmica que

    condiciona a forma de manifestao do fenmeno educativo. Como, porm,

    entendem que a funo bsica da educao a reproduo da sociedade, sero por

    mim denominadas de teorias crtico-reprodutivistas.

    AS TEORIAS NO-CRTICAS

    A PEDAGOGIA TRADICIONAL

    A constituio dos chamados "sistemas nacionais de ensino" data de

    incios do sculo passado. Sua organizao inspirou-se no princpio de que a

    educao direito de todos e dever do Estado. O direito de todos educao

  • decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se

    consolidara no poder: a burguesia. Tratava-se, pois, de construir uma sociedade

    democrtica, de consolidar a democracia burguesa. Para superar a situao de

    opresso, prpria do "Antigo Regime", e ascender a um tipo de sociedade fundada

    no contrato social celebrado "livremente" entre os indivduos, era necessrio vencer

    a barreira da ignorncia. S assim seria possvel transformar os sditos em

    cidados, isto , em indivduos livres porque esclarecidos, ilustrados. Como realizar

    essa tarefa? Atravs do ensino. A escola erigida, pois, no grande instrumento para

    converter os sditos em cidados.

    "redimindo os homens de seu duplo pecado histrico: a ignorncia, misria moral e a opresso, misria poltica"2

    Nesse quadro, a causa da marginalidade identificada com a ignorncia.

    marginalizado da nova sociedade quem no esclarecido. A escola surge como

    um antdoto ignorncia, logo, um instrumento para equacionar o problema da

    marginalidade. Seu papel difundir a instruo, transmitir os conhecimentos

    acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente. O mestre-escola ser o

    artfice dessa grande obra. A escola se organiza, pois, como uma agncia centrada

    no professor, o qual transmite, segundo uma gradao lgica, o acervo cultural aos

    alunos. A estes cabe assimilar os conhecimentos que lhes so transmitidos.

    teoria pedaggica acima indicada correspondia determinada maneira de

    organizar a escola. Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era contar

    com um professor razoavelmente bem preparado. Assim, as escolas eram

    organizadas na forma de classes, cada uma contando com um professor que 2 Zanotti, 1972, p.22,23

  • expunha as lies que os alunos seguiam atentamente e aplicava os exerccios que

    os alunos deveriam realizar disciplinadamente.

    Ao entusiasmo dos primeiros tempos suscitado pelo tipo de escola acima

    descrito de forma simplificada, sucedeu progressivamente uma crescente decepo.

    A referida escola, alm de no conseguir realizar seu desiderato de universalizao

    (nem todos nela ingressavam e mesmo os que ingressavam nem sempre eram bem

    sucedidos) ainda teve de curvar-se ante o fato de que nem todos os bem sucedidos

    se ajustavam ao tipo de sociedade que se queria consolidar. Comearam, ento, a

    se avolumar as crticas a essa teoria da educao e a essa escola que passa a ser

    chamada de escola tradicional.

    A PEDAGOGIA NOVA

    As crticas pedagogia tradicional formuladas a partir do final do sculo

    passado foram, aos poucos, dando origem a uma outra teoria da educao. Esta

    teoria mantinha a crena no poder da escola e em sua funo de equalizao social.

    Portanto, as esperanas de que se pudesse corrigir a distoro expressa no

    fenmeno da marginalidade, atravs da escola, ficaram de p. Se a escola no

    vinha cumprindo essa funo, tal fato se devia a que o tipo de escola implantado - a

    escola tradicional - se revelara inadequado. Toma corpo, ento, um amplo

    movimento de reforma cuja expresso mais tpica ficou conhecida sob o nome de

    "escolanovismo". Tal movimento tem como ponto de partida a escola tradicional j

    implantada segundo as diretrizes consubstanciadas na teoria da educao que ficou

    conhecida como pedagogia tradicional. A pedagogia nova comea, pois, por efetuar

  • a crtica da pedagogia tradicional, esboando uma nova maneira "de interpret-la

    educao e ensaiando implant-la, primeiro atravs de experincias restritas;

    depois, advogando sua generalizao no mbito dos sistemas escolares.

    Segundo essa nova teoria, a marginalidade deixa de ser vista

    predominantemente sob o ngulo da ignorncia, isto , o no domnio de

    conhecimentos. O marginalizado j no , propriamente, o ignorante, mas o

    rejeitado. Algum est integrado no quando ilustrado, mas quando se sente

    aceito pelo grupo e, atravs dele, pela sociedade em seu conjunto. interessante

    notar que alguns dos principais representantes da pedagogia nova se converteram a

    pedagogia a partir da preocupao com os "anormais"' (ver, por exemplo, Decroly

    e Montessori). A partir das experincias levadas a efeito com crianas "anormais"

    que se pretendeu generalizar procedimentos pedaggicos para o conjunto do

    sistema escolar. Nota-se, ento, uma espcie de bio-psicologizao da sociedade,

    da educao, e da escola. Ao conceito de "anormalidade biolgica" construdo a

    partir da constatao de deficincias neuro-fisio-lgicas se acrescenta o conceito de

    "anormalidade psquica" detectada atravs dos testes de inteligncia, de

    personalidade etc., que comeam a se multiplicar. Forja-se, ento, uma pedagogia

    que advoga um tratamento diferencial a partir da "descoberta" das diferenas

    individuais. Eis a "grande descoberta": os homens so essencialmente diferentes;

    no se repetem; cada indivduo nico. Portanto, a marginalidade no pode ser

    explicada pelas diferenas entre os homens, quaisquer que elas sejam: no apenas

    diferenas de cor, de raa, de credo ou de classe, o que j era defendido pela

    pedagogia tradicional; mas tambm diferenas no domnio do conhecimento, na

    participao do saber, no desempenho cognitivo. Marginalizados so os "anormais",

  • isto , os desajustados e desadaptados de todos os matizes. Mas a "anormalidade"

    no algo, em si, negativo; ela , simplesmente, uma diferena. Portanto, podemos

    concluir, ainda que isto soe paradoxal, que a anormalidade um fenmeno, normal.

    No , pois, suficiente para caracterizar a marginalidade. Esta est marcada pela

    desadaptao ou desajustamento, fenmenos associados ao sentimento de

    rejeio. A educao, enquanto fator de equalizao social ser, pois, um

    instrumento de correo da marginalidade na medida em que cumprir a funo de

    ajustar, de adaptar os indivduos sociedade, incutindo neles o sentimento de

    aceitao dos demais e pelos demais. Portanto, a educao ser um instrumento de

    correo da marginalidade na medida em que contribuir para a constituio de uma

    sociedade cujos membros, no importam as diferenas de quaisquer tipos, se

    aceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidade especfica.

    Compreende-se, ento, que essa maneira de entender a educao, por

    referncia pedagogia tradicional tenha deslocado o eixo da questo pedaggica do

    intelecto para o sentimento; do aspecto lgico para o psicolgico; dos contedos

    cognitivos para os mtodos ou processos pedaggicos; do professor para o aluno;

    do esforo para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para

    o no-diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspirao

    filosfica centrada na cincia da lgica para uma pedagogia de inspirao

    experimental baseada principalmente nas contribuies da biologia e da psicologia.

    Em suma, trata-se de uma teoria pedaggica que considera que o importante no

    aprender, mas aprender a aprender.

  • Para funcionar de acordo com a concepo acima exposta, obviamente a

    organizao escolar, teria que passar por uma sensvel reformulao. Assim, em

    lugar de classe confiadas a professores que dominavam as grandes reas do

    conhecimento revelando-se capazes de colocar os alunos em contato com os

    grandes textos que eram tomados como modelos a serem imitados e

    progressivamente assimilados pelos alunos, a escola deveria agrupar os alunos

    segundo reas de interesses decorrentes de sua atividade livre. O professor agiria

    como um estimulador e orientador da aprendizagem cuja iniciativa principal caberia

    aos prprios alunos. Tal aprendizagem seria uma decorrncia espontnea do

    ambiente estimulante e da relao viva que se estabeleceria entre os alunos e entre

    estes e o professor. Para tanto, cada professor teria de trabalhar com pequenos

    grupos de alunos, sem o que a relao inter-pessoal, essncia da atividade

    educativa, ficaria dificultada; e num ambiente estimulante, portanto, dotado de

    materiais didtico ricos, biblioteca de classe etc. Em suma, a feio das escolas

    mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de paredes opacas,

    assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e multicolorido.

    O tipo de escola acima descrito no conseguiu, entretanto alterar

    significativamente o panorama organizacional dos sistemas escolares. Isto porque,

    alm de outras razes implicava em custos bem mais elevados do que a escola

    tradicional. Com isto, a "Escola Nova" organizou-se basicamente na forma de

    escolas experimentais ou como ncleos raros, muito bem equipados e circunscritos

    a pequenos grupos de elite. No entanto, o iderio escolanovista, tendo sido

    amplamente difundido, penetrou nas cabeas dos educadores acabando por gerar

    conseqncias tambm nas amplas redes escolares oficiais organizadas na forma

  • tradicional. Cumpre assinalar que tais conseqncias foram mais negativas que

    positivas uma vez que, provocando o afrouxamento da disciplina e a

    despreocupao com a transmisso de conhecimentos, acabou por rebaixar o nvel

    do ensino destinado s camadas populares as quais muito frequentemente tm na

    escola o nico meio de acesso ao conhecimento elaborado. Em contrapartida, a

    "Escola Nova" aprimorou a qualidade do ensino destinado s elites.

