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1 Ecologia na prática: Parque Estadual do Papagaio Charão Simone Luiza Fritzen

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Ecologia na prática:

Parque Estadual do Papagaio Charão

Simone Luiza Fritzen

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SUMÁRIO

Reconhecimento de território: primeiras impressões ......................................................................... 3

Uma questão de perceber: a observação indireta da ocorrência das espécies .................................. 6

Monitoramento da fauna silvestre atropelada.................................................................................... 8

Uma Unidade em um Sistema de Unidades ...................................................................................... 10

Plano de Manejo do Parque Estadual do Papagaio Charão: um capítulo à parte ............................. 14

Flora: a vida em cadeia ...................................................................................................................... 17

O pote de ouro no final do arco-íris e, no caminho de volta, mais surpresas... ................................ 19

Ensaio por mais parcerias em defesa da biodiversidade ................................................................... 23

Referências Bibliográficas .................................................................................................................. 27

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Reconhecimento de território: primeiras impressões

Quando saía de casa, às 9 horas da manhã de segunda-feira, imaginei, pela leve friaca que

fazia, que a temperatura devia estar em torno de uns 14º C. Era outono, mas o inverno, tímido,

começaria a aparecer. O céu, azul de um só tom, dava espaço às indefinidas nuvens acinzentadas, que

deixavam passar um ou outro raio de sol até a superfície da terra. O meu destino, naquele dia, era o Parque

Estadual do Papagaio Charão, uma das Unidades de Conservação (UC) brasileiras.

Provavelmente você ainda não a conheça, ou não com este nome, pois, inicialmente, se chamava

Parque Florestal de Sarandi, depois, foi chamada de Parque Estadual de Rondinha, em homenagem ao

município. Acreditava-se que estava no território desta cidade (RS), o que gerou uma confusão entre

ambos, uma vez que os dois queriam que pertencesse ao seu município, porque gera retorno em ICMS na

receita municipal. No ano de 2010, ficou esclarecido que a área dos mil hectares está completamente

localizada no território de Sarandi, e que, para evitar mais equívocos, receberia o nome com base em um

atributo natural que ocorresse no Parque ou na região, assim como acontece com os outros Parques do

Estado: o Papagaio Charão.

Depois de alguns minutos de conversa com o Agente Florestal e Gestor da Unidade desde 2012,

Igor Kraemer, era hora da saída de campo. De carro, em marcha lenta, adentramos na floresta pela trilha

do aceiro, a única que pode ser percorrida por automóveis e também a mais lúdica: termina na cascata do

Arroio Baios – principal atrativo paisagístico do parque –, a cinco quilômetros da entrada do Parque.

Aos poucos, começava a me familiarizar com o local: o ruído dos gravetos e pedaços de pau, inertes

no caminho, estalando insistentemente ao serem atropelados pela força dos pneus; ao longe, algum

pássaro, vez ou outra, nos presenteava com a graça de sua melodia; os grilos, quase despercebidos pelo

tamanho, davam a perceber que não estávamos sozinhos: simpáticos anfitriões, os insetos curiosamente

cantavam com suas asas – sim! É assim que produzem som – por todo o tempo, em plena luz do dia; além

da composição do trio (gravetos, pássaro e grilos), nada mais se ouvia; nesse instante, tive a certeza de que

barulho algum, produzido pelas fábricas das grandes cidades, ousaria interromper aquela infinita paz.

Nos olhos, confundiam-se os vários tons de verde clássico, cuidadosamente pintados pela Mãe

Natureza nas folhas das plantas – que também foram minuciosamente recortadas em sortidas formas:

grandes, pequenas, largas, estreitas, compridas ou curtas, pontudas ou arredondadas, retas ou

ziguezagueadas –, e de marrons, cinzas e cor-de-palha, colorindo os troncos das árvores, arbustos e cipós –

alguns mais grossos, outros mais finos, uns mais lisos, outros mais ásperos. O aroma dessa mistura de

cores, formas e superfícies? Um cheiro de mato custoso de descrever. Fragrância de terra; de terra úmida,

eu diria, para me aproximar daquele cheiro que levanta do solo quando começa a chover. Lugares assim,

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Indivíduo do Butia paraguayensis, espécie endêmica ameaçada de extinção, localizado em uma das poucas áreas de campo que restaram no Parque Estadual do Papagaio Charão.

para Euclides da Cunha, fazem deste país uma região privilegiada, “onde a natureza armou a sua mais

portentosa oficina”.

Ao mesmo tempo em que olhava pela janela aberta do carro e sentia, sem nenhum esforço, o

equilíbrio entre todos os tipos de vida que me rodeavam, Igor explicava o que fazia daquela área uma

Unidade de Conservação (UC): − Ela tem remanescentes florestais originais dessa região. Parte da

vegetação, na região noroeste do Parque, é uma área que sempre teve mato, e que teve pouca alteração.

Para ser incluída na categoria Parque, passou por uma análise de um grupo de estudos, apresentando as

condições necessárias. Muitas espécies da fauna e da flora são endêmicas, específicas dessa região, e estão

ameaçadas de extinção –, contou.

A trilha pela qual percorríamos, nesse momento, além de permitir o deslocamento pelo interior da

Unidade, serviu de aporte para reparar que, do meu lado esquerdo, a vegetação era de mata nativa

fechada (Floresta Ombrófila Mista e Floresta Estacional Decidual), enquanto do lado direito a vegetação era

mais fina (aberta) e rasteira, com ocorrência predominante de gramíneas, capins e barbas-de-bode – que

secam em determinado período.

A diferença das duas formações vegetais, ambas consideradas Bioma Mata Atlântica, ocorreu

porque esta segunda área (da minha direita, mais aberta), há cerca de 15 anos, fora uma área de campo

com plantio de araucária, ligado à Secretaria Estadual da Agricultura, com foco na exploração florestal, na

pesquisa florestal e no manejo, mas que recebeu mais atenção e legislação porque estava com seus

recursos naturais se exaurindo; daí a preocupação em manter a vegetação que havia para conhece-la

melhor, objetivo das áreas de proteção integral: – Até hoje não conhecemos todas as espécies que ocorrem

aqui – revelou Igor.

Já a linha divisória entre as duas vegetações, hoje usada como trilha, já foi um aceiro – faixa arada

de terra que servia como limite para o

fogo, usado como técnica agrícola para

revigorar o solo (na área de campo), não

avançar pela mata. Assim, a área de campo

está atualmente em fase de transição, pois

como o manejo não é mais realizado, a

floresta está lentamente avançando sobre

ela, o que não deveria acontecer.

Um dos objetivos do Parque,

inclusive, é manter as áreas de campo;

nelas, sobrevivem espécies ameaçadas de

extinção, como o Butia paraguayensis,

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conhecido popularmente como butiá, e que só resiste nesse tipo de vegetação. Na mata fechada, avistei

um deles e pude perceber como era diferente dos outros: mais alto e menos expansivo, por não estar no

ambiente biológico adequado. Caso a área de campo desapareça, em longo prazo, a espécie do butiá

morrerá juntamente.

Com as primeiras impressões já registradas, relembro que, quando soube, nesses últimos meses, da

existência do Parque Estadual do Papagaio Charão, localizado no município de Sarandi, no norte do estado

do Rio Grande do Sul, por meio do site da Prefeitura Municipal, fiquei extremamente tentada a conhecê-lo

melhor, já que sempre fui simpatizante das causas ecológicas.

