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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Programa de Pós-Graduação em Educação Física Dissertação EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: IMPLICAÇÕES DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO ECLÉA VANESSA CANEI BACCIN Pelotas, 2010

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica

    Dissertao

    EDUCAO FSICA ESCOLAR: IMPLICAES DAS POLTICAS EDUCACIONAIS NA ORGANIZAO DO

    TRABALHO PEDAGGICO

    ECLA VANESSA CANEI BACCIN

    Pelotas, 2010

  • ECLA VANESSA CANEI BACCIN

    EDUCAO FSICA ESCOLAR: IMPLICAES DAS POLTICAS EDUCACIONAIS NA ORGANIZAO DO

    TRABALHO PEDAGGICO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias (rea do conhecimento: Educao Fsica).

    Orientadora: Prof. Dr. Valdelaine da Rosa Mendes

    Pelotas/RS, 2010.

  • Dados de catalogao Internacional na fonte:

    Bibliotecria Patrcia de Borba Pereira CRB10/1487

    B117e Baccin, Ecla Vanessa Canei

    Educao Fsica Escolar: implicaes das polticas educacionais na organizao do trabalho pedaggico/ Ecla Vanessa Canei Baccin; orientadora Valdelaine da Rosa Mendes. Pelotas: UFPel : ESEF, 2010.

    137p.

    Dissertao (Mestrado) Programa de Ps - Graduao em Educao Fsica. Escola Superior de Educao Fsica. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2010.

    1. Polticas Educacionais. 2 Educao Fsica I. Ttulo II. Mendes, Valdelaine da Rosa

  • Banca examinadora:

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Valdelaine da Rosa Mendes (ESEF/UFPel)

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Adriana DAgostini (CED/UFSC)

    ____________________________________________

    Prof Dr. Maristela da Silva Souza (CEFD/USFM)

    _____________________________________________

    Prof Dr. Luiz Fernando Camargo Veronez (ESEF/UFPel)

  • Ao Vilmar por todos estes anos de convivncia, amor, mudanas,

    e lutas. Obrigada por tudo!

  • Agradeo:

    A todos os trabalhadores e trabalhadoras que sustentam esta e outras universidades pblicas.

    Aos meus pais por sempre apoiarem meus estudos. A todos os companheiros do Movimento Nacional Contra a Regulamentao

    do profissional de Educao Fsica, pela amizade, pelas lutas e por me fazer acreditar que realmente a luta pra vencer!

    Ao Movimento Estudantil, principalmente de Educao Fsica, pelo aprendizado, por me mostar e me inserir na luta e por me ajudar a ser muito do que eu sou hoje.

    Linha de Estudos Epistemolgicos e Didticos em Educao Fsica (LEEDEF), pelo aprendizado coletivo, pelas amizades e pelo referencial marxista.

    minha orintadora Professora Valdelaine da Rosa Mendes pelas orientaes, pela amizade e pela compreenso em determinados momentos.

    escola e a todos os participantes deste estudo, em especial aos colegas professores de Educao Fsica, que colaboraram para a pesquisa. Obrigada pelos dialgos e principalmente pelo aprendizado, vocs ajudaram a enriquecer este trabalho.

    Banca Examinadora: Professor Lus Veronez, professora Maristela Souza e professora Adriana Dgostini, muito obrigada pelas contribuies que foram importantssimas para qualificar este trabalho.

    A todos os funcionrios da ESEF, principalmente ao Giovane da Silva Lima e aos funcionrios da Ps-graduao, Tiago Pail Nachtigall e Hlio Peres da Fonseca pelo auxlio sempre prestativo.

    Capes pela concesso da bolsa para a realizao da pesquisa. s colegas e amigas Julia Quintana e Liliane Lima, pelos estudos,

    conversas, desabafos. Valeu gurias!!! Meus agradecimentos sinceros a todos, que de uma forma ou de outra,

    contribuiram para que eu chegasse at aqui, pois mais uma etapa foi cumprida das tantas que ainda esto por vir.

  • Resoluo I

    Considerando nossa fraqueza os senhores forjaram Suas leis, para nos escravizarem.

    As leis no mais sero respeitadas Considerando que no queremos mais ser escravos.

    Considerando que os senhores nos ameaam Com fuzis e com canhes

    Ns decidimos: de agora em diante Temeremos mais a misria que a morte.

    II Considerando que ficaremos famintos

    Se suportarmos que continuem nos roubando Queremos deixar bem claro que so apenas vidraas

    Que nos separam deste bom po que nos falta. Considerando que os senhores nos ameaam

    Com fuzis e com canhes Ns decidimos: de agora em diante

    Temeremos mais a misria que a morte.

    III Considerando que existem grandes manses Enquanto os senhores nos deixam sem teto

    Ns decidimos: agora nelas nos instalaremos Porque em nossos buracos no temos mais condies de ficar.

    Considerando que os senhores nos ameaam Com fuzis e com canhes

    Ns decidimos: de agora em diante Temeremos mais a misria que a morte.

    IV Considerando que est sobrando carvo

    Enquanto ns gelamos de frio por falta de carvo Ns decidimos que vamos tom-lo

    Considerando que ele nos aquecer. Considerando que os senhores nos ameaam

    Com fuzis e com canhes Ns decidimos: de agora em diante

    Temeremos mais a misria que a morte.

    V Considerando que para os senhores no possvel

    Nos pagarem um salrio justo Tomaremos ns mesmos as fbricas

    Considerando que sem os senhores, tudo ser melhor para ns. Considerando que os senhores nos ameaam

    Com fuzis e com canhes Ns decidimos: de agora em diante

    Temeremos mais a misria que a morte.

    VI Considerando que o que o governo nos promete sempre

    Est muito longe de nos inspirar confiana Ns decidimos tomar o poder

    Para podermos levar uma vida melhor. Considerando: vocs escutam os canhes -

    Outra linguagem no conseguem compreender - Deveremos ento, sim, isso valer a pena Apontar os canhes contra os senhores!

    Bertold Brecht

  • Resumo Baccin, Ecla Vanessa Canei. Educao Fsica escolar: implicaes das polticas educacionais na organizao do trabalho pedaggico. 2010. 135f. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS.

    O objetivo deste trabalho analisar as implicaes das polticas educacionais do estado do Rio Grande do Sul (gesto 2007-2010) na organizao do trabalho pedaggico da disciplina Educao Fsica de uma escola estadual de Pelotas, a partir da relao entre as orientaes polticas mais amplas e as aes definidas pelo governo estadual. Para tal desafio, nos fundamentamos na teoria do materialismo histrico dialtico que nos oferece os instrumentos de pensamento para apreendermos as mltiplas determinaes da realidade. As tcnicas e procedimentos de pesquisa utilizados para a coleta de dados foram: entrevista semi-estruturada e observao de aulas. Todas as situaes vividas na escola foram registradas em um dirio de campo. Para a interpretao dos dados recorremos anlise de contedo. Participaram da pesquisa de campo trs professores de Educao Fsica, o diretor e a coordenadora pedaggica de uma escola estadual. Para atingir o objetivo proposto buscamos num primeiro momento traar as relaes entre trabalho e capital que determinam as polticas e as reformas educacionais no Brasil. Em seguida, procuramos identificar os pressupostos das polticas educacionais nacionais e aquelas propostas por agncias internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, e suas relaes com as polticas educacionais em curso no Estado. Foi possvel constatar que as polticas educacionais postas em prtica por esta gesto buscam equilibrar as contas do Estado, atravs de ajustes fiscais que esto influenciando diretamente na educao. No relato dos professores h inmeras crticas a esta poltica de conteno de gastos que est ocasionando a diminuio da qualidade do ensino e a precarizao do trabalho docente. Est clara a busca pela realizao de uma educao pautada nas diretrizes da qualidade total, a partir dos instrumentos de avaliao como o SAERS, da tentativa de implementao da meritocracia e da retirada de direitos historicamente conquistados pela classe docente. A partir da anlise de categorias como: precarizao e intensificao do trabalho docente; financiamento da educao; formao docente; interdisciplinaridade e multidisciplinaridade; contedo e mtodo; e, objetivos e avaliao; buscamos explorar as contradies e possibilidades presentes na prtica pedaggica, a fim de demonstrar como se d a organizao do trabalho pedaggico. Em relao a disciplina de Educao Fsica foi possvel constatar que os contedos predominantes so os esportes e que h uma secundarizao desta disciplina de acordo com as novas demandas impostas pelo mercado de trabalho, a partir da reestruturao produtiva e da exigncia das novas competncias. Para finalizar demonstramos que o projeto educacional da gesto 2007-2010 est hegemonicamente voltado aos interesses do capital. Todos os entrevistados demonstram conscincia dos prejuzos educao causados pelas polticas educacionais em curso, e evidenciamos a resistncia desses trabalhadores, motivo pelo qual, muitos projetos desta gesto ainda no foram executados.

    Palavras-chave: Poltica educacional. Educao Fsica. Organizao do trabalho pedaggico.

  • Abstract

    Baccin, Ecla Vanessa Canei. Educao Fsica escolar: implicaes das polticas educacionais na organizao do trabalho pedaggico. 2010. 135f. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS.

    The aim of this paper is to analyze the implications of educational policies of the state of Rio Grande do Sul (managed 2007-2010) in the organization of educational work in the discipline of physical education a state school in Pelotas, from the relationship between the broader policy orientations and actions defined by the state government. For this challenge, we base on the theory of dialectical historical materialism that gives us the tools of thinking to grasp the multiple determinations of reality. The techniques and research procedures used to collect data were semi-structured interviews and observation of lessons. All the situations experienced in school were recorded in a diary. In interpreting the data we used the content analysis. Participated in the research field of three physical education teachers, the director and educational coordinator of a state school. To achieve this goal, we seek at first to trace the relations between labor and capital that determine policies and educational reforms in Brazil. Then try to identify the assumptions of national education policies and those proposed by international agencies like the World Bank and IMF, and its relations with the current educational policies in the state. It was found that the educational policies implemented by this administration seek to balance the accounts of the state through tax adjustments that are directly influencing education. In the account of teachers there are numerous criticisms of this policy of cost containment that is causing the decline in quality of education and precariousness of the teacher's work. It is clear the quest for realization of a guided education in the guidelines of total quality, from the assessment tools as SAERS the attempted implementation of meritocracy and the withdrawal of rights historically achieved by the teachers. From the analysis of categories such as precariousness and intensification of teacher's work, education funding, teacher training, interdisciplinary and multidisciplinary, content and method, and objectives, and evaluation; we seek to explore the contradictions and possibilities present in pedagogical practice in order to demonstrate how is the organization of pedagogical work. For Physical Education was established that the contents are the predominant sports and that there is sidelined this course according to the new demands imposed by the labor market from the industrial structure and the requirement for new skills. Finally we demonstrate that the educational project management 2007-2010 is pivoted back to the interests of capital. All respondents demonstrated awareness of damage to education caused by current educational policies, and we have shown the strength of such workers, which is why many projects that management has not been performed.