    V-se, pois, que paradoxalmente, em lugar de resolver o problema da

    marginalidade, a "Escola Nova" o agravou. Com efeito, ao enfatizar a "qualidade do

    ensino", ela deslocou o eixo de preocupao do mbito poltico (relativo sociedade

    em seu conjunto) para o mbito tcnico-pedaggico (relativo ao interior da escola),

    cumprindo ao mesmo tempo uma dupla funo; manter a expanso da escola em

    limites suportveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipo de ensino

    adequado a esses interesses. a esse fenmeno que denominei de "mecanismo de

    recomposio da hegemonia da classe dominante. 3

    Cabe assinalar que o papel da "Escola Nova" acima descrito se

    manifestou mais nitidamente no caso da Amrica Latina. Em verdade, na maioria

    dos pases dessa regio os sistemas de ensino comearam a assumir feio mais

    ntida j no sculo atual, quando o escolanovismo estava largamente disseminado

    na Europa e principalmente nos Estados Unidos, no deixando, em conseqncia,

    de influenciar o pensamento pedaggico latino-americano. Portanto, a disseminao

    das escolas efetuada segundo os moldes tradicionais no deixou de ser de alguma

    forma perturbada pela propagao do iderio da pedagogia nova, j que esse

    3 Saviani, 1980.

  • iderio ao mesmo tempo que procurava evidenciar as "deficincias" da escola

    tradicional, dava fora idia segundo a qual melhor uma boa escola para poucos

    do que uma escola deficiente para muitos.

    A PEDAGOGIA TECNICISTA

    Ao findar a primeira metade do sculo atual, o escolanovismo

    apresentava sinais visveis de exausto. As esperanas depositadas na reforma da

    escola resultaram frustradas. Um sentimento de desiluso comeava a se alastrar

    nos meios educacionais. A pedagogia nova, ao mesmo tempo que se tornava

    dominante enquanto concepo terica a tal ponto que se tornou senso comum o

    entendimento segundo o qual a pedagogia nova portadora de todas as virtudes e

    de nenhum vcio, ao passo que a pedagogia tradicional portadora de todos os

    vcios e de nenhuma virtude, na prtica se revelou ineficaz em face da questo da

    marginalidade. Assim, de um lado surgiam tentativas de desenvolver uma espcie

    de "Escola Nova Popular", cujos exemplos mais significativos so as pedagogias de

    Freinet e de Paulo Freire; de outro lado, radicalizava-se a preocupao com os

    mtodos pedaggicos presentes no escolanovismo que acaba por desembocar na

    eficincia instrumental. Articula-se aqui uma nova teoria educacional: a pedagogia

    tecnicista.

    A partir do pressuposto da neutralidade cientfica e inspirada nos

    princpios de racionalidade, eficincia e produtividade, essa pedagogia advoga a

    reordenao do processo educativo de maneira a torn-lo objetivo e operacional. De

    modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivao do

  • trabalho pedaggico. Com efeito, se no artesanato o trabalho era subjetivo, isto , os

    instrumentos de trabalho eram dispostos em funo do trabalhador e este dispunha

    deles segundo seus desgnios, na produo fabril essa relao invertida. Aqui o

    trabalhador que deve se adaptar ao processo de trabalho, j que este foi objetivado

    e organizado na forma parcelada. Nessas condies, o trabalhador ocupa seu posto

    na linha de montagem e executa determinada parcela do trabalho necessrio para

    produzir determinados objetos. O produto , pois, uma decorrncia da forma como

    organizado o processo. O concurso das aes de diferentes sujeitos produz assim

    um resultado com o qual nenhum dos sujeitos se identifica e que, ao contrrio, lhes

    estranho.

    O fenmeno acima mencionado nos ajuda a entender a tendncia que se

    esboou com o advento daquilo que estou chamando de "pedagogia tecnicista".

    Buscou-se planejar a educao de modo a dot-la de uma organizao racional

    capaz de minimizar as interferncias subjetivas que pudessem pr em risco sua

    eficincia. Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelo menos em

    certos aspectos, mecanizar o processo. Da, a proliferao de propostas

    pedaggicas tais como o enfoque sistmico, o micro-ensino, o tele-ensino, a

    instruo programada, as mquinas de ensinar etc. Da, tambm, o parcelamento do

    trabalho pedaggico com a especializao de junes, postulando-se a introduo

    no sistema de ensino de tcnicos dos mais diferentes matizes. Da, enfim, a

    padronizao do sistema de ensino a partir de esquemas de planejamento

    previamente formulados aos quais devem se ajustar as diferentes modalidades de

    disciplinas e prticas pedaggicas.

  • Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor que era, ao

    mesmo tempo, o sujeito do processo, o elemento decisivo e decisrio; se na

    pedagogia nova a iniciativa desloca-se para o aluno, situando-se o nervo da ao

    educativa na relao professor-aluno, portanto, relao interpessoal, intersubjetiva -

    na pedagogia tecnicista, o elemento principal passa a ser a organizao racional dos

    meios, ocupando professor e aluno posio secundaria, relegados que so

    condio de executores de um processo cuja concepo, planejamento,

    coordenao e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados,

    neutros, objetivos, imparciais. A organizao do processo converte-se na garantia da

    eficincia, compensando e corrigindo as deficincias do professor e maximizando os

    efeitos de sua interveno.

    Cumpre notar que, embora a pedagogia nova tambm d grande

    importncia aos meios, h, porm, uma diferena fundamental: enquanto na

    pedagogia nova os meios so dispostos e esto disposio da relao professor-

    aluno, estando, pois, a servio dessa relao, na pedagogia tecnicista a situao se

    inverte. Enquanto na pedagogia nova so os professores e alunos que decidem se

    utilizam ou no determinados meios, bem como quando e como o faro, na

    pedagogia tecnicista dir-se-ia que o processo que define o que professores e

    alunos devem fazer, e assim tambm quando e como o faro.

    Compreende-se, ento, que para a pedagogia tecnicista a marginalidade

    no ser identificada com a ignorncia nem ser detectada a partir do sentimento de

    rejeio. Marginalizado ser o incompetente (no sentido tcnico da palavra), isto , o

    ineficiente e improdutivo. A educao estar contribuindo para superar o problema

  • da marginalidade na medida em que formar indivduos eficientes, portanto, capazes

    de darem sua parcela de contribuio para o aumento da produtividade da

    sociedade. Assim, estar ela cumprindo sua funo de equalizao social. Nesse

    contexto terico, a equalizao social identificada com o equilbrio do sistema (no

    sentido do enfoque sistmico). A marginalidade, isto , a ineficincia e

    improdutividade se constitui numa ameaa estabilidade do sistema. Como o

    sistema comporta mltiplas funes, s quais correspondem determinadas

    ocupaes; como essas diferentes funes so interdependentes, de tal modo que

    a ineficincia no desempenho de uma delas afeta as demais e, em conseqncia,

    todo o sistema - cabe educao proporcionar um eficiente treinamento para a

    execuo das mltiplas tarefas demandadas continuamente pelo sistema social. A

    educao ser concebida, pois, como um subsistema, cujo funcionamento eficiente

    essencial ao equilbrio do sistema social de que faz parte. Sua base de

    sustentao terica desloca-se para a psicologia behaviorista, a engenharia

    comportamental, a ergonomia, informtica, ciberntica, que tm em comum a

    inspirao filosfica neopositivista e o mtodo funcionalista. Do ponto de vista

    pedaggico conclui-se, pois, que se para a pedagogia tradicional a questo central

    aprender e para a pedagogia nova aprende a aprender, para a pedagogia tecnicista

    o que importa aprender a fazer.

    teoria pedaggica acima exposta corresponde uma reorganizao das

    escolas que passam por um crescente processo de burocratizao. Com efeito,

    acreditava-se que o processo se racionalizava na medida em que se agisse

    planificadamente. Para tanto, era mister baixar instrues minuciosas de como

    proceder com vistas a que os diferentes agentes cumprissem cada qual as tarefas

  • especficas acometidas a cada um no amplo espectro em que se fragmentou o ato

    pedaggico. O controle seria feito basicamente atravs do preenchimento de

    formulrios. O magistrio passou ento a ser submetido a um pesado e sufocante

    ritual, com resultados visivelmente negativos. Na verdade, a pedagogia tecnicista, ao

    ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema fabril, perdeu

    de vista a especificidade da educao, ignorando que a articulao entre escola e

    processo produtivo se d de modo indireto e atravs de complexas mediaes. Alm

    do mais, na prtica educativa, a orientao tecnicista se cruzou com as condies

    tradicionais predominantes nas escolas bem como com a influncia da pedagogia

    nova que exerceu poderoso atrativo sobre os educadores. Nessas condies, a

    pedagogia tecnicista acabou por contribuir para aumentar o caos no campo

    educativo gerando tal nvel de descontinuidade, de heterogeneidade e de

    fragmentao, que praticamente inviabiliza o trabalho pedaggico. Com isto o

    problema da marginalidade s tendeu a se agravar: o contedo do ensino tornou-se

    ainda mais rarefeito e a relativa ampliao das vagas se tornou irrelevante em face

    dos altos ndices de evaso e repetncia.