Ao escrever este livro, começo a perceber o quanto poderá contribuir na educação ambiental de

crianças, jovens e adultos, levando-se em conta que o jornalismo ambiental está, até então, em um

contexto deveras restrito ao nicho de profissionais e público segmentados da área, na grande maioria das

vezes, em função da linguagem especializada demais que utiliza, quando deveria, por outro lado, abranger,

sobretudo, o círculo dos leitores comuns, cidadãos responsáveis pelo meio em que vivem tanto quanto os

órgão ambientalistas.

Além disso, mostrar aos brasileiros que existem mais iniciativas de proteção do que se imagina,

mesmo que recentes e em construção, tornou ainda mais instigante meu trabalho, visto que esta é a única

pesquisa jornalística e das ciências sociais de que se tem conhecimento em uma UC do estado do Rio

Grande do Sul, conforme o coordenador de Pesquisas da Divisão de Unidades de Conservação da Secretaria

Estadual do Meio Ambiente, Felipe Kohls Rangel.

Assim, quando contatei Igor para explicar-lhe informalmente minha proposta de trabalho,

informou-me que, para a realização de pesquisas, são necessárias duas autorizações – uma para

desenvolver o trabalho (expedida pela Coordenação de Pesquisas do Departamento de Unidades de

Conservação da Secretaria do Meio Ambiente) e outra para ingresso no Parque (concedida pelo próprio

Gestor da Unidade), que deveriam ser solicitadas com a devida antecedência. Era metade do mês de março

quando fiz um breve projeto e preenchi um formulário com alguns dados, que enviei para a referida

Coordenação. Na primeira semana de maio, a solicitação foi concedida, e fiz minha primeira visita na

segunda semana do mesmo mês.

Confesso que, nesse meio tempo, fiquei, por vezes, irritada com a rigidez burocrática, e ansiosa,

pois não sabia se a autorização seria concedida ou quando seria. Depois de conversar com a Gestor, porém,

percebi que o trabalho da Administração do Parque e da Coordenação de Pesquisas é, justamente,

desembaralhar tais “burocracias”, e que algumas precauções são realmente necessárias. É através do

projeto de pesquisa encaminhado que as visitas e as atividades do Parque são organizadas.

Além disso, muitos acadêmicos solicitam pesquisa, realizam-na (o que dispende tempo e recursos

públicos), mas não disponibilizam o retorno desta – relatórios e artigos elaborados. Por isso, atualmente,

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exige-se que o pesquisador faça um relatório a cada saída de campo, que fica arquivado no setor

administrativo do Parque, para evitar perdas de material importante. Segundo Igor, dificilmente pesquisas

serão negadas, a não ser que sejam realmente impróprias. Quando os dados estiverem incompletos, não

fornecendo os subsídios necessários para a análise, acréscimos serão solicitados e, havendo a

complementação requerida, a possibilidade da pesquisa será novamente avaliada.

Perceba, caro leitor, que esta é uma verdadeira viagem ao universo da ecologia, da preservação, e

mais do que isso, a um fragmento do planeta que possibilita a observação da natureza como ela realmente

é, na sua essência. Continue conosco!

Uma questão de perceber: a observação indireta da ocorrência das

espécies

Visualizadas as diferenças dos dois tipos de vegetação (de mata e de campo), continuamos a trilha

até chegar a uma bifurcação, na qual o caminho à direita leva à outra trilha que termina em um açude não

pertencente ao Parque, enquanto à da esquerda continua em direção à cascata, nosso destino. Ao dar uma

breve parada, ouvimos o sonoro canto de um pássaro. Ver um animal no Parque, porém, é algo bem difícil,

pois eles são selvagens. A ocasião me desanimou um pouco, pois imaginava que iria tirar boas fotografias

deles. Tive de compreender que certas coisas não seriam alcançadas como o previsto, e que as evidências

de que grandes mamíferos e aves como tatus, veados, jacus e iraras circulam no Parque são obtidas por

meio dos relatórios de patrulha, ou – para minha surpresa – por meio da observação indireta, como

pegadas, frutos comidos e a vocalização – que presenciávamos naquele momento.

Existe ainda ali uma espécie de esquilo, vulgarmente conhecida como serelepe, que, por um

momento, tive impressão de ter visto, mas era um pássaro. Com frequência, o roedor vai até perto da casa

do Parque e, certa vez, chegou a aparecer na janela durante uma reunião. Igor tirou fotos mas, por ser uma

animal muito rápido, o pequeno só deixou-se perceber pela silhueta: − Não conseguimos nenhuma foto

nítida dele –, lamentou.

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Animal da espécie Sciurus aestuans, também conhecida como esquilo ou serelepe, chegou próximo à janela da sala em que o Conselho do Parque estava reunido. Muito ágil, mostrou apenas o contorno do corpo na fotografia.

Continuando a conversa sobre a ocorrência das espécies, outro espanto: correm boatos na

comunidade científica de que o nome do Parque foi dado errado, porque ali não existe o papagaio charão

(cientificamente, Amazona pretrei)! Óra, mas que ironia! O papagaio que existe em maior abundância é, de

fato, o Amazona vinacea, popularmente conhecido como papagaio do peito-roxo. Segundo Igor, porém,

afirmar que o Papagaio Charão não ocorre ali é pouco concreto, pois a espécie é migratória e já foi avistada

no entorno do local. Nunca foram encontrados ninhos dele no Parque, como também nunca fora

fotografado – assim como o papagaio do peito-roxo.

Poucos passos à frente é possível avistar outra trilha, que parte do mesmo ponto de saída da trilha

do aceiro, que percorríamos, e se junta a ela novamente. Porém, nesta outra, a trilha das araucárias, é

possível andar somente a pé, sendo o percurso de mais floresta do que campo. Também conhecidas como

pinheiro brasileiro, as araucárias são nativas e imponentes dentro do Parque, havendo algumas com mais

de 1 metro de diâmetro.

Ao dar os primeiros passos em direção a esta trilha, encontramos um buraco na terra, recém-

mexida, não muito fundo e de circunferência média: provavelmente de tatu. Depois dali, houveram vários

semelhantes. Eles são também indícios indiretos dessa espécie no Parque. Com mais alguns metros de

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caminhada, ouvimos outra espécie de Psitacídeo, família à qual pertencem, por exemplo, os papagaios e

araras. Para Igor, possivelmente um periquito ou uma baitaca. O ruído produzido me lembrou as

conhecidas caturritas ou ainda cocotas, pois era muito semelhante.

Quando voltei os olhos do céu para o chão, um pinhão. Estava embaixo de uma araucária e aquele

não era só um pinhão: ao ajuntá-lo, vi que estava aberto pela metade e com a semente completamente

comida. O detalhe, que talvez passasse despercebido se não o ajuntasse, só veio a provar o quanto a fauna

precisa da flora, inclusive para se alimentar. O animal que se nutrira desse fruto havia sido, supostamente,

uma Dasyprocta aguti, a cutia – animal terrestre roedor que se alimenta de frutas, sementes e raízes.

Não prosseguimos na trilha pois o objetivo era seguir pelo aceiro, caminho que levaria à cachoeira –

maior atributo paisagístico do Parque –, mas, vi que mais adiante as árvores começavam a ficar maiores.

