254
ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA

PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

Page 2: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

ReitoraNádina Aparecida Moreno

Vice-ReitoraBerenice Quinzani Jordão

Page 3: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

Luís Miguel Luzio dos SantosBenilson Borinelli

Sinival Osório Pitaguári(Organizadores)

ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

Londrina2011

Page 4: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

EditORaçãO ELEtRônicaMaria de Lourdes Monteiro

caPaPietro Luigi Ziareski

REViSãOElizete da Silva

E19 Economia solidária numa pluralidade de perspectivas / Luís Miguel Luzio dos Santos, Benilson Borinelli, Sinival Osório Pitaguári (organizadores). – Londrina : UEL, 2011. 254 p.: il.

ISBN 978-85-7846-099-0 Inclui Bibliografia

1. Economia solidária – Paraná. 2. Cooperativismo – Paraná. 3. Solida-riedade – Paraná. I. Santos, Luís Miguel Luzio dos. II. Borinelli, Benilson. III. Pitaguári, Sinival Osório.

CDU 334(816.2)

Catalogação elaborada pela Bibliotecária Roseli Inacio Alves CRB 9/1590

Page 5: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

5

SUMÁRIO

Prefácio ....................................................................................................

Introdução ...............................................................................................

Competição ou Cooperação, Solidariedade ou Individualismo: a natureza humana em debate.................................................................Luís Miguel Luzio dos Santos; Bernardo Carlos S. Chiachia Matos de Oliveira

Empreendimentos de Economia Solidária e seu Aporte ao Desenvolvimento Local ........................................................................Maria Nezilda Culti

Questão Socioambiental, Cultura Política e Cidadania no Brasil ........................................................................................................Benilson Borinelli; Fabio Lanza

O Mapa dos Empreendimentos de Economia Solidária de Londrina –PR ..........................................................................................Irene Lopes Salvi; Sirlei Rose Martos; Ana Claudia Bansi; Luis Miguel Luzio dos Santos

Parceria Entre Economia Solidária e Poder Público: avanços e desafios da Coopersil ............................................................................Luís Miguel Luzio dos Santos; Joseane de Lima; Thayla Ferreira

As Relações de Poder e a Economia Solidária”Dayanne Marciane Gonçalves; Mauro Guilherme Maidana Capelari; Luis Miguel Luzio dos Santos

Cooperativismo e Economia Solidária: teoria e prática na COPAVI – Paranacity PR .....................................................................Edson Elias de Morais; Fabio Lanza; Luis Miguel Luzio dos Santos; Sílvia Schroeder Pelanda

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia ..................................................................................................Francisco Quintanilha Véras Neto

7

11

17

33

49

73

93

109

137

167

Page 6: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

6

Políticas Públicas e a Aventura da Comercialização na Economia Solidária: uma experiência em Londrina............................................Benilson Borinelli; Luis Miguel Luzio dos Santos; Sinival Osório Pitaguári

Nas Meadas do Barbante: a precarização das condições de trabalho das Crocheteiras na Região do Vale do Ivaí ...................Marcio Pascoal Cassandre; Valdir Anhucci; Wagner Roberto do Amaral; Emília Vella Falleiros Neta; José Stefferson Pessoa Lellis; Juscilene Chved

Trabalho, Contemporaneidade & Psicologia Social: notas e outros apontamentos sobre a produção de grupos de geração de renda no Programa Economia Solidária ............................................Márcio Alessandro Neman do Nascimento

Dados sobre os autores ...........................................................................

197

217

233

251

Page 7: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

7

PREFÁCIO

De saída, uma grande honra ser convidada para prefaciar uma obra de tamanha magnitude do ponto de vista do seu tema, da seriedade e dedicação de seus autores e da qualidade da produção que de um modo prazeroso e competente, articula fundamentos teórico-metodológicos com a análise de experiências vividas em alguns municípios da região norte do Estado do Paraná. Um exercício democrático e plural do pensamento contemporâneo acerca das idéias que circundam a Economia Solidária brasileira, envolvendo os mais diferentes aspectos, dilemas e contradições daquilo que é a própria natureza desse campo em construção.

Sinceramente, me emocionei ao fazer a leitura dos artigos e poder contrastar a história e realidades tão recentes, a evolução e maturidade do debate, a escolha de referências e categorias analíticas inquestionáveis, matizando os conceitos e reflexões numa realidade regional/local, que por certo expressa muito da experiência brasileira e particularmente, algumas que já transcenderam fronteiras.

Vi pelo Brasil afora e agora revivi neste texto a riqueza das possibilidades, oportunidades e grandes desafios postos pela proposta de uma Economia Solidária, que ousa enfrentar ou não, pensamentos e práticas conservadoras, individualistas, segregadoras e de reprodução da subalternidade dos trabalhadores e agentes comunitários. Ao mesmo tempo, a descoberta dos sujeitos na construção de um novo campo de criação e organização coletiva, cujos resultados alavancam novas concepções e paradigmas de desenvolvimento local, sócio-territorial, econômico-social e cultural. Essa aposta de horizonte comum, nas mais diferentes dimensões aqui retratadas, aprofunda e explicita a complexidade e exigência de compromissos e aprendizados por todos àqueles que se dedicam ao tema: pesquisadores, formuladores, gestores, militantes e dirigentes.

Neste sentido, é admirável como os conteúdos dos artigos aqui apresentados articulam e abrangem um conjunto diversificado de abordagens e reflexões que anunciam e denunciam as perspectivas e contradições do objeto em pauta. Além disso, uma leitura cuidadosa já dos títulos, identifica os inúmeros elementos constitutivos dos estudos, pesquisas e experiências relatadas e analisadas que se integram e complementam. Das ciências nominadas às diversas profissões e profissionais que se encontram em ação; os temas afetos sobre cooperativismo, associativismo, arranjos produtivos locais, incubação de empreendimentos solidários, processos de produção,

Page 8: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

8

comercialização e acesso; geração de trabalho e renda, inclusão produtiva; urbano e rural, relação estado e sociedade, poder público e 3º setor; políticas públicas; temas transversais do desenvolvimento local, socioambiental, territorial, da cultura política, gênero, direitos sociais; categorias analíticas de poder, trabalho, cidadania, desigualdade, participação, entre outras; temas de gestão como planejamento, orçamento, organização, recursos humanos e institucionais, informação e comunicação. Enfim, um aporte teórico e metodológico significativo e consistente para os objetivos da publicação.

Apesar de não estar na centralidade do texto, pelas razões já demonstradas, o debate atual sobre o papel do Estado, dos governos e das políticas públicas brasileiras no contexto da Economia Solidária, toda a obra faz referências relevantes à realidade sócio econômica brasileira, aos indicadores sociais e de desenvolvimento do Brasil, as causas estruturais do comprometimento das condições de vida do povo brasileiro, da pobreza e desigualdade vividos, apontando que a Economia Solidária pode ser um espaço político e instrumento qualificado e concreto de interlocução com as políticas econômicas e sociais do país e que as formulações e experiências já acumuladas, denotam avanços e conquistas de traço democrático, participativo e de produção coletiva e cooperativa indispensáveis a essa alternativa econômica e social. Alguns artigos tratam de experiências e projetos no âmbito da Economia Solidária, vinculados ao poder público ou financiados com recursos públicos, das várias esferas de governo. Este é um tema ainda a ser bastante explorado. Qual é o papel do Estado e dos governos neste campo?

É importante destacar que também a Economia Solidária brasileira, ganha força e espaço no debate político e na esfera pública, a partir da Constituição de 1988, que introduz as diretrizes de Universalização de acesso aos direitos, Descentralização político-administrativa e Participação da sociedade, com enfática responsabilização do Estado na condução das políticas sociais, o que vai fomentar e exigir um novo modelo de gestão das políticas públicas, com o advento das conferências e conselhos de políticas públicas, financiamento público e planos setoriais, além da estruturação de sistemas públicos, a exemplo do SUS, SNE, SUAS, SISAN. A presente obra faz várias menções a programas sociais públicos e rede de serviços, contextualizando para a Economia Solidária.

Por fim, nos últimos anos principalmente, o debate das políticas sociais vem inserindo como desafio a ser enfrentado, a perspectiva da intersetorialidade, não só para superar a antiga crítica de fragmentação das políticas e práticas adotadas, mas como exigência para um novo modelo

Page 9: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

9

de desenvolvimento no país, onde as necessidades sociais, econômicas e políticas, o acesso aos direitos e a realização do potencial humano tenha de fato a perspectiva coletiva articulada, com a interação das várias dimensões da vida e das aquisições materiais e imateriais asseguradas. E neste livro, conforme demonstrado, a Economia Solidária tem um alto grau de possibilidades de participação e articulação intersetorial, onde se associam as várias políticas sociais e o protagonismo dos sujeitos que podem construir e reconstruir saberes e fazeres, enfrentando as próprias contradições do pensamento e das práticas, com vistas a um novo patamar civilizatório de produção e reprodução coletiva e solidária da vida. Boa leitura!

Márcia Helena Carvalho Lopes1

1 Mestre em Serviço Social, Professora da Universidade Estadual de Londrina e Ministra de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 2010.

Page 10: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS
Page 11: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

11

INTRODUÇÃO

A presente obra representa um esforço coletivo de diferentes autores e pesquisadores para compreender o fenômeno da Economia Solidária na região Norte do Estado do Paraná, por meio de distintas abordagens e perspectivas de análise. Inicialmente, apresentam-se textos que se concentram em enfoques conceituais relativos ao tema principal ou correlacionados a ele, expondo-se o contexto que lhe dá abrigo e debatendo os seus principais elementos constituintes. Posteriormente, apresentam-se experiências empíricas de Economia Solidária que vêm se destacando na região e que são analisadas sob diferentes óticas, considerando a heterogeneidade de saberes derivada das variadas áreas de conhecimento s a que pertecem o corpo de autores.

O primeiro artigo, “Competição ou Cooperação, Solidariedade ou Individualismo: a natureza humana em debate”, de Luís Miguel Luzio dos Santos e Bernardo Oliveira, desenvolve uma discussão teórica em torno da primazia da solidariedade ou do individualismo em relação à natureza humana. Seria a solidariedade humana condicionada pela natureza biológica ou uma questão cultural que ultrapassa qualquer possível determinismo biológico? Esse estudo busca analisar o fenômeno da solidariedade e sua correlação com a vida em sociedade sob a perspectiva da complexidade, através de uma análise transversal, visando abarcar o fenômeno em questão com diferentes olhares. Para tanto, recorreu-se à sociobiologia e, também, a sua interpretação nas ciências sociais. Buscou-se, assim, renunciar à ideia ou ao projeto de solução definitiva e totalizadora e aproxima-se dos pressupostos do pensamento complexo, que se apóiam justamente na superação de um único princípio organizativo, ou de uma única causa, para a explicação do mesmo fenômeno. Percebeu-se, então, a necessidade de novas experiências societais, que possam obstaculizar o avanço do paradigma competitivo individualista como única alternativa, com destaque para as experiências de economia solidária e organizações do terceiro setor.

No segundo artigo, “Empreendimentos de Economia Solidária e seu Aporte ao Desenvolvimento Local”, a autora Maria Nezilda Culti faz uma análise preliminar referente à questão do desenvolvimento, seus impasses e incongruências. Nesse momento, apresenta as teorias de desenvolvimento local ou territorial endógeno as quais vieram ressaltar o papel do planejamento e o investimento estatal para o desenvolvimento,

Page 12: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

12

bem como a importância do encadeamento de atividades locais, evitando-se os vazamentos de renda para outras regiões e, nesse sentido, o caminho mais apropriado para o desenvolvimento está alicerçado em se descobrir e valorizar a cultura, tradição, história e aspectos físicos e naturais do local. Nesse sentido, a Economia Solidária ganha destaque por incidir exatamente sobre a debilidade de se encontrarem modelos organizacionais adequados para a realidade do desenvolvimento local.

O artigo três, “Questão Socioambiental, Cultura Política e Cidadania no Brasil”, de Benilson Borinelli e Fabio Lanza, traz à tona traços da cultura brasileira, presentes nas relações com o meio ambiente, que impedem a constituição de sujeitos para uma gestão pública dos recursos ambientais. Trata-se, sobretudo e inicialmente, de perceber a cultura política e sua relação com o Estado como um problema para a gestão democrática do meio ambiente, das políticas públicas e para a consolidação da cidadania no Brasil. A relação entre democracia e meio ambiente exprime uma face da totalidade da vida social em que a desigualdade ambiental - o acesso aos recursos e serviços naturais - está entrelaçada com a desigualdade social, política e econômica, sendo, contudo, mais ampla e profunda em relação às mudanças implicadas. Por seu caráter essencial à vida humana em certas condições de oferta, os recursos naturais são, por excelência, públicos e de uso comum, porém também finitos no tempo e no espaço. Sua escassez natural ou socialmente definida é de interesse coletivo, pois expressa as possibilidades e formas de vida no presente e no futuro da vida em sociedade. É por meio da cultura que essas possibilidades e formas de interação entre a sociedade e a natureza podem ser conhecidas, criticadas e transformadas no que diz respeito ao acesso, à preservação e ao uso desses recursos como formas de poder social.

O quarto artigo, “O Mapa dos Empreendimentos de Economia Solidária de Londrina –PR”, de autoria de Irene Lopes Salvi, Sirlei Rose Martos, Ana Claudia Bansi, Luis Miguel Luzio dos Santos, parte de uma contextualização da realidade socioeconômica atual, considerando as suas inúmeras incoerências e impactos socioambientais, o que coloca em risco a própria sustentabilidade da vida humana. A partir da análise dessa realidade desastrosa, aponta-se para a necessidade de mudanças profundas nas estruturas econômicas dominantes, o que nos leva a repensar os próprios modelos organizacionais tradicionais, fazendo emergir a proposta da Economia Solidária que parte da centralidade do ser humano ao capital, dentro de um processo de democratização e sustentabilidade das relações ecossocioambientais. O artigo traz um mapeamento das

Page 13: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

13

iniciativas de Economia Solidária presentes na cidade de Londrina/PR, buscando caracterizar seu perfil, assim como fazer a distinção entre as várias experiências, ressaltando potencialidades e limitações dessas organizações.

O quinto artigo, “Parceria Entre Economia Solidária e Poder Público: avanços e desafios da Coopersil”, de autoria de Luís Miguel Luzio dos Santos, Joseane de Lima e Thayla Ferreira, destaca as contradições de um crescimento econômico que atinge patamares cada vez mais elevados em todo o Brasil e, ao mesmo tempo, uma quantidade expressiva de habitantes ainda luta pela simples sobrevivência. Nesse sentido, uma das propostas que mais vem se destacando com a perspectiva de inclusão social, são os empreendimentos de Economia Solidária que se apresentam sob o formato de cooperativas de autogestão, compostas por desempregados ou subempregados que veem nestas experiências a possibilidade de geração de trabalho e renda. Este estudo propõe-se a levantar o contexto, perfil, desafios e perspectivas dos integrantes da Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina (Coopersil), a qual se encontra no início de suas atividades na cidade. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que se baseou em documentos e entrevistas junto aos principais líderes das associações que deram origem à cooperativa. Pode-se perceber a enorme carência de recursos, inclusive de informação, mas são inegáveis os avanços já alcançados com a formação da cooperativa e, em especial o modelo de parceria estabelecida com a Prefeitura Municipal de Londrina.

Em “As Relações de Poder e a Economia Solidária”, os autores Dayanne Marciane Gonçalves, Mauro Guilherme Maidana Capelari e Luis Miguel Luzio dos Santos buscaram identificar a existência de relações de poder, com base na ideia de poder disciplinar de Focault (1979), na comunidade 12 (doze) tribos, comunidade estruturada dentro dos princípios da autogestão, não possuindo um corpo diretivo formal. Para tanto, utilizou-se a metodologia não convencional chamada “Fenomenológica”, por meio da técnica de etnografia ou observação participante, e de entrevistas não estruturadas, com a inserção de dois pesquisadores de sexos opostos (no caso os autores) no convívio das atividades e tarefas cotidianas da comunidade. Observou-se que a comunidade de Israel Doze Tribos apresenta uma pseudo-autogestão, tendo em vista que existem relações de poder nos arrolamentos de trabalho, bem como uma hierarquia informal, a qual determina coordenadores e membros do conselho responsáveis pelas decisões estratégicas de negócios da comunidade. Conclui-se, portanto, que apesar desta entidade possuir princípios fundamentados na igualdade,

Page 14: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

14

fraternidade e solidariedade, não deixa de apresentar manifestações de certas relações de poder para manter a ordem e a disciplina dentro dos 4 (quatro) poderes de disciplina definidos por Focault (1979): olhar hieráquico, registro do conhecimento, controle do tempo e organização do indivíduo no espaço.

O sétimo artigo, “Cooperativismo e Economia Solidária: teoria e prática na COPAVI – Paranacity PR”, desenvolvido por Edson Elias de Morais, Fabio Lanza, Luis Miguel Luzio dos Santos e Sílvia Schroeder Pelanda, trata de um estudo realizado na Cooperativa COPAVI ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), e que representa uma experiência exitosa de Economia Solidária no meio rural, mais especificamente em Paranacity, na região Noroeste do Paraná. Os temas desenvolvidos nesse trabalho envolvem as discussões sobre desenvolvimento capitalista, propostas atuais da Economia Solidária, organização produtiva com autogestão, democracia participativa, sustentabilidade ambiental e novas formas de sociabilidade. Os resultados da observação, análises e interpretações indicam outras perspectivas para o século XXI, a partir da propriedade coletiva, para o enfrentamento das contradições oriundas do desenvolvimento capitalista.

Em “Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia”, Francisco Quintanilha Véras Neto procura promover uma leitura parcial dos dados contidos no Atlas da Economia Solidária, revelando a complexidade do cenário de constituição da economia solidária através de indicadores estatísticos. O artigo intenta estabelecer uma breve reflexão acerca da questão da formatação sócio-jurídica da economia solidária nos quadros do Atlas da Economia Solidária de 2005, apontando quais são os aspectos centrais destacados nos dados deste inventário. Ele apresenta a economia solidária com 11% dos empreendimentos autogestionários do tipo cooperativo e revela, também, o amadurecimento inter-regional destas experiências, o que é de suma importância para a compreensão de sua relevância nas teias econômicas e sociais dentro da realidade nacional.

De autoria de Benilson Borinelli, Luis Miguel Luzio dos Santos e Sinival Osório Pitaguári, o artigo “Políticas Públicas e a Aventura da Comercialização na Economia Solidária: uma experiência em Londrina” apresenta algumas questões constatadas na operacionalização de um projeto de extensão universitária (PROSOL), da Universidade Estadual de Londrina. Tal projeto objetivava a criação de uma rede de apoio à comercialização de produtos de socioeconomia de grupos de produção incubados pelo Centro Público de Economia Solidária de Londrina.