    A situao acima descrita afetou particularmente a Amrica Latina j que

    desviou das atividades-fim para as atividades-meio parcela considervel dos

    recursos sabidamente escassos destinados educao. Por outro lado sabe-se que

    boa parte dos programas internacionais de implantao de tecnologias de ensino

    nesses pases tinham por detrs outros interesses como, por exemplo, a venda de

    artefatos tecnolgicos obsoletos aos pases subdesenvolvidos.4

    4 Cf. Mattelart, 1976 e s/d

  • AS TEORIAS CRTICO - REPRODUTIVISTAS

    Como j assinalei, o primeiro grupo de teorias concebe a marginalidade

    como um desvio, tendo a educao por funo a correo desse desvio. A

    marginalidade vista como um problema social e a educao, que dispe de

    autonomia em relao sociedade, estaria, por esta razo, capacitada a intervir

    eficazmente na sociedade, transformando-a, tornando-a melhor, corrigindo as

    injustias; em suma, promovendo a equalizao social. Essas teorias consideram,

    pois, apenas a ao da educao sobre a sociedade. Porque desconhecem as

    determinaes sociais do fenmeno educativo eu as denominei de "teorias no-

    crticas". Inversamente, as teorias do segundo grupo - que passarei a examinar - so

    crticas, uma vez que postulam no ser possvel compreender a educao seno a

    partir dos seus condicionantes sociais. H, pois, nessas teorias uma cabal

    percepo da dependncia da educao em relao sociedade. Entretanto, como

    na anlise que desenvolvem chegam invariavelmente a concluso de que a funo

    prpria da educao consiste na reproduo da sociedade em que ela se insere,

    bem merecem a denominao de "teorias crtico-reprodutivistas". Tais teorias

    contam com um razovel nmero de representantes e se manifestam em diferentes

    verses. H, por exemplo, os chamados "radicais americanos" cujos principais

    representantes so Bowles e Gintis, atravs do livro Schooling in Capitalist America

    (1976) que podem ser classificados nesse grupo de teorias. Tais autores consideram

    que a escola tinha, nas origens, uma funo equalizadora. Entretanto, atualmente

    ela se torna cada vez mais discriminadora e repressiva. Todas as reformas

    escolares fracassaram, tornando cada vez mais evidente o papel que a escola

    desempenha: reproduzir a sociedade de classes e reforar o modo de produo

    capitalista.

  • Em que pesem as diferentes manifestaes, considero que, no mbito

    desse grupo, as teorias que maior repercusso tiveram e que alcanaram um maior

    nvel de elaborao so as seguintes:

    a) "Teoria do sistema de ensino enquanto violncia simblica";

    b) "Teoria da escola enquanto Aparelho ideolgico de Estado (AIE)";

    c) "Teoria da escola dualista".

    A seguir comentarei brevemente cada uma delas.

    TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO ENQUANTO VIOLNCIA SIMBLICA

    Esta teoria est desenvolvida na obra A Reproduo: elementos para

    uma teoria do sistema de ensino, de P. Bourdieu e J. C. Passeron (1975). A obra

    constituda de dois livros. No Livro I, fundamentos de uma teoria da violncia

    simblica, a teoria sistematizada num corpo de proposies logicamente

    articuladas segundo um esquema analtico-dedutivo. O Livro II expe os resultados

    de uma pesquisa emprica levada a cabo pelos autores no sistema escolar francs

    em um de seus segmentos, qual seja, a Faculdade de Letras. Como as anlises do

    Livro II podem ser consideradas como aplicaes a um caso historicamente

    determinado dos princpios gerais enunciados no Livro I, ainda que tenham servido,

    ao mesmo tempo, como ponto de partida para a construo dos princpios do Livro I,

    minha exposio se limitar ao contedo do Livro I.

    O arcabouo do Livro I constitui, mais do que uma sociologia da

    educao, uma scio-lgica da educao. Isto porque no se trata de uma anlise

  • da educao como fato social, mas da explicitao das condies lgicas de

    possibilidade de toda e qualquer educao para toda e qualquer sociedade de toda

    e qualquer poca ou lugar. Trata-se de uma teoria axiomtica que se desdobra

    dedutivamente dos princpios universais para os enunciados analticos de suas

    conseqncias particulares. Por isso, cada grupo de proposies comea sempre

    por um enunciado universal (todo poder de violncia simblica..., toda ao

    pedaggica etc.) e termina por uma aplicao particular, expressa atravs da

    frmula "uma formao social determinada..." Por outro lado, no intuito de preservar

    a validade universal da teoria, os autores tm o cuidado de utilizar sempre a

    expresso "grupos ou classes", jamais se referindo apenas s classes

    simplesmente; o que indica que a validade da teoria no pretende se circunscrever

    apenas s sociedades de classes mas se estende tambm s sociedades sem

    classes que porventura tenham existido ou venham a existir. Em suma, o axioma

    fundamental (proposio zero), que enuncia a teoria geral da violncia simblica, se

    aplica ao sistema de ensino que definido, pois, como uma modalidade especfica

    de violncia simblica (proposies de grau 4) atravs de proposies intermedirias

    que tratam, sucessivamente, da ao pedaggica (proposies de grau 1), da

    autoridade pedaggica (proposies de grau 2) e do trabalho pedaggico

    (proposies de grau 3).

    Por que violncia simblica? Os autores tomam como ponto de partida

    que toda e qualquer sociedade estrutura-se como um sistema de relaes de fora

    material entre grupos ou classes. Sobre a base da fora material e sob sua

    determinao erige-se um sistema de relaes de fora simblica cujo papel

  • reforar, por dissimulao, as relaes de fora material. essa a idia central

    contida no axioma fundamental da teoria. Seno vejamos o seu enunciado:

    "Todo poder de violncia simblica, isto , todo poder que chega a impor significaes e a imp-las como legtimas, dissimulando as relaes de fora que esto na base de sua fora, acrescenta sua prpria fora, isto , propriamente simblica, a essas relaes de fora." 5

    V-se, pois, que o reforamento da violncia material se d pela sua

    converso ao plano simblico onde se produz e reproduz o reconhecimento da

    dominao e de sua legitimidade pelo desconhecimento (dissimulao) de seu

    carter de violncia explcita. Assim, violncia material (dominao econmica)

    exercida pelos grupos ou classes dominantes sobre os grupos ou classes

    dominados corresponde a violncia simblica (dominao cultural).

    A violncia simblica se manifesta de mltiplas formas: a formao da

    opinio pblica atravs dos meios de comunicao de massa, jornais etc.; a

    pregao religiosa; a atividade artstica e literria; a propaganda e a moda; a

    educao familiar etc. No entanto, na obra em questo, o objetivo de Bourdieu e

    Passeron a ao pedaggica institucionalizada, isto , o sistema escolar. Da, o

    subttulo da obra: "elementos para uma teoria do sistema de ensino". Para isso,

    partindo, como j disse, da teoria geral da violncia simblica, buscam explicitar a

    ao pedaggica (AP) como imposio arbitrria da cultura (tambm arbitrria) dos

    grupos ou classes dominantes aos grupos ou classes dominados. Essa imposio,

    para se exercer, implica necessariamente a autoridade pedaggica (AuP), isto , um

    5 Bourdieu-Passeron, 1975, p.19

  • "poder arbitrrio de imposio que, s pelo fato de ser desconhecido como tal, se encontra objetivamente reconhecido como autoridade legtima".6

    A referida ao pedaggica (AP) que se exerce atravs da autoridade

    pedaggica (AuP) se realiza atravs do Trabalho Pedaggico (TP) entendido

    "como trabalho de inculcao que deve durar o bastante para produzir uma formao durvel; isto , um habitus como produto da interiorizao dos princpios de um arbitrrio cultural capaz de perpetuar-se aps a cessao da ao pedaggica (AP) e por isso de perpetuar nas prticas os princpios do arbitrrio interiorizado".7

    Para a compreenso do sistema de ensino de fundamental importncia

    a distino entre trabalho pedaggico (TP) primrio (educao familiar) e trabalho

    pedaggico secundrio, cuja forma institucionalizada o trabalho escolar (TE).

    Como os autores indicam no "escolio" da proposio 1

    "reservou-se a seu momento lgico (proposies de grau 4) a especificao das formas e dos efeitos de uma Ao Pedaggica (AP) que se exerce no quadro de uma instituio escolar; e somente na ltima proposio (4.3.) que se encontra caracterizada expressamente a AP escolar que reproduz a cultura dominante, contribuindo desse modo para reproduzir a estrutura das relaes de fora, numa formao social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monoplio da violncia simblica legtima".8

    A proposio 4.3 sintetiza, pois, de modo exaustivo, o conjunto da teoria

    do sistema de ensino enquanto violncia simblica. Vale a pena, ento, apesar de

    sua extenso, transcrev-la integralmente:

    "Numa formao social determinada, o SE dominante pode constituir o TP dominante como TE sem que os que o exercem como os que a ele se submetem cessem de desconhecer sua dependncia relativa s relaes de fora constitutivas da formao social em que ele se exerce, porque ele produz e reproduz, pelos meios prprios da instituio, as condies

    6 Ibidem, Proposio 2.1., p.27. 7 Ibidem, Proposio 3, p.44 8 Ibidem, p.20 - 21

  • necessrias ao exerccio de sua funo interna de inculcao, que so ao mesmo tempo as condies suficientes da realizao de sua funo externa de reproduo da cultura legtima e de sua contribuio correlativa reproduo das relaes de fora; e porque, s pelo fato de que existe e subsiste como instituio, ele implica as condies institucionais do desconhecimento da violncia simblica que exerce, isto , porque os meios institucionais dos quais dispe enquanto instituio relativamente autnoma, detentora do monoplio do exerccio legtimo da violncia simblica, esto predispostos a servir tambm, sob a aparncia da neutralidade, os grupos ou classes dos quais ele reproduz o arbitrrio cultural (dependncia pela independncia)."9

    Portanto, a teoria no deixa margem a dvidas. A funo da educao a

    de reproduo das desigualdades sociais. Pela reproduo cultural, ela contribui

    especificamente para a reproduo social.

    Como interpretar, nesse quadro, o fenmeno da marginalidade?

    De acordo com essa teoria, marginalizados so os grupos ou classes

    dominados. Marginalizados socialmente porque no possuem fora material (capital

    econmico) e marginalizados culturalmente porque no possuem fora simblica

    (capital cultural). E a educao, longe de ser um fator de superao da

    marginalidade, constitui um elemento reforador da mesma.

    Eis a funo logicamente necessria da educao. No h, pois, outra

    alternativa. Toda tentativa de utiliz-la como instrumento de superao da

    marginalidade no apenas uma iluso. a forma atravs da qual ela dissimula, e

    por isso cumpre eficazmente, a sua funo de marginalizao. Todos os esforos,

    ainda que oriundos dos grupos ou classes dominados, reverte sempre no re-

    foramento dos interesses dominantes.