Algumas, espécies precursoras (que causam interações físicas no meio), como as Ervas-Mate, Cambarás,

Camboatás-Vermelhos, Mamicas-de-Cadela; outras, espécies secundárias, como as Grápias (ameaçada de

extinção), Cedros, Canjeranas e Sete-Capotes. Todas em uma batalha surda: a luta pelo sol. Senti que o

local enfeixava os aspectos predominantes da Mata Atlântica numa escala reduzida, como uma maquete

viva de um grande paraíso. Um estudo preliminar do ano 2000 constatou que existem na UC cerca de 387

espécies de vegetais, 144 de aves, 12 de répteis, além dos anfíbios, peixes e insetos, não contabilizados.

Monitoramento da fauna silvestre atropelada

A ocorrência de espécies da fauna silvestre, além da observação indireta, é constatada de outra

forma: pelo monitoramento dos animais atropelados. O projeto, entretanto, não é exclusivo da Unidade: é

nacional e aberto a qualquer pessoa que queira participar, você sabia? A diferença é que o monitoramento

realizado pelos técnicos florestais é sistemática, isto é, cumpre uma série de regras de protocolo e é

transformada em dados estatísticos, que ficam disponíveis na internet e podem ser utilizados tanto em

pesquisas acadêmicas de todo o mundo, quanto para a proposição de medidas mitigatórias ou mesmo

ações do Plano de Manejo da UC; enquanto o registro de atropelamento de animais por pessoas como eu

e, provavelmente, você leitor, é enquadrado no monitoramento eventual, para constar que determinado

animal ocorre na região em que foi avistado.

O grande projeto, chamado Projeto Malha, na prática, é simples: exige que haja um motorista, para

cumprir a função de dirigir, exclusivamente, e um observador, que marca no GPS o início do percurso de

cada projeto, avisa ao motorista para parar o carro ao perceber um animal morto, vai até ele, marca no GPS

o ponto exato da localização e preenche os dados da planilha. Esse monitoramento deve ser feito,

preferencialmente, no início da manhã, devido à existência de animais decompositores, como urubus e

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aves, que começam a agir nesse período. Os técnicos Igor e Milena fazem-no todas as quartas-feiras e,

numa dessas, participei da ação como observadora.

Por convenção, os técnicos do Parque Estadual do Papagaio Charão dividiram o monitoramento da

fauna atropelada no entorno da Unidade em cinco projetos que totalizam 110 quilômetros: BR 386 Sul (que

inicia no trevo de Sarandi e vai até o Arroio Cascata, em direção à Carazinho), BR 386 Norte (iniciando no

trevo de Sarandi e encerrando no próximo trevo em direção à Palmeira das Missões), RS 404 e RS 324 (em

direção à Ronda Alta) e RST 12 (estrada de chão de Sarandi que passa no entorno do Parque).

A velocidade máxima permitida para o deslocamento com o veículo, a fim de que o monitoramento

diminua sua margem de erro, é de 50 Km/h. Assim, evita-se o risco de que o observador que talvez

percorra o trajeto mais rápido não constate algum animal. Caso o motorista veja um animal que o

observador não percebeu, o registro pode ser feito, porém, o dado não será contabilizado como

sistemático, apenas eventual.

No dia em que participei do monitoramento, encontrei apenas um animal atropelado em todos os

projetos: paramos o carro, fomos até lá e verificamos que era uma lebre europeia, tiramos fotos de todos

os ângulos, e Igor removeu-o da pista apenas. A possibilidade de coleta existe, quando do desejo de fazer

um estudo mais detalhado da classificação do animal ou guarda-lo como amostra, mas, além de exigir as

condições adequadas de armazenamento, a ação deve estar registrada junto ao IBAMA.

Esta lebre europeia que encontramos não é um animal nativo do Brasil (ao contrário do tapeti,

natural do país), pois foi trazido da Europa no processo de colonização para abastecimento da Corte

Portuguesa. Porém, alguns indivíduos da espécie provavelmente escaparam e procriaram, se adaptando à

natureza. Por isso, mesmo sendo exótica, já é considerada, por alguns ambientalistas, como selvagem.

Depois disso, algumas anotações: nome do projeto, data, hora, observador, número do indivíduo,

espécie, família, classe, rodovia, coordenada, datum, latitude, longitude, setor, tipo de monitoramento,

lado da rodovia, local do atropelamento, laboratório e sexo do animal. Posteriormente, os dados colhidos

serão digitados em uma planilha e, juntamente com as informações do GPS, enviados para a central do

Projeto Malha, em Viçosa - MG.

Se, por um lado, pensei que a pouca quantidade encontrada naquela manhã (apenas um) fosse algo

positivo, Igor me explicou que isso pode significar o contrário: o número de animais pode estar diminuindo.

No caso dessa época do ano, a pouca incidência é natural, mas, em outras, pode ser um indicativo ruim.

Por meio do monitoramento da fauna atropelada até o momento, os técnicos já contabilizaram

mais de 150 indivíduos mortos, sendo eles de 35 diferentes espécies, incluindo aves, mamíferos, anfíbios e

répteis. Porém, a maior ocorrência é de mamíferos e aves. Pequenos anfíbios e répteis são difíceis de

enxergar. Com uma observação a pé eles seriam encontrados em maior abundância. A possibilidade desse

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tipo de monitoramento também existe, porém demanda mais tempo e recursos humanos. Ele seria

interessante, por exemplo, em corredores ecológicos, onde os animais transitam mais.

Outro resultado que chama a atenção é que os graxains do mato, espécie que circula mais entre as

áreas de mata, por estarem com os recursos escassos, são os indivíduos mais encontrados no

monitoramento. Mas a época do ano e os locais também são fatores que causam grande variação na

quantidade. Em áreas de maior concentração populacional, animais “menos exigentes” (que se adaptam

mais facilmente à qualquer ambiente), como o gambá, são encontrados com mais frequência. Já os

graxains, “mais exigentes”, dificilmente.

Por fim, uma boa notícia: para facilitar esse monitoramento que exige certos protocolos, os

tecnólogos da informação já desenvolveram um aplicativo para iPhone, chamado “Urubu”. Assim, se você

estiver andando por qualquer estrada do país e encontrar um animal morto, poderá tirar uma foto do

mesmo (com as coordenadas do GPS, automáticas em iPhones) e enviar para a central, que fará a análise

do animal e o colocará os dados no banco do monitoramento eventual. A ferramenta permite que qualquer

cidadão, usufruidor e responsável pelo meio em que vive, contribua imensamente sem precisar dispensar

grandes esforços.

Uma Unidade em um Sistema de Unidades

Ao contrário do que se pensa, uma unidade de conservação como o Parque Estadual do Papagaio

Charão não é um local isolado do meio que o cerca, nem mesmo das outras UCs que existem no país. Elas

formam uma grande teia. A criação do primeiro Parque efetivamente implantado no Brasil, o Parque

Nacional do Itatiaia, foi decretada em junho de 1937, durante o Governo Getúlio Vargas. O evento marcou

o início efetivo de uma política de estabelecimento e gerenciamento de áreas protegidas no país. Em

seguida, foram estabelecidos os Parques Nacionais do Iguaçu e da Serra dos Órgãos, em 1939, todos na

Mata Atlântica, área de maior visibilidade e que já apresentava nível crítico de devastação.

No período militar, muitas áreas protegidas foram criadas. Em 1986, pouco menos da metade das

UCs hoje existentes já estava decretada. Nesse período, outra grande iniciativa foi a criação de um aparato

de gestão para elaborar e executar a política ambiental do país, que estava sob responsabilidade do

Ministério da Agricultura, até então. O primeiro órgão criado, nesse sentido, foi o Instituto Brasileiro de

Desenvolvimento Florestal (IBDF). Já em 1973, foi criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA),

órgão base para a criação do Ministério do Meio Ambiente, duas décadas depois.