    Keywords: Education policy. Physical Education. Organization of pedagogical work.

  • LISTA DE SIGLAS AID: Associao Internacional de Desenvolvimento BIRD: Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento BID: Banco Internacional de desenvolvimento BM: Banco Mundial CRT: Companhia Rio-Grandense de Telecomunicaes CEEE: Companhia Estadual de Energia Eltrica CCQ: Crculos de Controle de Qualidade CFI: Cooperao Financeira Internacional CLADE: Campanha Latino-Americana pelo Direito Educao CPERS: Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul sindicato dos trabalhadores em Educao. CRE: Coordenadoria Regional de Educao DEM: Partido dos Democratas EJA: Educao de Jovens e Adultos ENEM: Exame Nacional de Ensino Mdio FEDERASUL: Federao das Associaes Comerciais e de Servios do Rio Grande do Sul FHC: Fernando Henrique Cardoso FMI: Fundo Monetrio Internacional IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica LDB: Lei de Diretrizes e Bases MEC: Ministrio da Educao MIGA: Agncia de Garantia de Investimentos Multilaterais PDE: Plano de Desenvolvimento da Educao PNE: Plano Nacional de Educao PNUD: Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira PT: Partido dos Trabalhadores SAERS: Sistema de Avaliao do Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul SEC: Secretaria Estadual de Educao UNICEF: Fundo das Naes Unidas para a Infncia UNESCO: Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................13 Procedimentos Metodolgicos...............................................................................21 O caminho percorrido para a sistematizao do estudo........................................26

    1 NEOLIBERALISMO, POLTICA EDUCACIONAL E A REFORMA EDUCACIONAL NO BRASIL.............................................................................29

    1.1 A relao entre trabalho, capital e educao...................................................29 1.2 A escola e sua organizao do trabalho pedaggico na sociedade capitalista...............................................................................................................................37 1.3 A reforma educacional no Brasil: implicaes para a educao e a Educao Fsica .....................................................................................................................44

    2 POLTICAS EDUCACIONAIS E REFORMAS DA EDUCAO: A REALIDADE NO RIO GRANDE DO SUL .......................................................53

    2.1 Polticas educacionais no Rio Grande do Sul: da implementao do neoliberalismo s atuais polticas educacionais ....................................................53 2.2 Os programas e os projetos educacionais em curso .......................................57 2.3 As implicaes das atuais polticas educacionais do governo do estado do Rio Grande do Sul na organizao do trabalho pedaggico das escolas ....................70 2.4 A organizao do trabalho pedaggico e suas relaes com a disciplina curricular Educao Fsica.....................................................................................72

    3 INFLUNCIA DAS POLTICAS EDUCACIONAIS DO Rio grande do Sul NA ORGANIZAO DO TRABALHO PEDAGGICO E SUAS IMPLICAES NA EDUCAO FSICA: ANALISANDO A REALIDADE DE UMA ESCOLA ESTADUAL.........................................................................79

    3.1 A escola pblica como campo emprico da pesquisa ......................................80 3.1.1 O local, os participantes e as tcnicas empregadas para a pesquisa.......81

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    3.2 Anlise dos dados: do emprico ao concreto pensado ....................................84 3.2.1 Precarizao e intensificao do trabalho docente ...................................85 3.2.2 Financiamento da Educao.....................................................................94 3.2.3 Formao docente ....................................................................................96 3.2.4 Organizao do trabalho pedaggico........................................................97 a) Objetivos e avaliao.....................................................................................98 b) Contedo e mtodo......................................................................................101 c) Interdisciplinaridade e multidisciplinaridade .................................................103

    CONSIDERAES FINAIS .............................................................................110 REFERNCIAS...................................................................................................115 APNDICE ...........................................................................................................122

    APNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................123 APNDICE B - Roteiro para entrevista (Professor de Educao Fsica).............125 APNDICE C - Roteiro para entrevista (Diretor da escola) .................................127 APNDICE D - Roteiro para entrevista (coordenadores pedaggicos da escola).............................................................................................................................129

    ANEXOS...............................................................................................................130 ANEXO A - Carta de um professor ......................................................................131 ANEXO B Quadro de enturmao das escolas de Pelotas ..............................133

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    INTRODUO

    Nas ltimas dcadas, a sociedade vem passando por mudanas que determinam um constante e significativo reordenamento nas configuraes do trabalho, se manifestando nas mais variadas esferas da vida humana. Essas novas configuraes do trabalho ampliam a insero de tecnologia no sistema produtivo, exigindo a formao de um trabalhador que venha a atender novas demandas que surgem, ou seja, um trabalhador que tenha competncias para atuar nesse novo cenrio.

    Tais mudanas ocorrem com vistas a superar sucessivas crises de superproduo que o modo de produo capitalista enfrenta, devido a sua forma de organizao. Esse reordenamento apontado como uma alternativa da superao da crise que ocorreu nos anos 70 do sculo XX, na busca pela manuteno da hegemonia do capital.

    Alm da reestruturao produtiva, tambm o Estado redefine sua funo. Se antes o mesmo possua uma forte interveno no processo econmico-social, sobremaneira nos pases do capitalismo central, com tais redefinies ocorrem privatizaes que colocam na mo da iniciativa privada a prestao de determinados servios essenciais, que antes eram realizadas pelo Estado, sob a perspectiva de direitos pblicos.

    No estamos com isso afirmando que o Estado deixou de intervir no processo econmico e social, mas sim, que ocorreram mudanas nesta interveno, de modo que o mesmo vem auxiliando empresas a superarem os problemas financeiros que enfrentam, seja atravs de iseno de impostos, seja atravs de emprstimo direto.

    A partir da reestruturao produtiva e da redefinio do papel do Estado, segundo Anderson (1995), os defensores do neoliberalismo propem que o Estado no deve mais perseguir a meta do pleno emprego e de distribuio de renda. Em outras palavras, assume-se que no h possibilidade de emprego para todos os

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    trabalhadores, neste modo de produo. Assim, para o modelo toyotista1 de organizao do trabalho, o trabalhador, para que seja empregvel, necessita de determinadas competncias que devem ser adquiridas em um constante processo de qualificao e atualizao.

    Na educao, portanto, tambm surge a necessidade de um projeto pedaggico capaz de atender essas demandas exigidas dos trabalhadores. Segundo Gentili (1999), se antes a escola, e a educao por ela fornecida, era vista como forma de crescimento nacional, da riqueza social, diante das novas configuraes, a mesma assume o carter de promessa de empregabilidade (p.81). Em outros termos, deixa de ser um crescimento da nao para ser individual, pois cada ser humano deve buscar por si mesmo as competncias exigidas pelo mercado de trabalho.

    A partir dessa nova demanda, se a escola colabora para a empregabilidade, ela assume uma dupla tarefa, pois, ainda segundo o mesmo autor, a impossibilidade de emprego para todos leva a constatao de que educar para o emprego requer tambm educar para o desemprego, gerando uma lgica de desenvolvimento que transforma a dupla trabalho/ausncia de trabalho num matrimnio inseparvel (GENTILI, 1999, p. 89).

    Este processo que ser aprofundado no decorrer do estudo vem conduzindo reformulaes nas polticas educacionais de modo geral, causando impactos na instituio escolar, em sua organizao do trabalho pedaggico, influenciando no trato com as disciplinas, dentre as quais, a Educao Fsica, visto que tal instituio inseparvel dos fenmenos que compem a realidade social.

    Considerando este contexto que a presente dissertao se insere no esforo de analisar o processo da organizao do trabalho pedaggico, e em especfico a disciplina de Educao Fsica, a partir das novas demandas que vm sendo impostas pelo capital, por intermdio das polticas educacionais.

    1 Segundo Antunes (2005, p. 52) ele se fundamenta num padro de produtivo organizacional e

    tecnologicamente avanado, resultado da introduo de tcnicas de gesto da fora de trabalho prprias da fase informacional, bem como da introduo ampliada dos computadores no processo produtivo e de servios. Desenvolve-se em uma estrutura produtiva mais flexvel, recorrendo freqentemente desconcentrao produtiva, s empresas terceirizadas, etc. [...]. O trabalho polivalente, multifuncional, qualificado, combinado com uma estrutura mais horizontalizada e integrada entre diversas empresas, inclusive nas empresas terceirizadas, tem como finalidade a reduo do tempo de trabalho.

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    Entendemos que uma importante mediao utilizada pelo capital para efetivar o direcionamento da escola, no sentido de atender os interesses colocados pelo mesmo na formao do trabalhador empregvel, ocorre por intermdio do modelo neoliberal2 atravs das reformas que vm sendo implementadas na educao brasileira. Em outros termos, essa teoria [a neoliberal] incorpora em seus fundamentos a lgica do mercado e a funo da escola se reduz formao de recursos humanos para a estrutura de produo (BIANCHETTI, 2001, p. 94).

    Portanto, o modelo neoliberal inserido na instituio escolar atravs de polticas educacionais com este vis, ocasiona um aprofundamento da precarizao do ensino pblico gratuito e um constante aumento do ensino privado, pois como coloca Emir Sader no prefcio do livro A educao para alm do capital de Istvn Mszros:

    No reino do capital, a educao , ela mesma, uma mercadoria. Da a crise do sistema pblico de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos oramentos pblicos. Talvez nada explique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que tudo se vende, tudo se compra, tudo tem preo, do que a mercantilizao da educao (2005, p. 16).

    No mesmo sentido, Bianchetti (2001) destaca que as polticas sociais, dentre as quais a poltica educacional, na concepo neoliberal, coloca o homem como mercadoria que possui os atributos e possibilidades de quaisquer dos bens produzidos na sociedade (p. 111), qual seja, ser valor-de-troca3. Neste contexto, o autor afirma que, a lgica do mercado na educao supe uma relao entre a oferta do servio educativo e a demanda da sociedade (p. 112).