    "E pela mediao desse efeito de dominao da AP dominante que as diferentes AP que se exercem nos diferentes grupos ou classes colaboram

    9 Ibidem, p.75

  • objetivamente e indiretamente na dominao das classes dominantes (inculcao pelas AP dominadas de conhecimentos ou de maneiras, dos quais a AP dominante define o valor sobre o mercado econmico ou simblico)."10

    Eis porque, Snyders resumiu sua crtica a essa teoria na seguinte frase:

    "Bourdieu-Passeron ou a luta de classes impossvel".11

    TEORIA DA ESCOLA ENQUANTO APARELHO IDEOLGICO DE ESTADO (AIE)

    Ao analisar a reproduo das condies de produo que implica a

    reproduo das foras produtivas e das relaes de produo existentes, Althusser

    levado a distinguir no Estado, os Aparelhos Repressivos de Estado (o Governo, a

    Administrao, o Exercito, a Polcia, os Tribunais, as Prises etc.) e os Aparelhos

    Ideolgicos de Estado (AIE) que ele enumera, provisoriamente, da seguinte forma:

    - O AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas).

    - O AIE escolar (o sistema das diferentes escolas pblicas e

    particulares),

    - O AIE familiar,

    - O AIE jurdico,

    - O AIE poltico (o sistema poltico de que fazem parte os diferentes

    partidos),

    - O AIE sindical,

    - O AIE da informao (imprensa, rdio-televiso ete),

    - O AIE cultural (Letras, Belas Artes, desportos etc.)." 12

    10 Ibidem, p.22. 11 Snyders, 1977, p.287.

  • A distino entre ambos assenta no fato de que o Aparelho Repressivo de

    Estado funciona massivamente pela violncia e secundariamente pela ideologia

    enquanto que, inversamente, os Aparelhos Ideolgicos de Estado funcionam

    massivamente pela ideologia e secundariamente pela represso. 13

    O conceito "Aparelho Ideolgico de Estado" deriva da tese segundo a qual

    "a ideologia tem uma existncia material". Isto significa dizer que a ideologia existe

    sempre radicada em prticas materiais reguladas por rituais materiais definidos por

    instituies materiais. 14

    Em suma, a ideologia se materializa em aparelhos: os aparelhos

    ideolgicos de Estado.

    A partir desses instrumentos conceituais, Althusser avana a tese

    segundo a qual

    "o Aparelho Ideolgico de Estado que foi colocado em posio dominante nas formaes capitalistas maduram, aps uma violenta luta de classes poltica e ideolgica contra o antigo Aparelho Ideolgico de Estado dominante, o Aparelho Ideolgico Escolar". 15

    Como AIE dominante, vale dizer que a escola constitui o instrumento mais

    acabado de reproduo das relaes de produo de tipo capitalista. Para isso ela

    toma a si todas as crianas de todas as classes sociais e lhes inculca durante anos

    12 Althusser, s/d., p.43-44 13 Ibidem, p.46-47 14 Ibidem, p.88-89 15 Ibidem, p. 60

  • a fio de audincia obrigatria "saberes prticos" envolvidos na ideologia dominante.

    16

    Uma grande parte (operrios e camponeses) cumpre a, escolaridade

    bsica e introduzida no processo produtivo. Outros avanam no processo de

    escolarizao, mas acabam por interromp-lo passando a integrar os quadros

    mdios, os "pequeno-burgueses de toda a espcie. 17

    Uma pequena parte, enfim, atinge o vrtice da pirmide escolar. Estes

    vo ocupar os postos prprios dos "agentes da explorao" (no sistema produtivo),

    dos "agentes da represso" (nos Aparelhos Repressivos de Estado) e dos

    "profissionais da ideologia" (nos Aparelhos Ideolgicos de Estado). 18

    Em todos os casos, trata-se de reproduzir as relaes de explorao

    capitalista. Nas palavras de Althusser:

    " atravs da aprendizagem de alguns saberes prticos (savoir-faire) envolvidos na inculcao massiva da ideologia da classe dominante, que so em grande parte reproduzidas as relaes de produo de uma formao social capitalista, isto , as relaes de explorados com exploradores e de exploradores com explorados".19

    Nesse contexto, como se coloca o problema da marginalidade? O

    fenmeno da marginalizao se inscreve no prprio seio das relaes de produo

    capitalista que se funda na expropriao dos trabalhadores pelos capitalistas.

    Marginalizado , pois, a classe trabalhadora. O AIE escolar, em lugar de instrumento

    de equalizao social constitui um mecanismo construdo pela burguesia para 16 Ibidem, p.64. 17 Ibidem, p.65. 18 Ibidem, p.65 19 Ibidem, p.66.

  • garantir e perpetuar seus interesses. Se as teorias do primeiro grupo (por isso elas

    bem merecem ser chamadas de no-crticas) desconhecem essas determinaes

    objetivas e imaginam que a escola possa cumprir o papel de correo da

    marginalidade, isso se deve simplesmente ao fato de que aquelas teorias so

    ideolgicas, isto , dissimulam, para reproduzi-las, as condies de marginalidade

    em que vivem as camadas trabalhadoras.

    No entanto, diferentemente de Bourdieu-Passeron, Althusser no nega a

    luta de classes. Ao contrrio, chega mesmo a afirmar que

    "os AIE podem ser no s o alvo mas tambm o local da luta de classes e por vezes de formas renhidas da luta de classes".20

    Entretanto, quando descreve o funcionamento do AIE escolar, a luta de

    classes fica praticamente diluda, tal o peso que adquire a a dominao burguesa.

    Eu diria, ento, que a luta de classes resulta nesse caso herica, mas inglria, j

    que sem nenhuma chance de xito. O pargrafo um tanto longo que me permito

    transcrever, fundamenta essa concluso:

    "Peo desculpa aos professores que, em condies terrveis, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as prticas em que este os encerra, as armas que podem encontrar na histria e no saber que 'ensinam'. Em certa medida so heris. Mas so raros, e quantos (a maioria) no tm sequer um vislumbre de dvida quanto ao 'trabalho' que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, pior, dedicam-se inteiramente e em toda a conscincia realizao desse trabalho (os famosos mtodos novos!). Tm to poucas dvidas, que contribuem at pelo seu devotamento a manter e a alimentar a representao ideolgica da Escola que a torna hoje to 'natural', indispensvel-til e at benfazeja aos nossos contemporneos, quanto a Igreja era 'natural', indispensvel e generosa para os nossos antepassados de h sculos." 21

    20 Ibidem, p.49 21 Ibidem, p.67-68

  • TEORIA DA ESCOLA DUALISTA

    Essa teoria foi elaborada por C. Baudelot e R. Establet e exposta no livo

    Lcole capitaliste en France (1971). Chamo de "teoria da escola dualista" porque os

    autores se empenham em mostrar que a escola, em que pese a aparncia unitria e

    unificadora, uma escola dividida em duas (e no mais do que duas) grandes redes,

    as quais correspondem diviso da sociedade capitalista em duas classes

    fundamentais: a burguesia e o proletariado.

    Os autores procedem de modo didtico, enunciando preliminarmente as

    teses bsicas que sucessivamente passam a demonstrar. Assim, na primeira parte,

    aps dissipar as "iluses da unidade da escola" formulam seis proposies

    fundamentais que passaro a demonstrar ao longo da obra:

    1. Existe uma rede de escolarizao que chamaremos rede secundria

    superior (rede S.S.).

    2. Existe uma rede de escolarizao que chamaremos rede primria-

    profissional (rede P.P.).

    3. No existe terceira rede.

    4. Estas duas redes constituem, pelas relaes que as definem, o

    aparelho escolar capitalista. Este aparelho um aparelho ideolgico

    do Estado capitalista.

    5. Enquanto tal, este aparelho contribui, pela parte que lhe cabe, a

    reproduzir as relaes de produo capitalistas, quer dizer em

    definitivo a diviso da sociedade em classes, em proveito da classe

    dominante.

  • 6. a diviso da sociedade em classes antagonistas que explica em

    ltima instncia no somente a existncia das duas redes, mas ainda

    (o que as define como tais) os mecanismos de seu funcionamento,

    suas causas e seus efeitos." 22

    Atravs de minuciosa anlise estatstica os autores se empenham em

    demonstrar, na segunda parte, as trs primeiras proposies, isto , a existncia de

    apenas duas redes de escolarizao: as redes PP e SS. A quarta proposio

    objeto das terceira e quarta partes; na terceira parte se procura pr em evidncia

    que:

    " a mesma ideologia dominante que imposta a todos os alunos sob formas necessariamente incompatveis;"23

    Na quarta parte se demonstra que a diviso em duas redes atravessa o

    aparelho escolar em seu conjunto, portanto, desde a escola primria, contrariamente

    s aparncias de unidade da escola primria. Mais do que isso, afirmam os autores

    que:

    " na escola primria que o essencial de tudo o que concerne ao aparelho escolar capitalista se realiza". 24

    Finalmente, a quinta parte dedicada demonstrao das duas ltimas

    proposies evidenciando, ento, que:

    "o aparelho escolar, com suas duas redes opostas, contribui para reproduzir as relaes sociais de produo capitalista". 25

    22 Baudelot-Establet 23 Ibidem, p.47. 24 Ibidem, p.47. 25 Ibidem, p. 47.

  • Importa reter que, nesta teoria, retomado o conceito de Althusser

    ("Aparelho Ideolgico de Estado") definindo-se o aparelho escolar como "unidade

    contraditria de duas redes de escolarizao. 26

    Enquanto aparelho ideolgico, a escola cumpre duas funes bsicas:

    contribui para a formao da fora de trabalho e para a inculcao da ideologia

    burguesa. Cumpre assinalar, porm, que no se trata de duas funes separadas.