Page 15: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

15

Os dados desse estudo exploratório foram levantados em documentos, entrevistas e na observação direta de acontecimentos. A análise centra-se num experimento de produção coletiva, a “Operação Colomba Solidária”, que visou compreender as potencialidades e limitações na implementação da política pública de Economia Solidária em Londrina. O trabalho lança luz sobre o universo, as possibilidades e restrições para a criação de novos arranjos institucionais e tecnológicos para a viabilização da comercialização de produtos de Economia Solidária.

“Nas Meadas do Barbante: a precarização das condições de trabalho das Crocheteiras na Região do Vale do Ivaí”, os autores Marcio Pascoal Cassandre, Valdir Anhucci, Wagner Roberto do Amaral, Emília Vella Falleiros Neta, José Stefferson Pessoa Lellis e Juscilene Chved tratam da precarização das condições de trabalho, a partir da década de 1990 com o advento das políticas neoliberais que resultaram na submissão dos trabalhadores a condições desumanas para sobreviverem. Tal precarização expressa-se em logas jornadas de trabalho, baixos salários e a ausência de todo e qualquer direito previsto na legislação trabalhista nacional. No Brasil, embora a Constituição Federal de 1988 garanta o direito ao trabalho, não têm se efetivado políticas públicas capazes de garantir trabalho digno para boa parte da população. Diante desse contexto, muitos trabalhadores buscam, de alguma forma, manter-se economicamente ativos, travando uma luta contínua e incessante na geração de trabalho e renda. Esse é o cotidiano de alguns grupos de mulheres que residem no Sul do Brasil, mais precisamente no estado do Paraná, em uma região conhecida como Vale do Ivaí. Trata-se das “Crocheteiras em Barbante”, que fabricam tapetes artesanais, comercializados em grandes cidades brasileiras. Essas trabalhadoras foram excluídas do mercado de trabalho e, como forma de sobrevivência, submetem-se a condições degradantes e precárias de trabalho.

O artigo onze, “Trabalho, Contemporaneidade & Psicologia Social: notas e outros apontamentos sobre a produção de grupos de geração de renda no Programa Economia Solidária”, de autoria de Márcio Alessandro Neman do Nascimento, destaca a crise recorrente no mundo do trabalho, conduzindo a quebras nos paradigmas tradicionais na relação trabalho-sujeito-produção. O artigo em questão tem por objetivo relatar e refletir a experiência de acompanhamento de grupos do Programa Economia Solidária de uma região do município de Londrina/PR. Buscou-se, na análise do discurso desses protagonistas, indicações sobre as condições facilitadoras e as dificuldades encontradas pelos integrantes dos grupos para o estabelecimento da formação e aspectos que mantêm a continuidade

Page 16: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

16

dos constituintes dos grupos de geração de renda. A análise dos dados (trazidos por incursões ao campo, grupo focal e conversas informais) foi tratada à luz das propostas construcionistas de autores pós-estruturalistas, como Foucault. Por fim, obteve-se um panorama micropolítico indicado por marcadores sociais e categorias de análise, também problematizados pela construção de conhecimento na Psicologia Social.

Este livro nasceu do engajamento de diversos homens e mulheres que apostam na Economia Solidária, apostam numa nova cultura de sociabilidade. Pessoas que já aprenderam a fazer dos desafios combustível para mover sonhos e projetos. Apesar dos reveses e de suas idiossincrasias e conflitos, ainda estão convictos de que vale a pena continuar a falar, a escrever e a fazer a Economia Solidária, pois ela guarda o potencial crítico que pode transformar as relações sociais desde agora. Tomando emprestada a ideia de cultura crítica de Marshall Berman1, a Economia Solidária deve ser vista também como aquela cultura engajada ativamente na questão de como os seres humanos devem viver e qual o significado de nossas vidas. Como no campo das apostas, torcemos para que este livro possa apresentar a Economia Solidária, esclarecê-la e, assim, talvez, inspiremos novos adeptos e pessoas dedicadas a pesquisar o tema.

1 BERMan, Marshall. nostalgia dos 60. Folha de São Paulo. caderno Mais! 2 jul. de 2000.

Page 17: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

17

COMPETIÇÃO OU COOPERAÇÃO, SOLIDARIEDADE OU INDIVIDUALISMO:

A NATUREzA hUMANA EM DEbATE

Luis Miguel Luzio dos SantosBernardo Carlos S. Chiachia M. de Oliveira

1 Introdução

Muitas são as definições e perspectivas em relação ao conceito de solidariedade, devendo-se fugir da ideia de consenso ou de um idealismo simplista que tende a obscurecer contradições e embates. No entanto, o ideal da solidariedade povoa o inconsciente coletivo, podendo-se encontrá-la em diferentes períodos históricos, regiões, culturas e ideologias, ainda que cada um a revista de singularidades o que alimenta o seu pluralismo.

Para conceituar solidariedade, temos que recorrer à própria etimologia da palavra, cuja origem latina remete à solidum, que significa totalidade, soma total, ou ainda, Solidus, que significa sólido, maciço, inteiro. Quando se busca a definição sociológica de solidariedade, o Dicionário Michaelis (2009) indica que se trata de uma: “Condição grupal resultante da comunhão de atitudes e sentimentos, de modo a constituir o grupo unidade sólida, capaz de resistir às forças exteriores e mesmo de tornar-se ainda mais firme em face da oposição vinda de fora”. No Dicionário Aurélio (2010), ainda que haja uma conceituação próxima, chama atenção a expressão “vínculo recíproco” como inerente ao conceito de solidariedade, o que remete à mutualidade e a uma relação de dupla face.

Quando se tenta entender o fenômeno da solidariedade partindo de suas raízes biológicas, encontram-se explicações distintas, que tanto se complementam como se conflitam. Uma das correntes mais fortes dentro da biologia contemporânea parte da explicação darwiniana da evolução via seleção natural das espécies, porém esta tese encontra variados desdobramentos, destacando-se a tese que percebe a evolução como um processo de concorrência entre genes, que tende a privilegiar os mais aptos em detrimento dos demais. Outras vertentes, no entanto, dão destaque à capacidade de empatia e cooperação como a principal força motriz da evolução biológica.

Quando a discussão ultrapassa o campo das ciências naturais e adentra na esfera das ciências sociais, aumenta a complexidade de análise e

Page 18: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

18

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

se expõem, de forma mais contundente, as distintas abordagens em torno da questão da solidariedade. Enquanto uma das vertentes explicativas apoia-se na raiz darwiniana para justificar posições individualistas e competitivas como predominantes no gênero humano, de forma contrária, uma segunda corrente privilegia a compreensão dos aspectos culturais, históricos e políticos como determinantes na construção da vida em sociedade.

A grande questão é se a solidariedade humana é condicionada pela natureza biológica a que estamos subordinados, ou é uma questão cultural que ultrapassa qualquer possível determinismo advindo das ciências da natureza? Essa é uma complexa indagação que não encontra respostas fáceis, muito menos definitivas, e é nesse emaranhado de possibilidades e de correntes interpretativas, muitas vezes opostas e contrastantes e em outros casos complementares, que se busca analisar o fenômeno da solidariedade e sua correlação com a vida em sociedade.

Este artigo busca apresentar a questão da solidariedade sob a perspectiva da complexidade, fazendo uma análise transversal que tenta abarcar o fenômeno sob diferentes olhares. Nesse sentido, houve um esforço em entender a solidariedade dentro da perspectiva biológica, de forma mais específica da sociobiologia, e também sua interpretação dentro das ciências sociais. Percebe-se que os embates não se fazem presentes somente entre distintos campos da ciência, mas também dentro de cada um destes, o que obriga a uma compreensão considerando as múltiplas conexões estabelecidas.

O presente estudo é classificado como de natureza qualitativo-descritiva e bibliográfico, em que se analisam algumas das principais correntes teóricas dentro das ciências biológicas e das ciências humanas, que se debruçam em compreender o fenômeno da solidariedade e como ele se expressa no humano e em seus arranjos societais. Sabe-se, a priori, das limitações desse estudo por se tratar de uma área de fronteira que envolve um complexo emaranhado de conexões interagentes, as quais impossibilitam a captação integral do fenômeno; dessa feita, procurou-se priorizar a exposição das principais correntes interpretativas em relação à solidariedade, comparando-as e tentando perceber suas limitações e incoerências.

Têm-se mais perguntas do que respostas, mas o que se pretende com este artigo é discutir os distintos contornos que envolvem a temática da solidariedade e seus desdobramentos no humano, considerando suas raízes biológicas, sua construção cultural e seus reflexos e impactos na arquitetura dos sistemas econômicos e sociais. A multiplicidade e a complexidade das

Page 19: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

19

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

variáveis interagentes refletem-se em distintas compreensões em relação à natureza humana, ora entendendo-a como solidária, ora como competitiva ou, ainda, sem traços pré-definidos, submetendo-se a construções histórico-culturais e políticas.

2 Solidariedade e sociobiologia

A discussão em torno da própria natureza humana é fundamental quando se quer trabalhar temas que envolvem uma forte carga de valores morais e éticos, como é o caso da solidariedade. Conduzido pelo senso comum, há uma tendência a se perceber a solidariedade como algo consensual e intimamente ligado aos valores mais elementares do gênero humano, porém a busca em entender o fenômeno de forma mais aprofundada, e menos apaixonada, conduz-nos a visões mais complexas, que integram explicações distintas, que ora se confrontam ora se complementam e é nesse sentido que conhecimentos advindos de zonas de fronteira, como a sociobiologia e a antropologia, contribuem sobremaneira para melhor entender o fenômeno da solidariedade.

Edward O. Wilson (1994) foi um dos pioneiros da sociobiologia, área do conhecimento que parte da tese de que é  possível compreender o comportamento humano e da própria sociedade através de explicações biológicas, descartando a vertente científica, que explica os fenômenos sociais a partir de uma lógica distinta. O autor afirma que as descobertas da neurobiologia sobre a mente humana aproximarão, inevitavelmente, as ciências humanas das ciências naturais, já que as ciências sociais ou humanas não podem ignorar os avanços da biologia e de outras ciências da natureza e essa proximidade eminente levará a estudar a sociedade, a cultura e até mesmo as questões ligadas à ética de uma forma totalmente diferente do que acontece atualmente em que a ciência ainda está vinculada a interesses de ideologias políticas e religiosas.

A corrente ligada à sociobiologia tende a privilegiar a importância da competição como mecanismo de sobrevivência e perpetuação da espécie, ou seja, estamos, por natureza, condicionados à competição como modo de evolução e de forma oposta o altruísmo é percebido como uma característica que diminui as possibilidades de sobrevivência e de reprodução da própria vida. Aprofundando-se essa linha de raciocínio, conclui-se que o altruísta, em longo prazo, tenderia à extinção, enquanto proliferariam as espécies que manifestassem maior egoísmo e esforço na preservação do interesse

Page 20: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

20

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

individual. Essa ideia encontra suas bases fundamentadas na seleção natural de Darwin, a qual aponta a primazia da capacidade para competir como a garantia de perpetuação e evolução das espécies (DAWKINS, 2001).

Darwin avança na ideia de seleção natural apoiada em princípios meramente competitivos e propõe a noção de seleção de grupo como forma de explicar a existência do altruísmo e da solidariedade. Embora o comportamento altruísta não traga vantagens para o indivíduo isolado, estas advêm quando se analisa o grupo como um todo, em que formas mais organizadas de existência, confiabilidade mútua e coesão tendem a possuir maiores possibilidades de vitória ao disputar recursos naturais ou territórios com outros grupos menos organizados. Há, neste caso, uma seleção natural e competição baseada em grupos e não em indivíduos isolados, criando-se o conceito de seleção de grupo, ou seja, coopera-se para competir.

No início do século XX, os biólogos George C Williams e William Hamilton uniram genética e evolução, denominando-se de teoria sintética, em que inovaram ao atribuir uma importância singular aos genes na luta pela sobrevivência e na compreensão da evolução das espécies. De acordo com essa teoria, atribui-se primazia ao processo de supremacia de certos genes, como determinantes da evolução, o foco da seleção natural deixa de estar no indivíduo ou no grupo para ser atribuído aos genes que são passados entre gerações, no conceito de evolução de parentesco. A seleção natural não opera cegamente, de geração em geração, ela preserva os genes que trazem vantagens e elimina aqueles que trazem desvantagens aos organismos. Esta tese ressalta que a aptidão reprodutiva de um indivíduo não pode ser medida unicamente pelo número de filhos gerados, mas também inclui parentes próximos que carregam as partes de sua carga genética, o que é definido por Richard Dawkins com o conceito de “gene egoísta” (DAWKINS, 2001).

A premissa da perpetuação baseada na carga genética individual, compreendida pelo pensamento dos defensores da teoria sintética em que os genes buscam incessantemente fazer cópias de si mesmos ou de parentesco próximo, contrapõe-se à ideia de harmonia entre espécies, sendo esta alimentada mais por exemplos de natureza egoísta e individualista que de altruísmo e solidariedade. Até mesmo em comunidades tidas como exemplos de solidariedade natural, como no caso das colmeias, em que a cooperação é tida como irrepreensível, isto se explica pela quase totalidade de membros serem filhos da abelha rainha e logo carregarem o seu código genético, caso outras abelhas operárias resolvessem colocar ovos, estes seriam destruídos, pois o filho de uma irmã seria geneticamente mais

Page 21: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

21

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

distante que os filhos da rainha mãe; mais uma vez, o que se prioriza é a proximidade genética e não simplesmente a espécie. Ainda, de acordo com Dawkins (2001), o ser humano não ocupa um espaço à parte, mas antes segue o mesmo processo evolutivo e condicionado às mesmas leis da natureza.

Na década de 1970, Hamilton e Trivers desenvolveram uma nova teoria fundamentada no que chamariam de altruísmo recíproco, que tem como base prática a hipótese de que um auxilia o outro para ser auxiliado, colabora-se sempre que isto gere um retorno de proporções semelhantes. Este modelo apresenta como base a “teoria dos jogos”, que busca explicar as diferentes hipóteses de disputas, considerando o processo de negociação de ganhos e perdas compensatórios. De forma prática, pode-se exemplificar esta teoria com abstrações retiradas das comunidades primitivas, nas quais os homens iam à caça e distribuíam os resultados da empreita por toda a tribo; isto se dava, pois se sabia que o que tinha sido vantajoso para um, num determinado dia, poderia não o ser nos demais, o que o fazia necessitar da reciprocidade como forma de sobrevivência (RIDLEY, 2000).

Waal (2010) parte de uma perspectiva distinta dos evolucionistas tradicionais que advogam em favor da primazia da competição e do egoísmo como elementos biológicos prioritários e desenvolve sua tese em torno da capacidade de empatia encontrada em diversos animais, principalmente, primatas próximos do ser humano. O autor defende que diferentes espécies foram dotadas, através do processo evolutivo, da capacidade de se colocar no lugar do próximo, de sentir o que o outro sente e, em alguns casos, até de se expor de forma a arriscar a própria vida para salvar a do outro. Essa compreensão da realidade contrapõe-se à prerrogativa tradicional em que os elementos competitivos e egoístas emergem como responsáveis pela perpetuação da vida na terra. A evolução da vida parece apontar para a existência de uma forma de empatia que perdura há centenas de milhões de anos e que é determinante na construção de grupos mais coesos e, por isso, mais fortes e que explica a sobrevivência diante das adversidades e de predadores mais poderosos.

De acordo com Waal (2010), os padrões de conduta na política e até a noção de solidariedade não são exclusivos dos humanos e podem ser encontrados em primatas parentes do homem, o que se explica por uma raíz biológica comum. Até mesmo questões como a moralidade, geralmente vistas como exclusividade do gênero humano, também se encontram em outros primatas, que apresentam capacidade de empatia e até senso de justiça, como pode ser observado nos macacos bonobos. Essa compreensão,

Page 22: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

22

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

então, obriga a se entender a moralidade, não mais como resultado apenas de uma construção cultural, mas de uma condição biológica. Sendo assim, a natureza é a criadora da base da vida em sociedade e não o homem.

Ainda que haja uma forte dosagem de elementos biológicos que condicionam a própria natureza humana, não se pode limitar a análise da evolução humana aos aspectos meramente biológicos, já que os fatores de natureza cultural desempenham um papel essencial na definição do humano e terão de ser impressos conjuntamente com os genéticos na compreensão da realidade. A nossa evolução, como seres humanos, sempre esteve condicionada à nossa capacidade de nos relacionarmos e interagirmos uns com os outros e com o meio em que habitamos. A necessidade de cooperação, à medida que se estabeleceram formas de divisão do trabalho cada vez mais complexas, exigiu relacionamentos cooperativos e altruístas que iam muito além do universo familiar, passando a haver a necessidade de novas formas de solidariedade baseadas em laços de cooperação com estranhos. Essas novas exigências sociais teriam exercido pressão sobre a seleção entre grupos humanos, favorecendo o surgimento da moral. Sendo que se a cultura está impregnada nos genes, também os genes dependem da cultura (RIDLEY, 2000).

O modelo das sociedades atuais está dominado pela valorização das atividades competitivas e o desestímulo às atividades cooperativas, no entanto, no modelo ecológico baseado nos ecossistemas, percebe-se que a competição e a cooperação estão sempre buscando um equilíbrio dinâmico, ao passo que o darwinismo social erra ao observar na natureza apenas a competição, não percebendo o nível molecular, mais sutil por natureza, em que se manifesta a cooperação em toda a sua extensão. Nos níveis sub-atômicos da física moderna, pode-se perceber que cada partícula não tem existência independente, sendo esta essencialmente um conjunto de relações inter-conectado numa infinidade de relações, ou melhor, não existem objetos, mas conexões. As relações estabelecidas entre partículas formam a matéria. Como afirma Capra (1996): “somos todos parte de uma teia inseparável de relações”.

Há que se pensar baseando-se em processos e não em estruturas estanques. Pode-se usar a metáfora da música para melhor compreensão, em que cada nota tocada isoladamente não tem sentido, não apresenta harmonia, logo não pode ser identificada como música, a qual só se estabelece por meio de conexões, as relações estabelecidas entre diferentes notas é que formam a verdadeira música. Música, então, não é um conjunto de notas isoladas, mas ela só acontece através das múltiplas e variadas relações que se formam (CAPRA, 2002).

