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29/11/2009 33 SALVADOR DOMINGO 32 SALVADOR DOMINGO Eclética avenida Texto PEDRO FERNANDES [email protected] Fotos THIAGO TEIXEIRA [email protected] Nos 3.800 pontos comerciais e de ambulantes espalhados ao longo da Avenida Sete, encontra-se de tudo, inclusive um pouco da história da cidade Q uem procura algo e pede sugestão de onde en- contrar, é certo que vai ouvir um quase condicio- nado “Avenida Sete”. E é mesmo difícil não en- contrar de tudo num dos 3.800 pontos comer- ciais e bancas de vendedores ambulantes que se estendem por seu 1,3 quilômetro. A avenida co- meça oficialmente na Praça Castro Alves e termina no Farol da Bar- ra. Mas o lugar ao qual o soteropolitano se refere, sem se dar ao trabalho de dizer o nome completo, é o trecho entre a praça e a Casa D’Itália. Reza a lenda que, ali procurando, tudo dá. Por dia, cerca de 600 mil pessoas circulam por lá. Em 1996, o número não passava de 90 mil. Segundo Haroldo Nuñez, presi- dente do Fórum Municipal para o Desenvolvimento Sustentável do Centro da Cidade, ela passa por um bom momento. “Lá, não se encontra um ponto comercial vago”. Os pontos podem ser lojas, restaurantes, hotéis. O preço de um desses espaços, a depender da localização, fica entre R$ 100 mil e R$ 1 milhão. “Conseguimos revitalizar a área, agora queremos fazer dela o maior shopping a céu aberto do Norte-Nordeste”. A requalificação à qual Haroldo se refere está em fase de dis- cussão na Prefeitura de Salvador. O projeto pretende implantar mudanças substanciais na avenida. Além de aumentar os passeios, Saída do Relógio de S. Pedro a caminho da Castro Alves

Eclética avenida

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Reportagem sobre a Avenida Sete de Setembro, centro de comércio popular de Salvador, na Revista Muito

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29/11/2009 33SALVADOR DOMINGO32 SALVADOR DOMINGO 2 9 / 1 1 / 20 0 9

Ec l é t i c aavenida

Texto PEDRO FERNANDES [email protected] THIAGO TEIXEIRA [email protected]

Nos 3.800 pontos comerciais e de ambulantesespalhados ao longo da Avenida Sete, encontra-sede tudo, inclusive um pouco da história da cidade

Quem procura algo e pede sugestão de onde en-

contrar, é certo que vai ouvir um quase condicio-

nado “Avenida Sete”. E é mesmo difícil não en-

contrar de tudo num dos 3.800 pontos comer-

ciais e bancas de vendedores ambulantes que se

estendem por seu 1,3 quilômetro. A avenida co-

meça oficialmente na Praça Castro Alves e termina no Farol da Bar-

ra. Mas o lugar ao qual o soteropolitano se refere, sem se dar ao

trabalho de dizer o nome completo, é o trecho entre a praça e a Casa

D’Itália. Reza a lenda que, ali procurando, tudo dá.

Por dia, cerca de 600 mil pessoas circulam por lá. Em 1996, o

número não passava de 90 mil. Segundo Haroldo Nuñez, presi-

dente do Fórum Municipal para o Desenvolvimento Sustentável do

Centro da Cidade, ela passa por um bom momento. “Lá, não se

encontra um ponto comercial vago”. Os pontos podem ser lojas,

restaurantes, hotéis. O preço de um desses espaços, a depender da

localização, fica entre R$ 100 mil e R$ 1 milhão. “Conseguimos

revitalizar a área, agora queremos fazer dela o maior shopping a

céu aberto do Norte-Nordeste”.

A requalificação à qual Haroldo se refere está em fase de dis-

cussão na Prefeitura de Salvador. O projeto pretende implantar

mudanças substanciais na avenida. Além de aumentar os passeios,

Saída do Relógio de

S. Pedro a caminho

da Castro Alves

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«Aqui já foi ótimo.Mas ninguém maisanda com dinheiro;preferem comprarno supermercado»Joacyr Ramos, ambulante

com a eliminação das vagas de estaciona-

mento, pretende revitalizar praças e subs-

tituir o calçamento. Outra ação é a realo-

cação dos ambulantes para outras áreas do

Centro. Uma possibilidade é ao lado do

Convento da Lapa.

Hoje, quem vai à Avenida Sete sabe da

dificuldade que é caminhar por suas calça-

das. Muitas vezes as pessoas preferem an-

dar no meio da rua. Elas passam apressa-

das e cheias de desconfiança. Mal param

para falar com a reportagem, desviam,

alegam pressa. Reflexo condicionado para

se livrar de vendedores insistentes, distri-

buidores de panfletos e de crédito fácil.

TEM TUDOPerto da Igreja de São Bento, um am-

bulante que vende um unguento suposta-

mente capaz de curar todo mal (de vermes

a artrite) sintetiza a avenida no que diz res-

peito à concentração de serviços e benefí-

cios. Ele é a prova de que ali tem mesmo de

tudo. Mas, cuidado. Sem aviso, o vendedor

puxa a mão do curioso, a besunta com o

líquido fedido e discorre sobre o óleo.

Logo ali ao lado, está o lugar perfeito pa-

ra a fuga: a Igreja de São Bento. Lá, o es-

pírito se abate sobre o século independen-

temente de crença. O silêncio, promovido

pelas grossas paredes que isolam o local

do barulho de carros e pessoas, é suficiente

para colocar o visitante novamente em

contato consigo.