A política ambiental consolidou-se, porém, de forma definitiva, com a Constituição Federal de 1988

– lei maior que rege as diretrizes e prioridades do país –, a qual tem um capítulo específico sobre o meio

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ambiente. O artigo nº 225 deste capítulo determina que “todos tem direito ao Meio Ambiente,

ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se

ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras

gerações”. Quer dizer, não é só do poder público ou dos órgãos fiscalizadores o dever de zelar e preservar o

meio ambiente – como muitos pensam –, mas de todos os cidadãos!

A principal lei que regulamenta este artigo da Constituição Federal é o Sistema Nacional de

Unidades de Conservação (SNUC), criado em 2000 pela Lei Nº 9.985 – perceba que é recente, pois sua

tramitação no Congresso levou oito anos, marcados por embates entre proprietários de terra, setores

produtivos e ambientalistas, debates radicais entre preservacionistas e conservacionistas e uma extensa

discussão sobre o papel do controle social na gestão das UCs.

A lei de criação do SNUC – que se aplica à todo o país – estabelece, portanto, os critérios e normas

para a criação, implantação e gestão das UCs. Além disso, deixa determinada que deve haver a interação

entre as UCs. Ter uma UC não significa que se pode desmatar e poluir todo o meio que a rodeia, “pois já se

está fazendo a sua parte”. Pelo contrário: a interação entre as unidades é feita, também, pelos corredores

ecológicos – porções de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando UCs, que possibilitam entre elas

maior fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de espécies e a recolonização de

áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência áreas

com extensão maior do que aquela das unidades individuais.

O Parque Estadual do Papagaio Charão, por exemplo, deveria ter ligação com o Parque da Sagrisa,

em Pontão, através de áreas como matas ciliares, para que os animais pudessem se deslocar, protegidos,

de uma área à outra. Assim, são expostos pois acabam atravessando estradas e correm o risco de ser

atropelados, ou lavouras, tendo chance de ser caçados. Além dos corredores ecológicos, a interação entre

as Unidade é buscada por meio de encontros entre os técnicos florestais das UCS próximas.

Entre os objetivos gerais das UCS, estão a manutenção da diversidade biológica e dos recursos

genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais; a proteção das espécies ameaçadas de extinção

no âmbito regional e nacional; a contribuição para a preservação e a restauração da diversidade de

ecossistemas naturais; a promoção do desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais; a

recuperação ou restauração de ecossistemas degradados; proporcionar meios e incentivos para atividades

de pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental; e a promoção da educação e interpretação

ambiental, a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico.

Usados muitas vezes como sinônimos, o conservacionismo e preservacionismo, porém, são duas

diferentes correntes ideológicas. O termo conservação, em suma, é entendido como a proteção de recursos

naturais com utilização racional que garanta a sustentabilidade de sua existência para as futuras gerações,

isto é, a prática do bom uso dos recursos naturais. Já o conceito de preservação supões a proteção integral

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com intocabilidade para evitar perda de biodiversidade (espécie, ecossistema ou bioma) e para perenidade

dos recursos naturais, quer dizer, a defesa da natureza selvagem, por seu valor próprio e contra qualquer

intrusão.

Depois de avaliado e considerado uma UC, o local é classificado como uma Unidade de Proteção

Integral (que tem o objetivo de preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus

recursos naturais) ou como uma Unidade de Uso Sustentável (que tem o objetivo de compatibilizar a

conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais). Próximo à Sarandi,

existe a Floresta Nacional de Passo Fundo (Flona), uma UC de uso sustentável que, no passado, teve o

plantio de árvores para fins de estudo, que são agora manejadas pois já havia a previsão de corte.

O Parque Estadual do Papagaio Charão, por sua vez, é uma UC de proteção integral, que só faz uso

indireto dos recursos, “aqueles que não envolvem consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos

naturais”. A retirada de árvores exóticas no Parque, quando realizada, é com o propósito da proteção

integral da floresta natural, à qual as árvores exóticas é prejudicial, e não como forma de uso sustentável.

Já as Unidades de Proteção Integral abrangem as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os

Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre. Já as Unidades de Uso

Sustentável envolvem as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), as Áreas de Relevante Interesse Ecológico

(ARIEs), as Florestas Nacionais, as Reservas Extrativistas, Reservas de Fauna, Reservas de Desenvolvimento

Sustentável e Reservas Particular do Patrimônio Natural (RPPNs). Os níveis nacional, estadual e municipal

dependem exclusivamente de quem é proprietário da área (União, Estado ou Município). No caso de ser

particular, vai depender da esfera pública pela qual tramita a criação legal. A porção de terra do Parque

Estadual do Papagaio Charão fazia parte, antigamente, da Fazenda Sarandi, pertencente a castelhanos. Ela,

porém, foi adquirida amigavelmente pelo Governo do Estado para realizar a reforma agrária, e por isso é

Estadual.

Cada uma dessas categorias tem características próprias e determinações do que pode ser feito ou

não na UC. Esta, que venho apresentando no decorrer deste livro-reportagem, foi avaliada por uma equipe

de estudos e considerada um Parque – que tem esse nome não por ser um local de recreação, como o

Parque do Beto Carreiro ou outros; no contexto ambientalista, remete à proteção integral e ao objetivo

principal desta categoria, que é a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e

beleza cênica.

Os Parques possibilitam a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de

educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico. A

visitação pública, porém, está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da UC,

assim como a pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração

da UC e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas.

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Grupo de 18 ciclistas Pedal Sarandi em passeio educativo ambiental pela trilha do aceiro. Todos demonstraram grande entusiasmo na participação das atividades

É devido à esses parâmetros que as três linhas-guias seguidas pelo Parque são: a preservação da

natureza, as pesquisas acadêmicas e a educação ambiental. Para cada uma delas haverá, no Plano de

Manejo, um capítulo específico de normativas, que designarão como as atividades serão concretizadas,

com base nas diretrizes nacionais da qual falamos até então.

Existem ainda, no intuito de integrar as administrações das UCs próximas, os Mosaicos de UCs, que

vão trabalhar em prol da elaboração de corredores ecológicos e outras ações ambientais comuns, pois seria

impossível implantar um UC de proteção integral para cada pequeno fragmento. O Parque Estadual do

Papagaio Charão participa de um modelo semelhante ao Mosaico, porém que não existe juridicamente,

apenas informalmente: a Rede Norte de UCs. Ela inclui as administrações da RPPN Maragato, do Parque

Municipal da Sagrisa e da Floresta Nacional de Passo Fundo.

Além disso, o Estado é o gestor das UCs, porém, essa gestão deve ser realizada com a participação

da sociedade civil, por isso, quem ajuda na manutenção e difusão do Parque é o Conselho, apenas

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consultivo (e não deliberativo como nas Unidades de Proteção Integral), formado por representantes de

diversas entidades e que se reúne a cada 3 meses para consulta e conhecimento de alguns assuntos.

