Economia Solidaria Como Praxix Pedagogic A - Moacir Gadotti

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Economia Solidria como prxiS pEdaggica moacir gadotti

Economia Solidria como prxiS pEdaggica moacir gadotti

So paulo, 2009

Editora e Livraria Instituto Paulo Freire Rua Cerro Cor, 550 | lj. 01 | 05061-100 So Paulo | SP | Brasil T: 11 3021 1168 [email protected] | [email protected] www.paulofreire.org

instituto paulo Freire Moacir Gadotti Alexandre Munck ngela Antunes Paulo Roberto Padilha Salete Valesan Camba Raiane P. S. Assumpo Janaina Abreu Lina Rosa Maurcio Ayer Kollontai Diniz Presidente do Conselho Deliberativo Diretor Administrativo-Financeiro Diretora Pedaggica Diretor de Desenvolvimento Institucional Diretora de Relaes Institucionais Coordenadora de Educao Popular

Coordenadora Editorial Preparadora de Textos Revisor Capa, projeto grfico, diagramao e arte-final Brasilgrafia Grfica e Editora Impresso

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gadotti, Moacir Economia solidria como prxis pedaggica / Moacir Gadotti. -- So Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. -(Educao popular) Bibliografia. ISBN: 978-85-61910-26-6 1. Desenvolvimento sustentvel 2. Economia 3. Educao - Filosofia 4. Educao - Finalidades e objetivos 5. Educao popular 6. Solidariedade 7. Valores sociais I. Ttulo. II. Srie. 09-00191 ndices para catlogo sistemtico: 1. Economia solidria como prtica pedaggica: Educao 370.115 Copyright 2009 Editora e Livraria Instituto Paulo Freire CDD-370.115

A economia solidria um ato pedaggico em si mesmo, na medida em que prope uma nova prtica social e um entendimento novo dessa prtica. A nica maneira de aprender a construir a economia solidria praticando-a. Mas seus valores fundamentais precedem sua prtica. Paul Singer (2005, p. 19).

Agradeo a leitura atenta e as contribuies de Luana Vilutis e Huberlan Rodrigues

SumrioPrefcio Paul Singer ........................ 09 Economia solidria e desenvolvimento sustentvel .......... 17 Educar para a cooperao ............... 31 Qualificao socioprofissional e sistematizao ................................ 47 Redes de economia solidria ........... 69 Papel das organizaes da sociedade civil ................................ 83 Desafios atuais da economia solidria ............................ 101 Uma economia para o bem viver ......................................... 113 Bibliografia .......................................... 125

prefcio

Economia Solidria como Prxis Pedaggica do consagrado educador popular Moacir Gadotti apresenta nova e original sntese dos debates que vm sendo travados sobre a economia solidria no Brasil e na Amrica Latina. Para discutir a economia solidria como prtica pedaggica, Gadotti contextualiza a questo no plano histrico, produzindo desta forma um amplo e profundo estudo do que vem a ser a economia solidria no mundo de hoje, com considerao particular para o indito momento histrico que a Amrica Latina vem vivendo com a vitria de candidatos de esquerda na grande maioria dos pases que realizaram eleies neste sculo 21. O autor comea com o envolvimento de educadores latino-americanos com a economia solidria ainda no fim dos anos 1980, quando formularam um primeiro programa de economia popular de solidariedade para a Amrica Latina. Nesta ocasio, o educador

Paulo Freire (1921-1997) elaborou uma introduo para o programa em que demonstra sua extraordinria capacidade de desvendar o potencial desta nova maneira de praticar a economia, ao dizer que ela representa algo de novo e esperanoso para o futuro da educao popular da Amrica Latina e para uma nova ordem econmica mundial (p. 20). Desde ento, surge a viso de uma outra economia que constitui, na verdade, um projeto de sociedade, que implica novos valores, acentuando o papel da educao popular em seu carter participativo, contestatrio, alternativo e alterativo (p. 23). A ligao umbilical da educao popular com a economia solidria se deve ao fato de que esta se apoia em novos valores que, aplicados a atividades econmicas, exigem a inveno de novas prticas, que cabe educao popular difundir entre aqueles que a peculiar dinmica do capitalismo exclui do espao econmico que ele domina. Ao discutir a economia solidria em toda sua diversidade e complexidade, Gadotti resume o seu carter nas seguintes palavras: Trata-se, na verdade, de uma desmercantilizao do processo econmico, programa bsico de construo de um novo socialismo hoje. Essa desmercantilizao no significa uma desmonetarizao ou o fim do mercado, mas sim a eliminao do lucro como categoria (p. 26). Esta formulao muito interessante, pois sendo a economia10

solidria formada por empreendimentos autogestionrios, portanto autnomos tanto em relao ao Estado como em relao ao capital, no h dvida de que eles s podem atuar em mercados. Por isso, a economia solidria realmente um novo socialismo, que nada tem em comum com o velho socialismo realmente existente que se baseava no planejamento centralizado da produo, distribuio e consumo pelo Estado, ao qual estavam subordinados todos os empreendimentos, que, por no terem autonomia alguma, jamais puderam ser autogestionrios. Gadotti tem razo ao propor a eliminao do lucro como categoria, pois o lucro o rendimento do capital, que se ope ao salrio, como rendimento do trabalho. Nos empreendimentos da economia solidria, a propriedade dos meios de produo coletiva, dela participando todos os que neles trabalham. Portanto, onde se pratica a economia solidria no h lucros e nem salrios. A receita da venda dos produtos pertence integralmente aos trabalhadores associados, que democraticamente decidem cada cabea tendo um voto como ela deve ser dividida entre investimentos e gastos de consumo dos trabalhadores e como esta ltima parte deve ser repartida entre os scios. O crescimento da economia solidria efetivamente elimina o lucro como categoria de uma parte cada vez maior das atividades econmicas. Mas nas empresas capitalistas que continuam em atividade o lucro11

continuar vigorando, da mesma forma que o salrio. lgico que se algum dia a economia solidria abranger a totalidade das atividades econmicas dum pas, o capitalismo ter desaparecido e com ele a categoria do lucro. Esta hiptese no provvel no mundo em que vivemos, o que no impede que toramos para que um dia todos os trabalhadores optem livremente pela economia solidria, mandando o capitalismo ao museu da histria. O que importa que o exerccio desta opo no seja imposto por coao poltica ou econmica. Enquanto houver trabalhadores que queiram ser assalariados e empresrios que queiram empreg-los, essencial que uns e outros possam se organizar de acordo com os seus desejos, pois disso depende a autenticidade da economia solidria. Convm recordar que um dos princpios basilares do cooperativismo (e da economia solidria) que, a qualquer momento, novos trabalhadores tenham o direito de se associar a empreendimentos solidrios e que associados a tais empreendimentos tenham o direito de deix-los, levando consigo sua parte do capital dos mesmos. A autogesto s vlida enquanto os trabalhadores participarem dela por sua prpria vontade. Se a participao em empreendimentos solidrios se tornasse obrigatria pela eliminao de todos os outros modos de produo de determinado pas, os trabalhadores no seriam mais os donos do seu destino, que ficaria sujeito vontade dos que teriam poder12

para autorizar e impedir o funcionamento dos diversos modos de produo. A economia solidria antes de tudo um processo contnuo de aprendizado de como praticar a ajuda mtua, a solidariedade e a igualdade de direitos no mbito dos empreendimentos e ao mesmo tempo fazer com que estes sejam capazes de melhorar a qualidade de seus produtos, as condies de trabalho, o nvel de ganho dos scios, a preservao e recuperao dos recursos naturais colocados sua disposio. O aprendizado se estende naturalmente tambm prtica de comrcio justo entre os empreendimentos e aos relacionamentos solidrios com fornecedores e consumidores, sem esquecer as prticas de participao na poltica e na cultura do pas, da regio e do mundo. Pode-se objetar que cada pessoa est sujeita a tal processo contnuo de aprendizado, desde que seja economicamente ativa, em qualquer um dos modos de produo. Mas esta objeo desconhece que a maioria dos que trabalham como assalariados de empreendimentos capitalistas quase no tem possibilidade de participar de decises sobre o rumo da empresa que o emprega. Portanto, o escopo do seu aprendizado tende a ser insignificante. O aprendizado contnuo que a vida na economia solidria proporciona amplo e combina as diferentes prticas acima arroladas, regidas por princpios que hoje no so os dominantes. Quem se engaja na economia solidria trabalha e ganha a13

vida e ao mesmo tempo luta por uma sociedade mais justa, mais ecolgica etc. Portanto, tem muito mais a aprender do que quem se amolda aos valores hegemnicos (que Gadotti aborda criticamente de forma brilhante) e adota prticas consagradas pelos costumes e pelo senso comum. Ora, vital que estes aprendizados individuais e coletivos sejam socializados, confrontados, criticados e incorporados ao saber e s prticas dos construtores da economia solidria. Por isso, a ideia proposta e defendida por Gadotti de que a economia solidria uma prxis pedaggica verdadeira e subentende todo um programa educativo. Diz ele (p. 36) que temos necessidade de construir uma pedagogia da economia solidria. As pedagogias clssicas no do conta da riqueza dessa nova realidade econmico-poltica que est se constituindo hoje. O ensino de autogesto um exemplo prtico. Como ensinar a autogesto? S pelo exemplo. (...) No se trata apenas de oferecer cursos. Trata-se de construir valores, uma cultura, juntos. admirvel como Gadotti discute a prtica pedaggica da economia solidria, partindo de sua essncia. A economia solidria, mais que um modo de produo, um modo de vida. O esprito da economia solidria cooperar, viver melhor juntos. Ela nos obriga a ver as pessoas sob outro olhar. Todos pensam juntos. Todos decidem juntos. Os ganhos no so s materiais, So tambm no materiais. empoderar as pessoas14

pela dissoluo do poder nelas, em todos e todas. Por isso, a educao essencial para o avano da economia solidria. Empoderar no ter mais poder individual, mas reinventar o poder, conquistar mais autonomia, ser mais, como dizia Paulo Freire (p. 48). Enfim, este livro constitui uma contribuio luminosa para o avano da economia solidria, ao esboar um programa pedaggico que toma por base os seus valores, princpios e prticas. Pedagogia muitas vezes mera forma de transmitir (e inculcar) determinados contedos e neste caso formas e contedos so tratados muitas vezes como mutuamente independentes e intercambiveis. Como se fosse possvel ensinar democracia usando como pedagogia o autoritarismo e a represso aos que discordam. O que Gadotti mostra que o contedo do que se ensina predetermina a pedagogia a ser usada. A educao, que essencial para o avano da economia solidria, s pode ser aquela que comea por negar que os papis de educador e de educando sejam desempenhados sempre pelas mesmas pessoas. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender dizia Paulo Freire (p. 49). O que permite concluir que se esta pedagogia fosse aplicada nas escolas em todos os nveis de ensino, do jardim da infncia ps-graduao universitria, teramos uma nova gerao muito mais propensa a se engajar numa economia solidria, como modo de vida congruente15