Page 23: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

23

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

Morin (2000) discorda da visão da sociobiologia que tenta fazer uma transposição da realidade biológica para a dimensão social humana. Na opinião do autor, trata-se de um reducionismo falho, já que não se podem estabelecer leis universais aplicáveis a qualquer fenômeno, principalmente, quando se trata de relações sociais construídas historicamente e determinadas culturalmente. Não existe um determinismo social, como advogam os defensores do determinismo biológico, considerando-se a capacidade humana de alterar a realidade à medida que se desenlaça, criando-se múltiplas possibilidades de resposta diante dos acontecimentos. O ser humano é muito mais que um simples modelo genético previamente condicionado, é repleto de elementos subjetivos que adentram no plano dos valores e da própria interpretação de mundo de cada um e de cada cultura.

A aceitação da teoria de Darwin e a sua transposição para as ciências sociais, naturalizando e reduzindo o ser humano à sua condição biológica, foi especialmente desenvolvida por Herbert Spencer, que a chamou de “sobrevivência dos mais aptos” e que se adequou muito bem à ideologia meritocrática e individualista dominantes, desde o século XVIII. Darwinismo e capitalismo formaram uma coesão que se apoiava na neutralidade e na inevitabilidade da ideologia hegemônica, o que passou a justificar as relações de dominação. Santos (2007) alerta para o fato de que a subjetividade da interpretação científica está condicionada à cultura e ao meio social em que esta está inserida; cada povo interpreta os fenômenos naturais de acordo com sua sociedade. Dessa forma, a compreensão dominante articula-se em torno de princípios socialmente construídos que são prioritariamente masculinos, ocidentais, individualistas, competitivos, exploratórios e antropocêntricos, sendo que qualquer explicação contrária a estas prerrogativas é vista como oposta à própria ciência.

3 Competição e individualismo ou cooperação e solidariedade

Quando se analisam os diferentes projetos socioeconômicos que se confrontam numa sociedade e buscam hegemonia, despontam duas propostas distintas, que tanto se confrontam como se complementam e que dizem muito da própria visão em relação à natureza humana e de como devem ser estabelecidas as prioridades dentro da estrutura social. Nesse sentido, apresenta-se a corrente centrada em torno da solidariedade/cooperação, em oposição a que vê no individualismo/competição a forma mais eficiente de organizar a vida em sociedade e que se reflete em formas

Page 24: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

24

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

distintas de institucionalização, apontando para projetos diferentes de sociabilidade.

A perspectiva individualista advoga a liberdade individual como bem maior, percebendo as instituições que visam proteger o trabalhador contra os riscos econômicos, como barreiras à expansão da própria atividade econômica, principal meio de ampliação do nível de emprego e do desenvolvimento social. Propõe-se, então, como solução o desmonte das instituições de bem-estar social e a desregulamentação do mercado de trabalho, principais entraves, segundo esta perspectiva, para a livre expansão das forças produtivas e do próprio desenvolvimento social. A vertente individualista entende as desigualdades entre indivíduos como inevitáveis, além de justificar a existência das desigualdades pelo fato de nem todos desempenharem o mesmo esforço e empenho, além de possuírem diferentes ambições materiais. Destaca-se, ainda, a variável sorte e os próprios dons inatos e meritocráticos de cada um como fatores determinantes e justificativos das desigualdades.

Vale à pena recorrer ao pensamento de Adam Smith, considerado o pai da economia moderna, um dos primeiros pensadores a defender a primazia do individualismo e da competição como formas mais eficientes de organizar a vida social.

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que ele tem pelos próprios interesses. apelamos não à humanidade, mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter (SMitH, p. 10, 2010)

Friedrich A. Hayek tornou-se um dos mais tradicionais defensores do liberalismo e do individualismo e, em seu livro “O Caminho da Servidão”, publicado na Inglaterra, em 1944, Hayek (1990) fez um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, que denuncia como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política. Ele defende a primazia absoluta da liberdade, devendo ser banida qualquer proposta que venha atentar contra este ideal maior. Hayek compartilha dos ideais de Adam Smith, mas vai além ao destacar a importância da informação e de seus inúmeros agentes que só conseguem ser coordenados e viabilizados através dos mecanismos de mercado, independentemente dos ideais competitivos ou cooperativos de cada um, não havendo a hipótese deste conjunto ilimitado de informações ser apreendido por um único organismo coordenador.

Page 25: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

25

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

chamar de privilégio a propriedade privada como tal, que todos podem adquirir segundo as mesmas normas, só porque alguns conseguem adquiri-la e outros não, é destruir a palavra privilégio do seu significado. a liberdade econômica [...] constitui o requisito prévio de qualquer outra liberdade. [...] cheguei à conclusão de que o maior serviço que ainda posso prestar ao meu semelhante é fazer com que os oradores e escritores se sintam profundamente envergonhados cada vez que empregarem o termo ‘justiça social’ (HaYEK, 1990, p.92).

O autor denuncia que qualquer tipo de planificação da economia

é o caminho para o totalitarismo, partindo do princípio de que a vida econômica é constituída de indivíduos egoístas que perseguem fins diferentes, concorrentes e até antagônicos. Não existe racionalidade superior a dos indivíduos, a única racionalidade efetiva é resultante do equilíbrio das ações individuais. O totalitarismo é resultado natural do abandono do liberalismo, não podendo haver liberdade política se não a liberdade econômica. A liberdade individual é a melhor forma de desenvolvimento da sociedade, já que por intermédio da busca de cada um por seus interesses particulares, consegue-se estabelecer certo equilíbrio, jamais atingido por meio de regulagens centralizadas. Uma economia é um sistema demasiado complexo para ser planejado por uma instituição central e, por isso, ela deve evoluir livremente, devendo qualquer intervenção de natureza solidária ficar restrita ao plano microssocial voluntário e individual e não dar-se no nível macrossocial de política pública de Estado (HAYEK,1990, p.50).

A visão de solidariedade, de acordo com a visão de Hayek (1990), apoia-se no pensamento evolucionista, em que a solidariedade não passa de um instinto animal, comum a pequenos grupos, que deverá ser superado, caso haja interesse em níveis mais elevados de desenvolvimento. A evolução da sociedade não teria sido possível se vigorasse a supremacia do princípio da solidariedade de todos para com todos, não sendo condizente com a ordem do mercado competitivo, como motor principal do desenvolvimento das sociedades. A solidariedade é até compreensível para Hayek, no plano microssocial, mas jamais extrapolada para a dimensão institucional do macrocosmos.

Friedman (1984), de forma semelhante, notabilizou-se por defender e impulsionar a doutrina econômica liberal, embora o centro da sua discussão esteja na defesa do mecanismo do mercado como garantia de prosperidade e de utilidade, “ser livre para escolher”. Defende a liberdade individual e considera qualquer medida contra a mesma coercitiva e, por conseguinte, abusiva, partindo do princípio de que toda a tentativa de redistribuição de

Page 26: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

26

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

renda, apoiando-se na lógica de tirar dos mais ricos para distribuir aos mais pobres, via tributação, é um atentado à liberdade individual e ao próprio mérito.

A essência da filosofia liberal é a crença na dignidade do individuo, em sua liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com suas próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liberdade de outros indivíduos fazerem o mesmo [...] todos os homens têm o mesmo direito à liberdade. Este é um direito importante e fundamental precisamente porque os homens são diferentes, pois um indivíduo quererá fazer com sua liberdade coisas diferentes das que são feitas por outros [...] a igualdade entra imediatamente em conflito com a liberdade, sendo preciso, pois, escolher (FRiEdMan, 1984, p. 177).

A corrente liberal busca justificar as diferenças sociais como

responsabilidade única de cada indivíduo, de suas escolhas, esforços e da própria natureza. Os seguidores dessa corrente consideram a pobreza como decorrente da baixa produção proporcionada por estes indivíduos, o que poderia ser alterado se houvesse um esforço maior por parte de cada um, ou seja, ao produzirem mais aumentariam a riqueza, reduzindo as desigualdades, sendo a garantia de igualdade de oportunidades mais importante do que a igualdade de renda.

A lógica capitalista e, de forma particular, a neoliberal vê o processo de acumulação como um jogo em que todos competem e o ganho provém da utilidade que cada tarefa proporciona aos demais. Todo o processo se estabelece numa livre relação de compra e venda, sendo a acumulação o resultado da venda da utilidade de serviços superiores aos demais.

De forma distinta, a perspectiva estruturalista, que apresenta influências da corrente socialista clássica e do keynesianismo, defende que o mercado é imperfeito por natureza, não consegue estabelecer o equilíbrio automático e muito menos o pleno emprego. O mercado entregue à própria lógica sai de uma crise para outra infinitamente e jamais consegue estabelecer relações de equilíbrio justas e eficientes para o todo social (SINGER, 1998).

A corrente estruturalista entende o mercado como um jogo de forças em que se produzem inevitavelmente vencedores e perdedores, sendo indispensáveis as instituições públicas como meio de proteger os perdedores e os mais fragilizados. Nesse sentido, os estruturalistas apoiam-se na necessidade de intervenção direta do governo na vida econômica e social, proporcionando oportunidades equitativas e garantindo distribuição

Page 27: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

27

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

de renda justa, de forma que todos possam suprir suas necessidades básicas. Ao contrário da visão individualista, os estruturalistas entendem as razões da exclusão como estruturais, estando intimamente ligadas às diferentes estruturas organizacionais que compõem a economia e a sociedade e que acabam privilegiando certos grupos em detrimento de outros. Nesse sentido, Sousa Santos (1998, p.69) reforça a importância da intervenção do Estado, não simplesmente em âmbito local, mas numa ação global articulada de forma comunicante:

O Estado nacional deve ser um elemento de uma rede internacional mais ampla, destinada a diminuir ou neutralizar o impacto destrutivo e excludente dos mecanismos imperativos hegemônicos do capital global, e reinverter o sentido destes na busca de uma redistribuição eqüitativa da riqueza globalmente produzida, porém todo o enriquecimento democrático será vão se a articulação estatal se restringir ao espaço nacional.

Santos (1998) defende que o Estado deve transformar-se num campo de experimentação institucional, permitindo que diferentes soluções institucionais coexistam, em caráter de experiências-piloto, sujeitas à monitorização permanente de coletivos de cidadãos com vista a proceder à avaliação comparada dos desempenhos. O autor defende a criação de um espaço público não-estatal onde o Estado seja o elemento crucial de articulação e de coordenação, em que os demais agentes sociais possam manifestar-se de maneira democrática, em especial através de mecanismos, como orçamento participativo e fiscalidade participativa.

O Estado como coordenador das diferentes organizações, interesses e fluxos que emergem da desestatização da regulação social. A luta democrática é assim, antes de mais, uma luta pela democratização das tarefas de coordenação. Enquanto antes se tratou de lutar por democratizar o monopólio regulador do Estado, hoje há, sobretudo de lutar pela democratização da perda desse monopólio. as tarefas de coordenação são antes de tudo de coordenação de interesses divergentes e até contraditórios (SantOS, 1998, p. 61).

Em termos econômicos, Santos (2002) parte da necessidade de construção de uma nova lógica capaz de subjugar o econômico ao social na qual se deixe de reproduzir a estrutura dominante. Pensa-se em uma estrutura societal que seja capaz de se desenvolver de forma emancipatória, de baixo para cima, num processo de construção de poder comunitário

Page 28: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

28

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

que pode desdobrar-se em iniciativas econômicas populares e articulação política, desconstruindo a lógica tradicional de que qualquer conquista ou desenvolvimento das camadas subalternas têm de estar condicionados ao sucesso das classes dominantes e se limitarem às franjas do próprio sistema.

A exclusividade de modelos ou de perspectivas de sociabilidade conduzem a polarizações totalizadoras que, ao defenderem um único modelo de organização e de convivência, enfraquecem e desestruturam as outras dimensões. Faz-se necessário abraçar novas formas que contemplem a hibridez e a multiplicidade, em que Estados atuantes, socialmente, convivam com mecanismos de mercado e com organismos da sociedade civil, cada vez mais efetivos, ao que se aproxima do pressuposto de um socialismo de mercado, sendo este “uma combinação entre mecanismos de mercado e planejamento econômico, na qual o mercado tenha papel preponderante” (SANTOS; RODRIGUEZ, 2002, p.43).

Os modelos que trabalham de forma polarizada em torno da solidariedade ou competição carregam em seu bojo uma característica que permeou o pensamento moderno: a disputa por um único princípio organizador da sociedade, pressupondo que não podem coexistir modelos mistos, ou diferentes aderências a cada modelo específico. A coexistência de diferentes modelos organizacionais parece ser mais condizente com a própria natureza humana, já que o indivíduo é composto por ambiguidades intrínsecas em que se expressam manifestações extremas de egoísmo e individualismo, assim como potencialidades solidárias e altruístas de dimensões superlativas.

4 Considerações finais

Como já se antevia desde o início, a empreita desenvolvida, neste estudo, não traz respostas conclusivas, muito menos definitivas, mas trouxe à tona as diferentes explicações para um mesmo fenômeno e buscou ultrapassar as análises apressadas, e apaixonadas em boa parte dos casos, abarcadas pelo senso comum, que tende a interpretar a natureza humana de uma forma reducionista e apartada de contradições. Buscou-se, assim, renunciar à ideia ou ao projeto de solução definitiva e totalizadora e se aproximar dos pressupostos do pensamento complexo, que se apoia justamente na superação de um único princípio organizativo ou de uma única causa, implicando numa multiplicidade de causas e de efeitos para a explicação do mesmo fenômeno.

Page 29: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

29

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

Na perspectiva da complexidade, emerge o pensamento de Edgar Morin (2005) que discute a questão da solidariedade de uma forma mais abrangente, compreendendo as diferentes faces que lhe são inerentes, o que faz com que o autor rejeite a ideia de um único ou predominante elemento de constituição da natureza humana. Somos vistos como seres multifacetados e com inúmeras potencialidades, não podendo ser reduzidos a um único princípio impulsionador de nossas condutas, mas antes apresentamo-nos como seres 100% solidários, ao mesmo tempo, que 100% competitivos e individualistas.

A contemporaneidade impõe abordagens plurais que consigam trabalhar em meio a ambientes caóticos, próprios da natureza humana, em que elementos díspares como competição e cooperação, individualismo e solidariedade, têm que conviver. Como destaca Singer (2002), é difícil imaginar modelos viáveis, totalmente apartados de concorrência, como se presenciou, desastrosamente, na experiência soviética. Singer (2002) acredita que algum grau de concorrência faz-se necessário, a grande questão é a dose certa, para que não se caia no darwinismo capitalista, nem no corporativismo estatizante.

O grande problema de nosso tempo parece ser o monopólio exercido pelas forças de mercado, em que a concorrência e o individualismo dominam todas as esferas da vida social, de forma desproporcional e alienante, tudo se torna simples mercadoria em que a instabilidade e a imprevisibilidade são vistas como inevitáveis. A competição invadiu praticamente todos os espaços, desde nações, organizações, regiões, escolas, esportes, igrejas e até famílias, nada escapa ao domínio do individualismo como lógica da vida em sociedade. Presencia-se a redução progressiva e acelerada da degradação dos espaços pessoais e sociais que não apresentam valor comercial e, assim, se assiste à minimização ou descaracterização dos princípios da solidariedade, cooperação, afetividade, amor e compaixão, entre tantas outras dimensões fundamentais à nossa identidade, desenvolvimento e mesmo sobrevivência como espécie.

O que se quer aqui reforçar é a necessidade de se acolherem novas experiências societais, tanto no plano microssocial, como no macrossocial, no plano local como no global, que possam obstaculizar o avanço irrestrito e desproporcional do paradigma competitivo individualista. Destacam-se, aqui, as experiências de economia solidária, que apresentam uma nova lógica empresarial, as organizações do terceiro setor de múltiplos matizes e propósitos que se apresentam como uma terceira força social, entre o estado e o mercado, os fóruns de debate, como o fórum social mundial, além de

Page 30: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

30

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

movimentos em favor do perdão da dívida externa dos países de terceiro mundo, propostas de renda básica de cidadania, movimentos em apoio à criação de imposto de transações financeiras mundiais em prol de um fundo de combate à miséria, entre tantas outras iniciativas que tentam obstaculizar o monopólio do individualismo nas estruturas sociais dominantes.

Referências

CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

______. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002.

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.

FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Positivo-Livros, 2010.

FRIEDMAN, M. Capitalismo e Liberdade. São Paulo: Abril Cultural, 1984

HAYEK, F. O Caminho da Servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.

MORIN, Edgard. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2000.

______. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

______. O Método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2005b.

POLITO, Andre G. Michaelis Dicionário de Sinônimos e Antônimos. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

RIDLEY, Matt. As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SINGER, P. Globalização e Desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998.

______. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. Reiventar a Democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. Lisboa: Gradiva, 1998

______; RODRIGUES, C. Introdução. In: SANTOS, B. de S. (Org.). (Org). Produzir Para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002.

______. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdicio da experiência. v.1. São Paulo: Cortez, 2007.

Page 31: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

31

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

SMITH, A. A Riqueza das Nações: investigações sobre sua natureza e suas causas. v.1. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010.

WAAL, Frans de. A Era da Empatia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

WILSON, Edward O. Diversidade Da Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Page 32: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS
Page 33: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

33

EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA E SEU APORTE AO DESENVOLVIMENTO LOCAL

Maria Nezilda Culti

1 Introdução

O sistema capitalista, do ponto de vista dialético, desenvolve-se por meio das suas próprias contradições, superando-as e renovando-as. É nesse processo contínuo de modificações dos arranjos organizacionais, que procuramos entender o processo de desenvolvimento local e a economia solidária.

Na visão econômica ortodoxa, o desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico, sendo representado basicamente pela evolução do PIB per capita, já que existe uma correlação entre este e outros indicadores de qualidade de vida. Acreditou-se que o crescimento econômico generalizado traria mudanças que beneficiariam não só os mais ricos, como também os mais pobres, oferecendo-lhes acesso a bens materiais e imateriais. Entretanto, esta perspectiva não se confirmou nas décadas de 1950 e 1970, quando, apesar do aumento da produtividade macroeconômica, as faixas de população mais empobrecidas não foram beneficiadas.

Nesse momento, as teorias de desenvolvimento regional ressaltaram o papel do planejamento e o investimento estatal para o desenvolvimento, bem como “a importância dos encadeamentos entre as atividades econômicas e da demanda local no processo de desenvolvimento, ao adensar o mercado local e ao evitar os vazamentos de renda para regiões mais desenvolvidas, entre outras contribuições” (RAMIRO, 2010, p. 37).

