Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
ECOLOGIA DE SABERES
Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o
saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
EDIELSO MANOEL MENDES DE ALMEIDA
SAtildeO PAULO
2016
2
Almeida Edielso Manoel Mendes de
Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber
popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute Edielso Manoel Mendes de
Almeida 2016
227 f
Tese (doutorado) ndash Universidade Nove de Julho - UNINOVE Satildeo
Paulo 2016
Orientador (a) Profordf Drordf Ana Maria Haddad Baptista
1 Ecologia de saberes 2 Diversidade epistemoloacutegica 3 Saber
popular 4 Amazocircnia
I Baptista Ana Maria Haddad II Titulo
CDU 37
3
ECOLOGIA DE SABERES
Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o
saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
___________________________________________________________________
Orientadora Prof Dra Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador I Prof Dra Diana Navas (PUCSP)
________________________________________________________________
Examinador II Prof Dra Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)
________________________________________________________________
Examinador III Prof Dr Mauriacutecio Silva(UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador IV Prof Dr Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)
________________________________________________________________
Suplente Prof Dra Carminda Mendes Andreacute (UNESP)
________________________________________________________________
Suplente Prof Dr Joseacute Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)
Aprovadoem __________________
Tese apresentada agrave Universidade Nove de Julho
junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em
Educaccedilatildeo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Educaccedilatildeo pela banca examinadora formada por
4
AGRADECIMENTOS
A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e
experiecircncias
A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-
me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo
Paulo
A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela
recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo
A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel
Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente
no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese
Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se
disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores
A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de
Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu
paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante
sua existecircncia neste mundo
A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de
caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto
E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo
foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um
de noacutes
5
RESUMO
Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do
diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular
das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a
pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros
saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso
epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a
partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes
no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica
pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas
foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular
produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do
municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo
etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo
teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo
na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos
ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos
professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal
(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o
diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo
reconhecimento do saber popular
Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular
Amazocircnia
6
ABSTRACT
This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog
between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in
Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers
pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same
class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos
communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the
school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity
and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents
memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As
well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge
dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were
compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that
these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is
a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo
Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this
search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and
the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked
with social economical cultural and religion contexts where they are These people
establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About
dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal
(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur
vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not
recognized
Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge
Amazon
7
RESUMEN
Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio
del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla
del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los
docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de
las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la
investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros
conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de
caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar
un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los
conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien
como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los
conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su
conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en
Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas
por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio
de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco
comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el
estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento
propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo
Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado
con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas
pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En
relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce
verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de
praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la
imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular
Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular
Amazonia
LISTA DE FOTOGRAFIAS
8
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira
Paraacute
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de
Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho
Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 16 - Escola Polo
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Fotografia 24 ndash Matapi
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Fotografia 27 ndash Marupazinho
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
9
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno
Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da
disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
LISTA DE TABELAS
10
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea
urbana
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no
ano de 2016
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino
fundamental por professor
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
LISTA DE MAPAS
11
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute
LISTA DE SIGLAS
12
CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazocircnia
CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos
ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e
Manganecircs
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano
INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas
IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica
LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional
MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo
NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo
PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo
PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio
PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento
PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico
SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo
SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute
SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia
UEPA - Universidade do Estado do Paraacute
UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute
SUMAacuteRIO
13
APRESENTACcedilAtildeO 15
INTRODUCcedilAtildeO 19
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24
11A ECOLOGIA DE SABERES 24
111O Paradigma hegemocircnico 24
112 A crise do paradigma hegemocircnico 26
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28
114 A criacutetica da razatildeo indolente 30
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas
dosoprimidos
38
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42
122A colonialidade do poder 47
123 Gnose ou pensamento liminar 53
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80
23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85
231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99
241 Educaccedilatildeo Infantil 99
242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130
411 Saberes das Aacuteguas 134
412 Saberes da Terra e da Mata 147
14
413 Saberes do Accedilaiacute 156
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164
421 O Conhecimento Escolar 164
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166
422O Livro Didaacutetico 173
423O Planejamento das Aulas 180
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva colonizadora
181
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva descolonizadora
183
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193
5CONCLUSAtildeO 206
REFERENCIAS 214
APEcircNDICES
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227
APRESENTACcedilAtildeO
15
Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e
a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos
multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo
seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural
Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei
cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na
qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais
culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo
Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia
com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas
aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar
milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e
vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo
econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para
navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para
pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto
Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute
que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que
quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os
meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos
poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando
em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino
fundamental
Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes
repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha
linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos
considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas
aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu
nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para
sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante
considerada correta culta e hegemocircnica
Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para
o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do
Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na
16
educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui
aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos
meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois
nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas
das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra
No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no
Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores
para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-
formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas
comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o
caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho
Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a
responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4
sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e
as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de
formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes
multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na
Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui
designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para
o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)
Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo
de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino
fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir
sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura
era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez
reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a
isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a
questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo
1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil
17
escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores
das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das
regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos
do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida
decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos
obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam
constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das
Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)
Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da
Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto
na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a
ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de
pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho
O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de
janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da
turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao
sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias
constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional
e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas
do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele
lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava
longe do que estabelecem as leis
No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado
do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas
ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de
Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do
Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos
de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de
ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado
5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata
18
Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte
da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma
faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no
decorrer desta tese
INTRODUCcedilAtildeO
Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o
conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no
acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como
19
objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do
Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha
Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo
de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na
visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico
(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas
de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e
religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute
essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa
relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico
O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento
da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da
articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo
Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e
educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado
Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com
nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual
haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a
realidade na qual vivemos
O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter
garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-
accedilatildeo)
Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular
dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes
multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na
ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute
A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato
que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo
em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos
professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de
aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas
20
multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo
ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e
tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum
encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes
multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao
reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de
conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)
O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo
com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram
contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo
consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos
ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do
total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado
administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos
de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada
pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade
geograacutefica da regiatildeo
O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no
mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica
pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na
referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem
saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no
doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o
escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica
do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente
Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional
Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais
dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios
e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o
transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-
los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que
7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas
21
exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado
regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a
pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as
escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da
pesquisa8
Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo
problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam
em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das
comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga
com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por
isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos
moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar
como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a
relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos
culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute
O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago
do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior
ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo
Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria
das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica
denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela
Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do
lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo
com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea
em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de
propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois
a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que
8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local
22
a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma
formosa obra em palafitas
O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas
divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que
estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo
que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo
regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas
situadas na ilha do Accedilaiacute10
Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a
construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o
saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias
aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo
capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia
realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas
em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos
e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local
da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo
dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a
cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o
qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata
e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo
entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos
professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute
classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras
e as descolonizadoras
9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha
23
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA
Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que
balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas
11 A ECOLOGIA DE SABERES
Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta
apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos
24
uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um
novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo
das ecologias
111O Paradigma hegemocircnico
Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo
do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo
XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu
marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute
Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos
sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental
De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a
Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu
matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)
que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes
sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo
diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo
ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a
comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo
dos fenocircmenos
Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz
ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica
dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na
experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe
fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)
Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da
intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a
verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso
do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes
sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo
cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do
objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)
Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na
qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito
superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o
25
caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos
processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa
filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)
Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou
a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo
desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado
umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva
da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)
Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo
e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta
forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza
para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da
ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista
na Europa que
[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo
Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado
pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode
ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser
considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido
Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de
mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o
objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo
classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o
conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica
Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute
cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como
vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas
Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do
conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais
26
e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila
previsibilidade ordem e estabilidade
Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais
emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente
possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se
hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam
pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das
ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo
da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim
que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava
uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias
sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos
(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por
mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma
cientiacutefico
112 A crise do paradigma hegemocircnico
Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a
ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania
epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma
emergente
Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise
[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)
Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente
gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da
relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os
questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e
biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo
interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou
quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente
mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a
inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo
27
se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem
p 56)
Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de
formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas
pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a
concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da
microfiacutesica da quiacutemica e da biologia
Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram
cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo
reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus
limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido
autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo
num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo
demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que
caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade
Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do
fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do
pensamento
A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)
No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende
a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as
sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O
questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante
dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos
(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade
Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma
moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder
econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as
relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no
interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos
28
contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses
perifeacutericos (SANTOS2008)
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente
Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um
discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que
denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute
somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas
pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-
natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as
ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda
[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)
Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais
e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos
estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre
os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do
conhecimento
Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno
caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade
etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p
46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da
dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia
perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa
hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem
sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser
temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro
uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos
grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais
Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo
Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento
as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta
29
forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente
assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do
sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto
e sobre o proacuteprio sujeito
Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa
constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento
cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu
reconhecimento
A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)
As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades
sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica
feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor
destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais
evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo
paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a
coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia
geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)
Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na
Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas
fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal
Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a
epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo
Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o
queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das
constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias
dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante
eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos
diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)
11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007
30
O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de
culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis
Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das
aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes
possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos
construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)
socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade
crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades
e subjetividades
Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza
questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir
da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir
114 A criacutetica da razatildeo indolente
A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia
nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a
produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental
excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da
validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que
requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-
se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais
destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as
revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo
A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)
A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista
que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade
cultural deixando-as na invisibilidade
12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia
31
Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e
colonialismo
Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial
Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus
modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os
e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento
por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica
Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do
colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto
relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e
discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes
e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e
dominam as relaccedilotildees internacionais
Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume
maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que
caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de
outras perspectivas epistemoloacutegicas
O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)
Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de
colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e
Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a
loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio
reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo
(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na
supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e
32
silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos
interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica
econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo
missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo
colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se
passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do
imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo
e a si mesmos
O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo
dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside
tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O
propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do
reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a
partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo
somente as econocircmicas
Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim
como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem
manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul
Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)
Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida
pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas
nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos
situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade
do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias
sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade
individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)
Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da
experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas
comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo
produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do
33
autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais
e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna
O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-
colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta
mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar
as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do
sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul
requer um rompimento com o Norte imperial
[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao
Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo
colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)
Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas
mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os
restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida
em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS
2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas
bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber
institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi
produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo
Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver
o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo
que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza
epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida
de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente
por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica
Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da
retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que
facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes
homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p
25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo
do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las
de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias
cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do
mundo que diferem da hegemocircnica
34
Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a
hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim
acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais
experiecircncias
[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)
Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras
maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes
satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade
que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute
ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como
natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute
ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As
ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do
saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala
dominante e a do produtivismo capitalista
Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares
natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista
reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas
nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental
Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos
que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo
invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver
ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes
povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo
cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um
contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo
marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das
populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar
seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para
35
o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio
de validaccedilatildeo do seu saber
A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura
Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a
resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem
como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos
desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos
selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem
totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos
e demais adjetivos pejorativos
Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como
referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de
organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo
reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com
isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres
encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados
A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de
naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo
satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas
satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que
difere do padratildeo dominante
A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as
ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular
e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em
decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto
inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o
hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo
escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de
alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto
de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora
No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode
ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias
satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica
capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo
36
consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de
ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o
improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e
globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo
Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo
as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente
invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade
agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias
consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees
sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo
cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da
transescala e das produtividades
A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear
existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por
exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a
derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das
estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute
plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que
possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a
presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres
vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em
determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que
nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de
proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o
jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como
afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou
afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo
No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das
desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram
colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da
categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas
13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio
37
sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura
uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo
espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita
de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a
pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute
ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS
1997 p 31)
Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que
parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos
como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees
locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de
resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas
experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com
atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta
contra a exclusatildeo social
Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a
ecologia das produtividades que consistem no
[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)
A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois
abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo
global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo
democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa
equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em
relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As
pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias
que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios
e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia
Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a
diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por
38
contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A
seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso
objeto de estudo
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos
oprimidos
A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica
que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de
explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que
norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes
eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da
globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e
fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer
os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos
dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os
saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados
Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o
que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos
fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que
ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre
esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a
hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir
[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)
Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os
diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o
que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados
superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o
respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo
intercultural
15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam
satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)
39
Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva
intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade
a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao
longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do
diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas
na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos
discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal
E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de
descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica
sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas
estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber
dominante ou entre qualquer tipo de saber
A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do
diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o
autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das
estruturas do poder
Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute
[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila
Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na
colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da
geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a
interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por
meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh
(2006 p 21)
mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica
Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais
econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos
40
submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa
perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo
permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a
negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas
Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade
indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da
democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os
diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados
Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos
transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo
intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de
partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas
como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA
hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural
transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e
pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)
Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas
o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura
aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos
unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para
o dialogo cabe a cada grupo cultural
A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)
O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros
e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os
protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no
tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser
incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a
hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da
culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou
diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve
41
ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a
igualdade nos descaracteriza
Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural
Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois
pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos
neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos
mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto
isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende
aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto
refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa
loacutegica
Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)
Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua
capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros
No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado
para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo
concreta nas praacuteticas sociais
A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e
epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o
saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada
pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta
maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES
TEOacuteRICAS
Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os
conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com
o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos
Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a
finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees
dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo
Freireana
42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais
Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento
intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia
epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados
Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo
abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o
rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo
Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo
diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido
o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de
acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes
situaccedilotildees de opressatildeo
Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como
um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e
articulado
Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica
Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do
colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e
Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de
opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor
que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said
que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como
o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria
a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As
abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos
modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento
O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto
por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-
colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no
pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)
43
ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais
europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo
do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno
Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram
para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da
diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno
falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos
especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da
impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo
(SPIVAK 2010 p 12)
Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por
volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as
obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad
y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-
asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart
Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos
Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate
poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)
Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito
de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para
discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata
essa concepccedilatildeo
Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)
Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo
nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para
o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana
motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo
44
Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo
Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do
pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos
[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais
Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade
destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil
Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das
principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e
ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo
Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos
uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado
grupo
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Integrante
Aacuterea
Nacionalidade
Universidade onde leciona
Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru
Enrique Dussel
Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico
Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua
Immanuel Wallerstein
Sociologia Estadounidense Yale University Eua
Santiago Castro-Goacutemez
Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia
Nelson Maldonado-Torres
Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
Ramoacuten Grosfoacuteguel
Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
45
Edgardo Lander
Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela
Arthuro Escobar
Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua
Fernando Coronil
Antropologia Venezuelana University of New York Eua
Catherine Walsh
Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador
Boaventura Santos
Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal
Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina
Fonte Luciana Ballestrin 2012
Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes
para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre
elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos
culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo
do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo
Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de
Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para
a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para
Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado
O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte
espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas
externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura
para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-
mundo capitalista
Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)
O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de
expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema
interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo
46
delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos
se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo
Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as
desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas
poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas
histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente
reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo
(WALLERSTEIN 1999 p459)
Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas
de funcionamento totalizando trecircs
Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)
O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos
sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco
seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a
soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no
acircmbito do sistema-mundo vigente
A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-
mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de
colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da
classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o
domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais
122A colonialidade do poder
A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal
Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao
poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas
relaccedilotildees com o capital e o trabalho
47
Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que
atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas
entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura
global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total
controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma
determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial
diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a
soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza
como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas
formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em
uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica
Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da
matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)
Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade
nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo
por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por
intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla
pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e
pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a
necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que
teoricamente teriam sido superados na modernidade
Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e
poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute
visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees
poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza
e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou
superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)
A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da
modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a
modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma
positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma
violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo
desenvolvimento e democratizaccedilatildeo
ParaQuijano (2000 p342)
48
La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America
A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos
histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as
relaccedilotildees de poder global na atualidade
No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi
construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado
De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas
quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da
sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis
de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle
do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade
eurocentrada
A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo
da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado
Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em
categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e
amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do
seacuteculo XVIII europeu
E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)
Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de
legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a
superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica
inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da
pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-
se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo
construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo
49
Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de
afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental
que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia
as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO
2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave
elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a
construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de
dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de
dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos
povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade
e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas
mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos
subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo
com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten
subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como
el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder
carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que
estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo
Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer
do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em
seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos
morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio
e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo
Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)
Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de
ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a
diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio
do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de
produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo
das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos
que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo
50
simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a
imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos
aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a
religiosa
Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia
os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo
mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas
A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)
Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de
produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do
capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se
baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas
agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia
natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos
iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando
nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos
mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos
seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi
transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica
raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o
trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade
Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com
os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual
iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo
dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e
dominaacute-los
A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)
ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual
estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos
51
ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa
sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem
p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da
economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do
sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados
economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)
Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma
forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade
para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo
sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo
psiacutequica tambeacutem esteja presente
Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem
agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos
eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora
Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja
fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que
se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente
Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da
populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos
europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como
os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais
avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo
de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno
possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela
estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse
modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois
[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)
Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter
exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa
sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada
52
em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe
uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de
modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual
sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca
que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo
central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em
consequecircncia seu campo central de conflito
Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente
global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua
tese
Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade
o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta
Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas
baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de
praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera
central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo
da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees
hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos
O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da
Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do
processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de
produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder
colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo
esse modo de construir conhecimento
[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente
53
hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica
Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento
hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos
Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo
subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de
conhecimento
No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram
segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos
descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto
social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo
relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem
considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores
123 Gnose ou pensamento liminar
Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em
[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)
Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que
historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica
constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo
opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia
a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme no
sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose
enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes
54
marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da
hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras
Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo
com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como
formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a
categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade
do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios
espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio
da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta
maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo
a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava
a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo
XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global
gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para
as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado
a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte
nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)
O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a
reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado
territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se
defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da
mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave
condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)
O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila
colonial que eacute concebida como
[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)
55
Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas
quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma
enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim
enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a
descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica
ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio
marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica
No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o
questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas
dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em
paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila
O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e
na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente
uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar
Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando
no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta
maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite
pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o
direito agrave filosofia e agrave ciecircncia
Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em
liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus
privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e
conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular
folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual
fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra
razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e
na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica
Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento
natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo
de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da
legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e
emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e
absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos
liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute
56
pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento
liminar
[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)
Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento
da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes
subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica
eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo
construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria
agrave descolonizaccedilatildeo
Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre
modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois
uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a
formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em
suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos
modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial
universal e abstrata (MIGNOLO 2003)
Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila
colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se
teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com
a localizaccedilatildeo geograacutefica
No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na
descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo
a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico
Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)
Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute
diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto
discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo
do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade
eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema
57
mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria
modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a
extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como
consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da
articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das
praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A
preocupaccedilatildeo do autor eacute
[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)
Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-
colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos
deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem
conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave
mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades
econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e
silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa
as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema
moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de
saberes liacutenguas culturas e povos
O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que
assim como o pensamento liminar
[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)
58
O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo
subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos
saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo
eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a
partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute
eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias
limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente
marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)
O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute
uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das
diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e
qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de
consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)
reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas
para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da
diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo
se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros
paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo
O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e
validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas
existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo
discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras
Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres
humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos
para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens
mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo
eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e
reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo
doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da
contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees
a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o
diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua
importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo
59
A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar
transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido
quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso
amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute
pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo
Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra
a todos
Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)
Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem
ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa
exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente
sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para
posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o
diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o
outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o
diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo
social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a
seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para
que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila
Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens
e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute
impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo
amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo
amor que o sustenta e o impulsiona
O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado
pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio
diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o
que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a
imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer
60
mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e
modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento
ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz
ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica
como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o
autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e
linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma
reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo
qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental
Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no
respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo
Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio
de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e
ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que
[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)
O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo
educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos
encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico
Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e
conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser
humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer
pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e
competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem
estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio
natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a
afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma
Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []
O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana
expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com
61
os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora
progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a
produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade
impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o
diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para
alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade
direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos
Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e
recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia
A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)
O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos
possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres
inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um
saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que
possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao
contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para
sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa
oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e
ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive
precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes
Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os
pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas
enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves
contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para
o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que
estavam ocultos
A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no
homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma
Freire (2014 p112)
O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []
62
O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder
A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute
desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe
como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para
a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na
melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014
p 113)
Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute
sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se
materializar na accedilatildeo no exemplo
O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo
nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e
esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz
da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus
semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este
almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica
As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a
desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como
estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se
nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila
refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute
ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela
torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade
O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)
63
A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando
as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da
educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico
Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o
homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia
entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA
Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na
Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos
das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos
geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA
Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica
ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio
concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)
Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada
A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a
complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso
estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo
Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros
ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais
colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o
espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar
heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares
(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A
64
concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem
marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo
Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo
Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-
ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos
no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e
professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha
eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de
originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da
criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na
produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos
mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e
econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas
amazocircnias
Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios
contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de
violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu
o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos
os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes
agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu
A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que
16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo
americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro
continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das
misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico
65
penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)
Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo
presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara
rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave
natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)
ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a
regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da
naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de
que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no
entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo
a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre
desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental
A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua
fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o
modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio
de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos
naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo
madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos
sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de
florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies
em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO
2001 p 113)
Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados
para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O
primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua
organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O
segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como
referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com
atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e
agricultura) e do subsolo (atividades minerais)
66
Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute
usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a
colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na
atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo
de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da
colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade
A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)
No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram
na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede
das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu
foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes
corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras
os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-
Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e
couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas
durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre
as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda
um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo
(REIS 1997 p 80-81)
A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que
levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a
devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na
regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute
o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do
corte das aacutervoresrdquo
A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do
desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da
67
vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o
incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo
de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e
com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que
escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento
que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e
o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes
poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na
regiatildeo (TAVARES 2011)
A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como
um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o
escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011
p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de
pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos
mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da
deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos
relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos
grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou
cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no
entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio
de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense
Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral
desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de
1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de
toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio
O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)
Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A
produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o
empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a
populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no
68
extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs
bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma
que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial
confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi
sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado
e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo
O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram
levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento
escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila
de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo
final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de
baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em
accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros
ecossistemas amazocircnicos
Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico
mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia
oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas
pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo
do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo
mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica
governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos
fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte
Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)
Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o
Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade
de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa
foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de
69
creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo
mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a
Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra
dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce
Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento
poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de
beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de
Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao
terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p
190)
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography
O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja
exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute
Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu
milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da
miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina
decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza
outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a
Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo
70
despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos
como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto
devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e
agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de
ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos
garimpeiros
Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)
Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a
cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em
Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram
outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os
garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral
Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por
volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como
construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos
intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo
bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que
a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena
e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000
(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a
intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos
1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de
onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo
(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi
estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da
colonizaccedilatildeo
Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e
no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos
econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas
71
terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em
mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na
subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal
padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)
Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos
decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e
principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das
aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al
(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas
unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu
capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram
mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral
em terras indiacutegenas
Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)
Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente
o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram
o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na
regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas
hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo
gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do
paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte
Curuaacute-Una e Teles Pires
Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo
dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de
barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do
entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555
kmsup2 de floresta
No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte
considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de
72
acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal
obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com
ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo
para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e
desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados
referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil
para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e
indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo
de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes
socioambientais de viabilidade da usina
Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)
Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental
[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos
programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)
O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e
accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela
empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos
sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram
registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80
No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes
para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura
de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram
atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda
de qualidade do ensino
Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de
oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e
73
casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao
futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local
onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local
O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)
As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o
valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O
dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do
poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa
resolveu pagar
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores
viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa
garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram
desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de
compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o
verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras
[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)
Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees
exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de
opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
74
De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA
Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os
impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o
desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho
emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite
no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram
para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz
parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas
Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico
Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do
Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa
e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios
afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda
natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos
de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina
As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo
Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar
produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades
indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim
os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-
desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram
usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os
75
processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a
desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos
nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses
povosrdquo (ISA 20015 p 10)
Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que
teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de
2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da
mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos
industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de
desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O
dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos
aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e
lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98
geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a
refrigerantesrdquo (idem p 12)
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute
Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA
A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem
natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores
e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e
causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem
da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe
76
principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da
regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte
das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA
perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em
Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que
comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade
e engrossam os bolsotildees de pobreza
Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira
Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente
estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio
Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela
abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que
manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido
resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fonte Raimundo Silva 2015
Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute
brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio
e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute
construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos
77
enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente
seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave
pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute
desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo
deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens
emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de
aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo
emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e
vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)
Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As
construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila
de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes
A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)
De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente
o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas
e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside
(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida
hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser
concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)
pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da
resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que
exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo
tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua
subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza
questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees
em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna
adequados para viverem em outros contextos
Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos
ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como
pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-
78
se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e
garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem
para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas
destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de
mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc
Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos
naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias
espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das
populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que
conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos
aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados
inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do
colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes
empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo
sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da
Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre
outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista
Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em
consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais
caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade
humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade
geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das
florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar
que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da
mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou
o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de
maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso
antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo
Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos
79
Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os
povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir
de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas
que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos
responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes
daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos
projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a
colonialidade do poder18
Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que
habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo
A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de
viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos
Jeito Tucuju19
Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo
De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras
Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz
Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor
Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui
Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo
Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso
Natildeo contaraacute nossa histoacuteria
Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila
de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar
as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver
eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem
cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior
em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100
afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa
18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode
identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes
80
o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os
estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso
Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel
vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo
as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros
lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer
comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que
fazem parte do imaginaacuterio desse povo
Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da
populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem
referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem
para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica
O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do
colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo
com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras
A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)
O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um
povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo
principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e
econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas
distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do
sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de
produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais
correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros
ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do
Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros
teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades
apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica
da Amazocircnia
81
A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da
Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta
regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de
dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica
Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da
Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos
e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)
A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos
o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal
D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento
redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual
estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a
substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra
discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)
Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do
ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de
etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo
territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e
constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo
estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do
nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha
da borracha
As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)
A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo
fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam
concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo
da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo
federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados
dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute
promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do
presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de
82
atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em
defesa da ldquopaacutetria amadardquo
Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)
Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas
massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de
extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em
defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para
aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)
Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de
pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio
milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do
produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes
nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores
para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945
utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram
aproximadamente cinquenta mil trabalhadores
Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)
A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a
possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo
tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros
pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram
abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam
por meio das diacutevidas com o barracatildeo20
20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte
83
Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo
XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro
Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para
Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios
em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes
nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que
era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa
era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)
Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram
as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos
seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e
ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade
de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da
agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)
Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila
e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como
afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos
ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial
foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios
e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e
bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos
para sua subsistecircncia
A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo
colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena
contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas
O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as
terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de
garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes
culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos
centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo
ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e
roccedilados dos baixos riosrdquo
84
Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo
e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores
e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas
praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de
mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu
singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)
Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos
negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme
Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia
53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos
e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas
proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e
algodatildeo
Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na
formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela
grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com
os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da
Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que
ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-
se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de
vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)
Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute
constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais
indiacutegenas negras europeia e nordestina
23 AFUAacute a Veneza Marajoara
O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara
em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas
num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de
marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira
e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade
ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e
por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma
abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos
85
moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na
educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental
231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos
Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas
que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas
que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata
uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas
No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte
utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O
transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por
um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas
e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos
chamados de carreteiros
Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
86
Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz
parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que
visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo
Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-
ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao
domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da
regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial
Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e
Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses
das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e
exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior
ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre
eles a matildeo de obra indiacutegena
Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram
tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)
Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se
comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)
procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar
fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio
Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)
Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo
pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que
permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do
Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)
87
Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior
da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute
Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a
pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela
Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua
evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica
Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma
igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi
doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse
das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do
distrito da Vila de Chaves
O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao
patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa
no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO
DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e
como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo
Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que
88
inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um
povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje
ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das
pessoas que as observam desde os rios
De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos
agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro
sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a
localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento
adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como
agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da
floresta e a entrada de mercadorias para consumo
[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua
necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas
gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo
(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)
As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias
eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves
(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios
ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas
do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura
do caboclo da Amazocircniardquo
Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14
de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia
entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm
170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria
de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade
De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram
nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos
constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser
governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos
passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo
Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na
microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
89
Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-
hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016
O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na
foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo
com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves
Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri
Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri
O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste
com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste
com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a
leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute
(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute
90
Fonte Google Mapas Disponiacutevel em
lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de
2016
Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia
a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do
Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade
com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam
constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre
outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e
florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios
roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no
Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute
principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento
nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um
hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que
provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos
Municiacutepios mais proacuteximos
No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense
conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba
macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o
miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas
A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo
atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque
91
marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo
De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute
negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre
eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da
histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para
exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira
Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de
madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de
ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA
exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios
da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais
de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)
Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois
as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os
acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a
violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte
com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de
trabalho (LIMA 2003 p 43)
Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade
denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de
sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos
e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR
PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta
de mateacuteria-prima para o mercado externo
A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo
levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural
aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas
serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do
Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem
projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos
21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de
Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco
92
ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a
empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes
A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como
consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado
ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se
forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores
ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras
aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos
mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)
Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que
inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o
desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado
O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido
geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os
estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para
outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a
regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir
tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo
(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)
A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo
desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo
para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de
educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas
condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos
sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo
mendicacircncia entre outras
Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece
atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro
[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de
accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de
palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de
beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO
DE AFUAacute 2007 p 26)
Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo
espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas
devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
93
Produto
Quantidade Produzida
Valor (Mil reais)
2010 2014 2010 2014
Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151
Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014
Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida
em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no
intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de
accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem
diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo
aumentou
Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a
casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de
Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de
conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$
1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode
variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes
A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute
que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem
nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o
que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa
rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do
produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se
tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na
entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de
alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos
A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para
o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com
accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute
habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos
(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da
regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila
da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo
aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte
94
do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em
Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira
matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros
Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o
periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia
Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no
mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz
parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade
Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015
o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)
pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e
paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste
na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem
(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade
e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha
22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes
ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo
que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem
95
O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade
laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e
homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a
venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na
qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior
abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho
O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura
familiar que consiste em
[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim
da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute
colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa
mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada
ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p
86)
Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a
cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para
o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua
permanecircncia nela
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015
24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo
ribeirinhas
96
Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do
milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com
os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos
que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees
ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos
ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de
poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave
populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas
que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a
biodiversidade da regiatildeo
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398
habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-
ribeirinhas (vilas e povoados)
No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo
haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna
gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos
demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo
publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000
adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado
por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as
vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional
Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana
passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio
pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a
densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo
antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo
urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)
Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho
97
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem
atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo
Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de
barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante
galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os
ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na
cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto
energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que
nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome
geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito
A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de
Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando
indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de
0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1
(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de
0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em
25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010
98
meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas
que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o
estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014
dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na
Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves
(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)
A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que
reside no Municiacutepio
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute
A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil
ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino
meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso
significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido
constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos
competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves
margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes
de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos
uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um
elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de
escolarizaccedilatildeo
A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois
98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares
somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da
educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o
ensino fundamental e meacutedio
241 Educaccedilatildeo Infantil
A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir
da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave
assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave
infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute
reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o
investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal
99
A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do
Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional
nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a
partir de quatro anos de idade
A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)
Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das
oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e
financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a
responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo
infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave
Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre
os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da
descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do
atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos
os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado
em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas
Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute
reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das
famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um
espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este
princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As
crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo
Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano
bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o
turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que
as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo
de creches que atendam o que a lei estabelece
100
Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada
no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do
processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila
procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma
reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da
educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve
ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito
constitucionalmente garantido
Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em
nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em
infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto
poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei
e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania
Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola
eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei
corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do
Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a
incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a
criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos
adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente
A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para
legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo
para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n
93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo
Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica
Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-
escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto
da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no
acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande
importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes
A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o
desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania
aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela
101
haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio
da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade
O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas
legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da
crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e
social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)
ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de
idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos
A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo
infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III
o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e
aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento
prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e
supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)
Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em
segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos
recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica
evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que
de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo
infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo
infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de
Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no
periacuteodo de 2014 a 2016
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
ANO
2014 2015 2016
Creche 182 190 190
Preacute-escolar 659 403 403
Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016
O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu
devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino
fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as
102
turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores
por turma
No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025
consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola
para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo
infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas
ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de
educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para
expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola
Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em
creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
META BRASIL 50 META AFUAacute 10
Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos
BRASIL
NORTE
PARAacute
MARAJOacute
AFUAacute
Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute
3786
232
92
112
109
48
952
Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche
apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela
acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave
pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda
teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha
fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das
crianccedilas na Amazocircnia
A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal
incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da
proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da
creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e
modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a
obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para
as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que
103
existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de
garantir o atendimento com qualidade
Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma
infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca
auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46
(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em
diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica
Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e
uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a
proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a
alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)
Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos
abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do
IBGE
Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
META BRASIL 100 META AFUAacute 100
POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS
BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute
1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
104
Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas
de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a
todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para
professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a
educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo
Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da
creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste
trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira
por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo
A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da
que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o
atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino
fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade
forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver
onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas
nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de
abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para
o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do
Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese
seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do
ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil
105
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-
ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do
ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute
somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo
resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema
educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de
merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas
enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola
funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora
Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo
reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se
estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir
242 Ensino Fundamental e Meacutedio
A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental
teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na
organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas
estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham
acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo
na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade
com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo
106
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)
Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave
educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do
Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de
indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove
Anos
Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a
obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia
do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida
economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das
classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir
as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de
vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino
fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas
brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo
A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino
fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo
[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)
Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que
eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo
infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na
preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo
oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica
serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o
cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma
poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa
107
de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo
(p 5)
Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos
avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em
seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino
fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil
ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas
Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6
anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no
uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos
(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de
vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em
serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos
motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e
materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em
consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo
solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia
para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram
revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de
ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a
obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a
antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso
Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas
de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas
elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo
infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no
ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila
nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio
[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)
Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute
fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola
abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas
108
pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda
(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior
para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe
pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores
Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os
dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a
municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em
vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e
colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-
sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do
EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos
anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do
ensino fundamental
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
ANOS
ESTABELECIMENTOS
Estadual Municipal Particular Total
1996 17 136 - 153
1997 17 115 1 133
1998 15 158 1 174
1999 13 192 1 206
2000 - 197 1 198
Fonte MECINEPSEDUC 2000
Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do
ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma
escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf
etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta
da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade
da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima
de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos
ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do
PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a
29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda
109
de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive
para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do
Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no
art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB
Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)
A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte
do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes
para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de
Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade
do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas
deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as
caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta
forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo
Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda
demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)
anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos
50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME
2015 p 4)
No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que
ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute
de dois anos ou mais
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE
SEacuteRIE
Anos Iniciais 8206
449
Anos Finais 4279
607
Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025
Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase
metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos
alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da
110
distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de
extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras
atividades econocircmicas (HAGE 2013)
No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do
desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana
Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS
2964 2239 440 285
Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016
Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das
escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que
a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de
servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato
administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees
deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre
para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma
determinada escola
Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de
30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos
humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio
administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com
os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar
Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico
o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros
distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede
eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o
funcionamento das maacutequinas
Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
111
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais
materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute
escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara
trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de
cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores
O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute
habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica
instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas
no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca
e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas
rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos
necessaacuterios
As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem
preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro
secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de
aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou
do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute
um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica
112
isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para
as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de
formamultisseriada
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi
cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois
assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo
representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede
113
issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de
pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no
teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo
espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite
As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas
pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos
entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir
os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala
aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado
acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria
Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos
didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o
mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto
leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os
acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos
semestudar
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA
114
O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada
na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se
desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os
investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com
o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando
observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre
a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para
ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos
investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos
ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social
econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes
A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)
Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa
requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que
estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na
escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo
de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os
investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por
aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)
Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa
parte do princiacutepio de que
[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees
Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel
fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos
significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados
Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem
qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)
[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os
115
viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais
Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva
que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas
[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado
Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por
possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura
dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas
linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular
que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute
(2013 p 25) envolve
[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural
Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao
municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades
ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades
produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de
dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira
como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que
ascerca Na etnografia
Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)
116
Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas
teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas
no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos
objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas
percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las
mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados
Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas
escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira
descritas na tabela abaixo
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627
Escola
Ed
Infantil
Ensino Fundamental Nordm de
Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm
A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140
B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94
C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58
D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66
E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as
seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente
duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute
a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e
pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais
distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino
fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o
preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula
secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute
composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas
residentes na comunidade
Fotografia 16 - Escola Polo
27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las
117
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com
quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que
dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e
produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo
docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima
O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo
em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula
118
na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano
o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar
tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela
sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga
entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos
niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor
Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores
A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
119
Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional
possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual
realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da
praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA
PESQUISA
As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo
ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e
instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram
realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a
fotografia
A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma
seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o
pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees
fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos
propostos elaboramos o roteiro das entrevistas
Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando
testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das
entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os
moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a
reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos
sujeitos
As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa
gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais
imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao
entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram
realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos
como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este
detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo
Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e
os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens
28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo
120
com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes
multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo
dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas
pertencentes ao Regional
Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em
diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das
praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da
ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha
do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade
participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e
curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no
ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e
satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato
Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por
Minayo ( 2004 p 62) como
[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este
Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que
formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me
como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida
para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais
como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros
e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os
pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre
outras
Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador
chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador
30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo
frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia
121
acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua
visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves
suas proacuteprias accedilotildees
Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo
enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados
[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial
Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica
pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees
foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente
ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na
sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o
anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4
Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9
Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se
desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social
poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI
2003)
Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que
necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas
estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo
institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que
ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o
que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em
consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da
comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada
A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de
ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um
lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os
alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem
mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as
122
metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo
Andreacute (2003 p 43)
Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)
A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos
aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as
relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas
produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a
partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas
A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose
refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes
macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar
a escola do contexto em que estaacute inserida
Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e
interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas
especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute
Segundo Alves (2008 p 28)
A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens
Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos
econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver
dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA
Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram
parte da pesquisa
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas
123
Professor
Anos do Ensino Fundamental que Lecionam
Experiecircncia com Classes
Multisseriadas
Formaccedilatildeo
Prof 1
3ordm 4ordm e 5ordm ano
6 anos
Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar
Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva
Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
8 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano
11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio
ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade
Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um
convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da
SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais
trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo
pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos
de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute
A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Morador Caracteriacutesticas
Maria
Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A
124
Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C
Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio
Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio
Pedro
Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano
Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes
Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)
Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro
Francisca
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
Raimundo
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS
Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas
semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de
conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em
Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens
Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a
utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros
de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como
afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica
pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees
jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)
Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das
mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo
Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da
mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor
ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como
procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo
125
A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os
dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam
posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o
procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos
constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento
segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)
As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as
aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees
voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou
natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial
teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das
unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em
subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na
pesquisa de campo
A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute
fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser
classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades
de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de
acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico
adotado
A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise
de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto
com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta
as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo
do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo
A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso
caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase
que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade
de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise
ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados
conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p
118)
126
Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a
exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido
por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo
das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees
foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em
seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam
aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias
intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas
resultando nas categorias finais
Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e
interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes
no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com
o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os
resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como
apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa
Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes oriundos da experiecircncia
existencial desenvolvida na relaccedilatildeo
dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam
as suas atividades diaacuterias para a garantia
da sobrevivecircncia bem como a leitura de
mundo
Diaacutelogo
Numa perspectiva freiriana como o
momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo
da realidade na qual vivemos para poder
transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos
homens mediatizados pelo mundo para
33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema
alfanumeacuterico
127
pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto
na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs
subcategorias de acordo com a tabela abaixo
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Subcategoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes das Aacuteguas
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia as aacuteguas dos rios
igarapeacutes e furos da Ilha
Saberes da Terra e da Mata
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia a terra e a mata da
Ilha
Saberes do Accedilaiacute
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia o accedilaiacute
Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo
das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela
abaixo
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Praacuteticas Colonizadoras
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela
imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo
do saber popular configurando a colonialidade do
saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade com
uma perspectiva redutora do conhecimento
128
Praacuteticas Descolonizadoras
As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas
comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees
culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas
praacuteticas procuram dar visibilidade a essas
manifestaccedilotildees
No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as
inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no
proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de
campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
129
Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular
juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e
saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes
proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos
no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas
e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por
meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo
historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes
precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se
essencial para que isso ocorra
A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e
posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida
ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas
praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de
campo
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute
Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos
moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas
nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as
atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os
ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido
de que
Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)
Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o
mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam
criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e
pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem
esses protagonistas
130
Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na
comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)
nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos
materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira
paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado
construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo
que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais
Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute
denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e
reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre
crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na
invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens
fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta
maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos
amazonidas uns com os outros
Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se
aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou
emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e
pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado
grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p
44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso
comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa
forma possam produzir tecnologias e sabedoria
Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem
cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou
talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da
mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute
criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser
humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos
modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo
Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu
saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida
como
131
Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)
O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a
natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo
transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser
incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a
malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute
tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser
interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p
15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural
desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo
Oliveira(2004 p 54) satildeo
[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc
Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular
servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo
transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de
acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees
rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores
e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo
apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade
Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste
periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural
criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e
econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees
praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e
sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo
aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando
34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o
camaratildeo na mareacute cheia
132
paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente
dos conhecimentos acadecircmicos
Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos
por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo
vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo
existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as
lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim
organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)
o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos
padrotildees da objetividade cronoloacutegica
Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados
pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato
explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade
apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste
em
[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis
Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que
presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da
mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar
de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da
memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens
criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de
qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em
suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo
Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute
sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do
tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida
em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que
emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir
133
411 Saberes das Aacuteguas
O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao
movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios
de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua
eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes
determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como
da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os
seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social
econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute
suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas
da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros
igarapeacutesrdquo
Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de
saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas
Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses
saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses
saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres
encantados
Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que
vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta
forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica
e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante
cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)
Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na
comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo
movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo
um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha
idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta
Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36
purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo
35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito
134
Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza
eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de
experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular
pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se
ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)
Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres
pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas
Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)
A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando
porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a
possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos
utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim
como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da
seguinte forma
Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
135
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual
natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de
pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada
verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar
por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido
agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da
primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a
conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute
colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo
pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)
Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e
calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu
Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma
aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo
Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas
e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de
tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas
38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco
136
tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas
substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente
Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo
estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer
Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo
praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar
que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no
diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)
O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para
pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades
cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute
piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma
madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se
aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa
que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega
no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41
40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju
137
Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas
juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi
O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua
flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute
amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de
chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol
Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute
constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio
Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)
Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a
presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se
esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e
nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por
isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio
para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016
42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe
138
Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo
que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da
Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas
retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e
o arpatildeo
Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)
O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua
haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica
detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta
Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo
Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era
faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando
no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem
encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do
referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando
a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que
pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades
principalmente de Macapaacute para pescar nos rios
A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo
eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente
amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho
para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio
nos contou como faz para fachear46
43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia
139
A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar
A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque
com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco
Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o
que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a
zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos
peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve
fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da
mareacute
A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses
que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente
durante a vazante da mareacute
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia
acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as
47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia
140
malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira
atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute
colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois
que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de
monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas
pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso
existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016
Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha
na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos
da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo
Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular
Fotografia 24 ndash Matapi
48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor
141
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi
Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo
Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados
para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais
mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a
monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo
de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste
discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica
capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)
Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das
aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no
cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce
grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem
uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho
51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica
142
Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados
Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos
e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos
naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados
que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa
desobedececirc-los
Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua
habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as
mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador
rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas
as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem
ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)
Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para
esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas
comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades
de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do
rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele
desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da
menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar
que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai
direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor
Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia
sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que
aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos
padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com
nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas
experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato
Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para
52 Margem do rio
143
mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro
Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou
tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de
qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem
pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da
epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a
estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis
pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto
Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que
quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir
Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas
praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo
gritador
Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque
tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua
Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na
comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando
era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson
(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros
e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado
mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha
Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55
53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata
144
A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com
Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou
curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor
o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo
fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha
fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo
avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos
duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona
Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer
tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio
de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que
seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras
partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe
oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito
bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas
56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor
145
Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar
sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um
dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra
ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir
os saberes da reza que satildeo guardados em segredo
Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo
em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma
mulher adulta
Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de
cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela
caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite
nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura
de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na
eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)
Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa
conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia
algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos
acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte
Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco
Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa
que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute
ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou
tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus
feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com
respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual
tem que dar o que prometeu a ela
58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia
146
Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como
esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)
representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo
Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo
procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que
envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem
como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no
rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado
pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo
ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no
riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros
Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e
natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta
pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o
universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem
conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de
conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da
Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as
relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento
hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel
fundamental
41 2 Saberes da Terra e da Mata
Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho
estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e
reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o
reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de
saberes existentes no mundo
Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e
remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O
ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que
satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para
o consumo local
Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias
As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os
147
matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha
chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor
senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que
estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases
chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga
inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de
doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas
pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-
olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos
das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo
fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia
Fotografia 27 ndash Marupazinho
148
Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os
remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os
remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim
eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas
quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco
de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo
comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma
de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para
massagear) e banhos
Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de
benzer ainda eacute parteira
Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com
61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc
149
jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um
Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta
maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela
estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem
cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra
nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo
para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante
uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida
pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto
ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto
Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)
[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal
Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de
sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum
apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico
Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais
como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e
depois do fato
Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar
Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia
conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a
62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica
150
desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida
Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra
principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato
Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto
As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de
coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma
moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de
hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave
noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com
o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que
sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito
redonda seraacute meninardquo
A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia
as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade
favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia
de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros
ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia
O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da
farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo
A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da
ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores
sujeitos da pesquisa
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar
151
Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
152
Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016
153
O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do
matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe
camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas
outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016
154
Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada
buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e
peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas
satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do
fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados
Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)
No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a
escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo
ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute
furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm
relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas
e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)
Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir
permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui
advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os
69 Crianccedilas
155
caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos
animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na
lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem
capturados entre outros
A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)
O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a
dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes
orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo
de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila
Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e
geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande
parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os
desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo
submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o
conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)
Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na
mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente
este saber a seguir
413 Saberes do Accedilaiacute
O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base
econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira
conforme imagem a baixo
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
156
As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute
com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou
charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves
vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos
alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)
ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual
vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si
proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos
e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o
morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e
na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo
A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na
comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo
accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres
domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais
velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios
por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia
por meio do envolvimento nas atividades produtivas
70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira
157
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016
A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e
pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode
um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo
assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A
idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a
diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se
desenvolver
Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso
O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma
os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-
se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para
71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver
158
o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como
tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha
A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)
A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que
a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio
ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da
populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente
das aacutervores que satildeo derrubadas
Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o
paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as
folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A
medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua
funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para
evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e
com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila
nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio
atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia
com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha
nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de
uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016
159
Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de
serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela
temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo
Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos
primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na
beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com
o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire
(2005 p 70) afirma que
O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual
72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho
160
A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o
tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao
contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade
produtiva
Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a
compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas
televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira
rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz
movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda
obtida do accedilaiacute
A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa
por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para
amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde
haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia
Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta
antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal
pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para
73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute
161
natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos
162
caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016
Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda
amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais
proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste
processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas
tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em
trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as
bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir
o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa
Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos
das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e
mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo
escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo
com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e
diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente
ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p
25)
Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento
dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica
diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que
tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a
evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de
dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo
Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da
cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que
atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas
nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute
163
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR
Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos
das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos
professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do
Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas
colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo
Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro
didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em
seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do
educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e
aprendizagem
421 O Conhecimento Escolar
Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de
conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais
amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no
aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento
escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo
do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim
poliacutetica
A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)
Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima
conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os
que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os
conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira
e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos
e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de
aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada
segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida
e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico
Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute
organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica
164
para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da
utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-
se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de
ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a
uacutenica maneira de compreender o mundo
Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o
mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser
reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque
considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo
satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que
caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido
como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)
Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos
(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74
Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial
Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela
classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de
serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio
e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-
as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a
exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010
p 72)
O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as
identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias
invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio
de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo
conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber
no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer
74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais
165
eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito
Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS
2011 p 30)
Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e
consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um
modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num
conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade
e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os
ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante
Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da
colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de
saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de
pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social
A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos
disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura
erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute
sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente
no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a
descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na
transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos
horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo
(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)
existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de
saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios
diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e
entendimentos distintos do mundo
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores
O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como
conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino
fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres
De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser
trabalhados com os alunos
166
Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo
sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da
cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo
dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber
Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)
Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos
conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora
do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os
conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute
vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados
independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a
exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de
conhecimento sem sentido e significado para eles
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO
LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
DISCIPLINA CIEcircNCIAS
1ordm BIMESTRE
1 Planeta Terra e Ambiente
11 A atmosfera terrestre
12 A aacutegua no planeta
13 O solo tipos de solo
22 Os seres vivos dos ecossistemas
2ordm BIMETRE
1 O corpo humano
11 Sustentaccedilatildeo e movimento
12 As partes do corpo humano
13 Os microrganismos
167
Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016
A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da
disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os
professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as
escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o
registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de
um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o
ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para
o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos
saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que
se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os
diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber
75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos
Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre
168
Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina
no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que
aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-
Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em
relaccedilatildeo ao colonizado
O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)
Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e
costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus
saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e
Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo
materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser
contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando
As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para
reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo
especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O
estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute
desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da
ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e
o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do
produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da
natureza
O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)
No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na
pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se
sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos
sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de
dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem
trabalhados no ano letivo
169
Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)
A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de
conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute
enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles
retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a
mobilizaccedilatildeo do saber local
Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da
lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam
fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem
constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos
possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo
Atividade
1 Preencha a tabela com os nomes dos
animais encontrados aqui na ilha e seus
respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro
Paca X
Tatu X
Jacareacute X
Capiva
ra
X
Porco X
170
(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram
selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre
os quais
Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)
Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades
sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes
para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam
os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de
abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das
experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-
se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p
31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la
Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)
Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)
destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de
compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da
sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades
necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como
171
suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na
qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse
sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais
na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos
comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho
ribeirinho
Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos
conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo
da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos
professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer
parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos
que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os
quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e
coletiva dos sujeitos (p 4)
Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se
necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na
sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos
jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem
e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos
professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a
colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas
tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem
conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma
perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os
conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE
2004 p 4)
A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos
mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes
multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas
422O Livro Didaacutetico
Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento
impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de
aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita
172
ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como
visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo
didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de
valoresrdquo
Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais
didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias
o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e
cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta
maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes
multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo
por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os
docentes
Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos
jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de
cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor
acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus
alunos
Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)
Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo
as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a
buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula
ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram
organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo
conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para
treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor
escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro
tambeacutem direciona o curriacuteculo
76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos
173
Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)
A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar
aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o
livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo
atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e
da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos
alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem
significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo
eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a
praacutetica do professor
Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim
utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim
os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo
pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute
uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries
na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para
Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na
escola
[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias
O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das
aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser
um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o
ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e
174
educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente
precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos
conteuacutedos dentre elas os saberes populares
Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a
construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa
linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia
contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes
Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que
natildeo haja hierarquias entre eles
O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos
na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes
As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)
Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e
contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam
relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre
permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas
regionais bem como as locais
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico
da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
175
Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016
Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da
cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em
outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o
que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo
aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma
avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada
do assunto
Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)
Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel
pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente
ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor
MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O
176
utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois
nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e
complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as
escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de
pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no
caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o
livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a
seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula
O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para
cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos
como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos
interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor
cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos
veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam
diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo
Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)
Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da
educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica
pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que
compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e
culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores
da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos
e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a
177
mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e
as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos
Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo
Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica
Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)
O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na
educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para
a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em
detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas
mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)
[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura
O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das
quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base
para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras
disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo
reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os
concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos
conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber
ler para transcrevecirc-los
Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no
ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar
e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto
contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual
decide eles executam o que foi decidido
178
Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)
Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e
de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os
uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma
multisseriada
O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus
objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e
escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD
em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua
concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento
para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos
livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo
entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento
avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos
docentes das escolas da ilha do Accedilai
423O Planejamento das Aulas
Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio
das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos
nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de
acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo
planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades
didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos
quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio
do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar
assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual
ela estaacute inserida
Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico
ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo
(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a
179
conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma
o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real
para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de
maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas
O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)
Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional
porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se
corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do
planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador
amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do
conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais
eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais
Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade
sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e
objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos
conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas
realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de
metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de
ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)
A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira
elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva
colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
colonizadora
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento
escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade
do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior
centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o
surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas
180
O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente
considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras
formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa
maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a
eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo
de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do
conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses
hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados
epistemologicamente
Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que
consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que
os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas
praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da
estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em
que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas
colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo
professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos
colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento
Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)
O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os
oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em
consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o
181
planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar
para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que
impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o
uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na
escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material
Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro
didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a
turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades
especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam
interagir com colegas de outros anos
Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um
problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo
em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde
acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico
das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos
conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm
3ordm 4ordm e 5ordm ano
No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de
conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do
poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos
ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a
negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e
adolescentes ribeirinhos)
Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser
oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder
(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte
do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado
oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e
invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses
hegemocircnicos
A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece
as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das
maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do
182
mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras
dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos
tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da
valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta
direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do
regional Madeira que descrevemos a seguir
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
descolonizadora77
As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem
que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do
reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de
accedilotildees pedagoacutegicas planejadas
Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo
intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto
histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes
fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento
liminar
Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez
(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco
das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos
sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam
(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses
(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que
denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos
pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com
ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de
um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao
planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da
ilha do Accedilaiacute
No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da
77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
183
comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)
O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades
dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a
valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses
alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros
membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em
Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos
produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo
trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a
professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute
sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees
reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado
com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos
Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor
reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua
importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam
constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira
matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees
artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria
espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de
experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica
comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses
saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir
com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses
saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute
contribuindo para a leitura criacutetica do mundo
184
A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira
esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do
conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que
nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de
outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma
ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na
natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um
dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os
animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e
a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da
floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na
Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que
conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para
a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo
(SANTOS 2010 p 58)
O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o
instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo
acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual
conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento
eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de
uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte
que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)
Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na
praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam
tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social
econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades
desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e
faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo
subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia
No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos
metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que
seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o
desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas
metodologias de ensino
185
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem
A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees
que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo
as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino
selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos
Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos
que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais
dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo
relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar
determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social
Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por
concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar
embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono
da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o
conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor
e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim
a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-
la
As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem
estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado
a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural
econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e
desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo
Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo
ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta
metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees
concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no
desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003
p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas
Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc
186
Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos
que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo
e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees
de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de
classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas
atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas
para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino
e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos
usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees
e anaacutelises sobre determinado assunto
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78
As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do
planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias
desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de
procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire
(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na
[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos
O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos
devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute
estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute
permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que
eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo
eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p
81)
Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as
praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo
intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no
quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo
187
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e
5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do
lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os
quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades
correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos
especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para
facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo
da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos
Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)
O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o
quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos
metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da
exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores
receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz
curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes
188
todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios
para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o
exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado
Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)
A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor
monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de
exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os
que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito
primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto
desumanizante continuerdquo
Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e
a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os
saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do
seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos
mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do
conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino
fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo
eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos
devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo
predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo
multisseriada afirma que
[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)
A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos
outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou
189
cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos
diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das
atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo
que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade
cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A
negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta
visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa
pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o
livro didaacutetico
Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)
Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o
livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno
faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o
exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro
em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da
praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta
Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o
conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos
e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais
sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A
imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma
forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees
que natildeo seja a dominante
190
Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do
conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do
Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo
de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo
geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim
poliacutetico tambeacutem
Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes
com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-
historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais
compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que
passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo
com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela
colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos
ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos
e morais
Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei
algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada
como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o
professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias
seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio
porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de
barrigardquo E o professor retrucou
Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)
No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da
linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois
ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos
esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco
tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a
falar ldquoerradordquo
Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente
que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente
191
que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos
desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta
maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada
na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante
Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam
e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem
um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os
geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo
uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma
delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo
oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como
forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e
determina a linguagem dominante como a oficial
As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na
sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa
liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns
docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que
os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na
escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada
correta culta e hegemocircnica
Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange
questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma
nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito
agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso
agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e
menos excluiacutedos
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras
Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas
praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as
narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo
paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo
dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que
estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que
192
consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas
educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem
Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com
alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos
elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo
Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos
No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram
e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o
professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre
193
outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor
agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o
matapi
A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento
fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o
conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir
do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o
conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo
como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve
o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como
mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para
garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das
ferramentas utilizadas nas atividades produtivas
Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala
de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos
colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos
encararem um desafio que consistia em tecer um matapi
O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das
atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a
tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse
saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes
diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula
associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na
relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas
locais Como afirma Freire (2014 p 39)
Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas
Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber
popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos
na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade
do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo
criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este
194
conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber
Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a
pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se
valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela
escola
A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e
visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que
construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa
determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho
Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi
desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com
alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano
Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem
Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o
camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos
que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade
Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros
79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato
195
encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem
pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho
encontrado em abundacircncia na Ilha
O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os
alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos
diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu
os seguintes encaminhamentos
Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute
Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos
com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico
natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria
uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes
questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo
dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute
acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de
accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem
direto para o consumidor em Macapaacute
Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados
em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os
alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as
apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees
De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os
moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia
196
de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores
vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o
ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute
obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas
puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos
atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem
A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de
dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora
entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$
1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos
alunos como essa realidade poderia ser mudada
Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora
Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos
que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a
refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo
assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo
diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a
realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa
perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de
vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que
como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais
justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo
emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum
80 Atravessador
197
tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do
presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro
didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de
aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre
o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista
que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute
O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua
com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia
foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a
professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola
Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio
O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos
alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente
com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio
rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas
repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu
198
sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam
parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal
e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc
O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas
em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste
lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem
sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo
eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo
O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo
O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes
geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles
precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo
os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma
a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente
o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a
dialogicidade
[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)
Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber
escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber
necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber
popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p
86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas
representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa
representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo
formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar
Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os
falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade
Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia
abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz
Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja
alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas
199
no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa
o referido autor
[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)
Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como
determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma
praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta
FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva
intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo
houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo
epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de
explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a
comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e
igualdaderdquo (idem p 11)
Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo
ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos
Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome
200
Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem
A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila
Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O
planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo
houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos
educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos
educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi
fundamental para o ecircxito da aula
A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)
A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava
escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da
pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que
despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das
respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente
se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho
chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)
A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres
inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo
Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma
gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a
dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores
mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos
Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que
existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do
hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois
haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos
moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre
outros
201
Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a
autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no
diaacutelogo colocam algo em discussatildeo
Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)
Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade
reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem
contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo
Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento
em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos
dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as
emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)
A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi
visibilizado
Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele
202
Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros
Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo
dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu
cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as
doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo
ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado
das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo
de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)
chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica
nas accedilotildees educativas
O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar
O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento
do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo
passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos
(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos
que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da
escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o
conhecimento global
No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo
indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos
alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das
pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que
se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos
203
gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora
estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar
porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos
Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes
que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia
hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto
pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e
garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua
no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um
instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para
explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os
remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de
existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na
aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de
vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da
ciecircncia farmacecircutica
Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e
com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula
o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos
duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os
alunos questionaram
Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha
204
A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos
que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e
voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo
reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no
veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou
fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira
satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas
determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano
assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute
5CONCLUSAtildeO
Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute
territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um
mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos
que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da
ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava
profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes
apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No
diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute
e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas
conclusotildees deste estudo
De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar
como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha
do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos
das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das
praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores
mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras
205
nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de
saberes
Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e
reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos
numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de
Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas
relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual
as desenvolvem
Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade
diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco
tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas
vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel
(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai
fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que
esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia
que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo
baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber
Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas
teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais
oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das
matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a
feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos
encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na
mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos
haacutebitos alimentares de cada espeacutecie
No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo
de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim
a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o
tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho
sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde
encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri
entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles
comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e
ferramentas para aprisionaacute-los
206
Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as
atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o
horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do
tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como
os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais
adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das
mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico
fundamental para entendermos como vivem esses povos
Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando
se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo
gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das
comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo
pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os
filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam
no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as
crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente
No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e
tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados
pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma
experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento
da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos
remeacutedios oriundos da terra e da mata
Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos
enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da
ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma
epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao
transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma
cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar
pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como
criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores
Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas
por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte
o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e
207
aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses
saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das
aacuteguas
Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento
escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem
horizontalmente
O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de
colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos
ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de
ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado
natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do
imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo
indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre
elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece
esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos
consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das
diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a
monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local
Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da
escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo
parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o
contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em
consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos
(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos
das aacuteguas da Amazocircnia
O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por
meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o
que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos
docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com
a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e
intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como
verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de
pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os
208
saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de
educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo
cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias
colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi
imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia
colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees
invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios
sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees
hegemocircnicas
Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as
mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe
uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da
cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O
diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes
locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas
escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja
ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo
docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma
horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento
das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do
Accedilaiacute
Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e
reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades
sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das
necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios
do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes
locais
81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6
209
Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades
produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas
descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas
metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido
a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses
saberes foram os protagonistas
O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a
realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas
escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da
comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar
transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os
moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os
professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de
ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e
respeito agrave sua dignidade
A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem
saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem
possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No
diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e
ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do
respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro
Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo
horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como
afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens
acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos
digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade
dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa
pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor
o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente
da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem
nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave
educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os
210
professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo
poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes
no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das
experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no
qual vivem esses protagonistas
A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os
educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo
influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o
tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo
relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam
a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais
Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os
poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais
iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o
dom milagroso83rdquo
Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade
de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo
ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira
efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza
Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi
nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas
crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas
nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo
pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime
qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas
Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas
ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e
produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma
Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo
83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute
211
precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como
(metodologia) deve ser ensinado
Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser
ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a
imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade
das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento
Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e
provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes
que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas
religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que
isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute
fundamental na gestatildeo escolar
No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado
refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo
que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades
e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que
valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e
religiosas
212
REFEREcircNCIAS ALMEIDA JR Joseacute Maria Gonccedilalves de (org) Carajaacutes desafio poliacutetico ecologia e desenvolvimento Satildeo Paulo Brasiliense 1986 ALVES-MAZZOTTI Alda Judith GEWANDSZNAJDE Fernando O meacutetodo nas ciecircncias naturais e sociais pesquisa quantitativa e qualitativa 2 ed Satildeo Paulo Pioneira 2002 ANGOTTI M Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc In___ (Org) Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc Campinas Aliacutenea 2010 AGUIAR J D N SANTOS J Freire dos Neodesenvolvimentismo brasileiro e subimperialismo na Ameacuterica Latina XII Semana de Ensino Pesquisa e Extensatildeo do Centro de Humanidades Universidade Federal de Campina Grande 2013 AMADEO Javier Marxismo e teoria poacutes-colonialidade 6ordm Coloacutequio Internacional Marx e Engels IFCH - UNICAMP Satildeo Paulo 2009 Disponiacutevel em httpwwwifchunicampbrcemarxcoloquioDocsgt7Mesa3marxismo-e-teoria-pos-colonialpdf Acesso em 23 fev 2014 ARROYO M G et al (Org)Por Uma Educaccedilatildeo do Campo Petroacutepolis-RJ Vozes 2004 APPLE W Michael Ideologia e curriacuteculo 3 Ed Porto Alegre Artmed 2006 BAPTISTA A M H ROGERO R (Org) Tempo-Memoacuteria na Educaccedilatildeo Satildeo Paulo BT Acadecircmica 2014 BALLESTRIN Luciana Ameacuterica Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciecircncia Poliacutetica Brasiacutelia v11 2013 pp 89-117 BGNO Marcos A liacutengua de Eulaacutelia novela sociolinguiacutestica 3 Ed Satildeo Paulo Contexto Editora 2004 BARDIN L Anaacutelise de Conteuacutedo 12 ed Lisboa Ediccedilotildees 7 2004 BECKER Bertha K Amazocircnia geopoliacutetica na virada do III milecircnio 2 ed Rio de Janeiro Garamond 2007
213
BEZERRA NETO L Na luta pela terra a conquista do conhecimento Satildeo Carlos Pedro amp Joatildeo Editores 2013 BENCHIMOL Samuel Amazocircnia formaccedilatildeo social e cultural Manaus Editora Valer 1999 BITTENCOUT A O homem amazonense e o espaccedilo 3 ed Rio de Janeiro Artinova 1989 ______ Hidreleacutetricas no Amazonas temos um exemplo negativo no nosso quintal Disponiacutevel
em lthttpwwwihuunisinosbrentrevistas509099-hidreletricas-no-amazonas-temos-um-exemplo-negativo-no-nosso-quintal-entrevista-especial-com-anderson-bittencourtgt Acesso em 8 de maio de 2016 BODGAN R BIKLEN SInvestigaccedilatildeo qualitativa em educaccedilatildeo 3 ed Porto Porto
Editora 1994 BRASIL Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional 939496 Disponiacutevel em
lthttpwwwmecgovbrgt Acesso em 8 de maio de 2016 BRANDAtildeO Carlos Rodrigues A educaccedilatildeo como cultura Satildeo Paulo Mercado de
Letras 2007 CALVET L J Sociolinguiacutestica introduccedilatildeo criacutetica Satildeo Paulo Paraacutebola 2000 CANCLIacuteNI Neacutestor GarciacuteaCulturas Hiacutebridas estrateacutegias para entrar e sair da modernidade 3 ed Satildeo Paulo UNESP 2006 CANDAU V M (Org) Educaccedilatildeo intercultural e cotidiano escolar Rio de Janeiro 7 Letras 2006 CASTRO-GOMEZ Santiago amp MENDIETA Eduardo (1998) Introduccion la translocalizacion discursiva de Latinoamerica en tiempos de la globalizacion In CASTRO-GOMEZ Santiago MENDIETA Eduardo (coord) Teoriacuteas sin disciplina latinoamericanismo poscolonialidad y globalizacioacuten en debate Mexico Miguel Angel Porrua 2010 CASTRO-GOacuteMES S Decolonizar la universidad la hybris del punto cero y eldiaacutelogo de saberes In CASTRO-GOacuteMES S GROSFOGUEL R (Ed) El girodecolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismoglobal Bogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto deEstudios Sociales Contemporaacuteneos Pontificia Universidad Javeriana InstitutoPensar 2007 COSTA Seacutergio Dois atlacircnticos teoria social anti-racismo e cosmopolitismo Belo Horizonte Editora da UFMG 2006 COMISSAtildeO PASTORAL DA TERRA 2015 1 fotografia Disponiacutevel em httpwwwcptnacionalorgbrindexphppublicacoesnoticiasgeral2770-papa-critica-o-desmatamento-para-dar-lugar-a-lavouras-de-sojagt Acesso 17 de maio de 2016
214
CHIZZOTTI Antonio Pesquisas em ciecircncias humanas e sociais 6 ed Satildeo Paulo Cortez 2003 CURY C R J A educaccedilatildeo infantil como direito In BRASIL Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e do Desporto Secretaria de Ensino Fundamental Subsiacutedios para credenciamento e funcionamento de instituiccedilotildees de educaccedilatildeo infantil v2 Brasiacutelia DF MECSEF 2012 DELEUZE G Bergosonismo Satildeo Paulo Editora 34 2010 DESCARTES R Discurso do meacutetodo 54 Ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 DIDONET V Importacircncia da educaccedilatildeo infantil In SIMPOacuteSIO DE EDUCACcedilAtildeO INFANTIL construindo o presente Brasiacutelia DF 2014 Anais Brasiacutelia UNESCO 2003 p83-97 Disponiacutevel em lthttpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoue000311pdfgt Acesso em 26 de maio de 2016 DOBLAS Juan Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpvejaabrilcombrnoticiaeconomiahidreletricas-da-amazonia-enfrentam-serie-de-processosgtAcesso 4 de maio de 2016 DRUMMOND J A Investimentos privados impactos ambientais e qualidade de vida num empreendimento mineral amazocircnico o caso da mina de manganecircs da Serra do Navio (Amapaacute) Histoacuteria Ciecircncia Sauacutede Maguinhos v VI p 753-792 setembro de 2000 ECOS DA SELVA Garimpo em terra Yanomami Disponiacutevel emlthttpecosdaselvawordpresscomtagyanomami Garimpo em terra Yanomamigt Acesso em 28 de julho de 2016 ESCOBAR Arthuro Mundos y conocimientos de otro modo el programa de investigacioacuten modernidadcolonialidad latinoamericano Bogotaacute Tabula Rasa 2003 Disponiacutevel em httpwwwuncedu~aescobartextespescobar-tabula-rasapdf Acesso em 23 jul 2014 ESTERMANN Josef Si el Sur fuera el Norte Chakanas interculturales entre Andes y Occidente La Paz ISE 2008 FARES Josebel Akel Cartografia poeacutetica In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem CCESE-UEPA 2004 FEARNSIDE Philip M Desenvolvimento Hidreleacutetrico na Amazocircnia In______ Hidreleacutetricas na Amazocircnia impactos ambientais e sociais na tomada de decisotildees sobre grandes obras Manaus Editora do INPA 2015 FOSTER Eugenia da Luz Silva Traccedilos da trajetoacuteria do negro na regiatildeo amazocircnica Disponiacutevel em lthttpWWWbdtdndcuffbrtde_arquivos2TDE 03-05-
215
15T143957Z-70PublicoParte20220-0teseEugenia20Fosterpdfgt Acesso em 28 de ago de 2010 FANON Frantz Racismo y cultura PreacutesenceAfricaine Junho-novembro 1956 Franco M L P B O que eacute anaacutelise de conteuacutedo 4 ed Satildeo Paulo PUC 2006 FREIRE P Pedagogia do Oprimido 43 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 ______ Pedagogia da Esperanccedila um reencontro com a Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 16ordf ed 2009 ______ Educaccedilatildeo como praacutetica da liberdade Satildeo Paulo Paz e Terra 2003 ______ Politica e educaccedilatildeo Satildeo Paulo Paz e Terra 1987 ______ Extensatildeo ou comunicaccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 GAGNEBIN J M Infacircncia e pensamento In GHIRALDELLI JUacuteNIOR P (Org) Infacircncia escola e modernidade Satildeo Paulo Cortez 2011 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro Zahar1978 GEacuteRARD F M ROEGIERS X Concevoir et eacutevaluer des manuels scolairesBruxelas De Boeck-Wesmail 2000 (traduccedilatildeo Portuguesa de Juacutelia Ferreira e de Helena Peralta Porto2003) GONCcedilALVES Carlos Walter Porto Amazocircnia Amazocircnias 2 ed Satildeo Paulo Editora Contexto 2005 Google Mapas Disponiacutevel em lthttpmapsgooglecombrmapsgt Acesso 17 de maio de 2016 GRUumlN M Eacutetica e educaccedilatildeo ambiental a conexatildeo necessaacuteria 6 ed Campinas Papirus 2002 GRUZINSKI Serge O pensamento mesticcedilo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 GUERRA Ribamar Amazocircnia intervenccedilatildeo e resistecircncia Disponiacutevel em lthttpanovademocraciacombrno-25643-amazonia-intervencao-e-resistenciagt Acesso em 7 de abril de 2016 GROSFOGUEL Ramon Para descolonizar os estudos de economia poliacutetica e os estudos poacutes-coloniais transmodernidade pensamento de fronteira e colonialidade global Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais Coimbra n 80 2008 HAGE Salomatildeo Mufarrej Classes multisseriadas desafios da educaccedilatildeo rural no estado do Paraacuteregiatildeo Amazocircnica In ______ (Org) Educaccedilatildeo do campo na
216
Amazocircnia retratos de realidade das escolas multisseriadas no Paraacute Beleacutem Gutemberg 2005 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA Extraccedilatildeo vegetal e silvicultura Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150030ampsearch=parC3A1|afuagt Acesso 17 de maio de 2016 Jornal O Acre Rio Branco 20 de maio de 1943 n 742 KRAMER Sonia As crianccedilas de 0 a 6 anos nas poliacuteticas educacionais no Brasil educaccedilatildeo infantil eeacute fundamental Educ Soc v 27 n 96 p797-818 out 2006 LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico 23 ed Rio de Janeiro Zahar 2009 LAVILLE Christian DIONE Jean A construccedilatildeo do sabermanual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 2000 LAJOLO Marisa Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em Aberto Brasiacutelian 69 v 16 janmar 2001 LIBAcircNEO Joseacute Carlos Didaacutetica 2 ed Satildeo Paulo Cortez 2004 LOPES Alice Casimiro Curriacuteculo e Epistemologia Ijuiacute Editora Unijuiacute 2007 LOUREIRO V RAmazocircnia uma histoacuteria de perdas e danos um futuro a (re) construir Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 LOUREIRO Joatildeo de Jesus Paes Cultura amazocircnicauma poeacutetica do imaginaacuterio Satildeo Paulo Escrituras Editora 2001 LUDKE Menga ANDREacute Marli E D A Pesquisa em educaccedilatildeo abordagens qualitativas Satildeo Paulo EPU 2006 LUCKESI CC planejamento e Avaliaccedilatildeo escolararticulaccedilatildeo e necessaacuteria determinaccedilatildeo ideoloacutegica IN O diretor articulador do projeto da escola Borges Silva Abel Satildeo Paulo 1992 FDE Diretoria Teacutecnica Seacuterie Ideacuteias nordm 15 ______ Filosofia da educaccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez 2003 MAUEacuteS R H A ilha encantada medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1990 MARINI Ruy Mauro Dialeacutetica da Dependecircncia Petroacutepolis Vozes 2000
217
Mapa da Ilha do Marajoacute Disponivel em lthttpmarajoandoblogspotcombr200912o-mapa-da-ilhahtmlgt Acesso 16 de maio de 2016 MEDIACcedilAtildeO Revista de Educaccedilatildeo do Coleacutegio Medianeira Curitiba PR v 3 n 6 p 33-37 2010 MONTEIRO M de A Meio seacuteculo de mineraccedilatildeo industrial na Amazocircnia e suas implicaccedilotildees para o desenvolvimento regional Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 MORAES MC O paradigma educacional emergente Satildeo Paulo Papirus 1997 MOREIRA A F CANDAU V M Curriacuteculo conhecimento e culturaBrasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2008 MORIN E A cabeccedila bem-feita repensar a reforma reformar o pensamento traduccedilatildeo Eloaacute Jacobina 8 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2003 MIGNOLO Walter DDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo decolonial e o significado de identidade em poliacutetica Traduccedilatildeo de AcircngelaLopes Norte Cadernos de Letras UFF ndash Dossiecirc Literatura Liacutengua e Identidade nordm 34 p 287 ndash 324 2010 ______ Histoacuterias locais projetos globais colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte UFMG 2003 MINAYO M C S O desafio do conhecimento pesquisa qualitativa em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2004 OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem-Paraacute CCSE-UEPA 2004 PACHECO Agenor Sarraf Em el corazoacuten de la Amazocircnia identidades saberes e religiosidades do regime das aacuteguas marajoaras Tese de Doutorado (Ciecircncias Sociais) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica Satildeo Paulo 2009 PHOTOGRAPHY T Mina de ferro Carajaacutes no Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwinfoescolacomgeografiaextrativismo-mineral-no-brasilgt Acesso 30 de abril de 2016 PROGRAMA DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO Atlas Brasil 2013 Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=150030ampidtema=11 ampsearch=para|afua|C38Dndice-de-desenvolvimento-humano-nicipal-idhm-gt Acesso 17 de maio de 2016 PROYANOMAMI Os Yanomamis e sua terra textos de Bruce Albert (IRD) disponiacutevel lthttpwwwproyanomamiorgbrgt Acesso em 28052013
218
QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica LatinaIn LANDER E (Org) A colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Perspectivas latino-americanas Coleccioacuten Sur Sur Clacso Buenos Aires ndash Argentina setembro 2005 p 227 ndash 278 ______ Colonialidade do poder e classificaccedilatildeo social In SANTOS Boaventura de Sousa MENESES Maria Paula (Orgs) Epistemologia do Sul Satildeo Paulo Cortez 2010 RODRIGUES Denise Souza Simotildees et al Cultura cultura popular amazocircnica e a construccedilatildeo imaginaacuteria da realidade In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias de saberes representaccedilotildees sobre a cultura amazocircnica em praacuteticas de educaccedilatildeo popular Beleacutem EDUEPA 2007 ROMANATTO Mauro Carlos A noccedilatildeo de nuacutemero natural em livros didaacuteticos de matemaacutetica comparaccedilotildees entre textos tradicionais e modernos Dissertaccedilatildeo (mestrado) Universidade Federal de Satildeo Paulo Satildeo Carlos SP 2007 RIBEIRO Gustavo L ESCOBAR Arturo (orgs) Antropologias Mundiais Transformaccedilotildees da disciplina em sistemas de poder Brasiacutelia Editora UNB 2012 RIBEIRO W C Teoria Criacutetica contribuiccedilotildees para se pensar a Educaccedilatildeo Ambiental Sinapse Ambiental Betim v4 n2 p8-25 dez 2007 REIS A C F R O seringal e o seringueiro 2 ed Manaus Editora da Universidade do Amazonas 1997 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 SALLES Vicente O negro no Paraacute sob o regime da escravidatildeo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1971 SANTIAGO Abinoan Hidreleacutetrica pode ter causado morte de peixes no rio Araguari diz poliacutecia Disponiacutevel em httpg1globocomapamapanoticia201511hidreletrica-pode-ter-causado-morte-de-peixes-no-rio-araguari-diz-policiahtml Acesso em 7 de maio 2016 SANTOS B A dos Recursos minerais da Amazocircnia Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 16 n 45 p 123-202 2002 SANTOS Wildson Luiz CARNEIRO Maria Helena da Silva Livro Didaacutetico de Ciecircncias Fonte de informaccedilatildeo ou apostila de exerciacutecios In Contexto e Educaccedilatildeo Ano21 Julhodezembro Ijuiacute Editora Unijuiacute 2006 SANTOS B S MENESES M P (Org) Epistemologias do Sul 6 Ed Satildeo Paulo Cortez 2010 SANTOS B de S Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes-moderna Rio de Janeiro Graal 2002
219
______ A criacutetica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 8 ed Satildeo Paulo Cortez 2011 ______ Introduccedilatildeo a uma Ciecircncia Poacutes-Moderna Rio de Janeiro Graal 1999 ______ A gramaacutetica do tempo para uma nova cultura poliacutetica 3 ed Satildeo Paulo
Cortez 2008
______ A critica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 4 Ed
Satildeo Paulo Cortez 2007
______ Um discurso sobre as ciecircncias 10 ed Porto Afrontamento 2009
______ (org) Semear outras soluccedilotildees os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SILVA Tomaz Tadeu daDocumentos de Identidade uma introduccedilatildeo as teorias do curriacuteculo 3 ed Belo Horizonte 2009 SILVA Raimundo Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwalcilenecavalcantecombrpage32gt Acesso 8 de maio de 2016 SILVAM das G S N O espaccedilo ribeirinho Satildeo Paulo Terceira Margem 2000 SAID Edward O Orientalismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1978 SPIVAK Gayatri C Estudios de la Subalternidad In Estudios postcoloniales Ensayos fundamentales 2008 Disponiacutevel em httpwwwoozebaporgbibliopdfestudios_postcolonialespdf Acesso em 09 de fev de 2014 ______ Pode o subalterno falarBelo Horizonte Editora UFMG 2010 TAVARES M Despensar as pedagogias coloniais e os seus pressupostos epistemoloacutegicos VIII Coloacutequio de Pesquisa Sobre Instituiccedilotildees Escolares Pedagogias Alternativas UNINOVE Disponiacutevel em lthttpppgeuninoveblogspotcombr201109viii-coloquio-de-pesquisa- obrehtmlgt Acesso em 14052015 TAVARES M G da CostaA Amazocircnia brasileira formaccedilatildeo histoacuterico-territorial e perspectivas para o seacuteculo XXI GEOUSP - Espaccedilo e Tempo Satildeo Paulo nordm 29 - Especial p 107 - 121 2011 TEIXEIRA C C O aviamento e a sociedade do barracatildeo do seringal 1980 200 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em geografia) Universidade de Satildeo Paulo 1980 TORRES C A Diaacutelogo com Freire 3 ed Satildeo Paulo Loyola 2003
220
TRIVINtildeOS Augusto N S Introduccedilatildeo agrave pesquisa em ciecircncias sociais a pesquisa qualitativa em educaccedilatildeo 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2007 VILLAS-BOcircAS Andreacute Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina 1 fotografia color Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 WALLERSTEIN Immanuel O albatroz racista a ciecircncia social Joumlrg Haider e a resistecircncia Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais nordm 56 fev 2000 p 05-33 ______ Impensar a Ciecircncia Social Os limites dos paradigmas do seacuteculo XIX Aparecida Ideias amp Letras 2006 ______ Anaacutelises dos sistemas mundiais In GIDDENS A TURNER J (org) Teoria social hoje Satildeo Paulo Editora Unesp 1999 WALSH C Pedagogiacuteas decoloniales praacutecticas insurgentes de resistir (re)existir y (re)vivir Quito Abya Yala 2013 ______ Interculturalidad criacutetica y educacioacuten intercultural In VIANtildeA J TAPIA L WALSH C Construyendo Interculturalidad Criacutetica La Paz III-CAB 2011 ______ Interculturalidad y colonialidad del poder Un pensamiento y posicionamiento ldquootrordquo desde la diferencia colonial In CASTRO-GOacuteMEZ Santiago amp GROSFOGUEL Ramoacuten (Orgs) El giro decolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo globalBogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto de Estudios Sociales Contemporaacuteneos y Pontificia Universidad Javeriana Instituto Pensar 2007 ______(Ed) Pensamiento criacutetico y matriz (de)colonial reflexiones latinoamericanas Quito Universidad Andina Simon BolivarAbya-Yala 2005 WALSH Catherine SCHIWY Freya CASTRO-GOacuteMEZ SantiagoIndisciplinar as ciecircncias sociais Quito Universidade Sandina Simon BolivarAbyaYala 2002
221
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os moradores
Cartografar a partir das memoacuterias
dos moradores da ilha do Accedilaiacute os
saberes presentes no discurso e
nas praacuteticas cotidianas dos
ribeirinhos
Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio
2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida
3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os
seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute
4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres
encantados
5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres
encantados E como elas satildeo curadas
6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou
produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e
outras)
7 Como vocecirc desenvolve essa atividade
8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la
9 Quais os instrumentos utilizados para a
execuccedilatildeo desta atividade
10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver
essa atividade
11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou
a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a
participaccedilatildeo da famiacutelia
12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido
222
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os Professores
Identificar na praacutetica pedagoacutegica
do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber
escolar
Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio
(magisteacuterio)
2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo
3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso
positivo em que aacuterea do conhecimento
4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro
Municiacutepio ou Estado
5 Quem define os conteuacutedos que satildeo
trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da
educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino
fundamental
6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo
incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios
que vocecirc utiliza para selecionaacute-los
7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem
todos satildeo trabalhados durante o ano letivo
Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para
selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados
8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico
que os alunos receberam este ano
9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas
223
10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas
para a classe multisseriada
11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no
planejamento das aulas Caso positivo como
ocorre a inclusatildeo desses saberes
12 Como os alunos satildeo organizados na sala de
aula multisseriada
13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas
para trabalhar os conteuacutedos nas aulas
14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados
nas aulas Como satildeo utilizados
15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade
em sala de aula
224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores
1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los
2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas
3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se
satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade
4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada
5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para
trabalhar os conteuacutedos nas aulas
6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do
curriacuteculo pelos professores
225
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade
1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos
2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados
3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para
curar as doenccedilas
4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como
satildeo desenvolvidas
6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades
produtivas
7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no
desenvolvimento das atividades produtivas
2
Almeida Edielso Manoel Mendes de
Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber
popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute Edielso Manoel Mendes de
Almeida 2016
227 f
Tese (doutorado) ndash Universidade Nove de Julho - UNINOVE Satildeo
Paulo 2016
Orientador (a) Profordf Drordf Ana Maria Haddad Baptista
1 Ecologia de saberes 2 Diversidade epistemoloacutegica 3 Saber
popular 4 Amazocircnia
I Baptista Ana Maria Haddad II Titulo
CDU 37
3
ECOLOGIA DE SABERES
Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o
saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