1com a sua vivncia escolar. Este ainda um sonho de poucos, mas que tendem a se multiplicar. Esta obra, que o leitor tem nas mos, poder acelerar esta multiplicao ao fundir com grande felicidade educao popular e economia solidria. Paul Singer Secretrio Nacional de Economia Solidria do Ministrio do Trabalho e Emprego Professor Titular da Universidade de So Paulo So Paulo, janeiro de 2009. Meu envolvimento com a economia solidria comeou no final dos anos oitenta. Os que estvamos envolvidos com a educao popular nos apoivamos no trabalho como princpio educativo. Na educao de adultos, a alternncia entre estudo e trabalho se constitua no fundamento de toda proposta pedaggica. Entendamos que o trabalhador no podia parar de trabalhar para estudar. Ento, no bastava promover a conscientizao e a organizao popular. Era preciso associar a conscincia crtica e organizativa ao produtivo, ao trabalho e renda. E comeamos por associar a educao comunitria economia popular, inspirados, sobretudo, nos trabalhos do economista chileno Lus Razeto (1993, p. 34). Ele entendia a economia popular como16 17

Economia Solidria E dESEnVolVimEnTo SUSTEnTVEl

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um fenmeno generalizado que se estende na Amrica Latina, no contexto das profundas transformaes do mercado e das estruturas econmicosociais em curso. Naquele momento nos referamos a processos que, na bibliografia econmica e sociolgica daquela poca, eram compreendidos atravs de expresses como economia informal, estratgias de subsistncia, economia subterrnea e outras similares.

Lus Razeto (1993) inclui, no conceito de economia popular, diferentes estratgias de sobrevivncia e de subsistncia e estratgias de vida, tais como: microempresas e pequenas oficinas e negcios de carter familiar, individual ou de dois ou trs scios; organizaes econmicas populares; iniciativas individuais no estabelecidas e informais; atividades ilegais e com pequenos delitos e solues assistenciais e insero em sistemas de beneficncia pblica ou privada (Idem, p. 36-38). claro que, hoje, a economia solidria se constitui num fenmeno muito mais complexo. Nessas ltimas dcadas, a economia solidria vem se estruturando e se constituindo numa fora real e alternativa ao modelo capitalista. Os termos subterrnea ou invisvel, muitas vezes atribudos economia popular, revelavam a incapacidade dos governos e da economia oficial de reconhecer um fenmeno que no nada oculto, desde aquela poca. Em 1989, como membro da Associao18

Internacional de Educao Comunitria, ao lado de Francisco Gutirrez, Lus Razeto, Cruz Prado, Xabier Gorostiaga e outros, iniciamos um programa de economia popular para a Amrica Latina envolvendo diversos pases em torno do que chamvamos de fator C: cooperao, co-responsabilidade, comunicao, comunidade, elementos constitutivos das organizaes econmicas populares, cujas palavras comeam com a letra C. A produo associada gera valores solidrios, participao, autogesto e autonomia. Para ns a economia popular no se baseava nos critrios de rentabilidade e de lucro do sistema capitalista e da economia no-popular competitiva. Nisso ela aponta para algo diferente do capitalismo, embora esteja nascendo no interior dele. O crescimento da economia popular no mundo, absorvendo grande parte do desemprego estrutural capitalista, est dando razo, hoje, s primeiras intuies dos educadores populares comunitrios latino-americanos daquele momento. Organizamos um programa para o primeiro quinqunio (1990-1995) com base em dois eixos: Organizao popular comunitria. Esse eixo consistia no resgate do comunitrio com nfase no redescobrimento e ressignificao das razes das culturas autctones. Dentro deste campo, deu-se especial destaque s relaes com os movimentos sociais, s alternativas frente ao poder local e aos19

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aspectos legais da organizao popular comunitria, que deve desenvolver-se considerando alguns princpios educativos bsicos, tais como: participao, motivao, dilogo, descentralizao e as relaes no interior da prpria organizao e desta com outras organizaes. Economia popular de solidariedade. Esta se manifesta por meio de alguns traos e caractersticas que fazem do homem e da mulher os sujeitos do processo produtivo-educativo. Uma economia de dimenso humana que resgata valores do chamado fator C, como cooperao, comunidade, coletividade, colaborao, coordenao e cogesto, integrando os elementos produo, organizao e educao. O educador Paulo Freire ficou entusiasmado com o resultado da discusso e das propostas que havamos feito e nos escreveu uma carta para introduzir o documento final do nosso Programa Latino-Americano de Economia Popular e Educao Comunitria (Gadotti, 2004, p. 199-200) na qual afirma que a economia popular representa algo novo e esperanoso para o futuro da educao popular da Amrica Latina e para uma nova ordem econmica mundial. Ele nos chamou a ateno para um ponto importante da metodologia do novo programa: considero que a partir de uma nova prtica econmica teremos que elaborar uma teoria do conhecimento que fundamente e20

fortalea uma vida cada vez melhor para os setores populares. Paulo Freire manifestava uma preocupao com a sistematizao das prticas e nos indicou os nomes de Oscar Jara, da ONG Alforja (Costa Rica) e Srgio Martinic, do Centro de Investigao e Desenvolvimento da Educao (Cide), do Chile, para nos ajudar nesse trabalho. Aos poucos, a partir dos anos noventa, incorporamos outras expresses ao nosso projeto, dando ao conceito de economia popular denominaes distintas, mas inseparveis, como economia social, socioeconomia1, humanoeconomia, economia popular solidria, economia de proximidade, economia de comunho, economia da ddiva2, associadas ao comrcio justo1. Adotamos este termo socioeconomia porque ele designa a subordinao da economia sua finalidade, que prover, de maneira sustentvel, as bases materiais para o desenvolvimento pessoal, social e ambiental do ser humano (PACS, 2000, p. 5). 2. A economia da ddiva (gift economy) aquela baseada numa ao que no visa a qualquer forma de recompensa. Ela inteiramente gratuita e implica, segundo Nolle Lechat e Valmor Schiochet (in Cattani (org.), 2003, p. 85), a existncia de uma economia no mercantil, onde no h fixao de preos nem pagamento em dinheiro. Tampouco se trata de trocas imediatas de objetos ou servios considerados partes como equivalentes. A ddiva , ao mesmo tempo, obrigatria e espontnea, gratuita e interessada, incondicional e condicional. No fundo, a nica obrigao de quem recebe uma ddiva retribuir na mesma medida.21

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e ao mercado tico. Desde os anos noventa falamos em transformao produtiva com equidade (Cepal, 1990). Recentemente surgiram, na Venezuela, as chamadas empresas de produo social. As empresas de produo social (EPS), impulsionadas pelo presidente Hugo Chvez dentro do processo revolucionrio bolivariano, como caminho para o socialismo, soaquelas entidades econmicas dedicadas produo de bens ou servios nas quais o trabalho tem significado prprio, no alienado, autntico; nas quais no existe discriminao social no trabalho e de nenhum tipo de trabalho, no existem privilgios no trabalho associados posio hierrquica. Aquelas entidades econmicas com igualdade substantiva entre seus integrantes, baseada numa planificao participativa e protagonista, e, com base no regime de propriedade estatal, de propriedade coletiva ou da combinao de ambos. (Troudi, 2006 p. 91)

Essas empresas estabelecem os elementos essenciais para colocar em marcha um novo modo de produo com base na tradio socialista, pela igualdade e superao da alienao que produz o trabalho assalariado, na participao dos trabalhadores na gesto e na propriedade. As EPSs podem ser entendidas como empreendimentos de economia solidria na medida em que promovem o intercmbio solidrio, a participao e a cooperao, promovem uma economia guiada pelo valor de uso e no pelo valor de troca. uma nova iniciativa que precisa ser acompanhada de perto por22

todos os que buscam alternativas ao neoliberalismo. Na Venezuela, Hugo Chvez vem transformando grandes estatais em empresas cogestionadas nas quais os trabalhadores tomam decises no local de trabalho. por meio de experincias como essas que a Venezuela tenta construir um novo modelo econmico. O que h de comum em todas essas denominaes que todas esto associadas a uma outra economia, articuladas como um projeto de sociedade que implica novos valores, acentuando o papel da educao popular em seu carter participativo, contestatrio, alternativo e alterativo. Da concluirmos que a economia solidria uma prxis pedaggica. Era assim que a entendamos desde os anos oitenta, quando publiquei com Francisco Gutirrez, Lus Razeto e Xabier Gorostiaga o livro Educao comunitria e educao popular (Gadotti & Gutirrez, 1993). Essas ideias iniciais sobre a economia popular, trabalhadas na Associao Internacional de Educao Comunitria, influenciaram os projetos do ento recm-criado Instituto Paulo Freire (IPF), em 1991, principalmente na rea de educao de jovens e adultos; a partir da, vrios de seus projetos incluram os temas trabalho e renda, consumo responsvel, desenvolvimento sustentvel e economia solidria. Hoje, a economia solidria tornou-seuma nova maneira de nomear, conceituar e interconectar muitos tipos de valores econmicos23

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transformadores, prticas e instituies que existem em todo o mundo. Ela inclui, mas no limitada pelo consumo socialmente responsvel, trabalho e investimento; cooperativas de trabalhadores, consumidores, produtores e credores; empreendimentos solidrios, sindicatos progressistas, empreendimentos comunitrios, microcrdito e cuidado com o trabalho no pago. A economia solidria trata ainda de unir essas diferentes formas de economia transformadora numa rede de solidariedade: solidariedade com uma viso compartilhada, solidariedade com a troca de valores, a solidariedade com os oprimidos. (www.transformationcentral.org)

e democracia econmica:o projeto proposto pela economia popular e solidria tem entre seus principais fundamentos o desafio de estruturar uma economia que se alimente da incluso social e da distribuio de renda, em um contexto em que signifique a radicalizao da democracia poltica na direo da democracia econmica, a nica capaz de trazer solues definitivas aos problemas sociais. (Arroyo, 2006, p. 53)