    Isso, aliado a atual demanda que o capital tem exigido do trabalhador, na qual este precisa de um contedo no campo cognitivo e interacional, a fim de trabalhar com a capacidade de abstrao, raciocnio lgico, crtica, interatividade,

    2 Em geral, os autores definem como um movimento poltico-econmico heterogneo consolidado nos

    pases capitalistas desenvolvidos, em meados da dcada de 70, cuja proposta econmica significa o retorno aos princpios ortodoxos do liberalismo (BIANCHETTI, 2001).

    3 Segundo Marx (2006), o valor-de-troca de uma dada mercadoria no passa de uma funo social,

    nada tendo a ver com as suas propriedades naturais, ou seja, valor-de-troca uma expresso comum, um equivalente que precisa existir em todas as mercadorias para que seja possvel a sua troca. Esta substncia social comum a todas as mercadorias o trabalho. Portanto, os valores-de-troca das mercadorias so determinadas pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho investidos, realizados e incorporados nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, so iguais. Ou, de outro modo, o valor de uma mercadoria est para o valor de outra mercadoria, assim como a quantidade de trabalho incorporada em uma est para a quantidade de trabalho incorporada em outra (p. 100).

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    deciso, trabalho em equipe, competitividade, [...] entre outros (NOZAKI, 2004, p.144), reflete no papel que a Educao Fsica desempenha frente ao projeto pedaggico dominante. Tambm nos processos de ensino que a escola passa a adotar, enveredando para a apropriao e a utilizao da pedagogia das competncias, desconsiderando o conhecimento histrico e cientificamente produzido.

    Duarte (2003), em nosso entender, faz uma contundente crtica aos autores que defendem a prioridade dos conhecimentos tcitos em detrimento dos conhecimentos cientficos e acadmicos. Ao analisar um texto de Tardif4 (2000), Duarte (2003) menciona que aquele autor critica a contradio entre o que os professores universitrios professam e o que eles fazem. No entanto, ao invs de propor a superao dessa contradio atravs da busca da coerncia entre a prtica e o conhecimento terico, o autor prope o abandono deste ltimo, defendendo que a verdadeira teoria aquela que est implcita na prtica (DUARTE, 2003, p. 606).

    Neste sentido, como bem ressalta Duarte (2003), Tardif (2000) insere-se em uma perspectiva pragmatista, do aprender a aprender, de tal modo que seus argumentos conduzem concluso sobre a irrelevncia ou at mesmo sobre o carter prejudicial do saber cientfico/terico/acadmico, tanto na formao de professores, como na pesquisa educacional (DUARTE, 2003, p. 606).

    Entendemos que esta perspectiva de reflexo sobre a ao, quando busca desvalorizar o conhecimento cientfico historicamente produzido, prejudicial, visto que nega aos estudantes o acesso a um importante instrumental terico que possibilite a compreenso da realidade atual, bem como, do processo histrico da elaborao e do trato pedaggico com os contedos que precisam trabalhar.

    Assim, ao estudarmos o contexto escolar, precisamos compreender algumas questes fundamentais, como por exemplo: Para que e para quem serve esta educao? O que e de que forma se realiza o processo da organizao do trabalho pedaggico? De que forma as polticas educacionais influenciam na organizao do trabalho pedaggico e, mais especificamente, dado o enfoque deste estudo, na disciplina curricular Educao Fsica?

    4 Destacamos tambm que outro autor que segue esta perspectiva Philippe Perrenoud.

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    nesse sentido que formulamos a seguinte problemtica5 para esta pesquisa: Quais as implicaes das polticas educacionais do governo do estado do Rio Grande do Sul, gesto 2007-2010, na organizao do trabalho pedaggico e em especfico na disciplina de Educao Fsica?

    Para uma melhor compreenso do problema de estudo, precisamos explicitar, mesmo que brevemente, o que entendemos por organizao do trabalho pedaggico. Assim, baseados em Freitas (2000, p. 94), entende-se este em dois nveis: a) como trabalho pedaggico que, no presente momento histrico, costuma desenvolver-se predominantemente em sala de aula; b) como organizao global do trabalho pedaggico da escola, como projeto poltico-pedaggico da escola.

    preciso, portanto, que a mesma englobe no apenas o trabalho que desenvolvido na sala de aula, no ptio e na quadra, no caso especfico da disciplina de Educao Fsica, mas tambm suas relaes com a totalidade do contexto escolar, com a realidade social na qual est inserida e com as exigncias realizadas pelo atual modo de produo mesma.

    Nesse sentido, o projeto poltico-pedaggico6 tem um importante papel para que possamos compreender a organizao do trabalho pedaggico, pois deve ser uma diretriz para o ensino. Como aponta o Coletivo de Autores (1992, p.25), ele deve ser teleolgico, porque determina um alvo onde se quer chegar, busca uma direo. Essa direo, dependendo da perspectiva de classe de quem reflete, poder ser conservadora ou transformadora dos dados da realidade diagnosticados e julgados. Assim, para que os objetivos histricos da classe trabalhadora possam se concretizar, precisamos que toda comunidade escolar participe da sua construo, efetivao e avaliao.

    5 Quando a necessidade desta pesquisa surgiu em nossa prtica pedaggica e o projeto foi

    submetido seleo do mestrado, a inteno era somente analisar as relaes entre a disciplina de Educao Fsica e a organizao do trabalho pedaggico. Porm, a partir de estudos mais aprofundados sobre a temtica e da realidade observada, percebemos que este, no daria conta de atingir as necessidades prticas, ou seja, no conseguiramos apreender a totalidade das determinaes, pois a escola no isolada das demais relaes sociais. Assim, com o delineamento das questes a serem estudadas, e partindo da realidade concreta que estamos vivendo no estado do Rio Grande do Sul, modificamos o foco da pesquisa, sendo que esta reavaliao justificou-se pelas implicaes das polticas educacionais implementadas por este governo (gesto 2007-2010).

    6 Um projeto poltico-pedaggico representa uma inteno, ao deliberada, estratgia. poltico

    porque expressa uma interveno em determinada direo e pedaggico porque realiza uma reflexo sobre a ao dos homens na realidade explicando suas determinaes (COLETIVO DE AUTORES 1992, p. 25).

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    Portanto, para contribuir com a viso de totalidade do aluno necessrio que as disciplinas sejam tratadas como componentes curriculares e possuam articulao com as diretrizes gerais da escola apresentadas no projeto poltico-pedaggico, pois o tratamento articulado do conhecimento sistematizado nas diferentes reas que permite ao aluno constatar, interpretar, compreender e explicar a realidade social complexa (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 28-29).

    Deste modo, a partir do que foi abordado e considerando o vis das polticas educacionais que vem sendo implementadas no estado do Rio Grande do Sul, lanamos mo de algumas hipteses para o estudo, pois segundo Kopnin (1978), a hiptese como um fio que liga um conhecimento a outro. Ela faz o nosso conhecimento avanar porque permite construir um sistema de conhecimento que leva a novos resultados [...]. O valor de uma hiptese consiste em que nela o anteriormente conhecido est relacionado com o novo, o incgnito (p. 247), ou seja, o que desconhecido e se quer saber. Desta forma, no temos dvida de que a hiptese cientfica se desenvolve a partir das necessidades de aquisio do conhecimento objetivo do mundo [...] (p. 250).

    Tendo este entendimento, elencamos trs hipteses para esta pesquisa, sendo elas:

    1. As polticas educacionais implementadas pelo governo do Rio Grande do Sul (gesto 2007-2010) atuam negativamente nas escolas, contribuindo para a no melhoria das condies de ensino e para a precarizao do trabalho docente.

    2. H pouca ou nenhuma existncia, nas escolas, de relaes entre as disciplinas, o que dificulta o direcionamento teleolgico, que ressaltamos ser necessrio. Deste modo, as disciplinas se tornam isoladas, no havendo a relao no trato dos seus conhecimentos com a organizao do trabalho pedaggico ou, mais especificamente, com o projeto poltico-pedaggico da escola.

    Cabe aqui ressaltar que esta segmentao do conhecimento no se d por acaso, visto que tal processo se vincula aos interesses da classe que busca manter a hegemonia do capital. Para tanto, tal classe se utiliza de polticas educacionais implantadas pelo Estado, de modo que se concretize uma organizao do trabalho pedaggico que dificulte a compreenso e a busca da transformao da realidade social de modo geral, e da instituio escolar, em particular.

    Esse processo no acontece de forma diferente no mbito da Educao Fsica, pois como veremos no decorrer do estudo, esta tambm serviu

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    hegemonicamente para atender os interesses da classe dominante. A Educao Fsica assumiu vrios papis no decorrer da histria: serviu para forjar um indivduo forte, saudvel, para a preparao para a guerra, para combater problemas de vcios e de imoralidade incorporando um discurso de educao higienista, dando nfase sade e a formao de hbitos morais.

    Porm, na viso aqui defendida, compreendemos a Educao Fsica como componente curricular, que, como todas as disciplinas, possui um saber acumulado pelo homem que precisa ser transmitido e assimilado pelos alunos na escola. Contudo, entendemos que a organizao do trabalho pedaggico, da forma como est estruturada na atualidade, dificulta esse processo, visto que a mesma possui relao com as necessidades apresentadas pelo capital em detrimento das necessidades humanas. Isso nos conduz terceira hiptese do estudo:

    3. Necessidade de alterao da organizao do trabalho pedaggico nas escolas sob a perspectiva de um projeto histrico que proporcione a emancipao dos trabalhadores.

    Assim, a necessidade de estudar e aprofundar o tema em questo surgiu das experincias vivenciadas pela pesquisadora, enquanto professora substituta do Centro de Educao Fsica e Desportos da Universidade Federal de Santa Maria/RS, onde trabalhou com disciplinas do curso de licenciatura, nas quais havia a realizao de prticas curriculares.

    Aquelas prticas tm como objetivo conhecer alguns elementos relativos ao contexto educacional da escola, atravs de observaes de aulas, do espao fsico, dos materiais, bem como, por meio de conversas e entrevistas com professores da disciplina de Educao Fsica, e ainda, a partir da anlise do projeto poltico-pedaggico, entre outras questes, objetivando uma melhor compreenso das relaes entre os conhecimentos da universidade e a prtica escolar.