    Pelo mecanismo das prticas escolares, a formao da fora de trabalho se d no

    prprio processo de inculcao ideolgica. Mais do que isso: todas as prticas

    escolares, ainda que contenham elementos que implicam um saber objetivo (e no

    poderia deixar de conter, j que sem isso a escola no contribuiria para a

    reproduo das relaes de produo) so prticas de inculcao ideolgica. A

    escola , pois, um aparelho ideolgico, isto , o aspecto ideolgico dominante e

    comanda o funcionamento do aparelho escolar em seu conjunto.

    Consequentemente, a funo precpua da escola a inculcao da ideologia

    burguesa. Isto e feito de duas formas concomitantes: em primeiro lugar, a inculcao

    explcita de ideologia burguesa; em segundo lugar, o recalcamento, a sujeio e o

    disfarce da ideologia proletria.

    V-se, pois, a especificidade dessa teoria. Ela admite a existncia da

    ideologia do proletariado. Considera, porm, que tal ideologia tem origem e

    existncia fora da escola, isto , nas massas operrias e em suas organizaes. A

    escola um aparelho ideolgico da burguesia e a servio de seus interesses. O

    pargrafo abaixo transcrito extremamente esclarecedor a respeito:

    26 Ibidem, p.281

  • "A contradio principal existe brutalmente fora da escola sob a forma de uma luta que ope a burguesia ao proletariado: ela se trava nas relaes de produo, que so relaes de explorao. Como aparelho ideolgico de Estado, a escola um instrumento da luta de classes ideolgica do Estado burgus, onde o Estado burgus persegue objetivos exteriores escola (ela no seno um instrumento destinado a esses fins). A luta ideolgica conduzida pelo Estado burgus na escola visa ideologia proletria que existe fora da escola nas massas operrias e suas organizaes. A ideologia proletria no est presente em pessoa na escola, mas apenas sob a forma de alguns de seus efeitos que se apresentam como resistncias: entretanto, inclusive por meio dessas resistncias, ela prpria que visada no horizonte pelas prticas de inculcao ideolgica burguesa e pequeno-burguesa." 27

    No quadro da "teoria da escola dualista" o papel da escola no , ento, o

    de simplesmente reforar e legitimar a marginalidade que produzida socialmente.

    Considerando-se que o proletariado dispe de uma fora autnoma e forja na prtica

    da luta de classes suas prprias organizaes e sua prpria ideologia, a escola tem

    por misso impedir o desenvolvimento da ideologia do proletariado e a luta

    revolucionria. Para isso ela organizada pela burguesia como um aparelho

    separado da produo. Consequentemente, no cabe dizer que a escola qualifica

    diferentemente o trabalho intelectual e o trabalho manual. Cabe, isto sim, dizer que

    ela qualifica o trabalho intelectual e desqualifica o trabalho manual, sujeitando o

    proletariado ideologia burguesa sob um disfarce pequeno-burgus. Assim, pode-se

    concluir que a escola ao mesmo tempo um fator de marginalizao relativamente

    cultura burguesa assim como em relao cultura proletria. Em face da cultura

    burguesa, pelo fato de inculcar massa de operrios que tem acesso rede PP

    apenas os subprodutos da prpria cultura burguesa. Em relao cultura proletria,

    pelo fato de recalc-la, forando os operrios a representarem sua condio nas

    categorias da ideologia burguesa. Consequentemente, a escola, longe de ser um

    instrumento de equalizao social duplamente um fator de marginalizao:

    converte os trabalhadores em marginais, no apenas por referncia cultura

    27 Ibidem, p.280(grifos no orginal)

  • burguesa, mas tambm em relao ao prprio movimento proletrio, buscando

    arrancar do seio desse movimento (colocar margem dele) todos aqueles que

    ingressam no sistema de ensino.

    Pode-se, pois, concluir que, se Baudelot e Establet se empenham em

    compreender a escola no quadro da luta de classes, eles no a encaram, porm,

    como palco e alvo da luta de classes. Com efeito, entendem que a escola, enquanto

    aparelho ideolgico, um instrumento da burguesia na luta ideolgica contra o

    proletariado. A possibilidade de que a escola se constitua num instrumento de luta

    do proletariado fica descartada. Uma vez que a ideologia proletria adquire sua

    forma acabada no seio das massas e organizaes operrias, no se cogita de

    utilizar a escola como meio de elaborar e difundir a referida ideologia. Se o

    proletariado se revela capaz de elaborar, independentemente da escola, sua prpria

    ideologia de um modo to consistente quanto o faz a burguesia com o auxlio da

    escola, ento, por referncia ao aparelho escolar, a luta de classes revela-se intil.

    Eis porque Snyders28 resume sua crtica teoria da escola dualista com a

    expresso: "Baudelot-Establet ou a luta de classe intil".

    Ao terminar esse rpido esboo relativo s teorias crtico-reprodutivistas

    cumpre assinalar que, obviamente, tais teorias no deixaram de exercer influncia

    na Amrica Latina tendo alimentado ao longo da dcada de 70 uma razovel

    quantidade de estudos crticos sobre o sistema de ensino. Se tais estudos tiveram o

    mrito de pr em evidncia o comprometimento da educao com os interesses

    dominantes tambm e certo que contriburam para disseminar entre os educadores

    28 Snyders 1977, III Parte, Cap. V. p.338-44

  • um clima de pessimismo e de desnimo que, evidentemente, s poderia tornar

    ainda mais remota a possibilidade de articular os sistemas de ensino com os

    esforos de superao do problema da marginalidade nos pases da regio.

    PARA UMA TEORIA CRTICA DA EDUCAO

    O leitor ter notado que, quando me referi s teorias no-crticas, aps

    expor brevemente o contedo de cada uma, procurei mostrar a forma de

    organizao e funcionamento da escola decorrente da proposta pedaggica

    veiculada pela teoria. J em relao s teorias crtico-reprodutivistas isto no foi

    feito. Na verdade estas teorias no contm uma proposta pedaggica. Elas se

    empenham to-somente em explicar o mecanismo de funcionamento da escola tal

    como est constituda. Em outros termos, pelo seu carter reprodutivista, estas

    teorias consideram que a escola no poderia ser diferente do que . Empenham-se,

    pois, em mostrar a necessidade lgica, social e histrica da escola existente na

    sociedade capitalista, pondo em evidncia aquilo que ela desconhece e mascara:

    seus determinantes materiais.

    Em relao questo da marginalidade ficamos, pois, com o seguinte

    resultado: enquanto as teorias no-crticas pretendem ingenuamente resolver o

    problema da marginalidade atravs da escola sem jamais conseguir xito, as teorias

    crtico-reprodutivistas explicam a razo do Suposto fracasso. Segundo a concepo

    crtico-reprodutivista o aparente fracasso , na verdade, o xito da escola; aquilo que

    se julga ser uma disfuno , antes, a funo prpria da escola. Com efeito, sendo

    um instrumento de reproduo das relaes de produo a escola na sociedade

  • capitalista necessariamente reproduz a dominao e explorao. Da, seu carter

    segregador e marginalizados Da, sua natureza seletiva. A impresso que nos fica

    que se passou de um poder ilusrio para a impotncia. Em ambos os casos, a

    Histria sacrificada. No primeiro caso, sacrifica-se a Histria na idia em cuja

    harmonia se pretende anular as contradies do real. No segundo caso, a Histria

    sacrificada na reificao da estrutura social em que as contradies ficam

    aprisionadas.

    O problema permanece, pois, em aberto. E pode ser recolocado nos

    seguintes termos: possvel encarar a escola como uma realidade histrica, isto ,

    suscetvel de ser transformada intencionalmente pela ao humana? Evitemos de

    escorregar para uma posio idealista e voluntarista. Retenhamos da concepo

    crtico-reprodutivista a importante lio que nos trouxe: a escola determinada

    socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo de produo

    capitalista, dividida em classes com interesses opostos; portanto, a escola sofre a

    determinao do conflito de interesses que caracteriza a sociedade. Considerando-

    se que a classe dominante no tem interesse na transformao histrica da escola

    (ela est empenhada na preservao de seu domnio, portanto apenas acionar

    mecanismos de adaptao que evitem a transformao) segue-se que uma teoria

    crtica (que no seja reprodutivista) s poder ser formulada do ponto de vista dos

    interesses dominados. O nosso problema pode, ento, ser enunciado da seguinte

    maneira: possvel articular a escola com os interesses dominados? Da perspectiva

    do tema deste artigo a questo recebe a seguinte formulao: possvel uma teoria

    da educao que capte criticamente a escola como um instrumento capaz de

    contribuir para a superao do problema da marginalidade? (Limito-me aqui a

  • afirmar a possibilidade dessa teoria, j que escapa aos objetivos desse artigo, o

    desenvolvimento da mesma).

    Uma teoria do tipo acima enunciado se impe a tarefa de superar tanto o

    poder ilusrio (que caracteriza as teorias no-crticas) como a impotncia

    (decorrente das teorias crtico-reprodutivistas) colocando nas mos dos educadores

    uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exerccio de um poder real, ainda que

    limitado.

    No entanto, o caminho repleto de armadilhas, j que os mecanismos de

    adaptao acionados periodicamente a partir dos interesses dominantes podem ser

    confundidos com os anseios da classe dominada. Para evitar esse risco

    necessrio avanar no sentido de captar a natureza especfica da educao o que

    nos levar compreenso das complexas mediaes pelas quais se d sua

    insero contraditria na sociedade capitalista. nessa direo que comea a se

    desenvolver um promissor esforo de elaborao terica.

    Do ponto de vista prtico, trata-se de retomar vigorosamente a luta contra

    a seletividade, a discriminao e o rebaixamento do ensino das camadas populares.