A economia solidria no se resume a um produto, a um objeto. Ela se constitui num sistema que vai muito alm dos prprios empreendimentos solidrios. Ela , sobretudo, a adoo de um conceito. A economia solidria respeita o meio ambiente, produz corretamente sem utilizar mo de obra infantil, respeita a cultura local e luta pela cidadania e pela igualdade. A economia solidria implica comrcio justo, cooperao, segurana no trabalho, trabalho comunitrio, equilbrio de gnero e consumo sustentvel (produzido sem o sofrimento de pessoas ou de animais). Alm disso, a margem de lucro discutida coletivamente entre o produtor e o vendedor. O que cada um ganha discutido coletivamente. A economia solidria envolve pessoas comprometidas com um mundo mais solidrio, tico e sustentvel. Por isso a economia solidria est estreitamente ligada educao transformadora24

Hoje, a economia solidria destaca-se como um rico processo em curso, regido pelos princpios da solidariedade, da sustentabilidade, da incluso social3 e da emancipao. Ela representa uma grande esperana de transformao do modo como produzimos e reproduzimos nossa existncia no planeta4:3. O conceito de incluso social controverso. No basta incluir. preciso saber onde incluir. No h soluo se pensamos apenas na incluso na sociedade que a est. Incluir na esfera do capitalismo que um modo de produo essencialmente exclusivo uma contradio evidente. Estaramos tentando resolver um problema criado pelo capitalismo por meio do prprio capitalismo. Na verdade, a incluso social no apenas social. Ela , necessariamente, tambm uma incluso econmica e tecnolgica. Numa tica transformadora, a incluso com qualidade social deve respeitar e valorizar as diferenas e, ainda, possibilitar maiores esperanas de emancipao. 4. Ver o livro organizado por Antonio David Cattani, A outra economia (2003). Em 2005, um mapeamento em 2.274 municpios revelou a existncia de 15 mil empreendimentos de economia solidria envolvendo 1 milho 250 mil25

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a economia solidria um movimento de alcance global que nasceu entre os oprimidos e os velhos e novos excludos, aqueles cujo trabalho no valorizado pelo mercado capitalista, sem acesso ao capital, s tecnologias e ao crdito. deles e dos ativistas e promotores da economia solidria, que emerge a aspirao e o desejo de um novo paradigma de organizao da economia e da sociedade. (Grupo de Trabalho, 2003, p. 162)

Trata-se, na verdade, de uma desmercantilizao do processo econmico, programa bsico de construo de um novo socialismo hoje. Essa desmercantilizao no significa desmonetarizao ou o fim do mercado, mas sima eliminao do lucro como categoria. O capitalismo tem sido um programa para a mercantilizao de tudo. Os capitalistas ainda no o implementaram totalmente, mas j caminharam bastante nessa direo, com todas as consequncias negativas que conhecemos. O socialismo deve ser um programa para a desmercantilizao de tudo. (Wallerstein, 2003, p. 36)

possibilidade de ampliao do mbito dos empreendimentos de socioeconomia solidria, assim como ocorreu com a incorporao do enfoque de gnero, o enfoque dos direitos humanos e da defesa do controle social local. Sustentabilidade e solidariedade so temas emergentes e convergentes. A economia solidria , frequentemente, associada ao desenvolvimento sustentvel, como foi destacado pela Carta de Princpios da economia solidria do Frum Brasileiro de Economia Solidria (FBES)5:a economia solidria constitui o fundamento de uma globalizao humanizadora, de um desenvolvimento sustentvel, socialmente justo e voltado para a satisfao racional das necessidades de cada um e de todos os cidados da Terra, seguindo um 5. O FBES um instrumento do movimento da economia solidria, um espao de articulao e dilogo entre diversos atores e movimentos socais pela construo da economia solidria como base fundamental de outro desenvolvimento socioeconmico do pas que queremos (FBES, 2008, p. 55) e tem por finalidades principais o apoio ao fortalecimento do movimento de economia solidria e a representao, articulao e incidncia na elaborao e acompanhamento de polticas pblicas de economia solidria. Para garantir a articulao entre os trs segmentos (empreendimentos solidrios, entidades de assessoria e gestores pblicos), o FBES estrutura-se por uma Coordenao Nacional, uma Coordenao Executiva, uma Secretaria Executiva Nacional, Fruns Estaduais de Economia Solidria, Entidades e Redes Nacionais de Fomento e Grupos de Trabalho da Economia Solidria.27

Nesse programa a educao desempenha um papel destacado. A economia solidria incorporou, desde os seus primrdios, o tema da ecologia e do desenvolvimento sustentvel. Essa incorporao representa umatrabalhadores. Calcula-se que existem hoje, no Brasil, mais de 22 mil empreendimentos solidrios.26

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caminho intergeracional de desenvolvimento sustentvel na qualidade de sua vida.

Entretanto, preciso levar em conta a ambiguidade que cerca o conceito de desenvolvimento sustentvel. Como aponta o telogo Leonardo Boff (2002, p. 55), o conceito de desenvolvimento origina-se numa economia excludente e, a sustentabilidade, no paradigma includente da ecologia. Como conceitos, eles seriam antagnicos. A ambiguidade comea j no prprio conceito de desenvolvimento sustentvel. Tal conceito tem a ver com o que Maurice Strong chamou, na Cpula da ONU de 1972 (Estocolmo), de ecodesenvolvimento, um desenvolvimento voltado para o bem-estar das pessoas, que satisfaa as necessidades humanas sem destruir o meio ambiente (crescer e preservar), um conceito recriado, mais tarde, por Ignacy Sachs em seu livro Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir (Sachs, 1986). As Naes Unidas consagraram a expresso desenvolvimento sustentvel em 1987, no Relatrio Brundtland da Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, chamado de Nosso futuro comum. Segundo esse Relatrio, desenvolvimento sustentvel aquele que atende s necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das geraes futuras atenderem a suas prprias necessidades (CMMAD, 1988, p. 46). Na Cpula da Terra (Rio-92) o desenvolvimento28

sustentvel ganhou maior visibilidade no documento aprovado pelos 173 chefes de estado e de governo presentes, com o ttulo Agenda 21, que prev a cooperao internacional e a transferncia de tecnologia dos pases ricos para os pases pobres. Esse documento, porm, no conseguiu superar a ambiguidade apontada acima por Leonardo Boff. A Agenda 21 no toca na insustentabilidade intrnseca ao modelo capitalista de produo. Mesmo com esses problemas conceituais, na prtica, o desenvolvimento sustentvel gerou uma srie de consequncias positivas na sociedade global e local: gerou conscincia ambiental do risco que estamos correndo se continuarmos na rota predatria do desenvolvimento capitalista, gerou aes locais pela sustentabilidade (Agenda 21 local), gerou cdigos de tica como a Carta da Terra (que preferiu chamar o desenvolvimento sustentvel de modo de vida sustentvel) e movimentos como o da atual Dcada da Educao para o Desenvolvimento Sustentvel (2005-2014). Para ser sustentvel, o desenvolvimento precisa ser ambientalmente correto6, socialmente justo,6. Como diz Lus Razeto (2001, p. 60), enfrentar a deteriorao ecolgica no se alcana simplesmente detendo o crescimento da economia atual, pois, mesmo deixando de crescer, continuaria gerando graves desequilbrios meio-ambientais no nvel no qual so produzidos atualmente ou, quem sabe,29

2economicamente vivel e culturalmente respeitoso das diferenas. Ele supe, portanto, que existam diversos modos sustentveis de viver. A frmula correta seria viver feliz, bem viver, viver plenamente, em harmonia com o meio ambiente, sem destru-lo. O tema complexo e no pode ser visto de forma sectria. Associamos a economia solidria ao desenvolvimento sustentvel, e mais precisamente vida sustentvel, porque entendemos a sustentabilidade como o sonho de bem viver, o equilbrio dinmico com o outro e com a natureza, a harmonia entre os diferentes, princpios perseguidos tambm pela economia solidria. Para ns, sustentabilidade implica respeito vida, cuidado dirio para com o planeta e para com toda a comunidade da vida. Ela se ope a tudo que sugere egosmo, injustia, dominao poltica, explorao econmica e isso tem tudo a ver com a economia solidria.

EdUcar para a coopErao Uma das caractersticas mais marcantes da economia solidria o seu sistema de gesto, nitidamente distinto do setor privado capitalista. A gesto capitalista est ligada ao acmulo do capital e ao lucro, ao passo que a gesto solidria est ligada melhoria da qualidade de vida dos associados, ao empreendimento econmico solidrio1, a um modo de vida sustentvel e ao bem1. Entende-se por empreendimento econmico solidrio aquela atividade econmica de produo, distribuio, consumo, poupana e crdito, organizada sob a forma de autogesto. Os empreendimentos solidrios distinguem-se dos empreendimentos capitalistas porque tm uma gesto democrtica, relaes intersubjetivas de trabalho, trabalho em rede, participao cidad, mutualismo, respeito aos direitos sociais e trabalhistas e superao do trabalho alienado.31

ainda mais agravados (...). evidente que recuperar o meio ambiente supe abundantes atividades econmicas novas, que devem ser implementadas conforme a lgica de uma economia ecologicamente apropriada.