Com base nas normativas nacionais do SNUC, foi construída ainda a legislação estadual que rege as

UCs, através do Sistema Estadual de Unidades de Conservação, o SEUC, regulamentado no Decreto Nº

34.256 de 02 de abril de 1992. E, no ponto mais afunilado das normativas, está o Plano de Manejo, do qual

falaremos no próximo capítulo. Posto nesse grande contexto, é possível ver que não basta criar uma

unidade e deixá-la inerte. Isto não é preservação, por si só. Uma UC precisa estar em interação com as

demais para que sua implantação seja efetiva. A legislação, nesse sentido, é importante para determinar o

que pode ou não ser feito. Trilhas de moto, por exemplo, não são permitidas no Parque porque tem um

impacto muito grande e entram em desacordo com a proteção integral e o uso indireto dos recursos.

Curiosidade: as áreas de proteção integral no Brasil apresentam distinções em relação ao modelo

de paisagens intocadas dos norte-americanos. Uma delas refere-se ao local de estabelecimento: nos EUA,

estão preferencialmente em locais não ocupados por colonizadores, sendo, portanto, paisagens

relativamente naturais. Enquanto isso, no Brasil, priorizou-se a ocupação de áreas onde havia concentração

populacional e de atividades humanas para a conservação de ecossistemas remanescentes. Desse modo,

enquanto os Parques americanos buscavam proteger as paisagens de um impacto futuro, os Parques

brasileiros procuraram proteger áreas de interesse ambiental de impactos imediatos e conflitos já

existentes.

Outro conceito importante, em nível maior, é o de reservas da biosfera: busca-se a implantação de

uma rede mundial de áreas protegidas, a partir de parâmetros discutidos por uma rede internacional de

pesquisadores. Com base nas discussões sobre a conservação da biodiversidade e melhoria de vida para

populações locais, são definidas áreas do globo terrestre em que os recursos financeiros relacionados à

proteção da natureza serão prioritariamente investidos. As reservas da biosfera, mesmo submetidas a

normas internacionais, são geridas pelos países em que se localizam.

Plano de Manejo do Parque Estadual do Papagaio Charão: um capítulo à

parte

Já nos minutos iniciais de conversa com Igor, quando cheguei ao Parque, ao perguntar sobre o

Plano de Manejo, Igor me respondeu que esse era um assunto que merecia um capítulo inteiro do meu

livro. Agora, em meio à conversa que vinha e voltava num emaranhado de novos conceitos – para mim e

imagino que também para você leitor –, tocamos novamente no assunto.

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O Plano de Manejo é como o Plano Diretor de uma cidade. Digo, é particular de cada UC. É um

documento elaborado a partir de diversos estudos, incluindo diagnósticos do meio físico, biológico e social,

que serve para estabelecer as normas, restrições para o uso, ações a serem desenvolvidas e o manejo dos

recursos naturais da UC, do seu entorno e, quando for o caso, dos corredores ecológicos a ela associados,

podendo também incluir a implantação de estruturas físicas dentro da UC. O plano de manejo também

inclui medidas para promover a integração da UC à vida econômica e social das comunidades vizinhas. É

neste documento que constam as regras para a visitação aberta ao público, as pesquisas acadêmicas e a

visitação de educação ambiental das escolas.

A composição de um Plano de Manejo não se resume apenas à produção do documento técnico.

Ela implica em elaborar e compreender o conjunto de ações necessárias para a gestão e uso sustentável

dos recursos naturais em qualquer atividade no interior e em áreas do entorno dela. O processo de sua

elaboração é um ciclo contínuo de consulta e tomada de decisão com base no entendimento das questões

ambientais, socioeconômicas, históricas e culturais que caracterizam uma UC e a região onde se insere.

Por volta do ano 2000, começou-se a falar em um Plano de Manejo para o Parque Estadual do

Papagaio Charão. Então, nesse período, uma empresa foi contratada para fazer o subsídio da elaboração do

Plano de Manejo, isto é, a coleta de dados das espécies que ocorrem na área. Porém, somente em 2008

abriu-se o processo de criação do Plano, quando o Estado contratou, através de licitação, técnicos para

fazerem uma nova coleta de dados, a fim de atualizar aqueles primeiros, de 2000. Os resultados

apresentados, entretanto, foram considerados insatisfatórios, ema vez que a empresa utilizou as mesmas

informações do subsídio já elaborado, não trazendo nada complementar – a exemplo da má aplicação do

dinheiro público.

Após isso, convenceu-se as chefias a não renovar o contrato com essa empresa, e a terminar o

estudo por meio da própria equipe da Divisão de Unidades de Conservação, para não gerar mais gastos em

algo que já se tinha. Assim, esta atual equipe que terminará o trabalho, fazendo a compilação dos dados

que já constam nos subsídios e a obtenção e inserção de informações novas e atuais – pois muitas espécies

mudaram de nomenclatura científica de 2000 para cá – tem o prazo de dois anos para a conclusão do

Plano, e até agosto deste ano para a entrega do diagnóstico (relação das espécies de fauna e flora que

existem no local).

Porém nada impede que que uma nova contratação seja feita para a obtenção de alguma

informação específica nova e relevante para o Plano, para comprovar, por exemplo, as ocorrências de

grandes mamíferos e canídeos, que até então são verificadas indiretamente, pois nunca foi feito um estudo

que constatasse de fato a presença desse animais (com métodos como armadilhas e outros). Além disso,

uma pesquisa poderia explicar como se comporta a vegetação no Parque e porque em alguns lugares a

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floresta não tomou conta da área de campo como aconteceu em outras muito semelhantes,

permanecendo a vegetação rasteira de gramíneas mesmo sem manejo.

O Parque não é aberto à visitação pública, por exemplo, porque isso não está normatizado pelo

Plano de Manejo – já que ele ainda não foi concluído. No Rio Grande do Sul, existem apenas dois parques

com visitação aberta ao público: o Parque do Turvo e o Parque de Itapuã. Segundo o Gestor, o Plano de

Manejo em construção prevê a possibilidade do Parque Estadual do Papagaio Charão ser aberto à visitação

pública, o que falta é o diagnóstico de quantas pessoas o poderão receber por mês, ou por dia, e em quais

locais se permitirá a circulação, por exemplo. Isso, porém, não significaria que os visitantes terão a

liberdade de ir e vir quando desejarem, pois a visita depende do deslocamento dentro da área.

Ademais, há uma manifestação da população local contrária à liberação de acampamento nesse

processo de abertura da visitação, uma vez que essa é uma movimentação recreativa que causa danos

ambientais maiores, e se aproxima mais do uso direto do que indireto da Unidade – de proteção integral,

como explicarei adiante. Além disso, também compreendi que a mudança causaria certas modificações em

questões administrativas, pois necessitaria a cobrança de ingressos e o aumento do número de

funcionários.

Hoje a equipe é composta por 19 pessoas: 12 Vigilantes Terceirizados que tem o objetivo de cuidar

do patrimônio; cinco Auxiliares de Serviços Rurais e Gerais que fazem a fiscalização florestal (patrulhas) e a

manutenção das trilhas e das benfeitorias; e dois Técnicos Florestais. Igor, que me acompanha nessa visita,

é um deles. Mas, além de ser Técnico, acumula as funções de Gestor e Agente Administrativo. Este último,

servidor em déficit na Unidade, assim como os Guardas-Parque, que poderiam fazer a fiscalização florestal

de fato, pois os Auxiliares de Serviços Rurais e Gerais ajudam na função, mas sua jurisdição (“poder de

polícia”) é somente avisar a Brigada Militar (obrigada a atender ao chamado) ao perceber aproximações

potencialmente perigosas; esses auxiliares não podem fazer abordagem nem efetuar prisões.