    Aps a realizao das atividades, os dados coletados pelos prprios alunos eram socializados com toda a turma, atravs de apresentaes e debates. A partir desse processo, foi possvel realizar algumas constataes, como por exemplo: um nmero significativo de professores de Educao Fsica no participava da elaborao do projeto poltico-pedaggico e das reunies pedaggicas da escola; estes, em sua maioria desenvolvem atividades com carter competitivo, restringindo o ensino dos contedos da cultura corporal; e em alguns casos, foi verificada a falta

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    de conhecimento mais aprofundado dos contedos prprios da disciplina por parte dos professores.

    Assim, com a inteno de aprofundar os estudos acerca desses dados compreendendo que a escola no est dissociada das relaes sociais mais amplas, antes, pelo contrrio, sofre influncia das relaes do modo de produo capitalista, que chega at a escola por intermdio das polticas educacionais, que propomos o seguinte objetivo geral:

    Analisar as implicaes das polticas educacionais do estado do Rio Grande do Sul (gesto 2007-2010) na organizao do trabalho pedaggico da disciplina Educao Fsica de uma escola estadual de Pelotas/RS a partir da relao entre as polticas educacionais gerais e as polticas implementadas pelo governo Estadual.

    Para auxiliar nos desdobramentos da pesquisa, destacamos os seguintes objetivos especficos:

    1) Compreender e traar as relaes entre trabalho e capital que determinam as polticas e as reformas educacionais no Brasil.

    2) Identificar os pressupostos das polticas educacionais nacionais e aquelas propostas por agncias internacionais e suas relaes com as polticas educacionais em curso no estado do Rio Grande do Sul.

    3) Demonstrar a concretude histrica das polticas educacionais atravs da organizao do trabalho pedaggico da disciplina Educao Fsica numa escola da rede estadual de Pelotas.

    Entendemos que existe a necessidade de aprofundarmos os estudos em relao a esta temtica, contribuindo para a reflexo e possveis avanos no que se refere tanto organizao do trabalho pedaggico em si, quanto s relaes estabelecidas entre a disciplina de Educao Fsica e a organizao do trabalho pedaggico.

    Para tanto, torna-se necessrio analisar como as polticas educacionais do governo do estado do Rio Grande do Sul vm influenciando nesta organizao e relao. Isso far com que consigamos compreender a totalidade das determinaes que envolvem o tema pesquisado, de modo a superarmos anlises ingnuas que

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    culpam exclusivamente o professor ou a famlia do aluno pelos problemas educacionais.

    Sendo assim, esta pesquisa se justifica pela necessidade de adentrarmos o contexto escolar e, partindo daquela realidade particular, analisar como se manifesta nela as relaes singulares e gerais, ou seja, como a organizao do trabalho e as polticas educacionais, de modo geral, se manifestam naquela instituio e, de que forma isso acaba interferindo na organizao do trabalho pedaggico e na disciplina curricular Educao Fsica.

    possvel verificar, atravs da anlise sobre o conhecimento historicamente produzido e sistematizado nesta rea, que so poucos os trabalhos que levantam esta problemtica, pois a Educao Fsica tende a ser vista e estudada de forma isolada, o que dificulta, seno impossibilita, a compreenso da relao de seus contedos com o restante do currculo escolar.

    Entendemos que a relao da Educao Fsica com a organizao do trabalho pedaggico, no atual contexto histrico, tem se dado de forma fragmentada, pois as relaes capitalistas impem um ritmo de trabalho acelerado, ocasionando vrias consequncias, dentre as quais, a pouca disponibilidade de tempo para a organizao e participao coletiva, bem como, refora a lgica da ao individual, debate este que ser aprofundado posteriormente.

    Ademais, cabe apontar que nos posicionamos junto aqueles que questionam as polticas educacionais da forma como vm sendo impostas pelo atual governo do estado do Rio Grande do Sul e que ocasionam mudanas significativas no cotidiano escolar, como por exemplo, a enturmao, multisseriao, dentre outros projetos que sero abordados nesta dissertao. Isso porque tais polticas, ao invs de buscarem a superao dos obstculos para conseguirmos apontar uma organizao do trabalho pedaggico que colabore para a emancipao humana7, enveredam no sentido de dificultar ainda mais a mesma.

    Procedimentos Metodolgicos

    O presente estudo foi realizado a partir de um dado projeto histrico, levando em considerao a realidade concreta a qual se encontram os sujeitos desse

    7 Para Marx, emancipao o mltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e a criao de

    uma forma de associao digna da condio humana (BOTTOMORE, 1988, p. 124).

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    processo. Deste modo, questionamos a utilizao do ecletismo terico, pois o mesmo no possibilita que o pesquisador se posicione em uma determinada base, a partir da qual analisa o fenmeno pesquisado. Para ns, a teoria que oferece os instrumentos de pensamento capaz de apreender as mltiplas determinaes da realidade o materialismo histrico dialtico que antes de tudo, uma postura, uma concepo de realidade, de mundo e de vida (FRIGOTTO, 2001).

    Acreditamos que esse mtodo possibilita compreender as relaes entre os fenmenos indo alm da sua aparncia, desvendando as determinaes da sua essncia, pois como nos demonstra Marx (2000), o conhecimento no pode ser produzido a partir do reflexo do fenmeno tal como ele aparece para o homem, ou seja,

    o conhecimento tem que desvendar, no fenmeno, aquilo que lhe constitutivo e que em princpio obscuro; o mtodo para a produo desse conhecimento assume, assim, um carter fundamental: deve permitir tal desvendamento, deve permitir que se descubra por trs da aparncia o fenmeno tal como realmente, e mais, o que determina, inclusive, que ele aparea da forma como o faz (ANDERY et al., 2001, p. 407).

    Destacamos que no por acaso que escolhemos tal referencial terico, pois entendemos que o mtodo dialtico constitui-se em uma importante ferramenta terica para o desenvolvimento de pesquisas, capaz de possibilitar o alcance de respostas concretas, partindo da realidade objetiva e permitindo a anlise da totalidade das relaes, ou seja, entre o geral e o singular no fenmeno particular estudado (CHEPTULIN, 1982). O mesmo elucida a permanente tenso entre capital e trabalho, compreenso essa necessria para analisarmos criticamente o contexto atual, pois como j mencionava Marx e Engels (2003, p. 45), a histria de todas as sociedades que existiram at hoje a histria de luta de classes.

    Este mtodo atende aos princpios de objetividade, totalidade, provisoriedade, contradio, espiralidade e historicidade, presentes no processo de conhecimento que ocorre durante a relao sujeito-objeto (ANDERY et al., 2001), contribuindo fortemente para a compreenso da necessidade das transformaes histricas da Educao e Educao Fsica, especialmente neste caso, rea escolar.

    O materialismo histrico dialtico permite que essa relao se d pela e na prxis, entendida aqui como a atividade consciente objetiva, sem que, por outro lado, seja concebida com o carter estritamente utilitrio que se infere do significado

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    do prtico na linguagem comum (SNCHEZ VZQUEZ, 2007, p. 28), na qual as condies materiais de vida de uma dada sociedade determinam nossos pensamentos, consequentemente, nossa prtica social.

    Portanto, se pretendemos compreender o que determina a organizao do trabalho pedaggico hoje e as suas relaes com a disciplina de Educao Fsica, precisamos apreender, no nvel do pensamento, quais os objetivos que esto postos para a educao na perspectiva do capital, bem como o papel das polticas educacionais, enquanto mediadoras deste processo. A partir disso, poderemos traar estratgias e tticas para atuarmos na superao destas determinaes.

    Concordamos com Frigotto (2001), que precisamos compreender que no processo dialtico de conhecimento da realidade o que importa, fundamentalmente no a crtica pela crtica, o conhecimento pelo conhecimento, mas a crtica e o conhecimento crtico para uma prtica que altere a realidade anterior no plano do conhecimento e no plano histrico-social (p. 81). Assim, precisamos estar em constante processo de construo e atualizao frente a nossa prtica para que possamos desenvolver a pesquisa de forma coerente, possibilitando desvelar as determinaes que envolvem o contexto estudado.

    Para nos auxiliar nesse processo de apreenso do conhecimento, elencamos algumas categorias, visto que as mesmas so

    o resultado, a generalizao da experincia multissecular dos homens, do seu trabalho e conhecimento. Entrando em contato, no processo de atividade prtica, com os objetos e fenmenos do mundo e conhecendo-os, o homem destacou neles o essencial e o geral e fixou os resultados disso em categorias, em noes [...]. Portanto, as categorias so resultado da atividade prtica e cognoscitiva do homem, so graus de conhecimento pelo homem do mundo circundante (AFANSSIEV, 1985, p. 124).

    Em outros termos, como coloca Lnin (apud AFANSSIEV, 1985, p. 124), o homem tem perante si uma rede de fenmenos da natureza. O homem instintivo, o selvagem, no se destaca da natureza. O homem consciente destaca-se, as categorias so degraus de destacamento, isto , do conhecimento do mundo.

    Deste modo, as categorias tambm assumem um importante papel na cincia, tendo em vista que colaboram para analisar a complexa rede de fenmenos que envolvem um dado problema de pesquisa, de modo a revelar as interligaes e dependncias mtuas dos fenmenos; a ordem e as leis do seu movimento e desenvolvimento; e, em conformidade com isso, colabora para que o pesquisador alcance com xito a sntese de seu estudo.

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    Dentre outras categorias de grande relevncia ao nosso estudo, destacamos, neste momento, a de explicao e compreenso, pois as duas se do como resultado dos processos de anlise, sntese e do movimento; da passagem do real emprico ao abstrato e deste ao concreto (processos e categorias que se articulam na dinmica do processo de conhecimento (SNCHEZ GAMBOA, 2007, p. 105).

    Ressaltamos tambm as categorias quantidade-qualidade, pois elas modificam-se, complementam-se e transformam-se uma na outra e vice-versa, quando aplicadas a um mesmo fenmeno. De fato, as duas dimenses no se opem, mas se inter-relacionam como duas fases do real num movimento cumulativo e transformador, de tal maneira que no podemos conceb-las uma separada da outra (SNCHEZ GAMBOA, 2007, p. 105).

    A partir desta breve apresentao da importncia das categorias no desenvolvimento de estudos cientficos e em particular do nosso estudo -, faremos abaixo uma descrio de quais os instrumentos e processos utilizados para a coleta, interpretao e sistematizao dos dados desta pesquisa.

    Assim, o procedimento inicial que possibilitou a apropriao da problemtica do estudo foi buscar, dentro das possibilidades objetivas, a produo do conhecimento em relao mesma. As tcnicas e procedimentos utilizados para o desenvolvimento da pesquisa foram o levantamento bibliogrfico; observao de aulas de Educao Fsica; anlise de contedo; entrevista semi-estruturada; e dirio de campo.