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viver da populao. So princpios tico-polticos antagnicos aos da gesto dos negcios capitalistas que no beneficia a todos, mas a seus proprietrios. Segundo Paul Singer (2002, p. 10), a economia solidria um modo de produo cujos princpios bsicos so a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito liberdade individual. Na empresa capitalista, os salrios so desiguais: diretores ganham mais do que gerentes e estes, mais do que os tcnicos e vendedores. Na empresa solidria, os scios no recebem salrio, mas sim retiradas que variam conforme a receita obtida. Alguma desigualdade tolervel desde que ela sirva para melhorar a situao dos menos favorecidos (Idem, p. 13), conclui Paul Singer. Por isso, na autogesto, a formao para a gesto no um processo educativo restrito ao setor administrativo. A formao para a gesto em empreendimentos autogestionrios dirige-se ao conjunto das pessoas ligadas ao empreendimento, embora tenha que existir formao especfica e profissional para certos quadros institucionais de acordo com suas responsabilidades. Trata-se de uma formao para a gesto colaborativa e o trabalho de equipe. A formao se constitui numa maneira muito concreta de apoiar e dar sustentabilidade aos empreendimentos de economia solidria. Ela no se restringe a aspectos informativos e formativos, mas envolve tambm aspectos organizativos e produtivos.32

Com a autogesto, todos participam das decises independentemente da funo que executam. Por isso, todos os membros de um empreendimento solidrio precisam ser formados para a gesto coletiva do prprio empreendimento. Todos precisam de uma nova formao j que a forma como a sociedade capitalista se organiza no oportuniza uma cultura de deciso coletiva:o que define a autogesto so as relaes sociais democrticas, coletivistas e igualitrias, que fazem da produo associada mais do que uma organizao econmica, na medida em que se configura em um espao privilegiado para a experimentao social e a realizao de aes pedaggicas no campo poltico e cultural. (Xavier, 2008, p. 19)

As prticas de economia solidria envolvem uma mudana cultural que s a formao pode estabelecer. A economia solidria est fortemente ligada necessidade de formao cultural. Trata-se de uma mudana profunda de valores e princpios que orientam o comportamento humano em relao ao que e ao que no sustentvel. A eficincia econmica est ligada no s a valores econmicos, mas tambm a valores culturais das prticas solidrias. As empresas solidrias, por seu carter, devem ser autogestionrias2. Cada vez mais est se consolidando2. Sobre o conceito de autogesto, seu papel e sua importncia para a economia solidria, ver o livro publicado33

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o conceito de empreendimento econmico solidrio como aquele que ligado autogesto. Entende-se que a solidariedade no pode estar separada da autogesto. A empresa autogestionada exige um esforo adicional dos trabalhadores na empresa solidria: alm de cumprir as tarefas a seu cargo, cada um deles tem de se preocupar com os problemas gerais da empresa (Idem, p. 19). O modelo da autogesto baseado na democracia participativa. Ele est assentadono apenas sobre a crtica da propriedade privada dos meios de produo, mas tambm sobre aquele da organizao burocrtica da gesto das organizaes e do Estado (...). O temor de abuso do poder por parte dos eleitos numa democracia representativa est no centro da democracia direta. (Moth, 2005, p. 110-111)3

Como surgem os empreendimentos solidrios de autogesto? Jos Ricardo Tauile e Huberlan Rodrigues (2004, p. 39) apontam cinco formas em relao aopela Associao Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogesto e Participao Acionria (Anteag) em 2007, com o ttulo Autogesto e economia solidria: uma nova metodologia. 3. A autogesto no um projeto poltico nascido recentemente. Por isso deve-se levar em conta tambm a sua histria de alguns xitos e muitos fracassos. A economia solidria, assumindo estrategicamente a autogesto como seu programa, no pode ignorar o que aconteceu no passado em relao a esse projeto de sociedade.34

surgimento dos empreendimentos de autogesto: pela associao de trabalhadores; pela assuno coletiva de uma empresa falida; pelo arrendamento de um empreendimento econmico em estado pr-falimentar; pela compra de empresa pelos trabalhadores associados; pela reconverso para a autogesto de cooperativas heterogestionadas. A economia solidria, como uma forma cooperativa e no competitiva de produzir e reproduzir nossa existncia, tem um componente educativo extraordinrio. A educao para a cooperao e para a autogesto necessria para formar as pessoas envolvidas em empreendimentos solidrios a compreender sua empresa e administr-la adequadamente. No se pode entrar numa cooperativa com uma mentalidade capitalista. Seria o mesmo que dar continuidade ao projeto capitalista:a prtica da economia solidria exige que as pessoas que foram formadas no capitalismo sejam re-educadas (...). Essa re-educao coletiva representa um desafio pedaggico, pois se trata de passar a cada membro do grupo outra viso de como a economia de mercado pode funcionar e do relacionamento cooperativo entre scios, para que a economia solidria d os resultados almejados. Essa viso no pode ser formulada e transmitida em termos tericos, apenas em linhas gerais e abstratas. O verdadeiro aprendizado d-se com a prtica, pois o comportamento econmico solidrio s existe quando recproco. Trata-se de uma grande35

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variedade de prticas de ajuda mtua e de tomadas coletivas de deciso cuja vivncia indispensvel para que os agentes possam aprender o que deles se espera e o que devem esperar dos outros. (Singer, 2005, p. 16)

Nesse sentido, pode-se afirmar que a economia solidria uma prxis eminentemente pedaggica. precisamente porque a economia solidria um ato pedaggico (Singer, 2005) que temos necessidade de construir uma pedagogia da economia solidria. As pedagogias clssicas no do conta da riqueza dessa nova realidade econmico-poltica que est se constituindo hoje. O ensino da autogesto um exemplo prtico. Como ensinar a autogesto? S pelo exemplo. No d para ensinar a autogesto com lies de autogesto, como no d para ensinar democracia com lies de democracia. Essa uma pedagogia a ser construda com a prtica. Aqui vale a advertncia de Paulo Freire: ningum ensina nada a ningum. Aprendemos juntos, em comunho. No se trata apenas de oferecer cursos. Trata-se de construir valores, uma cultura, juntos. Em qualquer tipo de formao importante despertar a confiana dos educandos. E isso se consegue na medida em que os educadores no se distanciam dos educandos. A economia solidria baseia-se na ajuda mtua e esse princpio pedaggico da reciprocidade e da igualdade de condies exigncia de36

todo dilogo verdadeiro entre educador e educando, deve ser levado em conta sobretudo na formao em economia solidria. Os pobres sabem o que isso significa: eu ajudo hoje e sei que amanh, se precisar de ajuda, posso contar com ela. Isso confiar. Isso reciprocidade e igualdade de condies. No mercado capitalista ocorre exatamente o contrrio. Voc pode esperar, com certeza uma rasteira, amanh, porque o princpio da economia capitalista o da competitividade insolidria. O mercado capitalista totalmente diferente do mercado solidrio. Como costuma dizer Paul Singer o mercado existiu bem antes do capitalismo e continuar existindo depois do capitalismo. O mercado, em si, no hostil economia solidria. Um mercado socialista precisa ter um bom preo, ser eficiente, como tambm precisa ser tico, no explorar as pessoas, no ser desleal4. A noo de mercado to controversa quanto a noo de competio, frequentemente a ela associada. A palavra competio carrega uma carga muito negativa. Por isso alguns usam positivamente4 . No confundir economia solidria de mercado com sociedade de mercado. Eu aceito a primeira, mas no a segunda. A sociedade de mercado prpria do modo de produo capitalista, cujos valores regulam todo o funcionamento da sociedade (capitalista), tornando o mercado um valor supremo. O capitalismo substitui a sociedade de pessoas por uma sociedade de mercados.37

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a palavra competitividade e entendem a competio apenas como um valor negativo. Mas existem casos em que a competio saudvel e at recomendvel. Numa democracia, por exemplo, precisamos da concorrncia ou da competio de muitos partidos adversrios uns dos outros. Para haver liberdade de pensamento preciso a concorrncia ou a competio cientfica e mesmo uma saudvel disputa filosfica e ideolgica. O pensamento nico a morte do pensamento. O mundo sem competio, conclui Paul Singer, o mundo do sonho stalinista. S se entende um conceito quanto ele contextualizado. Existe uma competio insolidria, destrutiva, e uma competio solidria, construtiva. Uma competio esportiva, onde o fim superar-se a si mesmo e no destruir o outro, onde as regras so as mesmas para todos os competidores, uma competio construtiva e saudvel. Por outro lado, na economia solidria devemos privilegiar o que nos une e no o que nos divide, devemos privilegiar a cooperao e a parceria e no a competio e a concorrncia. Como observa Luigi Verardo (2005, p. 124),a economia solidria avessa concorrncia no interior do seu prprio campo de atuao. Neste sentido, a competio entre empreendimentos ou entre entidades promotoras (assessorias, consultorias e fomentos) no s no constri a economia solidria como, simplesmente, a destri em seu alicerce e em seus prprios fundamentos.38

A economia a forma como a sociedade produz e distribui o de que necessita para se reproduzir e sustentar. O ato de cooperar uma forma de trabalho em que muitos trabalham para o mesmo fim. A cooperao das pessoas no trabalho um dos maiores avanos da humanidade. Est na base de todas as formas capitalistas, sob hierarquia (ordem), relao de mando e de subordinao, para a reproduo do capital, na cooperao mediada pelo mercado, em que h vencedores e vencidos. Claus Germer (2007, p. 50-73), professor da Universidade Federal do Paran, faz diversas crticas concepo de economia solidria de Paul Singer, afirmando que a economia solidria se situa no campo da cooperao capitalista, no marxista, mas reconhecendo que a economia solidria um campo heterogneo e que Paul Singer diferencia-se pela tentativa de teorizar a economia solidria com base em alguns elementos da teoria social marxista, concebendo-a como uma forma social alternativa ao capitalismo (p. 52). Esta tambm a viso de Pablo Guerra (2002, p. 34) para quem as economias solidrias so alternativas concretas ao capitalismo. Ademais, do nosso ponto de vista no aceitvel o argumento segundo o qual, definitivamente, estas prticas terminam operando no sistema capitalista. Claus Germer, em oposio a esta tese, sustenta que fantasiosa a opinio de que a luta histrica dos39

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trabalhadores pelo socialismo, h duzentos anos, tenha comeado pelo cooperatismo. Nisso ele discorda de Singer. Essas lutas teriam comeado pela apropriao coletiva dos meios de produo, uma luta pelo poder de Estado (p. 57). Segundo ele, as propostas utpicas baseadas no cooperativismo teriam se constitudo em obstculos ao avano da luta pelo socialismo (p. 57) e que a economia solidria no um projeto socialista e no reflete, portanto, os interesses do proletariado como classe (p. 62). A meu ver, tudo depende de que socialismo estamos falando. Creio que aqui se encontra a divergncia: entre a concepo de socialismo de estado de Marx e a concepo de um socialismo a partir da organizao da sociedade, que Paul Singer defende. Trata-se de conquistar o estado para, depois, fazer a revoluo na sociedade, ou se trata de fortalecer a sociedade civil e os trabalhadores para fazer a revoluo com base na sociedade? O modelo de socialismo de estado de tipo sovitico fracassou, inclusive porque adotou a lgica capitalista de mando e subordinao (no da cooperao) na gesto dos empreendimentos coletivizados. Como sustenta o deputado federal Eudes Xavier, coordenador da Frente Parlamentar pela Economia Solidria, na Cmara dos Deputados do Congresso Nacional,o processo de superao do capitalismo no ser consequncia de um movimento de cima para40

baixo, e sim a partir da construo, nas brechas do capitalismo, de novas formas de organizao da produo e do trabalho que superem positivamente as contradies do capitalismo. Uma nova base econmica, cuja hegemonia seja realizada pelos(as) livres produtores(as) associados(as) de forma autogestionria, consiste num passo decisivo para a superao do capitalismo. (Xavier, 2008, p. 15)