Mesmo sem ser aberta à visitação pública, até então, a UC busca incentivar as pesquisas

acadêmicas e a visitação de escolas e grupos com fim de educação ambiental. Aliás, nesse ponto da trilha,

acabamos de passar por uma Clidemia Hirta, popularmente conhecida como pixirica – vegetal de altura

média, com galhos finos e folhas um pouco compridas –, que muitas pessoas, inclusive eu, classificariam

como uma erva daninha ou inço. A equipe do Parque, porém, aguarda nos próximos dias um grupo de

estudos da Universidade Estadual de Campinas - SP (UNICAMP), que vai pesquisar em nível genético a

família botânica das Melastomataceae, da qual a pixirica faz parte, para entender a distribuição dessas

plantas no Parque.

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Flora: a vida em cadeia

Há algum tempo já havia reparado que algumas árvores no caminho tinham no tronco manchas

circulares preenchidas de pigmentação vermelho claro. Aproveitei a brecha de alguns minutos de silêncio e

perguntei curiosa. A resposta foi, no mínimo, satisfatória. A mancha não é parte da árvore, mas um líquen,

pertencente ao reino dos fungos e, mais do que isso, um indicativo da qualidade do ambiente, denominado

pela ciência de Indicador Ambiental. Eu chamaria de característica da flora caprichada, o que quer dizer que

o ambiente precisa estar muito bem preservado para que aja a ocorrência dele.

Notei mais algumas árvores de tronco totalmente preto, imaginando que talvez estivessem

apodrecendo, mas esta pigmentação era também um fungo, vinculado à espécie do Timbó. Estranhei que

outras eram apenas um tronco pela metade, sem copa alguma. Mas essa é uma propriedade característica

do Timbó que, por ser uma espécie precursora, se desenvolve até determinada altura e, quando outros

tipos de vegetação vem surgindo, apodrece e quebra, gerando matéria orgânica para as demais. É uma

questão de cumprir sua função natural na cadeia biológica, ainda mais por ser uma área de transição.

A floresta, em geral, se origina, em uma área desprovida de manejo, com o surgimento inicial da

vegetação rasteira – gramíneas, vassouras, etc. A partir do momento em que as vassouras vão morrendo,

vão dando carbono para o solo – enroupando-o com um aspecto formosíssimo –, e outras árvores mais

precursoras como as aroeiras, os timbós, vão surgindo. Depois de se criar um micro-habitat com condições

mais propícias, outras árvores mais “exigentes”, de sub-bosque, como a família das mirtáceas – árvores

frutíferas – vai nascendo. Depois delas, aparecem ainda as espécies clímax, como as araucárias, os cedros,

as grápias e outras, que não se desenvolvem em qualquer lugar, somente em lugares de interior da floresta

e, por isso, são consideradas espécies ameaçadas – em função de que demoram muito tempo para se

desenvolver e produzem a cobiçada madeira.

O consumo exagerado e indevido da madeira, aliás, é uma ocorrência que gera aos técnicos

florestais uma atividade extra parque. Em outra oportunidade, conheci um pouco das atividades dos

técnicos Igor e Milene que, como eles mesmos comentaram, são uma surpresa a cada dia: mesmo que

tentem se programar, imprevistos sempre acontecem e precisam ser resolvidos. Além de estarem

construindo o Plano de Manejo, de realizarem atividades de educação ambiental com as escolas e

atenderem às pesquisas acadêmicas, como a minha, os técnicos são responsáveis pela autorização de

empreendimentos que utilizem recursos naturais num raio de 10 quilômetros em torno do Parque.

Veja só: a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) é ramificada em vários Departamentos.

Um deles é o Departamento de Florestas e Áreas Protegidas (DEFAP), composto por três divisões: a Divisão

de Cadastro Florestal, a Divisão de Licenciamento Florestal, a Divisão de Unidades de Conservação, além de

uma Seção recente, de Fauna. O órgão responsável pela expedição das licenças ambientais é a Divisão de

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Licenciamento Florestal, ou as próprias prefeituras municipais, dependendo do impacto gerado. Se um

empreendimento estiver localizado num raio de até 10 quilômetros de uma UC, além da licença, é

necessário uma autorização da UC se manifestando em relação ao impacto que o empreendimento vai ter

sobre a UC, que pode implicar no deferimento ou indeferimento da licença.

Toda a zona urbana de Sarandi está nesse raio de 10 quilômetros, assim como parte da zona

urbana de Rondinha, da zona rural de Barra Funda e uma pequena zona rural de Nova Boa Vista. Isto quer

dizer que os órgãos licenciadores desses municípios, antes de licenciarem, nessa determinada área, a

construção, ampliação, reforma, recuperação, alteração, operação e desativação de estabelecimentos,

obras e atividades utilizadoras de recursos ambientais, ou consideradas efetivas e potencialmente

poluidoras, ou capazes de causar degradação ambiental, devem pedir a autorização do Parque quanto ao

impacto que vai ter na UC. Caso isso não aconteça, o órgão licenciador, seja prefeitura ou agência, poderá

ser autuado.

Com a intenção de conhecer melhor a atividade, participei de duas vistorias: a primeira em uma

propriedade vizinha ao Parque. Enquanto íamos até lá, Igor e Milene analisavam o processo, que era para a

retirada de dois pinheiros caídos. A licença foi solicitada para a prefeitura em dezembro de 2013, mas a

solicitação de autorização só chegou aos técnicos do Parque em abril deste ano.

Nesse ponto do caminho, em algumas partes da borda da mata, encontramos bastante lixo

depositado – é desanimador ver que alguns se esforçam tanto para preservar enquanto outros deixam

esses presentinhos desagradáveis, que só dificultam o trabalho dos primeiros. Mais adiante, paramos por

alguns minutos para visualizar como é grande a quantidade de araucárias em meio à vegetação de floresta

do Parque, algumas plantadas, outras disseminadas, mas que não deveriam estar ali, e, por isso, precisam

de manejo.

Chegando na propriedade, avistamos os pinheiros caídos. Os técnicos compararam-nos à foto que

está na solicitação e fotografaram novamente. Constataram que eles podem ser retirados porque estão

realmente caídos, há bastante tempo, inclusive. Porém, como a propriedade tem vários donos, mas só um

está fazendo o requerimento, os técnicos solicitarão adequações, para obter o consentimento dos outros e

evitar futuros aborrecimentos. A autorização então será dada para a Prefeitura Municipal de Sarandi, que é

o requerente, e ela, posteriormente, dará a licença ao solicitador inicial.

Depois dali, fomos para zona urbana central de Sarandi – achamos o local exato com a ajuda do

GPS –, onde havia uma solicitação para a retirada de 19 árvores e o transplante de 2 butiás – não da mesma

espécie que há no Parque, mas também ameaçados de extinção –, para a construção de um muro no

terreno, vazio. Milene então fotografou e conferiu cada uma das árvores, para comparar se eram iguais

àquelas descritas na solicitação.

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Vistoria para autorização de retirada de vegetação, realizada pelos técnicos florestais do Parque Estadual do Papagaio Charão, na cidade de Sarandi.

A verificação foi positiva e, nesse caso, a autorização também será favorável, pois nenhuma das

espécies de árvores é ameaçada de extinção. Para minimizar a ação, outras delas, em quantidade maior,

serão plantadas em outro local pelo requerente da licença – sendo o órgão emissor da licença o

responsável pela fiscalização da ação. Quanto aos butiás, também poderão ser transplantados, para outro

local no mesmo terreno – conforme a solicitação –, pois são de fácil adaptação.