    Optamos pela utilizao da entrevista semi-estruturada por compreendermos que esta segundo Trivios (2007, p. 152) mantm a presena consciente e atuante do pesquisador [], favorecendo assim, no s a descrio dos fenmenos sociais, mas tambm sua explicao, e, a compreenso de sua totalidade, tanto dentro de sua situao especfica como de situaes de dimenses maiores.

    No que se refere s observaes, empregamos a tcnica de observaes livres paras as aulas de Educao Fsica dos professores participantes do estudo, para melhor analisarmos a prtica pedaggica dos mesmos. Para Trivios (2007), na observao livre faz-se necessrio ter presentes dois aspectos de natureza metodolgica que so muito importantes. Um deles relacionado com a amostragem de tempo, e o outro, com as denominadas Anotaes de Campo (p.153, grifos no original). Em nosso estudo a amostragem de tempo se deu de forma aleatria, mas

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    levando em considerao os dias e horrios de trabalho de cada professor na escola estudada.

    Vale ressalta, ainda que as reflexes sobre o desenvolvimento do processo de observao so muito importantes. Cada fato, cada comportamento, cada atitude, cada dilogo que se observa pode sugerir uma idia, uma nova hiptese, a perspectiva de buscas diferentes, a necessidade de reformular futuras indagaes, de colocar em relevo outras, de insistir em algumas peculiaridades, etc. (TRIVIOS, 2007, p. 157).

    Assim, utilizamos as anotaes de campo que passamos a chamar dirio de campo em todas as observaes, conversas formais e informais, registrando as informaes e posteriormente refletindo, discutindo e analisando-as.

    Outro procedimento utilizado foi a anlise de contedo, para avaliar e tratar das informaes documentadas, ou seja, que de alguma forma foram registradas. Fazem parte deste, tanto os documentos da escola, como o projeto poltico-pedaggico, os documentos referentes as polticas educacionais do governo do estado do Rio Grande do Sul, que foram retirados de diversas fontes, entre elas: jornais, revistas, site oficial do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), bem como, o portal do estado do Rio Grande do Sul e da Secretaria do Estado do Rio Grande do Sul.

    Essa tcnica, segundo Chizzotti (2000, p. 98), se aplica a anlise de textos escritos ou qualquer comunicao (oral, visual ou gestual) reduzida a um texto ou documento. Ainda, segundo este autor, a anlise de contedo tem o objetivo de compreender criticamente o sentido das comunicaes, seu contedo manifesto ou latente, as significaes explicitas ou ocultas (p. 98).

    Trivios (2007, p. 160) corrobora com o emprego desse mtodo, para desvendar as ideologias que podem existir nos dispositivos legais, princpio e diretrizes, etc., que, simples vista, no se apresentam com a devida clareza. Por outro lado, o mtodo de anlise de contedo em alguns casos, pode servir de auxiliar para instrumento de pesquisa de maior profundidade e complexidade, como o , por exemplo, o mtodo dialtico. Neste caso, a anlise de contedo forma parte de uma viso mais ampla e funde-se nas caractersticas do enfoque dialtico.

    A partir desses procedimentos, o passo seguinte foi a anlise, o tratamento dos dados obtidos, que segundo Frigotto (2001, p. 88) representa o esforo do investigador de estabelecer as conexes, mediaes e contradies dos fatos que constituem a problemtica pesquisada.

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    Dessa forma, os dados coletados, tanto das entrevistas que foram transcritas, como dos documentos e o relato das observaes das aulas, foram categorizados na fase de anlise dos dados. Esclarecemos que estas categorias podem ser estabelecidas antes do trabalho de campo, na fase exploratria da pesquisa, ou a partir da coleta de dados (GOMES, 1994, p. 70), ficando a escolha, a critrio do pesquisador e do andamento da pesquisa.

    Para a realizao da pesquisa de campo elencamos uma escola, visto que a inteno do estudo realizar uma anlise aprofundada, tendo em vista responder ao objetivo proposto. Pra isso, primeiramente foi necessrio elencar alguns critrios, para a sua seleo e para auxiliar nesta tarefa entramos em contato com o CPERS e com a Coordenadoria Regional de Educao (CRE). Ressaltamos que houve algumas dificuldades para a seleo e contato com a escola delimitada. Mas resolvidas estas questes, demos incio a coleta de dados. Os procedimentos e a anlise dos dados coletas encontram-se mais detalhados no captulo trs desta dissertao.

    O caminho percorrido para a sistematizao do estudo

    Neste item, abordaremos a forma que sistematizamos o estudo para alcanarmos o objetivo proposto, de maneira que possamos melhor compreender a sua lgica de estruturao. Em outros termos, apontaremos como estruturamos o estudo de modo que, de uma sntese precria que possuamos acerca do tema pesquisado, no seu ponto de partida, avanamos para uma sntese orgnica concreto pensado - no seu ponto de chegada.

    Assim, para compreendermos como as polticas educacionais do governo do estado do Rio Grande do Sul vm influenciando na organizao do trabalho pedaggico e na sua relao com a disciplina de Educao Fsica realizamos na introduo uma breve anlise acerca da atual reestruturao produtiva e das exigncias que a mesma vem realizando na formao do novo trabalhador. Diante disso, fizemos alguns apontamentos de como essas necessidades do capital esto sendo levadas para dentro das escolas, atravs de polticas educacionais de vis neoliberal, que influenciam na organizao do trabalho pedaggico, ocasionando, com isso, implicaes para as disciplinas, dentre elas a Educao Fsica.

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    Na tentativa de dar maior base a este debate, no captulo que segue, intitulado: Neoliberalismo, poltica educacional e reforma educacional no Brasil, trazemos mais elementos acerca da relao trabalho-capital, pois entendemos que esta a base, a partir da qual surgem as necessidades impostas pelo capital aos diversos elementos da superestrutura, dentre as quais, educao. Tambm abordamos o papel da escola na sociedade capitalista e como, historicamente, ocorre a organizao do trabalho pedaggico na mesma. Em seguida, apresentamos uma discusso acerca das polticas educacionais e da influencias dos organismos internacionais tais como; o Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional e a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a cincia e a Cultura (UNESCO), nas diretrizes educacionais no Brasil. Demonstrando que as mesmas esto sendo implementadas na tentativa de colaborar na superao das sucessivas crises que o modo de produo capitalista perpassa.

    No captulo 2, intitulado: Polticas educacionais e reformas da educao: A realidade do Rio Grande do Sul buscamos demonstrar como as polticas educacionais que vem sendo implementadas pelo governo deste Estado, na gesto 2007-2010, possuem sintonia com as polticas educacionais de carter liberal ditadas no mbito internacional e nacional. Abordamos como est ocorrendo o processo de implementao destas polticas, principalmente a partir dos chamados programas estruturantes8. No que se refere a relao da organizao do trabalho pedaggico na disciplina de Educao Fsica, descrevemos como a mesma sistematizada nas diferentes tendncias pedaggicas da Educao Fsica e apontamos a proposta Crtico-Superadora, como referncia para uma prtica pedaggica que venha a atender aos interesses da classe trabalhadora.

    J, no captulo 3, buscamos demonstrar como as polticas educacionais do governo do Estado vm se efetivando na prtica escolar. Para isso, realizamos uma pesquisa de campo em uma escola da rede estadual. A partir da coleta e anlise dos dados possvel demonstrar como se d a organizao do trabalho pedaggico e quais as implicaes das polticas educacionais do Estado, para as escolas e para a prtica pedaggica dos professores.

    8 Os Programas Estruturantes atendem aos trs eixos estabelecidos pelo Governo para retomar o

    crescimento do Rio Grande do Sul: Desenvolvimento Econmico Sustentvel, Desenvolvimento Social e Finanas e Gesto Pblica. O programa Boa escola para todos est inserido no segundo eixo: Desenvolvimento Social, e foi o nico analisado para fins desta dissertao.

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    Tomando como base as discusses e anlises realizadas nos captulos anteriores, conclumos o trabalho de modo a realizar uma sntese das implicaes das polticas educacionais na organizao do trabalho pedaggico e em especial no componente curricular Educao Fsica, demonstrando a necessidade de uma educao voltada aos interesses da classe trabalhadora.

  • 1 NEOLIBERALISMO, POLTICA EDUCACIONAL E A REFORMA EDUCACIONAL NO BRASIL

    Neste captulo, apresentamos uma discusso de como o capital, por intermdio de polticas e reformas de perspectiva neoliberal, vm influenciando o trabalho pedaggico e a Educao Fsica, a partir de suas necessidades. Para tanto, cabe ressaltar que, para se ter uma melhor compreenso dos determinantes que envolvem a poltica educacional, deve-se considerar que a mesma articula-se ao projeto de sociedade que se pretende implantar, ou que est em curso, em cada momento histrico, ou em cada conjuntura [...] (AZEVEDO, 2004, p. 60).

    1.1 A relao entre trabalho, capital e educao

    O primeiro pressuposto de toda a existncia humana e, portanto, de toda a histria, que os

    homens devem estar em condies de viver para fazer histria. Mas, para viver preciso antes de

    tudo comer, beber, ter habitao, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histrico , portanto, a

    produo dos meios que permitam a satisfao destas necessidades, a produo da prpria vida

    material [...] (MARX e ENGELS, 1987, p. 39)

    Para tratar da educao e das polticas educacionais, temos que, antes de tudo, compreender a prpria constituio do ser social, visto que, em ltima instncia, aquelas emanam das necessidades colocadas aos homens no decorrer da produo de sua vida. nesse sentido que, antes de darmos incio ao debate mais especfico sobre as polticas educacionais, faremos uma breve discusso acerca deste aspecto.

    Entendemos que a constituio do ser social se d atravs do trabalho, tanto em sua dimenso ontolgica, independente do modo de produo no qual est inserido, quanto na dimenso histrica, que possui os aspectos de determinado contexto social, portanto, possuindo atualmente as caractersticas prprias do modo de produo capitalista.

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    Como exposto na epgrafe, segundo Marx e Engels (1987), os homens precisam estar em condies de viver para fazerem histria. Assim, para se manterem vivos, necessariamente precisam produzir seus meios de subsistncia, independente da sociedade na qual se encontram. Para tanto, o homem interage com a e natureza, modificando-a e, atravs deste processo, o homem se constri e se educa, o que ocorre atravs do trabalho. Por isso, a categoria trabalho torna-se central, pois a partir dela que os homens organizam, no decorrer da histria, suas relaes sociais.