Precisamos aprender com nossos prprios erros e acertos. Sem dvida, a economia solidria um embrio de uma nova sociedade, como forma tpica de um novo modo de produo, antagnica ao modo de produo capitalista. Ela permanece no campo da tica marxista, mas no em todas as suas concepes poltico-econmicas e estratgicas. Trata-se de um novo conceito de revoluo, como sustenta John Holloway (2003). Enquanto no primeiro modelo predominava o planejamento centralizado no poder de estado, no segundo predomina a descentralizao, a participao e a concertao. A economia solidria no apenas um projeto de uma nova economia, mas de uma nova sociedade. Ela reconhece seus limites, inclusive na incorporao dos avanos cientficos e tecnolgicos, mas no abandona o projeto utpico de um outro mundo possvel, como prope o Frum Social Mundial (FSM). Para no cair no economicismo, a economia solidria tambm forma para a conquista do poder poltico dos trabalhadores. Por isso, ela tem um41

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poderoso componente de formao poltica, de educao ela , em si, um ato pedaggico, como sustenta Paul Singer ao lado de seu componente econmico fundamental. Sem dvida, ela vem, na sua histria, fortalecendo a luta dos trabalhadores pelo controle autnomo, direto, cidado e participativo do estado. Ao lado da democracia representativa (Frente Parlamentar pela Economia Solidria), a economia solidria luta pela democracia participativa (Frum Brasileiro de Economia Solidria, Fruns Estaduais e Municipais de Economia Solidria). O cooperativismo revolucionrio ou solidrio, sim, teve, e tem, um papel importante na histria das lutas pelo socialismo, por um certo socialismo. Ele no se constitui em nenhum obstculo ao socialismo. H uma grande diferena entre o cooperativismo solidrio (cooperativas de trabalho) e o cooperativismo do agronegcio (cooperativas de produtores). E no s o tamanho do negcio. A diferena est na sua concepo econmica de produo e consumo. O agronegcio pode ser eficiente do ponto de vista produtivo, mas tem sido tambm um modelo concentrador de renda e agressivo ao meio ambiente. Enquanto a economia solidria cria postos de trabalho, o agronegcio vem desativando postos de trabalho. A diferena entre a cooperativa de trabalho (associado) e a cooperativa de produtores est justamente na presena ou ausncia da autogesto, visto que, materialmente, na42

cooperativa de trabalhadores, estes se associam para deter os meios de produo e, na cooperativa de produtores, estes se associam para beneficiar a produo de suas propriedades, realizando o trabalho por meio de empregados subordinados, dependentes e pagos por meio de salrio, sem participao na gesto. Como se v, no se pode falar de cooperao e de competio em geral. Temos que qualificar de que competio e de que cooperao estamos falando. O capitalismo tambm se baseia na cooperao, como sustenta Marx em O Capital. Contudo, a cooperao, no capitalismo, se d de forma forada entre indivduos. Ao contrrio, na economia solidria, a cooperao voluntria. Ela se sustenta na corresponsabilidade dos membros, em redes de apoio mtuo, numa tica de distribuio de benefcios (lucro) segundo acordos compartilhados (consumo crtico, sustentvel e comrcio justo e solidrio), aproximando mais aquele que produz daquele que consome, encarando o consumo como um ato poltico que exige uma postura consciente e participativa, um engajamento interessado. A economia solidria s pode ser considerada como tal se seus integrantes a entenderem como uma economia no-capitalista, se eles tiverem conscincia do que esto fazendo.Ela um ato de vontade de construir, por lutas e outras formas, uma sociedade, vamos dizer, no ideal, mas melhor daquela que temos aqui (...). A43

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economia solidria um projeto revolucionrio, um projeto para uma outra sociedade, e isso nos permite formul-la como ns desejamos. (Singer, 2005a, p. 11-13)

, tambm, um dos principais desafios da formao na economia solidria. (Oliveira, 2005, p. 37)

E para isso seus empreendedores precisam de uma formao poltica. A economia solidria prope uma forma de vida sustentvel que concretiza a utopia socialista, a utopia de uma sociedade de iguais e diferentes: uma economia no-capitalista nos interstcios da economia capitalista. E isso pode ser feito desde j. O Oramento Participativo, por exemplo, tal como foi iniciado em Porto Alegre, em 1989, na gesto de Olvio Dutra, e se espalhou pelo mundo, pode ser considerado como um implante socialista numa economia capitalista. A economia solidria uma alternativa economia capitalista. Por isso, para se fortalecer, ela deve tornar-se mais eficaz do que a prpria economia capitalista, em todos os campos, principalmente no campo social. No se concebe uma economia solidria sem uma cultura solidria. As pessoas precisam estar convencidas de que aquele o melhor caminho para si e para todos e todas:as pessoas passam a ser estimuladas a cultivar, entre elas, relaes de reciprocidade, de respeito, de busca de entendimento, procurando conjugar igualdade de direitos e deveres s diferenas, aos traos peculiares de cada qual. Combinar adequadamente diferenas individuais e igualdade de direitos e deveres um dos principais segredos na cultura solidria e44

No se pode pensar numa cultura para a solidariedade sem a formao para a sensibilidade. A cultura solidria e a educao esttica esto intimamente relacionadas. A educao esttica mobiliza para a sensibilidade, abrindo-se para o novo, para o outro, para o diverso. Da uma outra dimenso da educao para uma cultura solidria, que o respeito e a valorizao da diversidade cultural. Trata-se de no impor padres culturais, mas de compartilh-los, valoriz-los, no estabelecendo uma relao de hierarquia entre eles. O desenvolvimento humano resultado de um trabalho em comum, na evoluo da teia da vida. Essa oportunidade de se desenvolver, o ser humano a encontra na educao e na cultura. Cada indivduo para se desenvolver necessita da colaborao do outro. Todo ser humano precisa de alteridade. Uma educao para a cooperao, uma educao para a solidariedade, no apenas uma opo tica. uma condio humana necessria para o desenvolvimento pessoal e social. Respeitar os talentos de cada um, de cada uma, valoriz-los e promov-los, um dever educacional e uma responsabilidade social e poltica de todos e todas.

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QUaliFicao SocioproFiSSional E SiSTEmaTiZao A solidariedade nada tem a ver com a piedade. No se trata de dar uma esmola para algum para aliviar nossa conscincia. A esmola e a piedade no empoderam ningum. Ao contrrio, elas humilham. A solidariedade implica no apenas sentir o outro, mas compartilhar nossas vidas, nossos sonhos, com o outro. Por isso, a solidariedade precisa ser emancipatria. Emancipar, etimologicamente, significa tirar as mos de. No basta sofrer com, preciso estar com, compartilhar. exatamente o que Paulo Freire (1981) afirmou na dedicatria de seu livro mais conhecido, Pedagogia do oprimido: aos esfarrapados do mundo e queles que com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam. Uma nova pedagogia necessita de uma nova47

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metodologia. No caso da economia solidria, a metodologia usada devevincular o pensar ao fazer. Assumir-se como sujeito exige recuperar a fala, que reproduz o conhecido, e o ato de nomear, que elabora novos conhecimentos (...). por isso que, na formao de grupos cooperados, so to importantes trs perguntas: o que cada membro do grupo faz, o que eles sabem fazer e o que eles gostariam de fazer juntos. Essas perguntas abrem espao para a fala sobre o vivido e sobre a realidade, tal como percebida coletivamente pelo grupo, mas, principalmente, abrem espao para nomear as novas alternativas, que podem, assim, ser concebidas. A economia solidria pretende uma mudana de qualidade e de postura do sujeito diante da vida e da organizao da sociedade. (Kruppa, 2005, p. 26-27)

A economia solidria, mais do que um modo de produo, um modo de vida. O esprito da economia solidria cooperar, viver melhor juntos. Ela nos obriga a ver as pessoas sob outro olhar. Todos pensam juntos. Todos decidem juntos. Os ganhos no so s materiais. So tambm no materiais. O esprito da economia solidria empoderar as pessoas pela dissoluo do poder nelas, em todos e todas. Por isso, a educao essencial para o avano da economia solidria. Empoderar no ter mais poder individual, mas reinventar o poder, conquistar mais autonomia, ser mais, como dizia Paulo Freire. Paulo Freire nos ensinou que todo conhecimento48

nasce da ao, mas para produzir conhecimento no basta agir. preciso refletir e sistematizar a prtica. Nesse processo, o dilogo educador-educando fundamental: quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender (Freire, 1997, p. 25). A cultura do educando um elemento central dessa metodologia: ningum sabe tudo; ningum ignora tudo (Freire, 1976, p. 21), repetia Paulo Freire. Deve-se reconhecer e valorizar os saberes dos educandos. Nesse sentido, deve-se dar destaque a contedos bsicos dessa formao, relacionado-os com a cultura acumulada pelos empreendimentos solidrios no campo da gesto democrtica, no campo da constituio de redes e cooperativas, da participao cidad e do trabalho emancipatrio, dos direitos sociais e trabalhistas e da autogesto. Os contedos da formao devem estar relacionados com as experincias vividas de autogesto. dessas experincias concretas que devemos tirar as lies de formao em autogesto. Conhecer as experincias concretas de construo de redes autogestionrias deve fazer parte de qualquer programa de formao social e profissional em economia solidria. H outros contedos geralmente no levados em conta na educao formal. A Declarao de Hamburgo (1997), resultante da V Conferncia Internacional de Educao de Adultos (Confintea) da Unesco, afirma que a educao de jovens e adultos no pode isolar49