Segundo os técnicos, esses dois casos de vistoria dos quais participei eram simples, em função de

não atingirem diretamente a área do Parque. Outros porém, mais próximos e mais impactantes na UC,

costumam demandar uma análise maior e mais aprofundada, especialmente se tiverem ligação com os

corredores ecológicos.

O pote de ouro no final do arco-íris e, no caminho de volta, mais

surpresas...

Chegamos finalmente ao fim do trecho da trilha que pode ser transitada de carro. Agora,

colocamos os pés para fora novamente e pudemos ouvir o cair da água na cascata. A ideia que me passou

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Vistoria para autorização de retirada de vegetação, realizada pelos técnicos florestais do Parque Estadual do Papagaio Charão, na cidade de Sarandi.

pela cabeça era a de ter recursos financeiros suficientes para poder comprar uma área de mata nativa com

a finalidade de preservá-la, senti-la quando quisesse, e proporcionar isso à outras pessoas.

Avançamos alguns passos e atravessamos sobre um tronco caído de árvore podre. Apesar de já não

se sustentar de pé, ainda alimentava

uma espécie de fungo mole, comprido e

cinza claro – que aparece só nesse

período do ano em que se aproxima o

inverno e que está ligado ao substrato.

Isso quer dizer que, talvez em outras

espécies de árvores, não ocorra. Porém,

não se sabe se este fungo, por exemplo,

está descrito nos subsídios do Plano de

Manejo.

Outras árvores, próximas deste

lugar, eram cheias de orelhas-de-pau,

cinzentas em degrade, como se tivessem

sido pintadas por Monet ou outro grande

artista impressionista. Presumi que ocorriam mais ali por causa da umidade – nesse ponto comecei a sentir

a brisa de frescor no ar; a respiração já era bem mais leve. O solo declinava aos poucos. Fomos descendo

com cuidado e eco da água aumentava a cada passo. Igor ia na frente com um graveto tirando as poucas

teias de aranha que encontrava.

Daquele ponto, já era possível ver parte do arroio, não muito largo, no qual deslizava uma água

marrom. Esta era a divisa norte do Parque. Do outro lado, uma propriedade particular pertencente ao

município de Rondinha. Preparados para uma descida acentuada, Igor contou que existem na UC dois

hectares de eucaliptos, árvore exótica que não pode existir em Unidades de Proteção Integral, pois tem

vantagem sobre a mata nativa (podem prejudica-la, já que se criam sem controle e geram desequilíbrio) e,

por isso, devem ser retirados.

Com a madeira, uma escadaria será construída para melhorar a segurança. Até isso acontecer, os

visitantes devem descer o morro de lado, para poder frear se necessário, e não cruzar as pernas. Ademais,

nunca encostar em árvores. Se inevitável, observar antes de tocar, pois podem haver sustâncias urticantes

e até mesmo animais. Apoiar-se em tocos podres, jamais!

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Além de ser considerado o maior atributo paisagístico do Parque, a cascata do Arroio Baios abriga grande diversidade de espécies, sobretudo peixes, répteis e anfíbios.

Ao chegar lá em baixo, vi a água límpida que corria de cima da queda estalar nas escadas de rocha.

Foi como lavar a alma... A umidade produzia no ar uma fina serração, com gotículas de água que o próprio

vento, calmo, quase imperceptível, se encarregava de dissipar. Nas pedras molhadas que formavam a

cascata, mas que não recebiam água corrente, um musgo verde escuro criava um fofo tapete.

Em torno do arroio, a vegetação predominante é a taquara. Depois de concluído o Plano de

Manejo, as taquaras deverão ser retiradas para melhor acomodação e observação de quem chega. O riacho

estava alto naquele dia, mas a equipe do Parque acredita que não tem muita profundidade, apesar de

nunca ter sido medido (ocorrência que já está programada para complementação do Plano de Manejo),

pois em alguns pontos, o fundo era visível.

A proteção ciliar do arroio, no ponto da cascata, de um lado, é de 5 quilômetros (pertencentes ao

Parque), enquanto do outro, é de 5 metros, e só existe em função de ser um barranco. Em outros pontos, a

lavoura chega até a margem do rio.

Como o tempo voava, tivemos de voltar. Na subida do aclive, Igor ia me contando que vive no

Parque, próximo às casas, um Pseudalopex gymnocercus – conhecido como graxaim do campo. O animal

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Faísca: graxaim do campo que rodeia as casas do Parque com frequência, por isso, já é considerado o mascote da Unidade.

Assim como outras aves, o pica-pau, quando percebe a aproximação de pessoas, posiciona-se contra o sol, como forma de defesa.

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circula no local porque acha que as pessoas dali estão integradas ao ambiente, ou seja, que não oferecem

riscos. Eventualmente, cachorros domésticos aparecem no Parque, quando abandonados na redondeza, e a

UC permanece com eles até fazer a destinação para doação. Nesse período, o graxaim some.

Rrecentemente, foram

realizadas em 11 turmas dos 6°s e

7°anos das escolas Dom José Coutinho,

João Carlos Machado e Milton Alves de

Souza, palestras sobre preservação e

uma campanha para a escolha do

nome do graxaim, considerado o

mascote da UC. Dentre os nomes

selecionados pelas turmas estavam

Bob, Black White, Chorão, Faísca,

Freeway, Simbá, Scooby, Zé graxinha,

Zeus e Willy, mas o escolhido, por

votação da equipe do Parque, foi

Faísca, relacionado à rapidez do animal. Este foi o nome dado pela turma de 6°ano A da E.E.E. F. Dom José

Coutinho.

Concluí a subida para a trilha já ofegante, andamos mais um pouco e a natureza resolveu nos

presentear novamente: pertinho de nós, um pica-pau. Aproximamo-nos um pouco com todo o cuidado,

sem fazer movimentos bruscos, e ele voou

para a árvore ao lado, um pouco mais alta,

para posicionar-se contra o sol, de forma que

não pudéssemos vê-lo com nitidez. Essa é,

conforme Igor, uma tática de defesa comum

dos pássaros.

Quando pensamos que não voltaria, o

afável bichinho deslocou-se de uma árvore

para outra, até permanecer em um tronco

quebrado de Timbó, pertinho de nós, e pude

fotografá-lo. Tal ocorrência não seria assim se

um grande número de pessoas caminhasse

pela mata. Parecia até estar fazendo pose...

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Dali pra frente, a conversa foi um pouco mais descontraída. Igor me contou que, ainda nesse mês,

recebeu uma ligação da Polícia Rodoviária Federal, pois uma preguiça havia sido “pega” andando de carona

em um caminhão que passava pela BR-386 próximo a Sarandi: queriam soltá-la no Parque, imaginando que,

por ser um animal silvestre, pudesse ser colocado ali. Entretanto, isso não é algo possível, porque não se

sabe se o animal é saudável, nem mesmo se vai sobreviver na natureza. É preciso que ele passe por uma

quarentena, para verificar, por exemplo, se consegue se alimentar sozinho – e isso não é atribuição desta

divisão. Normalmente, os animais são levados para a Universidade de Passo Fundo (UPF) fazer a triagem e

só depois se pensa na reintrodução do animal no meio. Ademais, não há histórico de preguiça no local. Isto

quer dizer que, como não ocorre nesta região, vai interferir no equilíbrio dos demais que já estão ali.