Estas, porém, foram alvos de criticas, tanto dos economistas ortodoxos quanto dos heterodoxos. Para os primeiros, o planejamento estatal não era neutro e, portanto, tanto quanto o mercado provocava distorções; eles apontavam, também, a insuficiente vinculação das políticas com as capacidades locais e a crença excessiva nos mecanismos econômicos para combater desigualdades regionais. Para os teóricos marxistas, as “teorias do desenvolvimento tratam apenas de uma alocação menos desigual dos recursos na economia, mas não tratam das causas do desenvolvimento desigual relacionadas à lógica do sistema capitalista, produtora de desigualdades”. (RAMIRO, 2010, p. 37).

Page 34: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

34

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

O processo de concentração de riqueza e exclusão social teve continuidade e, em meados dos anos 70, surgiram novas teorias, conhecidas como de desenvolvimento local ou territorial endógeno, as quais criticavam as anteriores por não levarem em consideração, segundo Parreiras, citado por Ramiro, “as reais necessidades das pessoas que deveriam constituir a sua razão e por não incorporarem essas mesmas pessoas no processo de formulação e execução das políticas públicas” (2010, p. 38). Nesta abordagem, o foco passou a ser a localidade. Entendia-se que os elementos fortes para promover o desenvolvimento estavam nas próprias comunidades. Nesse sentido, o melhor caminho para promover o desenvolvimento de uma região seria descobrir e valorizar sua cultura, tradição, sua história e os aspectos físicos e naturais, ou seja, a ideia era de que não há modelos únicos de desenvolvimento.

Entretanto, de um lado, não se pode esquecer, como afirma Soto (2010, p. 388), de que “o movimento global do capital está de forma permanente influenciando e modificando as relações sociais, as formas econômicas e os valores culturais das regiões”. De outro lado, também é verdadeiro que há reação por parte das comunidades: algumas conseguem encontrar caminhos que as beneficiem; outras reagem passivamente, não conseguindo um modelo próprio de desenvolvimento. O que se observa é que, nas regiões onde os cidadãos são mais participativos e fomentadores da articulação social, os resultados são mais positivos, provocando e promovendo o desenvolvimento local. A cooperação potencializa a busca de objetivos comuns em prol do desempenho da comunidade. O ambiente social e cultural, portanto, é fundamental para o desenvolvimento local-regional.

Nesse sentido, o conceito de capital social recupera a preocupação com o bem-estar social de parte significativa da população. Sem discorrer sobre a evolução deste conceito no tempo, vale registrar a explicação de Robert Putnam (2000) para as desigualdades regionais da Itália. Ele destaca o papel da sociedade civil e das tradições sociais, culturais e políticas no desenvolvimento econômico regional e enfatiza, também, a intensidade da cultura cívica e da cooperação. Para ele, a explicação para as diferenças regionais está no capital social.

Segundo Soto (2010, p 393):

Existe um certo consenso em definir capital social como a capacidade que tem uma comunidade de construir redes de cooperação social baseadas na

Page 35: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

35

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

confiança interpessoal, com o objetivo central de produzir bens coletivos que signifiquem prosperidade econômica e desenvolvimento sustentado.

A mobilização dos recursos locais para fomentar o desenvolvimento não desconsidera a importância de acesso ao mercado e da inserção em cadeias produtivas maiores. Para isso, são importantes as organizações em redes, fóruns e conselhos comunitários. O Estado, nestas abordagens, também tem um papel fundamental, especialmente no aspecto do planejamento das políticas e da interação entre elas.

Apesar das potencialidades intrínsecas das comunidades, a estratégia de desenvolvimento local também tem suas fragilidades. Entre elas, Parreiras (2007, p.206) menciona “a debilidade da base associativa do ator protagonista, sua baixa capacidade de gestão, as dificuldades de acesso ao crédito para capital de giro e a canais de comercialização efetivos, além de deficiências de infraestrutura”. Por isso, o fomento à economia solidária, no Brasil, incide exatamente sobre a debilidade da base associativa e da baixa capacidade de gestão. Esse é o campo de atuação das instituições de apoio e fomento à economia solidária, entre elas, as incubadoras universitárias de empreendimentos econômicos solidários.

Na economia solidária, cujo princípio é a ideia da solidariedade em contraste com o individualismo competitivo que caracteriza a sociedade capitalista, os empreendimentos apresentam as seguintes características: são organizações urbanas ou rurais, de produtores, de consumidores e de crédito, baseadas na livre associação, na posse dos meios de produção, no trabalho cooperativo, na autogestão e no processo decisório democrático. No atendimento a essa economia, as incubadoras desempenham um papel importante, à medida que se tornam espaços de troca de experiências em autogestão e autodeterminação na consolidação desses empreendimentos e nas estratégias para conectar empreendimentos solidários de produção, serviços, comercialização, financiamento e consumo. São importantes, também, outras organizações populares que possibilitam um movimento de realimentação e crescimento conjunto autossustentável.

Alem de incorporar programas internos existentes nas universidades, as Incubadoras Universitárias agregam professores, pesquisadores, técnicos e acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, para desenvolver pesquisas teóricas e empíricas sobre a economia solidária e atividades de incubação de empreendimentos econômicos solidários (EES), com objetivo de atender aos trabalhadores que tencionem organizar seus próprios negócios, sejam

Page 36: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

36

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

cooperativas e associações sejam empresas autogestionárias, urbanas ou rurais.

Em sua parte prática, as Incubadoras ajudam a organizar, orientar, acompanhar sistematicamente ou oferecer assessorias pontuais, de forma a qualificar técnica e administrativamente as pessoas interessadas em constituir e/ou melhorar seus empreendimentos econômicos solidários. Por meio de processo educativo, orientado pela participação e pelo diálogo, instrui na organização do trabalho, na autogestão, nos aspectos de ordem jurídica, contábil, financeira, nas relações interpessoais e em outros aportes necessários. Seu principal objetivo é promover a geração e a consolidação dos empreendimentos de autogestão. A parceria com os poderes públicos e com as iniciativas privadas, nas localidades onde as ações são desenvolvidas, tem se mostrado muito importante para os empreendimentos e para o fortalecimento das ações desenvolvidas no processo de incubação.

Nesse sentido, o trabalho de incubação é uma construção/reconstrução de conhecimento por meio do processo prático educativo de organização e acompanhamento sistêmico a grupos de pessoas interessadas na formação de empreendimentos econômicos solidários, tendo em vista a necessidade de dar suporte técnico e social a esses empreendimentos. Nesse processo, as Incubadoras:• valorizam o saber acumulado das pessoas e do grupo, de forma a promover

a inclusão social e econômica;• acrescentam conhecimentos básicos de trabalho cooperativo e técnicas

específicas de produção e gestão administrativa;• orientam para o mercado e para a inserção em cadeias produtivas e/ou

planos e arranjos produtivos locais, etc.• unem “saber popular” a “saber científico”, em uma tentativa de

transformação da prática cotidiana, inter-relacionando as atividades de ensino, pesquisa e extensão;

• promovem um processo educativo que modifica as circunstâncias, os homens e as mulheres em sua maneira de ser e agir;

• promovem, em vários aspectos, um processo de construção e reconstrução de conhecimentos para os atores envolvidos em suas atividades.

A estratégia pedagógica característica do processo educativo na incubação é a que parte do percebido para o não percebido, do imediato para o mediato. Em si mesma, essa prática pedagógica transforma os conteúdos e altera a conduta.

Além disso, por envolver trabalhadores, especialmente os excluídos do mercado formal de trabalho ou desempregados e em vias de desemprego, o

Page 37: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

37

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

processo educativo inerente à prática de incubação corresponde à existência de uma determinada classe social, historicamente explorada, subalterna e marginalizada no processo produtivo e social. Em virtude disso, é orientado também por um conteúdo político, ou seja, a prática de incubação é também uma prática política.

Portanto, a atuação das incubadoras no fomento à economia solidária contribui indiretamente para o fortalecimento do desenvolvimento local e regional. Na interação com os protagonistas desta economia, o processo implica o respeito ao saber popular, às tradições e à cultura local, bem como o apoio para a inserção dos produtos no circuito da comercialização local, regional e do mercado mais ampliado. Ou seja, apesar de conter informações e técnicas exógenas, trata dos recursos locais, naturais e humanos, evitando soluções exteriores e padronizadas. Além disso, desperta e estimula a cooperação, a confiança e a solidariedade entre os produtores e seus parceiros.

No Brasil, o último mapeamento da economia solidária, em 2007, além dos 21.859 empreendimentos e mais de 1 milhão, 687 mil homens e mulheres, identificou um total significativo de instituições de apoio à economia solidária em todo o país. Estas instituições ampliam a dinâmica social, pois aumentam o capital social e produtivo e, criando novos arranjos institucionais, articulam parcerias com agências de desenvolvimento regional (os IDR); instituições de crédito; centros nacionais e internacionais de desenvolvimento tecnológicos; empresa de assistência técnica rural (EMATER); instituições governamentais; instituições não-governamentais; empresas que desenvolvem uma política de responsabilidade social; órgãos especializados junto às secretarias de planejamento, de desenvolvimento econômico, da indústria, do comércio e da agricultura; conselhos para a gestão integrada das políticas; fóruns permanentes de debates sobre o desenvolvimento local e sobre a economia solidária.

Em relação à comercialização, identificou-se que os produtos e serviços são destinados, predominantemente, aos espaços locais. Segundo as indicações, aproximadamente 68,0% dos EES vendem no comércio local comunitário e municipal, perto de 26,0%, em mercados/comércios micro-regional e estadual, 4,0% têm como destino de seus produtos o território nacional e menos de 1% realizam transações com outros países (AYAKO; CULTI; KOYAMA, 2010). Os recursos financeiros oriundos deste comércio circulam, em grande medida, na própria região e na própria localidade, seja na forma de consumo familiar, seja na de pagamento de despesas operacionais seja, ainda, na de compra de insumos para continuar

Page 38: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

38

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

a produção dos bens e serviços. Desses dados depreende-se, portanto, que esses empreendimentos são importantes para o desenvolvimento local sustentável.

Quanto ao aspecto sócio-político que permite identificar o nível de participação social nos empreendimentos, o resultado foi de que aproximadamente metade (45,7%) dos empreendimentos participa de redes ou fóruns de articulação. Mais da metade deles (57,7%) participa de algum movimento social/popular; os 5 (cinco) movimentos mais representativos são os comunitários, sindical urbano e rural, os de luta pela terra e agricultura familiar, o ambientalista e o de luta por moradia. Os que desenvolvem alguma ação social representaram, também, mais da metade deles (56,8%) (AYAKO; CULTI; KOYAMA, 2010). Entendemos que este é também um dado demonstrativo de que a formação do capital social contribui para o desenvolvimento local.

A contribuição das incubadoras nesse processo pode ser observada por meio de alguns resultados alcançados.

2 Cadeias produtivas e desenvolvimento local

Um projeto de incubação realizado em 2005 com uma cadeia produtiva do turismo na região nordeste do Brasil, o qual tinha por finalidade fomentar as atividades econômicas desta cadeia, visando o desenvolvimento local sustentável, teve seus resultados avaliados por Ramiro (2010). Em suas considerações finais, ele indica que:

a análise da incubação de empreendimentos econômicos solidários na cadeia produtiva do turismo está intrinsecamente associada às discussões sobre os papéis do Estado, do mercado e das comunidades locais no processo de desenvolvimento (RaMiRO, 2010, p. 97).

Mais adiante, alega:

(...) a incubação de empreendimentos econômicos solidários pode ser um dos elementos para a promoção do desenvolvimento local e seus efeitos são ainda maiores quando articulados com outras ações como a implantação de infra-estrutura e qualificação profissional. Além disso, os EES incubados, ao utilizarem técnicas tradicionais de produção, insumos típicos locais e ofertarem experiências diferenciadas como no caso do turismo de base comunitária, agregam valor ao destino turístico, atuando no fomento ao desenvolvimento local (RaMiRO, 2010, p. 99).

Page 39: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

39

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

Podemos mencionar também outras ações que, relacionadas à atuação das incubadoras com os trabalhadores, mostram resultados relevantes para o desenvolvimento local. A Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (UNITRABALHO), que congrega mais de 60 universidades associadas em todo o país, dispõe de um Programa Nacional de economia solidária e desenvolvimento sustentável, no qual uma rede de incubadoras vem se dedicando à incubação de EES isolados e também de algumas cadeias produtivas. O desenvolvimento da incubação, priorizando as cadeias produtivas, baseou-se na constatação de que, ao longo de sua atuação, os EES isolados tinham dificuldades para superar o nível de subsistência e adquirir sustentabilidade econômica.

Por isso, em parceria com a Fundação Banco do Brasil, União das cooperativas de economia solidária (UNISOL) e o Serviço nacional de apoio a pequena e média empresa (SEBRAE) entre outros parceiros locais, foi criada uma metodologia para formar Centrais de empreendimentos que conseguissem obter sustentabilidade e poder econômico em algumas cadeias produtivas.

Citamos, para exemplificar, a da apicultura, desenvolvida no nordeste brasileiro, na qual se envolveram 34 municípios do Estado do Piauí e do Ceará. A Central de cooperativas apícolas do semi-árido brasileiro, chamada CASA ÁPIS, completou mais de quatro anos de funcionamento regular. A criação da Central mudou o cenário da apicultura no Piauí e no Ceará, principalmente para as 1.600 famílias, que antes vendiam sua produção para atravessadores com preço abaixo do praticado no mercado. São 9 (nove) cooperativas singulares filiadas à Central, das quais 70% dos filiados são mini e pequenos agricultores. A produção, que conquistou o título de certificação orgânica em 2009, alcançou 400 toneladas e está sendo colocada no mercado local, regional, nacional e internacional. Com capacidade para produzir 1.200 toneladas de mel por ano, a gestão da CASA ÁPIS segue o modelo de cooperativismo solidário, adotando uma forma de gestão participativa.

Esta realidade, apesar de suas dificuldades, como a necessidade de uma participação mais intensa dos pequenos apicultores no dia a dia da direção da Central, tornou-se uma referência nacional de empreendimento dos pequenos produtores familiares que, fazendo frente ao mercado, gerou novas práticas por parte dos compradores e elevou a renda geral dos apicultores, mesmo dos que não estavam filiados à Central. Pode ser

Page 40: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

40

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

considerada, portanto, um exemplo de iniciativa solidária autogestionária e de desenvolvimento local mais justo e sustentável.

Outro bom exemplo é o da Central de cooperativas de cajucultores do Piauí (COCAJUPI). Reunindo cerca de 490 famílias de produtores de caju, em 10 cidades no Estado do Piauí, essa central congrega 10 (dez) cooperativas. A COCAJUPI tem o objetivo de melhorar a renda dos associados e desenvolver a região por meio da exploração do caju, atuando tanto na produção e industrialização quanto na comercialização do caju e derivados. Portanto, esta tecnologia social de incubação de cadeias produtivas vem possibilitando grandes mudanças nos territórios em que está sendo aplicada.

3 Empreendimento associativo e o desenvolvimento local na região central do paraná

Entre os vários empreendimentos atendidos no Núcleo/Incubadora Unitrabalho da Universidade Estadual de Maringá, podemos citar o caso da Cooperativa dos Agricultores das Comunidades 300 Alqueires, Vila Rural, Água dos Martas, 1.000 Alqueires e Alvorada (COOPERATIVAMA), como um bom exemplo de empreendimento de economia solidária provocando um embrião de desenvolvimento local.

No início do ano de 2006, onze produtores rurais familiares do distrito de Poema, iniciaram o plantio do maracujá orgânico como uma tentativa de mudar a situação adversa em que viviam. Procuravam uma nova alternativa econômica que propiciasse a manutenção de sua subsistência e reprodução social e cultural, levando em conta a questão da sustentabilidade ambiental.

Contudo, diversos problemas surgiram, podendo ser resumidos em três principais: i) necessidade de maior organização dos produtores; ii) dificuldades na comercialização; e iii) problemas técnicos produtivos. Diante deste quadro, este grupo de produtores procurou a universidade e chegou à Incubadora para pedir auxílio nestas questões. Como os objetivos da diversificação da agricultura familiar e a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos já eram área de atuação da equipe, iniciou-se então o processo de incubação, envolvendo, também, parceria com a Emater e a Prefeitura local.

A partir de então, diversas ações foram realizadas até a criação e consolidação da COOPERATIVAMA, dentre as principais, podemos citar:

Page 41: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

41

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

• Formação básica para o associativismo, cooperativismo e economia solidária, mostrando aos produtores a força das ações coletivas e coordenadas para o seu desenvolvimento econômico;

• Análise da cadeia produtiva, da estrutura de mercado e da viabilidade do cultivo do maracujá orgânico;

• Participação direta na elaboração do Estatuto e do Regimento Interno da cooperativa, orientando os produtores na compreensão dos direitos e os deveres de cada um dos sócios trabalhadores, bem como na constituição da cooperativa perante os órgãos competentes;

• Auxílio à comercialização, principalmente na formatação do projeto e organização da documentação necessária para venda a programas governamentais, como o PAA - Programa de aquisição de alimentos;

• Qualificação dos trabalhadores para exercerem a autogestão, especialmente nos aspectos técnicos e administrativos da cooperativa;

• Orientação técnica para a produção do maracujá orgânico, por existirem muitas particularidades, medidas preventivas e tratos especiais. Este trabalho foi fortalecido por meio da elaboração, com a participação dos produtores, de cartilhas específicas, dias de campo e visitas pontuais nas propriedades, além das reuniões sistemáticas;

• Auxílio na questão da certificação dos produtos orgânicos – tanto para a produção como na entrada de processo perante agências de certificação que atesta a garantia e a origem (procedência), bem como a qualidade orgânica dos produtos;

• Participação dos produtores em eventos para obtenção de novos conhecimentos e intercâmbios diversos (econômicos, sociais, políticos, culturais) com outros empreendimentos econômicos solidários;

• Fornecimento de uma pequena estrutura básica para a cooperativa, como equipamentos de escritório (computador, impressora, mesas e fax).

Estas ações alcançaram resultados expressivos. A atuação da equipe da Incubadora potencializou a iniciativa dos trabalhadores e a atividade produtiva orgânica. Aos poucos foram somando novas famílias às onze iniciais, dando maior consistência e visibilidade à cooperativa.

Em meados de agosto de 2007, o grupo já contava com quarenta e três produtores, dos quais onze já haviam conseguido certificados de orgânico e trinta e dois estavam em processo de certificação. O “selo verde ou selo orgânico” foi um passo relevante para os produtores, uma vez que propiciou um produto diferenciado e, com isso, preços de mercado mais elevado. A região, por meio da cooperativa, atraiu interesse de empresas processadoras de Itapeva (SP), Itajaí (SC) e Marilena (PR).