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se na escolarizao formal. Ela precisa ser ampliada levando em conta a questo de gnero, o meio ambiente, os direitos humanos, a questo tnica e racial, a formao para a paz e a sustentabilidade. A educao de adultos, relacionando desenvolvimento sustentvel e economia solidria, est inserida nessa viso crtica e ampliada defendida por essa importante Conferncia da Unesco. A meu ver a economia solidria, buscando formar para o consumo responsvel, deveria ser matria obrigatria de todos os cursos, desde a infncia. Por consumo responsvel entende-se a capacidade de cada pessoa de escolher bens e servios, de maneira tica, para melhorar a qualidade de vida de cada um, da sociedade e do ambiente (Badue, 2005, p. 21). Educao popular, desenvolvimento local e economia solidria so temas convergentes de uma mesma poltica de incluso. Para isso, a Secretaria Nacional de Economia Solidria (Senaes)1 criou, em 2005, o Projeto de Promoo do Desenvolvimento Local e Economia Solidria (PPDLES). O PPDLES desenvolve1. A Senaes foi criada em junho de 2003 junto ao Ministrio do Trabalho e Emprego com o propsito de elaborar e propor medidas de articulao de polticas de finanas solidrias, criar um marco legal para a economia solidria, fortalecer os empreendimentos autogestionrios, estimular a produo de conhecimento nestas reas e aprofundar a democracia participativa (Senaes, 2003).50

uma poltica de incluso social, fomentando o desenvolvimento local solidrio, com vistas gerao de trabalho e renda junto a populaes e comunidades mais excludas. Entre elas esto as comunidades quilombolas e indgenas, mulheres e jovens, catadores de resduos slidos e trabalhadores desempregados. O sucesso de um programa como esse depende, em grande parte, da formao de pessoal qualificado e comprometido com o paradigma da economia solidria, chamados, no PPDLES, de agentes de desenvolvimento solidrio2. Esse projeto foi renomeado e hoje conhecido pela expresso Brasil Local. Tudo isso foi possvel porque o governo Lula valorizou a educao no-formal e inclusiva como educao poltica e cidad, que permeia hoje vrios ministrios. Segundo Cludio Nascimento (2005, p. 62), so objetivos da formao de agentes de desenvolvimento solidrio: desenvolver processos formativos voltados a estratgias de desenvolvimento (includente, sustentvel2. Por agente de desenvolvimento solidrio entende-se o profissional que atua nas comunidades e empreendimentos de economia solidria por meio de metodologias participativas de sensibilizao, mobilizao, formao de monitores ou multiplicadores, acompanhamento, apoio especializado, construo de redes e/ou arranjos produtivos articulados a estratgias de desenvolvimento local (ou com outra identidade territorial), permeadas pela economia solidria e autogesto (Nascimento, 2005, p. 62).51

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e solidrio) por meio do fortalecimento da economia solidria da autogesto e da participao; formar agentes de desenvolvimento solidrio que atuem na formao e acompanhamento de cooperativas e/ou empreendimentos solidrios; experimentar e desenvolver metodologias de formao de multiplicadores, trabalhadores cooperados e empreendedores solidrios em gesto coletiva e administrao dos empreendimentos; e disponibilizar conhecimentos necessrios para a formao e funcionamento de cooperativas e/ou empreendimentos econmicos solidrios inseridos em estratgia de desenvolvimento. A formao de educadores populares e de agentes de desenvolvimento local e solidrio tornou-se um campo socialmente relevante de atuao da educao de jovens e adultos e sua ao vai alm do mbito de um simples projeto para se constituir numa poltica mais abrangente. Ver, por exemplo, os programas Rede de Educao Cidad3 (uma parceria entre o MDS, o3. A Rede de Educao Cidad uma articulao de diversos atores sociais, entidades e movimentos populares do Brasil que assumem solidariamente a misso de realizar um processo sistemtico de sensibilizao, mobilizao e educao popular da populao brasileira, principalmente das famlias em condies de vulnerabilidade social, promovendo o dilogo e a participao ativa na superao da misria, afirmando um projeto popular, democrtico e soberano de nao (Brasil/MDS/Recid, 2008, p. 3). A educao cidad deve52

Instituto Paulo Freire (IPF) e numerosas entidades) e MOVA-Brasil4 (uma parceria entre a Federao nica dos Petroleiros, o IPF e a Petrobras), o Programa Cultura Viva do Ministrio da Cultura (MinC) e o Pr-Jovem, entre outros. A partir de 2006, o IPF estabeleceu um convnio com o Ministrio do Trabalho e Emprego (o PlanSeQ-

ser entendida como uma atividade que cria oportunidades para as pessoas se descobrirem como pessoas, portadoras de direitos e de cultura, capazes de lutar pela vida por causa de valores como a solidariedade, a cooperao, a liberdade (...). A educao cidad tem razes na longa histria da educao popular. Ela pode, ento, ir unindo e mobilizando as energias que formam o esprito que dar vida ao mutiro em favor da vida (Brasil/MDS, 2004, p. 15-16). 4 . A ideia do Projeto MOVA-Brasil nasceu em 2001, no Frum Social Mundial e foi concretizada, em 2003, com a parceria entre o Instituto Paulo Freire, a Federao nica dos Petroleiros (FUP) e a Petrobras, como parte do Programa Petrobras Fome Zero do governo federal. O projeto centrou suas atividades em uma das regies de maior ndice de analfabetismo, o Nordeste. Ela atingiu a meta inicial de alfabetizar, em trs anos e meio, 40 mil educandos, no perodo de 2003 a 2006, e realizar a formao de 160 coordenadores locais e 1.600 monitores, contribuindo para o desenvolvimento comunitrio, o emprego, a renda e a autoestima dos alfabetizandos. Ver o livro MOVA, por um Brasil Alfabetizado (Gadotti, 2008). O projeto MOVA-Brasil faz parte de um conjunto de projetos e movimentos que utilizam a mesma metodologia, chamado Rede MOVA-Brasil.53

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EcoSol)5 para implementar uma das aes do Plano Nacional de Qualificao (PNQ) referente qualificao social e profissional em economia solidria, em 21 estados brasileiros, beneficiando cerca de 5 mil trabalhadores, inseridos nos segmentos econmicos de metalurgia, artesanato, fruticultura, apicultura e na cadeira produtiva do algodo ecolgico. O IPF como instituio conveniada, conta com a parceria de cinco organizaes que atuam no apoio, assessoria e formao de empreendimentos solidrios: a Unisol Brasil Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidrios; a Anteag Associao Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogesto; o Grupo Colmeias de Projetos, Assessorias e Servios; a Emrede Associao dos Empreendimentos Solidrios em Rede do Rio Grande do Sul; e o Irpaa Instituto Regional da Pequena Agropecuria Apropriada. A educao e a qualificao social e profissional so importantes para o fortalecimento dos empreendimentos solidrios e para evitar a disperso num campo onde a diversidade enorme. Em outubro de 2005, a Senaes realizou uma5. Plano Setorial de Qualificao Social e Profissional em Economia Solidria (PlanSeQ-EcoSol).54

oficina nacional sobre o tema da formao em economia solidria, discutindo vrias experincias de formao. Essa formao considerada um direito de todos os trabalhadores em empreendimentos solidrios. Dela resultou um importante documento (Senaes/MTE, 2006) em que so apresentados princpios e diretrizes do processo formativo em economia solidria, bem como que tipos de contedo devem ser trabalhados e com que procedimentos metodolgicos. Um dos grandes princpios norteadores o resgate e a sistematizao das prticas como processo coletivo de produo de conhecimentos. Entre os contedos a serem trabalhados est a histria e as perspectivas do trabalho emancipatrio e sua constituio, o marco jurdico, a participao cidad, as relaes intersubjetivas, o processo de incubao e a autogesto. Eu acrescentaria o tema da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentvel (Agenda 21 e Carta da Terra). Como elementos metodolgicos so apontados diferentes mtodos e tcnicas embasados numa compreenso autogestionria da concepo ensino-aprendizagem. A metodologia autogestionria a participao radical de todos os envolvidos nos processos decisrios de planejamento, execuo e avaliao das atividades de economia solidria (...). A metodologia deve garantir a integrao entre a produo coletiva do conhecimento e as mudanas de condutas desejadas (produo, classe, tecnologia, gnero, raa, etnia, gerao e consumo) como55

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ferramenta de superao da fragmentao da sociedade capitalista, se apropriando de todo o processo socioprodutivo. (Senaes/MTE, 2006, p. 22-23)

Por fim, o documento apresenta alguns elementos para uma poltica pblica de formao em economia solidria. O movimento por uma outra economia no est separado de um conjunto de movimentos sociais e populares que, em diversos campos, tm lutado por um outro mundo possvel e reinventado modos de vida sustentveis, produtivos e justos. nesse contexto mais amplo que aparecem tambm novos mtodos, traduzidos por novas expresses, tais como a de tecnologia social, que tem tudo a ver com a economia social ou solidria. Tecnologia social um conceito amplo e pode compreender tanto produtos como tcnicas com metodologias reaplicveis, desenvolvidas em interao com a comunidade e que representem propostas efetivas de transformao social. Ela pressupe a participao dos sujeitos beneficiados pelo projeto ou produto desde a sua organizao e implementao at a sua avaliao final. As tecnologias sociais buscam o desenvolvimento autnomo das comunidades em suas diferentes demandas: alimentao, habitao, renda, educao, energia, sade, meio ambiente... fazendo dialogar o saber tcnico-cientfico com o saber popular. Como todo conceito, est em evoluo, modificandose e sendo reinventando nas prticas concretas.56

A metodologia da formao em economia solidria est se beneficiando desses novos processos e de outros antigos, como o desenvolvimento das metodologias de educao popular, muito frteis, na Amrica Latina, nos ltimos cinquenta anos. Nesse sentido, fiquei feliz quando recebi do Centro de Elaboraes, Assessoria e Desenvolvimento de Projetos (Cesap) de Florianpolis (SC) seu belo material sobre metodologia de formao e de organizao comunitria (Cesap, 2007). O Cesap desenvolveu princpios metodolgicos visando formao e organizao de base junto a grupos comunitrios. Trata-se de uma metodologia participativa e autogestionria que parte da problematizao das necessidades das populaes beneficiadas. Eis alguns desses princpios metodolgicos: a transparncia e a sinceridade nas relaes com os grupos; o estmulo autonomia e o respeito s decises do grupo; a formao e a capacitao enquanto processo permanente; a superao da cultura de reunies; o acompanhamento permanente; o exerccio da democracia interna e direta; e o amadurecimento com a superao de situaes de conflito. Toda metodologia transformadora tem um componente bsico que a sistematizao da experincia. Nisso o57