    Lutar contra a marginalidade atravs da escola significa engajar-se no esforo para

    garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possvel nas condies

    histricas atuais. O papel de uma teoria crtica da educao dar substncia

    concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e

    articulada com os interesses dominantes.

  • POST-SCRIPTUM

    Os leitores certamente tero estranhado que, ao longo de um texto

    versando sobre as teorias da educao e o problema da marginalidade, no

    apareceu uma palavra sequer sobre a "teoria da educao compensatria". Tal

    estranheza parece procedente j que, se h alguma proposta educativa intimamente

    ligada questo da marginalidade, esta a chamada educao compensatria.

    Com efeito, no exatamente a situao de marginalidade vivida pelas assim

    chamadas "crianas carentes" que constitui a razo de ser da educao

    compensatria? No a educao compensatria a estratgia acionada para

    superar o problema da marginalidade na medida em que se prope nivelar as pr-

    condies de aprendizagem pela via da compensao das desvantagens das

    crianas carentes?

    Entretanto, devo dizer que no considero a educao compensatria uma

    teoria educacional seja no sentido de uma interpretao do fenmeno educativo que

    acarreta determinada proposta pedaggica (como ocorre com as teorias no-

    crticas), seja no sentido de explicitar os mecanismos que regem a organizao e

    funcionamento da educao explicando, em conseqncia, as suas funes (como

    no caso das teorias crtico-reprodutivistas) seja, ainda, no sentido de um esforo

    para equacionar, pela via da compreenso terica, a questo prtica da contribuio

    especfica da educao no processo de transformao estrutural da sociedade

    (como ser o caso de uma teoria crtica da educao).

    A meu ver, a educao compensatria configura uma resposta no-crtica

    s dificuldades educacionais postas em evidncia pelas teorias crtico-

  • reprodutivistas. Assim, uma vez que se acumulavam as evidncias de que o

    fracasso escolar, incidindo predominantemente sobre os alunos scio-

    economicamente desfavorecidos, se devia a fatores externos ao funcionamento da

    escola, tratava-se, ento, de agir sobre esses fatores. Educao compensatria

    significa, pois, o seguinte: a funo bsica da educao continua sendo interpretada

    em termos da equalizao social. Entretanto, para que a escola cumpra sua funo

    equalizadora necessrio compensar as deficincias cuja persistncia acaba

    sistematicamente por neutralizar a eficcia da ao pedaggica. V-se, pois, que

    no se formula uma nova interpretao da ao pedaggica. Esta continua sendo

    entendida em termos da pedagogia tradicional, da pedagogia nova ou da pedagogia

    tecnicista encaradas de forma isolada ou de forma combinada.

    O carter de compensao de deficincias prvias ao processo de

    escolarizao nos permite compreender a estreita ligao entre educao

    compensatria e pr-escola. Da porque a educao compensatria compreende um

    conjunto de programas destinados a compensar deficincias de diferentes ordens:

    de sade e nutrio, familiares, emotivas, cognitivas, motoras, lingsticas etc. Tais

    programas acabam colocando sob a responsabilidade da educao uma srie de

    problemas que no so especificamente educacionais, o que significa, na verdade, a

    persistncia da crena ingnua no poder redentor da educao em relao

    sociedade. Assim, se a educao se revelou incapaz de redimir a humanidade

    atravs da ao pedaggica no se trata de reconhecer seus limites mas de alarg-

    los: atribui-se ento educao um conjunto de papis que no limite abarcam as

    diferentes modalidades de poltica social. A conseqncia a pulverizao de

  • esforos e de recursos com resultados praticamente nulos do ponto de vista

    propriamente educacional.

    Essas constataes me levaram concluso de que a prpria expresso

    "educao compensatria" coloca o problema em termos invertidos, isto , o termo

    que aparece como substantivo deveria ser o adjetivo e vice-versa. Portanto, se se

    quer compensar as carncias que caracterizam a situao de marginalidade das

    crianas das camadas populares, preciso considerar que h diferentes

    modalidades de compensao: compensao alimentar, compensao sanitria,

    compensao afetiva, compensao familiar etc. Neste quadro, constatada a

    existncia de deficincias especificamente educacionais, caberia se falar no em

    educao compensatria (atribuindo-se educao a responsabilidade de

    compensar todo tipo de deficincia) mas em compensao educacional. E aqui fica,

    finalmente, evidenciada a no-autonomia terica da "educao compensatria", uma

    vez que a exigncia de tratamento diferenciado, de respeito s diferenas individuais

    e aos diferentes ritmos de aprendizagem bem como a nfase na diversificao

    metodolgica e tcnica, no sentido de suprir as carncias dos educandos, so

    preocupaes prprias do tipo de teor a denominada neste texto de "pedagogia

    nova".

    No contexto da Amrica Latina, a tendncia atualmente em curso

    (frequentemente reforada pelo patrocnio de organismos internacionais) de difuso

    da educao compensatria com a conseqente valorizao da pr-escola

    entendida como mecanismo de soluo do problema do fracasso escolar das

    crianas das camadas trabalhadoras no ensino de primeiro grau deve, pois, ser

  • submetida a crtica. Com efeito, tal tendncia acaba por se configurar numa nova

    forma de contornar o problema em lugar de atac-lo de frente. Exemplo eloqente

    desse desvio o caso da cidade de So Paulo onde, aps dez anos de merenda

    escolar, os ndices de fracasso escolar na passagem da primeira para a segunda

    srie do primeiro grau, em lugar de diminuir, aumentaram em 6%.

    Cumpre, pois, no tergiversar. No se trata de negar a importncia dos

    diferentes programas de ao compensatria. Consider-los, porm, como

    programas educativos implica um afastamento ainda maior, em lugar da

    aproximao que se faz necessria em direo compreenso da natureza

    especfica do fenmeno educativo.

  • ESCOLA E DEMOCRACIA I

    A TEORIA DA CURVATURA DA VARA

    Abordagem Poltica do Funcionamento Interno da Escola de 1 grau.

    Parece-me primeira vista, que poderamos faz-lo de duas maneiras: abordarmos

    a questo da organizao da escola de 1 grau, e a ento colocaramos nfase nas

    atividades meio, focalizando o papel do diretor, suas relaes com os tcnicos

    intermedirios, orientadores, supervisores, assim por diante, chegando em seguida

    ao professor e aos alunos. Neste caso o enfoque estaria nas atividades-meios, ou

    seja, na organizao. A outra forma de abordar seria enfatizar as atividades-fins, e

    nesse sentido examinar mais propriamente como se desenvolve o ensino, que

    finalidades ele busca atingir, que procedimentos ele adota para atingir suas

    finalidades, em que medida existe coerncia entre finalidades e procedimentos.

    Bem, melhor me preocupar com as atividades-fins e deixar margem a questo

    da organizao da escola de 1 grau. Enfatizarei justamente a problemtica do

    ensino que se desenvolve no interior da escola de 1 grau, pensando que funes

    polticas esse ensino desempenha. J que a abordagem poltica, vou logo me

    colocar no corao do poltico. Nesse sentido, farei uma exposio centrada em trs

    teses. Enunciarei para vocs as trs teses, que vou apenas comentar rapidamente;

    em seguida, extrairei delas algumas conseqncias para a educao brasileira e

    complementarei com um apndice. Para retirar o suspense sobre a forma da minha

    exposio, eu j antecipo quais so as teses e tambm qual o apndice. Vejam

    bem, todas elas so teses polticas; no entanto, a primeira, por ser mais geral, eu a

    considero uma tese filosfico-histrica. Poderamos enunci-la da seguinte maneira:

  • "do carter revolucionrio da pedagogia da essncia e do carter reacionrio da pedagogia da existncia".

    Uma segunda tese, que se articula com essa, uma tese que eu

    chamaria pedaggico-metodolgica, e a enuncio assim:

    "do carter cientfico do mtodo tradicional e do carter pseudo-cientfico dos mtodos novos".

    Vejam, ento, que eu estou me colocando diretamente no corao do

    poltico. Estou enunciando teses; isso significa posies, e posies polmicas.

    Dessas duas teses eu retiro uma terceira, que, portanto, opera como uma concluso

    das duas primeiras. As duas primeiras funcionam como premissas para extrair uma

    terceira tese conclusiva. Essa uma tese especificamente poltica, de poltica'-

    educacional. Eu a enuncio da seguinte maneira:

    "de como, quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrtica foi a escola; e de como, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construo de uma ordem democrtica".

    Bem, essa terceira tese eu derivo das duas primeiras. Em seguida

    examinaremos as conseqncias disso na educao brasileira, e por ltimo farei

    referncia a um apndice. Nesse apndice farei uma pequena considerao sobre a

    "teoria da curvatura da vara". Eu no sei se a teoria da curvatura da vara

    conhecida. Ela foi enunciada por Lnin ao ser criticado por assumir posies

    extremistas e radicais. Lnin responde o seguinte:

    "quando a vara est torta, ela fica curva de um lado e se voc quiser endireit-la, no basta coloc-la na posio correta. preciso curv-la para o lado oposto".

  • Com essa teoria da curvatura da vara, completarei este texto.

    A impossibilidade de desenvolver todas as teses acima colocadas, faz

    com que eu apenas as enuncie para, em seguida, tirar algumas conseqncias e, a

    partir delas provocar um debate, e mais do que isso, deix-las para serem

    exploradas mais profundamente em outros trabalhos. Entre parnteses, eu

    acrescentaria apenas que essas teses derivam de uma reflexo relativamente

    amadurecida, que venho desenvolvendo h algum tempo. Alguma coisa j tenho at

    exposto em alguns textos ou palestras.