Page 42: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

42

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Durante o ano de 2008, os produtores já estavam amadurecidos e fortalecidos o suficiente para formalizarem a cooperativa. Os produtores receberam, então, o apoio técnico na organização de seu empreendimento econômico solidário, consolidando-se com a criação da COOPERATIVAMA, em 19 de Setembro de 2008, contando com setenta e sete membros cooperados. A constituição da cooperativa propiciou aos produtores a participação em projetos, tanto em nível Estadual como Federal.

Do triênio consolidado em 2009, o último foi o ano mais expressivo. A cooperativa acertou a venda de 75 mil quilos de maracujá orgânico para a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), que no total rendeu aos cooperados cerca de R$ 150 mil Reais. Os frutos foram entregues nos Ceasa dos municípios de Guarapuava, Londrina, Maringá, Cascavel e Francisco Beltrão, sendo distribuídos para entidades beneficentes através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na modalidade de Doação Simultânea, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

Na safra de 2009, foram produzidos 122 mil quilos da fruta na forma orgânica, gerando cerca de 220 mil Reais aos produtores. O equivalente, em média, a 2.800 reais por produtor. Com estes resultados positivos, os produtores estão ampliando a produção do maracujá orgânico e iniciando a produção de outras frutíferas, como acerola, abacaxi, morango e banana.

No ano corrente, como uma nova etapa do empreendimento, os produtores pensaram em implantar uma agroindústria para a produção e comercialização de polpa congelada de maracujá orgânico, objetivando agregar valor ao seu produto e, também, garantir o desenvolvimento sustentado das comunidades rurais e o protagonismo dos agricultores familiares. Isto beneficiaria todos os produtores de maracujá das comunidades do entorno, incluindo produtores de outros municípios, como é o caso de Arapuã, Iretama, Pitanga, Manoel Ribas, Mato Rico e Roncador, que já contam com agricultores que estão com suas lavouras plantadas e demonstraram interesse em fazer parte da cooperativa.

Em busca da materialização deste sonho, a equipe da Incubadora elaborou em parceria com a Emater, projeto de instalação de uma unidade industrial para a produção de polpas congeladas, que concorreu e foi vencedor em um processo seletivo de projetos do Programa dos territórios do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Neste ano de 2011, teve início a construção do espaço físico da cooperativa e da unidade industrial. Já está definido, pelos produtores, que será nesse local que funcionará também a regional de comercialização, tão logo se conclua a construção.

Page 43: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

43

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

4 Dificuldades do processo – “nem tudo são flores, há também espinhos”

Há diversidade de situações e soluções que envolvem o processo de incubação junto aos trabalhadores urbanos e rurais que demandam o atendimento da Incubadora. Neste caminho, encontram-se potencialidades que são facilmente trabalhadas coletivamente e outras nem tanto, mas também muitas dificuldades no processo da atividade prática que envolve os trabalhadores, os parceiros, a universidade e a Incubadora por meio da extensão.

Desse modo, com base nas observações a partir da prática vivida com os grupos atendidos na Incubadora da UEM, falando apenas do meio rural, encontramos algumas especificidades. Com os produtores rurais da agricultura familiar ou dos assentamentos da reforma agrária, o trabalho precisa ser iniciado muito mais pelo caminho da confiança para se chegar aos objetivos pretendidos. Nesse sentido, no caso rural, primeiro é preciso diagnostigar a cultura de relações humanas, sociais, produtivas e comerciais na localidade, considerando que, nas comunidades, sempre há famílias de produtores que lideram, ou seja, é preciso identificar as relações locais que foram construídas ao longo do tempo, com base na confiança e convivência local ou comunitária.

A identificação das lideranças locais é importante, porque são elas que tomam decisões com base em uma relação informal, mas de confiança plena dos produtores da comunidade, tanto que os demais se orientam por elas.

A porta de entrada para o agente externo (equipe da Universidade/Incubadora) na localidade rural ou comunidade dos produtores é facilitada se ela ocorrer pelas mãos de um produtor local para quebrar resistências e ganhar a confiança dos demais produtores. Depois da sua entrada e na continuidade, essa relação de confiança é mais fácil de ser construída com base em uma relação dialógica entre os produtores e o agente externo (equipe da Universidade/Incubadora), mediante a presença desse agente com certa regularidade na localidade/comunidade. A presença mais constante vai permitir mais tempo de observação do comportamento desse agente pelos produtores, possibilitando mais tempo de “prosa” entre eles, ao estilo do “cerca peão”, como dizem os sertanejos. Nessas conversas, a equipe de trabalho não pode deixar nada subentendido, todas as intenções precisam ficar bem claras. Dessa forma, é possível a continuidade da inserção e desenvolvimento das atividades.

Page 44: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

44

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Também é recomendável, no início das ações, esclarecer a função do Estado e das Políticas Públicas, que hoje têm por finalidade beneficiar os pequenos produtores, pois eles resistem a elas em vista de as mesmas, no passado, não priorizarem o pequeno produtor, ou seja, tudo isso é necessário para quebrar as desconfianças.

O produtor rural vive com pouca informação, comunicação e procura proteger-se do agente externo que se aproxima com “boas” propostas. Quando se trabalha com assentamentos da reforma agrária, é preciso considerar o grau de politização e a existência de pequenos grupos de produtores e suas lideranças, bem como a atuação das “brigadas” do MST no interior de cada assentamento, pois elas podem permitir e facilitar a aproximação. Quanto maior a divisão interna em grupos de produtores, mais frequentes são os conflitos, quando necessitam tomar alguma decisão coletiva. De todo modo, é preciso muito diálogo para estabelecer vínculos de confiança indispensáveis.

Vencidas as dificuldades iniciais da falta de confiança, no decorrer do desenvolvimento das ações e dos trabalhos com os produtores, também é preciso amenizar as resistências para que a formalização dos empreendimentos coletivos seja singular ou a organização das redes ou centrais de produção e comercialização, pois percebemos, ao se recomendar a organização coletiva, que os produtores receiam perder a posse daquilo que é um bem estável e da família, como a terra, bem como ficar sem liberdade, temendo o empoderamento de uma gestão coletiva formalizada.

Faz parte do trabalho de incubação oferecer orientação para os produtores entenderem que é a união deles que permite acumular as condições mínimas para potencializar a produção, o volume de venda, melhorar a inserção no mercado e o mínimo necessário para obter financiamentos por meio de políticas públicas de crédito ou a fundos perdidos, via programas voltados ao apoio do pequeno agricultor familiar ou urbano.

Para os empreendimentos rurais são muito importantes, no aspecto da comercialização, as orientações para aproveitar as possibilidades de venda direta a Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) aos Centros regionais/locais de abastecimento e, também, às redes de supermercados e unidades agroindustriais da área de alimentos. Estimular, entre os produtores, o cultivo de orgânicos, por terem valor de venda mais elevado no mercado. Nessa mesma linha, orientar e oferecer formação técnica para processar produtos e obter certificação, visando agregar mais valor a eles. Apesar das vantagens, este não é um trabalho fácil, pois implica mudar costumes e processos produtivos que demandam cuidados, novos aprendizados e muita

Page 45: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

45

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

dedicação. Esses encaminhamentos podem ser observados na atitude que tomaram os produtores de maracujá orgânico da COOPERATIVAMA que, depois de terem organizado sua cooperativa, buscaram apoio para instalarem uma unidade de processamento da polpa de maracujá.

De forma geral, a organização de redes, mesmo que pequenas entre produtores de um mesmo produto ou de uma mesma região ou mesmo cadeias de processamento e comercialização, é importante para dar mais estabilidade econômica aos grupos informais ou empreendimentos formalizados em cooperativas ou associações.

O processo de incubação constrói caminhos inusitados de descobrimentos, nos quais as pessoas (equipe e trabalhadores) vão se conhecendo mutuamente. Alguns membros da equipe entram em contato com a existência de uma realidade desconhecida para eles e, ao mesmo tempo, os trabalhadores tomam conhecimento que ainda podem ser cidadãos e que têm direitos constitucionais garantidos.

Desta feita, há como afirmar, sem correr o risco de ser apenas uma ideia ou opinião prematura, que o processo de incubação é também um processo real de transformação, já que propicia mudanças na realidade de trabalho e na vida das pessoas.

Nesse processo, não podemos ignorar a importância e o papel das políticas públicas. Elas são necessárias, pois precisam viabilizar recursos materiais necessários aos empreendimentos, em muitas circunstâncias. Os meios materiais, na maioria das vezes, são necessários porque são pessoas que só dispõem de sua força de trabalho e não têm a posse de bens ou capital financeiro para melhorar suas condições de trabalho e renda.

Avaliamos que as políticas públicas, bem como a Universidade, por meio da Incubadora oferecem instrumentos e apoio aos grupos de trabalhadores que pretendem e conseguem organizar seus empreendimentos. Apesar disso, o êxito depende essencialmente dos(as) próprios(as) trabalhadores(as), que precisam de muita determinação para não desistirem quando as dificuldades ou barreiras naturais aparecem no transcorrer do processo. Nem todos os grupos que procuram a Incubadora acabam se transformando em uma cooperativa ou associação formalizada legalmente. Alguns se desfazem, sucumbem no decorrer do processo e outros fazem a escolha de permanecerem como estavam, trabalhando de forma coletiva, mas continuando como grupos informais. Os motivos são variados e diferem de grupo a grupo, conforme suas condições, expectativas e desejos.

Para os empreendimentos que persistem, os parâmetros para analisar o seu desenvolvimento econômico podem ser observados por indicadores

Page 46: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

46

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

sociais e quantitativos. Os indicadores não podem ser vistos de forma absoluta por serem sempre instrumentos limitados por refletir aspectos parciais da realidade. Os quantitativos não conseguem medir a teia da vida, em que é importante observar o que não é valorizado. De todo modo, mesmo sendo uma indicação parcial, os indicadores são importantes para avaliar a viabilidade econômica dos empreendimentos.

No aspecto institucional, há muitos entraves e dificuldades também para a Universidade, por esta não ter ainda uma estrutura mais apropriada para apoiar e atender às necessidades dos trabalhos de extensão por meio das Incubadoras, por ser peculiar no que se refere principalmente ao tempo dos atendidos e ao seu, que é mais demorado em vista do peso da burocracia institucional pública, bem como da falta de um corpo de servidores técnicos permanente mais ampliado, além dos professores e alunos.

Ainda assim, avaliamos que vale à pena, pois os caminhos e as escolhas são amplos e dependem, em última instância, das peculiaridades de cada grupo e cada um vai determinando, ao seu tempo, a sua caminhada, de forma criativa, podendo, de fato, provocar transformações na vida dos trabalhadores envolvidos.

Para concluir, podemos afirmar que o livre mercado tem limitações para promover a redução das desigualdades regionais e sociais. Assim, para proporcionar um processo de desenvolvimento local com êxito, faz-se necessária a valorização da identidade cultural e do patrimônio natural como recursos locais humanos e materiais que, utilizando-se de estruturas organizacionais com gestão dos interesses coletivos locais, evitam soluções exógenas. Frisamos, também, o importante papel das instituições parceiras e de fomento, bem como do Estado que, aliados ao protagonismo coletivo, atuam como indutores do desenvolvimento local.

Referências

AYAKO, Mitti; CULTI, Maria Nezilda; KOYAMA, Marcelo T. H. Economia Solidária no Brasil: Tipologia dos Empreendimentos Econômicos Solidários. São Paulo: Todos os Bichos, 2010.

PARREIRAS, Luis Eduardo. Negócios solidários em cadeias produtivas: protagonismo coletivo e desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: IPEA, 2007.

PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

Page 47: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

47

EmprEEndimEntos dE Economia solidária E sEu aportE ao dEsEnvolvimEnto local

RAMIRO, Rodrigo. Economia solidária e turismo: uma avaliação da experiência de incubação de cooperativas populares na cadeia produtiva do turismo na região Nordeste do Brasil. Brasília: IABS, 2009.

SOTO, Wiliam H. Gómez. A dialética do desenvolvimento regional: capital social, democracia, redes empresariais e dinâmica territorial. In: BECKER, Dinizar F; WITTMANN, Milton Luiz (Org.) Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008

WITTMANN, Milton Luiz (Org.) Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008.

Page 48: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS
Page 49: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

49

QUESTÃO SOCIOAMBIENTAL, CULTURA POLÍTICA E CIDADANIA NO BRASIL

Benilson Borinelli

Fabio Lanza

1 Introdução

O objetivo deste artigo é destacar traços da cultura brasileira, presentes nas relações com o meio ambiente, que impedem a constituição de sujeitos para uma gestão pública dos recursos ambientais. Trata-se, sobretudo e inicialmente, de perceber a cultura política e sua relação com o Estado como um problema para a gestão democrática do meio ambiente e das políticas públicas envolvidas na temática, inclusive para a consolidação da cidadania no Brasil. O nosso intento foi, antes de tudo, esboçar um inventário que recupere áreas descartadas, ou desagravos das interpretações redutivas e seletivas (WILLIAMS, 1979) da tradição dominante sobre a apropriação dos recursos naturais.

A relação entre democracia e meio ambiente exprime uma face da totalidade da vida social em que a desigualdade ambiental - o acesso aos recursos e serviços naturais - está entrelaçada com a desigualdade social, política e econômica, sendo, contudo, mais ampla e profunda com relação às mudanças implicadas. Por seu caráter essencial à vida humana em certas condições de oferta, os recursos naturais são por excelência públicos e de uso comum, porém também finitos no tempo e no espaço. Sua escassez natural ou socialmente definida é de interesse coletivo, pois expressa as possibilidades e formas de vida no presente e no futuro de vida em sociedade. É por meio da cultura que essas possibilidades e formas de interação entre a sociedade e a natureza podem ser conhecidas, criticadas e transformadas no que diz respeito ao acesso, preservação e uso destes recursos como formas de poder social.

Este trabalho, de caráter bibliográfico, está dividido em três partes. A primeira apresenta alguns traços relacionados a duas instituições e práticas tradicionais da cultura política brasileira: a questão da terra e o patrimonialismo, a partir de contribuições de autores como Leal (1975), Buarque de Holanda (1973), Telles (1994), Schwartzman (1982). Em seguida, são descritas algumas implicações destes e de outros traços “modernos” enquanto constrangimentos para a gestão pública e

Page 50: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

50

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

democrática dos recursos naturais. Na última parte, a discussão contribui para a formulação de uma contra-hegemonia, e o conceito de cultura ecológica e outros são delineados (LEFF, 2001; MARTÍNEZ ALIER, 1998; SZACHI, 1972).

2 A sociedade e as relações que se estabelem a partir da cultura

Cada sociedade é marcada por uma cultura política dominante. É a construção social particular em cada sociedade do que conta como “político”, “é o domínio de práticas e instituições, retiradas da totalidade social, que historicamente vêm a ser consideradas como propriamente políticas (da mesma forma que outros domínios são vistos como propriamente ‘econômicos’, ‘culturais’, e ‘sociais’)”. (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.25).

Na América Latina formou-se historicamente uma cultura política híbrida e contraditória. Princípios de origem européia e norte-americana como o universalismo, racionalismo e individualismo vão sendo incorporados nas culturas nacionais como respostas às injunções exógenas, sem mudar sua feição concreta. Assim, estes princípios convivem formal e subordinadamente com outros de uma ordem autoritária, garantidores da exclusão social em sociedades extremamente hierarquizadas e injustas. A partir dos debates sobre cultura política, é possível destacá-la como

[...] os valores políticos que provêm a base do discurso e das ideologias políticas como da prática política. Os valores políticos são orientações básicas, que determinam as formas de compreensão da realidade; estão incorporados ao discurso político e ao estilo da prática política (VIOLA; MAINWARING, 1987, p.107).

A cultura política, como advertem os autores, é interpretada historicamente e considera a dimensão sócioeconômica, destacando o seu potencial para o desenvolvimento ou para a erosão dos valores democráticos numa conjuntura particular. Desta forma, esses autores tentam romper com as abordagens lineares, “etapistas” ou que atribuem certos traços específicos como inerentes a uma tradição. Referem-se especificamente às versões instrumentalistas da cultura política presente na teoria da modernização dos anos 60 do século XX, que se fundavam basicamente nas atitudes políticas expressas verbalmente e nas escolhas individuais de atores autônomos.

É importante destacar este caráter contraditório e dinâmico da cultura, que lhe atribui uma nuança de tensão permanente e onde continuamente

Page 51: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

51

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

possibilidades são criadas ou inviabilizadas (WILLIANS, 1979). Constitui uma operação seletiva na qual determinadas forças sociais organizam-se para manter ao longo da história, sob diferentes formas, práticas e instituições que assegurem sua dominação, contra iniciativas insurgentes fundadas nas contradições, no caso deste trabalho, sociais e ambientais. É a partir deste ângulo que devemos olhar as lutas dos movimentos sociais latino-americanos nas últimas duas décadas para redefinir e ampliar o universo e o imaginário político na região.

O meio ambiente é a base natural – o ar, a água, o solo, os minerais, a flora e a fauna - sobre a qual se estruturam as sociedades humanas. É a partir deste suporte físico, químico e biótico que as sociedades travam uma relação de troca com a natureza, mediada pela cultura, a qual designa formas particulares de reprodução de sua organização social. Quando nos referirmos a terra neste estudo, estaremos pensando nesta base natural, a partir da qual relações sociais, econômicas, políticas específicas se desenvolvem numa cultura que, ao mesmo tempo, atribui um valor e uso para esta base natural.

Assim, é possível afirmar que a organização cultural regula a articulação entre processos ecológicos e processos históricos. De um modo amplo, a materialidade da cultura inscreve-se na racionalidade produtiva das sociedades gerando um efeito mediador entre a estrutura econômica e social e o meio ambiente (LEFF, 2001).

Este caráter mediador da cultura permite vê-la como um instrumento analítico para perceber de que forma certos processos históricos impactam os processos ecológicos, constituindo formas predominantes de representação política e de direitos sobre a apropriação e uso dos recursos naturais. No caso brasileiro, como veremos a seguir, estas formas predominantes de apropriação dos recursos naturais foram criadas, mantidas e remodeladas ao longo de sua história, conservando sempre uma índole centralizadora, concentradora e predatória. Índole esta igual e largamente disseminada nas relações sociais e garantida nas relações políticas estabelecidas pelo Estado, tendo em vista que foram “séculos de colônia, dezenas de anos sob o Império escravocrata, outras décadas sob as Oligarquias da República Velha, sucedida pela ditadura de Vargas. Em seguida o populismo, culminando em vinte anos de Ditadura Militar, que desembocaram nos governos Sarney e Collor, cômicos se não fossem trágicos”. (RIDENTI, 1992, p. 1).