    Nesse sentido, o trabalho possui a caracterstica de atividade prtica consciente, ou, trabalho concreto, na perspectiva de Marx, pois o homem um ser social e consciente, e o que leva esse homem a transformar a natureza, e, nesse processo a si mesmo, a satisfao de suas necessidades (ANDERY et al., 2001, p. 407). Alm de considerar o seu desenvolvimento a partir da necessidade de produo dos seus meios de subsistncia, o homem, como ser histrico, produz tambm novas necessidades. Necessidades essas que so histricas, sociais, e, portanto, passveis, tambm, de serem modificadas e transformadas.

    No entanto, o trabalho, ao longo da histria, tem assumido caractersticas peculiares, a partir das relaes de produo estabelecidas. No sistema vigente, ou seja, no capitalismo, temos o trabalho assalariado, no qual o trabalhador vende a sua fora de trabalho aos donos dos meios de produo. Com esse aspecto, o trabalho se torna alienado, com caractersticas de fragmentado, pois o trabalhador perde a percepo de que atravs de sua atividade que ele modifica a natureza e a si mesmo, de tal forma que sua fora de trabalho utilizada pelo capital para criar o valor de suas mercadorias.

    Atravs dessa apropriao e da explorao desta fora, vemos que o capital possui objetivos bem definidos, como o lucro na produo das mercadorias por meio da extrao da mais-valia, que se constitui, segundo Marx (2006, p. 115), em horas de sobretrabalho. Assim,

    a taxa de mais-valia, se todas as outras circunstncias permanecem invariveis, depender da proporo entre a parte da jornada de trabalho necessria para produzir o valor da fora de trabalho e o excedente de tempo, ou sobretrabalho, realizado para o capitalista. Depender, por isso, da proporo em que a jornada de trabalho prolongada alm do tempo durante o qual o operrio, com o seu trabalho, reproduz apenas o valor de sua fora de trabalho, ou repe o seu salrio.

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    Diante disso, para que possamos melhor compreender as relaes do trabalho assalariado que temos no sculo XXI, apresentamos, em linhas gerais, o processo histrico que define as mesmas, visto que o capitalismo no nasceu simplesmente como o conhecemos hoje, mas percorreu um grande caminho, cheio de contradies, conflitos e luta de classes, to, ou mais, intensos que os atuais.

    A partir de uma anlise histrica de como era o trabalho antes da industrializao, Fernndez Enguita (1989), desmistifica a viso de que o trabalho assalariado uma melhoria evidente em relao s outras formas de trabalho, como o servil e o escravo. O autor inicia seu resgate histrico, a partir do sculo II, e relata que dos 355 dias do calendrio Romano, 109 eram nefastos, ou seja, dedicados a festividades religiosas ou ao cio.

    J, nos sculos XVIII e XIX, existiam muitos meios coercitivos para conseguir operrios, pois ningum queria submeter-se s condies de trabalho nas fbricas. O trabalho de arteso, agricultor, dentre outros, satisfazia muito mais e era menos cansativo do que o trabalho industrializado. Porm, quem no queria trabalhar nas fbricas era considerado vagabundo.

    Segundo Fernndez Enguita (1989), para coagir os homens a se submeterem s condies de trabalho que comeavam a ser criadas, em primeiro lugar, foi necessrio privar as pessoas de outras possibilidades de subsistncia e para isso foi foroso arrancar os camponeses do campo; em segundo lugar, houve a organizao de uma longa cadeia de conflitos globais entre os patres e os trabalhadores. Em terceiro lugar, foi necessria uma profunda revoluo cultural, pois a cultura e as tradies dos camponeses e arteses foram substitudas pela ideologia capitalista do livre mercado (p. 28). Em quarto lugar, houve uma sistemtica poltica repressiva dirigida contra os que se negavam a aceitar as novas relaes sociais (p. 29) e, por ltimo, mas no menos importante, foi necessrio assegurar os mecanismos institucionais para que os indivduos pudessem inserir-se de forma no conflituosa nas novas relaes.

    Atravs da histria do trabalho, podemos perceber que se fazia necessrio um lugar no qual as pessoas pudessem percorrer em anos o caminho que seus antecessores ou a espcie percorreram em sculos (FERNNDEZ ENGUITA, 1989, p. 30), isto antes de se incorporarem ao trabalho, obviamente.

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    Muitas instituies contriburam para esse papel, entre elas o exrcito. Mas, era preciso inventar algo melhor, e inventou-se e reiventou-se a escola; criaram-se escolas onde no as havia, reformaram-se as existentes e nelas se introduziu fora toda a populao infantil. A instituio e o processo escolares foram reorganizados de forma tal que as salas de aula se converteram no lugar apropriado para acostumar-se s relaes sociais do processo de produo capitalista, no espao institucional adequado para preparar as crianas e jovens para o trabalho (FERNNDEZ ENGUITA, 1989, p. 30-31).

    Podemos dizer ento que, entre os mecanismos institucionais que tiveram o objetivo de condicionar as pessoas s necessidades que surgiam no incio do processo de organizao do modo de produo capitalista, est, em primeiro lugar, o exrcito, e depois, a escola.

    Ainda em relao ao processo histrico de desenvolvimento da sociedade, perceptvel que os trabalhadores pr-industriais pareciam valorizar mais o seu cio do que o dinheiro e o consumo, e, tambm por isso, no queriam se submeter aos trabalhos nas fbricas. A jornada de trabalho, naquele perodo, era intensa, porm eles podiam interromper o trabalho a qualquer momento, para comer, beber, ir ao banheiro, etc.

    Desde a instaurao do fordismo no sculo XX, este processo sofreu grandes modificaes, pois temos horrios determinados para tudo. As horas-extras passaram a fazer parte da rotina das pessoas, sem falar nos domingos e feriados nos quais os trabalhadores so obrigados a vender sua fora de trabalho. O consumismo leva ao extremo cada comemorao, como por exemplo: festas religiosas, dia das mes, dia dos namorados, dia das crianas, entre vrios outros, pois o capital, para manter sua hegemonia diante de sua crise estrutural (MSZROS, 2009), necessita e induz a este crescente consumo.

    Diante disso, o trabalho passou a ser um fardo para boa parte dos trabalhadores, seno a maioria deles, pois estes precisam se submeter a qualquer tipo de trabalho para ganhar o seu sustento. O trabalho que deveria ser prazeroso, atender as necessidades materiais, fazer parte da vida dos seres humanos, humanizar os homens, passou a ser, no aspecto individual, apenas um meio de subsistncia, algo externo vida.

    Por estarmos inseridos nesse contexto, muitas vezes no conseguimos imaginar o trabalho de outra forma. Porm, segundo Fernndez Enguita (1989), a organizao social do trabalho muito recente, assim como a nossa maneira de

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    conceber a mesma. Este autor, baseado em Clawson (1980) afirma que a organizao atual do trabalho e a cadncia e seqenciao atuais do tempo de trabalho no existiam em absoluto no sculo XVI, e apenas comearam a ser implantadas precisamente ao final do sculo XVIII e incio do sculo XIX (p. 04).

    Alm dos aspectos anteriormente citados, cabe salientar que o capitalismo necessita atuar de maneira significativa no mbito ideolgico para sustentar sua organizao alienante e que possui como fundamento a explorao de uma classe (burguesa) sobre a outra (trabalhadora). Neste aspecto, Fernndez Enguita (1989) menciona que o capital procura sustentar uma imagem de existncia de oportunidades para todos, o que bem sabemos, no corresponde realidade. Tal fato acaba por motivar a sensao de fracasso, a perda de estima e a auto-culpabilizao.

    O que se procura inculcar nos sujeitos que todos os homens possuem oportunidades iguais, mas que os mesmos no so todos iguais. Assim, a partir da naturalizao das relaes de subordinao de uma classe social sobre a outra, as pessoas passam a admitir e aceitar as desigualdades, afinal, segundo esta lgica, existe possibilidades para todos e, se alguns conseguem porque souberam aproveit-las e se esforaram para isso. Nesse sentido, o fracasso ligado falta de esforo individual.

    Porm, diferente do discurso dirio da classe dominante, o que ocorre na realidade que neste modo de produo no existe oportunidades a todos. Pelo contrrio, faz parte da lgica do sistema o chamado exrcito de reserva, que nada mais do que um contingente de trabalhadores desempregados a espera de emprego, os quais so obrigados a trabalhar por um salrio que, na maioria das vezes, somente permite aos mesmos satisfazerem as necessidades bsicas para poderem continuar a venda da fora de trabalho.

    O sistema capitalista (de)forma as pessoas para que as relaes de precarizao do trabalho, que se estabelecem, sejam naturalizadas e, para isso, a escola possui um papel fundamental.

    Mesmo tendo apontado esta relao entre escola e o modo de produo, antes de entrarmos mais especificamente no papel que a escola vem desempenhando (o que ser desenvolvido no prximo item), iremos tecer algumas consideraes sobre a organizao do trabalho neste modo de produo. Faremos

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    isso com a inteno de que possamos compreender de maneira mais concreta de onde e por quais motivos surgem tais necessidades colocadas escola atualmente.

    Como j foi explicitado, o capitalismo possui na essncia de sua relao capital-trabalho, a explorao atravs do trabalho assalariado, onde os trabalhadores so obrigados a vender a sua fora de trabalho por no possurem outra maneira de subsistncia. No entanto, constantemente o capital se reestrutura e, diante destas reestruturaes, cria algumas especificidades na organizao do trabalho. Citamos brevemente9 aqui os modelos de organizao da produo: Fordista, Taylorista e Toyotista.

    Denomina-se Fordismo/Taylorismo, o binmio que consolidou a relao entre indstria e o processo de trabalho. Este busca o barateamento e o aumento do consumo. Para isso, implanta o parcelamento das tarefas, cada operrio executa gestos simples na fabricao de um determinado produto, atravs da chamada gerncia cientfica do trabalho, ou seja, racionalizando as operaes efetuadas pelos operrios, evitando desperdcio de tempo e ampliando a mais-valia relativa10 (ANTUNES, 2005).