    Quanto primeira tese,

    "do carter revolucionrio da pedagogia da essncia e do carter reacionrio da pedagogia da existncia",

    O que eu quero dizer com isso , basicamente, o seguinte: ns estamos

    hoje, no mbito da poltica educacional e no mbito do interior da escola, na verdade

    nos digladiando com duas posies antitticas e que, via de regra,

    convencionalmente so traduzidas em termos do novo e do velho, da pedagogia

    nova e da pedagogia tradicional. Essa pedagogia tradicional uma pedagogia que

    se funda numa concepo filosfica essencialista, ao passo que a pedagogia nova

    se funda numa concepo filosfica que privilegia a existncia sobre a essncia. O

    que isso significa do ponto de vista histrico-filosfico?

  • O HOMEM LIVRE

    Se ns voltarmos antiguidade grega vamos verificar que, em verdade, a

    filosofia da essncia no implicava maiores problemas l, e a pedagogia que

    decorria dessa filosofia, por sua vez, no implicava problemas polticos muito srios,

    na medida em que o homem, o ser humano, era identificado com o homem livre; o

    escravo no era ser humano, consequentemente a essncia humana s era

    realizada nos homens livres. Ento, o problema do escravismo, sobre o qual se

    assentava a produo da sociedade grega, ficava descartado e nem era um

    problema do ponto de vista filosfico-pedaggico.

    Durante a Idade Mdia essa concepo essencialista recebe uma

    inovao, que diz respeito justamente articulao da essncia humana com a

    criao divina; portanto, ao serem criados os homens segundo uma essncia

    predeterminada, tambm j seus destinos eram definidos previamente;

    consequentemente, a diferenciao da sociedade entre senhores e servos j estava

    marcada pela prpria concepo que se tinha da essncia humana. Ento, a

    essncia humana justificava as diferenas.

    Ora, coisa diversa vem a ocorrer na poca moderna, com a ruptura do

    modo de produo feudal e a gestao do modo de produo capitalista. Ns vamos

    ter, justamente a, que a burguesia, classe em ascenso, vai se manifestar como

    uma classe revolucionria, e, enquanto classe revolucionria, vai advogar a filosofia

    da essncia como um suporte para a defesa da igualdade dos homens como um

    todo e justamente a partir da que ela aciona as crticas nobreza e ao clero. Em

    outros termos: a dominao da nobreza e do clero era uma dominao no-natural,

  • no-essencial, mas, social e acidental, portanto, histrica. Vejam que toda postura

    revolucionria uma postura essencialmente histrica, uma postura que se coloca

    na direo do desenvolvimento da histria. Ora, naquele momento, a burguesia se

    colocava justamente na direo do desenvolvimento da histria e seus interesses

    coincidiam com os interesses do novo, com os interesses da transformao; e

    nesse sentido que a filosofia da essncia, que vai ter depois como conseqncia a

    pedagogia da essncia, vai fazer uma defesa intransigente da igualdade essencial

    dos homens. Sobre essa base da igualdade dos homens, de todos os homens,

    que se funda ento a liberdade, e sobre, justamente, a liberdade, que se vai

    postular a reforma da sociedade. Lembrem-se, de passagem, de Rousseau. O que

    defendia Rousseau? Que tudo bom enquanto sai do autor das coisas. Tudo

    degenera quando passa s mos dos homens. Em outros termos, a natureza

    justa, boa. E no mbito natural a igualdade est preservada. As desigualdades

    (vejam o "Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens") so geradas

    pela sociedade. Ora, esse raciocnio no significa outra coisa seno colocar diante

    da nobreza e do clero a idia de que as diferenas, os privilgios de que eles

    usufruam, no eram naturais e muito menos divinos, mas eram sociais. E enquanto

    diferenas sociais, configuravam injustia; enquanto injustia, no poderiam

    continuar existindo. Logo, aquela sociedade fundada em senhores e servos no

    poderia persistir. Ela teria que ser substituda por uma sociedade igualitria. nesse

    sentido, ento, que a burguesia vai reformar a sociedade, substituindo uma

    sociedade com base num suposto direito natural por uma sociedade contratual.

    Vejam ento como que se tece todo o raciocnio. Os homens so

    essencialmente livres; essa liberdade se funda na igualdade natural, ou melhor,

  • essencial dos homens, e se eles so livres, ento podem dispor de sua liberdade, e

    na relao com os outros homens, mediante contrato, fazer ou no concesses.

    sobre essa base da sociedade contratual que as relaes de produo vo se

    alterar: do trabalhador servo, vinculado terra, para o trabalhador no mais

    vinculado terra, mas livre para vender a sua fora de trabalho, e ele a vende

    mediante contrato. Ento, quem possui a propriedade livre para aceitar ou no a

    oferta de mo-de-obra, e vice-versa, quem possui a fora de trabalho livre de

    vend-la ou no, de vend-la a este ou aquele, de vender, ento, a quem quiser.

    Esse o fundamento jurdico da sociedade burguesa. Fundamento, como veremos,

    formalista, de uma igualdade formal. No entanto, sobre essa base de igualdade

    que vai se estruturar a pedagogia da essncia e, assim que a burguesia se torna a

    classe dominante, ela vai, em meados do sculo passado, estruturar os sistemas

    nacionais de ensino e vai advogar a escolarizao para todos. Escolarizar todos os

    homens era condio de converter os servos em cidados, era condio de que

    esses cidados participassem do processo poltico, e, participando do processo

    poltico, eles consolidariam a ordem democrtica, democracia burguesa, bvio,

    mas o papel poltico da escola estava a muito claro. A escola era proposta como

    condio para a consolidao da ordem democrtica.

    A MUDANA DE INTERESSES

    Ocorre que a histria vai evoluindo, e a participao poltica das massas

    entra em contradio com os interesses da prpria burguesia. Na medida em que a

    burguesia, de classe em ascenso, portanto, de classe revolucionria, se transforma

    em classe consolidada no poder, a os interesse dela no caminham mais em

  • direo transformao da sociedade; ao contrrio, os interesses dela coincidem

    com a perpetuao da sociedade. nesse sentido que ela j no est mais na linha

    do desenvolvimento histrico, mas est contra a histria. A histria contra os

    interesses da burguesia. Ento, para a burguesia se defender desse interesses, ela

    no tem outra sada seno negar a histria, passando a reagir contra o movimento

    da histria. nesse momento que a escola tradicional, a pedagogia da essncia, j

    no vai servir e a burguesia vai propor a pedagogia da existncia. Ora, vejam vocs:

    o que a pedagogia da existncia, seno diferentemente da pedagogia da essncia

    que uma pedagogia que se fundava no igualitarismo uma pedagogia da

    legitimao das desigualdades? Com base neste tipo de pedagogia, considera-se

    que os homem no so essencialmente iguais; os homens so essncia mente

    diferentes, e ns temos que respeitar as diferenas entre os homens. Ento, h

    aqueles que tm mais capacidade e aqueles que tm menos capacidade; h

    aqueles que aprendem mais devagar; h aqueles que se interessam por isso e os

    que se interessam por aquilo.

    Eis, em sntese, o que eu quis dizer com a minha primeira tese, tese

    filosfico-histrica,

    "do carter revolucionrio da pedagogia da essncia, e do carter reacionrio da pedagogia da existncia"

    Com efeito, a pedagogia da existncia vai ter esse carter reacionrio,

    isto , vai contrapor-se ao movimento de libertao da humanidade em seu conjunto,

    vai legitimar as desigualdades, legitimar a dominao, legitimar a sujeio, legitimar

    os privilgios. Nesse contexto, a pedagogia da essncia no deixa de ter um papel

    revolucionrio, pois, ao defender a igualdade essencial entre os homens, continua

    sendo uma bandeira que caminha na direo da eliminao daqueles privilgios que

  • impedem a realizao de parcela considervel dos homens. Entretanto, neste

    momento, no a burguesia que assume o papel revolucionrio, como assumira no

    incio dos tempos modernos. Nesse momento, a classe revolucionria outra: no

    mais a burguesia, exatamente aquela classe que a burguesia explora.

    A FALSA CRENA DA ESCOLA NOVA

    A segunda tese eu enunciei da seguinte forma:

    "do carter cientfico do mtodo tradicional, e do carter pseudocientfico dos mtodos novos".

    Vejam que no fundo as minhas teses esto indo contra a tendncia

    corrente, contra a tendncia dominante. E por que isso? Porque, vejam bem, tanto,

    na primeira tese, como veremos agora na segunda, o que em verdade a burguesia

    faz, ao defender a posio que corresponde aos seus interesses, contrap-la ao

    momento anterior. Assim, no caso da pedagogia da existncia e da essncia, a

    burguesia constri os argumentos que defendem a pedagogia da existncia contra a

    pedagogia da essncia, pintando essa ltima como algo tipicamente medieval.

    Nesse sentido, ela deixa de assumir a pedagogia da essncia como uma construo

    dela prpria. Veremos agora, em relao ao mtodo, como essa questo se coloca

    de modo tambm bastante claro. Eu vou especificar um pouco mais a questo do

    mtodo, porque diz respeito justamente ao modo como a gente trabalha no interior

    da prpria escola, no interior da sala de aula. E aqui ns poderamos nos lembrar, j

    diretamente, do movimento da Escola Nova, que pintou justamente o mtodo

    tradicional como um mtodo pr-cientfico, como um mtodo dogmtico e como um

  • mtodo medieval. Basta ns nos lembrarmos, por exemplo, de Kilpatrick, Educao

    para uma civilizao em mudana, onde ele vai caracterizar a civilizao que foi se

    construindo com base no surgimento da cincia moderna a partir do Renascimento

    como sendo a civilizao em mudana. Nesse sentido, os mtodos tradicionais so

    remetidos para a Idade Mdia, e, portanto, para um carter pr-cientfico, e mesmo

    anticientfico, ou seja, dogmtico. Ora, no entanto, essa crena que a Escola Nova

    propaga uma crena totalmente falsa. Com efeito, o chamado ensino tradicional

    no pr-cientfico e muito menos medieval. Esse ensino tradicional que ainda

    predomina hoje nas escolas se constituiu aps a revoluo industrial e se implantou

    nos chamados sistemas nacionais de ensino, configurando amplas redes oficiais,

    criadas a partir de meados do sculo passado, no momento em que, consolidado o

    poder burgus, aciona-se a escola redentora da humanidade, universal, gratuita e

    obrigatria como um instrumento de consolidao da ordem democrtica.