Page 52: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

52

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

2.1 Traços da cultura brasileira

A opção pelo estudo da questão da terra e do patrimonialismo foi feita na medida em que são pensados como formas histórico-culturais representativas, ao mesmo tempo, de uma base material de apropriação de recursos naturais e sua correspondente lógica de dominação política. Além disso, são elementos ativos de uma tradição dominante e, portanto, expressão de suas contradições e vulnerabilidades uma vez em que se acham sempre ligados às explícitas pressões e limites contemporâneos (PAOLI; TELLES, 2000).

2.1.1 Questão da Terra

A questão agrária no Brasil e na América Latina é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento econômico, social, político e ético, ou em outras palavras, ao exercício pleno da cidadania. Encontram-se vinculadas a ela instituições e práticas que valorizaram o monopólio da terra e a exploração do trabalho.

A questão da terra será abordada aqui em sua função de dominação e nas prováveis implicações desta sobre as noções de propriedade e responsabilidade coletiva pelos recursos naturais. Quanto ao domínio territorial que caracterizou a formação da estrutura social, política e econômica do Brasil, cabe destacar as duas faces do caráter predador da colonização ibérica: sobre os recursos naturais e sobre as pessoas.

Desde os primeiros momentos da colonização, é possível observar dois pólos contraditórios de pensamentos sobre a relação com a natureza: uma celebração puramente retórica de um lado, e uma realidade de devastação impiedosa do outro (PÁDUA, 1987, p.20)1. Estes pólos refletiam tanto as preocupações renascentistas com o alargamento dos horizontes do saber como o sentido político e econômico que as novas terras assumiram no jogo de forças do sistema econômico mercantilista mundial. Incorporado a este sistema como fornecedor de matérias primas naturais, o Brasil manteve sob

1 a exploração predatória e irracional dos recursos naturais no Brasil foi objeto da crítica de pensadores liberais do século XiX como José Bonifácio, Joaquim nabuco, andré Rebouças, Euclides da cunha, que defendiam a modernização do país via a instauração de uma civilização urbano industrial. alberto torres, nas primeiras décadas de século XX, a partir de uma crítica mais aguda à subordinação do Brasil às potências internacionais, pregava um modelo alternativo e autônomo de desenvolvimento nacional. após a década de 20, caio Prado Junior e nelson Werneck Sodré fizeram a crítica à degradação ambiental na perspectiva do “nacionalismo modernizador”. (PÁdUa, 1986).

Page 53: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

53

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

diferentes formas esta condição até os dias atuais com a intensificação da degradação ambiental e do tecido social.

Contudo, a vigência de um caráter predador na apropriação dos recursos naturais não se deveu apenas às formas de funcionamento do sistema econômico mercantilista, mas também às características da colonização e aos elementos culturais ibéricos.

Sérgio Buarque de Holanda, entre outros autores (LEAL,1975; LINHARES, SILVA, 1999; PÁDUA, 1986; DEAN, 1996), defende a tese de que a exploração dos trópicos pelos portugueses não seria feita segundo uma lógica metódica e racional, mas com abandono e desleixo, lógica esta expressa na predominância do tipo ideal do aventureiro2.

Repetia-se mais uma vez o ciclo normal das atividades produtivas no Brasil. A uma fase de intensa e rápida de prosperidade seguia-se outra de estagnação e decadência. Já se vira isso, sem contar o longínquo do caso do Pau-Brasil, na lavoura de cana-de-açúcar e do algodão do Norte e nas minas de ouro e diamante no Centro-Sul. A causa é sempre semelhante: o acelerado esgotamento das reservas naturais por um sistema descuidado e extensivo (PRADO JÚNIOR, 1979, p. 25).

José Murilo de Carvalho (2001) afirmou que o mundo rural é o último bastião do poder privado e da negação de direitos, descrevendo este mundo como o fundo de um poço secular de opressão, de humilhação, de violação de todos os tipos de direitos. “Nós nunca fizemos um corte radical com o passado no que se refere à estrutura social. Tudo muda menos a desigualdade. O modo de apropriação dos recursos naturais instaurado e perpetuado no Brasil vem sendo predador também nas relações sociais que engendra, tido como uma das principais causas da desigualdade social no país (GUIMARÃES 1968; SALES,1994; LINHARES; SILVA,1999).

A concentração da terra tem seu aspecto de dominação ilustrado no que Karl Marx (1982, p. 65) chamou de separação entre as condições inorgânicas da existência humana e a existência ativa. Assumindo uma forma completa no capitalismo, esta separação é apontada por ele como fundamental para a compreensão da origem da desigualdade social, na medida em que expressa as formas sociais históricas de apropriação dos recursos necessários à vida. Assim, como ocorreu na origem do capitalismo,

2 Reis (2001, p.125) descreve assim o aventureiro de Buarque de Holanda: “O objetivo final é mais importante do que os meios, seu ideal é colher frutos sem plantar a árvore. Ele ignora fronteiras, é espaçoso, invasor, ladrão, aceita riscos, ignora obstáculos, (...) quer recompensa sem esforço (...) não visa a estabilidade, à paz, a segurança pessoal.”

Page 54: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

54

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

a instituição do monopólio dos bens naturais, ora nas mãos do Estado, ora sob a posse de grandes produtores, foi condição para a instauração do trabalho assalariado e a separação do trabalhador livre dos meios e instrumentos de produção, fosse no campo ou nas cidades.

A grande concentração de terra sob o jugo privado no Brasil evoluiu pari passu com formas de organização do trabalho compulsórias, seja com a escravização de índios, negros e mestiços, seja com outras formas de subordinação como a peonagem por dívida. O alto grau de dependência existencial (física, material e psicológica) das pessoas é um elemento distintivo central de relações de dominação tradicionais como o coronelismo. “Uma massa humana que tira sua subsistência de suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono. (...) E é dele [coronel], na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece.” (LEAL, 1975, p. 43)

Corresponde, inicialmente, ao coronelismo, enquanto forma de dominação característica do país, uma diversidade de formas de violência mediando as relações políticas, econômicas e sociais, logo, como elemento ativo de nossa cultura; designadora de um autoritarismo social. Nesse processo temos o “voto de cabresto”, o “curral eleitoral”, a escravidão, o trabalho infantil, os assassinatos no campo, assumindo um caráter extra-temporal, um sentido de continuidade predisposta, uma tradição seletiva3.

A reprodução da desigualdade sob formas de violência direta ou institucional (militar ou por omissão), somente em momentos de exceção ocorre abertamente. Forjou-se uma forma de dominação versátil que combina miscigenação, sinais de sedução, afeto, ternura, cordialidade e profunda desigualdade sócio-econômica. A confraternização, contudo, sempre foi tensa, sob a presença da força, sadomasoquista, enfim, consagrou-se pela instituição da violência “naturalizada”, pelo prazer arbitrado pelas vicissitudes do senhor.

O necessário recurso da aparência de encurtamento das distâncias sociais, elaborada na idéia “democracia racial” (Gilberto Freyre) ou no “homem cordial” (Sérgio Buarque de Holanda), funciona como um fetiche da igualdade, “ um mediador nas relações de classe que em muito contribui

3 Tradição seletiva no sentido atribuído por Williams, “uma versão intencionalmente seletiva de um passado configurativo e de um presente prefigurado, poderosamente operativo dentro do processo de definição e identificação cultural e social. (...) constitui um aspecto da organização social e cultural contemporâneo do interesse de dominação de uma classe específica” (WiLLiaMS, 1979, p. 137).

Page 55: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

55

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

para que situações conflitivas freqüentemente não resultem em conflitos de fato, mas em conciliação.” (SALES,1994, p.37).

A estrutura fundiária nunca mudou em sua essência no Brasil. Dos ciclos do pau brasil, cana-de-açúcar, borracha, ouro, na Colônia e no Império, aos modelos de monocultura agroexportadora e de capitalização e integração ao capital internacional na República, diversas mudanças procuraram assegurar ganhos de produtividade sem a reforma agrária. Assim, a estrutura de poder agrária assumiu novas feições devido a injunções exógenas a seu funcionamento como as oscilações do mercado internacional e as adversidades naturais.

Ao longo do tempo, a perenidade do monopólio da terra, e até como resultado de suas sucessivas crises econômicas, originou tanto a sujeição ao poder privado rural, enquanto “exército de reserva cativo”, como a inserção subordinada às estruturas de poder urbano (moderno), sobretudo através de um êxodo rural gigantesco. O deslocamento desordenado de grandes contingentes humanos num curto espaço de tempo, sem as condições de infra-estrutura, levou ao que vem se chamando de crise urbana. Este processo não só acelerou a degradação ambiental nos grandes centros urbanos, mas expôs estas pessoas a novas formas de violência, riscos e sofrimentos associados às condições de trabalho, habitação, saúde, educação e sociabilidade.

O drama de viver em um mundo de incertezas, riscos e impotências deriva, sobretudo, da experiência de não ter direito a ter direito, de sua existência ser descartável. Em muitos casos, o próprio direito de viver é uma concessão, um favor. Os estudos e denúncias sobre a ausência de direitos no Brasil proporcionaram diversas designações à aventura da cidadania no país. Aqui cabe apenas frisar a ausência endêmica de uma cidadania plena e extensiva, apesar das lutas sociais históricas de resistência aos diversos tipos de autoritarismo e indiferença secular do poder público e das elites. Uma noção de cidadania envolta em uma contradição entre o favor e o direito, a proteção e a cidadania funda-se em “relações sociais que se estruturam sem a mediação dos direitos, de tal modo que continuam a ser regidas pelo arbítrio sem limites do poder privado, entre o favor e a violência, duas faces de uma mesma recusa da alteridade.” (TELLES, 1994, p.46)

A demonstração da vigência de relações sócio-ambientais autoritárias como elementos ativos de uma cultura ficaria incompleta se não se mencionasse a sua incursão no domínio público. Isto equivale a descrever como certas práticas, expectativas, valores e instituições privadas e autoritárias entranham-se e “cristalizam-se” no imaginário político e na

Page 56: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

56

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

estrutura do poder publico. São nos contrastes e paradoxos deste sistema de poder, desnudados com a instauração de sua antípoda, a república (coisa pública), que podemos tentar desvendar suas principais inclinações e limites para um projeto de sociedade democrática. Parece razoável que a ilustração deste sistema de poder possa ser sintetizada na idéia de patrimonialismo.

2.1.2 O Patrimonialismo

O patrimonialismo é uma derivação do tipo de dominação tradicional, desenvolvido por Max Weber, e usado para indicar formas de dominação política em que as esferas pública e privada se confundem com o predomínio da segunda. Nesta tradição, toda idéia de público é inspirada nas relações e interesses privados; que tem como centro o poder discricionário patriarcal sobre a unidade familiar e seus agregados, os quais são totalmente submetidos à autoridade do senhor.

O senhor que administra de forma pessoal é ajudado seja por pessoas de sua unidade familiar, seja por plebeus. Eles formam um estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio; materialmente, são totalmente dependentes do senhor, e não têm nenhuma forma própria de poder competitivo. (WEBER apud SCHWARTZMAN, 1982, p. 45)

O patrimonialismo brasileiro encontra-se fortemente vinculado às suas raízes ibéricas. A influência ibérica na cultura e política nacional deu-se pela presença de valores como o culto da personalidade, o livre arbítrio, a fidelidade e a valorização do mérito pessoal. Recusavam toda hierarquia social, da coesão social, tendendo ao individualismo anárquico. Para o desenvolvimento de um senso público isto era trágico, pois implicava na frouxidão da estrutura social, das associações que exigiam ordem e solidariedade. Da autarquia da “Casa Grande”, isolada de todos, nascia o desinteresse pela vida pública.

Nossa vida pública, social e política era marcada pela família rural colonial. Está oferecia a idéia mais moral de poder, responsabilidade, obediência, coesão. [...] predominava o sentimento de comunidade doméstica, particularista e antipolítica. Havia uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família (REIS, 2001, p.128).

Page 57: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

57

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

Ao monopólio da terra correspondeu o monopólio da representação política, configurando relações e práticas políticas que serviram para balizar, desde o poder local, o possível e o impossível no marco do autoritarismo social brasileiro. Fenômenos como o poder oligárquico, o mandonismo, o filhotismo, o clientelismo, - combinados sob diversas fórmulas com lógicas racionais e até democráticas liberais-, ainda predominam no universo político que medeia as relações entre Estado e sociedade, constituindo fortes obstáculos à consolidação de instituições democráticas.

O recurso reiterado, até os dias atuais, à “política de compromisso” (LEAL, 1975; BURSZTYN, 1984) um sistema de reciprocidade entre as elites locais e o poder central vem assegurando a sobrevivência da desigualdade social e a brutal e incessante concentração de renda no país.

É necessário reafirmar que estas estruturas de poder, animadas por uma cultura autoritária, não evoluíram no tempo isoladas do sistema político e econômico mundial, mas que, ao contrário, sua continuidade foi condição e efeito para uma articulação subordinada do país a ele. Basta dizer que em vários momentos históricos o Brasil e o Terceiro Mundo aparecem em planos geopolíticos e geoestratégicos de grandes potências econômicas como fonte de recursos naturais (CHOMSKY, 1996) – e, nas últimas décadas, também como receptáculo de atividades e resíduos de alto impacto ambiental – e, em menor grau, como mercado consumidor. Assim, exposto e perseguindo, sobretudo durante espasmos nacionais desenvolvimentistas, um padrão de desenvolvimento capitalista avançado, forjou-se no país uma cultura de produção e consumo contrastante onde se sobressaem o hiperconsumo e a cultura da sobrevivência, ambos social e ambientalmente indesejáveis (LEFF, 2001).

No transcorrer do século XX, esta trajetória requereu importantes transformações como a estruturação e internacionalização do setor produtivo, a urbanização e uma racionalização do setor estatal, que permitiram a introdução do capitalismo no país. Tornou-se necessário, em certo grau, a adoção de racionalidades modernas, a burocracia e a tecnocracia, que passaram a exercer a co-gestão do espaço público com o patrimonialismo, agora, neo-patrimonialismo4.4 O termo é utilizado por Schwartzman para indicar um tipo de dominação que tem em comum aspectos tradicionais do patrimonialismo e aspectos “modernos” da dominação racional-legal, relacionados à introdução do capitalismo e do desenvolvimento de formas políticas da democracia de massa liberal. a convivência das lógicas tradicional e racional-legal não representaria apenas sobrevivência de estruturas tradicionais, mas um tipo de dominação bastante atual. Esta convivência seria possível, uma vez que o choque entre as duas seria amenizado dado que a burocracia pode subsistir somente com seu componente racional, sem seu componente legal:

Page 58: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

58

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Na exposição acima, procuramos delinear os principais legados de uma cultura política autoritária para a gestão democrática dos recursos naturais. Tais recursos naturais, a despeito de sua fartura e concentração, foram tratados de forma predatória, numa apropriação desleixada e extensiva. Esse caráter, em geral, se estendeu para as relações sociais, em que a terra assumiu, na forma privilegiada da propriedade privada, a condição de recurso de poder social autoritário. A constituição e perenidade do Estado patrimonial no Brasil, e de outras relações que submetem o espaço público a interesses privados, serão a expressão mais forte de poder social fundado na posse da terra. Destaca-se a incapacidade para o planejamento não só pela excessiva preocupação com o curto prazo, pelo personalismo, mas também pela miríade de interesses privados privilegiada no acesso ao aparato público, repelindo qualquer possibilidade de realização de direitos e interesses públicos. Isso redundou no histórico e elevado grau de dependência material e “espiritual” das massas em relação às elites e ao Estado e, assim, em seu alijamento do processo político. Como veremos a seguir, a continuidade de padrões de mando e subserviência terá profunda influência na fragilidade das noções de democracia, sociedade civil, esfera pública e de cidadania vigentes no país.

3 Gestão ambiental democrática e a cultura dominante

Identificar a vigência ainda nos dias de hoje das práticas e instituições apontadas acima é uma tarefa, infelizmente, relativamente fácil. O complicado é perceber como práticas e instituições tradicionais mesclam-se com práticas, valores e instituições tidas como modernas - os procedimentos da democracia liberal e a cultura consumista. Continua sendo mais fácil reconhecer a cultura tradicional pela continuidade de seus resultados. A seguir, tentaremos demonstrar como estas práticas e instituições autoritárias se manifestam enquanto limites para uma gestão democrática dos recursos ambientais. No intento de avançar na compreensão da cultura dominante, faremos considerações sobre outros dois importantes componentes modernos deste rol de limites.

Estudar as instituições políticas do meio ambiente, na perspectiva democrática, é fundamental, uma vez que a gestão ambiental não pode prescindir do consenso ativo, de intervenções orgânicas e de competências

“a existência de uma racionalidade de tipo exclusivamente “técnico”, onde o papel do contrato social e da legalidade jurídica seja mínimo ou inexistente”. (1982, p. 45-49).

Page 59: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

59

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

coordenadas, o que requer a existência de uma rede complexa e articulada de instituições. (GIOVANNINI, 1997).

Seguindo a tradição formalista nacional, o traço mais característico da política ambiental brasileira é o grande fosso existente entre o arcabouço jurídico e as ações efetivas. Se por um lado a constituição deste arcabouço nas últimas décadas coincidiu, e, em parte, foi impulsionada pelo processo de democratização do país, ela foi a grande obra do aparato tecnocrático em resposta às pressões internacionais (FERREIRA,1992). A inviabilidade de instituições ambientais e de seus instrumentos participativos, como os conselhos, as audiências públicas, é coerente com o elevado grau de conflitos e contradições que estas despertam no interior do estado patrimonial/tecnocrático ao assinalar uma gestão ambiental de interesse coletivo. Portanto, em boa medida, a debilidade destas instituições é uma condição necessária para a continuidade das estruturas de apropriação/produção privadas dos recursos naturais, sejam as arcaicas, sejam as modernas capitalistas. Destas instituições só pode se esperar uma participação marginal, apesar do grande repertório de ações cosméticas, as quais, em seus desempenhos sinuosos só reforçam a regra geral da precariedade do setor. O futuro parece mais ameaçador se considerados os processos atuais de privatização dos recursos naturais como a água.

É quase uma regra que não exista igualdade perante a lei, nem um acesso eqüitativo à justiça e aos serviços públicos “feudalizados”. Como afirma O’Donnell (1996, p. 27), quando descreve as instituições na América Latina, “o particularismo se torna desmedido no congresso e nos partidos, os tribunais falham ostensivamente em ministrar a justiça e as agências de controle são eliminadas ou reduzidas a passividade.” Na realidade, o aparato institucional de controle ambiental como de resto todo sistema jurídico e legislativo são um eficiente aparelho seletivo para a manutenção das desigualdades.