    O surgimento do fordismo com sua integrao vertical apoiou-se nos mtodos gerenciais do taylorismo, implantando a esteira rolante com a produo em massa ditando o ritmo da produo. O objetivo era possibilitar um barateamento dos produtos e resultante aumento de lucro. Como consequncia, desarticulou a viso de totalidade reajustando as funes dos operrios para repetir apenas determinadas aes durante toda a jornada de trabalho. Temos assim a alienao11 deste processo, sua desqualificao, perda da dimenso criativa, bem como o prolongamento da jornada de trabalho (ANTUNES, 2005).

    9 No nossa inteno aprofundar o assunto, apenas situar como vem se dando a organizao do

    trabalho neste modo de produo. Para maior apropriao acerca deste tema, consultar: Antunes (2000; 2005); Katz, Braga & Coggiola (1995); Gounet (1999); Pinto (2008).

    10 A mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta;

    a mais-valia que, ao contrrio, decorre da reduo do tempo de trabalho e da correspondente mudana da proporo entre os dois componentes da jornada de trabalho chamo de mais-valia relativa (MARX, 1996, p. 431-432).

    11 Para Bottomore (1988, p. 05) alienao, no sentido que lhe dado por Marx, [ a] ao pela qual

    (ou estado no qual) um indivduo, um grupo, uma instituio ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua prpria atividade (e atividade ela mesma), e/ou natureza na qual vivem, e/ou a outros seres humanos e [...] a si mesmos (s suas possibilidades humanas constitudas historicamente).

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    Entretanto, diante da crise que perpassou o capitalismo na dcada de 1970, este modelo produtivo no mais deu conta de manter as altas taxas de lucro do capital e, por esse motivo, surgiu a necessidade de uma reorganizao do processo produtivo de modo que uma das alternativas adotadas foi a de ampliar ainda mais a mundializao do capital (CHESNAIS, 1996).

    Em outros termos, o capital adota a ttica de expandir cada vez a um maior nmero de esferas da vida humana a sua lgica baseada na apropriao privada do processo e do produto do trabalho coletivo, buscando, assim, retomar suas taxas de lucro e manter sua hegemonia.

    Ainda, outra ttica utilizada nas ltimas dcadas do sculo XX e, atualmente, no sculo XXI, a elaborao de um novo modelo de organizao da produo, denominado de Toyotismo, que surge na empresa Toyota pelas peculiaridades do Japo restrio do consumo em massa, demanda diversificada, procura de carros menores. Surge, ento, o Just in Time (tempo justo), produo de vrios modelos diferentes, produo flexvel e diminuio do tempo de adaptao das mquinas para produo de modelos diferenciados (NOZAKI, 2004).

    Busca-se com isso a eliminao de todo desperdcio possvel, mantendo na indstria um ncleo central e terceirizando o que no agrega valor: transporte, estocagem, controle de qualidade, etc. Essas modificaes influenciam tambm os trabalhadores, que esto tendo que se adaptar tornando-se mais flexveis, com contratos onde acabam tendo que abrir mo de direitos conquistados historicamente, com tempo de trabalho flexveis, e aumento da mais-valia absoluta.

    Hoje, fala-se na flexibilizao da produo, pela especializao flexvel; nesta, segundo Antunes (2000, p. 24), buscam-se novos padres de gesto da fora de trabalho, dos quais os Crculos de Controle de Qualidade (CCQs), a gesto participativa, a busca da qualidade total [...], so alguns dos meios utilizados.

    Para isso, como veremos com mais profundidade no item onde abordamos as polticas educacionais, mudam tambm as bases educacionais, pela demanda da formao flexvel, abstrata, polivalente, formando um indivduo com competncias voltadas a este perfil. Neste contexto de transformaes encontramos a escola que hegemonicamente pertenceu aos interesses da burguesia e tem em seu cerne a diviso entre trabalho intelectual e manual.

    Neste sentido torna-se relevante conhecer como se estabelecem as relaes de trabalho, para que possamos compreender as implicaes destas para a

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    educao, pois acreditamos ser, hegemonicamente, a socializao para o mercado do trabalho, como est posto hoje, uma das funes primordiais da escola capitalista. A escola, portanto, tm o papel de socializar as crianas e adolescentes para o trabalho assalariado, a partir da exigncia da pontualidade, da organizao, dos contedos que so trabalhos e os valores que so transmitidos, das relaes de competio que se estabelecem, a hierarquia no processo de gesto, entre outras.

    Ainda, em relao s estratgias utilizadas pelo capital para recompor suas taxas de lucro frente crise dos anos 1970, no podemos deixar de realizar consideraes sobre a minimizao da responsabilidade do Estado para com os setores sociais, atravs das privatizaes de direitos pblicos essenciais como: sade, educao, esporte e lazer, entre outros, que mediante as polticas neoliberais se tornam mercadorias comercializadas na iniciativa privada e que em muito vm influenciando nas atuais polticas e reformas educacionais.

    O neoliberalismo, segundo Anderson (1995, p. 09) nasceu logo depois da II guerra mundial, na regio da Europa e da Amrica do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reao terica e poltica veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar.

    Algumas importantes caractersticas do neoliberalismo ou, seus princpios bsicos, podem ser assim vistos: a mnima participao do Estado nos rumos da economia (tido mais como princpio do que como efetiva ao); abertura da economia para a entrada de capital internacional; nfase na globalizao; diminuio (enxugamento) dos gastos com o setor social (educao, sade, esporte e lazer).

    No entanto, alm dessa funo de diminuir os gastos do Estado com as demandas sociais, outra funo desempenhada pelo neoliberalismo e que Anderson (1995) aponta como sendo a que mais obteve xito - a de cumprir importante papel ideolgico, na medida em que j no nega a inexistncia de trabalho a todos, porm, coloca que todos possuem condies iguais de insero no mercado de trabalho e, portanto, cabe ao indivduo se esforar para alcanar seu emprego.

    Assim, o neoliberalismo atua tambm no mbito individual, inculcando o individualismo e a competio acirrada entre os trabalhadores, de modo a dificultar em muito a organizao destes, que acabam entendendo este processo como algo natural, deixando assim o caminho livre para que o capital aumente suas taxas de

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    explorao da fora de trabalho, ampliando desta maneira seus lucros e mantendo sua hegemonia.

    Esta lgica seguida pelas polticas educacionais, pois a conjuntura, no Brasil, tem demonstrado que a hegemonia das ideias liberais tem como reflexo o forte avano do capital sobre a organizao dos trabalhadores, que ocorreu na dcada de 90 e vem se mantendo at os dias atuais. Como interlocutores desta perspectiva nas atuais polticas educacionais, temos os mecanismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial.

    Ademais, como bem coloca Gentili (1995, p. 244), a concepo neoliberal [...] ataca a escola pblica a partir de uma srie de estratgias privatizantes, mediante a aplicao de uma poltica de descentralizao autoritria e, ao mesmo tempo, mediante uma poltica de reforma cultural, que pretende apagar do horizonte ideolgico de nossas sociedades a possibilidade mesma de uma educao democrtica, pblica e de qualidade para as maiorias. Uma poltica de reforma cultural que, em suma, pretende negar e dissolver a existncia mesma do direito educao.

    desta forma que o capital atua na escola para direcion-la ainda mais no sentido de colaborar para a diminuio dos obstculos para a manuteno de sua hegemonia. Este direcionamento para atender aos seus interesses se d, de maneira concreta, na forma como o trabalho pedaggico organizado dentro daquelas instituies, a qual bastante influenciada pelas polticas educacionais e que, muitas vezes, infelizmente, tm sido aceitas sem maiores discusses e questionamentos.

    Em decorrncia disso, como consequncias desse novo jeito de formar, temos que os estudantes esto sendo educados cada vez mais para atenderem as necessidades do capital, de modo a servirem de mo-de-obra barata ao mercado de trabalho, o qual, cada vez , se encontra mais precarizado.

    1.2 A escola e sua organizao do trabalho pedaggico na sociedade capitalista

    Ao pensar a educao na perspectiva da luta emancipatria, no poderia seno restabelecer os vnculos to

    esquecidos entre educao e trabalho, como que afirmando: digam-me onde est o trabalho em um

    tipo de sociedade e eu te direi onde est a educao. Em uma sociedade do capital, a educao e o

    trabalho se subordinam a essa dinmica, da mesma forma que em uma sociedade em que se universalize o trabalho uma sociedade em que todos se tornem

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    trabalhadores -, somente a se universalizar a educao (SADER, 2005, p. 17).

    Diante das novas demandas do capital que exige uma especializao flexvel, torna-se necessrio analisar como este processo vem se manifestando na escola, que, segundo Freitas (2000, p. 83), ainda o local privilegiado, onde o ensino se d de forma mais sistematizada, desenvolvida e intencional na sociedade capitalista. O autor ainda afirma que em uma sociedade como a nossa a contradio [entre o atual estgio de conhecimento do aluno e seu futuro estgio] est modulada por outra maior (contradio entre classes sociais no seio da produo capitalista) (p. 96), ou seja, est atrelada contradio capital-trabalho. Por isso, torna-se necessrio compreendermos a organizao do trabalho na sociedade capitalista, para entendermos a organizao do trabalho na escola, visto que uma influenciada pela outra.

    A partir disso, podemos nos questionar at que ponto as mudanas no mundo do trabalho afetam a organizao do trabalho nas escolas? E quais os impactos das reformas educacionais na organizao do trabalho pedaggico e, mais especificamente, na prtica pedaggica da Educao Fsica, no interior das escolas?

    Para que possamos compreender melhor tais manifestaes, importante realizar uma breve retomada do processo histrico de criao e desenvolvimento da escola, pois a compreenso deste processo que nos possibilitar um melhor entendimento do papel que ela desempenha hoje, ou seja, como tal instituio atende s necessidades de manuteno da estrutura de organizao do atual modo de produo.

    Para tanto, antes de tudo, precisamos compreender que no nascemos, e sim nos tornamos humanos por meio da criao de condies da existncia humana, que ocorre atravs do intercmbio do homem com a natureza e com os outros homens.

    Conforme nos esclarece Taffarel (2009b, s/p), ao longo da histria da humanidade podemos constatar que, em diferentes formaes econmicas, ocorreram as relaes de produo dos bens materiais e espirituais necessrios para manter a vida. Assim, no processo de assegurar as condies de existncia humana, foi sendo criada a cultura e o conhecimento, sendo que, mais recentemente, foi desenvolvido o conhecimento cientfico.

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    Segundo Kopnin (1978, p. 122), para que o conhecimento se constitua num meio de assimilao prtica dos processos e objetos, deve possu-los em seu contedo, refletir as propriedades e leis da realidade objetiva e no ver as coisas apenas tais quais so dadas na natureza como v-las tais quais elas podem ser como resultado da nossa atividade prtica.