___________________________________________________________________
Orientadora Prof Dra Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador I Prof Dra Diana Navas (PUCSP)
________________________________________________________________
Examinador II Prof Dra Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)
________________________________________________________________
Examinador III Prof Dr Mauriacutecio Silva(UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador IV Prof Dr Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)
________________________________________________________________
Suplente Prof Dra Carminda Mendes Andreacute (UNESP)
________________________________________________________________
Suplente Prof Dr Joseacute Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)
Aprovadoem __________________
Tese apresentada agrave Universidade Nove de Julho
junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em
Educaccedilatildeo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Educaccedilatildeo pela banca examinadora formada por
4
AGRADECIMENTOS
A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e
experiecircncias
A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-
me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo
Paulo
A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela
recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo
A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel
Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente
no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese
Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se
disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores
A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de
Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu
paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante
sua existecircncia neste mundo
A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de
caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto
E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo
foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um
de noacutes
5
RESUMO
Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do
diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular
das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a
pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros
saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso
epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a
partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes
no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica
pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas
foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular
produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do
municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo
etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo
teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo
na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos
ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos
professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal
(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o
diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo
reconhecimento do saber popular
Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular
Amazocircnia
6
ABSTRACT
This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog
between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in
Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers
pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same
class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos
communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the
school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity
and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents
memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As
well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge
dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were
compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that
these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is
a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo
Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this
search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and
the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked
with social economical cultural and religion contexts where they are These people
establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About
dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal
(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur
vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not
recognized
Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge
Amazon
7
RESUMEN
Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio
del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla
del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los
docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de
las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la
investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros
conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de
caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar
un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los
conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien
como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los
conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su
conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en
Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas
por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio
de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco
comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el
estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento
propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo
Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado
con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas
pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En
relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce
verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de
praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la
imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular
Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular
Amazonia
LISTA DE FOTOGRAFIAS
8
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira
Paraacute
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de
Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho
Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 16 - Escola Polo
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Fotografia 24 ndash Matapi
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Fotografia 27 ndash Marupazinho
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
9
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno
Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da
disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
LISTA DE TABELAS
10
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea
urbana
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no
ano de 2016
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino
fundamental por professor
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
LISTA DE MAPAS
11
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute
LISTA DE SIGLAS
12
CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazocircnia
CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos
ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e
Manganecircs
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano
INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas
IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica
LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional
MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo
NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo
PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo
PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio
PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento
PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico
SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo
SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute
SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia
UEPA - Universidade do Estado do Paraacute
UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute
SUMAacuteRIO
13
APRESENTACcedilAtildeO 15
INTRODUCcedilAtildeO 19
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24
11A ECOLOGIA DE SABERES 24
111O Paradigma hegemocircnico 24
112 A crise do paradigma hegemocircnico 26
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28
114 A criacutetica da razatildeo indolente 30
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas
dosoprimidos
38
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42
122A colonialidade do poder 47
123 Gnose ou pensamento liminar 53
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80
23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85
231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99
241 Educaccedilatildeo Infantil 99
242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130
411 Saberes das Aacuteguas 134
412 Saberes da Terra e da Mata 147
14
413 Saberes do Accedilaiacute 156
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164
421 O Conhecimento Escolar 164
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166
422O Livro Didaacutetico 173
423O Planejamento das Aulas 180
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva colonizadora
181
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva descolonizadora
183
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193
5CONCLUSAtildeO 206
REFERENCIAS 214
APEcircNDICES
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227
APRESENTACcedilAtildeO
15
Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e
a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos
multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo
seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural
Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei
cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na
qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais
culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo
Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia
com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas
aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar
milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e
vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo
econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para
navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para
pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto
Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute
que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que
quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os
meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos
poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando
em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino
fundamental
Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes
repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha
linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos
considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas
aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu
nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para
sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante
considerada correta culta e hegemocircnica
Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para
o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do
Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na
16
educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui
aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos
meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois
nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas
das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra
No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no
Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores
para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-
formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas
comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o
caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho
Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a
responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4
sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e
as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de
formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes
multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na
Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui
designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para
o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)
Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo
de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino
fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir
sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura
era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez
reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a
isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a
questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo
1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil
17
escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores
das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das
regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos
do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida
decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos
obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam
constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das
Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)
Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da
Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto
na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a
ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de
pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho
O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de
janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da
turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao
sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias
constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional
e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas
do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele
lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava
longe do que estabelecem as leis
No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado
do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas
ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de
Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do
Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos
de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de
ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado
5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata
18
Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte
da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma
faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no
decorrer desta tese
INTRODUCcedilAtildeO
Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o
conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no
acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como
19
objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do
Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha
Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo
de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na
visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico
(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas
de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e
religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute
essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa
relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico
O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento
da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da
articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo
Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e
educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado
Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com
nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual
haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a
realidade na qual vivemos
O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter
garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-
accedilatildeo)
Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular
dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes
multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na
ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute
A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato
que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo
em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos
professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de
aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas
20
multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo
ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e
tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum
encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes
multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao
reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de
conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)
O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo
com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram
contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo
consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos
ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do
total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado
administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos
de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada
pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade
geograacutefica da regiatildeo
O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no
mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica
pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na
referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem
saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no
doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o
escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica
do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente
Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional
Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais
dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios
e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o
transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-
los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que
7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas
21
exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado
regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a
pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as
escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da
pesquisa8
Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo
problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam
em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das
comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga
com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por
isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos
moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar
como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a
relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos
culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute
O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago
do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior
ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo
Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria
das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica
denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela
Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do
lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo
com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea
em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de
propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois
a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que
8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local
22
a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma
formosa obra em palafitas
O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas
divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que
estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo
que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo
regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas
situadas na ilha do Accedilaiacute10
Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a
construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o
saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias
aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo
capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia
realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas
em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos
e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local
da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo
dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a
cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o
qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata
e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo
entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos
professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute
classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras
e as descolonizadoras
9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha
23
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA
Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que
balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas
11 A ECOLOGIA DE SABERES
Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta
apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos
24
uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um
novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo
das ecologias
111O Paradigma hegemocircnico
Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo
do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo
XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu
marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute
Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos
sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental
De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a
Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu
matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)
que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes
sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo
diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo
ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a
comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo
dos fenocircmenos
Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz
ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica
dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na
experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe
fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)
Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da
intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a
verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso
do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes
sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo
cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do
objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)
Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na
qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito
superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o
25
caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos
processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa
filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)
Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou
a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo
desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado
umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva
da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)
Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo
e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta
forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza
para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da
ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista
na Europa que
[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo
Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado
pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode
ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser
considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido
Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de
mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o
objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo
classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o
conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica
Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute
cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como
vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas
Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do
conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais
26
e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila
previsibilidade ordem e estabilidade
Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais
emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente
possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se
hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam
pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das
ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo
da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim
que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava
uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias
sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos
(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por
mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma
cientiacutefico
112 A crise do paradigma hegemocircnico
Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a
ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania
epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma
emergente
Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise
[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)
Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente
gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da
relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os
questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e
biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo
interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou
quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente
mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a
inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo
27
se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem
p 56)
Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de
formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas
pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a
concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da
microfiacutesica da quiacutemica e da biologia
Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram
cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo
reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus
limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido
autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo
num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo
demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que
caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade
Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do
fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do
pensamento
A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)
No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende
a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as
sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O
questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante
dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos
(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade
Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma
moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder
econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as
relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no
interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos
28
contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses
perifeacutericos (SANTOS2008)
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente
Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um
discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que
denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute
somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas
pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-
natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as
ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda
[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)
Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais
e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos
estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre
os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do
conhecimento
Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno
caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade
etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p
46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da
dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia
perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa
hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem
sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser
temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro
uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos
grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais
Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo
Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento
as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta
29
forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente
assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do
sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto
e sobre o proacuteprio sujeito
Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa
constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento
cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu
reconhecimento
A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)
As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades
sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica
feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor
destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais
evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo
paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a
coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia
geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)
Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na
Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas
fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal
Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a
epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo
Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o
queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das
constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias
dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante
eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos
diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)
11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007
30
O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de
culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis
Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das
aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes
possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos
construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)
socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade
crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades
e subjetividades
Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza
questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir
da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir
114 A criacutetica da razatildeo indolente
A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia
nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a
produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental
excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da
validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que
requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-
se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais
destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as
revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo
A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)
A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista
que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade
cultural deixando-as na invisibilidade
12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia
31
Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e
colonialismo
Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial
Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus
modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os
e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento
por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica
Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do
colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto
relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e
discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes
e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e
dominam as relaccedilotildees internacionais
Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume
maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que
caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de
outras perspectivas epistemoloacutegicas
O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)
Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de
colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e
Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a
loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio
reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo
(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na
supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e
32
silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos
interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica
econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo
missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo
colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se
passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do
imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo
e a si mesmos
O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo
dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside
tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O
propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do
reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a
partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo
somente as econocircmicas
Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim
como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem
manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul
Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)
Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida
pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas
nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos
situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade
do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias
sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade
individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)
Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da
experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas
comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo
produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do
33
autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais
e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna
O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-
colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta
mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar
as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do
sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul
requer um rompimento com o Norte imperial
[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao
Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo
colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)
Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas
mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os
restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida
em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS
2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas
bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber
institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi
produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo
Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver
o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo
que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza
epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida
de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente
por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica
Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da
retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que
facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes
homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p
25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo
do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las
de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias
cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do
mundo que diferem da hegemocircnica
34
Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a
hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim
acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais
experiecircncias
[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)
Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras
maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes
satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade
que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute
ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como
natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute
ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As
ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do
saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala
dominante e a do produtivismo capitalista
Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares
natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista
reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas
nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental
Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos
que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo
invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver
ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes
povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo
cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um
contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo
marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das
populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar
seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para
35
o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio
de validaccedilatildeo do seu saber
A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura
Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a
resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem
como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos
desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos
selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem
totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos
e demais adjetivos pejorativos
Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como
referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de
organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo
reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com
isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres
encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados
A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de
naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo
satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas
satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que
difere do padratildeo dominante
A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as
ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular
e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em
decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto
inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o
hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo
escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de
alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto
de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora
No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode
ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias
satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica
capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo
36
consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de
ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o
improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e
globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo
Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo
as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente
invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade
agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias
consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees
sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo
cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da
transescala e das produtividades
A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear
existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por
exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a
derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das
estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute
plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que
possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a
presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres
vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em
determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que
nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de
proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o
jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como
afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou
afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo
No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das
desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram
colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da
categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas
13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio
37
sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura
uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo
espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita
de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a
pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute
ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS
1997 p 31)
Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que
parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos
como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees
locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de
resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas
experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com
atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta
contra a exclusatildeo social
Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a
ecologia das produtividades que consistem no
[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)
A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois
abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo
global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo
democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa
equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em
relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As
pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias
que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios
e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia
Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a
diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por
38
contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A
seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso
objeto de estudo
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos
oprimidos
A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica
que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de
explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que
norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes
eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da
globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e
fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer
os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos
dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os
saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados
Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o
que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos
fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que
ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre
esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a
hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir
[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)
Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os
diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o
que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados
superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o
respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo
intercultural
15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam
satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)
39
Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva
intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade
a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao
longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do
diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas
na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos
discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal
E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de
descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica
sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas
estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber
dominante ou entre qualquer tipo de saber
A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do
diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o
autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das
estruturas do poder
Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute
[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila
Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na
colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da
geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a
interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por
meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh
(2006 p 21)
mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica
Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais
econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos
40
submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa
perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo
permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a
negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas
Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade
indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da
democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os
diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados
Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos
transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo
intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de
partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas
como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA
hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural
transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e
pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)
Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas
o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura
aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos
unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para
o dialogo cabe a cada grupo cultural
A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)
O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros
e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os
protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no
tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser
incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a
hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da
culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou
diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve
41
ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a
igualdade nos descaracteriza
Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural
Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois
pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos
neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos
mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto
isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende
aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto
refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa
loacutegica
Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)
Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua
capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros
No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado
para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo
concreta nas praacuteticas sociais
A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e
epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o
saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada
pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta
maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES
TEOacuteRICAS
Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os
conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com
o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos
Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a
finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees
dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo
Freireana
42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais
Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento
intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia
epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados
Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo
abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o
rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo
Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo
diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido
o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de
acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes
situaccedilotildees de opressatildeo
Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como
um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e
articulado
Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica
Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do
colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e
Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de
opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor
que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said
que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como
o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria
a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As
abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos
modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento
O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto
por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-
colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no
pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)
43
ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais
europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo
do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno
Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram
para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da
diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno
falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos
especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da
impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo
(SPIVAK 2010 p 12)
Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por
volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as
obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad
y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-
asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart
Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos
Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate
poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)
Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito
de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para
discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata
essa concepccedilatildeo
Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)
Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo
nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para
o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana
motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo
44
Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo
Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do
pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos
[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais
Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade
destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil
Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das
principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e
ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo
Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos
uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado
grupo
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Integrante
Aacuterea
Nacionalidade
Universidade onde leciona
Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru
Enrique Dussel
Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico
Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua
Immanuel Wallerstein
Sociologia Estadounidense Yale University Eua
Santiago Castro-Goacutemez
Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia
Nelson Maldonado-Torres
Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
Ramoacuten Grosfoacuteguel
Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
45
Edgardo Lander
Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela
Arthuro Escobar
Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua
Fernando Coronil
Antropologia Venezuelana University of New York Eua
Catherine Walsh
Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador
Boaventura Santos
Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal
Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina
Fonte Luciana Ballestrin 2012
Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes
para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre
elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos
culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo
do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo
Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de
Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para
a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para
Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado
O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte
espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas
externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura
para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-
mundo capitalista
Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)
O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de
expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema
interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo
46
delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos
se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo
Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as
desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas
poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas
histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente
reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo
(WALLERSTEIN 1999 p459)
Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas
de funcionamento totalizando trecircs
Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)
O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos
sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco
seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a
soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no
acircmbito do sistema-mundo vigente
A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-
mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de
colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da
classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o
domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais
122A colonialidade do poder
A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal
Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao
poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas
relaccedilotildees com o capital e o trabalho
47
Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que
atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas
entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura
global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total
controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma
determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial
diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a
soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza
como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas
formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em
uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica
Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da
matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)
Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade
nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo
por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por
intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla
pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e
pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a
necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que
teoricamente teriam sido superados na modernidade
Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e
poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute
visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees
poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza
e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou
superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)
A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da
modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a
modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma
positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma
violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo
desenvolvimento e democratizaccedilatildeo
ParaQuijano (2000 p342)
48
La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America
A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos
histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as
relaccedilotildees de poder global na atualidade
No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi
construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado
De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas
quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da
sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis
de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle
do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade
eurocentrada
A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo
da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado
Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em
categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e
amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do
seacuteculo XVIII europeu
E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)
Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de
legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a
superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica
inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da
pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-
se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo
construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo
49
Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de
afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental
que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia
as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO
2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave
elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a
construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de
dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de
dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos
povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade
e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas
mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos
subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo
com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten
subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como
el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder
carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que
estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo
Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer
do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em
seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos
morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio
e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo
Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)
Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de
ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a
diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio
do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de
produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo
das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos
que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo
50
simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a
imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos
aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a
religiosa
Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia
os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo
mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas
A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)
Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de
produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do
capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se
baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas
agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia
natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos
iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando
nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos
mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos
seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi
transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica
raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o
trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade
Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com
os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual
iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo
dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e
dominaacute-los
A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)
ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual
estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos
51
ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa
sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem
p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da
economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do
sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados
economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)
Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma
forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade
para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo
sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo
psiacutequica tambeacutem esteja presente
Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem
agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos
eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora
Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja
fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que
se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente
Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da
populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos
europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como
os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais
avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo
de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno
possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela
estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse
modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois
[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)
Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter
exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa
sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada
52
em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe
uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de
modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual
sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca
que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo
central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em
consequecircncia seu campo central de conflito
Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente
global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua
tese
Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade
o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta
Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas
baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de
praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera
central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo
da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees
hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos
O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da
Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do
processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de
produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder
colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo
esse modo de construir conhecimento
[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente
53
hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica
Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento
hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos
Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo
subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de
conhecimento
No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram
segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos
descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto
social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo
relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem
considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores
123 Gnose ou pensamento liminar
Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em
[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)
Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que
historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica
constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo
opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia
a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme no
sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose
enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes
54
marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da
hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras
Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo
com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como
formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a
categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade
do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios
espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio
da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta
maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo
a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava
a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo
XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global
gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para
as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado
a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte
nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)
O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a
reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado
territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se
defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da
mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave
condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)
O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila
colonial que eacute concebida como
[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)
55
Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas
quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma
enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim
enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a
descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica
ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio
marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica
No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o
questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas
dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em
paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila
O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e
na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente
uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar
Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando
no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta
maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite
pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o
direito agrave filosofia e agrave ciecircncia
Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em
liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus
privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e
conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular
folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual
fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra
razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e
na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica
Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento
natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo
de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da
legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e
emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e
absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos
liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute
56
pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento
liminar
[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)
Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento
da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes
subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica
eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo
construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria
agrave descolonizaccedilatildeo
Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre
modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois
uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a
formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em
suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos
modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial
universal e abstrata (MIGNOLO 2003)
Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila
colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se
teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com
a localizaccedilatildeo geograacutefica
No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na
descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo
a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico
Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)
Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute
diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto
discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo
do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade
eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema
57
mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria
modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a
extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como
consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da
articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das
praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A
preocupaccedilatildeo do autor eacute
[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)
Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-
colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos
deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem
conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave
mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades
econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e
silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa
as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema
moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de
saberes liacutenguas culturas e povos
O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que
assim como o pensamento liminar
[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)
58
O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo
subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos
saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo
eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a
partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute
eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias
limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente
marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)
O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute
uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das
diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e
qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de
consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)
reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas
para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da
diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo
se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros
paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo
O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e
validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas
existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo
discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras
Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres
humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos
para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens
mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo
eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e
reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo
doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da
contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees
a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o
diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua
importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo
59
A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar
transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido
quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso
amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute
pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo
Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra
a todos
Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)
Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem
ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa
exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente
sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para
posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o
diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o
outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o
diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo
social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a
seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para
que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila
Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens
e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute
impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo
amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo
amor que o sustenta e o impulsiona
O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado
pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio
diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o
que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a
imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer
60
mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e
modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento
ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz
ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica
como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o
autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e
linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma
reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo
qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental
Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no
respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo
Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio
de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e
ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que
[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)
O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo
educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos
encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico
Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e
conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser
humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer
pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e
competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem
estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio
natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a
afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma
Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []
O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana
expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com
61
os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora
progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a
produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade
impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o
diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para
alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade
direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos
Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e
recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia
A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)
O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos
possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres
inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um
saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que
possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao
contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para
sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa
oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e
ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive
precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes
Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os
pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas
enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves
contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para
o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que
estavam ocultos
A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no
homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma
Freire (2014 p112)
O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []
62
O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder
A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute
desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe
como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para
a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na
melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014
p 113)
Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute
sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se
materializar na accedilatildeo no exemplo
O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo
nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e
esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz
da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus
semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este
almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica
As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a
desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como
estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se
nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila
refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute
ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela
torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade
O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)
63
A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando
as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da
educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico
Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o
homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia
entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA
Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na
Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos
das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos
geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA
Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica
ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio
concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)
Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada
A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a
complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso
estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo
Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros
ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais
colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o
espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar
heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares
(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A
64
concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem
marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo
Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo
Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-
ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos
no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e
professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha
eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de
originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da
criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na
produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos
mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e
econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas
amazocircnias
Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios
contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de
violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu
o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos
os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes
agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu
A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que
16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo
americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro
continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das
misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico
65
penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)
Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo
presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara
rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave
natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)
ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a
regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da
naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de
que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no
entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo
a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre
desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental
A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua
fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o
modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio
de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos
naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo
madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos
sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de
florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies
em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO
2001 p 113)
Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados
para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O
primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua
organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O
segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como
referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com
atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e
agricultura) e do subsolo (atividades minerais)
66
Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute
usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a
colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na
atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo
de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da
colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade
A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)
No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram
na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede
das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu
foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes
corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras
os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-
Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e
couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas
durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre
as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda
um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo
(REIS 1997 p 80-81)
A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que
levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a
devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na
regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute
o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do
corte das aacutervoresrdquo
A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do
desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da
67
vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o
incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo
de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e
com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que
escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento
que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e
o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes
poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na
regiatildeo (TAVARES 2011)
A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como
um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o
escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011
p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de
pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos
mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da
deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos
relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos
grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou
cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no
entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio
de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense
Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral
desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de
1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de
toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio
O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)
Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A
produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o
empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a
populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no
68
extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs
bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma
que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial
confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi
sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado
e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo
O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram
levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento
escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila
de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo
final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de
baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em
accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros
ecossistemas amazocircnicos
Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico
mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia
oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas
pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo
do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo
mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica
governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos
fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte
Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)
Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o
Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade
de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa
foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de
69
creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo
mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a
Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra
dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce
Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento
poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de
beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de
Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao
terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p
190)
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography
O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja
exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute
Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu
milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da
miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina
decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza
outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a
Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo
70
despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos
como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto
devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e
agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de
ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos
garimpeiros
Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)
Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a
cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em
Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram
outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os
garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral
Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por
volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como
construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos
intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo
bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que
a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena
e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000
(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a
intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos
1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de
onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo
(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi
estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da
colonizaccedilatildeo
Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e
no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos
econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas
71
terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em
mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na
subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal
padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)
Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos
decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e
principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das
aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al
(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas
unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu
capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram
mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral
em terras indiacutegenas
Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)
Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente
o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram
o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na
regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas
hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo
gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do
paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte
Curuaacute-Una e Teles Pires
Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo
dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de
barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do
entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555
kmsup2 de floresta
No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte
considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de
72
acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal
obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com
ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo
para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e
desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados
referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil
para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e
indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo
de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes
socioambientais de viabilidade da usina
Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)
Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental
[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos
programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)
O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e
accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela
empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos
sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram
registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80
No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes
para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura
de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram
atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda
de qualidade do ensino
Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de
oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e
73
casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao
futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local
onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local
O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)
As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o
valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O
dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do
poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa
resolveu pagar
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores
viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa
garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram
desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de
compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o
verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras
[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)
Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees
exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de
opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
74
De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA
Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os
impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o
desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho
emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite
no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram
para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz
parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas
Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico
Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do
Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa
e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios
afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda
natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos
de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina
As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo
Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar
produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades
indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim
os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-
desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram
usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os
75
processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a
desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos
nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses
povosrdquo (ISA 20015 p 10)
Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que
teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de
2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da
mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos
industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de
desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O
dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos
aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e
lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98
geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a
refrigerantesrdquo (idem p 12)
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute
Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA
A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem
natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores
e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e
causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem
da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe
76
principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da
regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte
das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA
perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em
Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que
comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade
e engrossam os bolsotildees de pobreza
Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira
Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente
estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio
Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela
abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que
manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido
resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fonte Raimundo Silva 2015
Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute
brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio
e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute
construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos
77
enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente
seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave
pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute
desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo
deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens
emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de
aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo
emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e
vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)
Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As
construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila
de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes
A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)
De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente
o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas
e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside
(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida
hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser
concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)
pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da
resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que
exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo
tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua
subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza
questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees
em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna
adequados para viverem em outros contextos
Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos
ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como
pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-
78
se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e
garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem
para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas
destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de
mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc
Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos
naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias
espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das
populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que
conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos
aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados
inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do
colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes
empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo
sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da
Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre
outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista
Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em
consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais
caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade
humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade
geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das
florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar
que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da
mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou
o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de
maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso
antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo
Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos
79
Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os
povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir
de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas
que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos
responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes
daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos
projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a
colonialidade do poder18
Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que
habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo
A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de
viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos
Jeito Tucuju19
Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo
De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras
Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz
Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor
Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui
Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo
Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso
Natildeo contaraacute nossa histoacuteria
Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila
de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar
as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver
eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem
cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior
em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100
afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa
18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode
identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes
80
o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os
estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso
Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel
vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo
as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros
lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer
comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que
fazem parte do imaginaacuterio desse povo
Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da
populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem
referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem
para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica
O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do
colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo
com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras
A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)
O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um
povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo
principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e
econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas
distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do
sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de
produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais
correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros
ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do
Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros
teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades
apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica
da Amazocircnia
81
A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da
Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta
regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de
dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica
Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da
Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos
e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)
A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos
o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal
D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento
redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual
estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a
substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra
discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)
Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do
ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de
etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo
territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e
constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo
estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do
nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha
da borracha
As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)
A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo
fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam
concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo
da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo
federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados
dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute
promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do
presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de
82
atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em
defesa da ldquopaacutetria amadardquo
Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)
Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas
massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de
extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em
defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para
aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)
Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de
pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio
milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do
produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes
nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores
para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945
utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram
aproximadamente cinquenta mil trabalhadores
Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)
A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a
possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo
tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros
pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram
abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam
por meio das diacutevidas com o barracatildeo20
20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte
83
Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo
XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro
Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para
Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios
em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes
nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que
era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa
era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)
Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram
as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos
seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e
ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade
de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da
agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)
Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila
e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como
afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos
ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial
foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios
e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e
bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos
para sua subsistecircncia
A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo
colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena
contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas
O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as
terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de
garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes
culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos
centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo
ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e
roccedilados dos baixos riosrdquo
84
Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo
e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores
e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas
praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de
mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu
singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)
Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos
negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme
Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia
53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos
e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas
proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e
algodatildeo
Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na
formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela
grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com
os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da
Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que
ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-
se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de
vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)
Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute
constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais
indiacutegenas negras europeia e nordestina
23 AFUAacute a Veneza Marajoara
O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara
em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas
num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de
marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira
e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade
ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e
por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma
abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos
85
moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na
educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental
231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos
Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas
que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas
que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata
uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas
No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte
utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O
transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por
um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas
e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos
chamados de carreteiros
Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
86
Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz
parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que
visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo
Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-
ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao
domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da
regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial
Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e
Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses
das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e
exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior
ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre
eles a matildeo de obra indiacutegena
Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram
tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)
Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se
comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)
procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar
fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio
Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)
Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo
pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que
permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do
Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)
87
Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior
da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute
Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a
pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela
Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua
evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica
Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma
igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi
doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse
das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do
distrito da Vila de Chaves
O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao
patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa
no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO
DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e
como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo
Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que
88
inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um
povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje
ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das
pessoas que as observam desde os rios
De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos
agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro
sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a
localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento
adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como
agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da
floresta e a entrada de mercadorias para consumo
[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua
necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas
gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo
(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)
As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias
eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves
(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios
ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas
do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura
do caboclo da Amazocircniardquo
Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14
de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia
entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm
170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria
de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade
De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram
nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos
constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser
governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos
passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo
Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na
microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
89
Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-
hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016
O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na
foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo
com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves
Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri
Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri
O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste
com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste
com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a
leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute
(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute
90
Fonte Google Mapas Disponiacutevel em
lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de
2016
Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia
a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do
Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade
com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam
constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre
outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e
florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios
roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no
Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute
principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento
nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um
hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que
provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos
Municiacutepios mais proacuteximos
No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense
conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba
macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o
miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas
A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo
atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque
91
marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo
De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute
negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre
eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da
histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para
exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira
Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de
madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de
ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA
exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios
da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais
de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)
Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois
as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os
acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a
violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte
com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de
trabalho (LIMA 2003 p 43)
Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade
denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de
sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos
e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR
PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta
de mateacuteria-prima para o mercado externo
A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo
levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural
aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas
serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do
Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem
projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos
21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de
Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco
92
ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a
empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes
A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como
consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado
ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se
forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores
ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras
aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos
mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)
Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que
inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o
desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado
O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido
geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os
estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para
outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a
regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir
tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo
(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)
A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo
desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo
para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de
educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas
condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos
sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo
mendicacircncia entre outras
Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece
atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro
[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de
accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de
palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de
beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO
DE AFUAacute 2007 p 26)
Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo
espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas
devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
93
Produto
Quantidade Produzida
Valor (Mil reais)
2010 2014 2010 2014
Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151
Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014
Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida
em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no
intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de
accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem
diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo
aumentou
Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a
casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de
Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de
conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$
1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode
variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes
A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute
que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem
nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o
que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa
rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do
produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se
tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na
entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de
alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos
A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para
o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com
accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute
habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos
(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da
regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila
da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo
aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte
94
do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em
Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira
matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros
Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o
periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia
Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no
mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz
parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade
Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015
o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)
pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e
paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste
na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem
(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade
e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha
22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes
ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo
que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem
95
O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade
laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e
homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a
venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na
qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior
abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho
O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura
familiar que consiste em
[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim
da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute
colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa
mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada
ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p
86)
Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a
cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para
o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua
permanecircncia nela
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015
24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo
ribeirinhas
96
Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do
milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com
os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos
que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees
ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos
ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de
poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave
populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas
que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a
biodiversidade da regiatildeo
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398
habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-
ribeirinhas (vilas e povoados)
No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo
haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna
gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos
demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo
publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000
adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado
por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as
vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional
Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana
passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio
pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a
densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo
antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo
urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)
Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho
97
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem
atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo
Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de
barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante
galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os
ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na
cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto
energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que
nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome
geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito
A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de
Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando
indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de
0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1
(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de
0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em
25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010
98
meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas
que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o
estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014
dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na
Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves
(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)
A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que
reside no Municiacutepio
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute
A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil
ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino
meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso
significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido
constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos
competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves
margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes
de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos
uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um
elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de
escolarizaccedilatildeo
A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois
98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares
somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da
educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o
ensino fundamental e meacutedio
241 Educaccedilatildeo Infantil
A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir
da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave
assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave
infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute
reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o
investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal
99
A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do
Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional
nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a
partir de quatro anos de idade
A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)
Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das
oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e
financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a
responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo
infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave
Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre
os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da
descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do
atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos
os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado
em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas
Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute
reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das
famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um
espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este
princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As
crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo
Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano
bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o
turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que
as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo
de creches que atendam o que a lei estabelece
100
Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada
no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do
processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila
procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma
reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da
educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve
ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito
constitucionalmente garantido
Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em
nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em
infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto
poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei
e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania
Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola
eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei
corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do
Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a
incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a
criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos
adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente
A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para
legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo
para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n
93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo
Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica
Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-
escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto
da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no
acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande
importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes
A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o
desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania
aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela
101
haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio
da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade
O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas
legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da
crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e
social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)
ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de
idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos
A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo
infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III
o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e
aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento
prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e
supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)
Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em
segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos
recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica
evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que
de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo
infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo
infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de
Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no
periacuteodo de 2014 a 2016
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
ANO
2014 2015 2016
Creche 182 190 190
Preacute-escolar 659 403 403
Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016
O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu
devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino
fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as
102
turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores
por turma
No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025
consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola
para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo
infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas
ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de
educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para
expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola
Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em
creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
META BRASIL 50 META AFUAacute 10
Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos
BRASIL
NORTE
PARAacute
MARAJOacute
AFUAacute
Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute
3786
232
92
112
109
48
952
Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche
apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela
acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave
pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda
teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha
fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das
crianccedilas na Amazocircnia
A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal
incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da
proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da
creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e
modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a
obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para
as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que
103
existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de
garantir o atendimento com qualidade
Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma
infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca
auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46
(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em
diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica
Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e
uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a
proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a
alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)
Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos
abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do
IBGE
Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
META BRASIL 100 META AFUAacute 100
POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS
BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute
1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
104
Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas
de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a
todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para
professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a
educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo
Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da
creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste
trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira
por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo
A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da
que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o
atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino
fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade
forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver
onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas
nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de
abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para
o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do
Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese
seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do
ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil
105
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-
ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do
ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute
somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo
resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema
educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de
merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas
enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola
funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora
Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo
reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se
estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir
242 Ensino Fundamental e Meacutedio
A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental
teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na
organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas
estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham
acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo
na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade
com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo
106
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)
Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave
educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do
Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de
indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove
Anos
Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a
obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia
do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida
economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das
classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir
as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de
vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino
fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas
brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo
A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino
fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo
[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)
Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que
eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo
infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na
preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo
oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica
serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o
cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma
poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa
107
de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo
(p 5)
Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos
avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em
seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino
fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil
ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas
Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6
anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no
uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos
(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de
vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em
serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos
motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e
materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em
consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo
solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia
para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram
revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de
ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a
obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a
antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso
Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas
de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas
elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo
infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no
ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila
nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio
[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)
Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute
fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola
abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas
108
pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda
(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior
para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe
pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores
Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os
dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a
municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em
vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e
colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-
sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do
EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos
anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do
ensino fundamental
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
ANOS
ESTABELECIMENTOS
Estadual Municipal Particular Total
1996 17 136 - 153
1997 17 115 1 133
1998 15 158 1 174
1999 13 192 1 206
2000 - 197 1 198
Fonte MECINEPSEDUC 2000
Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do
ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma
escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf
etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta
da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade
da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima
de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos
ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do
PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a
29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda
109
de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive
para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do
Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no
art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB
Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)
A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte
do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes
para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de
Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade
do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas
deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as
caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta
forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo
Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda
demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)
anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos
50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME
2015 p 4)
No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que
ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute
de dois anos ou mais
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE
SEacuteRIE
Anos Iniciais 8206
449
Anos Finais 4279
607
Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025
Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase
metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos
alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da
110
distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de
extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras
atividades econocircmicas (HAGE 2013)
No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do
desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana
Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS
2964 2239 440 285
Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016
Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das
escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que
a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de
servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato
administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees
deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre
para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma
determinada escola
Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de
30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos
humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio
administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com
os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar
Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico
o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros
distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede
eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o
funcionamento das maacutequinas
Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
111
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais
materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute
escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara
trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de
cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores
O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute
habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica
instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas
no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca
e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas
rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos
necessaacuterios
As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem
preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro
secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de
aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou
do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute
um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica
112
isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para
as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de
formamultisseriada
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi
cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois
assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo
representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede
113
issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de
pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no
teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo
espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite
As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas
pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos
entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir
os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala
aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado
acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria
Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos
didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o
mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto
leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os
acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos
semestudar
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA
114
O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada
na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se
desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os
investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com
o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando
observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre
a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para
ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos
investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos
ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social
econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes
A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)
Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa
requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que
estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na
escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo
de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os
investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por
aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)
Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa
parte do princiacutepio de que
[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees
Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel
fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos
significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados
Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem
qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)
[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os
115
viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais
Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva
que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas
[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado
Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por
possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura
dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas
linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular
que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute
(2013 p 25) envolve
[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural
Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao
municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades
ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades
produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de
dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira
como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que
ascerca Na etnografia
Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)
116
Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas
teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas
no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos
objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas
percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las
mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados
Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas
escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira
descritas na tabela abaixo
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627
Escola
Ed
Infantil
Ensino Fundamental Nordm de
Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm
A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140
B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94
C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58
D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66
E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as
seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente
duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute
a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e
pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais
distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino
fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o
preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula
secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute
composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas
residentes na comunidade
Fotografia 16 - Escola Polo
27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las
117
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com
quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que
dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e
produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo
docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima
O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo
em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula
118
na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano
o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar
tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela
sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga
entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos
niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor
Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores
A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
119
Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional
possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual
realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da
praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA
PESQUISA
As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo
ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e
instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram
realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a
fotografia
A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma
seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o
pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees
fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos
propostos elaboramos o roteiro das entrevistas
Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando
testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das
entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os
moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a
reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos
sujeitos
As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa
gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais
imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao
entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram
realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos
como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este
detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo
Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e
os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens
28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo
120
com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes
multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo
dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas
pertencentes ao Regional
Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em
diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das
praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da
ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha
do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade
participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e
curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no
ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e
satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato
Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por
Minayo ( 2004 p 62) como
[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este
Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que
formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me
como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida
para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais
como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros
e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os
pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre
outras
Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador
chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador
30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo
frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia
121
acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua
visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves
suas proacuteprias accedilotildees
Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo
enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados
[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial
Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica
pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees
foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente
ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na
sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o
anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4
Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9
Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se
desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social
poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI
2003)
Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que
necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas
estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo
institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que
ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o
que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em
consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da
comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada
A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de
ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um
lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os
alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem
mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as
122
metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo
Andreacute (2003 p 43)
Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)
A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos
aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as
relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas
produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a
partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas
A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose
refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes
macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar
a escola do contexto em que estaacute inserida
Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e
interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas
especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute
Segundo Alves (2008 p 28)
A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens
Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos
econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver
dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA
Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram
parte da pesquisa
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas
123
Professor
Anos do Ensino Fundamental que Lecionam
Experiecircncia com Classes
Multisseriadas
Formaccedilatildeo
Prof 1
3ordm 4ordm e 5ordm ano
6 anos
Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar
Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva
Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
8 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano
11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio
ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade
Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um
convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da
SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais
trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo
pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos
de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute
A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Morador Caracteriacutesticas
Maria
Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A
124
Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C
Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio
Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio
Pedro
Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano
Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes
Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)
Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro
Francisca
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
Raimundo
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS
Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas
semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de
conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em
Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens
Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a
utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros
de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como
afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica
pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees
jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)
Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das
mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo
Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da
mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor
ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como
procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo
125
A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os
dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam
posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o
procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos
constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento
segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)
As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as
aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees
voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou
natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial
teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das
unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em
subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na
pesquisa de campo
A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute
fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser
classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades
de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de
acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico
adotado
A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise
de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto
com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta
as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo
do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo
A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso
caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase
que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade
de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise
ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados
conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p
118)
126
Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a
exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido
por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo
das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees
foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em
seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam
aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias
intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas
resultando nas categorias finais
Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e
interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes
no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com
o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os
resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como
apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa
Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes oriundos da experiecircncia
existencial desenvolvida na relaccedilatildeo
dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam
as suas atividades diaacuterias para a garantia
da sobrevivecircncia bem como a leitura de
mundo
Diaacutelogo
Numa perspectiva freiriana como o
momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo
da realidade na qual vivemos para poder
transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos
homens mediatizados pelo mundo para
33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema
alfanumeacuterico
127
pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto
na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs
subcategorias de acordo com a tabela abaixo
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Subcategoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes das Aacuteguas
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia as aacuteguas dos rios
igarapeacutes e furos da Ilha
Saberes da Terra e da Mata
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia a terra e a mata da
Ilha
Saberes do Accedilaiacute
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia o accedilaiacute
Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo
das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela
abaixo
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Praacuteticas Colonizadoras
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela
imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo
do saber popular configurando a colonialidade do
saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade com
uma perspectiva redutora do conhecimento
128
Praacuteticas Descolonizadoras
As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas
comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees
culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas
praacuteticas procuram dar visibilidade a essas
manifestaccedilotildees
No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as
inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no
proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de
campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
129
Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular
juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e
saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes
proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos
no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas
e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por
meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo
historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes
precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se
essencial para que isso ocorra
A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e
posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida
ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas
praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de
campo
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute
Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos
moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas
nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as
atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os
ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido
de que
Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)
Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o
mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam
criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e
pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem
esses protagonistas
130
Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na
comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)
nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos
materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira
paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado
construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo
que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais
Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute
denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e
reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre
crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na
invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens
fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta
maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos
amazonidas uns com os outros
Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se
aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou
emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e
pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado
grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p
44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso
comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa
forma possam produzir tecnologias e sabedoria
Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem
cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou
talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da
mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute
criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser
humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos
modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo
Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu
saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida
como
131
Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)
O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a
natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo
transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser
incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a
malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute
tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser
interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p
15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural
desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo
Oliveira(2004 p 54) satildeo
[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc
Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular
servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo
transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de
acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees
rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores
e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo
apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade
Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste
periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural
criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e
econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees
praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e
sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo
aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando
34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o
camaratildeo na mareacute cheia
132
paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente
dos conhecimentos acadecircmicos
Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos
por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo
vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo
existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as
lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim
organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)
o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos
padrotildees da objetividade cronoloacutegica
Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados
pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato
explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade
apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste
em
[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis
Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que
presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da
mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar
de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da
memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens
criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de
qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em
suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo
Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute
sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do
tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida
em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que
emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir
133
411 Saberes das Aacuteguas
O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao
movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios
de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua
eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes
determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como
da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os
seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social
econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute
suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas
da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros
igarapeacutesrdquo
Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de
saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas
Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses
saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses
saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres
encantados
Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que
vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta
forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica
e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante
cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)
Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na
comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo
movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo
um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha
idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta
Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36
purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo
35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito
134
Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza
eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de
experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular
pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se
ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)
Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres
pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas
Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)
A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando
porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a
possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos
utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim
como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da
seguinte forma
Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
135
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual
natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de
pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada
verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar
por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido
agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da
primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a
conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute
colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo
pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)
Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e
calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu
Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma
aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo
Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas
e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de
tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas
38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco
136
tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas
substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente
Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo
estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer
Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo
praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar
que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no
diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)
O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para
pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades
cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute
piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma
madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se
aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa
que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega
no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41
40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju
137
Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas
juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi
O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua
flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute
amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de
chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol
Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute
constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio
Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)
Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a
presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se
esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e
nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por
isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio
para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016
42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe
138
Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo
que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da
Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas
retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e
o arpatildeo
Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)
O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua
haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica
detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta
Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo
Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era
faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando
no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem
encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do
referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando
a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que
pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades
principalmente de Macapaacute para pescar nos rios
A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo
eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente
amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho
para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio
nos contou como faz para fachear46
43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia
139
A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar
A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque
com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco
Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o
que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a
zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos
peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve
fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da
mareacute
A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses
que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente
durante a vazante da mareacute
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia
acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as
47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia
140
malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira
atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute
colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois
que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de
monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas
pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso
existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016
Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha
na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos
da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo
Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular
Fotografia 24 ndash Matapi
48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor
141
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi
Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo
Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados
para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais
mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a
monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo
de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste
discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica
capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)
Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das
aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no
cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce
grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem
uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho
51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica
142
Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados
Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos
e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos
naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados
que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa
desobedececirc-los
Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua
habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as
mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador
rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas
as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem
ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)
Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para
esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas
comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades
de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do
rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele
desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da
menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar
que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai
direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor
Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia
sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que
aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos
padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com
nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas
experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato
Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para
52 Margem do rio
143
mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro
Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou
tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de
qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem
pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da
epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a
estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis
pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto
Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que
quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir
Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas
praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo
gritador
Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque
tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua
Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na
comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando
era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson
(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros
e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado
mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha
Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55
53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata
144
A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com
Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou
curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor
o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo
fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha
fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo
avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos
duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona
Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer
tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio
de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que
seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras
partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe
oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito
bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas
56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor
145
Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar
sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um
dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra
ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir
os saberes da reza que satildeo guardados em segredo
Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo
em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma
mulher adulta
Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de
cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela
caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite
nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura
de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na
eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)
Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa
conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia
algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos
acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte
Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco
Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa
que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute
ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou
tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus
feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com
respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual
tem que dar o que prometeu a ela
58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia
146
Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como
esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)
representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo
Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo
procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que
envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem
como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no
rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado
pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo
ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no
riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros
Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e
natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta
pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o
universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem
conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de
conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da
Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as
relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento
hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel
fundamental
41 2 Saberes da Terra e da Mata
Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho
estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e
reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o
reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de
saberes existentes no mundo
Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e
remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O
ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que
satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para
o consumo local
Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias
As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os
147
matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha
chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor
senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que
estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases
chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga
inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de
doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas
pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-
olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos
das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo
fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia
Fotografia 27 ndash Marupazinho
148
Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os
remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os
remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim
eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas
quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco
de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo
comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma
de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para
massagear) e banhos
Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de
benzer ainda eacute parteira
Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com
61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc
149
jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um
Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta
maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela
estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem
cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra
nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo
para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante
uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida
pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto
ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto
Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)
[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal
Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de
sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum
apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico
Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais
como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e
depois do fato
Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar
Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia
conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a
62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica
150
desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida
Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra
principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato
Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto
As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de
coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma
moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de
hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave
noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com
o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que
sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito
redonda seraacute meninardquo
A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia
as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade
favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia
de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros
ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia
O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da
farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo
A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da
ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores
sujeitos da pesquisa
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar
151
Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
152
Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016
153
O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do
matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe
camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas
outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016
154
Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada
buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e
peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas
satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do
fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados
Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)
No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a
escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo
ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute
furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm
relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas
e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)
Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir
permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui
advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os
69 Crianccedilas
155
caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos
animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na
lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem
capturados entre outros
A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)
O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a
dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes
orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo
de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila
Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e
geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande
parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os
desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo
submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o
conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)
Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na
mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente
este saber a seguir
413 Saberes do Accedilaiacute
O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base
econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira
conforme imagem a baixo
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
156
As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute
com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou
charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves
vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos
alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)
ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual
vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si
proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos
e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o
morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e
na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo
A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na
comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo
accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres
domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais
velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios
por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia
por meio do envolvimento nas atividades produtivas
70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira
157
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016
A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e
pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode
um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo
assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A
idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a
diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se
desenvolver
Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso
O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma
os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-
se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para
71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver
158
o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como
tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha
A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)
A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que
a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio
ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da
populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente
das aacutervores que satildeo derrubadas
Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o
paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as
folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A
medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua
funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para
evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e
com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila
nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio
atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia
com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha
nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de
uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016
159
Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de
serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela
temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo
Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos
primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na
beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com
o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire
(2005 p 70) afirma que
O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual
72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho
160
A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o
tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao
contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade
produtiva
Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a
compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas
televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira
rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz
movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda
obtida do accedilaiacute
A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa
por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para
amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde
haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia
Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta
antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal
pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para
73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute
161
natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos
162
caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016
Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda
amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais
proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste
processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas
tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em
trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as
bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir
o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa
Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos
das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e
mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo
escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo
com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e
diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente
ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p
25)
Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento
dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica
diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que
tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a
evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de
dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo
Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da
cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que
atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas
nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute
163
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR
Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos
das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos
professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do
Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas
colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo
Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro
didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em
seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do
educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e
aprendizagem
421 O Conhecimento Escolar
Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de
conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais
amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no
aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento
escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo
do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim
poliacutetica
A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)
Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima
conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os
que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os
conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira
e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos
e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de
aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada
segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida
e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico
Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute
organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica
164
para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da
utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-
se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de
ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a
uacutenica maneira de compreender o mundo
Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o
mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser
reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque
considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo
satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que
caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido
como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)
Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos
(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74
Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial
Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela
classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de
serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio
e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-
as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a
exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010
p 72)
O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as
identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias
invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio
de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo
conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber
no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer
74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais
165
eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito
Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS
2011 p 30)
Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e
consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um
modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num
conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade
e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os
ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante
Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da
colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de
saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de
pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social
A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos
disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura
erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute
sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente
no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a
descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na
transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos
horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo
(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)
existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de
saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios
diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e
entendimentos distintos do mundo
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores
O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como
conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino
fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres
De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser
trabalhados com os alunos
166
Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo
sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da
cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo
dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber
Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)
Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos
conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora
do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os
conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute
vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados
independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a
exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de
conhecimento sem sentido e significado para eles
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO
LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
DISCIPLINA CIEcircNCIAS
1ordm BIMESTRE
1 Planeta Terra e Ambiente
11 A atmosfera terrestre
12 A aacutegua no planeta
13 O solo tipos de solo
22 Os seres vivos dos ecossistemas
2ordm BIMETRE
1 O corpo humano
11 Sustentaccedilatildeo e movimento
12 As partes do corpo humano
13 Os microrganismos
167
Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016
A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da
disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os
professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as
escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o
registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de
um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o
ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para
o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos
saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que
se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os
diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber
75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos
Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre
168
Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina
no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que
aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-
Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em
relaccedilatildeo ao colonizado
O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)
Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e
costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus
saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e
Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo
materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser
contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando
As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para
reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo
especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O
estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute
desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da
ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e
o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do
produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da
natureza
O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)
No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na
pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se
sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos
sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de
dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem
trabalhados no ano letivo
169
Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)
A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de
conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute
enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles
retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a
mobilizaccedilatildeo do saber local
Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da
lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam
fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem
constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos
possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo
Atividade
1 Preencha a tabela com os nomes dos
animais encontrados aqui na ilha e seus
respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro
Paca X
Tatu X
Jacareacute X
Capiva
ra
X
Porco X
170
(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram
selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre
os quais
Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)
Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades
sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes
para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam
os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de
abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das
experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-
se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p
31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la
Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)
Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)
destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de
compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da
sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades
necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como
171
suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na
qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse
sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais
na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos
comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho
ribeirinho
Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos
conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo
da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos
professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer
parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos
que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os
quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e
coletiva dos sujeitos (p 4)
Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se
necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na
sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos
jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem
e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos
professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a
colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas
tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem
conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma
perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os
conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE
2004 p 4)
A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos
mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes
multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas
422O Livro Didaacutetico
Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento
impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de
aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita
172
ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como
visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo
didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de
valoresrdquo
Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais
didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias
o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e
cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta
maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes
multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo
por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os
docentes
Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos
jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de
cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor
acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus
alunos
Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)
Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo
as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a
buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula
ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram
organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo
conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para
treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor
escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro
tambeacutem direciona o curriacuteculo
76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos
173
Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)
A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar
aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o
livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo
atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e
da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos
alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem
significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo
eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a
praacutetica do professor
Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim
utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim
os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo
pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute
uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries
na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para
Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na
escola
[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias
O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das
aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser
um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o
ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e
174
educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente
precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos
conteuacutedos dentre elas os saberes populares
Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a
construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa
linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia
contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes
Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que
natildeo haja hierarquias entre eles
O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos
na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes
As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)
Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e
contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam
relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre
permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas
regionais bem como as locais
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico
da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
175
Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016
Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da
cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em
outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o
que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo
aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma
avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada
do assunto
Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)
Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel
pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente
ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor
MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O
176
utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois
nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e
complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as
escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de
pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no
caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o
livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a
seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula
O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para
cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos
como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos
interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor
cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos
veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam
diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo
Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)
Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da
educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica
pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que
compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e
culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores
da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos
e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a
177
mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e
as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos
Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo
Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica
Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)
O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na
educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para
a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em
detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas
mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)
[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura
O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das
quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base
para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras
disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo
reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os
concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos
conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber
ler para transcrevecirc-los
Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no
ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar
e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto
contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual
decide eles executam o que foi decidido
178
Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)
Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e
de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os
uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma
multisseriada
O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus
objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e
escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD
em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua
concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento
para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos
livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo
entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento
avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos
docentes das escolas da ilha do Accedilai
423O Planejamento das Aulas
Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio
das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos
nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de
acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo
planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades
didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos
quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio
do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar
assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual
ela estaacute inserida
Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico
ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo
(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a
179
conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma
o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real
para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de
maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas
O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)
Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional
porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se
corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do
planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador
amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do
conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais
eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais
Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade
sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e
objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos
conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas
realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de
metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de
ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)
A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira
elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva
colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
colonizadora
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento
escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade
do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior
centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o
surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas
180
O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente
considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras
formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa
maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a
eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo
de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do
conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses
hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados
epistemologicamente
Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que
consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que
os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas
praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da
estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em
que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas
colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo
professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos
colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento
Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)
O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os
oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em
consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o
181
planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar
para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que
impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o
uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na
escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material
Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro
didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a
turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades
especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam
interagir com colegas de outros anos
Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um
problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo
em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde
acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico
das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos
conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm
3ordm 4ordm e 5ordm ano
No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de
conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do
poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos
ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a
negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e
adolescentes ribeirinhos)
Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser
oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder
(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte
do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado
oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e
invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses
hegemocircnicos
A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece
as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das
maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do
182
mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras
dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos
tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da
valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta
direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do
regional Madeira que descrevemos a seguir
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
descolonizadora77
As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem
que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do
reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de
accedilotildees pedagoacutegicas planejadas
Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo
intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto
histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes
fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento
liminar
Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez
(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco
das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos
sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam
(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses
(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que
denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos
pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com
ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de
um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao
planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da
ilha do Accedilaiacute
No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da
77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
183
comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)
O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades
dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a
valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses
alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros
membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em
Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos
produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo
trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a
professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute
sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees
reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado
com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos
Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor
reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua
importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam
constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira
matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees
artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria
espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de
experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica
comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses
saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir
com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses
saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute
contribuindo para a leitura criacutetica do mundo
184
A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira
esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do
conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que
nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de
outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma
ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na
natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um
dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os
animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e
a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da
floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na
Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que
conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para
a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo
(SANTOS 2010 p 58)
O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o
instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo
acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual
conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento
eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de
uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte
que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)
Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na
praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam
tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social
econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades
desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e
faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo
subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia
No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos
metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que
seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o
desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas
metodologias de ensino
185
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem
A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees
que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo
as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino
selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos
Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos
que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais
dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo
relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar
determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social
Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por
concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar
embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono
da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o
conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor
e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim
a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-
la
As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem
estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado
a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural
econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e
desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo
Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo
ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta
metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees
concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no
desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003
p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas
Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc
186
Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos
que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo
e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees
de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de
classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas
atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas
para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino
e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos
usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees
e anaacutelises sobre determinado assunto
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78
As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do
planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias
desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de
procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire
(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na
[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos
O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos
devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute
estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute
permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que
eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo
eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p
81)
Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as
praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo
intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no
quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo
187
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e
5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do
lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os
quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades
correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos
especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para
facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo
da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos
Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)
O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o
quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos
metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da
exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores
receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz
curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes
188
todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios
para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o
exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado
Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)
A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor
monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de
exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os
que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito
primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto
desumanizante continuerdquo
Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e
a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os
saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do
seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos
mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do
conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino
fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo
eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos
devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo
predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo
multisseriada afirma que
[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)
A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos
outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou
189
cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos
diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das
atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo
que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade
cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A
negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta
visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa
pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o
livro didaacutetico
Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)
Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o
livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno
faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o
exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro
em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da
praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta
Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o
conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos
e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais
sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A
imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma
forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees
que natildeo seja a dominante
190
Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do
conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do
Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo
de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo
geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim
poliacutetico tambeacutem
Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes
com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-
historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais
compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que
passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo
com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela
colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos
ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos
e morais
Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei
algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada
como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o
professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias
seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio
porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de
barrigardquo E o professor retrucou
Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)
No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da
linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois
ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos
esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco
tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a
falar ldquoerradordquo
Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente
que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente
191
que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos
desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta
maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada
na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante
Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam
e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem
um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os
geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo
uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma
delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo
oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como
forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e
determina a linguagem dominante como a oficial
As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na
sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa
liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns
docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que
os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na
escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada
correta culta e hegemocircnica
Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange
questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma
nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito
agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso
agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e
menos excluiacutedos
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras
Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas
praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as
narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo
paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo
dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que
estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que
192
consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas
educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem
Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com
alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos
elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo
Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos
No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram
e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o
professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre
193
outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor
agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o
matapi
A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento
fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o
conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir
do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o
conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo
como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve
o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como
mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para
garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das
ferramentas utilizadas nas atividades produtivas
Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala
de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos
colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos
encararem um desafio que consistia em tecer um matapi
O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das
atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a
tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse
saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes
diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula
associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na
relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas
locais Como afirma Freire (2014 p 39)
Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas
Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber
popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos
na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade
do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo
criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este
194
conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber
Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a
pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se
valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela
escola
A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e
visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que
construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa
determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho
Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi
desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com
alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano
Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem
Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o
camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos
que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade
Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros
79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato
195
encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem
pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho
encontrado em abundacircncia na Ilha
O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os
alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos
diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu
os seguintes encaminhamentos
Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute
Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos
com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico
natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria
uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes
questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo
dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute
acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de
accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem
direto para o consumidor em Macapaacute
Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados
em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os
alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as
apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees
De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os
moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia
196
de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores
vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o
ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute
obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas
puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos
atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem
A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de
dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora
entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$
1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos
alunos como essa realidade poderia ser mudada
Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora
Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos
que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a
refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo
assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo
diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a
realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa
perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de
vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que
como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais
justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo
emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum
80 Atravessador
197
tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do
presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro
didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de
aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre
o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista
que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute
O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua
com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia
foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a
professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola
Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio
O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos
alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente
com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio
rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas
repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu
198
sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam
parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal
e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc
O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas
em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste
lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem
sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo
eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo
O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo
O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes
geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles
precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo
os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma
a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente
o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a
dialogicidade
[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)
Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber
escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber
necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber
popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p
86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas
representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa
representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo
formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar
Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os
falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade
Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia
abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz
Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja
alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas
199
no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa
o referido autor
[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)
Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como
determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma
praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta
FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva
intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo
houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo
epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de
explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a
comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e
igualdaderdquo (idem p 11)
Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo
ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos
Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome
200
Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem
A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila
Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O
planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo
houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos
educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos
educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi
fundamental para o ecircxito da aula
A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)
A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava
escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da
pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que
despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das
respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente
se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho
chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)
A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres
inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo
Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma
gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a
dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores
mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos
Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que
existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do
hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois
haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos
moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre
outros
201
Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a
autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no
diaacutelogo colocam algo em discussatildeo
Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)
Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade
reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem
contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo
Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento
em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos
dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as
emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)
A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi
visibilizado
Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele
202
Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros
Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo
dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu
cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as
doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo
ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado
das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo
de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)
chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica
nas accedilotildees educativas
O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar
O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento
do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo
passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos
(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos
que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da
escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o
conhecimento global
No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo
indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos
alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das
pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que
se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos
203
gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora
estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar
porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos
Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes
que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia
hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto
pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e
garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua
no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um
instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para
explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os
remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de
existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na
aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de
vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da
ciecircncia farmacecircutica
Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e
com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula
o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos
duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os
alunos questionaram
Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha
204
A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos
que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e
voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo
reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no
veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou
fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira
satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas
determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano
assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute
5CONCLUSAtildeO
Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute
territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um
mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos
que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da
ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava
profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes
apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No
diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute
e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas
conclusotildees deste estudo
De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar
como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha
do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos
das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das
praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores
mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras
205
nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de
saberes
Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e
reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos
numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de
Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas
relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual
as desenvolvem
Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade
diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco
tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas
vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel
(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai
fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que
esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia
que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo
baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber
Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas
teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais
oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das
matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a
feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos
encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na
mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos
haacutebitos alimentares de cada espeacutecie
No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo
de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim
a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o
tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho
sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde
encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri
entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles
comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e
ferramentas para aprisionaacute-los
206
Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as
atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o
horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do
tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como
os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais
adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das
mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico
fundamental para entendermos como vivem esses povos
Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando
se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo
gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das
comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo
pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os
filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam
no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as
crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente
No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e
tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados
pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma
experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento
da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos
remeacutedios oriundos da terra e da mata
Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos
enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da
ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma
epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao
transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma
cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar
pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como
criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores
Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas
por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte
o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e
207
aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses
saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das
aacuteguas
Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento
escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem
horizontalmente
O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de
colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos
ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de
ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado
natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do
imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo
indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre
elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece
esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos
consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das
diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a
monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local
Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da
escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo
parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o
contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em
consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos
(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos
das aacuteguas da Amazocircnia
O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por
meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o
que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos
docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com
a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e
intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como
verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de
pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os
208
saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de
educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo
cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias
colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi
imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia
colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees
invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios
sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees
hegemocircnicas
Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as
mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe
uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da
cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O
diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes
locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas
escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja
ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo
docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma
horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento
das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do
Accedilaiacute
Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e
reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades
sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das
necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios
do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes
locais
81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6
209
Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades
produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas
descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas
metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido
a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses
saberes foram os protagonistas
O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a
realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas
escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da
comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar
transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os
moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os
professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de
ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e
respeito agrave sua dignidade
A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem
saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem
possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No
diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e
ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do
respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro
Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo
horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como
afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens
acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos
digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade
dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa
pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor
o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente
da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem
nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave
educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os
210
professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo
poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes
no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das
experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no
qual vivem esses protagonistas
A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os
educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo
influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o
tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo
relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam
a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais
Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os
poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais
iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o
dom milagroso83rdquo
Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade
de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo
ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira
efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza
Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi
nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas
crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas
nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo
pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime
qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas
Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas
ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e
produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma
Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo
83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute
211
precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como
(metodologia) deve ser ensinado
Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser
ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a
imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade
das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento
Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e
provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes
que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas
religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que
isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute
fundamental na gestatildeo escolar
No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado
refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo
que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades
e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que
valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e
religiosas
212
REFEREcircNCIAS ALMEIDA JR Joseacute Maria Gonccedilalves de (org) Carajaacutes desafio poliacutetico ecologia e desenvolvimento Satildeo Paulo Brasiliense 1986 ALVES-MAZZOTTI Alda Judith GEWANDSZNAJDE Fernando O meacutetodo nas ciecircncias naturais e sociais pesquisa quantitativa e qualitativa 2 ed Satildeo Paulo Pioneira 2002 ANGOTTI M Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc In___ (Org) Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc Campinas Aliacutenea 2010 AGUIAR J D N SANTOS J Freire dos Neodesenvolvimentismo brasileiro e subimperialismo na Ameacuterica Latina XII Semana de Ensino Pesquisa e Extensatildeo do Centro de Humanidades Universidade Federal de Campina Grande 2013 AMADEO Javier Marxismo e teoria poacutes-colonialidade 6ordm Coloacutequio Internacional Marx e Engels IFCH - UNICAMP Satildeo Paulo 2009 Disponiacutevel em httpwwwifchunicampbrcemarxcoloquioDocsgt7Mesa3marxismo-e-teoria-pos-colonialpdf Acesso em 23 fev 2014 ARROYO M G et al (Org)Por Uma Educaccedilatildeo do Campo Petroacutepolis-RJ Vozes 2004 APPLE W Michael Ideologia e curriacuteculo 3 Ed Porto Alegre Artmed 2006 BAPTISTA A M H ROGERO R (Org) Tempo-Memoacuteria na Educaccedilatildeo Satildeo Paulo BT Acadecircmica 2014 BALLESTRIN Luciana Ameacuterica Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciecircncia Poliacutetica Brasiacutelia v11 2013 pp 89-117 BGNO Marcos A liacutengua de Eulaacutelia novela sociolinguiacutestica 3 Ed Satildeo Paulo Contexto Editora 2004 BARDIN L Anaacutelise de Conteuacutedo 12 ed Lisboa Ediccedilotildees 7 2004 BECKER Bertha K Amazocircnia geopoliacutetica na virada do III milecircnio 2 ed Rio de Janeiro Garamond 2007
213
BEZERRA NETO L Na luta pela terra a conquista do conhecimento Satildeo Carlos Pedro amp Joatildeo Editores 2013 BENCHIMOL Samuel Amazocircnia formaccedilatildeo social e cultural Manaus Editora Valer 1999 BITTENCOUT A O homem amazonense e o espaccedilo 3 ed Rio de Janeiro Artinova 1989 ______ Hidreleacutetricas no Amazonas temos um exemplo negativo no nosso quintal Disponiacutevel
em lthttpwwwihuunisinosbrentrevistas509099-hidreletricas-no-amazonas-temos-um-exemplo-negativo-no-nosso-quintal-entrevista-especial-com-anderson-bittencourtgt Acesso em 8 de maio de 2016 BODGAN R BIKLEN SInvestigaccedilatildeo qualitativa em educaccedilatildeo 3 ed Porto Porto
Editora 1994 BRASIL Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional 939496 Disponiacutevel em
lthttpwwwmecgovbrgt Acesso em 8 de maio de 2016 BRANDAtildeO Carlos Rodrigues A educaccedilatildeo como cultura Satildeo Paulo Mercado de
Letras 2007 CALVET L J Sociolinguiacutestica introduccedilatildeo criacutetica Satildeo Paulo Paraacutebola 2000 CANCLIacuteNI Neacutestor GarciacuteaCulturas Hiacutebridas estrateacutegias para entrar e sair da modernidade 3 ed Satildeo Paulo UNESP 2006 CANDAU V M (Org) Educaccedilatildeo intercultural e cotidiano escolar Rio de Janeiro 7 Letras 2006 CASTRO-GOMEZ Santiago amp MENDIETA Eduardo (1998) Introduccion la translocalizacion discursiva de Latinoamerica en tiempos de la globalizacion In CASTRO-GOMEZ Santiago MENDIETA Eduardo (coord) Teoriacuteas sin disciplina latinoamericanismo poscolonialidad y globalizacioacuten en debate Mexico Miguel Angel Porrua 2010 CASTRO-GOacuteMES S Decolonizar la universidad la hybris del punto cero y eldiaacutelogo de saberes In CASTRO-GOacuteMES S GROSFOGUEL R (Ed) El girodecolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismoglobal Bogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto deEstudios Sociales Contemporaacuteneos Pontificia Universidad Javeriana InstitutoPensar 2007 COSTA Seacutergio Dois atlacircnticos teoria social anti-racismo e cosmopolitismo Belo Horizonte Editora da UFMG 2006 COMISSAtildeO PASTORAL DA TERRA 2015 1 fotografia Disponiacutevel em httpwwwcptnacionalorgbrindexphppublicacoesnoticiasgeral2770-papa-critica-o-desmatamento-para-dar-lugar-a-lavouras-de-sojagt Acesso 17 de maio de 2016
214
CHIZZOTTI Antonio Pesquisas em ciecircncias humanas e sociais 6 ed Satildeo Paulo Cortez 2003 CURY C R J A educaccedilatildeo infantil como direito In BRASIL Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e do Desporto Secretaria de Ensino Fundamental Subsiacutedios para credenciamento e funcionamento de instituiccedilotildees de educaccedilatildeo infantil v2 Brasiacutelia DF MECSEF 2012 DELEUZE G Bergosonismo Satildeo Paulo Editora 34 2010 DESCARTES R Discurso do meacutetodo 54 Ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 DIDONET V Importacircncia da educaccedilatildeo infantil In SIMPOacuteSIO DE EDUCACcedilAtildeO INFANTIL construindo o presente Brasiacutelia DF 2014 Anais Brasiacutelia UNESCO 2003 p83-97 Disponiacutevel em lthttpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoue000311pdfgt Acesso em 26 de maio de 2016 DOBLAS Juan Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpvejaabrilcombrnoticiaeconomiahidreletricas-da-amazonia-enfrentam-serie-de-processosgtAcesso 4 de maio de 2016 DRUMMOND J A Investimentos privados impactos ambientais e qualidade de vida num empreendimento mineral amazocircnico o caso da mina de manganecircs da Serra do Navio (Amapaacute) Histoacuteria Ciecircncia Sauacutede Maguinhos v VI p 753-792 setembro de 2000 ECOS DA SELVA Garimpo em terra Yanomami Disponiacutevel emlthttpecosdaselvawordpresscomtagyanomami Garimpo em terra Yanomamigt Acesso em 28 de julho de 2016 ESCOBAR Arthuro Mundos y conocimientos de otro modo el programa de investigacioacuten modernidadcolonialidad latinoamericano Bogotaacute Tabula Rasa 2003 Disponiacutevel em httpwwwuncedu~aescobartextespescobar-tabula-rasapdf Acesso em 23 jul 2014 ESTERMANN Josef Si el Sur fuera el Norte Chakanas interculturales entre Andes y Occidente La Paz ISE 2008 FARES Josebel Akel Cartografia poeacutetica In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem CCESE-UEPA 2004 FEARNSIDE Philip M Desenvolvimento Hidreleacutetrico na Amazocircnia In______ Hidreleacutetricas na Amazocircnia impactos ambientais e sociais na tomada de decisotildees sobre grandes obras Manaus Editora do INPA 2015 FOSTER Eugenia da Luz Silva Traccedilos da trajetoacuteria do negro na regiatildeo amazocircnica Disponiacutevel em lthttpWWWbdtdndcuffbrtde_arquivos2TDE 03-05-
215
15T143957Z-70PublicoParte20220-0teseEugenia20Fosterpdfgt Acesso em 28 de ago de 2010 FANON Frantz Racismo y cultura PreacutesenceAfricaine Junho-novembro 1956 Franco M L P B O que eacute anaacutelise de conteuacutedo 4 ed Satildeo Paulo PUC 2006 FREIRE P Pedagogia do Oprimido 43 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 ______ Pedagogia da Esperanccedila um reencontro com a Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 16ordf ed 2009 ______ Educaccedilatildeo como praacutetica da liberdade Satildeo Paulo Paz e Terra 2003 ______ Politica e educaccedilatildeo Satildeo Paulo Paz e Terra 1987 ______ Extensatildeo ou comunicaccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 GAGNEBIN J M Infacircncia e pensamento In GHIRALDELLI JUacuteNIOR P (Org) Infacircncia escola e modernidade Satildeo Paulo Cortez 2011 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro Zahar1978 GEacuteRARD F M ROEGIERS X Concevoir et eacutevaluer des manuels scolairesBruxelas De Boeck-Wesmail 2000 (traduccedilatildeo Portuguesa de Juacutelia Ferreira e de Helena Peralta Porto2003) GONCcedilALVES Carlos Walter Porto Amazocircnia Amazocircnias 2 ed Satildeo Paulo Editora Contexto 2005 Google Mapas Disponiacutevel em lthttpmapsgooglecombrmapsgt Acesso 17 de maio de 2016 GRUumlN M Eacutetica e educaccedilatildeo ambiental a conexatildeo necessaacuteria 6 ed Campinas Papirus 2002 GRUZINSKI Serge O pensamento mesticcedilo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 GUERRA Ribamar Amazocircnia intervenccedilatildeo e resistecircncia Disponiacutevel em lthttpanovademocraciacombrno-25643-amazonia-intervencao-e-resistenciagt Acesso em 7 de abril de 2016 GROSFOGUEL Ramon Para descolonizar os estudos de economia poliacutetica e os estudos poacutes-coloniais transmodernidade pensamento de fronteira e colonialidade global Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais Coimbra n 80 2008 HAGE Salomatildeo Mufarrej Classes multisseriadas desafios da educaccedilatildeo rural no estado do Paraacuteregiatildeo Amazocircnica In ______ (Org) Educaccedilatildeo do campo na
216
Amazocircnia retratos de realidade das escolas multisseriadas no Paraacute Beleacutem Gutemberg 2005 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA Extraccedilatildeo vegetal e silvicultura Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150030ampsearch=parC3A1|afuagt Acesso 17 de maio de 2016 Jornal O Acre Rio Branco 20 de maio de 1943 n 742 KRAMER Sonia As crianccedilas de 0 a 6 anos nas poliacuteticas educacionais no Brasil educaccedilatildeo infantil eeacute fundamental Educ Soc v 27 n 96 p797-818 out 2006 LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico 23 ed Rio de Janeiro Zahar 2009 LAVILLE Christian DIONE Jean A construccedilatildeo do sabermanual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 2000 LAJOLO Marisa Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em Aberto Brasiacutelian 69 v 16 janmar 2001 LIBAcircNEO Joseacute Carlos Didaacutetica 2 ed Satildeo Paulo Cortez 2004 LOPES Alice Casimiro Curriacuteculo e Epistemologia Ijuiacute Editora Unijuiacute 2007 LOUREIRO V RAmazocircnia uma histoacuteria de perdas e danos um futuro a (re) construir Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 LOUREIRO Joatildeo de Jesus Paes Cultura amazocircnicauma poeacutetica do imaginaacuterio Satildeo Paulo Escrituras Editora 2001 LUDKE Menga ANDREacute Marli E D A Pesquisa em educaccedilatildeo abordagens qualitativas Satildeo Paulo EPU 2006 LUCKESI CC planejamento e Avaliaccedilatildeo escolararticulaccedilatildeo e necessaacuteria determinaccedilatildeo ideoloacutegica IN O diretor articulador do projeto da escola Borges Silva Abel Satildeo Paulo 1992 FDE Diretoria Teacutecnica Seacuterie Ideacuteias nordm 15 ______ Filosofia da educaccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez 2003 MAUEacuteS R H A ilha encantada medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1990 MARINI Ruy Mauro Dialeacutetica da Dependecircncia Petroacutepolis Vozes 2000
217
Mapa da Ilha do Marajoacute Disponivel em lthttpmarajoandoblogspotcombr200912o-mapa-da-ilhahtmlgt Acesso 16 de maio de 2016 MEDIACcedilAtildeO Revista de Educaccedilatildeo do Coleacutegio Medianeira Curitiba PR v 3 n 6 p 33-37 2010 MONTEIRO M de A Meio seacuteculo de mineraccedilatildeo industrial na Amazocircnia e suas implicaccedilotildees para o desenvolvimento regional Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 MORAES MC O paradigma educacional emergente Satildeo Paulo Papirus 1997 MOREIRA A F CANDAU V M Curriacuteculo conhecimento e culturaBrasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2008 MORIN E A cabeccedila bem-feita repensar a reforma reformar o pensamento traduccedilatildeo Eloaacute Jacobina 8 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2003 MIGNOLO Walter DDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo decolonial e o significado de identidade em poliacutetica Traduccedilatildeo de AcircngelaLopes Norte Cadernos de Letras UFF ndash Dossiecirc Literatura Liacutengua e Identidade nordm 34 p 287 ndash 324 2010 ______ Histoacuterias locais projetos globais colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte UFMG 2003 MINAYO M C S O desafio do conhecimento pesquisa qualitativa em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2004 OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem-Paraacute CCSE-UEPA 2004 PACHECO Agenor Sarraf Em el corazoacuten de la Amazocircnia identidades saberes e religiosidades do regime das aacuteguas marajoaras Tese de Doutorado (Ciecircncias Sociais) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica Satildeo Paulo 2009 PHOTOGRAPHY T Mina de ferro Carajaacutes no Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwinfoescolacomgeografiaextrativismo-mineral-no-brasilgt Acesso 30 de abril de 2016 PROGRAMA DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO Atlas Brasil 2013 Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=150030ampidtema=11 ampsearch=para|afua|C38Dndice-de-desenvolvimento-humano-nicipal-idhm-gt Acesso 17 de maio de 2016 PROYANOMAMI Os Yanomamis e sua terra textos de Bruce Albert (IRD) disponiacutevel lthttpwwwproyanomamiorgbrgt Acesso em 28052013
218
QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica LatinaIn LANDER E (Org) A colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Perspectivas latino-americanas Coleccioacuten Sur Sur Clacso Buenos Aires ndash Argentina setembro 2005 p 227 ndash 278 ______ Colonialidade do poder e classificaccedilatildeo social In SANTOS Boaventura de Sousa MENESES Maria Paula (Orgs) Epistemologia do Sul Satildeo Paulo Cortez 2010 RODRIGUES Denise Souza Simotildees et al Cultura cultura popular amazocircnica e a construccedilatildeo imaginaacuteria da realidade In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias de saberes representaccedilotildees sobre a cultura amazocircnica em praacuteticas de educaccedilatildeo popular Beleacutem EDUEPA 2007 ROMANATTO Mauro Carlos A noccedilatildeo de nuacutemero natural em livros didaacuteticos de matemaacutetica comparaccedilotildees entre textos tradicionais e modernos Dissertaccedilatildeo (mestrado) Universidade Federal de Satildeo Paulo Satildeo Carlos SP 2007 RIBEIRO Gustavo L ESCOBAR Arturo (orgs) Antropologias Mundiais Transformaccedilotildees da disciplina em sistemas de poder Brasiacutelia Editora UNB 2012 RIBEIRO W C Teoria Criacutetica contribuiccedilotildees para se pensar a Educaccedilatildeo Ambiental Sinapse Ambiental Betim v4 n2 p8-25 dez 2007 REIS A C F R O seringal e o seringueiro 2 ed Manaus Editora da Universidade do Amazonas 1997 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 SALLES Vicente O negro no Paraacute sob o regime da escravidatildeo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1971 SANTIAGO Abinoan Hidreleacutetrica pode ter causado morte de peixes no rio Araguari diz poliacutecia Disponiacutevel em httpg1globocomapamapanoticia201511hidreletrica-pode-ter-causado-morte-de-peixes-no-rio-araguari-diz-policiahtml Acesso em 7 de maio 2016 SANTOS B A dos Recursos minerais da Amazocircnia Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 16 n 45 p 123-202 2002 SANTOS Wildson Luiz CARNEIRO Maria Helena da Silva Livro Didaacutetico de Ciecircncias Fonte de informaccedilatildeo ou apostila de exerciacutecios In Contexto e Educaccedilatildeo Ano21 Julhodezembro Ijuiacute Editora Unijuiacute 2006 SANTOS B S MENESES M P (Org) Epistemologias do Sul 6 Ed Satildeo Paulo Cortez 2010 SANTOS B de S Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes-moderna Rio de Janeiro Graal 2002
219
______ A criacutetica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 8 ed Satildeo Paulo Cortez 2011 ______ Introduccedilatildeo a uma Ciecircncia Poacutes-Moderna Rio de Janeiro Graal 1999 ______ A gramaacutetica do tempo para uma nova cultura poliacutetica 3 ed Satildeo Paulo
Cortez 2008
______ A critica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 4 Ed
Satildeo Paulo Cortez 2007
______ Um discurso sobre as ciecircncias 10 ed Porto Afrontamento 2009
______ (org) Semear outras soluccedilotildees os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SILVA Tomaz Tadeu daDocumentos de Identidade uma introduccedilatildeo as teorias do curriacuteculo 3 ed Belo Horizonte 2009 SILVA Raimundo Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwalcilenecavalcantecombrpage32gt Acesso 8 de maio de 2016 SILVAM das G S N O espaccedilo ribeirinho Satildeo Paulo Terceira Margem 2000 SAID Edward O Orientalismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1978 SPIVAK Gayatri C Estudios de la Subalternidad In Estudios postcoloniales Ensayos fundamentales 2008 Disponiacutevel em httpwwwoozebaporgbibliopdfestudios_postcolonialespdf Acesso em 09 de fev de 2014 ______ Pode o subalterno falarBelo Horizonte Editora UFMG 2010 TAVARES M Despensar as pedagogias coloniais e os seus pressupostos epistemoloacutegicos VIII Coloacutequio de Pesquisa Sobre Instituiccedilotildees Escolares Pedagogias Alternativas UNINOVE Disponiacutevel em lthttpppgeuninoveblogspotcombr201109viii-coloquio-de-pesquisa- obrehtmlgt Acesso em 14052015 TAVARES M G da CostaA Amazocircnia brasileira formaccedilatildeo histoacuterico-territorial e perspectivas para o seacuteculo XXI GEOUSP - Espaccedilo e Tempo Satildeo Paulo nordm 29 - Especial p 107 - 121 2011 TEIXEIRA C C O aviamento e a sociedade do barracatildeo do seringal 1980 200 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em geografia) Universidade de Satildeo Paulo 1980 TORRES C A Diaacutelogo com Freire 3 ed Satildeo Paulo Loyola 2003
220
TRIVINtildeOS Augusto N S Introduccedilatildeo agrave pesquisa em ciecircncias sociais a pesquisa qualitativa em educaccedilatildeo 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2007 VILLAS-BOcircAS Andreacute Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina 1 fotografia color Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 WALLERSTEIN Immanuel O albatroz racista a ciecircncia social Joumlrg Haider e a resistecircncia Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais nordm 56 fev 2000 p 05-33 ______ Impensar a Ciecircncia Social Os limites dos paradigmas do seacuteculo XIX Aparecida Ideias amp Letras 2006 ______ Anaacutelises dos sistemas mundiais In GIDDENS A TURNER J (org) Teoria social hoje Satildeo Paulo Editora Unesp 1999 WALSH C Pedagogiacuteas decoloniales praacutecticas insurgentes de resistir (re)existir y (re)vivir Quito Abya Yala 2013 ______ Interculturalidad criacutetica y educacioacuten intercultural In VIANtildeA J TAPIA L WALSH C Construyendo Interculturalidad Criacutetica La Paz III-CAB 2011 ______ Interculturalidad y colonialidad del poder Un pensamiento y posicionamiento ldquootrordquo desde la diferencia colonial In CASTRO-GOacuteMEZ Santiago amp GROSFOGUEL Ramoacuten (Orgs) El giro decolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo globalBogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto de Estudios Sociales Contemporaacuteneos y Pontificia Universidad Javeriana Instituto Pensar 2007 ______(Ed) Pensamiento criacutetico y matriz (de)colonial reflexiones latinoamericanas Quito Universidad Andina Simon BolivarAbya-Yala 2005 WALSH Catherine SCHIWY Freya CASTRO-GOacuteMEZ SantiagoIndisciplinar as ciecircncias sociais Quito Universidade Sandina Simon BolivarAbyaYala 2002
221
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os moradores
Cartografar a partir das memoacuterias
dos moradores da ilha do Accedilaiacute os
saberes presentes no discurso e
nas praacuteticas cotidianas dos
ribeirinhos
Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio
2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida
3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os
seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute
4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres
encantados
5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres
encantados E como elas satildeo curadas
6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou
produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e
outras)
7 Como vocecirc desenvolve essa atividade
8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la
9 Quais os instrumentos utilizados para a
execuccedilatildeo desta atividade
10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver
essa atividade
11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou
a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a
participaccedilatildeo da famiacutelia
12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido
222
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os Professores
Identificar na praacutetica pedagoacutegica
do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber
escolar
Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio
(magisteacuterio)
2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo
3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso
positivo em que aacuterea do conhecimento
4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro
Municiacutepio ou Estado
5 Quem define os conteuacutedos que satildeo
trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da
educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino
fundamental
6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo
incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios
que vocecirc utiliza para selecionaacute-los
7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem
todos satildeo trabalhados durante o ano letivo
Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para
selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados
8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico
que os alunos receberam este ano
9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas
223
10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas
para a classe multisseriada
11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no
planejamento das aulas Caso positivo como
ocorre a inclusatildeo desses saberes
12 Como os alunos satildeo organizados na sala de
aula multisseriada
13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas
para trabalhar os conteuacutedos nas aulas
14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados
nas aulas Como satildeo utilizados
15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade
em sala de aula
224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores
1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los
2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas
3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se
satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade
4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada
5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para
trabalhar os conteuacutedos nas aulas
6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do
curriacuteculo pelos professores
225
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade
1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos
2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados
3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para
curar as doenccedilas
4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como
satildeo desenvolvidas
6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades
produtivas
7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no
desenvolvimento das atividades produtivas
3
ECOLOGIA DE SABERES
Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o
saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
___________________________________________________________________
Orientadora Prof Dra Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador I Prof Dra Diana Navas (PUCSP)
________________________________________________________________
Examinador II Prof Dra Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)
________________________________________________________________
Examinador III Prof Dr Mauriacutecio Silva(UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador IV Prof Dr Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)
________________________________________________________________
Suplente Prof Dra Carminda Mendes Andreacute (UNESP)
________________________________________________________________
Suplente Prof Dr Joseacute Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)
Aprovadoem __________________
Tese apresentada agrave Universidade Nove de Julho
junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em
Educaccedilatildeo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Educaccedilatildeo pela banca examinadora formada por
4
AGRADECIMENTOS
A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e
experiecircncias
A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-
me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo
Paulo
A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela
recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo
A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel
Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente
no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese
Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se
disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores
A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de
Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu
paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante
sua existecircncia neste mundo
A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de
caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto
E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo
foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um
de noacutes
5
RESUMO
Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do
diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular
das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a
pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros
saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso
epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a
partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes
no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica
pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas
foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular
produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do
municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo
etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo
teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo
na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos
ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos
professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal
(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o
diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo
reconhecimento do saber popular
Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular
Amazocircnia
6
ABSTRACT
This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog
between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in
Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers
pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same
class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos
communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the
school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity
and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents
memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As
well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge
dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were
compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that
these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is
a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo
Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this
search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and
the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked
with social economical cultural and religion contexts where they are These people
establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About
dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal
(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur
vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not
recognized
Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge
Amazon
7
RESUMEN
Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio
del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla
del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los
docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de
las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la
investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros
conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de
caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar
un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los
conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien
como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los
conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su
conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en
Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas
por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio
de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco
comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el
estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento
propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo
Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado
con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas
pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En
relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce
verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de
praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la
imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular
Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular
Amazonia
LISTA DE FOTOGRAFIAS
8
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira
Paraacute
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de
Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho
Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 16 - Escola Polo
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Fotografia 24 ndash Matapi
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Fotografia 27 ndash Marupazinho
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
9
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno
Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da
disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
LISTA DE TABELAS
10
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea
urbana
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no
ano de 2016
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino
fundamental por professor
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
LISTA DE MAPAS
11
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute
LISTA DE SIGLAS
12
CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazocircnia
CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos
ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e
Manganecircs
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano
INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas
IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica
LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional
MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo
NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo
PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo
PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio
PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento
PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico
SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo
SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute
SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia
UEPA - Universidade do Estado do Paraacute
UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute
SUMAacuteRIO
13
APRESENTACcedilAtildeO 15
INTRODUCcedilAtildeO 19
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24
11A ECOLOGIA DE SABERES 24
111O Paradigma hegemocircnico 24
112 A crise do paradigma hegemocircnico 26
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28
114 A criacutetica da razatildeo indolente 30
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas
dosoprimidos
38
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42
122A colonialidade do poder 47
123 Gnose ou pensamento liminar 53
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80
23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85
231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99
241 Educaccedilatildeo Infantil 99
242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130
411 Saberes das Aacuteguas 134
412 Saberes da Terra e da Mata 147
14
413 Saberes do Accedilaiacute 156
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164
421 O Conhecimento Escolar 164
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166
422O Livro Didaacutetico 173
423O Planejamento das Aulas 180
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva colonizadora
181
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva descolonizadora
183
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193
5CONCLUSAtildeO 206
REFERENCIAS 214
APEcircNDICES
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227
APRESENTACcedilAtildeO
15
Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e
a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos
multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo
seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural
Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei
cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na
qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais
culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo
Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia
com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas
aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar
milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e
vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo
econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para
navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para
pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto
Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute
que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que
quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os
meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos
poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando
em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino
fundamental
Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes
repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha
linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos
considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas
aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu
nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para
sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante
considerada correta culta e hegemocircnica
Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para
o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do
Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na
16
educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui
aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos
meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois
nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas
das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra
No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no
Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores
para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-
formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas
comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o
caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho
Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a
responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4
sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e
as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de
formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes
multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na
Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui
designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para
o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)
Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo
de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino
fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir
sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura
era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez
reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a
isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a
questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo
1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil
17
escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores
das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das
regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos
do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida
decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos
obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam
constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das
Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)
Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da
Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto
na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a
ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de
pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho
O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de
janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da
turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao
sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias
constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional
e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas
do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele
lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava
longe do que estabelecem as leis
No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado
do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas
ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de
Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do
Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos
de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de
ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado
5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata
18
Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte
da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma
faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no
decorrer desta tese
INTRODUCcedilAtildeO
Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o
conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no
acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como
19
objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do
Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha
Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo
de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na
visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico
(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas
de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e
religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute
essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa
relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico
O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento
da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da
articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo
Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e
educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado
Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com
nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual
haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a
realidade na qual vivemos
O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter
garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-
accedilatildeo)
Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular
dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes
multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na
ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute
A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato
que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo
em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos
professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de
aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas
20
multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo
ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e
tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum
encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes
multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao
reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de
conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)
O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo
com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram
contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo
consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos
ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do
total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado
administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos
de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada
pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade
geograacutefica da regiatildeo
O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no
mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica
pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na
referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem
saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no
doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o
escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica
do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente
Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional
Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais
dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios
e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o
transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-
los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que
7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas
21
exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado
regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a
pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as
escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da
pesquisa8
Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo
problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam
em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das
comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga
com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por
isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos
moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar
como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a
relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos
culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute
O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago
do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior
ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo
Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria
das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica
denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela
Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do
lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo
com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea
em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de
propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois
a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que
8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local
22
a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma
formosa obra em palafitas
O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas
divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que
estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo
que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo
regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas
situadas na ilha do Accedilaiacute10
Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a
construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o
saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias
aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo
capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia
realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas
em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos
e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local
da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo
dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a
cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o
qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata
e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo
entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos
professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute
classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras
e as descolonizadoras
9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha
23
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA
Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que
balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas
11 A ECOLOGIA DE SABERES
Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta
apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos
24
uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um
novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo
das ecologias
111O Paradigma hegemocircnico
Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo
do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo
XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu
marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute
Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos
sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental
De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a
Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu
matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)
que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes
sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo
diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo
ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a
comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo
dos fenocircmenos
Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz
ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica
dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na
experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe
fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)
Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da
intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a
verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso
do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes
sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo
cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do
objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)
Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na
qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito
superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o
25
caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos
processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa
filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)
Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou
a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo
desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado
umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva
da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)
Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo
e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta
forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza
para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da
ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista
na Europa que
[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo
Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado
pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode
ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser
considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido
Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de
mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o
objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo
classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o
conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica
Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute
cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como
vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas
Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do
conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais
26
e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila
previsibilidade ordem e estabilidade
Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais
emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente
possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se
hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam
pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das
ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo
da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim
que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava
uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias
sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos
(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por
mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma
cientiacutefico
112 A crise do paradigma hegemocircnico
Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a
ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania
epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma
emergente
Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise
[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)
Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente
gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da
relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os
questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e
biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo
interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou
quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente
mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a
inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo
27
se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem
p 56)
Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de
formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas
pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a
concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da
microfiacutesica da quiacutemica e da biologia
Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram
cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo
reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus
limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido
autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo
num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo
demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que
caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade
Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do
fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do
pensamento
A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)
No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende
a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as
sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O
questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante
dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos
(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade
Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma
moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder
econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as
relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no
interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos
28
contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses
perifeacutericos (SANTOS2008)
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente
Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um
discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que
denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute
somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas
pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-
natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as
ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda
[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)
Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais
e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos
estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre
os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do
conhecimento
Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno
caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade
etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p
46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da
dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia
perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa
hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem
sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser
temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro
uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos
grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais
Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo
Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento
as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta
29
forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente
assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do
sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto
e sobre o proacuteprio sujeito
Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa
constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento
cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu
reconhecimento
A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)
As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades
sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica
feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor
destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais
evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo
paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a
coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia
geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)
Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na
Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas
fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal
Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a
epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo
Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o
queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das
constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias
dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante
eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos
diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)
11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007
30
O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de
culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis
Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das
aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes
possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos
construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)
socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade
crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades
e subjetividades
Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza
questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir
da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir
114 A criacutetica da razatildeo indolente
A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia
nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a
produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental
excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da
validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que
requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-
se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais
destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as
revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo
A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)
A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista
que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade
cultural deixando-as na invisibilidade
12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia
31
Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e
colonialismo
Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial
Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus
modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os
e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento
por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica
Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do
colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto
relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e
discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes
e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e
dominam as relaccedilotildees internacionais
Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume
maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que
caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de
outras perspectivas epistemoloacutegicas
O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)
Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de
colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e
Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a
loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio
reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo
(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na
supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e
32
silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos
interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica
econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo
missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo
colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se
passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do
imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo
e a si mesmos
O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo
dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside
tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O
propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do
reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a
partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo
somente as econocircmicas
Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim
como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem
manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul
Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)
Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida
pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas
nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos
situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade
do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias
sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade
individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)
Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da
experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas
comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo
produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do
33
autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais
e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna
O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-
colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta
mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar
as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do
sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul
requer um rompimento com o Norte imperial
[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao
Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo
colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)
Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas
mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os
restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida
em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS
2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas
bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber
institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi
produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo
Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver
o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo
que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza
epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida
de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente
por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica
Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da
retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que
facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes
homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p
25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo
do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las
de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias
cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do
mundo que diferem da hegemocircnica
34
Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a
hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim
acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais
experiecircncias
[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)
Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras
maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes
satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade
que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute
ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como
natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute
ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As
ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do
saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala
dominante e a do produtivismo capitalista
Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares
natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista
reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas
nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental
Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos
que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo
invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver
ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes
povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo
cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um
contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo
marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das
populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar
seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para
35
o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio
de validaccedilatildeo do seu saber
A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura
Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a
resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem
como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos
desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos
selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem
totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos
e demais adjetivos pejorativos
Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como
referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de
organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo
reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com
isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres
encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados
A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de
naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo
satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas
satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que
difere do padratildeo dominante
A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as
ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular
e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em
decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto
inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o
hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo
escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de
alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto
de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora
No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode
ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias
satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica
capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo
36
consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de
ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o
improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e
globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo
Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo
as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente
invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade
agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias
consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees
sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo
cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da
transescala e das produtividades
A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear
existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por
exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a
derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das
estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute
plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que
possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a
presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres
vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em
determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que
nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de
proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o
jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como
afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou
afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo
No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das
desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram
colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da
categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas
13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio
37
sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura
uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo
espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita
de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a
pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute
ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS
1997 p 31)
Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que
parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos
como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees
locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de
resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas
experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com
atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta
contra a exclusatildeo social
Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a
ecologia das produtividades que consistem no
[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)
A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois
abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo
global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo
democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa
equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em
relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As
pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias
que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios
e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia
Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a
diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por
38
contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A
seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso
objeto de estudo
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos
oprimidos
A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica
que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de
explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que
norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes
eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da
globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e
fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer
os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos
dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os
saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados
Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o
que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos
fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que
ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre
esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a
hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir
[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)
Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os
diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o
que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados
superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o
respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo
intercultural
15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam
satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)
39
Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva
intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade
a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao
longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do
diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas
na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos
discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal
E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de
descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica
sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas
estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber
dominante ou entre qualquer tipo de saber
A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do
diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o
autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das
estruturas do poder
Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute
[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila
Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na
colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da
geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a
interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por
meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh
(2006 p 21)
mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica
Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais
econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos
40
submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa
perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo
permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a
negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas
Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade
indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da
democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os
diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados
Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos
transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo
intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de
partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas
como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA
hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural
transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e
pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)
Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas
o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura
aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos
unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para
o dialogo cabe a cada grupo cultural
A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)
O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros
e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os
protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no
tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser
incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a
hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da
culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou
diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve
41
ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a
igualdade nos descaracteriza
Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural
Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois
pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos
neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos
mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto
isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende
aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto
refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa
loacutegica
Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)
Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua
capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros
No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado
para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo
concreta nas praacuteticas sociais
A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e
epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o
saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada
pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta
maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES
TEOacuteRICAS
Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os
conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com
o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos
Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a
finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees
dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo
Freireana
42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais
Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento
intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia
epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados
Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo
abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o
rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo
Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo
diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido
o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de
acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes
situaccedilotildees de opressatildeo
Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como
um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e
articulado
Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica
Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do
colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e
Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de
opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor
que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said
que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como
o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria
a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As
abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos
modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento
O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto
por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-
colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no
pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)
43
ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais
europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo
do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno
Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram
para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da
diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno
falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos
especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da
impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo
(SPIVAK 2010 p 12)
Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por
volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as
obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad
y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-
asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart
Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos
Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate
poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)
Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito
de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para
discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata
essa concepccedilatildeo
Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)
Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo
nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para
o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana
motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo
44
Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo
Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do
pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos
[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais
Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade
destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil
Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das
principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e
ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo
Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos
uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado
grupo
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Integrante
Aacuterea
Nacionalidade
Universidade onde leciona
Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru
Enrique Dussel
Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico
Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua
Immanuel Wallerstein
Sociologia Estadounidense Yale University Eua
Santiago Castro-Goacutemez
Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia
Nelson Maldonado-Torres
Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
Ramoacuten Grosfoacuteguel
Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
45
Edgardo Lander
Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela
Arthuro Escobar
Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua
Fernando Coronil
Antropologia Venezuelana University of New York Eua
Catherine Walsh
Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador
Boaventura Santos
Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal
Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina
Fonte Luciana Ballestrin 2012
Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes
para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre
elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos
culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo
do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo
Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de
Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para
a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para
Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado
O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte
espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas
externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura
para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-
mundo capitalista
Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)
O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de
expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema
interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo
46
delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos
se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo
Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as
desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas
poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas
histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente
reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo
(WALLERSTEIN 1999 p459)
Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas
de funcionamento totalizando trecircs
Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)
O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos
sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco
seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a
soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no
acircmbito do sistema-mundo vigente
A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-
mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de
colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da
classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o
domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais
122A colonialidade do poder
A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal
Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao
poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas
relaccedilotildees com o capital e o trabalho
47
Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que
atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas
entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura
global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total
controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma
determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial
diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a
soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza
como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas
formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em
uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica
Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da
matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)
Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade
nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo
por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por
intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla
pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e
pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a
necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que
teoricamente teriam sido superados na modernidade
Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e
poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute
visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees
poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza
e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou
superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)
A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da
modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a
modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma
positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma
violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo
desenvolvimento e democratizaccedilatildeo
ParaQuijano (2000 p342)
48
La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America
A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos
histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as
relaccedilotildees de poder global na atualidade
No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi
construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado
De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas
quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da
sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis
de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle
do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade
eurocentrada
A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo
da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado
Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em
categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e
amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do
seacuteculo XVIII europeu
E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)
Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de
legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a
superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica
inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da
pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-
se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo
construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo
49
Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de
afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental
que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia
as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO
2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave
elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a
construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de
dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de
dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos
povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade
e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas
mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos
subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo
com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten
subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como
el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder
carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que
estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo
Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer
do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em
seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos
morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio
e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo
Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)
Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de
ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a
diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio
do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de
produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo
das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos
que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo
50
simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a
imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos
aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a
religiosa
Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia
os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo
mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas
A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)
Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de
produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do
capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se
baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas
agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia
natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos
iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando
nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos
mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos
seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi
transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica
raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o
trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade
Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com
os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual
iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo
dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e
dominaacute-los
A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)
ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual
estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos
51
ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa
sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem
p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da
economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do
sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados
economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)
Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma
forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade
para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo
sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo
psiacutequica tambeacutem esteja presente
Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem
agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos
eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora
Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja
fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que
se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente
Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da
populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos
europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como
os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais
avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo
de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno
possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela
estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse
modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois
[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)
Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter
exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa
sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada
52
em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe
uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de
modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual
sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca
que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo
central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em
consequecircncia seu campo central de conflito
Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente
global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua
tese
Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade
o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta
Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas
baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de
praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera
central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo
da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees
hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos
O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da
Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do
processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de
produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder
colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo
esse modo de construir conhecimento
[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente
53
hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica
Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento
hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos
Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo
subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de
conhecimento
No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram
segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos
descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto
social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo
relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem
considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores
123 Gnose ou pensamento liminar
Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em
[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)
Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que
historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica
constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo
opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia
a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme no
sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose
enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes
54
marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da
hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras
Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo
com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como
formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a
categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade
do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios
espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio
da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta
maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo
a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava
a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo
XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global
gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para
as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado
a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte
nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)
O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a
reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado
territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se
defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da
mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave
condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)
O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila
colonial que eacute concebida como
[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)
55
Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas
quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma
enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim
enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a
descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica
ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio
marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica
No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o
questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas
dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em
paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila
O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e
na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente
uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar
Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando
no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta
maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite
pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o
direito agrave filosofia e agrave ciecircncia
Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em
liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus
privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e
conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular
folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual
fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra
razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e
na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica
Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento
natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo
de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da
legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e
emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e
absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos
liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute
56
pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento
liminar
[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)
Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento
da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes
subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica
eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo
construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria
agrave descolonizaccedilatildeo
Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre
modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois
uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a
formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em
suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos
modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial
universal e abstrata (MIGNOLO 2003)
Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila
colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se
teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com
a localizaccedilatildeo geograacutefica
No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na
descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo
a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico
Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)
Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute
diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto
discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo
do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade
eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema
57
mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria
modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a
extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como
consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da
articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das
praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A
preocupaccedilatildeo do autor eacute
[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)
Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-
colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos
deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem
conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave
mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades
econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e
silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa
as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema
moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de
saberes liacutenguas culturas e povos
O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que
assim como o pensamento liminar
[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)
58
O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo
subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos
saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo
eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a
partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute
eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias
limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente
marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)
O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute
uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das
diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e
qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de
consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)
reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas
para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da
diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo
se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros
paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo
O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e
validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas
existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo
discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras
Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres
humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos
para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens
mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo
eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e
reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo
doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da
contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees
a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o
diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua
importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo
59
A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar
transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido
quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso
amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute
pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo
Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra
a todos
Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)
Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem
ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa
exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente
sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para
posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o
diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o
outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o
diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo
social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a
seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para
que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila
Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens
e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute
impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo
amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo
amor que o sustenta e o impulsiona
O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado
pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio
diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o
que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a
imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer
60
mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e
modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento
ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz
ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica
como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o
autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e
linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma
reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo
qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental
Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no
respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo
Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio
de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e
ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que
[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)
O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo
educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos
encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico
Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e
conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser
humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer
pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e
competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem
estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio
natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a
afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma
Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []
O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana
expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com
61
os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora
progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a
produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade
impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o
diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para
alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade
direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos
Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e
recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia
A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)
O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos
possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres
inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um
saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que
possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao
contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para
sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa
oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e
ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive
precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes
Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os
pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas
enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves
contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para
o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que
estavam ocultos
A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no
homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma
Freire (2014 p112)
O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []
62
O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder
A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute
desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe
como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para
a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na
melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014
p 113)
Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute
sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se
materializar na accedilatildeo no exemplo
O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo
nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e
esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz
da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus
semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este
almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica
As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a
desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como
estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se
nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila
refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute
ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela
torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade
O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)
63
A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando
as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da
educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico
Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o
homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia
entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA
Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na
Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos
das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos
geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA
Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica
ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio
concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)
Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada
A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a
complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso
estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo
Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros
ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais
colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o
espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar
heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares
(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A
64
concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem
marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo
Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo
Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-
ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos
no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e
professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha
eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de
originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da
criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na
produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos
mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e
econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas
amazocircnias
Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios
contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de
violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu
o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos
os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes
agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu
A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que
16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo
americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro
continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das
misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico
65
penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)
Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo
presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara
rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave
natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)
ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a
regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da
naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de
que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no
entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo
a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre
desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental
A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua
fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o
modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio
de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos
naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo
madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos
sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de
florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies
em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO
2001 p 113)
Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados
para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O
primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua
organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O
segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como
referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com
atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e
agricultura) e do subsolo (atividades minerais)
66
Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute
usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a
colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na
atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo
de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da
colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade
A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)
No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram
na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede
das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu
foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes
corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras
os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-
Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e
couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas
durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre
as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda
um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo
(REIS 1997 p 80-81)
A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que
levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a
devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na
regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute
o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do
corte das aacutervoresrdquo
A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do
desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da
67
vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o
incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo
de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e
com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que
escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento
que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e
o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes
poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na
regiatildeo (TAVARES 2011)
A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como
um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o
escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011
p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de
pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos
mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da
deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos
relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos
grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou
cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no
entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio
de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense
Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral
desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de
1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de
toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio
O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)
Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A
produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o
empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a
populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no
68
extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs
bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma
que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial
confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi
sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado
e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo
O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram
levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento
escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila
de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo
final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de
baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em
accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros
ecossistemas amazocircnicos
Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico
mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia
oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas
pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo
do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo
mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica
governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos
fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte
Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)
Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o
Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade
de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa
foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de
69
creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo
mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a
Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra
dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce
Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento
poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de
beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de
Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao
terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p
190)
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography
O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja
exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute
Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu
milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da
miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina
decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza
outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a
Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo
70
despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos
como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto
devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e
agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de
ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos
garimpeiros
Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)
Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a
cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em
Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram
outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os
garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral
Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por
volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como
construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos
intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo
bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que
a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena
e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000
(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a
intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos
1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de
onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo
(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi
estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da
colonizaccedilatildeo
Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e
no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos
econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas
71
terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em
mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na
subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal
padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)
Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos
decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e
principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das
aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al
(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas
unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu
capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram
mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral
em terras indiacutegenas
Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)
Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente
o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram
o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na
regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas
hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo
gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do
paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte
Curuaacute-Una e Teles Pires
Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo
dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de
barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do
entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555
kmsup2 de floresta
No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte
considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de
72
acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal
obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com
ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo
para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e
desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados
referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil
para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e
indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo
de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes
socioambientais de viabilidade da usina
Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)
Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental
[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos
programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)
O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e
accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela
empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos
sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram
registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80
No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes
para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura
de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram
atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda
de qualidade do ensino
Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de
oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e
73
casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao
futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local
onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local
O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)
As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o
valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O
dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do
poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa
resolveu pagar
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores
viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa
garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram
desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de
compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o
verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras
[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)
Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees
exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de
opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
74
De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA
Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os
impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o
desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho
emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite
no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram
para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz
parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas
Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico
Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do
Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa
e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios
afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda
natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos
de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina
As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo
Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar
produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades
indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim
os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-
desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram
usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os
75
processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a
desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos
nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses
povosrdquo (ISA 20015 p 10)
Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que
teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de
2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da
mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos
industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de
desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O
dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos
aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e
lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98
geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a
refrigerantesrdquo (idem p 12)
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute
Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA
A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem
natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores
e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e
causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem
da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe
76
principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da
regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte
das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA
perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em
Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que
comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade
e engrossam os bolsotildees de pobreza
Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira
Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente
estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio
Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela
abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que
manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido
resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fonte Raimundo Silva 2015
Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute
brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio
e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute
construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos
77
enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente
seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave
pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute
desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo
deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens
emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de
aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo
emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e
vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)
Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As
construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila
de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes
A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)
De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente
o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas
e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside
(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida
hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser
concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)
pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da
resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que
exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo
tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua
subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza
questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees
em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna
adequados para viverem em outros contextos
Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos
ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como
pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-
78
se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e
garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem
para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas
destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de
mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc
Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos
naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias
espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das
populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que
conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos
aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados
inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do
colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes
empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo
sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da
Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre
outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista
Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em
consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais
caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade
humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade
geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das
florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar
que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da
mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou
o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de
maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso
antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo
Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos
79
Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os
povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir
de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas
que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos
responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes
daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos
projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a
colonialidade do poder18
Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que
habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo
A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de
viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos
Jeito Tucuju19
Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo
De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras
Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz
Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor
Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui
Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo
Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso
Natildeo contaraacute nossa histoacuteria
Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila
de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar
as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver
eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem
cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior
em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100
afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa
18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode
identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes
80
o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os
estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso
Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel
vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo
as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros
lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer
comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que
fazem parte do imaginaacuterio desse povo
Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da
populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem
referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem
para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica
O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do
colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo
com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras
A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)
O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um
povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo
principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e
econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas
distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do
sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de
produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais
correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros
ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do
Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros
teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades
apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica
da Amazocircnia
81
A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da
Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta
regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de
dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica
Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da
Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos
e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)
A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos
o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal
D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento
redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual
estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a
substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra
discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)
Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do
ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de
etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo
territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e
constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo
estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do
nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha
da borracha
As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)
A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo
fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam
concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo
da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo
federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados
dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute
promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do
presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de
82
atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em
defesa da ldquopaacutetria amadardquo
Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)
Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas
massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de
extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em
defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para
aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)
Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de
pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio
milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do
produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes
nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores
para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945
utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram
aproximadamente cinquenta mil trabalhadores
Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)
A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a
possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo
tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros
pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram
abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam
por meio das diacutevidas com o barracatildeo20
20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte
83
Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo
XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro
Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para
Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios
em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes
nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que
era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa
era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)
Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram
as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos
seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e
ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade
de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da
agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)
Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila
e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como
afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos
ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial
foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios
e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e
bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos
para sua subsistecircncia
A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo
colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena
contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas
O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as
terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de
garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes
culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos
centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo
ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e
roccedilados dos baixos riosrdquo
84
Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo
e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores
e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas
praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de
mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu
singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)
Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos
negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme
Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia
53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos
e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas
proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e
algodatildeo
Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na
formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela
grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com
os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da
Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que
ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-
se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de
vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)
Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute
constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais
indiacutegenas negras europeia e nordestina
23 AFUAacute a Veneza Marajoara
O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara
em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas
num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de
marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira
e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade
ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e
por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma
abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos
85
moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na
educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental
231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos
Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas
que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas
que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata
uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas
No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte
utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O
transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por
um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas
e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos
chamados de carreteiros
Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
86
Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz
parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que
visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo
Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-
ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao
domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da
regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial
Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e
Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses
das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e
exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior
ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre
eles a matildeo de obra indiacutegena
Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram
tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)
Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se
comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)
procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar
fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio
Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)
Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo
pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que
permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do
Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)
87
Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior
da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute
Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a
pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela
Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua
evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica
Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma
igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi
doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse
das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do
distrito da Vila de Chaves
O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao
patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa
no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO
DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e
como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo
Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que
88
inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um
povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje
ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das
pessoas que as observam desde os rios
De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos
agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro
sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a
localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento
adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como
agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da
floresta e a entrada de mercadorias para consumo
[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua
necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas
gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo
(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)
As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias
eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves
(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios
ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas
do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura
do caboclo da Amazocircniardquo
Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14
de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia
entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm
170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria
de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade
De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram
nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos
constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser
governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos
passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo
Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na
microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
89
Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-
hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016
O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na
foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo
com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves
Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri
Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri
O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste
com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste
com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a
leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute
(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute
90
Fonte Google Mapas Disponiacutevel em
lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de
2016
Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia
a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do
Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade
com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam
constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre
outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e
florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios
roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no
Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute
principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento
nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um
hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que
provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos
Municiacutepios mais proacuteximos
No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense
conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba
macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o
miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas
A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo
atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque
91
marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo
De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute
negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre
eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da
histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para
exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira
Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de
madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de
ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA
exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios
da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais
de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)
Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois
as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os
acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a
violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte
com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de
trabalho (LIMA 2003 p 43)
Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade
denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de
sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos
e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR
PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta
de mateacuteria-prima para o mercado externo
A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo
levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural
aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas
serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do
Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem
projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos
21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de
Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco
92
ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a
empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes
A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como
consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado
ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se
forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores
ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras
aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos
mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)
Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que
inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o
desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado
O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido
geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os
estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para
outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a
regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir
tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo
(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)
A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo
desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo
para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de
educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas
condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos
sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo
mendicacircncia entre outras
Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece
atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro
[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de
accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de
palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de
beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO
DE AFUAacute 2007 p 26)
Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo
espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas
devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
93
Produto
Quantidade Produzida
Valor (Mil reais)
2010 2014 2010 2014
Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151
Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014
Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida
em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no
intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de
accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem
diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo
aumentou
Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a
casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de
Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de
conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$
1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode
variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes
A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute
que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem
nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o
que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa
rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do
produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se
tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na
entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de
alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos
A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para
o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com
accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute
habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos
(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da
regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila
da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo
aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte
94
do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em
Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira
matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros
Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o
periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia
Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no
mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz
parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade
Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015
o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)
pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e
paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste
na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem
(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade
e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha
22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes
ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo
que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem
95
O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade
laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e
homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a
venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na
qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior
abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho
O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura
familiar que consiste em
[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim
da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute
colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa
mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada
ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p
86)
Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a
cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para
o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua
permanecircncia nela
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015
24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo
ribeirinhas
96
Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do
milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com
os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos
que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees
ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos
ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de
poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave
populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas
que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a
biodiversidade da regiatildeo
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398
habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-
ribeirinhas (vilas e povoados)
No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo
haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna
gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos
demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo
publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000
adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado
por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as
vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional
Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana
passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio
pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a
densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo
antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo
urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)
Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho
97
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem
atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo
Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de
barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante
galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os
ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na
cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto
energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que
nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome
geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito
A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de
Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando
indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de
0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1
(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de
0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em
25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010
98
meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas
que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o
estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014
dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na
Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves
(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)
A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que
reside no Municiacutepio
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute
A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil
ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino
meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso
significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido
constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos
competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves
margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes
de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos
uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um
elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de
escolarizaccedilatildeo
A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois
98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares
somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da
educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o
ensino fundamental e meacutedio
241 Educaccedilatildeo Infantil
A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir
da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave
assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave
infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute
reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o
investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal
99
A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do
Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional
nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a
partir de quatro anos de idade
A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)
Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das
oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e
financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a
responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo
infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave
Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre
os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da
descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do
atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos
os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado
em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas
Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute
reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das
famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um
espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este
princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As
crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo
Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano
bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o
turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que
as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo
de creches que atendam o que a lei estabelece
100
Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada
no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do
processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila
procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma
reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da
educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve
ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito
constitucionalmente garantido
Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em
nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em
infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto
poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei
e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania
Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola
eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei
corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do
Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a
incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a
criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos
adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente
A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para
legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo
para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n
93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo
Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica
Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-
escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto
da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no
acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande
importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes
A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o
desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania
aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela
101
haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio
da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade
O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas
legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da
crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e
social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)
ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de
idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos
A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo
infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III
o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e
aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento
prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e
supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)
Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em
segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos
recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica
evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que
de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo
infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo
infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de
Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no
periacuteodo de 2014 a 2016
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
ANO
2014 2015 2016
Creche 182 190 190
Preacute-escolar 659 403 403
Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016
O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu
devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino
fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as
102
turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores
por turma
No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025
consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola
para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo
infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas
ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de
educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para
expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola
Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em
creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
META BRASIL 50 META AFUAacute 10
Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos
BRASIL
NORTE
PARAacute
MARAJOacute
AFUAacute
Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute
3786
232
92
112
109
48
952
Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche
apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela
acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave
pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda
teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha
fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das
crianccedilas na Amazocircnia
A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal
incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da
proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da
creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e
modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a
obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para
as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que
103
existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de
garantir o atendimento com qualidade
Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma
infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca
auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46
(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em
diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica
Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e
uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a
proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a
alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)
Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos
abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do
IBGE
Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
META BRASIL 100 META AFUAacute 100
POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS
BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute
1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
104
Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas
de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a
todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para
professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a
educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo
Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da
creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste
trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira
por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo
A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da
que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o
atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino
fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade
forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver
onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas
nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de
abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para
o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do
Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese
seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do
ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil
105
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-
ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do
ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute
somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo
resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema
educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de
merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas
enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola
funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora
Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo
reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se
estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir
242 Ensino Fundamental e Meacutedio
A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental
teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na
organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas
estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham
acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo
na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade
com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo
106
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)
Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave
educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do
Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de
indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove
Anos
Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a
obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia
do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida
economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das
classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir
as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de
vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino
fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas
brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo
A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino
fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo
[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)
Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que
eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo
infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na
preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo
oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica
serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o
cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma
poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa
107
de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo
(p 5)
Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos
avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em
seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino
fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil
ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas
Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6
anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no
uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos
(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de
vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em
serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos
motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e
materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em
consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo
solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia
para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram
revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de
ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a
obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a
antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso
Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas
de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas
elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo
infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no
ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila
nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio
[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)
Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute
fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola
abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas
108
pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda
(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior
para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe
pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores
Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os
dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a
municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em
vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e
colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-
sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do
EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos
anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do
ensino fundamental
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
ANOS
ESTABELECIMENTOS
Estadual Municipal Particular Total
1996 17 136 - 153
1997 17 115 1 133
1998 15 158 1 174
1999 13 192 1 206
2000 - 197 1 198
Fonte MECINEPSEDUC 2000
Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do
ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma
escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf
etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta
da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade
da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima
de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos
ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do
PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a
29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda
109
de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive
para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do
Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no
art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB
Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)
A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte
do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes
para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de
Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade
do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas
deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as
caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta
forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo
Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda
demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)
anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos
50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME
2015 p 4)
No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que
ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute
de dois anos ou mais
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE
SEacuteRIE
Anos Iniciais 8206
449
Anos Finais 4279
607
Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025
Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase
metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos
alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da
110
distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de
extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras
atividades econocircmicas (HAGE 2013)
No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do
desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana
Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS
2964 2239 440 285
Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016
Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das
escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que
a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de
servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato
administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees
deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre
para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma
determinada escola
Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de
30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos
humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio
administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com
os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar
Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico
o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros
distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede
eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o
funcionamento das maacutequinas
Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
111
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais
materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute
escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara
trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de
cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores
O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute
habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica
instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas
no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca
e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas
rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos
necessaacuterios
As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem
preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro
secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de
aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou
do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute
um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica
112
isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para
as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de
formamultisseriada
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi
cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois
assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo
representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede
113
issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de
pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no
teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo
espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite
As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas
pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos
entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir
os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala
aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado
acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria
Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos
didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o
mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto
leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os
acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos
semestudar
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA
114
O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada
na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se
desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os
investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com
o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando
observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre
a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para
ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos
investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos
ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social
econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes
A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)
Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa
requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que
estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na
escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo
de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os
investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por
aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)
Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa
parte do princiacutepio de que
[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees
Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel
fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos
significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados
Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem
qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)
[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os
115
viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais
Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva
que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas
[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado
Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por
possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura
dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas
linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular
que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute
(2013 p 25) envolve
[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural
Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao
municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades
ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades
produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de
dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira
como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que
ascerca Na etnografia
Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)
116
Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas
teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas
no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos
objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas
percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las
mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados
Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas
escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira
descritas na tabela abaixo
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627
Escola
Ed
Infantil
Ensino Fundamental Nordm de
Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm
A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140
B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94
C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58
D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66
E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as
seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente
duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute
a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e
pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais
distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino
fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o
preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula
secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute
composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas
residentes na comunidade
Fotografia 16 - Escola Polo
27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las
117
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com
quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que
dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e
produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo
docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima
O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo
em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula
118
na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano
o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar
tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela
sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga
entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos
niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor
Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores
A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
119
Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional
possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual
realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da
praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA
PESQUISA
As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo
ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e
instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram
realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a
fotografia
A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma
seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o
pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees
fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos
propostos elaboramos o roteiro das entrevistas
Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando
testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das
entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os
moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a
reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos
sujeitos
As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa
gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais
imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao
entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram
realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos
como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este
detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo
Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e
os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens
28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo
120
com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes
multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo
dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas
pertencentes ao Regional
Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em
diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das
praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da
ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha
do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade
participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e
curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no
ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e
satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato
Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por
Minayo ( 2004 p 62) como
[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este
Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que
formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me
como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida
para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais
como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros
e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os
pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre
outras
Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador
chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador
30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo
frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia
121
acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua
visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves
suas proacuteprias accedilotildees
Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo
enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados
[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial
Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica
pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees
foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente
ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na
sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o
anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4
Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9
Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se
desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social
poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI
2003)
Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que
necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas
estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo
institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que
ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o
que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em
consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da
comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada
A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de
ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um
lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os
alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem
mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as
122
metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo
Andreacute (2003 p 43)
Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)
A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos
aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as
relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas
produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a
partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas
A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose
refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes
macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar
a escola do contexto em que estaacute inserida
Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e
interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas
especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute
Segundo Alves (2008 p 28)
A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens
Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos
econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver
dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA
Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram
parte da pesquisa
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas
123
Professor
Anos do Ensino Fundamental que Lecionam
Experiecircncia com Classes
Multisseriadas
Formaccedilatildeo
Prof 1
3ordm 4ordm e 5ordm ano
6 anos
Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar
Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva
Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
8 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano
11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio
ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade
Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um
convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da
SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais
trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo
pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos
de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute
A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Morador Caracteriacutesticas
Maria
Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A
124
Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C
Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio
Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio
Pedro
Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano
Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes
Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)
Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro
Francisca
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
Raimundo
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS
Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas
semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de
conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em
Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens
Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a
utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros
de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como
afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica
pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees
jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)
Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das
mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo
Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da
mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor
ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como
procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo
125
A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os
dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam
posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o
procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos
constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento
segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)
As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as
aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees
voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou
natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial
teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das
unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em
subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na
pesquisa de campo
A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute
fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser
classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades
de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de
acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico
adotado
A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise
de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto
com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta
as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo
do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo
A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso
caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase
que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade
de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise
ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados
conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p
118)
126
Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a
exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido
por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo
das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees
foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em
seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam
aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias
intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas
resultando nas categorias finais
Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e
interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes
no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com
o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os
resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como
apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa
Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes oriundos da experiecircncia
existencial desenvolvida na relaccedilatildeo
dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam
as suas atividades diaacuterias para a garantia
da sobrevivecircncia bem como a leitura de
mundo
Diaacutelogo
Numa perspectiva freiriana como o
momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo
da realidade na qual vivemos para poder
transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos
homens mediatizados pelo mundo para
33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema
alfanumeacuterico
127
pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto
na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs
subcategorias de acordo com a tabela abaixo
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Subcategoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes das Aacuteguas
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia as aacuteguas dos rios
igarapeacutes e furos da Ilha
Saberes da Terra e da Mata
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia a terra e a mata da
Ilha
Saberes do Accedilaiacute
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia o accedilaiacute
Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo
das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela
abaixo
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Praacuteticas Colonizadoras
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela
imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo
do saber popular configurando a colonialidade do
saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade com
uma perspectiva redutora do conhecimento
128
Praacuteticas Descolonizadoras
As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas
comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees
culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas
praacuteticas procuram dar visibilidade a essas
manifestaccedilotildees
No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as
inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no
proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de
campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
129
Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular
juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e
saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes
proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos
no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas
e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por
meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo
historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes
precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se
essencial para que isso ocorra
A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e
posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida
ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas
praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de
campo
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute
Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos
moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas
nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as
atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os
ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido
de que
Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)
Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o
mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam
criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e
pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem
esses protagonistas
130
Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na
comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)
nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos
materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira
paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado
construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo
que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais
Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute
denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e
reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre
crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na
invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens
fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta
maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos
amazonidas uns com os outros
Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se
aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou
emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e
pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado
grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p
44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso
comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa
forma possam produzir tecnologias e sabedoria
Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem
cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou
talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da
mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute
criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser
humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos
modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo
Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu
saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida
como
131
Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)
O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a
natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo
transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser
incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a
malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute
tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser
interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p
15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural
desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo
Oliveira(2004 p 54) satildeo
[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc
Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular
servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo
transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de
acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees
rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores
e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo
apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade
Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste
periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural
criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e
econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees
praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e
sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo
aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando
34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o
camaratildeo na mareacute cheia
132
paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente
dos conhecimentos acadecircmicos
Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos
por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo
vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo
existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as
lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim
organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)
o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos
padrotildees da objetividade cronoloacutegica
Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados
pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato
explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade
apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste
em
[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis
Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que
presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da
mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar
de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da
memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens
criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de
qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em
suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo
Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute
sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do
tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida
em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que
emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir
133
411 Saberes das Aacuteguas
O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao
movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios
de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua
eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes
determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como
da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os
seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social
econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute
suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas
da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros
igarapeacutesrdquo
Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de
saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas
Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses
saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses
saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres
encantados
Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que
vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta
forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica
e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante
cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)
Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na
comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo
movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo
um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha
idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta
Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36
purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo
35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito
134
Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza
eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de
experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular
pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se
ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)
Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres
pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas
Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)
A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando
porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a
possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos
utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim
como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da
seguinte forma
Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
135
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual
natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de
pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada
verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar
por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido
agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da
primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a
conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute
colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo
pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)
Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e
calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu
Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma
aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo
Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas
e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de
tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas
38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco
136
tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas
substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente
Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo
estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer
Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo
praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar
que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no
diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)
O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para
pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades
cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute
piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma
madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se
aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa
que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega
no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41
40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju
137
Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas
juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi
O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua
flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute
amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de
chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol
Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute
constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio
Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)
Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a
presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se
esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e
nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por
isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio
para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016
42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe
138
Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo
que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da
Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas
retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e
o arpatildeo
Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)
O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua
haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica
detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta
Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo
Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era
faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando
no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem
encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do
referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando
a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que
pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades
principalmente de Macapaacute para pescar nos rios
A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo
eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente
amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho
para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio
nos contou como faz para fachear46
43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia
139
A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar
A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque
com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco
Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o
que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a
zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos
peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve
fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da
mareacute
A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses
que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente
durante a vazante da mareacute
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia
acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as
47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia
140
malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira
atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute
colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois
que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de
monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas
pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso
existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016
Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha
na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos
da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo
Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular
Fotografia 24 ndash Matapi
48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor
141
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi
Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo
Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados
para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais
mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a
monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo
de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste
discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica
capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)
Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das
aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no
cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce
grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem
uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho
51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica
142
Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados
Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos
e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos
naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados
que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa
desobedececirc-los
Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua
habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as
mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador
rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas
as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem
ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)
Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para
esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas
comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades
de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do
rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele
desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da
menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar
que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai
direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor
Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia
sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que
aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos
padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com
nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas
experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato
Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para
52 Margem do rio
143
mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro
Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou
tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de
qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem
pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da
epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a
estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis
pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto
Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que
quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir
Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas
praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo
gritador
Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque
tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua
Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na
comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando
era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson
(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros
e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado
mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha
Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55
53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata
144
A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com
Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou
curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor
o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo
fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha
fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo
avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos
duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona
Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer
tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio
de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que
seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras
partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe
oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito
bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas
56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor
145
Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar
sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um
dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra
ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir
os saberes da reza que satildeo guardados em segredo
Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo
em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma
mulher adulta
Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de
cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela
caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite
nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura
de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na
eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)
Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa
conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia
algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos
acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte
Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco
Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa
que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute
ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou
tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus
feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com
respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual
tem que dar o que prometeu a ela
58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia
146
Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como
esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)
representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo
Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo
procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que
envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem
como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no
rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado
pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo
ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no
riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros
Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e
natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta
pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o
universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem
conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de
conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da
Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as
relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento
hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel
fundamental
41 2 Saberes da Terra e da Mata
Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho
estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e
reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o
reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de
saberes existentes no mundo
Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e
remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O
ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que
satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para
o consumo local
Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias
As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os
147
matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha
chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor
senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que
estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases
chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga
inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de
doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas
pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-
olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos
das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo
fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia
Fotografia 27 ndash Marupazinho
148
Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os
remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os
remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim
eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas
quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco
de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo
comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma
de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para
massagear) e banhos
Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de
benzer ainda eacute parteira
Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com
61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc
149
jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um
Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta
maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela
estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem
cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra
nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo
para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante
uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida
pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto
ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto
Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)
[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal
Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de
sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum
apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico
Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais
como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e
depois do fato
Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar
Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia
conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a
62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica
150
desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida
Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra
principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato
Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto
As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de
coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma
moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de
hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave
noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com
o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que
sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito
redonda seraacute meninardquo
A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia
as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade
favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia
de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros
ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia
O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da
farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo
A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da
ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores
sujeitos da pesquisa
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar
151
Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
152
Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016
153
O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do
matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe
camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas
outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016
154
Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada
buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e
peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas
satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do
fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados
Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)
No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a
escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo
ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute
furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm
relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas
e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)
Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir
permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui
advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os
69 Crianccedilas
155
caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos
animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na
lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem
capturados entre outros
A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)
O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a
dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes
orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo
de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila
Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e
geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande
parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os
desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo
submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o
conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)
Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na
mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente
este saber a seguir
413 Saberes do Accedilaiacute
O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base
econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira
conforme imagem a baixo
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
156
As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute
com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou
charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves
vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos
alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)
ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual
vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si
proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos
e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o
morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e
na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo
A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na
comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo
accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres
domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais
velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios
por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia
por meio do envolvimento nas atividades produtivas
70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira
157
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016
A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e
pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode
um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo
assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A
idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a
diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se
desenvolver
Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso
O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma
os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-
se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para
71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver
158
o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como
tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha
A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)
A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que
a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio
ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da
populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente
das aacutervores que satildeo derrubadas
Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o
paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as
folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A
medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua
funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para
evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e
com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila
nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio
atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia
com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha
nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de
uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016
159
Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de
serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela
temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo
Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos
primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na
beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com
o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire
(2005 p 70) afirma que
O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual
72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho
160
A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o
tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao
contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade
produtiva
Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a
compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas
televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira
rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz
movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda
obtida do accedilaiacute
A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa
por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para
amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde
haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia
Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta
antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal
pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para
73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute
161
natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos
162
caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016
Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda
amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais
proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste
processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas
tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em
trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as
bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir
o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa
Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos
das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e
mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo
escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo
com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e
diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente
ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p
25)
Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento
dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica
diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que
tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a
evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de
dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo
Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da
cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que
atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas
nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute
163
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR
Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos
das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos
professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do
Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas
colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo
Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro
didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em
seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do
educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e
aprendizagem
421 O Conhecimento Escolar
Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de
conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais
amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no
aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento
escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo
do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim
poliacutetica
A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)
Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima
conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os
que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os
conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira
e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos
e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de
aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada
segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida
e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico
Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute
organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica
164
para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da
utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-
se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de
ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a
uacutenica maneira de compreender o mundo
Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o
mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser
reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque
considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo
satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que
caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido
como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)
Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos
(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74
Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial
Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela
classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de
serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio
e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-
as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a
exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010
p 72)
O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as
identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias
invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio
de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo
conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber
no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer
74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais
165
eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito
Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS
2011 p 30)
Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e
consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um
modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num
conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade
e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os
ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante
Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da
colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de
saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de
pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social
A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos
disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura
erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute
sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente
no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a
descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na
transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos
horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo
(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)
existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de
saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios
diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e
entendimentos distintos do mundo
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores
O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como
conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino
fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres
De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser
trabalhados com os alunos
166
Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo
sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da
cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo
dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber
Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)
Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos
conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora
do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os
conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute
vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados
independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a
exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de
conhecimento sem sentido e significado para eles
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO
LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
DISCIPLINA CIEcircNCIAS
1ordm BIMESTRE
1 Planeta Terra e Ambiente
11 A atmosfera terrestre
12 A aacutegua no planeta
13 O solo tipos de solo
22 Os seres vivos dos ecossistemas
2ordm BIMETRE
1 O corpo humano
11 Sustentaccedilatildeo e movimento
12 As partes do corpo humano
13 Os microrganismos
167
Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016
A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da
disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os
professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as
escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o
registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de
um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o
ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para
o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos
saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que
se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os
diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber
75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos
Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre
168
Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina
no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que
aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-
Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em
relaccedilatildeo ao colonizado
O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)
Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e
costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus
saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e
Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo
materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser
contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando
As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para
reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo
especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O
estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute
desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da
ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e
o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do
produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da
natureza
O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)
No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na
pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se
sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos
sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de
dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem
trabalhados no ano letivo
169
Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)
A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de
conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute
enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles
retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a
mobilizaccedilatildeo do saber local
Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da
lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam
fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem
constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos
possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo
Atividade
1 Preencha a tabela com os nomes dos
animais encontrados aqui na ilha e seus
respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro
Paca X
Tatu X
Jacareacute X
Capiva
ra
X
Porco X
170
(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram
selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre
os quais
Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)
Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades
sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes
para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam
os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de
abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das
experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-
se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p
31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la
Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)
Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)
destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de
compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da
sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades
necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como
171
suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na
qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse
sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais
na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos
comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho
ribeirinho
Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos
conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo
da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos
professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer
parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos
que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os
quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e
coletiva dos sujeitos (p 4)
Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se
necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na
sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos
jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem
e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos
professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a
colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas
tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem
conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma
perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os
conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE
2004 p 4)
A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos
mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes
multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas
422O Livro Didaacutetico
Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento
impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de
aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita
172
ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como
visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo
didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de
valoresrdquo
Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais
didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias
o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e
cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta
maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes
multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo
por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os
docentes
Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos
jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de
cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor
acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus
alunos
Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)
Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo
as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a
buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula
ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram
organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo
conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para
treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor
escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro
tambeacutem direciona o curriacuteculo
76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos
173
Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)
A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar
aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o
livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo
atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e
da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos
alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem
significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo
eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a
praacutetica do professor
Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim
utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim
os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo
pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute
uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries
na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para
Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na
escola
[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias
O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das
aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser
um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o
ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e
174
educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente
precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos
conteuacutedos dentre elas os saberes populares
Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a
construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa
linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia
contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes
Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que
natildeo haja hierarquias entre eles
O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos
na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes
As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)
Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e
contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam
relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre
permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas
regionais bem como as locais
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico
da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
175
Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016
Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da
cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em
outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o
que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo
aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma
avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada
do assunto
Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)
Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel
pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente
ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor
MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O
176
utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois
nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e
complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as
escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de
pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no
caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o
livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a
seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula
O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para
cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos
como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos
interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor
cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos
veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam
diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo
Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)
Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da
educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica
pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que
compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e
culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores
da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos
e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a
177
mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e
as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos
Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo
Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica
Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)
O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na
educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para
a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em
detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas
mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)
[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura
O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das
quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base
para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras
disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo
reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os
concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos
conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber
ler para transcrevecirc-los
Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no
ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar
e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto
contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual
decide eles executam o que foi decidido
178
Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)
Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e
de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os
uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma
multisseriada
O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus
objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e
escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD
em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua
concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento
para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos
livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo
entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento
avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos
docentes das escolas da ilha do Accedilai
423O Planejamento das Aulas
Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio
das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos
nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de
acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo
planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades
didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos
quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio
do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar
assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual
ela estaacute inserida
Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico
ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo
(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a
179
conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma
o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real
para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de
maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas
O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)
Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional
porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se
corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do
planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador
amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do
conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais
eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais
Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade
sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e
objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos
conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas
realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de
metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de
ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)
A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira
elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva
colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
colonizadora
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento
escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade
do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior
centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o
surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas
180
O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente
considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras
formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa
maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a
eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo
de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do
conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses
hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados
epistemologicamente
Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que
consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que
os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas
praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da
estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em
que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas
colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo
professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos
colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento
Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)
O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os
oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em
consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o
181
planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar
para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que
impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o
uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na
escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material
Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro
didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a
turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades
especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam
interagir com colegas de outros anos
Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um
problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo
em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde
acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico
das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos
conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm
3ordm 4ordm e 5ordm ano
No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de
conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do
poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos
ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a
negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e
adolescentes ribeirinhos)
Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser
oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder
(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte
do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado
oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e
invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses
hegemocircnicos
A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece
as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das
maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do
182
mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras
dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos
tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da
valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta
direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do
regional Madeira que descrevemos a seguir
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
descolonizadora77
As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem
que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do
reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de
accedilotildees pedagoacutegicas planejadas
Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo
intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto
histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes
fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento
liminar
Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez
(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco
das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos
sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam
(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses
(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que
denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos
pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com
ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de
um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao
planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da
ilha do Accedilaiacute
No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da
77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
183
comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)
O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades
dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a
valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses
alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros
membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em
Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos
produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo
trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a
professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute
sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees
reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado
com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos
Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor
reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua
importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam
constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira
matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees
artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria
espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de
experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica
comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses
saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir
com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses
saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute
contribuindo para a leitura criacutetica do mundo
184
A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira
esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do
conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que
nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de
outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma
ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na
natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um
dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os
animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e
a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da
floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na
Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que
conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para
a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo
(SANTOS 2010 p 58)
O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o
instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo
acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual
conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento
eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de
uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte
que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)
Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na
praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam
tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social
econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades
desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e
faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo
subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia
No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos
metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que
seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o
desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas
metodologias de ensino
185
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem
A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees
que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo
as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino
selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos
Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos
que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais
dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo
relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar
determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social
Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por
concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar
embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono
da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o
conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor
e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim
a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-
la
As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem
estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado
a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural
econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e
desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo
Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo
ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta
metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees
concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no
desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003
p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas
Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc
186
Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos
que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo
e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees
de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de
classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas
atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas
para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino
e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos
usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees
e anaacutelises sobre determinado assunto
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78
As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do
planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias
desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de
procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire
(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na
[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos
O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos
devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute
estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute
permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que
eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo
eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p
81)
Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as
praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo
intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no
quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo
187
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e
5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do
lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os
quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades
correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos
especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para
facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo
da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos
Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)
O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o
quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos
metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da
exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores
receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz
curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes
188
todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios
para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o
exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado
Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)
A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor
monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de
exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os
que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito
primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto
desumanizante continuerdquo
Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e
a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os
saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do
seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos
mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do
conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino
fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo
eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos
devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo
predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo
multisseriada afirma que
[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)
A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos
outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou
189
cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos
diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das
atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo
que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade
cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A
negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta
visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa
pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o
livro didaacutetico
Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)
Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o
livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno
faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o
exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro
em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da
praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta
Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o
conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos
e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais
sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A
imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma
forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees
que natildeo seja a dominante
190
Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do
conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do
Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo
de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo
geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim
poliacutetico tambeacutem
Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes
com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-
historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais
compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que
passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo
com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela
colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos
ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos
e morais
Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei
algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada
como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o
professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias
seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio
porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de
barrigardquo E o professor retrucou
Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)
No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da
linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois
ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos
esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco
tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a
falar ldquoerradordquo
Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente
que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente
191
que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos
desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta
maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada
na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante
Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam
e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem
um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os
geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo
uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma
delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo
oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como
forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e
determina a linguagem dominante como a oficial
As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na
sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa
liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns
docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que
os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na
escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada
correta culta e hegemocircnica
Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange
questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma
nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito
agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso
agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e
menos excluiacutedos
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras
Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas
praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as
narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo
paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo
dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que
estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que
192
consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas
educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem
Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com
alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos
elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo
Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos
No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram
e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o
professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre
193
outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor
agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o
matapi
A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento
fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o
conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir
do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o
conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo
como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve
o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como
mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para
garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das
ferramentas utilizadas nas atividades produtivas
Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala
de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos
colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos
encararem um desafio que consistia em tecer um matapi
O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das
atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a
tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse
saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes
diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula
associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na
relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas
locais Como afirma Freire (2014 p 39)
Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas
Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber
popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos
na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade
do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo
criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este
194
conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber
Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a
pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se
valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela
escola
A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e
visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que
construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa
determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho
Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi
desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com
alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano
Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem
Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o
camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos
que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade
Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros
79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato
195
encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem
pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho
encontrado em abundacircncia na Ilha
O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os
alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos
diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu
os seguintes encaminhamentos
Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute
Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos
com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico
natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria
uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes
questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo
dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute
acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de
accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem
direto para o consumidor em Macapaacute
Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados
em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os
alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as
apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees
De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os
moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia
196
de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores
vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o
ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute
obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas
puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos
atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem
A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de
dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora
entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$
1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos
alunos como essa realidade poderia ser mudada
Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora
Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos
que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a
refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo
assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo
diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a
realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa
perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de
vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que
como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais
justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo
emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum
80 Atravessador
197
tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do
presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro
didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de
aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre
o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista
que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute
O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua
com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia
foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a
professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola
Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio
O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos
alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente
com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio
rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas
repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu
198
sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam
parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal
e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc
O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas
em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste
lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem
sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo
eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo
O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo
O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes
geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles
precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo
os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma
a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente
o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a
dialogicidade
[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)
Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber
escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber
necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber
popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p
86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas
representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa
representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo
formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar
Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os
falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade
Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia
abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz
Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja
alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas
199
no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa
o referido autor
[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)
Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como
determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma
praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta
FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva
intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo
houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo
epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de
explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a
comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e
igualdaderdquo (idem p 11)
Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo
ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos
Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome
200
Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem
A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila
Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O
planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo
houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos
educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos
educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi
fundamental para o ecircxito da aula
A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)
A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava
escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da
pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que
despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das
respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente
se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho
chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)
A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres
inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo
Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma
gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a
dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores
mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos
Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que
existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do
hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois
haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos
moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre
outros
201
Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a
autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no
diaacutelogo colocam algo em discussatildeo
Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)
Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade
reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem
contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo
Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento
em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos
dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as
emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)
A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi
visibilizado
Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele
202
Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros
Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo
dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu
cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as
doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo
ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado
das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo
de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)
chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica
nas accedilotildees educativas
O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar
O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento
do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo
passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos
(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos
que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da
escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o
conhecimento global
No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo
indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos
alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das
pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que
se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos
203
gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora
estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar
porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos
Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes
que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia
hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto
pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e
garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua
no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um
instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para
explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os
remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de
existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na
aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de
vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da
ciecircncia farmacecircutica
Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e
com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula
o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos
duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os
alunos questionaram
Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha
204
A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos
que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e
voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo
reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no
veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou
fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira
satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas
determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano
assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute
5CONCLUSAtildeO
Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute
territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um
mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos
que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da
ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava
profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes
apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No
diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute
e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas
conclusotildees deste estudo
De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar
como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha
do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos
das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das
praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores
mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras
205
nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de
saberes
Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e
reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos
numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de
Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas
relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual
as desenvolvem
Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade
diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco
tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas
vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel
(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai
fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que
esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia
que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo
baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber
Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas
teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais
oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das
matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a
feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos
encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na
mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos
haacutebitos alimentares de cada espeacutecie
No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo
de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim
a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o
tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho
sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde
encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri
entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles
comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e
ferramentas para aprisionaacute-los
206
Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as
atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o
horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do
tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como
os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais
adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das
mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico
fundamental para entendermos como vivem esses povos
Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando
se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo
gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das
comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo
pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os
filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam
no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as
crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente
No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e
tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados
pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma
experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento
da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos
remeacutedios oriundos da terra e da mata
Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos
enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da
ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma
epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao
transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma
cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar
pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como
criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores
Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas
por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte
o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e
207
aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses
saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das
aacuteguas
Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento
escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem
horizontalmente
O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de
colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos
ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de
ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado
natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do
imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo
indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre
elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece
esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos
consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das
diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a
monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local
Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da
escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo
parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o
contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em
consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos
(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos
das aacuteguas da Amazocircnia
O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por
meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o
que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos
docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com
a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e
intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como
verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de
pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os
208
saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de
educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo
cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias
colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi
imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia
colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees
invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios
sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees
hegemocircnicas
Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as
mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe
uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da
cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O
diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes
locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas
escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja
ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo
docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma
horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento
das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do
Accedilaiacute
Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e
reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades
sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das
necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios
do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes
locais
81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6
209
Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades
produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas
descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas
metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido
a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses
saberes foram os protagonistas
O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a
realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas
escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da
comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar
transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os
moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os
professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de
ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e
respeito agrave sua dignidade
A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem
saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem
possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No
diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e
ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do
respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro
Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo
horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como
afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens
acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos
digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade
dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa
pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor
o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente
da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem
nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave
educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os
210
professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo
poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes
no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das
experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no
qual vivem esses protagonistas
A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os
educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo
influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o
tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo
relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam
a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais
Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os
poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais
iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o
dom milagroso83rdquo
Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade
de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo
ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira
efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza
Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi
nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas
crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas
nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo
pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime
qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas
Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas
ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e
produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma
Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo
83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute
211
precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como
(metodologia) deve ser ensinado
Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser
ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a
imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade
das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento
Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e
provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes
que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas
religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que
isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute
fundamental na gestatildeo escolar
No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado
refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo
que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades
e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que
valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e
religiosas
212
REFEREcircNCIAS ALMEIDA JR Joseacute Maria Gonccedilalves de (org) Carajaacutes desafio poliacutetico ecologia e desenvolvimento Satildeo Paulo Brasiliense 1986 ALVES-MAZZOTTI Alda Judith GEWANDSZNAJDE Fernando O meacutetodo nas ciecircncias naturais e sociais pesquisa quantitativa e qualitativa 2 ed Satildeo Paulo Pioneira 2002 ANGOTTI M Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc In___ (Org) Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc Campinas Aliacutenea 2010 AGUIAR J D N SANTOS J Freire dos Neodesenvolvimentismo brasileiro e subimperialismo na Ameacuterica Latina XII Semana de Ensino Pesquisa e Extensatildeo do Centro de Humanidades Universidade Federal de Campina Grande 2013 AMADEO Javier Marxismo e teoria poacutes-colonialidade 6ordm Coloacutequio Internacional Marx e Engels IFCH - UNICAMP Satildeo Paulo 2009 Disponiacutevel em httpwwwifchunicampbrcemarxcoloquioDocsgt7Mesa3marxismo-e-teoria-pos-colonialpdf Acesso em 23 fev 2014 ARROYO M G et al (Org)Por Uma Educaccedilatildeo do Campo Petroacutepolis-RJ Vozes 2004 APPLE W Michael Ideologia e curriacuteculo 3 Ed Porto Alegre Artmed 2006 BAPTISTA A M H ROGERO R (Org) Tempo-Memoacuteria na Educaccedilatildeo Satildeo Paulo BT Acadecircmica 2014 BALLESTRIN Luciana Ameacuterica Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciecircncia Poliacutetica Brasiacutelia v11 2013 pp 89-117 BGNO Marcos A liacutengua de Eulaacutelia novela sociolinguiacutestica 3 Ed Satildeo Paulo Contexto Editora 2004 BARDIN L Anaacutelise de Conteuacutedo 12 ed Lisboa Ediccedilotildees 7 2004 BECKER Bertha K Amazocircnia geopoliacutetica na virada do III milecircnio 2 ed Rio de Janeiro Garamond 2007
213
BEZERRA NETO L Na luta pela terra a conquista do conhecimento Satildeo Carlos Pedro amp Joatildeo Editores 2013 BENCHIMOL Samuel Amazocircnia formaccedilatildeo social e cultural Manaus Editora Valer 1999 BITTENCOUT A O homem amazonense e o espaccedilo 3 ed Rio de Janeiro Artinova 1989 ______ Hidreleacutetricas no Amazonas temos um exemplo negativo no nosso quintal Disponiacutevel
em lthttpwwwihuunisinosbrentrevistas509099-hidreletricas-no-amazonas-temos-um-exemplo-negativo-no-nosso-quintal-entrevista-especial-com-anderson-bittencourtgt Acesso em 8 de maio de 2016 BODGAN R BIKLEN SInvestigaccedilatildeo qualitativa em educaccedilatildeo 3 ed Porto Porto
Editora 1994 BRASIL Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional 939496 Disponiacutevel em
lthttpwwwmecgovbrgt Acesso em 8 de maio de 2016 BRANDAtildeO Carlos Rodrigues A educaccedilatildeo como cultura Satildeo Paulo Mercado de
Letras 2007 CALVET L J Sociolinguiacutestica introduccedilatildeo criacutetica Satildeo Paulo Paraacutebola 2000 CANCLIacuteNI Neacutestor GarciacuteaCulturas Hiacutebridas estrateacutegias para entrar e sair da modernidade 3 ed Satildeo Paulo UNESP 2006 CANDAU V M (Org) Educaccedilatildeo intercultural e cotidiano escolar Rio de Janeiro 7 Letras 2006 CASTRO-GOMEZ Santiago amp MENDIETA Eduardo (1998) Introduccion la translocalizacion discursiva de Latinoamerica en tiempos de la globalizacion In CASTRO-GOMEZ Santiago MENDIETA Eduardo (coord) Teoriacuteas sin disciplina latinoamericanismo poscolonialidad y globalizacioacuten en debate Mexico Miguel Angel Porrua 2010 CASTRO-GOacuteMES S Decolonizar la universidad la hybris del punto cero y eldiaacutelogo de saberes In CASTRO-GOacuteMES S GROSFOGUEL R (Ed) El girodecolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismoglobal Bogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto deEstudios Sociales Contemporaacuteneos Pontificia Universidad Javeriana InstitutoPensar 2007 COSTA Seacutergio Dois atlacircnticos teoria social anti-racismo e cosmopolitismo Belo Horizonte Editora da UFMG 2006 COMISSAtildeO PASTORAL DA TERRA 2015 1 fotografia Disponiacutevel em httpwwwcptnacionalorgbrindexphppublicacoesnoticiasgeral2770-papa-critica-o-desmatamento-para-dar-lugar-a-lavouras-de-sojagt Acesso 17 de maio de 2016
214
CHIZZOTTI Antonio Pesquisas em ciecircncias humanas e sociais 6 ed Satildeo Paulo Cortez 2003 CURY C R J A educaccedilatildeo infantil como direito In BRASIL Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e do Desporto Secretaria de Ensino Fundamental Subsiacutedios para credenciamento e funcionamento de instituiccedilotildees de educaccedilatildeo infantil v2 Brasiacutelia DF MECSEF 2012 DELEUZE G Bergosonismo Satildeo Paulo Editora 34 2010 DESCARTES R Discurso do meacutetodo 54 Ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 DIDONET V Importacircncia da educaccedilatildeo infantil In SIMPOacuteSIO DE EDUCACcedilAtildeO INFANTIL construindo o presente Brasiacutelia DF 2014 Anais Brasiacutelia UNESCO 2003 p83-97 Disponiacutevel em lthttpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoue000311pdfgt Acesso em 26 de maio de 2016 DOBLAS Juan Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpvejaabrilcombrnoticiaeconomiahidreletricas-da-amazonia-enfrentam-serie-de-processosgtAcesso 4 de maio de 2016 DRUMMOND J A Investimentos privados impactos ambientais e qualidade de vida num empreendimento mineral amazocircnico o caso da mina de manganecircs da Serra do Navio (Amapaacute) Histoacuteria Ciecircncia Sauacutede Maguinhos v VI p 753-792 setembro de 2000 ECOS DA SELVA Garimpo em terra Yanomami Disponiacutevel emlthttpecosdaselvawordpresscomtagyanomami Garimpo em terra Yanomamigt Acesso em 28 de julho de 2016 ESCOBAR Arthuro Mundos y conocimientos de otro modo el programa de investigacioacuten modernidadcolonialidad latinoamericano Bogotaacute Tabula Rasa 2003 Disponiacutevel em httpwwwuncedu~aescobartextespescobar-tabula-rasapdf Acesso em 23 jul 2014 ESTERMANN Josef Si el Sur fuera el Norte Chakanas interculturales entre Andes y Occidente La Paz ISE 2008 FARES Josebel Akel Cartografia poeacutetica In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem CCESE-UEPA 2004 FEARNSIDE Philip M Desenvolvimento Hidreleacutetrico na Amazocircnia In______ Hidreleacutetricas na Amazocircnia impactos ambientais e sociais na tomada de decisotildees sobre grandes obras Manaus Editora do INPA 2015 FOSTER Eugenia da Luz Silva Traccedilos da trajetoacuteria do negro na regiatildeo amazocircnica Disponiacutevel em lthttpWWWbdtdndcuffbrtde_arquivos2TDE 03-05-
215
15T143957Z-70PublicoParte20220-0teseEugenia20Fosterpdfgt Acesso em 28 de ago de 2010 FANON Frantz Racismo y cultura PreacutesenceAfricaine Junho-novembro 1956 Franco M L P B O que eacute anaacutelise de conteuacutedo 4 ed Satildeo Paulo PUC 2006 FREIRE P Pedagogia do Oprimido 43 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 ______ Pedagogia da Esperanccedila um reencontro com a Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 16ordf ed 2009 ______ Educaccedilatildeo como praacutetica da liberdade Satildeo Paulo Paz e Terra 2003 ______ Politica e educaccedilatildeo Satildeo Paulo Paz e Terra 1987 ______ Extensatildeo ou comunicaccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 GAGNEBIN J M Infacircncia e pensamento In GHIRALDELLI JUacuteNIOR P (Org) Infacircncia escola e modernidade Satildeo Paulo Cortez 2011 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro Zahar1978 GEacuteRARD F M ROEGIERS X Concevoir et eacutevaluer des manuels scolairesBruxelas De Boeck-Wesmail 2000 (traduccedilatildeo Portuguesa de Juacutelia Ferreira e de Helena Peralta Porto2003) GONCcedilALVES Carlos Walter Porto Amazocircnia Amazocircnias 2 ed Satildeo Paulo Editora Contexto 2005 Google Mapas Disponiacutevel em lthttpmapsgooglecombrmapsgt Acesso 17 de maio de 2016 GRUumlN M Eacutetica e educaccedilatildeo ambiental a conexatildeo necessaacuteria 6 ed Campinas Papirus 2002 GRUZINSKI Serge O pensamento mesticcedilo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 GUERRA Ribamar Amazocircnia intervenccedilatildeo e resistecircncia Disponiacutevel em lthttpanovademocraciacombrno-25643-amazonia-intervencao-e-resistenciagt Acesso em 7 de abril de 2016 GROSFOGUEL Ramon Para descolonizar os estudos de economia poliacutetica e os estudos poacutes-coloniais transmodernidade pensamento de fronteira e colonialidade global Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais Coimbra n 80 2008 HAGE Salomatildeo Mufarrej Classes multisseriadas desafios da educaccedilatildeo rural no estado do Paraacuteregiatildeo Amazocircnica In ______ (Org) Educaccedilatildeo do campo na
216
Amazocircnia retratos de realidade das escolas multisseriadas no Paraacute Beleacutem Gutemberg 2005 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA Extraccedilatildeo vegetal e silvicultura Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150030ampsearch=parC3A1|afuagt Acesso 17 de maio de 2016 Jornal O Acre Rio Branco 20 de maio de 1943 n 742 KRAMER Sonia As crianccedilas de 0 a 6 anos nas poliacuteticas educacionais no Brasil educaccedilatildeo infantil eeacute fundamental Educ Soc v 27 n 96 p797-818 out 2006 LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico 23 ed Rio de Janeiro Zahar 2009 LAVILLE Christian DIONE Jean A construccedilatildeo do sabermanual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 2000 LAJOLO Marisa Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em Aberto Brasiacutelian 69 v 16 janmar 2001 LIBAcircNEO Joseacute Carlos Didaacutetica 2 ed Satildeo Paulo Cortez 2004 LOPES Alice Casimiro Curriacuteculo e Epistemologia Ijuiacute Editora Unijuiacute 2007 LOUREIRO V RAmazocircnia uma histoacuteria de perdas e danos um futuro a (re) construir Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 LOUREIRO Joatildeo de Jesus Paes Cultura amazocircnicauma poeacutetica do imaginaacuterio Satildeo Paulo Escrituras Editora 2001 LUDKE Menga ANDREacute Marli E D A Pesquisa em educaccedilatildeo abordagens qualitativas Satildeo Paulo EPU 2006 LUCKESI CC planejamento e Avaliaccedilatildeo escolararticulaccedilatildeo e necessaacuteria determinaccedilatildeo ideoloacutegica IN O diretor articulador do projeto da escola Borges Silva Abel Satildeo Paulo 1992 FDE Diretoria Teacutecnica Seacuterie Ideacuteias nordm 15 ______ Filosofia da educaccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez 2003 MAUEacuteS R H A ilha encantada medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1990 MARINI Ruy Mauro Dialeacutetica da Dependecircncia Petroacutepolis Vozes 2000
217
Mapa da Ilha do Marajoacute Disponivel em lthttpmarajoandoblogspotcombr200912o-mapa-da-ilhahtmlgt Acesso 16 de maio de 2016 MEDIACcedilAtildeO Revista de Educaccedilatildeo do Coleacutegio Medianeira Curitiba PR v 3 n 6 p 33-37 2010 MONTEIRO M de A Meio seacuteculo de mineraccedilatildeo industrial na Amazocircnia e suas implicaccedilotildees para o desenvolvimento regional Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 MORAES MC O paradigma educacional emergente Satildeo Paulo Papirus 1997 MOREIRA A F CANDAU V M Curriacuteculo conhecimento e culturaBrasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2008 MORIN E A cabeccedila bem-feita repensar a reforma reformar o pensamento traduccedilatildeo Eloaacute Jacobina 8 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2003 MIGNOLO Walter DDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo decolonial e o significado de identidade em poliacutetica Traduccedilatildeo de AcircngelaLopes Norte Cadernos de Letras UFF ndash Dossiecirc Literatura Liacutengua e Identidade nordm 34 p 287 ndash 324 2010 ______ Histoacuterias locais projetos globais colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte UFMG 2003 MINAYO M C S O desafio do conhecimento pesquisa qualitativa em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2004 OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem-Paraacute CCSE-UEPA 2004 PACHECO Agenor Sarraf Em el corazoacuten de la Amazocircnia identidades saberes e religiosidades do regime das aacuteguas marajoaras Tese de Doutorado (Ciecircncias Sociais) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica Satildeo Paulo 2009 PHOTOGRAPHY T Mina de ferro Carajaacutes no Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwinfoescolacomgeografiaextrativismo-mineral-no-brasilgt Acesso 30 de abril de 2016 PROGRAMA DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO Atlas Brasil 2013 Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=150030ampidtema=11 ampsearch=para|afua|C38Dndice-de-desenvolvimento-humano-nicipal-idhm-gt Acesso 17 de maio de 2016 PROYANOMAMI Os Yanomamis e sua terra textos de Bruce Albert (IRD) disponiacutevel lthttpwwwproyanomamiorgbrgt Acesso em 28052013
218
QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica LatinaIn LANDER E (Org) A colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Perspectivas latino-americanas Coleccioacuten Sur Sur Clacso Buenos Aires ndash Argentina setembro 2005 p 227 ndash 278 ______ Colonialidade do poder e classificaccedilatildeo social In SANTOS Boaventura de Sousa MENESES Maria Paula (Orgs) Epistemologia do Sul Satildeo Paulo Cortez 2010 RODRIGUES Denise Souza Simotildees et al Cultura cultura popular amazocircnica e a construccedilatildeo imaginaacuteria da realidade In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias de saberes representaccedilotildees sobre a cultura amazocircnica em praacuteticas de educaccedilatildeo popular Beleacutem EDUEPA 2007 ROMANATTO Mauro Carlos A noccedilatildeo de nuacutemero natural em livros didaacuteticos de matemaacutetica comparaccedilotildees entre textos tradicionais e modernos Dissertaccedilatildeo (mestrado) Universidade Federal de Satildeo Paulo Satildeo Carlos SP 2007 RIBEIRO Gustavo L ESCOBAR Arturo (orgs) Antropologias Mundiais Transformaccedilotildees da disciplina em sistemas de poder Brasiacutelia Editora UNB 2012 RIBEIRO W C Teoria Criacutetica contribuiccedilotildees para se pensar a Educaccedilatildeo Ambiental Sinapse Ambiental Betim v4 n2 p8-25 dez 2007 REIS A C F R O seringal e o seringueiro 2 ed Manaus Editora da Universidade do Amazonas 1997 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 SALLES Vicente O negro no Paraacute sob o regime da escravidatildeo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1971 SANTIAGO Abinoan Hidreleacutetrica pode ter causado morte de peixes no rio Araguari diz poliacutecia Disponiacutevel em httpg1globocomapamapanoticia201511hidreletrica-pode-ter-causado-morte-de-peixes-no-rio-araguari-diz-policiahtml Acesso em 7 de maio 2016 SANTOS B A dos Recursos minerais da Amazocircnia Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 16 n 45 p 123-202 2002 SANTOS Wildson Luiz CARNEIRO Maria Helena da Silva Livro Didaacutetico de Ciecircncias Fonte de informaccedilatildeo ou apostila de exerciacutecios In Contexto e Educaccedilatildeo Ano21 Julhodezembro Ijuiacute Editora Unijuiacute 2006 SANTOS B S MENESES M P (Org) Epistemologias do Sul 6 Ed Satildeo Paulo Cortez 2010 SANTOS B de S Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes-moderna Rio de Janeiro Graal 2002
219
______ A criacutetica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 8 ed Satildeo Paulo Cortez 2011 ______ Introduccedilatildeo a uma Ciecircncia Poacutes-Moderna Rio de Janeiro Graal 1999 ______ A gramaacutetica do tempo para uma nova cultura poliacutetica 3 ed Satildeo Paulo
Cortez 2008
______ A critica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 4 Ed
Satildeo Paulo Cortez 2007
______ Um discurso sobre as ciecircncias 10 ed Porto Afrontamento 2009
______ (org) Semear outras soluccedilotildees os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SILVA Tomaz Tadeu daDocumentos de Identidade uma introduccedilatildeo as teorias do curriacuteculo 3 ed Belo Horizonte 2009 SILVA Raimundo Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwalcilenecavalcantecombrpage32gt Acesso 8 de maio de 2016 SILVAM das G S N O espaccedilo ribeirinho Satildeo Paulo Terceira Margem 2000 SAID Edward O Orientalismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1978 SPIVAK Gayatri C Estudios de la Subalternidad In Estudios postcoloniales Ensayos fundamentales 2008 Disponiacutevel em httpwwwoozebaporgbibliopdfestudios_postcolonialespdf Acesso em 09 de fev de 2014 ______ Pode o subalterno falarBelo Horizonte Editora UFMG 2010 TAVARES M Despensar as pedagogias coloniais e os seus pressupostos epistemoloacutegicos VIII Coloacutequio de Pesquisa Sobre Instituiccedilotildees Escolares Pedagogias Alternativas UNINOVE Disponiacutevel em lthttpppgeuninoveblogspotcombr201109viii-coloquio-de-pesquisa- obrehtmlgt Acesso em 14052015 TAVARES M G da CostaA Amazocircnia brasileira formaccedilatildeo histoacuterico-territorial e perspectivas para o seacuteculo XXI GEOUSP - Espaccedilo e Tempo Satildeo Paulo nordm 29 - Especial p 107 - 121 2011 TEIXEIRA C C O aviamento e a sociedade do barracatildeo do seringal 1980 200 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em geografia) Universidade de Satildeo Paulo 1980 TORRES C A Diaacutelogo com Freire 3 ed Satildeo Paulo Loyola 2003
220
TRIVINtildeOS Augusto N S Introduccedilatildeo agrave pesquisa em ciecircncias sociais a pesquisa qualitativa em educaccedilatildeo 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2007 VILLAS-BOcircAS Andreacute Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina 1 fotografia color Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 WALLERSTEIN Immanuel O albatroz racista a ciecircncia social Joumlrg Haider e a resistecircncia Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais nordm 56 fev 2000 p 05-33 ______ Impensar a Ciecircncia Social Os limites dos paradigmas do seacuteculo XIX Aparecida Ideias amp Letras 2006 ______ Anaacutelises dos sistemas mundiais In GIDDENS A TURNER J (org) Teoria social hoje Satildeo Paulo Editora Unesp 1999 WALSH C Pedagogiacuteas decoloniales praacutecticas insurgentes de resistir (re)existir y (re)vivir Quito Abya Yala 2013 ______ Interculturalidad criacutetica y educacioacuten intercultural In VIANtildeA J TAPIA L WALSH C Construyendo Interculturalidad Criacutetica La Paz III-CAB 2011 ______ Interculturalidad y colonialidad del poder Un pensamiento y posicionamiento ldquootrordquo desde la diferencia colonial In CASTRO-GOacuteMEZ Santiago amp GROSFOGUEL Ramoacuten (Orgs) El giro decolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo globalBogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto de Estudios Sociales Contemporaacuteneos y Pontificia Universidad Javeriana Instituto Pensar 2007 ______(Ed) Pensamiento criacutetico y matriz (de)colonial reflexiones latinoamericanas Quito Universidad Andina Simon BolivarAbya-Yala 2005 WALSH Catherine SCHIWY Freya CASTRO-GOacuteMEZ SantiagoIndisciplinar as ciecircncias sociais Quito Universidade Sandina Simon BolivarAbyaYala 2002
221
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os moradores
Cartografar a partir das memoacuterias
dos moradores da ilha do Accedilaiacute os
saberes presentes no discurso e
nas praacuteticas cotidianas dos
ribeirinhos
Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio
2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida
3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os
seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute
4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres
encantados
5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres
encantados E como elas satildeo curadas
6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou
produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e
outras)
7 Como vocecirc desenvolve essa atividade
8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la
9 Quais os instrumentos utilizados para a
execuccedilatildeo desta atividade
10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver
essa atividade
11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou
a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a
participaccedilatildeo da famiacutelia
12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido
222
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os Professores
Identificar na praacutetica pedagoacutegica
do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber
escolar
Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio
(magisteacuterio)
2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo
3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso
positivo em que aacuterea do conhecimento
4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro
Municiacutepio ou Estado
5 Quem define os conteuacutedos que satildeo
trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da
educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino
fundamental
6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo
incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios
que vocecirc utiliza para selecionaacute-los
7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem
todos satildeo trabalhados durante o ano letivo
Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para
selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados
8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico
que os alunos receberam este ano
9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas
223
10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas
para a classe multisseriada
11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no
planejamento das aulas Caso positivo como
ocorre a inclusatildeo desses saberes
12 Como os alunos satildeo organizados na sala de
aula multisseriada
13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas
para trabalhar os conteuacutedos nas aulas
14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados
nas aulas Como satildeo utilizados
15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade
em sala de aula
224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores
1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los
2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas
3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se
satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade
4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada
5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para
trabalhar os conteuacutedos nas aulas
6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do
curriacuteculo pelos professores
225
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade
1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos
2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados
3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para
curar as doenccedilas
4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como
satildeo desenvolvidas
6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades
produtivas
7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no
desenvolvimento das atividades produtivas
4
AGRADECIMENTOS
A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e
experiecircncias
A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-
me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo
Paulo
A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela
recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo
A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel
Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente
no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese
Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se
disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores
A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de
Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu
paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante
sua existecircncia neste mundo
A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de
caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto
E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo
foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um
de noacutes
5
RESUMO
Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do
diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular
das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a
pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros
saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso
epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a
partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes
no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica
pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas
foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular
produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do
municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo
etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo
teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo
na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos
ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos
professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal
(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o
diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo
reconhecimento do saber popular
Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular
Amazocircnia
6
ABSTRACT
This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog
between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in
Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers
pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same
class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos
communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the
school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity
and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents
memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As