Nesse sentido, o Estado é um espaço quase inacessível à gestão pública dos recursos naturais e de defesa dos interesses coletivos, sincrônicos e diacrônicos de sua população. A sua função latente é antes a de promover o interesse privado e predatório, pela não produção ou sonegação de informações, pela obstrução da participação pública, pela indiferença, pela não fiscalização e pelo otimismo descabido no avanço tecnológico. Em síntese, pelo amainamento do conflito entre interesses privados e bens coletivos na apropriação dos recursos ambientais, que resulta na privatização dos recursos e na socialização dos custos dos impactos ambientais.

Page 60: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

60

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Parece improvável nestas condições imaginar que o Estado venha a atender as expectativas quanto às suas funções coordenadoras, fiscalizadoras e de avaliação e disseminação de informações sobre os riscos ambientais. A parcialidade que disto resulta vem deixando crescentemente à mostra tanto as contradições e desigualdades no acesso aos recursos naturais, como a fragilidade das tentativas de constituir um espaço público para garantir o direito de acesso a recursos públicos, contra a sua privatização e degradação.

A resistência temporal do monopólio da terra e da forma da propriedade privada, passando por diversas crises econômicas, levou à concentração populacional em centros urbanos em condições desfavoráveis de vida e à sujeição às lógicas populista e capitalista, aumentando a degradação ambiental e as situações de risco das populações de baixa renda.

Por outro lado, os traços fortes de paternalismo em relação às elites e ao Estado resultaram, para uma massa de excluídos na quase naturalização do alijamento dos processos decisórios sobre a distribuição e os modos de apropriação dos recursos naturais, a começar pela terra. Privilegiando interesses das elites locais ou internacionais ou do próprio Estado, a forma de propriedade privada foi o formato jurídico e cultural que consolidou a arbitrariedade e deu um sentido privatista a estes modos de apropriação. A inviabilidade da reforma agrária no Brasil em uma escala significativa até hoje é um exemplo substancial desta situação.

A exclusividade da instituição da propriedade privada ou estatal nos moldes descritos impede o exercício de outras formas de regimes de propriedades públicas, a exemplo da comunal, que requer uma sustentação em valores democráticos e em uma esfera pública ativa. Assim, fica também impedido um senso concreto de responsabilização pelo uso e conservação do patrimônio natural público e, portanto de interesse coletivo, como a terra vem sendo, antes de tudo, um instrumento de dominação, os problemas de pensar e opinar sobre seu presente e futuro não dizem respeito aos seus sem direitos, já que o futuro diz respeito às elites e ao Estado. Por isso, para muitos movimentos sociais, a terra também é significado de libertação de integridade física, moral e de resistência cultural, como atestam as lutas históricas na América Latina pelo direito a terra e à moradia5.

Assim, no Brasil, os riscos ambientais são potencializados devido à complexidade das incertezas sociais e institucionais enraizados nos altos

5 O controle dos recursos naturais tem sido a razão de focos de resistência de povos indígenas e camponeses da Guatemala, Honduras, nicarágua, El Salvador, colômbia, Equador, México e Brasil (LinHaRES; SiLVa, 1999).

Page 61: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

61

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

níveis de exclusão, na desinformação, na violência, no autoritarismo, na corrupção, no patrimonialismo e na submissão aos interesses internacionais.

Em um trabalho que relaciona o conceito de sociedade de risco de Ulrich Beck e o uso de agrotóxicos no Brasil, Guivant (2000, p. 297) apresenta alguns elementos da especificidade da dinâmica do risco em países em desenvolvimento. Para a autora, por nos encontrarmos em uma sociedade da escassez, vivenciamos as conseqüências de uma sociedade de risco, que são globais, porém sem uma reflexividade ativa. A percepção de que os riscos são gerais, fora do controle dos órgãos responsáveis, invisíveis e de longo prazo, tende a levar à paralisia, à indiferença e ao fatalismo. Guivant atribui o não-questionamento público sobre os riscos no consumo de alimentos à falta de tradição dos atores sociais na defesa de seus direitos como consumidores e ao descrédito generalizado em relação às instituições públicas. A pequena repercussão da preocupação ecológica na agenda nacional deve-se também a um traço da cultura brasileira de não valorizar a previsão nem se preocupar demais com os riscos futuros. (SORJ, 2000).

Não podemos subestimar o papel complicador exercido pela complexidade dos problemas ambientais em suas causas e conseqüências, em que a falta de conhecimentos básicos e informações impedem a identificação de certos riscos, enquanto outros são objetos de celeumas entre cientistas das mais diferentes vinculações. Quanto ao problema da informação dos riscos, a questão mais grave, ao lado, e piorada pelo baixo nível de escolarização da população, é a não produção ou sonegação dela pelo Estado e pela mídia. A desinformação contribui para que, em geral, não se identifique o problema a tempo de se precaver de seus efeitos e de identificar os atores responsáveis, encaminhando a ameaça como um problema político.

Como se evidencia, a ordem de constrangimentos e obstáculos impostos à formação de um espaço público para o debate ambiental no Brasil não é de fácil superação e está associado à própria constituição e conquista da cidadania dos brasileiros. Na realidade, o espaço público necessita que os homens e mulheres se reconheçam como iguais, discutam e decidam em comum sobre o presente e o futuro (TELLES, 1994), nesse sentido a cidadania no contexto do século XXI é também um exercício no campo socioambiental. Em síntese retrospectiva, as dificuldades e constrangimentos colocados podem ser resumidos nas seguintes condições:• Estado fechado ao interesses públicos, uma vez que constituído e

articulado com as elites políticas e econômicas autoritárias, privatistas, predatórias e concentradoras da propriedade dos recursos naturais nacionais;

Page 62: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

62

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

• Práticas assistencialistas, paternalistas e clientelistas existentes na população e reforçadas pelo poder público através de mecanismos de cooptação e tutela sobre a população de baixa renda e a desmobilização da população;

• A desmobilização da sociedade civil, redundando na fragilidade das associações civis, particulamente das organizações não-governamentais ambientalistas;

• Carência de informações quantitativas e qualitativas sobre os problemas ambientais, e respectiva disseminação na sociedade;

A coexistência dos aspectos acima impede que as agressões socioambientais sejam encaminhadas e resolvidas dentro de um campo movido por interesses coletivos,

[...] as agressões ambientais são a expressão da imposição dos interesses de poucos sobre o mundo de todos. Elas são, portanto, impedimentos à construção de um mundo efetivamente múltiplo. Por sua vez, as lutas contra as agressões ambientais são lutas pela construção da esfera pública da natureza, e pela introdução da política na gestão do meio ambiente. (ACSELRAD, 2001, p.8)

A Constituição Federal assinala no art. 225 que “todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988, p.99). A garantia destes direitos poderia ser denominada de cidadania ambiental, uma cidadania que “aguarda na fila” a sua vez. As crises econômicas e sociais, desde a década de 80 do século XX, e os problemas decorrentes ou aprofundados por elas vêm colocando a preocupação ambiental em uma posição de baixa prioridade entre as reivindicações da população.

Na opinião pública, ainda é bastante comum às demandas ambientais serem identificadas como demandas particulares da classe média informada ou como preocupações pós-materialistas dos países desenvolvidos, portanto, demandas elitizadas que não atenderiam aos interesses de segmentos que se quer consomem regularmente. Esta baixa importância relativa da preocupação ambiental também é sentida nas prioridades da população levantadas em campanhas eleitorais, no grau de legitimidade satisfatório que gozam as inexpressivas políticas ambientais estatais, e até nos posicionamentos dos governos brasileiros em negociações internacionais. Este dilema não é de todo equivocado, se consideramos os

Page 63: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

63

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

constrangimentos citados acima e, principalmente, a influência exercida pela mídia enquanto ator privilegiado na formação da opinião pública e pela homogeneização dos padrões de consumo capitalistas.

A inexistência de uma esfera pública ativa para o debate dos riscos ambientais tem seu simulacro e, em parte, sua causa, em uma mídia crescentemente hegemonizadora na formação da opinião pública. Na construção cultural de uma percepção mistificadora dos problemas, riscos e soluções aos problemas ambientais, a mídia tem exercido uma função primordial.

Podemos descrever o papel da mídia em relação à questão ambiental, como em geral, apresentando-a em uma versão isolada e fragmentada, acrítica, privilegiando fontes oficiais e tentando marginalizar ou desacreditar o ambientalismo como movimento social (RAMOS, 1995). Por outro lado, a natureza aparece como “espetáculo” romantizado (humanizado), despolitizando a questão, e conduzindo a soluções em termos de mudança de comportamento individual, quase sempre restritas aos limites de um “ecomercado”, e a uma fé cega em tecnologias redentoras. Parece desnecessário afirmar a gravidade desta situação se considerar o poder atual da mídia na formação de opinião pública sobre a crise ambiental, que, ao restringir seu espectro, inibe “a conscientização dos direitos dos cidadãos e das responsabilidades do poder público e dos agentes da sociedade civil em relação ao meio ambiente” (RAMOS, 1995, p.150).

Por outro lado, por meio das tecnologias de comunicação relativamente disponíveis, novos espaços de interação política, esferas públicas e formas de conquista e consolidação da cidadania têm surgido associadas às antigas demandas potencializadas6 Denúncias e versões alternativas e contestatórias aos diagnósticos ambientais de especialistas estatais ou de representantes de grandes grupos empresariais são disseminadas regional e globalmente, integrando e revitalizando lutas de grupos minoritários.

Cabe chamar a atenção para o papel fundamental que exerceram os movimentos sociais ambientalistas locais, nacionais e internacionais para que a problemática ambiental chegasse à agenda e ao debate públicos. 6 a este respeito é interessante citar o ponto de vista de Kellner (2001, p. 427) em A Cultura da Mídia, em que ele propõe como resposta a “era do barbarismo cultural” a adoção: a) de uma pedagogia crítica da mídia, onde esta não apenas é decodificada em suas configurações de poder e dominação existentes, mas também utilizada como instrumento de transformação social democrática; b) de um ativismo cultural nos estudos sobre cultura e mídia; e c) a necessidade de uma política cultural, “a necessidade de intervenção do público no debate sobre o futuro da cultura e das comunicações nas vias (principais) de acesso à informação e (secundárias) de acesso ao entretenimento”, com a discussão, por exemplo, sobre o tipo de cultura que é melhor para cultivar a liberdade individual, a democracia, a felicidade e o bem estar da humanidade.

Page 64: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

64

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Esses movimentos deram sua maior contribuição politizando as formas de apropriação dos recursos naturais. Como conclui Dagnino na experiência dos movimentos sociais na América Latina: “ao politizar o que não é concebido como político, ao apresentar como público e coletivo o que é concebido como privado e individual eles desafiam a arena política a alargar os seus limites e ampliar sua agenda.” (DAGNINO, 2000, p.95).

Em sua etapa de reprodução em escala mundial, o capitalismo desenvolve-se pela homogeneização de padrões de consumo e de produção induzidos pelo processo de crescimento acumulativo e pela lógica de lucro em curto prazo. A sua expansão tem gerado uma crescente pressão sobre o equilíbrio dos ecossistemas, assim como sobre a capacidade de renovação e a produtividade dos recursos naturais. (LEFF, 2001, p. 123)

Nas últimas duas décadas, assistiu-se à incorporação lenta, seletiva e conflituosa da questão ambiental ao desenvolvimento capitalista, cuja forma privilegiou a modernização tecnológica e o consumo sustentável. Estas idéias apontam para mudanças reguladas e assimiláveis pelo mercado, assegurando as bases políticas e morais para a continuidade da dinâmica dos padrões de produção e consumo capitalistas. Coerente com a regra geral da cidadania do consumidor, a inclusão neste modelo de bens e serviços relacionados à qualidade de vida “sustentável” reforçou a exclusão daquela grande proporção da população que não tem acesso a esse mercado. É igualmente verdadeira para o problema do consumo verde a afirmação de Carvalho (2001) de que reivindicando o direito de consumir estamos dando um salto de uma não-cidadania pré-moderna na direção de outra pós-moderna. É importante lembrar que o ambientalismo coloca o desafio de uma reconstrução do conceito de cidadania - esfera de garantia de direitos - porque esta é impraticável, a longo prazo, em um contexto democrático em que a cidadania é confundida com a possibilidade plena de atender aos padrões de consumo atuais.

4 A cultura ecológica como alternativa

Para não termos a impressão de que a cultura é apenas fonte de problemas e também para indicar o caráter dinâmico e insurgente dela, serão esboçadas algumas idéias introdutórias sobre a validade do ecologismo7 como proposta alternativa de sociedade e de cultura,

7 Existem muitos conceitos e teorias acerca dos ecologismos, alguns com sérias discordâncias entre si. Para não entrar nesse debate árduo, tomamos as idéias a seguir, sobretudo, das obras de Martínez alier (1998) e Leff (2001).

Page 65: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

65

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

e, neste sentido, contribuições que se pretendem consistentes para uma possível contra-hegemonia.

A cultura ecológica, segundo Leff, é um “sistema de valores ambientais que reoriente os comportamentos individuais e coletivos, relativamente ao uso dos recursos naturais e energéticos” (LEFF, 2001, p. 123), promovendo a vigilância dos agentes sociais sobre os impactos ambientais e os riscos ecológicos, a reorganização da sociedade civil pela defesa de seus direitos ambientais e a participação das comunidades na autogestão de seus recursos naturais.

Ao comprometer-se com a autogestão, a equidade social e a diversidade cultural, a proposta ecologista tentar criar as bases de uma democracia ambiental que garantiria a reapropriação social dos recursos naturais, tendo como parâmetros: o respeito à diversidade biológica e cultural e o fortalecimento da identidade étnica e a capacidade de autogestão do patrimônio de recursos naturais das comunidades.

Martínez Alier (1998) diferencia o ecologismo dos pobres ou o ecologismo da sobrevivência, do ecologismo da modernização tecnológica, este último, vinculado à manutenção do sistema de mercado. Para ele, todos os movimentos sociais pela sobrevivência são movimentos ecológicos uma vez que seus objetivos são as necessidades ecológicas para a vida, como as calorias da comida, para cozinhar e aquecer, a água, o ar limpo e o espaço para abrigar-se.

Reconhecendo que existe uma mútua relação entre distribuição econômica, distribuição ecológica e distribuição do poder político, Martínez Alier (1998) argumenta que o ecologismo popular busca uma solução para os conflitos distributivos econômico-ecológicos: “a categoria essencial é a distribuição ecológica, ou seja, o acesso desigual ao uso de serviços e recursos da natureza.” (MARTÍNEZ ALIER, 1998, p. 35-37)

No que diz respeito à construção de um projeto de sociedade alternativo, Leff (2001) e Martínez Alier (1998) avançam em direção a uma nova cultura a partir da recuperação de experiências latino-americanas como expressões de resistência cultural.

Pensando nos aspectos centrais da construção da contracultura dos novos movimentos sociais, Evers vai afirmar que “nenhum movimento social pode ir além de tentar recuperar fragmentos muito específicos de identidade, lutando em um (ou em alguns poucos) dos muitos fronts possíveis de dominação e aceitando, assim, o status quo

Page 66: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

66

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

em todos os outros frosnts.” (EVERS, 1984, p. 18) Esta seria a causa das contradições entre os movimentos e das dificuldades para coesão teórica e prática. Mais à frente vai dizer que:

[...] o elo muito procurado entre questão nacional e questão social possa efetivamente ser encontrado no “trabalho-de-formiga”diário destes movimentos sociais para resgatar à sociedade dominante pedaços de vida expressiva individual e coletiva. Ademais, é provável que este tipo de existência dotada de sentido não possa ser encontrada em nenhum outro lugar (EVERS, 1984, p. 18-19).

A profundidade das mudanças propostas pelos ambientalistas, a pertinência das mesmas e os princípios que as orientam, parece-nos abrir um amplo leque de possibilidades para a inclusão de interesses fragmentados minoritários e excluídos da atual sociedade. Pensamos que este atributo habilita o ambientalismo a ser um potencial eixo aglutinador de um projeto de contracultura.

O ambientalismo, sem negar valores presentes que se adaptem ao seu ao projeto, busca pedaços de vida de expressão individual e coletiva que configuram até hoje como fontes de resistência às formas hegemônicas de ocupação do espaço. Faz isto resgatando através das etnociências, antropologia e etnologia, em especial, da etnobotânica “os processos que conformam os estilos étnicos de manejo e usufruto de seus recursos naturais, assim como sua organização produtiva e as modalidades técnicas que assume o processo de transformação do ambiente.” (LEFF, 2001, p. 101).

A cultura, pois, joga dois importantes papéis nesta relação entre meio ambiente e sociedade. Primeiro, como lente para a reconstrução histórica das relações sociedade-natureza, realizando a crítica e apontando os limites de formas predatórias de apropriação do trabalho e dos recursos naturais; e, segundo, como instrumento para a condução de uma estratégia ambiental e social de desenvolvimento enquanto permite a recuperação dos conhecimentos de formas históricas e culturais de aproveitamento dos recursos ambientais. Essa cultura ecológica pode servir de veículo para a instalação do que Bermam (2000) chamou de uma cultura crítica, aquela engajada ativamente na questão de como os seres humanos devem viver e qual o significado de nossas vidas.

Alguns importantes exemplos destas iniciativas na atualidade são as Redes de Colaboração Solidária e de Economia Alternativa, as Listas de Consumo Crítico e as Redes de Comércio Justo que defendem relações

Page 67: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

67

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

econômicas segundo valores e critérios que combatem em diferentes graus a exploração humana, a degradação ambiental e a acumulação de capital. (MANCE, 1999). Além, é claro, das comunidades indígenas e de outros grupos que lutam para manter vivas suas tradições e formas de organização, em resposta ao etnocídio, espoliação, exploração e manipulação, gerando novos saberes culturais com potencial alternativo. Num certo sentido, pensamos aqui também nas possibilidades de novas experiências abertas pelas lutas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Cabe destacar a importância política de uma utopia8 que se refere à constituição da cidadania e da resolução dos problemas oriundos da questão socioambiental no Brasil. Nesse sentido, “as utopias podem ser consideradas, por um lado, como sintomas da crise de uma dada organização social, e por outro, como sinal de que no seu interior existem forças capazes de saltar além dela, embora ainda não estejam conscientes do como fazê-lo”. (SZACHI, 1972, p. 129).

É importante atentar que estes projetos trazem na abrangência de seus princípios ético-políticos avanços em terrenos colonizados pela lógica do sistema, tentando reduzir sua dependência em relação ao Estado e ao Mercado ao pautar-se por uma cultura política democrática. Um exemplo disso é a proposta do ecologismo dos pobres de Martinez Alier (1998), que enfatiza a preocupação materialista centrada na defesa do acesso comunitário aos recursos naturais, contra a ameaça do Estado ou do Mercado, uma reação contra a degradação ambiental provocada pela pobreza, pela cultura do consumo, pelo excesso de população e pelo intercâmbio desigual entre as nações.