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Cesap foi exemplar, ao sistematizar a sua prpria metodologia no livro Qualificao, organizao comunitria e gerao de cidadania, publicado em 2007. E no podemos falar de formao socioprofissional em economia solidria sem mencionar a importante contribuio da pedagogia da alternncia6. Ela vem contribuindo para o progresso da prpria economia solidria e para um modelo de desenvolvimento alternativo, associando estudo e trabalho, espaos educativos presenciais e no presenciais, formais e informais, reflexo sobre a prtica e sistematizao da experincia. A pedagogia da alternncia, em relao formao socioprofissional, ressalta o papel da descentralizao, da participao (construir juntos contedos e metodologia) e da concertao (consenso), princpios muito caros economia solidria. A pedagogia da alternncia respeita e favorece a autonomia dos educandos, reconhece seus saberes, e, com isso, compreende melhor o que eles sabem e o que podem vir a aprender.6. A pedagogia da alternncia nasceu nos anos trinta do sculo passado, na Frana, consistindo, basicamente, numa metodologia de organizao do ensino escolar que atendia especificidade do campo, valorizando as experincias dos alunos e conciliando estudo e trabalho. No Brasil, ela aparece pela primeira vez na dcada de sessenta, particularmente nas Escolas Famlias Agrcolas do estado do Esprito Santo, espalhando-se, depois, pelo pas.58

Na pedagogia da alternncia a qualificao socioprofissional entendida tambm como estratgia de enfrentamento do desemprego e da excluso social. A sistematizao est sempre associada avaliao da eficcia do sistema e da concepo da formao em relao a seus fins e objetivos (carga horria, contedos, metodologia, pedagogia). A importncia da alternncia foi reconhecida pelos participantes dos nossos cursos de qualificao social e profissional em economia solidria: segundo uma das organizaes parceiras, elapermite a realizao da sistematizao das ideias e processos de compreenso. No basta fazer, pensar, idealizar o que chega para ser estudado. preciso que o sujeito consiga construir a sua ordem compreensiva e articule essa ordem nas atividades que vai realizar. Ao realizar esse processo de sistematizao ela individualmente vai gerando sua sistematizao, vai construindo seu saber. E como vivenciamos em rede, essa assimilao dinamizada, pois os sujeitos entram em comunho, como dizia o mestre Paulo Freire. Em rede, o novo contedo vai sendo instalado em todos os participantes, bem como a metodologia da alternncia vai sendo afirmada como maneira pedaggica vlida aos processos educativos, e sua repetio e aprimoramento certamente levar instalao de uma cultura pedaggica da alternncia. (Brasil/MTE/IPF, 2008, p. 70)7 7. Seminrio nacional de sistematizao do Plano Setorial de Qualificao Social e Profissional em Economia Solidria 2006 (PlanSeQ-EcoSol), organizado pelo Instituto Paulo Freire,59

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Como vemos, em economia solidria a sistematizao da prtica e do prprio processo de formao de suma importncia. A sistematizao das prticas de economia solidria estratgica para o seu prprio desenvolvimento. Ela evita a retomada da estaca zero a cada novo empreendimento. Para ser eficaz, a sistematizao, para ser eficiente, dever no s acompanhar o processo como parte da sua avaliao, mas, ainda, apontar perspectivas e desdobramentos. A sistematizao um momento do prprio processo de formao e de construo do conhecimento e deve ser includa no seu planejamento metodolgico. Ela no se confunde com o mero registro da experincia. Como diz Barquin (1999, p. 19) a sistematizao um processo intencionado e planejado de criao participativa de conhecimentos tericos e prticos das prticas de transformao emancipadora da realidade, para que elas possam melhor contribuir para alcanar seus fins e objetivos. O movimento de educao popular na Amrica Latina tem uma longa tradio de sistematizao de experincias. No se trata apenas de ordenar, catalogar ou classificar informaes. A sistematizao exige apreenso crtica da realidade e interpretao do vivido. Ela envolve as condies do contexto, os tipos de atores, a situao econmica, poltica e cultural do momento,em Braslia, nos dias 1 a 5 de setembro de 2008.60

a atitude das pessoas, as relaes de poder (...). No s um registro do que fazem, mas a compreenso de porque o fazem desse jeito (Jara, 2007, p. 37). O Plano Setorial de qualificao social e profissional em economia solidria (PlanSeQ-EcoSol, 2006) indicou alguns elementos metodolgicos para a qualificao em economia solidria a partir de uma concepo integral de educao. O enfoque metodolgico, a partir dessa concepo da educao, deve contemplar: uma orientao pedaggico-metodolgica que valorize os educandos como sujeitos dotados de saberes e identidades socialmente construdas, assim como reconhea e valorize a diversidade cultural, tnica, social, regional e de gnero; um projeto pedaggico que tenha como eixos gerais articuladores os temas do trabalho e da cidadania, para propiciar aos educandos uma articulao virtuosa entre sua insero no mundo do trabalho e sua participao social e poltica; uma construo curricular que envolva as dimenses tcnico-cientfica, sociopoltica, metodolgica e tico-cultural; um projeto de sistematizao das atividades formativas; e uma metodologia de indicadores dos resultados quantitativos e qualitativos.61

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A qualificao do trabalhador aprimora a sua formao geral e pode desenvolver, se for oferecida a partir de uma viso emancipadora, uma cultura de solidariedade, de paz e de sustentabilidade. A qualificao profissional vai alm da atualizao dos conhecimentos tcnico-tecnolgicos e gerenciais. O mundo do trabalho hoje est exigindo cada vez mais uma formao geral dos trabalhadores. Por isso, toda qualificao profissional deve tambm ser uma qualificao social. Numa viso conservadora, a qualificao profissional foi confundida com treinamento. Para superar essa viso, a qualificao deve incluir tanto habilidades bsicas como conhecimentos essenciais para o exerccio da cidadania e do trabalho, comunicao, leitura e escrita, compreenso de textos, segurana no trabalho, direitos humanos quanto habilidades especficas, exigidas para as ocupaes a serem trabalhadas, inclusive habilidades de gesto (autogesto) para o bom desempenho do empreendimento8. A noo de qualificao est ligada ao perfil de um profissional mais especializado, ao passo que a noo de competncia, oriunda dos pases centrais,8. O Plano Nacional de Qualificao define a qualificao como uma complexa construo social, associada a uma viso educativa que a tome como direito de cidadania, para contribuir para a democratizao das relaes de trabalho e para imprimir um carter social e participativo ao modelo de desenvolvimento.62

tem sido usada para definir o perfil de um profissional mais polivalente e mais adaptado a diferentes profisses. A noo de conhecimentos, habilidades e de saberes ainda mais abrangente e vai alm do campo comumente chamado de formao profissional. Paulo Freire (1997), referindo-se formao profissional do educador, preferia utilizar o termo saberes e no competncias. Reconhecemos que o tema das competncias controvertido, que existem vises propositadamente distorcidas e caricaturais e que ele precisa ser compreendido para alm dos sectarismos. A noo de competncia no nova. Nova a discusso em torno de uma certa pedagogia das competncias, uma nova concepo da competncia que coloca essa noo no centro do quefazer pedaggico, excluindo outras. Essa discusso, contudo, tem o mrito de confrontar uma pedagogia elitista, sempre preocupada com o saber intelectual e pouco preocupada com o saber prtico, o saber de experincia feito, como dizia Paulo Freire. O debate das competncias tem sido positivo quando aborda a questo do trabalho e, particularmente, a inteligncia prtica dos trabalhadores, independentemente de seus diplomas, dimenso frequentemente ignorada pelas academias. Em princpio, no podemos falar numa oposio formal entre competncia e cooperao. Mas, encontramos essa oposio, com muita frequncia e com63

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razo, na medida em que existem concepes diferentes e at antagnicas do conceito de competncia. Sem dvida, o modelo mais difundido de competncias est associado a um paradigma instrumental, individualista e no colaborativo de educao, incompatvel com os princpios da economia solidria. Tudo depende, portanto, da resposta que damos questo: quais so as competncias necessrias para bem viver em sociedade, na cidadania, no trabalho. As empresas tm trabalhado mais com as competncias necessrias para que um indivduo triunfe na vida, para que seja mais competitivo na sociedade de mercado. So as competncias necessrias para competir. Tudo depende de que tipo de competncias estamos falando: selecionando apenas aquelas que so mais teis para competir ou as mais apropriadas para colaborar? A formao continuada e a autoformao so tambm a consequncia do avano das tecnologias, do acesso generalizado informao e da necessidade de aprender fazendo (John Dewey) que um mundo em constante mudana est exigindo. Os centros de formao e as universidades no conseguem acompanhar a velocidade transformadora do mundo do trabalho e da produo. Existem no mercado mais de 12 mil profisses que no so certificadas pelas universidades. Em geral, as universidades esto estreitamente ligadas economia capitalista, mas algumas delas64

esto saindo na frente hoje na incorporao da economia solidria. A universidade precisa ser protagonista nesse campo. Nesse sentido, a criao do Ncleo de Economia Solidria (Nesol), na Universidade de So Paulo, em dezembro de 2002, com o objetivo de apoiar atividades de incubao de empreendimentos populares autogestionrios e o desenvolvimento de metodologias formativas aplicadas ao processo de desenvolvimento da economia solidria, um fato muito auspicioso, ao lado de iniciativas semelhantes de outras universidades. As incubadoras tm sido o principal espao desse apoio. O centros pblicos e as incubadoras de economia solidria so programas de apoio e fomento aos empreendimentos econmicos solidrios, bem como de viabilizao de suas estratgias de organizao e associao, objetivando promover, fortalecer, expandir e consolidar estratgias de gerao de trabalho e renda e o desenvolvimento local com base no princpio da solidariedade. Hoje existem, no Brasil, mais de oitenta incubadoras universitrias comprometidas com a consolidao e a integrao das cooperativas populares e outros empreendimentos solidrios, desenvolvendo e disseminando conhecimentos e tecnologias. A Rede Unitrabalho, criada em 1996, interligando cerca de noventa universidades, assiste hoje empreendimentos de economia solidria em 36 universidades. Da mesma forma, vejo como muito positiva65