Por outro lado, se alguém desejasse largar no Parque um puma que sabe sobreviver sozinho, o

Gestor estaria totalmente de acordo, pois já foi constatada a ocorrência da espécie: no ano de 2010, uma

pesquisa encontrou a pegada do animal, que passa por ali. O felino anda mais de 50 quilômetros em uma

noite, sendo sua área de ocorrência mais de 30 mil hectares (apenas para um puma!). Ou seja, ele estava

de passagem, pois esta área preservada não garante a sobrevivência do animal, e nem quer dizer que, se a

área fosse maior, ele se adaptaria ou a ocuparia: − A natureza não se comporta assim. O ser humano tem

tendência de achar que tem controle pela natureza, mas não tem! – afirmou.

Em outro episódio semelhante, uma clínica veterinária ligou para o Parque informando que foi

encontrado um cervídeo baleado, questionando se o animal era do Parque. – Como assim, do Parque? –

perguntou Ígor. O veado também é um animal selvagem e não vive somente dentro daqueles limites, ele

tem certa área de alcance. − Não pense que se largarmos um veado aqui dentro ele vai andar só aqui –

complementou.

Incidentes como esse expressam a visão errônea que a maioria das pessoas ainda tem a respeito da

preservação da fauna. Cercar uma área seria condenar os animais que nela vivem à morte: os que estão

dentro, que se deslocam para outras áreas, não poderiam mais sair; da mesma forma que os que estão fora

não usufruiriam daquele território – é um impedimento da passagem. Os animais fechados não trocariam

mais genes com outros, ou seja, acabariam cruzando entre si (pais, filhos, irmãos) e, em um período longo

de tempo, começariam a ter doenças e morreriam.

Ensaio por mais parcerias em defesa da biodiversidade

Para encerrar a visita, fomos até o local onde, em 27 de abril deste ano, um incêndio atingiu 2,8

hectares de área de campo. O ar, nessa parte, era mais pesado e o vento, mais forte, soprava sacudindo e

retorcendo as galhadas. Eu tentava pisar com a menor intensidade possível, mas era impossível deixar de

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Incêndio ocorrido no Parque em abril deste ano. Mais de 200 indivíduos da espécie de butiá ameaçada de extinção que sobrevive na UC foram destruídos.

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ouvir as folhas se esfarelando no chão. A vegetação, 90% seca; pouca dela manteve a coloração verde da

vida, e logo se renderá também. O calor também era maior ali, talvez por já ser passado do meio-dia e o sol

estar mais forte.

Percebi a grandeza da gravidade do ocorrido, pois o incêndio atingiu justamente uma das áreas de

campo do Parque onde a floresta estava avançando, tendo sido queimados mais de 200 exemplares do

Butia paraguayensis, espécie endêmica ameaçada de extinção. O Gestor, que estava presente no dia,

contou que o momento é desesperador. O fogo teve de ser apagado com abafadores, pois o caminhão pipa

dos bombeiros não conseguiu chegar até o local. A suspeita é de que tenha sido criminoso. A Polícia Civil,

que não quis dar mais informações, está encarregada da investigação.

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Outro incêndio semelhante, porém em outra área do Parque, foi registrado pouco mais de um ano

antes, no dia 19 de janeiro de 2013. Neste, foram queimados aproximadamente 7 hectares de mata nativa

e vegetação rasteira. Conforme Vanius Ricardo Sanvido, bombeiro que participou da ação de combate ao

fogo, ela também foi realizada com abafadores apenas, já que não havia como entrar no local com o carro

de combate a incêndios: – Eram labaredas de fogo de mais de 10 metros de altura. Não foi nada fácil –,

lembrou-se. Contou ainda que, como os bombeiros eram apenas dois, ajudaram na tarefa os auxiliares de

serviços rurais e gerais da UC e também moradores próximos.

Ambas as situações provaram que, definitivamente, este Parque não está isolado nem das outras

UCs, nem mesmo do contexto social no qual se insere. Vemos que, mediante uma sucessão de relações

sociedade/ambiente geograficamente situadas, a natureza tem sido bastante alterada ao longo dos

tempos, enfrentando frequente e grande fragmentação dos hábitats e perda da biodiversidade. Desde os

tempos pré-agriculturais, as florestas do mundo declinaram em um quinto, passando de cinco bilhões para

quatro bilhões de hectares. O declínio mundial dessas florestas está associado, sobretudo, à expansão das

atividades econômicas e ao crescimento das populações humanas.

A conservação da biodiversidade, assim, adquiriu importância somente ao longo dos anos 80 do

século XX, quando a comunidade científica começou a identificar novo processo de extinção das espécies

com taxas muito elevadas, especialmente nos trópicos, e também com a descoberta de novos usos e

aplicações para a diversidade biológica, como matéria-prima para modernas biotecnologias em atividades

econômicas.

A criação de áreas protegidas, como as UCs, tem sido o modo como as sociedades reagem frente

aos problemas ambientais. Elas, assim como quaisquer outras bases territoriais física, social e politicamente

construídas, constituem complexas formas de relações sociais entre grupos sociais, territórios e ambientes.

As UCs adquirem diferentes significados devido aos diversos contextos geográficos em que estão

localizadas.

Os atores dos grandes projetos de pesquisas globais sobre o clima, os oceanos, a biodiversidade

passaram a entender a impossibilidade de implantar políticas de proteção da natureza e de prevenção dos

impactos das mudanças globais sem a participação humana. A biodiversidade não é um conceito abstrato,

mas, sim, humano, pois tem uma localização geográfica e formas de apropriação com feições específicas, o

que lhe confere uma dimensão material concreta e, portanto, a insere necessariamente no contexto das

relações sociais.

Muitas populações tradicionais são fundamentais para a manutenção e a geração da biodiversidade

nos ecossistemas. As práticas culturais de manejo dos recursos naturais desenvolvidas por algumas dessas

populações interagem com os processos evolutivos das espécies há milhares de anos, de modo que a

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presença das populações e o manejo que fazem de determinados ecossistemas são essenciais à

manutenção da biodiversidade.

A implantação de Parques e a retirada de povo que manejava as paisagens de savana em regiões da

Tanzânia e do Quênia, com queimadas periódicas, por exemplo, levaram à continuidade do processo de

sucessão ecológica, de modo que as áreas anteriormente cobertas por herbáceas passassem a ser

dominadas por arbustos, com redução nas populações de grandes mamíferos.

Sabemos que são diferentes os interesses, as práticas e as representações dos diversos atores

sociais envolvidos e afetados pelas delimitação dos territórios destinados à proteção dos recursos naturais.

As UCs são, ao mesmo tempo, territórios de conservação, de vida, de produção e de pesquisa acadêmica.

Percebe-se, por isso, que o Estado, detentor oficial da propriedade, disponibiliza os recursos que possui,

porém, muitas parcerias e convênios podem contribuir ainda mais para novas e importantes ações, que vão

desde o monitoramento da fauna e flora até mesmo à preservação de espécies ameaçadas de extinção!

Nos dias atuais, com contribuições simples como o monitoramento da fauna atropelada via iPhone,

ou com projetos mais planejados, de estudo das populações do papagaio do peito-roxo e do papagaio

charão, por exemplo, ou, ainda, pesquisas que revelem porque áreas semelhantes de vegetação de campo

se comportam de forma diferente (questão que instiga a gestão do Parque), os principais responsáveis por

promover a ecologia e a preservação da natureza são, mais do que os ambientalistas e órgãos

fiscalizadores, todos os cidadãos.

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