well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge
dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were
compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that
these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is
a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo
Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this
search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and
the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked
with social economical cultural and religion contexts where they are These people
establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About
dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal
(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur
vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not
recognized
Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge
Amazon
7
RESUMEN
Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio
del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla
del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los
docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de
las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la
investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros
conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de
caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar
un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los
conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien
como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los
conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su
conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en
Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas
por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio
de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco
comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el
estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento
propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo
Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado
con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas
pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En
relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce
verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de
praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la
imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular
Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular
Amazonia
LISTA DE FOTOGRAFIAS
8
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira
Paraacute
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de
Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho
Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 16 - Escola Polo
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Fotografia 24 ndash Matapi
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Fotografia 27 ndash Marupazinho
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
9
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno
Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da
disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
LISTA DE TABELAS
10
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea
urbana
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no
ano de 2016
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino
fundamental por professor
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
LISTA DE MAPAS
11
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute
LISTA DE SIGLAS
12
CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazocircnia
CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos
ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e
Manganecircs
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano
INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas
IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica
LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional
MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo
NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo
PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo
PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio
PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento
PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico
SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo
SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute
SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia
UEPA - Universidade do Estado do Paraacute
UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute
SUMAacuteRIO
13
APRESENTACcedilAtildeO 15
INTRODUCcedilAtildeO 19
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24
11A ECOLOGIA DE SABERES 24
111O Paradigma hegemocircnico 24
112 A crise do paradigma hegemocircnico 26
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28
114 A criacutetica da razatildeo indolente 30
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas
dosoprimidos
38
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42
122A colonialidade do poder 47
123 Gnose ou pensamento liminar 53
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80
23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85
231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99
241 Educaccedilatildeo Infantil 99
242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130
411 Saberes das Aacuteguas 134
412 Saberes da Terra e da Mata 147
14
413 Saberes do Accedilaiacute 156
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164
421 O Conhecimento Escolar 164
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166
422O Livro Didaacutetico 173
423O Planejamento das Aulas 180
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva colonizadora
181
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva descolonizadora
183
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193
5CONCLUSAtildeO 206
REFERENCIAS 214
APEcircNDICES
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227
APRESENTACcedilAtildeO
15
Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e
a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos
multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo
seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural
Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei
cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na
qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais
culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo
Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia
com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas
aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar
milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e
vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo
econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para
navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para
pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto
Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute
que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que
quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os
meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos
poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando
em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino
fundamental
Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes
repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha
linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos
considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas
aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu
nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para
sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante
considerada correta culta e hegemocircnica
Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para
o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do
Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na
16
educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui
aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos
meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois
nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas
das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra
No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no
Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores
para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-
formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas
comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o
caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho
Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a
responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4
sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e
as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de
formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes
multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na
Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui
designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para
o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)
Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo
de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino
fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir
sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura
era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez
reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a
isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a
questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo
1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil
17
escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores
das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das
regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos
do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida
decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos
obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam
constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das
Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)
Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da
Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto
na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a
ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de
pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho
O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de
janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da
turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao
sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias
constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional
e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas
do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele
lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava
longe do que estabelecem as leis
No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado
do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas
ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de
Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do
Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos
de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de
ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado
5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata
18
Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte
da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma
faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no
decorrer desta tese
INTRODUCcedilAtildeO
Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o
conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no
acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como
19
objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do
Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores
que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha
Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo
de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na
visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico
(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas
de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e
religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute
essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa
relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico
O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento
da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da
articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo
Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e
educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado
Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com
nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual
haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a
realidade na qual vivemos
O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter
garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-
accedilatildeo)
Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular
dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes
multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na
ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute
A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato
que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo
em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos
professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de
aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas
20
multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo
ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e
tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum
encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes
multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao
reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de
conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)
O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo
com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram
contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo
consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos
ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do
total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado
administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos
de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada
pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade
geograacutefica da regiatildeo
O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no
mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica
pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na
referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem
saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no
doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o
escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica
do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente
Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional
Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais
dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios
e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o
transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-
los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que
7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas
21
exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado
regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a
pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as
escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da
pesquisa8
Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo
problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam
em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das
comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga
com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por
isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos
moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar
como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a
relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos
culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute
O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago
do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior
ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo
Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria
das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica
denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela
Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do
lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo
com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea
em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de
propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois
a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que
8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local
22
a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma
formosa obra em palafitas
O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas
divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que
estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo
que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo
regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas
situadas na ilha do Accedilaiacute10
Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a
construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o
saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias
aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo
capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia
realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas
em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos
e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local
da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo
dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a
cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o
qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata
e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo
entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos
professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute
classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras
e as descolonizadoras
9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha
23
1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA
Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que
balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas
11 A ECOLOGIA DE SABERES
Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta
apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos
24
uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um
novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo
das ecologias
111O Paradigma hegemocircnico
Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo
do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo
XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu
marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute
Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos
sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental
De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a
Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu
matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)
que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes
sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo
diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo
ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a
comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo
dos fenocircmenos
Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz
ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica
dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na
experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe
fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)
Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da
intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a
verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso
do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes
sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo
cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do
objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)
Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na
qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito
superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o
25
caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos
processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa
filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)
Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou
a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo
desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado
umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva
da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)
Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo
e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta
forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza
para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da
ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista
na Europa que
[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo
Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado
pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode
ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser
considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido
Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de
mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o
objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo
classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o
conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica
Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute
cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como
vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas
Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do
conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais
26
e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila
previsibilidade ordem e estabilidade
Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais
emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente
possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se
hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam
pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das
ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo
da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim
que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava
uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias
sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos
(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por
mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma
cientiacutefico
112 A crise do paradigma hegemocircnico
Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a
ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania
epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma
emergente
Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise
[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)
Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente
gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da
relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os
questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e
biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo
interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou
quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente
mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a
inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo
27
se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem
p 56)
Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de
formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas
pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a
concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da
microfiacutesica da quiacutemica e da biologia
Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram
cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo
reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus
limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido
autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo
num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo
demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que
caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade
Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do
fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do
pensamento
A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)
No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende
a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as
sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O
questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante
dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos
(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade
Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma
moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder
econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as
relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no
interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos
28
contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses
perifeacutericos (SANTOS2008)
113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente
Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um
discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que
denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute
somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas
pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-
natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as
ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda
[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)
Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais
e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos
estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre
os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do
conhecimento
Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno
caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade
etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p
46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da
dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia
perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa
hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem
sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser
temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro
uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos
grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais
Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo
Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento
as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta
29
forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente
assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do
sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto
e sobre o proacuteprio sujeito
Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa
constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento
cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu
reconhecimento
A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)
As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades
sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica
feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor
destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais
evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo
paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a
coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia
geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)
Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na
Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas
fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal
Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a
epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo
Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o
queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das
constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias
dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante
eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos
diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)
11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007
30
O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de
culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis
Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das
aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes
possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos
construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)
socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade
crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades
e subjetividades
Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza
questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir
da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir
114 A criacutetica da razatildeo indolente
A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia
nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a
produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental
excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da
validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que
requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-
se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais
destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as
revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo
A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)
A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista
que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade
cultural deixando-as na invisibilidade
12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia
31
Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e
colonialismo
Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial
Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus
modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os
e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento
por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica
Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do
colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto
relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e
discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes
e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e
dominam as relaccedilotildees internacionais
Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume
maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que
caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de
outras perspectivas epistemoloacutegicas
O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)
Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de
colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e
Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a
loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio
reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo
(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na
supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e
32
silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos
interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica
econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo
missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo
colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se
passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do
imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo
e a si mesmos
O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo
dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside
tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O
propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do
reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a
partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo
somente as econocircmicas
Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim
como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem
manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul
Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)
Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida
pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas
nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos
situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade
do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias
sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade
individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)
Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da
experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas
comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo
produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do
33
autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais
e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna
O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-
colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta
mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar
as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do
sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul
requer um rompimento com o Norte imperial
[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao
Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo
colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)
Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas
mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os
restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida
em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS
2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas
bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber
institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi
produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo
Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver
o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo
que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza
epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida
de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente
por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica
Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da
retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que
facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes
homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p
25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo
do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las
de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias
cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do
mundo que diferem da hegemocircnica
34
Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a
hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim
acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais
experiecircncias
[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)
Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras
maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes
satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade
que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute
ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como
natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute
ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As
ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do
saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala
dominante e a do produtivismo capitalista
Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares
natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista
reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas
nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental
Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos
que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo
invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver
ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes
povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo
cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um
contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo
marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das
populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar
seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para
35
o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio
de validaccedilatildeo do seu saber
A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura
Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a
resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem
como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos
desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos
selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem
totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos
e demais adjetivos pejorativos
Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como
referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de
organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo
reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com
isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres
encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados
A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de
naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo
satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas
satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que
difere do padratildeo dominante
A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as
ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular
e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em
decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto
inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o
hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo
escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de
alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto
de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora
No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode
ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias
satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica
capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo
36
consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de
ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o
improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e
globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo
Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo
as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente
invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade
agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias
consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees
sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo
cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da
transescala e das produtividades
A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear
existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por
exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a
derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das
estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute
plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que
possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a
presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres
vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em
determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que
nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de
proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o
jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como
afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou
afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo
No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das
desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram
colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da
categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas
13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio
37
sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura
uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo
espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita
de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a
pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute
ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS
1997 p 31)
Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que
parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos
como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees
locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de
resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas
experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com
atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta
contra a exclusatildeo social
Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a
ecologia das produtividades que consistem no
[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)
A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois
abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo
global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo
democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa
equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em
relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As
pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias
que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios
e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia
Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a
diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por
38
contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A
seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso
objeto de estudo
115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos
oprimidos
A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica
que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de
explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que
norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes
eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da
globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e
fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer
os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos
dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os
saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados
Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o
que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos
fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que
ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre
esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a
hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir
[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)
Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os
diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o
que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados
superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o
respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo
intercultural
15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam
satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)
39
Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva
intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade
a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao
longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do
diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas
na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos
discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal
E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de
descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica
sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas
estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber
dominante ou entre qualquer tipo de saber
A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do
diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o
autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das
estruturas do poder
Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute
[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila
Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na
colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da
geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a
interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por
meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh
(2006 p 21)
mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica
Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais
econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos
40
submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa
perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo
permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a
negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas
Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade
indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da
democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os
diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados
Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos
transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo
intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de
partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas
como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA
hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural
transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e
pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)
Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas
o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura
aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos
unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para
o dialogo cabe a cada grupo cultural
A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)
O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros
e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os
protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no
tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser
incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a
hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da
culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou
diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve
41
ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a
igualdade nos descaracteriza
Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural
Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois
pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos
neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos
mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto
isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende
aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto
refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa
loacutegica
Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)
Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua
capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros
No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado
para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo
concreta nas praacuteticas sociais
A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e
epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o
saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada
pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta
maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades
12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES
TEOacuteRICAS
Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os
conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com
o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos
Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a
finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees
dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo
Freireana
42
121Os Estudos Poacutes-Coloniais
Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento
intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia
epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados
Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo
abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o
rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo
Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo
diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido
o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de
acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes
situaccedilotildees de opressatildeo
Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como
um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e
articulado
Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica
Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do
colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e
Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de
opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor
que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said
que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como
o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria
a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As
abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos
modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento
O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto
por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-
colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no
pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)
43
ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais
europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo
do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno
Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram
para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da
diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno
falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos
especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da
impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo
(SPIVAK 2010 p 12)
Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por
volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as
obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad
y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-
asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart
Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos
Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate
poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)
Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito
de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para
discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata
essa concepccedilatildeo
Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)
Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo
nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para
o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana
motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo
44
Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo
Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do
pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos
[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais
Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade
destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil
Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das
principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e
ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo
Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos
uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado
grupo
Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade
Integrante
Aacuterea
Nacionalidade
Universidade onde leciona
Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru
Enrique Dussel
Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico
Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua
Immanuel Wallerstein
Sociologia Estadounidense Yale University Eua
Santiago Castro-Goacutemez
Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia
Nelson Maldonado-Torres
Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
Ramoacuten Grosfoacuteguel
Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua
45
Edgardo Lander
Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela
Arthuro Escobar
Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua
Fernando Coronil
Antropologia Venezuelana University of New York Eua
Catherine Walsh
Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador
Boaventura Santos
Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal
Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina
Fonte Luciana Ballestrin 2012
Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes
para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre
elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos
culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo
do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo
Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de
Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para
a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para
Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado
O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte
espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas
externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura
para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-
mundo capitalista
Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)
O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de
expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema
interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo
46
delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos
se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo
Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as
desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas
poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas
histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente
reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo
(WALLERSTEIN 1999 p459)
Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas
de funcionamento totalizando trecircs
Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)
O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos
sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco
seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a
soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no
acircmbito do sistema-mundo vigente
A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-
mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de
colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da
classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o
domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais
122A colonialidade do poder
A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal
Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao
poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas
relaccedilotildees com o capital e o trabalho
47
Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que
atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas
entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura
global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total
controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma
determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial
diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a
soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza
como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas
formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em
uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica
Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da
matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)
Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade
nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo
por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por
intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla
pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e
pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a
necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que
teoricamente teriam sido superados na modernidade
Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e
poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute
visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees
poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza
e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou
superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)
A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da
modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a
modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma
positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma
violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo
desenvolvimento e democratizaccedilatildeo
ParaQuijano (2000 p342)
48
La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America
A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos
histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as
relaccedilotildees de poder global na atualidade
No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi
construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado
De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas
quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da
sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis
de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle
do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade
eurocentrada
A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo
da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado
Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em
categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e
amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do
seacuteculo XVIII europeu
E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)
Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de
legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a
superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica
inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da
pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-
se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo
construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo
49
Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de
afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental
que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia
as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO
2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave
elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a
construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de
dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de
dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos
povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade
e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas
mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos
subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo
com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten
subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como
el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder
carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que
estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo
Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer
do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em
seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos
morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio
e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo
Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)
Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de
ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a
diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio
do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de
produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo
das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos
que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo
50
simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a
imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos
aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a
religiosa
Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia
os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo
mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas
A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)
Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de
produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do
capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se
baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas
agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia
natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos
iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando
nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos
mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos
seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi
transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica
raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o
trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade
Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com
os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual
iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo
dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e
dominaacute-los
A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)
ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual
estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos
51
ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa
sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem
p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da
economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do
sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados
economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)
Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma
forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade
para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo
sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo
psiacutequica tambeacutem esteja presente
Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem
agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos
eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora
Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja
fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que
se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente
Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da
populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos
europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como
os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais
avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo
de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno
possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela
estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse
modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois
[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)
Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter
exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa
sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada
52
em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe
uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de
modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual
sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca
que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo
central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em
consequecircncia seu campo central de conflito
Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente
global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua
tese
Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade
o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta
Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas
baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de
praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera
central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo
da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees
hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos
O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da
Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do
processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de
produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder
colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo
esse modo de construir conhecimento
[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente
53
hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica
Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento
hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos
Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo
subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de
conhecimento
No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram
segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos
descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto
social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo
relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem
considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores
123 Gnose ou pensamento liminar
Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em
[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)
Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que
historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica
constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo
opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia
a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme no
sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose
enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes
54
marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da
hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras
Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo
com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como
formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a
categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade
do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo
(MIGNOLO 2003 p 34)
A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios
espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio
da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta
maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo
a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava
a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo
XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global
gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para
as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado
a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte
nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)
O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a
reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado
territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se
defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da
mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave
condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)
O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila
colonial que eacute concebida como
[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)
55
Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas
quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma
enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim
enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a
descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica
ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio
marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica
No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o
questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas
dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em
paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila
O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e
na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente
uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar
Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando
no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta
maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite
pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o
direito agrave filosofia e agrave ciecircncia
Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em
liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus
privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e
conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular
folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual
fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra
razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e
na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica
Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento
natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo
de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da
legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e
emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e
absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos
liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute
56
pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento
liminar
[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)
Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento
da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes
subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica
eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo
construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria
agrave descolonizaccedilatildeo
Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre
modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois
uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a
formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em
suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos
modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial
universal e abstrata (MIGNOLO 2003)
Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila
colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se
teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com
a localizaccedilatildeo geograacutefica
No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na
descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo
a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico
Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)
Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute
diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto
discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo
do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade
eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema
57
mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria
modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a
extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como
consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da
articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das
praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A
preocupaccedilatildeo do autor eacute
[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)
Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-
colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos
deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem
conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave
mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades
econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e
silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa
as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema
moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de
saberes liacutenguas culturas e povos
O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que
assim como o pensamento liminar
[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)
58
O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo
subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos
saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo
eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a
partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute
eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias
limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente
marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)
O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute
uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das
diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e
qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de
consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)
reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas
para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da
diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo
se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros
paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo
O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e
validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas
existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo
discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire
13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras
Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres
humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos
para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens
mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo
eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e
reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo
doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da
contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees
a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o
diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua
importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo
59
A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar
transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido
quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso
amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute
pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo
Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra
a todos
Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)
Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem
ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa
exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente
sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para
posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o
diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o
outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o
diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo
social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a
seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para
que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens
bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila
Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens
e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute
impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo
amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo
amor que o sustenta e o impulsiona
O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado
pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio
diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o
que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a
imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer
60
mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e
modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento
ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz
ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica
como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o
autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e
linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma
reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo
qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental
Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no
respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo
Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio
de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e
ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que
[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)
O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo
educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos
encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico
Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e
conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser
humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer
pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e
competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem
estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio
natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a
afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma
Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []
O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana
expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com
61
os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora
progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a
produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade
impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o
diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para
alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade
direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos
Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e
recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia
A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)
O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos
possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres
inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um
saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que
possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao
contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para
sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa
oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e
ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive
precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes
Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os
pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas
enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves
contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para
o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que
estavam ocultos
A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no
homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma
Freire (2014 p112)
O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []
62
O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder
A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute
desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe
como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para
a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na
melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014
p 113)
Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute
sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se
materializar na accedilatildeo no exemplo
O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo
nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e
esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz
da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus
semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este
almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica
As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a
desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como
estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se
nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila
refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute
ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela
torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade
O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)
63
A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando
as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da
educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela
libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico
Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o
homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia
entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)
2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA
Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na
Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos
das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos
geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional
21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA
Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica
ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio
concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)
Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada
A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a
complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso
estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo
Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros
ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais
colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o
espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar
heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares
(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A
64
concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem
marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo
Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo
Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-
ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos
no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e
professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha
eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de
originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da
criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na
produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos
mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e
econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas
amazocircnias
Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios
contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de
violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu
o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos
os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes
agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu
A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que
16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo
americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro
continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das
misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico
65
penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)
Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo
presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara
rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave
natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)
ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a
regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da
naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de
que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no
entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo
a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre
desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental
A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua
fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o
modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio
de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos
naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo
madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos
sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de
florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies
em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO
2001 p 113)
Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados
para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O
primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua
organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O
segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como
referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com
atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e
agricultura) e do subsolo (atividades minerais)
66
Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute
usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a
colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na
atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo
de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da
colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade
A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)
No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram
na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede
das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu
foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes
corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras
os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-
Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e
couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas
durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre
as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda
um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo
(REIS 1997 p 80-81)
A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que
levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a
devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na
regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute
o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do
corte das aacutervoresrdquo
A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do
desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da
67
vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o
incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo
de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e
com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que
escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento
que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e
o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes
poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na
regiatildeo (TAVARES 2011)
A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como
um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o
escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011
p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de
pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos
mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da
deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos
relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos
grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou
cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no
entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio
de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense
Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral
desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de
1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de
toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio
O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)
Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A
produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o
empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a
populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no
68
extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs
bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma
que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial
confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi
sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado
e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo
O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram
levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento
escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila
de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo
final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de
baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em
accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros
ecossistemas amazocircnicos
Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico
mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia
oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas
pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo
do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo
mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica
governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos
fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte
Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)
Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o
Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade
de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa
foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de
69
creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo
mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a
Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra
dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce
Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento
poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de
beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de
Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao
terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p
190)
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute
Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography
O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja
exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute
Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu
milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da
miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina
decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza
outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a
Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo
70
despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos
como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto
devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e
agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de
ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos
garimpeiros
Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)
Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a
cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em
Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram
outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os
garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral
Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por
volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como
construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos
intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo
bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que
a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena
e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000
(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a
intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos
1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de
onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo
(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi
estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da
colonizaccedilatildeo
Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e
no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos
econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas
71
terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em
mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na
subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal
padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)
Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos
decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e
principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das
aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al
(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas
unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu
capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram
mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral
em terras indiacutegenas
Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)
Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente
o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram
o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na
regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas
hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo
gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do
paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte
Curuaacute-Una e Teles Pires
Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo
dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de
barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do
entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555
kmsup2 de floresta
No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte
considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de
72
acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal
obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com
ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo
para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e
desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados
referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil
para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e
indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo
de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes
socioambientais de viabilidade da usina
Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)
Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental
[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos
programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)
O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e
accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela
empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos
sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram
registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80
No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes
para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura
de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram
atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda
de qualidade do ensino
Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de
oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e
73
casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao
futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local
onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local
O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)
As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o
valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O
dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do
poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa
resolveu pagar
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores
viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa
garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram
desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de
compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o
verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras
[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)
Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees
exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de
opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
74
De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA
Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os
impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o
desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho
emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite
no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram
para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz
parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas
Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico
Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do
Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa
e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios
afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda
natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos
de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina
As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo
Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar
produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades
indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim
os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-
desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram
usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os
75
processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a
desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos
nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses
povosrdquo (ISA 20015 p 10)
Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que
teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de
2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da
mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos
industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de
desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O
dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos
aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e
lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98
geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a
refrigerantesrdquo (idem p 12)
Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute
Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA
A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem
natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores
e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e
causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem
da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe
76
principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da
regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte
das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA
perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em
Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que
comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade
e engrossam os bolsotildees de pobreza
Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira
Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente
estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio
Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela
abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que
manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido
resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute
Fonte Raimundo Silva 2015
Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute
brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio
e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute
construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos
77
enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente
seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave
pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute
desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo
deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens
emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de
aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo
emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e
vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)
Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As
construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila
de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes
A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)
De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente
o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas
e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside
(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida
hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser
concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)
pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da
resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que
exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo
tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua
subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza
questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees
em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna
adequados para viverem em outros contextos
Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos
ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como
pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-
78
se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e
garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem
para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas
destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de
mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc
Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos
naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias
espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das
populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que
conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos
aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados
inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do
colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes
empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo
sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da
Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre
outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista
Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em
consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais
caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade
humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade
geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das
florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar
que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da
mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou
o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de
maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso
antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo
Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos
79
Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os
povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir
de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas
que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos
responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes
daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos
projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a
colonialidade do poder18
Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que
habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo
A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de
viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha
22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos
Jeito Tucuju19
Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo
De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras
Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz
Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor
Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui
Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo
Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso
Natildeo contaraacute nossa histoacuteria
Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila
de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar
as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver
eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem
cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior
em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100
afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa
18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode
identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes
80
o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os
estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso
Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel
vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo
as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros
lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer
comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que
fazem parte do imaginaacuterio desse povo
Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da
populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem
referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem
para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica
O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do
colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo
com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras
A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)
O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um
povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo
principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e
econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas
distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do
sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de
produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais
correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros
ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do
Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros
teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades
apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica
da Amazocircnia
81
A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da
Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta
regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de
dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica
Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da
Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos
e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)
A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos
o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal
D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento
redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual
estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a
substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra
discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)
Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do
ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de
etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo
territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e
constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo
estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do
nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha
da borracha
As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)
A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo
fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam
concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo
da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo
federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados
dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute
promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do
presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de
82
atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em
defesa da ldquopaacutetria amadardquo
Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)
Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas
massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de
extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em
defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para
aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)
Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de
pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio
milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do
produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes
nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores
para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945
utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram
aproximadamente cinquenta mil trabalhadores
Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)
A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a
possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo
tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros
pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram
abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam
por meio das diacutevidas com o barracatildeo20
20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte
83
Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo
XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro
Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para
Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios
em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes
nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que
era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa
era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)
Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram
as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos
seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e
ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade
de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da
agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)
Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila
e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como
afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos
ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial
foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios
e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e
bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos
para sua subsistecircncia
A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo
colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena
contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas
O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as
terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de
garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes
culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos
centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo
ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e
roccedilados dos baixos riosrdquo
84
Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo
e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores
e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas
praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de
mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu
singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)
Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos
negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme
Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia
53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos
e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas
proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e
algodatildeo
Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na
formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela
grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com
os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da
Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que
ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-
se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de
vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)
Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute
constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais
indiacutegenas negras europeia e nordestina
23 AFUAacute a Veneza Marajoara
O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara
em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas
num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de
marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira
e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade
ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e
por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma
abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos
85
moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na
educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental
231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos
Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas
que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas
que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata
uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas
No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte
utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O
transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por
um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas
e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos
chamados de carreteiros
Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria
86
Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz
parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que
visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo
Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-
ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao
domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da
regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial
Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e
Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses
das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e
exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior
ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre
eles a matildeo de obra indiacutegena
Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram
tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)
Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se
comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)
procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar
fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio
Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)
Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo
pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que
permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do
Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)
87
Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior
da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute
Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a
pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela
Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua
evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica
Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma
igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi
doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse
das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do
distrito da Vila de Chaves
O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao
patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa
no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO
DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e
como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo
Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que
88
inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um
povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje
ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das
pessoas que as observam desde os rios
De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos
agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro
sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a
localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento
adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como
agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da
floresta e a entrada de mercadorias para consumo
[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua
necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas
gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo
(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)
As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias
eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves
(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios
ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas
do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura
do caboclo da Amazocircniardquo
Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14
de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia
entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm
170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria
de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade
De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram
nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos
constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser
governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos
passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo
Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na
microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo
Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute
89
Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-
hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016
O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na
foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo
com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves
Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri
Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri
O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste
com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste
com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a
leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute
(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)
Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute
90
Fonte Google Mapas Disponiacutevel em
lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de
2016
Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia
a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do
Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade
com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam
constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre
outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e
florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios
roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no
Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute
principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento
nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um
hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que
provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos
Municiacutepios mais proacuteximos
No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense
conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba
macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o
miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas
A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo
atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque
91
marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo
De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute
negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre
eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da
histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para
exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira
Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de
madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de
ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA
exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios
da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais
de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)
Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois
as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os
acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a
violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte
com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de
trabalho (LIMA 2003 p 43)
Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade
denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de
sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos
e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR
PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta
de mateacuteria-prima para o mercado externo
A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo
levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural
aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas
serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do
Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem
projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos
21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de
Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco
92
ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a
empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes
A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como
consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado
ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se
forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores
ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras
aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos
mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)
Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que
inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o
desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado
O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido
geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os
estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para
outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a
regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir
tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo
(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)
A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo
desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo
para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de
educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas
condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos
sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo
mendicacircncia entre outras
Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece
atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro
[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de
accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de
palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de
beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO
DE AFUAacute 2007 p 26)
Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo
espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas
devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima
Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos
93
Produto
Quantidade Produzida
Valor (Mil reais)
2010 2014 2010 2014
Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151
Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014
Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida
em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no
intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de
accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem
diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo
aumentou
Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a
casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de
Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de
conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$
1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode
variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes
A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute
que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem
nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o
que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa
rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do
produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se
tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na
entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de
alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos
A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para
o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com
accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute
habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos
(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da
regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila
da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo
aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte
94
do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em
Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira
matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros
Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o
periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia
Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no
mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz
parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade
Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015
o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)
pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e
paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste
na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem
(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade
e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha
22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes
ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo
que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem
95
O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade
laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e
homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a
venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na
qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior
abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho
O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura
familiar que consiste em
[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim
da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute
colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa
mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada
ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p
86)
Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a
cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para
o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua
permanecircncia nela
Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho
Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015
24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo
ribeirinhas
96
Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do
milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com
os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos
que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees
ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos
ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de
poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave
populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas
que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a
biodiversidade da regiatildeo
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398
habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-
ribeirinhas (vilas e povoados)
No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo
haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna
gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos
demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo
publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000
adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado
por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as
vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional
Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana
passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio
pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a
densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo
antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo
urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)
Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho
97
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem
atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo
Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de
barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante
galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os
ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na
cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto
energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que
nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome
geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito
A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de
Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando
indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de
0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1
(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de
0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em
25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010
98
meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas
que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o
estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014
dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na
Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves
(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)
A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que
reside no Municiacutepio
24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute
A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil
ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino
meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso
significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido
constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos
competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves
margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes
de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos
uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um
elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de
escolarizaccedilatildeo
A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois
98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares
somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da
educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o
ensino fundamental e meacutedio
241 Educaccedilatildeo Infantil
A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir
da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave
assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave
infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute
reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o
investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal
99
A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do
Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional
nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a
partir de quatro anos de idade
A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)
Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das
oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e
financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a
responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo
infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave
Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre
os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da
descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do
atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos
os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado
em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas
Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute
reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das
famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um
espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este
princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As
crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo
Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano
bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o
turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que
as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo
de creches que atendam o que a lei estabelece
100
Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada
no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do
processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila
procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma
reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da
educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve
ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito
constitucionalmente garantido
Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em
nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em
infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto
poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei
e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania
Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola
eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei
corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do
Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a
incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a
criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos
adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente
A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para
legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo
para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n
93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo
Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica
Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-
escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto
da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no
acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande
importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes
A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o
desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania
aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela
101
haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio
da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade
O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas
legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da
crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e
social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)
ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de
idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos
A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo
infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III
o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e
aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento
prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e
supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)
Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em
segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos
recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica
evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que
de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo
infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo
infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de
Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no
periacuteodo de 2014 a 2016
Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI
EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
ANO
2014 2015 2016
Creche 182 190 190
Preacute-escolar 659 403 403
Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016
O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu
devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino
fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as
102
turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores
por turma
No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025
consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola
para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo
infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas
ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de
educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para
expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola
Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em
creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes
Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos
META BRASIL 50 META AFUAacute 10
Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos
BRASIL
NORTE
PARAacute
MARAJOacute
AFUAacute
Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute
3786
232
92
112
109
48
952
Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche
apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela
acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave
pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda
teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha
fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das
crianccedilas na Amazocircnia
A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal
incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da
proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da
creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e
modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a
obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para
as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que
103
existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de
garantir o atendimento com qualidade
Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma
infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca
auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46
(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em
diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica
Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e
uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a
proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a
alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)
Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos
abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do
IBGE
Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute
META BRASIL 100 META AFUAacute 100
POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS
BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute
1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014
104
Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas
de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a
todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para
professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a
educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo
Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da
creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste
trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira
por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo
A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da
que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o
atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino
fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade
forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver
onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas
nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de
abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para
o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do
Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese
seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do
ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)
Fotografia 12 ndash Classe multisseriada
26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil
105
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-
ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do
ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute
somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo
resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema
educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de
merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas
enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola
funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora
Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo
reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se
estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir
242 Ensino Fundamental e Meacutedio
A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental
teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na
organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas
estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham
acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo
na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade
com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo
106
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)
Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave
educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do
Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de
indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove
Anos
Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a
obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia
do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida
economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das
classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir
as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de
vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino
fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas
brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo
A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino
fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo
[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)
Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que
eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo
infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na
preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo
oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica
serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o
cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma
poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa
107
de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo
(p 5)
Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos
avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em
seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino
fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil
ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas
Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6
anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no
uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos
(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de
vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em
serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos
motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e
materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em
consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo
solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia
para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram
revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de
ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a
obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a
antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso
Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas
de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas
elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo
infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no
ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila
nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio
[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)
Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute
fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola
abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas
108
pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda
(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior
para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe
pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores
Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os
dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a
municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em
vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e
colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-
sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do
EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos
anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do
ensino fundamental
Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa
ANOS
ESTABELECIMENTOS
Estadual Municipal Particular Total
1996 17 136 - 153
1997 17 115 1 133
1998 15 158 1 174
1999 13 192 1 206
2000 - 197 1 198
Fonte MECINEPSEDUC 2000
Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do
ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma
escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf
etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta
da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade
da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima
de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos
ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do
PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a
29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda
109
de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive
para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do
Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no
art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB
Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)
A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte
do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes
para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de
Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade
do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas
deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as
caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta
forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo
Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda
demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)
anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos
50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME
2015 p 4)
No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que
ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute
de dois anos ou mais
Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental
ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE
SEacuteRIE
Anos Iniciais 8206
449
Anos Finais 4279
607
Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025
Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase
metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos
alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da
110
distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de
extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras
atividades econocircmicas (HAGE 2013)
No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do
desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana
Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS
2964 2239 440 285
Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016
Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das
escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que
a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de
servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato
administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees
deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre
para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma
determinada escola
Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de
30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos
humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio
administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com
os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar
Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico
o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros
distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede
eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o
funcionamento das maacutequinas
Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda
111
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais
materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute
escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara
trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de
cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores
O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute
habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica
instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas
no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca
e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas
rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos
necessaacuterios
As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem
preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro
secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de
aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou
do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute
um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica
112
isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para
as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de
formamultisseriada
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi
cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois
assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo
representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede
113
issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de
pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no
teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo
espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite
As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas
pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos
entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir
os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala
aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado
acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria
Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos
didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o
mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto
leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os
acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos
semestudar
3 PERCURSO METODOLOacuteGICO
31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA
114
O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada
na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se
desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os
investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com
o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando
observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre
a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para
ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos
investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos
ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social
econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes
A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)
Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa
requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que
estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na
escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo
de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os
investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por
aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)
Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa
parte do princiacutepio de que
[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees
Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel
fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos
significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados
Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem
qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)
[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os
115
viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais
Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva
que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas
[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado
Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por
possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura
dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas
linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular
que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute
(2013 p 25) envolve
[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural
Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao
municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades
ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades
produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de
dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira
como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que
ascerca Na etnografia
Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)
116
Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas
teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas
no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos
objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas
percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las
mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados
Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas
escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira
descritas na tabela abaixo
Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627
Escola
Ed
Infantil
Ensino Fundamental Nordm de
Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm
A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140
B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94
C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58
D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66
E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as
seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente
duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute
a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e
pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais
distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino
fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o
preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula
secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute
composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas
residentes na comunidade
Fotografia 16 - Escola Polo
27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las
117
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com
quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que
dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e
produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo
docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira
Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima
O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo
em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula
118
na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano
o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar
tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela
sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga
entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos
niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica
Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor
Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores
A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01
3ordm4ordm e 5ordm ano 01
E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01
FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016
119
Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional
possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual
realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da
praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas
32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA
PESQUISA
As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo
ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e
instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram
realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a
fotografia
A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma
seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o
pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees
fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos
propostos elaboramos o roteiro das entrevistas
Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando
testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das
entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os
moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a
reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos
sujeitos
As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa
gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais
imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao
entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram
realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos
como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este
detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo
Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e
os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens
28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo
120
com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes
multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo
dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do
ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas
pertencentes ao Regional
Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em
diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das
praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da
ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas
dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha
do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade
participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e
curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no
ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e
satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato
Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por
Minayo ( 2004 p 62) como
[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este
Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que
formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me
como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida
para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais
como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros
e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os
pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre
outras
Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador
chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador
30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo
frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia
121
acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua
visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves
suas proacuteprias accedilotildees
Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo
enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados
[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial
Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica
pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees
foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente
ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na
sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o
anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4
Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9
Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se
desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social
poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI
2003)
Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que
necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas
estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo
institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que
ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o
que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em
consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da
comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada
A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de
ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um
lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os
alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem
mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as
122
metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo
Andreacute (2003 p 43)
Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)
A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos
aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as
relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas
produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a
partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas
A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose
refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes
macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar
a escola do contexto em que estaacute inserida
Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e
interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas
especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute
Segundo Alves (2008 p 28)
A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens
Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos
econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver
dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute
33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA
Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram
parte da pesquisa
Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa
32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas
123
Professor
Anos do Ensino Fundamental que Lecionam
Experiecircncia com Classes
Multisseriadas
Formaccedilatildeo
Prof 1
3ordm 4ordm e 5ordm ano
6 anos
Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar
Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva
Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
8 anos Licenciatura em Pedagogia
Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano
9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia
Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano
11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil
Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio
ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade
Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um
convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da
SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais
trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo
pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos
de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute
A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos
Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa
Morador Caracteriacutesticas
Maria
Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A
124
Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C
Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio
Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio
Pedro
Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano
Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes
Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)
Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro
Francisca
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
Raimundo
Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco
34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS
Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas
semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de
conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em
Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens
Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a
utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros
de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como
afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica
pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees
jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)
Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das
mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo
Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da
mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor
ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como
procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo
125
A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os
dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam
posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o
procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos
constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento
segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)
As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as
aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees
voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou
natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial
teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das
unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em
subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na
pesquisa de campo
A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute
fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser
classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades
de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de
acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico
adotado
A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise
de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto
com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta
as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo
do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo
A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso
caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase
que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade
de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise
ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados
conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p
118)
126
Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a
exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido
por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo
das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees
foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em
seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam
aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias
intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas
resultando nas categorias finais
Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e
interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes
no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com
o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os
resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como
apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo
341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa
Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas
Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes oriundos da experiecircncia
existencial desenvolvida na relaccedilatildeo
dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam
as suas atividades diaacuterias para a garantia
da sobrevivecircncia bem como a leitura de
mundo
Diaacutelogo
Numa perspectiva freiriana como o
momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo
da realidade na qual vivemos para poder
transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos
homens mediatizados pelo mundo para
33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema
alfanumeacuterico
127
pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto
na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs
subcategorias de acordo com a tabela abaixo
Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas
Categoria Subcategoria Conceito Norteador
Saber Popular
Saberes das Aacuteguas
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia as aacuteguas dos rios
igarapeacutes e furos da Ilha
Saberes da Terra e da Mata
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia a terra e a mata da
Ilha
Saberes do Accedilaiacute
Saberes oriundos do universo
cultural criadosrecriados no
cotidiano dos ribeirinhos que tecircm
como referecircncia o accedilaiacute
Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo
das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela
abaixo
Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas
Categoria Conceito Norteador
Praacuteticas Colonizadoras
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela
imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo
do saber popular configurando a colonialidade do
saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade com
uma perspectiva redutora do conhecimento
128
Praacuteticas Descolonizadoras
As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas
comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees
culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas
praacuteticas procuram dar visibilidade a essas
manifestaccedilotildees
No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as
inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no
proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de
campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria
4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
129
Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular
juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e
saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes
proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos
no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas
e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por
meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo
historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes
precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se
essencial para que isso ocorra
A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e
posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida
ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas
praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de
campo
41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute
Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos
moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas
nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as
atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os
ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido
de que
Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)
Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o
mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam
criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e
pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem
esses protagonistas
130
Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na
comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)
nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos
materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira
paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado
construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo
que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais
Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute
denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e
reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre
crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na
invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens
fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta
maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos
amazonidas uns com os outros
Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se
aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou
emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e
pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado
grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p
44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso
comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa
forma possam produzir tecnologias e sabedoria
Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem
cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou
talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da
mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute
criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser
humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos
modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo
Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu
saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida
como
131
Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)
O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a
natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo
transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser
incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a
malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute
tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser
interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p
15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural
desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo
Oliveira(2004 p 54) satildeo
[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc
Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular
servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo
transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de
acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees
rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores
e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo
apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade
Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste
periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural
criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e
econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees
praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e
sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo
aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando
34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o
camaratildeo na mareacute cheia
132
paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente
dos conhecimentos acadecircmicos
Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos
por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo
vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo
existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as
lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim
organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)
o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos
padrotildees da objetividade cronoloacutegica
Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados
pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato
explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade
apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste
em
[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis
Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que
presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da
mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar
de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da
memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens
criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de
qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em
suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo
Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute
sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do
tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria
Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida
em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que
emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir
133
411 Saberes das Aacuteguas
O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao
movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios
de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua
eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes
determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como
da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os
seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social
econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute
suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas
da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros
igarapeacutesrdquo
Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de
saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas
Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses
saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses
saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres
encantados
Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que
vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta
forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica
e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante
cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)
Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na
comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo
movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo
um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha
idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta
Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36
purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo
35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito
134
Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza
eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de
experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular
pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se
ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)
Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres
pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas
Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)
A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando
porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a
possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos
utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim
como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da
seguinte forma
Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)
Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro
135
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual
natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de
pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada
verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar
por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido
agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da
primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a
conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute
colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo
pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)
Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e
calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu
Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma
aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo
Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas
e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de
tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas
38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco
136
tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas
substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente
Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo
estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer
Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo
praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar
que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no
diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)
O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para
pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades
cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute
piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40
Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma
madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se
aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa
que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega
no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41
40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju
137
Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas
juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi
O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua
flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute
amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de
chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol
Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute
constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio
Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)
Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a
presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se
esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e
nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por
isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio
para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo
Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo
Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016
42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe
138
Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo
que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da
Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas
retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e
o arpatildeo
Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)
O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua
haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica
detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta
Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo
Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era
faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando
no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem
encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do
referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando
a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que
pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades
principalmente de Macapaacute para pescar nos rios
A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo
eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente
amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho
para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio
nos contou como faz para fachear46
43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia
139
A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar
A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque
com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco
Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o
que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a
zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos
peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve
fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da
mareacute
A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses
que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente
durante a vazante da mareacute
Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia
acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as
47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia
140
malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira
atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute
colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois
que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de
monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas
pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso
existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016
Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha
na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos
da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo
Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular
Fotografia 24 ndash Matapi
48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor
141
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi
Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo
Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados
para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais
mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a
monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo
de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste
discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica
capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)
Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das
aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no
cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce
grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem
uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho
51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica
142
Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados
Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos
e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos
naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados
que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa
desobedececirc-los
Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua
habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as
mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador
rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas
as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem
ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)
Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para
esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas
comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades
de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do
rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele
desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da
menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar
que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai
direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor
Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia
sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que
aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos
padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com
nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas
experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato
Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para
52 Margem do rio
143
mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro
Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou
tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de
qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem
pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da
epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a
estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis
pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto
Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que
quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir
Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas
praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo
gritador
Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque
tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua
Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na
comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando
era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson
(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros
e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado
mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha
Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55
53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata
144
A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com
Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou
curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor
o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo
fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha
fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo
avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos
duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona
Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer
tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio
de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que
seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras
partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe
oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito
bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas
56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor
145
Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar
sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um
dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra
ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir
os saberes da reza que satildeo guardados em segredo
Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo
em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma
mulher adulta
Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de
cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela
caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite
nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura
de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na
eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)
Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa
conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia
algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos
acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte
Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco
Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa
que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute
ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou
tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus
feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com
respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual
tem que dar o que prometeu a ela
58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia
146
Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como
esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)
representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo
Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo
procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que
envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem
como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no
rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado
pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo
ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no
riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros
Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e
natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta
pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o
universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem
conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de
conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da
Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as
relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento
hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel
fundamental
41 2 Saberes da Terra e da Mata
Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho
estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e
reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o
reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de
saberes existentes no mundo
Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e
remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O
ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que
satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para
o consumo local
Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias
As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os
147
matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha
chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros
Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta
Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor
senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que
estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases
chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga
inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de
doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas
pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-
olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos
das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo
fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia
Fotografia 27 ndash Marupazinho
148
Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os
remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os
remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim
eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas
quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco
de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo
comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma
de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para
massagear) e banhos
Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de
benzer ainda eacute parteira
Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com
61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc
149
jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um
Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta
maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela
estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem
cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra
nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo
para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante
uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida
pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto
ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto
Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)
[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal
Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de
sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum
apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico
Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais
como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e
depois do fato
Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar
Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia
conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a
62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica
150
desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida
Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra
principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato
Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto
As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de
coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma
moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de
hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave
noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com
o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que
sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito
redonda seraacute meninardquo
A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia
as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade
favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia
de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros
ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia
O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da
farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo
A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da
ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores
sujeitos da pesquisa
Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz
65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar
151
Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho
Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 30 ndash Peacute de Noni
152
Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau
No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016
153
O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do
matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe
camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas
outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos
Fotografia 32 ndash Erva Cidreira
O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 33ndash Catinga de Mulata
Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016
154
Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada
buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e
peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas
satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do
fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees
Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti
Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados
Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)
No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a
escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo
ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute
furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm
relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas
e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)
Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir
permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui
advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os
69 Crianccedilas
155
caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos
animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na
lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem
capturados entre outros
A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)
O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a
dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes
orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo
de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila
Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e
geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande
parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os
desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo
submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o
conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)
Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na
mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente
este saber a seguir
413 Saberes do Accedilaiacute
O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base
econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira
conforme imagem a baixo
Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute
156
As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016
A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute
com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou
charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves
vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos
alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)
ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual
vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si
proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos
e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o
morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e
na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo
A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na
comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo
accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres
domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais
velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios
por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia
por meio do envolvimento nas atividades produtivas
70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira
157
Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro
Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016
A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e
pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode
um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo
assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A
idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a
diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se
desenvolver
Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso
O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma
os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-
se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para
71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver
158
o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como
tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha
A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)
A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que
a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio
ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da
populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente
das aacutervores que satildeo derrubadas
Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o
paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as
folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A
medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua
funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para
evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e
com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila
nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio
atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia
com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha
nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de
uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo
Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute
Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016
159
Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de
serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela
temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo
Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos
primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)
Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute
Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na
beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com
o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire
(2005 p 70) afirma que
O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual
72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho
160
A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o
tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao
contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade
produtiva
Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a
compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas
televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira
rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz
movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda
obtida do accedilaiacute
A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa
por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para
amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde
haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia
Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta
antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal
pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)
Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica
Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para
73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute
161
natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 41 ndash Amassadeira manual
Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos
Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos
162
caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016
Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda
amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais
proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste
processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas
tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em
trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as
bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir
o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa
Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos
das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e
mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo
escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo
com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e
diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente
ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p
25)
Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento
dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica
diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que
tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a
evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de
dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo
Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da
cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que
atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas
nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute
163
42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR
Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos
das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos
professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do
Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas
colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo
Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro
didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em
seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do
educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e
aprendizagem
421 O Conhecimento Escolar
Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de
conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais
amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no
aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento
escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo
do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim
poliacutetica
A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)
Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima
conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os
que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os
conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira
e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos
e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de
aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada
segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida
e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico
Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute
organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica
164
para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da
utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-
se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de
ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a
uacutenica maneira de compreender o mundo
Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o
mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser
reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque
considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo
satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que
caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o
colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido
como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)
Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos
(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74
Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial
Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela
classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de
serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio
e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-
as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a
exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010
p 72)
O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as
identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias
invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio
de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo
conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber
no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer
74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais
165
eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito
Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS
2011 p 30)
Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e
consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um
modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num
conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade
e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os
ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante
Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da
colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de
saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de
pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social
A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos
disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura
erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute
sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente
no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a
descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na
transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos
horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo
(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)
existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de
saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios
diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e
entendimentos distintos do mundo
4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores
O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como
conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino
fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres
De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser
trabalhados com os alunos
166
Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo
sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da
cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo
dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber
Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)
Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos
conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora
do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os
conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute
vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados
independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a
exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de
conhecimento sem sentido e significado para eles
Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO
LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
DISCIPLINA CIEcircNCIAS
1ordm BIMESTRE
1 Planeta Terra e Ambiente
11 A atmosfera terrestre
12 A aacutegua no planeta
13 O solo tipos de solo
22 Os seres vivos dos ecossistemas
2ordm BIMETRE
1 O corpo humano
11 Sustentaccedilatildeo e movimento
12 As partes do corpo humano
13 Os microrganismos
167
Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016
A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da
disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os
professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as
escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o
registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de
um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental
Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o
ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para
o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos
saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que
se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os
diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber
75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos
Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre
168
Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina
no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que
aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-
Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em
relaccedilatildeo ao colonizado
O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)
Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e
costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus
saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e
Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo
materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser
contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando
As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para
reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo
especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O
estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute
desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da
ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e
o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do
produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da
natureza
O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)
No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na
pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se
sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos
sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de
dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem
trabalhados no ano letivo
169
Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)
A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de
conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute
enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles
retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a
mobilizaccedilatildeo do saber local
Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de
aluno
Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016
O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da
lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam
fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem
constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos
possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo
Atividade
1 Preencha a tabela com os nomes dos
animais encontrados aqui na ilha e seus
respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro
Paca X
Tatu X
Jacareacute X
Capiva
ra
X
Porco X
170
(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram
selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre
os quais
Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)
Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades
sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes
para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam
os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de
abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das
experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-
se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p
31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la
Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)
Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)
destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de
compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da
sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades
necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como
171
suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na
qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse
sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais
na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos
comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho
ribeirinho
Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos
conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo
da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos
professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer
parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos
que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os
quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e
coletiva dos sujeitos (p 4)
Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se
necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na
sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos
jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem
e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos
professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a
colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas
tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem
conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma
perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os
conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE
2004 p 4)
A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos
mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes
multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas
422O Livro Didaacutetico
Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento
impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de
aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita
172
ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como
visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo
didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de
valoresrdquo
Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais
didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias
o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e
cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta
maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes
multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo
por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os
docentes
Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos
jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de
cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor
acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus
alunos
Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)
Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo
as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a
buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula
ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram
organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo
conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para
treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor
escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro
tambeacutem direciona o curriacuteculo
76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos
173
Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)
A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar
aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o
livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo
atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e
da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos
alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem
significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo
eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a
praacutetica do professor
Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim
utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim
os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo
pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute
uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries
na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para
Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na
escola
[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias
O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das
aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser
um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o
ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e
174
educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente
precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos
conteuacutedos dentre elas os saberes populares
Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a
construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa
linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia
contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes
Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que
natildeo haja hierarquias entre eles
O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos
na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes
As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)
Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e
contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam
relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre
permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas
regionais bem como as locais
Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico
da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental
175
Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016
Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da
cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em
outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o
que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo
aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma
avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada
do assunto
Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)
Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel
pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente
ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor
MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O
176
utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois
nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e
complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as
escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de
pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no
caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o
livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a
seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula
O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para
cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos
como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos
interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor
cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos
veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam
diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo
Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)
Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da
educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica
pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que
compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e
culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores
da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos
e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a
177
mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e
as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos
Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo
Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica
Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)
O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na
educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para
a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em
detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas
mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)
[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura
O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das
quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base
para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras
disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo
reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os
concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos
conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber
ler para transcrevecirc-los
Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no
ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na
Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar
e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto
contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual
decide eles executam o que foi decidido
178
Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)
Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e
de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os
uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma
multisseriada
O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus
objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e
escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD
em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua
concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento
para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos
livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo
entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento
avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos
docentes das escolas da ilha do Accedilai
423O Planejamento das Aulas
Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio
das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos
nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de
acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo
planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades
didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos
quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio
do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar
assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual
ela estaacute inserida
Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico
ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo
(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a
179
conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma
o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real
para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de
maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas
O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)
Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional
porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se
corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do
planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador
amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do
conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais
eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais
Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade
sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e
objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos
conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas
realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de
metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de
ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)
A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira
elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva
colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora
4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
colonizadora
A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento
escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade
do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior
centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o
surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas
180
O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente
considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras
formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa
maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a
eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo
de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do
conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses
hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados
epistemologicamente
Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que
consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que
os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas
praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da
estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em
que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas
colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo
professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos
colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento
Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)
O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os
oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em
consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o
181
planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar
para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que
impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o
uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na
escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material
Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro
didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a
turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades
especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam
interagir com colegas de outros anos
Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um
problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo
em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde
acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico
das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos
conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm
3ordm 4ordm e 5ordm ano
No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de
conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do
poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos
ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a
negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e
adolescentes ribeirinhos)
Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser
oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder
(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte
do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado
oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e
invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses
hegemocircnicos
A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece
as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das
maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do
182
mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras
dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos
tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da
valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta
direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do
regional Madeira que descrevemos a seguir
4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva
descolonizadora77
As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem
que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas
proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do
reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de
accedilotildees pedagoacutegicas planejadas
Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo
intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto
histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes
fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento
liminar
Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez
(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco
das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos
sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam
(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses
(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que
denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos
pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com
ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de
um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao
planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da
ilha do Accedilaiacute
No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da
77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
183
comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)
O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades
dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a
valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses
alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros
membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em
Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos
produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo
trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a
professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute
sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees
reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado
com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos
Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor
reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua
importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam
constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira
matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees
artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria
espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de
experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica
comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses
saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir
com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses
saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute
contribuindo para a leitura criacutetica do mundo
184
A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira
esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do
conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que
nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de
outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma
ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na
natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um
dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os
animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e
a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da
floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na
Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que
conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para
a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo
(SANTOS 2010 p 58)
O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o
instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo
acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual
conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento
eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de
uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte
que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)
Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na
praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam
tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social
econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades
desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e
faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo
subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia
No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos
metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que
seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o
desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas
metodologias de ensino
185
424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem
A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees
que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo
as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino
selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos
Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos
que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais
dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo
relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar
determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social
Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por
concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar
embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono
da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o
conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor
e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim
a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-
la
As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem
estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado
a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural
econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e
desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo
Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo
ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta
metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees
concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no
desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003
p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas
Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc
186
Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos
que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo
e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees
de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de
classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas
atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas
para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino
e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos
usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees
e anaacutelises sobre determinado assunto
4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78
As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do
planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias
desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de
procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire
(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na
[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos
O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos
devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute
estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute
permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que
eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo
eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p
81)
Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as
praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo
intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no
quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo
Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada
78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo
187
Fonte Edielso M M de Almeida 2016
Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e
5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do
lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os
quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades
correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos
especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para
facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo
da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos
Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)
O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o
quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos
metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da
exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores
receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz
curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes
188
todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios
para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o
exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado
Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)
A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor
monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de
exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os
que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito
primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto
desumanizante continuerdquo
Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e
a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os
saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do
seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos
mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do
conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino
fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo
eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos
devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo
predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo
multisseriada afirma que
[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)
A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos
outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou
189
cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos
diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das
atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo
que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade
cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A
negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta
visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa
pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o
livro didaacutetico
Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)
Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o
livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno
faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o
exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro
em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da
praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta
Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o
conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos
e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais
sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A
imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma
forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees
que natildeo seja a dominante
190
Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do
conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do
Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo
de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo
geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim
poliacutetico tambeacutem
Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes
com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-
historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais
compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que
passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo
com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela
colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos
ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos
e morais
Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei
algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada
como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o
professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias
seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio
porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de
barrigardquo E o professor retrucou
Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)
No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da
linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois
ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos
esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco
tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a
falar ldquoerradordquo
Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente
que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente
191
que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos
desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta
maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada
na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante
Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam
e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem
um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os
geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo
uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma
delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo
oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como
forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e
determina a linguagem dominante como a oficial
As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na
sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa
liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns
docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que
os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na
escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada
correta culta e hegemocircnica
Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange
questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma
nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito
agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso
agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e
menos excluiacutedos
4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras
Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas
praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as
narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo
paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo
dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que
estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que
192
consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas
educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem
Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com
alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos
elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo
Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos
No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram
e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o
professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre
193
outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor
agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o
matapi
A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento
fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o
conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir
do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o
conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo
como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve
o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como
mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para
garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das
ferramentas utilizadas nas atividades produtivas
Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala
de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos
colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos
encararem um desafio que consistia em tecer um matapi
O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das
atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a
tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse
saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes
diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula
associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na
relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas
locais Como afirma Freire (2014 p 39)
Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas
Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber
popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos
na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade
do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo
criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este
194
conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber
Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a
pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se
valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela
escola
A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e
visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que
construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa
determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho
Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi
desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com
alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano
Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem
Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o
camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos
que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade
Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros
79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato
195
encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem
pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho
encontrado em abundacircncia na Ilha
O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os
alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos
diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu
os seguintes encaminhamentos
Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute
Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos
com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico
natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria
uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes
questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo
dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute
acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de
accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem
direto para o consumidor em Macapaacute
Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados
em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os
alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as
apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees
De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os
moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia
196
de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores
vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o
ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute
obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas
puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos
atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem
A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de
dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora
entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$
1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos
alunos como essa realidade poderia ser mudada
Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora
Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos
que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a
refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo
assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo
diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a
realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa
perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de
vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que
como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais
justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo
emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum
80 Atravessador
197
tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do
presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro
didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de
aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre
o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista
que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute
O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua
com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia
foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a
professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola
Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio
O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos
alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente
com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio
rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas
repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu
198
sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam
parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal
e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc
O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas
em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste
lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem
sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo
eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo
O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo
O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes
geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles
precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo
os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma
a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente
o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a
dialogicidade
[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)
Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber
escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber
necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber
popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p
86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas
representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa
representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo
formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar
Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os
falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade
Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia
abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz
Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja
alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas
199
no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa
o referido autor
[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)
Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como
determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma
praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta
FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva
intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo
houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo
epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de
explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a
comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e
igualdaderdquo (idem p 11)
Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo
ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos
Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome
200
Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem
A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila
Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O
planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo
houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos
educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos
educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi
fundamental para o ecircxito da aula
A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)
A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava
escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da
pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que
despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das
respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente
se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho
chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)
A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres
inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo
Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma
gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a
dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores
mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos
Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que
existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do
hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois
haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos
moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre
outros
201
Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a
autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no
diaacutelogo colocam algo em discussatildeo
Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)
Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade
reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem
contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo
Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento
em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos
dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as
emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)
A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi
visibilizado
Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele
202
Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros
Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo
dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu
cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as
doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo
ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado
das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo
de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)
chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica
nas accedilotildees educativas
O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar
O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento
do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo
passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos
(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos
que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da
escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o
conhecimento global
No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo
indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos
alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das
pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que
se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos
203
gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora
estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar
porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos
Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes
que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia
hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto
pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e
garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua
no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um
instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para
explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os
remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de
existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na
aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de
vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da
ciecircncia farmacecircutica
Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e
com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula
o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos
duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os
alunos questionaram
Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha
204
A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos
que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e
voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo
reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no
veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou
fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira
satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas
determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano
assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute
5CONCLUSAtildeO
Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute
territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um
mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos
que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da
ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava
profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes
apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No
diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute
e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas
conclusotildees deste estudo
De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar
como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos
na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha
do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos
das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no
qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de
trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores
entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das
praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores
mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras
205
nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de
saberes
Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e
reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos
numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de
Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas
relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual
as desenvolvem
Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade
diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco
tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas
vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel
(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai
fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que
esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia
que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo
baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber
Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas
teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais
oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das
matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a
feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos
encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na
mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos
haacutebitos alimentares de cada espeacutecie
No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo
de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim
a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o
tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho
sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde
encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri
entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles
comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e
ferramentas para aprisionaacute-los
206
Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as
atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o
horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do
tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como
os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais
adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das
mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico
fundamental para entendermos como vivem esses povos
Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando
se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo
gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das
comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo
pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os
filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam
no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as
crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente
No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e
tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados
pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma
experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento
da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos
remeacutedios oriundos da terra e da mata
Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos
enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da
ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma
epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao
transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma
cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar
pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo
Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como
criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores
Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas
por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte
o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e
207
aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses
saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das
aacuteguas
Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento
escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem
horizontalmente
O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de
colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos
ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de
ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado
natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do
imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo
indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre
elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece
esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos
consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das
diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute
produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a
monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local
Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da
escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo
parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o
contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em
consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos
(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos
das aacuteguas da Amazocircnia
O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por
meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o
que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos
docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com
a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e
intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como
verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de
pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os
208
saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de
educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo
cientiacutefico e atende aos interesses dominantes
Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias
colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi
imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia
colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees
invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios
sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees
hegemocircnicas
Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as
mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe
uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da
cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O
diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes
locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas
escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute
Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja
ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo
docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma
horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento
das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do
Accedilaiacute
Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e
reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades
sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das
necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios
do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes
locais
81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6
209
Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades
produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais
silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas
descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas
metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido
a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses
saberes foram os protagonistas
O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a
realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas
escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da
comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar
transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os
moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os
professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de
ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e
respeito agrave sua dignidade
A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem
saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem
possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No
diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e
ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do
respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro
Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo
horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como
afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens
acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos
digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade
dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa
pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor
o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente
da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem
nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave
educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os
210
professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo
poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica
O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes
no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das
experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no
qual vivem esses protagonistas
A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os
educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo
influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o
tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo
relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam
a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais
Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os
poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais
iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o
dom milagroso83rdquo
Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade
de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo
ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira
efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza
Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi
nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas
crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas
nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute
A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo
pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime
qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas
Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas
ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e
produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma
Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo
83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute
211
precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como
(metodologia) deve ser ensinado
Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser
ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a
imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade
das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento
Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e
provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes
que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas
religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que
isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute
fundamental na gestatildeo escolar
No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado
refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo
que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades
e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com
manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que
valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e
religiosas
212
REFEREcircNCIAS ALMEIDA JR Joseacute Maria Gonccedilalves de (org) Carajaacutes desafio poliacutetico ecologia e desenvolvimento Satildeo Paulo Brasiliense 1986 ALVES-MAZZOTTI Alda Judith GEWANDSZNAJDE Fernando O meacutetodo nas ciecircncias naturais e sociais pesquisa quantitativa e qualitativa 2 ed Satildeo Paulo Pioneira 2002 ANGOTTI M Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc In___ (Org) Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc Campinas Aliacutenea 2010 AGUIAR J D N SANTOS J Freire dos Neodesenvolvimentismo brasileiro e subimperialismo na Ameacuterica Latina XII Semana de Ensino Pesquisa e Extensatildeo do Centro de Humanidades Universidade Federal de Campina Grande 2013 AMADEO Javier Marxismo e teoria poacutes-colonialidade 6ordm Coloacutequio Internacional Marx e Engels IFCH - UNICAMP Satildeo Paulo 2009 Disponiacutevel em httpwwwifchunicampbrcemarxcoloquioDocsgt7Mesa3marxismo-e-teoria-pos-colonialpdf Acesso em 23 fev 2014 ARROYO M G et al (Org)Por Uma Educaccedilatildeo do Campo Petroacutepolis-RJ Vozes 2004 APPLE W Michael Ideologia e curriacuteculo 3 Ed Porto Alegre Artmed 2006 BAPTISTA A M H ROGERO R (Org) Tempo-Memoacuteria na Educaccedilatildeo Satildeo Paulo BT Acadecircmica 2014 BALLESTRIN Luciana Ameacuterica Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciecircncia Poliacutetica Brasiacutelia v11 2013 pp 89-117 BGNO Marcos A liacutengua de Eulaacutelia novela sociolinguiacutestica 3 Ed Satildeo Paulo Contexto Editora 2004 BARDIN L Anaacutelise de Conteuacutedo 12 ed Lisboa Ediccedilotildees 7 2004 BECKER Bertha K Amazocircnia geopoliacutetica na virada do III milecircnio 2 ed Rio de Janeiro Garamond 2007
213
BEZERRA NETO L Na luta pela terra a conquista do conhecimento Satildeo Carlos Pedro amp Joatildeo Editores 2013 BENCHIMOL Samuel Amazocircnia formaccedilatildeo social e cultural Manaus Editora Valer 1999 BITTENCOUT A O homem amazonense e o espaccedilo 3 ed Rio de Janeiro Artinova 1989 ______ Hidreleacutetricas no Amazonas temos um exemplo negativo no nosso quintal Disponiacutevel
em lthttpwwwihuunisinosbrentrevistas509099-hidreletricas-no-amazonas-temos-um-exemplo-negativo-no-nosso-quintal-entrevista-especial-com-anderson-bittencourtgt Acesso em 8 de maio de 2016 BODGAN R BIKLEN SInvestigaccedilatildeo qualitativa em educaccedilatildeo 3 ed Porto Porto
Editora 1994 BRASIL Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional 939496 Disponiacutevel em
lthttpwwwmecgovbrgt Acesso em 8 de maio de 2016 BRANDAtildeO Carlos Rodrigues A educaccedilatildeo como cultura Satildeo Paulo Mercado de
Letras 2007 CALVET L J Sociolinguiacutestica introduccedilatildeo criacutetica Satildeo Paulo Paraacutebola 2000 CANCLIacuteNI Neacutestor GarciacuteaCulturas Hiacutebridas estrateacutegias para entrar e sair da modernidade 3 ed Satildeo Paulo UNESP 2006 CANDAU V M (Org) Educaccedilatildeo intercultural e cotidiano escolar Rio de Janeiro 7 Letras 2006 CASTRO-GOMEZ Santiago amp MENDIETA Eduardo (1998) Introduccion la translocalizacion discursiva de Latinoamerica en tiempos de la globalizacion In CASTRO-GOMEZ Santiago MENDIETA Eduardo (coord) Teoriacuteas sin disciplina latinoamericanismo poscolonialidad y globalizacioacuten en debate Mexico Miguel Angel Porrua 2010 CASTRO-GOacuteMES S Decolonizar la universidad la hybris del punto cero y eldiaacutelogo de saberes In CASTRO-GOacuteMES S GROSFOGUEL R (Ed) El girodecolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismoglobal Bogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto deEstudios Sociales Contemporaacuteneos Pontificia Universidad Javeriana InstitutoPensar 2007 COSTA Seacutergio Dois atlacircnticos teoria social anti-racismo e cosmopolitismo Belo Horizonte Editora da UFMG 2006 COMISSAtildeO PASTORAL DA TERRA 2015 1 fotografia Disponiacutevel em httpwwwcptnacionalorgbrindexphppublicacoesnoticiasgeral2770-papa-critica-o-desmatamento-para-dar-lugar-a-lavouras-de-sojagt Acesso 17 de maio de 2016
214
CHIZZOTTI Antonio Pesquisas em ciecircncias humanas e sociais 6 ed Satildeo Paulo Cortez 2003 CURY C R J A educaccedilatildeo infantil como direito In BRASIL Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e do Desporto Secretaria de Ensino Fundamental Subsiacutedios para credenciamento e funcionamento de instituiccedilotildees de educaccedilatildeo infantil v2 Brasiacutelia DF MECSEF 2012 DELEUZE G Bergosonismo Satildeo Paulo Editora 34 2010 DESCARTES R Discurso do meacutetodo 54 Ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 DIDONET V Importacircncia da educaccedilatildeo infantil In SIMPOacuteSIO DE EDUCACcedilAtildeO INFANTIL construindo o presente Brasiacutelia DF 2014 Anais Brasiacutelia UNESCO 2003 p83-97 Disponiacutevel em lthttpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoue000311pdfgt Acesso em 26 de maio de 2016 DOBLAS Juan Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpvejaabrilcombrnoticiaeconomiahidreletricas-da-amazonia-enfrentam-serie-de-processosgtAcesso 4 de maio de 2016 DRUMMOND J A Investimentos privados impactos ambientais e qualidade de vida num empreendimento mineral amazocircnico o caso da mina de manganecircs da Serra do Navio (Amapaacute) Histoacuteria Ciecircncia Sauacutede Maguinhos v VI p 753-792 setembro de 2000 ECOS DA SELVA Garimpo em terra Yanomami Disponiacutevel emlthttpecosdaselvawordpresscomtagyanomami Garimpo em terra Yanomamigt Acesso em 28 de julho de 2016 ESCOBAR Arthuro Mundos y conocimientos de otro modo el programa de investigacioacuten modernidadcolonialidad latinoamericano Bogotaacute Tabula Rasa 2003 Disponiacutevel em httpwwwuncedu~aescobartextespescobar-tabula-rasapdf Acesso em 23 jul 2014 ESTERMANN Josef Si el Sur fuera el Norte Chakanas interculturales entre Andes y Occidente La Paz ISE 2008 FARES Josebel Akel Cartografia poeacutetica In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem CCESE-UEPA 2004 FEARNSIDE Philip M Desenvolvimento Hidreleacutetrico na Amazocircnia In______ Hidreleacutetricas na Amazocircnia impactos ambientais e sociais na tomada de decisotildees sobre grandes obras Manaus Editora do INPA 2015 FOSTER Eugenia da Luz Silva Traccedilos da trajetoacuteria do negro na regiatildeo amazocircnica Disponiacutevel em lthttpWWWbdtdndcuffbrtde_arquivos2TDE 03-05-
215
15T143957Z-70PublicoParte20220-0teseEugenia20Fosterpdfgt Acesso em 28 de ago de 2010 FANON Frantz Racismo y cultura PreacutesenceAfricaine Junho-novembro 1956 Franco M L P B O que eacute anaacutelise de conteuacutedo 4 ed Satildeo Paulo PUC 2006 FREIRE P Pedagogia do Oprimido 43 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 ______ Pedagogia da Esperanccedila um reencontro com a Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 16ordf ed 2009 ______ Educaccedilatildeo como praacutetica da liberdade Satildeo Paulo Paz e Terra 2003 ______ Politica e educaccedilatildeo Satildeo Paulo Paz e Terra 1987 ______ Extensatildeo ou comunicaccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 GAGNEBIN J M Infacircncia e pensamento In GHIRALDELLI JUacuteNIOR P (Org) Infacircncia escola e modernidade Satildeo Paulo Cortez 2011 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro Zahar1978 GEacuteRARD F M ROEGIERS X Concevoir et eacutevaluer des manuels scolairesBruxelas De Boeck-Wesmail 2000 (traduccedilatildeo Portuguesa de Juacutelia Ferreira e de Helena Peralta Porto2003) GONCcedilALVES Carlos Walter Porto Amazocircnia Amazocircnias 2 ed Satildeo Paulo Editora Contexto 2005 Google Mapas Disponiacutevel em lthttpmapsgooglecombrmapsgt Acesso 17 de maio de 2016 GRUumlN M Eacutetica e educaccedilatildeo ambiental a conexatildeo necessaacuteria 6 ed Campinas Papirus 2002 GRUZINSKI Serge O pensamento mesticcedilo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 GUERRA Ribamar Amazocircnia intervenccedilatildeo e resistecircncia Disponiacutevel em lthttpanovademocraciacombrno-25643-amazonia-intervencao-e-resistenciagt Acesso em 7 de abril de 2016 GROSFOGUEL Ramon Para descolonizar os estudos de economia poliacutetica e os estudos poacutes-coloniais transmodernidade pensamento de fronteira e colonialidade global Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais Coimbra n 80 2008 HAGE Salomatildeo Mufarrej Classes multisseriadas desafios da educaccedilatildeo rural no estado do Paraacuteregiatildeo Amazocircnica In ______ (Org) Educaccedilatildeo do campo na
216
Amazocircnia retratos de realidade das escolas multisseriadas no Paraacute Beleacutem Gutemberg 2005 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA Extraccedilatildeo vegetal e silvicultura Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150030ampsearch=parC3A1|afuagt Acesso 17 de maio de 2016 Jornal O Acre Rio Branco 20 de maio de 1943 n 742 KRAMER Sonia As crianccedilas de 0 a 6 anos nas poliacuteticas educacionais no Brasil educaccedilatildeo infantil eeacute fundamental Educ Soc v 27 n 96 p797-818 out 2006 LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico 23 ed Rio de Janeiro Zahar 2009 LAVILLE Christian DIONE Jean A construccedilatildeo do sabermanual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 2000 LAJOLO Marisa Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em Aberto Brasiacutelian 69 v 16 janmar 2001 LIBAcircNEO Joseacute Carlos Didaacutetica 2 ed Satildeo Paulo Cortez 2004 LOPES Alice Casimiro Curriacuteculo e Epistemologia Ijuiacute Editora Unijuiacute 2007 LOUREIRO V RAmazocircnia uma histoacuteria de perdas e danos um futuro a (re) construir Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 LOUREIRO Joatildeo de Jesus Paes Cultura amazocircnicauma poeacutetica do imaginaacuterio Satildeo Paulo Escrituras Editora 2001 LUDKE Menga ANDREacute Marli E D A Pesquisa em educaccedilatildeo abordagens qualitativas Satildeo Paulo EPU 2006 LUCKESI CC planejamento e Avaliaccedilatildeo escolararticulaccedilatildeo e necessaacuteria determinaccedilatildeo ideoloacutegica IN O diretor articulador do projeto da escola Borges Silva Abel Satildeo Paulo 1992 FDE Diretoria Teacutecnica Seacuterie Ideacuteias nordm 15 ______ Filosofia da educaccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez 2003 MAUEacuteS R H A ilha encantada medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1990 MARINI Ruy Mauro Dialeacutetica da Dependecircncia Petroacutepolis Vozes 2000
217
Mapa da Ilha do Marajoacute Disponivel em lthttpmarajoandoblogspotcombr200912o-mapa-da-ilhahtmlgt Acesso 16 de maio de 2016 MEDIACcedilAtildeO Revista de Educaccedilatildeo do Coleacutegio Medianeira Curitiba PR v 3 n 6 p 33-37 2010 MONTEIRO M de A Meio seacuteculo de mineraccedilatildeo industrial na Amazocircnia e suas implicaccedilotildees para o desenvolvimento regional Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 MORAES MC O paradigma educacional emergente Satildeo Paulo Papirus 1997 MOREIRA A F CANDAU V M Curriacuteculo conhecimento e culturaBrasiacutelia Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica 2008 MORIN E A cabeccedila bem-feita repensar a reforma reformar o pensamento traduccedilatildeo Eloaacute Jacobina 8 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2003 MIGNOLO Walter DDesobediecircncia epistecircmica A opccedilatildeo decolonial e o significado de identidade em poliacutetica Traduccedilatildeo de AcircngelaLopes Norte Cadernos de Letras UFF ndash Dossiecirc Literatura Liacutengua e Identidade nordm 34 p 287 ndash 324 2010 ______ Histoacuterias locais projetos globais colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte UFMG 2003 MINAYO M C S O desafio do conhecimento pesquisa qualitativa em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2004 OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias ribeirinhas saberes e representaccedilotildees sobre praacuteticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazocircnidas Beleacutem-Paraacute CCSE-UEPA 2004 PACHECO Agenor Sarraf Em el corazoacuten de la Amazocircnia identidades saberes e religiosidades do regime das aacuteguas marajoaras Tese de Doutorado (Ciecircncias Sociais) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica Satildeo Paulo 2009 PHOTOGRAPHY T Mina de ferro Carajaacutes no Paraacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwinfoescolacomgeografiaextrativismo-mineral-no-brasilgt Acesso 30 de abril de 2016 PROGRAMA DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO Atlas Brasil 2013 Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=150030ampidtema=11 ampsearch=para|afua|C38Dndice-de-desenvolvimento-humano-nicipal-idhm-gt Acesso 17 de maio de 2016 PROYANOMAMI Os Yanomamis e sua terra textos de Bruce Albert (IRD) disponiacutevel lthttpwwwproyanomamiorgbrgt Acesso em 28052013
218
QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica LatinaIn LANDER E (Org) A colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Perspectivas latino-americanas Coleccioacuten Sur Sur Clacso Buenos Aires ndash Argentina setembro 2005 p 227 ndash 278 ______ Colonialidade do poder e classificaccedilatildeo social In SANTOS Boaventura de Sousa MENESES Maria Paula (Orgs) Epistemologia do Sul Satildeo Paulo Cortez 2010 RODRIGUES Denise Souza Simotildees et al Cultura cultura popular amazocircnica e a construccedilatildeo imaginaacuteria da realidade In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias de saberes representaccedilotildees sobre a cultura amazocircnica em praacuteticas de educaccedilatildeo popular Beleacutem EDUEPA 2007 ROMANATTO Mauro Carlos A noccedilatildeo de nuacutemero natural em livros didaacuteticos de matemaacutetica comparaccedilotildees entre textos tradicionais e modernos Dissertaccedilatildeo (mestrado) Universidade Federal de Satildeo Paulo Satildeo Carlos SP 2007 RIBEIRO Gustavo L ESCOBAR Arturo (orgs) Antropologias Mundiais Transformaccedilotildees da disciplina em sistemas de poder Brasiacutelia Editora UNB 2012 RIBEIRO W C Teoria Criacutetica contribuiccedilotildees para se pensar a Educaccedilatildeo Ambiental Sinapse Ambiental Betim v4 n2 p8-25 dez 2007 REIS A C F R O seringal e o seringueiro 2 ed Manaus Editora da Universidade do Amazonas 1997 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 SALLES Vicente O negro no Paraacute sob o regime da escravidatildeo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1971 SANTIAGO Abinoan Hidreleacutetrica pode ter causado morte de peixes no rio Araguari diz poliacutecia Disponiacutevel em httpg1globocomapamapanoticia201511hidreletrica-pode-ter-causado-morte-de-peixes-no-rio-araguari-diz-policiahtml Acesso em 7 de maio 2016 SANTOS B A dos Recursos minerais da Amazocircnia Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 16 n 45 p 123-202 2002 SANTOS Wildson Luiz CARNEIRO Maria Helena da Silva Livro Didaacutetico de Ciecircncias Fonte de informaccedilatildeo ou apostila de exerciacutecios In Contexto e Educaccedilatildeo Ano21 Julhodezembro Ijuiacute Editora Unijuiacute 2006 SANTOS B S MENESES M P (Org) Epistemologias do Sul 6 Ed Satildeo Paulo Cortez 2010 SANTOS B de S Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes-moderna Rio de Janeiro Graal 2002
219
______ A criacutetica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 8 ed Satildeo Paulo Cortez 2011 ______ Introduccedilatildeo a uma Ciecircncia Poacutes-Moderna Rio de Janeiro Graal 1999 ______ A gramaacutetica do tempo para uma nova cultura poliacutetica 3 ed Satildeo Paulo
Cortez 2008
______ A critica da razatildeo indolente contra o desperdiacutecio da experiecircncia 4 Ed
Satildeo Paulo Cortez 2007
______ Um discurso sobre as ciecircncias 10 ed Porto Afrontamento 2009
______ (org) Semear outras soluccedilotildees os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SILVA Tomaz Tadeu daDocumentos de Identidade uma introduccedilatildeo as teorias do curriacuteculo 3 ed Belo Horizonte 2009 SILVA Raimundo Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute 1 fotografia color Disponiacutevel em lthttpwwwalcilenecavalcantecombrpage32gt Acesso 8 de maio de 2016 SILVAM das G S N O espaccedilo ribeirinho Satildeo Paulo Terceira Margem 2000 SAID Edward O Orientalismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1978 SPIVAK Gayatri C Estudios de la Subalternidad In Estudios postcoloniales Ensayos fundamentales 2008 Disponiacutevel em httpwwwoozebaporgbibliopdfestudios_postcolonialespdf Acesso em 09 de fev de 2014 ______ Pode o subalterno falarBelo Horizonte Editora UFMG 2010 TAVARES M Despensar as pedagogias coloniais e os seus pressupostos epistemoloacutegicos VIII Coloacutequio de Pesquisa Sobre Instituiccedilotildees Escolares Pedagogias Alternativas UNINOVE Disponiacutevel em lthttpppgeuninoveblogspotcombr201109viii-coloquio-de-pesquisa- obrehtmlgt Acesso em 14052015 TAVARES M G da CostaA Amazocircnia brasileira formaccedilatildeo histoacuterico-territorial e perspectivas para o seacuteculo XXI GEOUSP - Espaccedilo e Tempo Satildeo Paulo nordm 29 - Especial p 107 - 121 2011 TEIXEIRA C C O aviamento e a sociedade do barracatildeo do seringal 1980 200 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em geografia) Universidade de Satildeo Paulo 1980 TORRES C A Diaacutelogo com Freire 3 ed Satildeo Paulo Loyola 2003
220
TRIVINtildeOS Augusto N S Introduccedilatildeo agrave pesquisa em ciecircncias sociais a pesquisa qualitativa em educaccedilatildeo 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2007 VILLAS-BOcircAS Andreacute Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina 1 fotografia color Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 WALLERSTEIN Immanuel O albatroz racista a ciecircncia social Joumlrg Haider e a resistecircncia Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais nordm 56 fev 2000 p 05-33 ______ Impensar a Ciecircncia Social Os limites dos paradigmas do seacuteculo XIX Aparecida Ideias amp Letras 2006 ______ Anaacutelises dos sistemas mundiais In GIDDENS A TURNER J (org) Teoria social hoje Satildeo Paulo Editora Unesp 1999 WALSH C Pedagogiacuteas decoloniales praacutecticas insurgentes de resistir (re)existir y (re)vivir Quito Abya Yala 2013 ______ Interculturalidad criacutetica y educacioacuten intercultural In VIANtildeA J TAPIA L WALSH C Construyendo Interculturalidad Criacutetica La Paz III-CAB 2011 ______ Interculturalidad y colonialidad del poder Un pensamiento y posicionamiento ldquootrordquo desde la diferencia colonial In CASTRO-GOacuteMEZ Santiago amp GROSFOGUEL Ramoacuten (Orgs) El giro decolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo globalBogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto de Estudios Sociales Contemporaacuteneos y Pontificia Universidad Javeriana Instituto Pensar 2007 ______(Ed) Pensamiento criacutetico y matriz (de)colonial reflexiones latinoamericanas Quito Universidad Andina Simon BolivarAbya-Yala 2005 WALSH Catherine SCHIWY Freya CASTRO-GOacuteMEZ SantiagoIndisciplinar as ciecircncias sociais Quito Universidade Sandina Simon BolivarAbyaYala 2002
221
APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os moradores
Cartografar a partir das memoacuterias
dos moradores da ilha do Accedilaiacute os
saberes presentes no discurso e
nas praacuteticas cotidianas dos
ribeirinhos
Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio
2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida
3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os
seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute
4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres
encantados
5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres
encantados E como elas satildeo curadas
6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou
produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e
outras)
7 Como vocecirc desenvolve essa atividade
8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la
9 Quais os instrumentos utilizados para a
execuccedilatildeo desta atividade
10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver
essa atividade
11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou
a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a
participaccedilatildeo da famiacutelia
12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido
222
APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores
OBJETIVO PERGUNTAS
Roteiro de perguntas para os Professores
Identificar na praacutetica pedagoacutegica
do professor a presenccedila do saber
popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber
escolar
Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio
(magisteacuterio)
2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo
3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso
positivo em que aacuterea do conhecimento
4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro
Municiacutepio ou Estado
5 Quem define os conteuacutedos que satildeo
trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da
educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino
fundamental
6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo
incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios
que vocecirc utiliza para selecionaacute-los
7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem
todos satildeo trabalhados durante o ano letivo
Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para
selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados
8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico
que os alunos receberam este ano
9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas
223
10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas
para a classe multisseriada
11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no
planejamento das aulas Caso positivo como
ocorre a inclusatildeo desses saberes
12 Como os alunos satildeo organizados na sala de
aula multisseriada
13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas
para trabalhar os conteuacutedos nas aulas
14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados
nas aulas Como satildeo utilizados
15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade
em sala de aula
224
APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores
1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem
trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los
2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas
3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se
satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade
4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada
5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para
trabalhar os conteuacutedos nas aulas
6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do
curriacuteculo pelos professores
225
APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade
1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos
2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados
3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para
curar as doenccedilas
4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como
satildeo desenvolvidas
6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades
produtivas
7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no
desenvolvimento das atividades produtivas