    O que estou querendo enfatizar com isto que esse mtodo tradicional foi

    constitudo aps a revoluo industrial, contrariamente, portanto, ao argumento que

    os escolanovistas comumente levantam de que a revoluo industrial transformou a

    sociedade, determinou uma sociedade no mais esttica, em mudana contnua,

    que essa revoluo industrial, que tem seu fundamento na cincia, no teve sua

    contrapartida na educao, que continuou sendo pr-cientfica, seguindo lemas

    medievais. Da a razo do mtodo novo proclamar-se cientfico, proclamar-se um

    instrumento de introduo da cincia na atividade educativa e, em conseqncia,

    colocar a educao altura do sculo, altura da poca. No entanto, esse ensino

    dito tradicional se estruturou atravs de um mtodo pedaggico, que o mtodo

    expositivo, que todos conhecem, todos passaram por ele, e muitos esto passando

  • ainda, cuja matriz terica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart.

    Esses passos, que so o passo da preparao, o passo da apresentao, da

    comparao e assimilao, da generalizao e, por ltimo, da aplicao,

    correspondem ao esquema do mtodo cientfico indutivo, tal como fora formulado

    por Bacon, mtodo que podemos esquematizar em trs momentos fundamentais: a

    observao, a generalizao e a confirmao. Trata-se, portanto, daquele mesmo

    mtodo formulado no interior do movimento filosfico do empirismo, que foi a base

    do desenvolvimento da cincia moderna. Eu acho que esse ponto precisa ser

    explicitado um pouco melhor.

    No ensino herbartiano, o passo da preparao significa basicamente a

    recordao da lio anterior, logo, do j conhecido; atravs do passo da

    apresentao, colocado diante do aluno um novo conhecimento que lhe cabe

    assimilar; a assimilao, portanto o terceiro passo, ocorre por comparao, da por

    que eu o denominei assimilao-comparao - a assimilao ocorre por comparao

    do novo com o velho; o novo assimilado, pois, a partir do velho. Esses trs passos

    correspondem, no mtodo cientfico indutivo, ao momento da observao. Trata-se

    de identificar e destacar o diferente entre os elementos j conhecidos. O passo

    seguinte, o da generalizao, significa que, se o aluno j assimilou o novo

    conhecimento, ele capaz de identificar todos os fenmenos correspondentes ao

    conhecimento adquirido. Ora, no mtodo indutivo, o momento da generalizao no

    outra coisa seno a subfuno, sob uma lei extrada dos elementos observados,

    pertencentes a determinada classe de fenmenos, de todos os elementos

    (observados ou no), que integram a mesma classe de fenmenos. O passo da

    aplicao, que o quinto passo do mtodo herbartiano, coincide, via de regra, com

  • as "lies para casa". Fazendo os exerccios, o aluno vai demonstrar se ele

    aprendeu, se assimilou ou no o conhecimento. Trata-se de verificar atravs de

    exemplos novos, no manipulados ainda pelo aluno, se ele efetiva-mente assimilou

    o que foi ensinado. Corresponde, pois, ao momento da confirmao, no caso do

    mtodo cientfico, uma vez que, se o aluno aplicou corretamente os conhecimentos

    adquiridos, se ele acertou os exerccios, a assimilao est confirmada. Pode-se

    afirmar que ao ensino correspondeu uma aprendizagem. Por isso, a preparao da

    lio seguinte comea com a recapitulao da anterior, o que feito normalmente

    mediante a correo da lio de casa. Eis, pois, a estrutura do mtodo tradicional;

    na lio seguinte comea-se corrigindo os exerccios, porque essa correo o

    passo da preparao. Se os alunos fizeram corretamente os exerccios, eles

    assimilaram o conhecimento anterior, ento eu posso passar para o novo. Se eles

    no fizeram corretamente, ento eu preciso dar novos exerccios, preciso que a

    aprendizagem se prolongue um pouco mais, que o ensino atente para as razes

    dessa demora, de tal modo que, finalmente, aquele conhecimento anterior seja de

    fato assimilado, o que ser a condio para se passar para um novo conhecimento.

    Cabe aqui perguntar: por que o movimento da Escola Nova tendeu a classificar

    como pr-cientfico, e at mesmo como anticientfico, dogmtico, o mtodo aqui

    citado? Acredito que demonstrei a sua cientificidade. Mas vamos tentar agora

    responder a essa pergunta. A Escola Nova deve ter suas razes.

    ENSINO NO PESQUISA

    Na verdade, o que o movimento da Escola Nova fez foi tentar articular o

    ensino com o processo de desenvolvimento da cincia, ao passo que o chamado

  • mtodo tradicional o articulava com o produto da cincia. Em outros termos, a

    Escola Nova buscou considerar o ensino como um processo de pesquisa; da

    porque ela se assenta no pressuposto de que os assuntos de que trata o ensino

    problemas, isto , so assuntos desconhecidos no apenas pelo aluno, como

    tambm pelo professor. Nesse sentido, o ensino seria o desenvolvimento de uma

    espcie de projeto de pesquisa, quer dizer uma atividade - vamos aos cinco passos

    do ensino novo que se contrapem simetricamente aos passos do ensino tradicional:

    ento, o ensino seria uma atividade (1 passo) que, suscitando determinado

    problema (2 passo), provocaria o levantamento dos dados, (3 passo) a partir dos

    quais seriam formuladas as hipteses (4 passo) explicativas do problema em

    questo, empreendendo alunos e professores, conjuntamente, a experimentao

    (5. passo), que permitiria confirmar ou rejeitar as hipteses formuladas.

    V-se, pois, que o ensino novo basicamente se funda nessa estrutura: ele

    comea por uma atividade; na medida em que a atividade no pode prosseguir por

    algum obstculo, alguma dificuldade, algum problema que surgiu, preciso resolver

    esse problema. Como se vai resolver esse problema? Ento, todos, alunos e

    professores, saem cata de dados, dados dos mais diferentes tipos, dados

    documentais, atravs dos textos, ou dados de campo. Esses dados, uma vez

    levantados, permitiro acionar uma ou mais hipteses explicativas do problema.

    Formulada a hiptese, preciso passar experimentao, preciso testar essa

    hiptese. So esses os cinco passos do mtodo novo. Diferentemente disso, o

    ensino tradicional se propunha a transmitir os conhecimentos obtidos pela cincia,

    portanto, j compendiados, sistematizados e incorporados ao acervo cultural da

    humanidade. Eis porque esse tipo de ensino, o ensino tradicional, se centra no

  • professor, nos contedos e no aspecto lgico, isto , se centra no professor, o

    adulto, que domina os contedos logicamente estruturados, organizados, enquanto

    que os mtodos novos se centram no aluno (nas crianas), nos procedimentos e no

    aspecto psicolgico, isto , se centra nas motivaes e interesses da criana em

    desenvolver os procedimentos que a conduzam posse dos conhecimentos

    capazes de responder s suas dvidas e indagaes. Em suma, aqui, nos mtodos

    novos, se privilegiam os processos de obteno dos conhecimentos, enquanto que

    l, nos mtodos tradicionais, se privilegiam os mtodos de transmisso dos

    conhecimentos j obtidos.

    Bem, acho que, isto posto, um e outro mtodo, uma e outra pedagogia,

    esto indicadas tambm as razes de cientificidade de uma e de outra. Mas, que

    conseqncias isso tem?

    Vejam que com essa maneira de interpretar a educao, a Escola-Nova

    acabou por dissolver a diferena entre pesquisa e ensino, sem se dar conta de que,

    assim fazendo, ao mesmo tempo que o ensino era empobrecido, se inviabilizava

    tambm a pesquisa. O ensino no um processo de pesquisa. Querer transform-lo

    num processo de pesquisa artificializ-lo. Da o meu prefixo pseudo ao cientfico

    dos mtodos novos. Eu vou tentar explicar um pouquinho ainda isso. Por que que

    o ensino era empobrecido e ao mesmo tempo se inviabilizava a pesquisa?

    Vejam bem que, se a pesquisa incurso no desconhecido, e por isso ela

    no pode estar atrelada a esquemas rigidamente lgicos e preconcebidos, tambm

    verdade que: primeiro, o desconhecido s se define por confronto com o

  • conhecido, isto , seno se domina o j conhecido; no possvel detectar o ainda

    no conhecido, a fim de incorpor-lo, mediante a pesquisa, ao domnio do j

    conhecido. A me parece que est uma das grandes fraquezas dos mtodos novos.

    Sem o domnio do conhecido, no possvel incursionar no desconhecido. a que

    est tambm a grande fora do ensino tradicional: a incurso no desconhecido se

    fazia sempre atravs do conhecido, e isso um negcio muito simples; qualquer

    aprendiz de pesquisador passou por isso, ou est passando, e qualquer pesquisador

    sabe muito bem que ningum chega a ser pesquisador, a ser cientista, se ele no

    domina os conhecimentos j existentes na rea em que ele se prope a ser

    investigador, a ser cientista. Em segundo lugar, o desconhecido no pode ser

    definido em termos individuais, mas em termos sociais, isto , trata-se daquilo que a

    sociedade e, no limite, a humanidade em seu conjunto desconhece. S assim seria

    possvel encontrar-se um critrio aceitvel para distinguir as pesquisas relevant