Depois, vem o som suave do órgão e as

vozes serenas dos monges em seu canto

gregoriano. Para os que creem, é hora de

se livrar dos pecados pelo sacramento da

confissão. Para os que não creem, observar

os rostos mais serenos após o ato de con-

trição é uma distração capaz de livrá-los por

alguns momentos dos seus próprios pesos

espirituais.

E pensar que por pouco, em 1912, todo

o conjunto arquitetônico do mosteiro de

São Bento poderia ter desaparecido para

dar lugar ao progresso e à modernização

da cidade. Ao menos era o que queria o go-

vernador José Joaquim Seabra, o homem

que naquele ano começou a construir a

Avenida Sete de Setembro.

Antônio Risério conta, no livro Uma His-

tória da Cidade da Bahia, que, influenciado

pela reforma urbana do Rio de Janeiro, J.J.

Seabra queria dar uma cara mais moderna

a Salvador e começou um projeto de urba-

nização que Risério chama de predatório.

De acordo com o historiador Luís Hen-

rique Dias Tavares, uma igreja demolida foi

a de São Pedro, destruída para a constru-

ção da Praça Barão do Rio Branco. A cons-

trução datava do século 18. A paróquia te-

ve de se mudar para a esquina da Praça da

Piedade com a Avenida Sete.

As Mercês (no alto), os passeios cheios e

malcuidados da avenida (ao lado) e

a Igreja de São Pedro (acima)

TRADIÇÃODe lá até os dias atuais, muita coisa mu-

dou na avenida. Prédios modernos se mes-

claram aos que restaram dos antigos. Mas,

ainda assim, a tradição há de permanecer.

É de 1975 uma das mais antigas lancho-

netes da avenida. Perto do Relógio de São

Pedro, a Savoy está sob a terceira adminis-

tração. Desde 2005, Sérgio e Rosa Krus-

chewski comandam o lugar.

Mudaram o atendimento de balcão pa-

ra o bufê por quilo e colocaram mesas do

tipo praça de alimentação. Mas o bolo de

tapioca com cobertura de doce de leite é há

30 anos o carro-chefe da casa. “Vem gente

com embalagens especiais para levar para

o exterior”, conta Rosa.

A receita não mudou ao longo dos anos.

Ela ainda é feita pela mesma cozinheira. E o

resultado é sempre o mesmo. Duas cama-

das de bolo, macio, quase cremoso, com

coco fresco ralado e cobertura de doce de

leite feito com leite condensado.

Testemunha das transformações na

avenida, Joacyr Ramos, 63, não arreda o

pé de lá. Ele tem uma banca de frutas na

altura da Rua do Rosário há 13 anos. De

Avenida Sete, são mais de 55. “Aqui já foi

ótimo. Construí minha casa e eduquei

meus filhos. Mas está cada vez pior”.

Não tanto pelo sol na cabeça ou pelo pe-

so que precisa carregar. Mas pelas vendas,

que só tendem a cair. O motivo, ele crê, é a

falta da máquina de cartão de débito e cré-

dito. “Ninguém mais anda com dinheiro.

As pessoas preferem comprar no super-

mercado”. É tanto trabalho para conseguir

uma que ele acabou desistindo.

Há menos tempo que seu Joacyr, Mar-

tinho Santos, 46, também tem freguesia

garantida. Perto das Mercês, vende suas

folhas para tudo quanto é enfermidade.

Romã para dor de garganta, milome para

o fígado ou para pôr dentro da cachaça. Os

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GAS T R Ô QUEIJO

Saborforte

Texto LIANA ROCHA [email protected] THIAGO TEIXEIRA [email protected]

Como nem só de mussarela vive o homem,baianos começam a se aventurar num novomundo de sabores (e peculiares odores)

males do espírito também podem ser cu-

rados com suas ervas. É por isso que no fi-

nal do ano as vendas sempre aumentam.

Mas a cada ano a tendência é a queda, por

conta das religiões evangélicas, que asso-

ciam as ervas às religiões afro-brasileiras.

Também trabalhando como ambulan-

te, Bárbara dos Santos, 41, aposta na va-

riedade. Vende o artesanato que faz em

sandálias de borracha, calculadora, flor de

crochê para o cabelo, trufa de chocolate.

Ela diversifica para ter sempre o que vender

nesses tempos de crise. Antes da atual, a

dos noticiários, viveu uma outra crise que a

levou para o comércio de rua. Trabalhava

em uma loja de aluguel de roupas até que

foi demitida.

Na época, estava grávida e só esperou

ter o bebê para começar a procurar empre-

go novamente. Diante da dificuldade, foi à

prefeitura, se legalizou e colocou sua guia

na rua. Já faz três anos, e ela não se arre-

pende. “É prazeroso. Toda hora a gente co-

nhece alguém diferente. Do morador de

rua ao turista”.

Mas não é só de comércio que vive a ave-

nida. Seu Hamilton Guimarães, 83, é um

dos tantos senhores que se sentam diaria-

mente nos bancos da Praça da Piedade pa-

ra ver as tardes passarem em conversas so-

bre política, família, paqueras. “Cada qual

vai desabafando o que tem para dizer e tro-

cando conhecimentos”, explica.

Começou a ir à praça para fugir da so-

lidão e se “distrair da falta” que experimen-

tou logo após perder a esposa. Lá se vão 18

anos. “Depois que o sujeito se aposenta, o

local ideal para ficar é aqui. Não bebo nem

fumo para ficar em porta de boteco”.

Foi assim, fugindo da solidão, procuran-

do conversa fiada, que encontrou um novo

amor. Há três anos mora com ela. Na Ave-

nida Sete, não importa o que se procura,

sempre acaba por se encontrar. «

Banca de ervas

no meio da rua.

Seu Joacyr

vendendo frutas.

E o povo

andando no

asfalto perto do

São Bento