    Em outras palavras, o homem conhece a realidade objetiva atravs das percepes, representaes e noes, mas, ele no somente sofre, como tambm exerce uma influncia sobre tal realidade, atravs da prtica.

    Disso podemos afirmar que o conhecimento surgiu na base da prtica, mais precisamente sob a influncia da produo material da vida dos homens. Isso porque, desde os primeiros passos da humanidade o homem viu-se obrigado a trabalhar, no sentido de modificar a natureza, para obter seus meios de vida. O trabalho, portanto, se constitui em uma prtica social e, foi a partir deste processo que o homem se deparou com as foras da natureza, e pouco a pouco foi conhecendo-as, transformando-as e fazendo-as servir aos seus prprios interesses (AFANSSIEV, 1985).

    Segundo o mesmo autor, com o avano do desenvolvimento das foras produtivas, surge, tambm, a necessidade de novos conhecimentos, tais como os matemticos, para medir terras e contar instrumentos; as leis da mecnica, para as irrigaes, construo de moradias e estradas e, neste mesmo processo de desenvolvimento da humanidade, com sua complexificao, surge tambm a necessidade de conhecimentos sistematizados nos parmetros cientficos. O que podemos perceber neste processo que o desenvolvimento das capacidades cognoscitivas dos homens decorrente do avano das necessidades prticas, ao mesmo tempo em que o influencia.

    Mas, este conhecimento produzido historicamente, tem a necessidade de ser transmitido de gerao para gerao, caso contrrio, sempre que os problemas da prtica surgissem, a humanidade teria que criar novamente um conhecimento que j havia sido criado anteriormente. Isso, certamente, tornaria lento, seno impossvel o desenvolvimento da humanidade.

    Inicialmente, de maneira especial no modo de produo da vida denominado de comunismo primitivo, esta transmisso ocorria de pais e mes para filho(as), no prprio processo de trabalho. No entanto, com o passar do tempo e, com a instituio de modos de produo que cindem a sociedade em classes sociais, que

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    dividem o trabalho em: trabalho manual e trabalho intelectual; que fazem uma grande diviso entre cidade e campo; surge tambm a necessidade de uma maior sistematizao destes conhecimentos, tanto para darem conta das necessidades da prtica na relao homem-natureza, quanto para as necessidades prticas relativas s relaes homem-homem. Essa sistematizao ocorre, de forma predominante, nas instituies escolares (SAVIANI, 2005).

    Cabe ressaltar que a maneira com que este conhecimento foi sendo sistematizado nos diferentes modos de produo possui ntima relao com as necessidades de manter e perpetuar o mesmo. Ou seja, as especificidades relativas organizao do trabalho pedaggico e prpria organizao da instituio escolar, so decorrentes das necessidades apresentadas por cada modo de produo, tanto para mant-lo (de forma hegemnica), quanto para super-lo (atravs das organizaes de resistncia).

    Assim, [...] de um modo de produo ao outro, podemos constatar como ocorreu e ocorre at a atualidade, a passagem do acervo cultural de uma gerao outra. A educao, portanto, enquanto fato histrico, foi se desenvolvendo de um modo de produo ao outro, dentro de condies objetivas que determinam os rumos que pode ter o processo de formao humana, ou seja, o processo de nos tornarmos humanos (TAFFAREL, 2009b, s/p).

    Em ltima instncia, queremos dizer com isso que os homens - diferente dos animais que j nascem com seu acervo biolgico, instintivo, os quais os mantm vivos precisam frequentar a escola para garantir a sua existncia como tais, visto que , predominantemente, nesta instituio que, atualmente, lhe proporcionado o acesso aos conhecimentos relativos aos bens produzidos pela humanidade, de maneira sistematizada.

    Como j assinalamos, no que se refere a este processo de sistematizao do conhecimento, podemos conceber que a institucionalizao da educao correlata do processo de surgimento da sociedade dividida em classes que, por sua vez, tem a ver com o processo de aprofundamento da diviso do trabalho.

    Nas sociedades primitivas, caracterizadas pelo modo coletivo de produo da existncia humana, a educao consistia numa ao espontnea, no diferenciada das outras formas de ao desenvolvidas pelo homem, o que coincidia inteiramente com o processo de trabalho que era comum a todos os membros da comunidade. No entanto, com a diviso da sociedade em classes, a educao

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    tambm se torna dividida; em consequncia, ocorre uma diferenciao entre a educao destinada classe dominante, daquela a qual tem acesso a classe dominada (SAVIANI, 2005).

    Deste modo, a partir do advento da sociedade de classes, com o aparecimento de uma classe que no precisa trabalhar para viver, surge a educao diferenciada. E a que est localizada a origem da escola. A palavra escola em grego significa o lugar do cio. Portanto, a escola era o lugar a que tinham acesso as classes ociosas. A classe dominante, a classe dos proprietrios, tinha uma educao diferenciada que era a educao escolar. Por contraposio, a educao geral, a educao da maioria era o prprio trabalho: o povo se educava no prprio processo de trabalho. Era o aprender fazendo. Aprendia lidando com a realidade, aprendia agindo sobre a matria, transformando-a (SAVIANI, 1996, p. 152).

    Partindo destas consideraes sobre a origem da escola, se analisarmos esta instituio numa perspectiva histrica12, desde sua origem at os dias de hoje, podemos perceber que ela passa por um processo de desenvolvimento contnuo, no entanto, com rupturas, referentes s necessidades apresentadas escola mediante os diferentes modelos de organizao da sociedade. Em outros termos, considerando que a instituio escolar, que possui uma organizao do trabalho pedaggico, sofre tambm influncia da organizao do trabalho produtivo, inserido no contexto atual do modo de produo capitalista, necessrio considerarmos estas rupturas, visto que a mesma faz com que a escola atenda diferentes necessidades colocadas em diferentes contextos.

    Esta influncia que a organizao do trabalho pedaggico sofre, referente organizao do trabalho produtivo no se d de maneira direta, mas sim, atravs de mediaes. Uma importante mediao neste processo exercida pelas polticas educacionais, visto que elas direcionam a maneira que se realiza o trabalho na instituio escolar.

    Freitas (2000, p. 99) em sua anlise da organizao do trabalho pedaggico expe que no interior da atual organizao da escola, o trabalho desvinculado da prtica social mais ampla, seja porque a concepo de conhecimento que orienta a organizao da escola admite a separao sujeito/objeto, teoria/prtica, seja porque a escola nasceu como escola para as classes ociosas [...].

    Para compreender essas anlises, Freitas (2000, p. 94) elenca algumas categorias (provisrias) da escola na sociedade capitalista: os objetivos

    12 Consultar Manacorda (1989).

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    gerais/avaliao da escola (como funo social); e o contedo/forma geral do trabalho pedaggico da escola do qual destaca a artificialidade da vida escolar separada da produo material, a fragmentao do trato com o conhecimento e a gesto da escola na sua forma autoritria e alienante.

    Deste modo, ainda segundo este autor, os objetivos demarcam o momento final da objetivao/apropriao. A avaliao um momento real, concreto e, com seus resultados, permite que o aluno se confronte com o momento final, idealizado, antes, pelos objetivos (FREITAS, 2000, p. 95). Em relao ao contedo/mtodo da escola o autor destaca trs aspectos cruciais: a ausncia do trabalho material socialmente til, como princpio educativo; a fragmentao do conhecimento na escola; e a gesto da escola (p. 97).

    O trabalho material a produo de bens materiais que garantam a subsistncia humana, com a consequente produo em escalas cada vez mais amplas e complexas (SAVIANI, 2005). J o trabalho no-material trata da produo de idias, conceitos, valores, smbolos, hbitos, atitudes habilidades [...], trata-se da produo do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto , o conjunto da produo humana (p. 12). A educao situa-se na categoria do trabalho no-material.

    Deste modo, como foi exposto anteriormente, ao longo das dcadas a funo social da escola tem se modificado, conforme as necessidades de cada poca. Segundo Paro (2008, p. 110), um dos motivos pelo qual a escola se mostra necessria classe dominante justamente porque ela pode servir como libi na justificao ideolgica das desigualdades sociais geradas no nvel da estrutura econmica e impossveis de serem solucionadas pelo capitalismo.

    A ordem vigente tenta inculcar a ideologia de que todos somos iguais, que o modo de organizao social capitalista justo e, por isso, para solucionar os problemas de desigualdades causados pelo prprio sistema, basta que todos tenham oportunidades. Assim, no contexto da sociedade capitalista, a escola apresentada como um instrumento que serve de equalizao social, na medida em que, atravs dela, as pessoas podem adquirir conhecimentos, habilidades, ou at mesmo o domnio de uma profisso, que lhes possibilitaro ascender na escala social (PARO, 2008).

    Entendemos que a escola no possui este domnio, ou seja, a escola por si s no tem condies de corrigir as desigualdades sociais. No entanto, a surge a

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    grande questo que este modo de organizao social coloca, pois a partir do momento que a maioria da populao passa anos na escola, e se submete a essa inculcao ideolgica, passa a acreditar que se no conseguir, a culpa ser sua, pois no soube aproveitar as possibilidades que lhe foram proporcionadas.

    O que atende aos interesses dominantes no , pois, nem a completa negao formal e real da escola, nem sua afirmao e generalizao, mas sua existncia tal qual ela se d em nossa sociedade, ou seja, uma escola que, distribuindo desigualmente o saber, ratifica as diferenas sociais inerentes sociedade capitalista. Por isso, enquanto a nfima minoria de crianas e jovens, pertencentes s camadas privilegiadas, pode contar com a educao escolar de boa qualidade, a escola da grande maioria mal sobrevive em meio aos problemas e carncias de toda ordem, apresentando baixssimo nvel de ensino (PARO, 2008, p.111-112).

    Para Mszros (2005), a questo crucial, sob o domnio do capital, assegurar que cada indivduo adote como suas prprias, as metas de reproduo deste modo de produo. Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo educao, trata-se de uma questo de internalizao [...] (p. 45). Desta forma, a educao propicia a internalizao das condies de legitimidade do sistema que explora o trabalho como mercadoria, aceitando isso passivamente, ou seja, de forma alienada.

    Porm, a escola no serve somente para reproduzir os interesses das classes dominantes, pois tem o papel fundamental de transmitir os conhecimentos que foram historicamente produzidos e acumul