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a incluso da matria empreendedorismo, oferecida em diferentes cursos de graduao da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Com isso, quer-se mudar um pouco a mentalidade de que se vai para a universidade para arrumar um bom emprego. O objetivo possibilitar a formao de agentes transformadores, com iniciativa, empreendedores. Como universidade pblica espera-se que a Unesp tambm forme empreendedores para a economia solidria e no s para o mercado capitalista. O envolvimento das universidades tem sido importante no apoio economia solidria tanto pela sua capacidade de pesquisa quanto pela elaborao terica e formao de tcnicos. A formao socioprofissional implica tanto uma formao especfica, que diz respeito a cada empreendimento solidrio, quanto uma formao geral, que diz respeito necessidade de entender o empreendimento solidrio num certo contexto, numa perspectiva de cooperao comunitria. Os projetos de economia solidria precisam de formao nos locais de trabalho para atender s necessidades das redes e cadeias produtivas e para construir novas tecnologias, com vistas a se tornarem, realmente, uma alternativa econmica, ecolgica e justa. Muitos desses cursos de formao socioprofissional tratam das questes do cooperativismo e da autogesto, mas tambm da comercializao e da gesto. Eles so muito procurados e os resultados so66

imediatamente sentidos. Eles contribuem para com o desenvolvimento local e tambm para com a elevao da escolaridade dos trabalhadores, com o fortalecimento das redes, com a criao de novas parcerias, de novos empreendimentos, ampliando o capital cultural dos participantes e as possibilidades de uma vida melhor. Em relao formao, a IV Plenria Nacional de Economia Solidria (FBES, 2008, p. 27-28) aprovou algumas orientaes9. Segundo os participantes, ela deve ser contextualizada, emancipatria e engajada, e levar em conta as diversidades de gnero, etnia, raa e gerao e a promoo dos direitos humanos. Ela deve basear-se na concepo da educao popular como processo de construo de conhecimento. Os processos formativos devem contemplar, valorizar e promover o uso dos recursos da cultura e saberes populares locais e incluir tambm a sistematizao das experincias. As9. A IV Plenria Nacional de Economia Solidria foi realizada nos dias 26 a 30 de maro de 2008, em Luzinia (Gois), com a participao de 288 representantes das plenrias estaduais alm de 32 observadores, aps um intenso processo de discusso e organizao de encontros regionais iniciado em 2006. Alm dessas orientaes gerais, ela tirou como bandeiras prioritrias a incluso da economia solidria no ensino formal, a articulao e o fomento da Rede de Formadores em Economia Solidria, indicando a necessidade do estabelecimento de um Programa Nacional de Assistncia Tcnica em Economia Solidria.67

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metodologias desenvolvidas devem propiciar vivncias que dialoguem com a realidade e linguagens dos grupos produtivos, educando para o compartilhamento do trabalho e do cuidado com as pessoas. As prticas formativas devem estar articuladas em nvel local, regional, territorial e nacional, levando em considerao os problemas e as necessidades das pessoas e dos grupos. A formao tcnica deve promover a autonomia e a emancipao com vistas superao do trabalho alienado e a diviso sexual do trabalho. rEdES dE Economia Solidria A economia solidria no pode ser vista como um conjunto de prticas econmicas perifricas e informais no interior de uma economia capitalista. Ela pressupe uma nova forma de relacionamento, organizao, metodologia de trabalho, formas de troca que busquem, antes de tudo, resgatar a dimenso humana nas relaes econmicas e sociais (Verardo, 2005, p. 124). Nesse sentido, a economia solidria tem muitas possibilidades de crescer e de tornar-se uma fora transformadora real de nossa sociedade. Novos mercados esto se formando. Com a automao crescente, por exemplo, o grande mercado do futuro ser a cultura, a comunicao, a informao e as relaes sociais e humanas, um campo muito promissor para68 69

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a economia solidria. O contato humano, os afetos, os vnculos, a solido, exigiro da sociedade a expanso ainda maior do uso das novas tecnologias, do trabalho e da produo em torno desses temas. Isso particularmente visvel hoje na expanso dos celulares que possibilitam a comunicao em tempo real, mostram o quanto a necessidade de contato humano est impulsionando o surgimento de novas tecnologias e muito trabalho est envolvido nele. O ser humano precisa comunicar-se constantemente com o outro, necessita do outro, da solidariedade do outro. Como ser incompleto, inconcluso e inacabado (Paulo Freire), o ser humano tem necessidade da alteridade para sua completude. Hoje os meios de comunicao esto marcados pelo esprito mercantilista da emisso de comunicados: existem muitos meios de comunicao que no possibilitam realmente a comunicao, mas a pura propaganda. contra essa mercantilizao da vida que as redes de economia solidria podem responder positivamente e serem amplamente aceitas como bens de uso pelas pessoas. Esse um mercado (solidrio) que pode ter enorme expanso. Marcos Arruda, um estudioso e militante desta alternativa, aponta vrias estratgias e conceitos que hoje orientam as redes de economia solidria1:1. Entre outras redes, podemos mencionar a Rede Brasileira70

o conceito de mercado solidrio, como outra maneira de ver a relao de trocas; a ideia do modo solidrio de formao de preos, atravs da transparncia de custos; a ideia da eficincia sistemtica, e no s a eficincia de cada empreendimento, porque na economia solidria interessa tanto o comportamento de cada empresa, como a do sistema inteiro, em relao s necessidades e aspiraes de toda a sociedade; a vantagem do modelo cooperativo em lugar do competitivo, tanto individual, quanto sistmico; a ideia das empresas como comunidades, com finanas no mais concentradas e sim nas mos dos que geram as riquezas; a integrao solidria e fraterna entre os povos; uma nova governabilidade global, dentro do paradigma da partilha, da reciprocidade e os valores da complementaridade, da ajuda mtua e da colaborao solidria, como fundamentos de uma globalizao diferente, uma globalizao dade Socioeconomia e a Rede de Economia Solidria do Frum Social Mundial. Um exemplo importante de rede a Via Campesina. uma rede internacional de movimentos camponeses que congrega, segundo seus dirigentes, mais de cem milhes de trabalhadores rurais de todo o mundo. Dela participam: o MST, o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), a Comisso Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), entre outros.71

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solidariedade, da cooperao e da amorosidade entre todos. (Arruda, 2003, p. 31)2 Marcos Arruda aponta a importncia do software livre como prtica da economia solidria. Isso tambm reconhecido por Paul Singer quando sustenta que a economia solidria no est fadada a permanecer sempre marginal. Seu progresso a leva a penetrar em novas reas: a produo cultural popular, mas tambm refinada, a informtica (pelo software livre e pelas plataformas wiki de colaborao ilimitada), a investigao cientfica (os trabalhos publicados de autoria coletiva sobrepujando os de autoria individual), a tecnologia avanada etc. (Singer, 2008, p. 31). Essa viso da economia solidria compartilhada por outros importantes defensores dessa outra economia, como o deputado federal Eudes Xavier. Segundo o deputado, o software livre tem os mesmos princpios2. Este texto de Marcos Arruda est contido nos Cadernos da Fundao Lus Eduardo Magalhes Economia Solidria, editados em Salvador (BA), em 2003. Neles esto transcritas as conferncias dos especialistas que participaram do Seminrio Internacional sobre Economia Solidria, entre eles: Ana Miyares, Caio Greve, Cheikh Guye, Dione Manetti, Euclides Mance, Gonalo Guimares, Jean-Louis Laville, Joaquim Melo, Jos Antonio Gediel, Jos Lus Coraggio e Marcos Arruda. Em sua contribuio, Euclides Mance (p. 73-74) aponta como prticas da economia solidria: a autogesto, o comrcio solidrio, o microcrdito, os clubes de troca, o consumo crtico e o software livre.72

da Economia Solidria, ou seja, a democratizao e socializao do conhecimento e do saber voltado para todos(as) e no apenas para quem detm o capital (Xavier, 2008, p. 25). Segundo Jean-Louis Laville, Jean Paul Marechal e Bernard Eme (2001), os empreendimentos solidrios orientam-se pelos princpios do comrcio equitativo e da incorporao de regras de proteo dos produtores, dos consumidores e do meio ambiente; pela preocupao com a troca recproca de saberes e de sistemas, evitando o risco do crescimento invasivo e pela preocupao com o desenvolvimento associativo. A economia solidria trouxe uma nova concepo de usurio, entendido no como mero consumidor, mas como parte do mesmo projeto de transformao do mundo e do modo de produo e de reproduo da existncia. Os usurios no so puros clientes. So membros associados a uma causa. A livre adeso um princpio do cooperativismo. assim que concebemos a chamada fidelizao, no s ao produto, mas tambm causa. Uma nova relao entre oferta e demanda. uma ruptura radical com a concepo capitalista de consumidor ou cliente. Mais do que um retorno ao passado e economia domstica, a economia solidria est voltada para o mercado do futuro, para o mercado planetrio e profissional, apoiada numa concepo de estado social. A economia solidria precisa consolidar-se como uma73

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alternativa economicamente vivel e mais avanada economia capitalista insolidria. Se, de um lado, a diversidade3 e a pluralidade4 dos empreendimentos solidrios se constitui numa grande riqueza, por outro lado, ela dificulta muito uma viso de conjunto e a sua necessria regulao. A relao pblico-privado, na economia solidria, apesar de ter crescido tanto, est longe de ter regras claras. A economia de hoje est regulada para servir aos interesses capitalistas. Como diz John Holloway (2003), o estado hoje uma forma do capital e no tem3. O movimento de economia solidria recente, mas j compreende uma enorme diversidade de prticas, entre elas: de produo, de distribuio, de comercializao, de consumo, poupana e crdito. So atividades organizadas na forma de cooperativas, federaes, associaes, empresas autogestionrias, organizaes comunitrias, redes de cooperao, entre outras. 4. A economia solidria plural. Paul Singer chega a dizer que a economia solidria to desigual quanto o Brasil, tem economia solidria pobre e miservel, e tem tambm a rica. O que quer dizer rica? So principalmente as empresas recuperadas. Elas j nascem com capital, mesmo que muitas vezes pequeno, insuficiente e dilapidado (...). A economia solidria pobre e carente tem grandes dificuldades de se consolidar e se viabilizar economicamente (Singer, 2006, p. 20). Na verdade, do ponto de vista ideolgico existe uma nica economia solidria. Mas, concordo com Singer: existe uma economia solidria mais estruturada e outra mais frgil. Diante disto alguns falam na existncia de economias solidrias, o que pode levar fragmentao.74

nenhum interesse em mudar essa regulao. O marco legal da economia solidria ainda muito precrio. S o crescimento, a organizao e a estruturao da economia solidria, ao tornar-se uma fora social abrangente, poder forar o estado a reconhec-la e a proteg-la juridicamente. Como diz Marx no prefcio do seu livro Introduo crtica da economia poltica, o direito est sempre atrasado em relao ao movimento social: as mudanas ocorrem primeiro na infraestrutura da sociedade para se refletir, depois, na superestrutura do estado. A economia solidria, em termos mundiais, ainda hoje, em muitos casos, uma economia social, alternativa, restrita a um terceiro setor, sem fins econmicos etc. Da a necessidade urgente de um trabalho de construo de redes globais de economia solidria. No Brasil, esse quadro est mudando rapidamente. Aqui, o movimento de economia solidria j uma realidad