As abordagens apresentadas implicam compreender que o momento histórico vivido não é o desejado, remetendo novamente a uma proposta utópica,

de fato, mesmo quando se lançam num futuro longínquo ou quando buscam o ideal num passado desaparecido, as utopias levam consigo a marca do tempo e do lugar de nascimento. Não há nada de estranho nisto. Elas são respostas não somente a perguntas eternas sobre a condição humana [...] São respostas que engajam os homens contemporâneos, pois a revolta não nos livra da coletividade mas somente define nosso lugar nela. (SZACHI, 1972, p. 20).

8 O debate e a “classificação das idéias utópicas, ou, mais precisamente das idéias que desempenham um papel de utopia através da história, oferece grandes dificuldades. A quantidade delas é quase ilimitada, de forma que não dá para mencionar sequer as mais importantes ...” (SZacHi, 1972, p. 19-20).

Page 68: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

68

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

As idéias até aqui arroladas não tiveram a intenção de encapsular um projeto contra-hegemônico na proposta ecologista, mas fazer uma provocação e contribuir para os esforços na busca de projetos alternativos. Muito também poderá se dizer sobre os limites do ecologismo, suas divergências internas, sectarismos, suas impossibilidades e divagações, o que será produtivo, se não perdemos o propósito de nossas necessidades históricas e percebermos as contribuições originais da cultura ecológica. Nesse conjunto como assinalou Vera Telles9, os conceitos de sociedade civil, espaço público e cidadania não estão juntos a priori, mas é o contexto histórico coletivo que define o empreendimento e a necessidade de uma nova linguagem política. Esta dá uma perspectiva de futuro, pois os conceitos estão comprometidos com uma necessidade histórica. Os conceitos têm um conteúdo normativo, com valores e parâmetros críticos que balizam um horizonte político e um devir utópico.

7 Considerações finais

Relacionar cultura, política e a questão ambiental é afirmar a necessidade de uma politização das formas de percepção da apropriação dos recursos naturais, sem o que qualquer projeto de sociedade sustentável e justa desaparece do horizonte utópico. Isto porque ainda podemos imaginar que qualquer utopia democrática seria inviável sem uma base natural que a sustente, sendo mais provável, num provável futuro, a agudização do autoritarismo e da violência em uma situação de crises ambientais generalizadas.

As referências sobre a cultura política brasileira revelaram, ao mesmo tempo, elementos ativos de uma tradição autoritária e as necessidades históricas relacionadas a desigualdades sócio-ambientais. Estes elementos, ativos nas práticas e instituições, materializam-se na questão da terra e no patrimonialismo. O substrato destes dois elementos está presente no autoritarismo social e na propriedade concentradora da base natural. Tendem a desenvolver e nutrir em relação à sociedade um senso de dependência, irresponsabilidade, conformismo, resignação e excessiva confiança em um poder público privatizado e quase indiferente à crescente pressão sobre o equilíbrio dos ecossistemas, assim como sobre a capacidade de renovação e produtividade dos recursos naturais. Mais recentemente, esta tendência é reforçada e remodelada tanto pela instabilidade e exclusão econômica e

9 Durante o Seminário “A Construção Democrática”. Auditório do Instituto de Filosofia e ciências Humanas da UnicaMP, dia 10/05/2001.

Page 69: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

69

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

social, pela letargia das instituições estatais ambientalistas como pela mídia orientada para os elevado padrões e ritmos de produção e de consumo de massa. Os limites para a constituição de uma esfera pública da natureza, da gestão democrática dos recursos naturais e da cidadania ambiental não são poucos, em que pese as lutas sociais para ampliar o debate e a politização da questão socioambiental.

O ecologismo pode ser pensado como uma cultura alternativa, utópica e emergente que tenta congregar culturas residuais - resistentes à incorporação capitalista e à dizimação -, para se constituir em oposição ao modelo de sociedade capitalista autoritário e insustentável. Ele é abrangente para se interpretar a organização da dominação e da desigualdade social, econômica, política e cultural. Sua abrangência, por sua vez, torna mais concreta e significativa a projeção utópica de uma sociedade alternativa e não-capitalista, desafiando-nos pessoal e coletivamente, pela mudança de estilo de vida, a assumir a radicalidade deste projeto.

A complexidade, a dinâmica e a sobreposição e acúmulo de irracionalidades e contradições no mundo contemporâneo representam colossais desafios para pensar a realidade, exigindo a reelaboração contínua dos instrumentos analíticos e teorias. Quase sempre é inquietante a sensação de que ao se tentar esboçar um projeto alternativo, este desmorona tão velozmente que nenhum modelo consegue delinear-se razoavelmente por muito tempo.

Ao apontar para as ameaças de um futuro incerto e para a necessidade do compromisso solidário com as gerações atuais e futuras como condição da vida em sociedade, a cultura ecológica acrescenta um marco temporal e material para as lutas progressistas, ao mesmo tempo que exige um conteúdo ético e pluralista como requisito de validade da ação política. . O que está em jogo aqui não é apenas o reconhecimento do alcance dos desafios e lutas presentes no projeto ecologista no Brasil ou um julgamento ético e político da pilhagem sócio-ambiental do passado e do presente, mas da pilhagem do futuro, da utopia.

Referências

ACSELRAD, Henri. Cidadania e Meio Ambiente. Texto para Estudo. [S. l.]: Mimeo, 2001.

ALVAREZ, Sônia, DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo. O Cultural e o Político nos Movimentos Sociais Latino-Americanos. In: Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: novas leituras. ALVAREZ, Sônia, DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (Org). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

Page 70: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

70

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympo, 1973.

BURSZTYN, Marcel. O Poder dos Donos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.

BRASIL, República Federativa. Constituição Federal de 1988. Brasília- DF, 1988.

CARVALHO, José Murilo. Entrevista ao jornal Valor Econômico, São Paulo, 8 de jun. 2001 - Ano 2 - n. 278.

CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Ed. UnB, 1996.

DAGNINO, Evelina. Cultura, Cidadania e Democracia. In: Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: novas leituras. ALVAREZ, Sônia; DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (Org.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

EVERS, Tilman. Identidade: a face oculta dos novos movimentos sociais. Novos Estudos CEBRAP, [S. l.]. v. 2, n.4, p.18-29, abr. 1984.

FERREIRA, Leila da Costa. Estado e Ecologia: Novos Dilemas e Desafios. 1992. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). UNICAMP, Campinas, 1992.

GIOVANNINI, Fabio. A. Democracia é boa para o ambiente? Ambiente e Sociedade. [S. l.]. v.1, n.1, p.103-115, 2 sem, 1997.

GUIMARÃES, Alberto P. Quatro Séculos de Latifúndio. São Paulo: Paz e Terra, 1968.

GUIVANT, J. S. Reflexividade na sociedade de risco: conflitos entre leigos e peritos sobre agrotóxicos. In: HERCULANO, S. C.; SOUZA PORTO, M. F. de; FREITAS, C. M. de (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói: EdUFF, 2000.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. São Paulo: EDUSC, 2001

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

LEFF, Henrique. Ecologia, Capital e Cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Blumenau, SC: Ediurb, 2001.

LINHARES, Maria Y.; SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Terra Prometida: uma história da questão agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1999.

MARTÍNEZ ALIER, J. Da Economia Ecológica ao Ecologismo Popular. Blumenau, SC: Ed. FURB, 1998, p. 35-37.

MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Page 71: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

71

Questão socioambiental, cultura política e cidadania no brasil

O’DONNELL, G. Uma outra institucionalização. Lua Nova, [S. l.], n. 37, p. 27-34, 1996.

PAOLI, Maria Célia, TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais: conflitos e negociações no Brasil Contemporâneo. In: Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: novas leituras. ALVAREZ, Sônia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (Org.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 103-148.

PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1979.

RAMOS, Luís Fernando A. Meio Ambiente e Meios de Comunicação. São Paulo: Annablume, 1995.

REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil. De Varnhagen a FHC. 4 ed. São Paulo: Editora da FGV, 2001.

RIDENTI, Marcelo. Política pra quê? São Paulo: Atual, 1992.

SALES, Teresa. Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira. RBCS, [S.l.], n 25, ano 9, jun. 1994.

SÃO PAULO, Secretaria do Meio Ambiente do Estado de / Coordenadoria de Meio Ambiente / Coordenadoria de Educação Ambiental. Educação. Meio Ambiente e Cidadania. Reflexões e experiências /Fábio Cascino, Pedro Jacobi, José Flávio de Oliveira (Org - São Paulo: SMA), 1998.

SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1982.

SORJ, Bernardo. A Nova Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

SZACHI, Jerzy. As Utopias ou a Felicidade Imaginada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.

TELLES, Vera. Cultura da dádiva, avesso da cidadania. São Paulo: RBCS, [S.l.], n. 25, ano 9, jun 1994.

VIOLA, E.; MAINWARING, S. Novos movimentos sociais. In: SCHERER-WARREN, I.; KRISCHKE, P. J. (Org.). Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. 2.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Page 72: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS
Page 73: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

73

O MAPA DOS EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA DE LONDRINA-PR

Irene Lopes SalviAna Claudia BansiSirlei Rose Martos

Luis Miguel Luzio dos Santos

1 Introdução

a história brasileira foi construída sob uma racionalidade em que as elites econômicas se perpetuaram ao longo dos séculos, apoderarando-se do Estado como uma extensão dos seus proprios domínios individuais. Essa aliança entre poder economico e político gerou uma das mais injustas sociedades do mundo, em que nem mesmo as condições naturais privilegiadas conseguiram garantir um mínimo de bem-estar para boa parte da população. assistiu-se a um processo de apoderação contínuo que fez com que as imensas potencialidades nacionais ficassem concentradas nas mãos de um número extremamente reduzido de pessoas, condenando os demais a uma condição de subserviência crônica e de exploração contínua, num ciclo vicioso que se reproduziu ao longo da história.

diante de um quadro dominado por contradições profundas vêm surgindo variadas propostas de mudança na estrutura socioeconômica dominante capazes de imprimir uma nova lógica em que crescimento econômico e desenvolvimento social sejam simétricas. assim, surge o conceito de economia solidária, que se propõe a substituir a lógica da competição e do individualismo, por um modelo de bases cooperativas e solidárias, com o objetivo inicial de promover a inserção social de um enorme contingente de excluídos do mercado de trabalho formal e possibilitar o fomento de um novo ideal de sociabilidade em que os laços de proximidade e as relações humanas sejam fortalecidas.

O conceito de Economia Solidária se reporta a um conjunto de atividades econômicas de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito, organizadas coletivamente de acordo com os princípios da autogestão. Esta forma de produção visa transformar o trabalho num meio de libertação humana dentro de um processo de democratização

Page 74: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

74

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

econômica, criando uma alternativa à dimensão alienante do modelo de trabalho assalariado capitalista.

a Economia Solidária encontra-se em franca expansão no Brasil, principalmente após a criação da SEnaES – Secretaria nacional de Economia Solidária que se propôs a fomentar e apoiar iniciativas dentro desta modalidade em todo o país. a Economia Solidária apresenta diferentes iniciativas e abraça distintas modalidades organizacionais o que faz com que o estudo deste fenômeno ganhe em complexidade e necessite de pesquisas que consigam captar características que vão além do plano meramente quantitativo e captem a realidade de cada região específica.

O presente estudo pretende desenvolver um mapa da Economia Solidária na cidade de Londrina/Paraná, de forma a abarcar os diferentes modelos organizacionais, suas particularidades e evolução histórica, além dos variados arranjos institucionais que garantem conexões multiformes e que ganham em riqueza de análise. nesse sentido, destaca-se a parceria estabelecida entre a Universidade Estadual de Londrina e alguns grupos de Economia Solidária da cidade, assim como as relações estreitas estabelecidas com a Prefeitura da mesma cidade. De forma específica buscou-se caracterizar os diferentes modelos de Economia Solidária presentes na cidade; identificar suas formas de liderança; levantar seus avanços e desafios e compreender as relações estabelecidas entre elas e os demais atores institucionais.

Quanto à organização metodológica do trabalho, tratou-se de um estudo qualitativo através da análise de casos múltiplos compreendendo todas as iniciativas de Economia Solidária em atuação na cidade de Londrina/PR. Foram realizadas entrevistas junto aos principais dirigentes de cada uma das organizações, além de consulta a documentos, como estatutos e atas, de forma a reunir elementos capazes de auxiliar na caracterização dos empreendimentos e compreender a sua forma de gestão e posicionamento. a pesquisa foi realizada no período de junho e julho de 2010 e compreendeu as organizações mencionadas a seguir: • Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Solidários da Universidade

Estadual de Londrina (intES-UEL);• Programa Municipal de Economia Solidária da Prefeitura de Londrina –

que encampa a cOPERSOL;• Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos

da Região Metropolitana de Londrina – cOOPERSiL;• Comunidade Doze Tribos.

Page 75: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

75

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

2 Economia solidária

ainda que o conceito de Economia Solidária seja recente, os ideais e diretrizes que lhe servem de base não são novos e remontam a um período pós Revolução industrial quando os trabalhadores começaram a se organizar e criaram as primeiras cooperativas como forma de enfrentamento das vicissitudes desse período, que condenaram milhares de trabalhadores ao desemprego ou ao subemprego, à expulsão do meio rural e à exploração de todo a ordem. Este cenário deu as bases para a criação das primeiras cooperativas e tornou-se o embrião de um movimento que passaria a ser mais conhecido como socialismo utópico, diferenciando-se dos ideais revolucionários e de planificação centralizada dos chamados socialistas científicos (GENNARI e OLiVEiRa, 2009).

a segunda metade do século XX foi caracterizada pelo domínio quase absoluto do capitalismo de corte neoliberal. como descreve Sousa Santos (2002) é dentro dessa face mais extremada do capitalismo que podem ser visualizadas as suas contradições fundamentais e que são resumidos em três críticas essenciais: a primeira é a desigualdade econômica, de poder e de relações sociais que atinge níveis nunca antes vistos e condena populações inteiras ao ostracismo e à indigência. a segunda crítica apóia-se no fato de que as relações de concorrência determinadas e exacerbadas no mercado capitalista criam formas de sociabilidade empobrecidas, baseadas no individualismo e no egoísmo. E por fim, a terceira característica negativa diz respeito à exploração desproporcional de recursos naturais que coloca em risco a própria sobrevivência da vida na terra, pois o nível de produção e consumo demandados pelo capitalismo é insustentável com a capacidade disponível do planeta.

No final do século XX com o acentuado crescimento do desemprego, da pobreza e o agigantamento das desigualdades sociais em todo o mundo, houve um renascer dos ideais emancipatórios e principalmente da busca por alternativas capazes de acolher os hoje excluídos do mercado de trabalho e ir além, na busca por modelos organizacionais amparados numa nova lógica que não a do monopólio da competição e do individualismo. Surge assim, a chamada Economia Solidária que é definida como um modo de organização econômica e social amparada nos princípios da autogestão, igualdade, solidariedade e sustentabilidade ambiental (SinGER, 2002).

Page 76: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

76

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

2.1 Princípios

Ainda que não haja um único modelo organizacional em que podem ser acolhidas as inúmeras modalidades de Economia Solidária, estas aproximam-se na adesão a alguns princípios fundamentais que lhe garantem identidade e certa unidade, mesmo diante da pluralidade de organismos. Singer (2002) salienta como princípios fundamentais da Economia Solidária os seguintes atributos: • Ajuda mútua: todos do grupo se envolvem na solução de problemas

comuns; • Esforço próprio: motivação dos integrantes com o fim coletivo; • Responsabilidade: compromisso moral com os associados no cumprimento

das atividades para o alcance das metas; • Democracia: tomada de decisões coletivas; • Igualdade: todos os integrantes têm os mesmos direitos e deveres; • Equidade: distribuição de renda é justa e equilibrada; • Solidariedade: cooperação e ajuda mutua entre os associados, famílias e a

comunidade. Na Economia Solidária a autogestão assume o significado do agir

coletivo, da cooperação e da busca pelo bem comum, o que para albuquerque (2003) apresenta algumas vantagens em relação à heterogestão, já que há uma tendência a aumentar-se a eficiência e a capacidade produtiva dos trabalhadores, além da melhoria na qualidade dos produtos, fruto de índices mais elevados de motivação e comprometimento decorrentes de um ambiente mais participativo e democrático.

na visão de Singer (2002), além da autogestão ser considerada uma forma de gestão mais justa, seu mérito principal é o desenvolvimento humano, pois quando o indivíduo participa de discussões e decisões de forma coletiva, isso o torna mais realizado e autoconfiante, ganhando-se não só em índices de produtividade e eficiência mas principalmente em formas de sociabilidade enriquecidas. Porém, quando o único apelo se resume a criar-se uma fonte de renda, sair da pobreza e eliminar a figura do patrão, acaba-se por não aproveitar as potencialidades da Economia Solidária de gerar uma nova forma de convivência social, mais próxima e fraterna, dando bases para um novo modelo de sociabilidade.

2.2 diferentes modelos

ainda que o conceito de Economia Solidária apresente elementos comuns que lhe dão uma certa convergência, as opiniões sobre as estratégias

Page 77: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

77

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

mais convenientes para o seu desenvolvimento são distintas e muitas vezes conflituosas. Diferentes autores vêem apresentando suas teses sobre a melhor arquitetura para o impulsionar e consolidar as iniciativas de Economia Solidária diante do contexto socioeconômico contemporâneo. a seguir apresentam-se algumas dessas posições, salientando-se as suas características e singularidades.

Paul Singer (2000) é considerado um dos pioneiros e dos mais importantes difusores desse novo modo de produção, comercialização e consumo. de acordo com Singer, a Economia Solidária ainda que parta de uma lógica centrada na solidariedade e na cooperação, não pode querer impor-se apartada do sistema dominante, mas antes terá de demonstrar eficiência capaz de se impor diante das exigências do mercado convencional. dessa forma, o modelo visualizado pelo autor requer ganhos de escala conseguidos através da integração de empreendimentos solidários que se complementam e garantem maior eficiência. Para que esta complexa estrutura possa-se consolidar, Singer defende a participação de governos e universidades, estimulando-se a criação de incubadoras, acesso a crédito e apoio em geral, fundamentais principalmente nos primeiros momentos.

Paul Singer afirma que os empreendimentos Econômicos Solidários possuem um caráter multifuncional, pois, propõem um modelo econômico e de convivência que almeja superar a centralidade atribuída ao economicismo e avançar para outras dimensões fundamentais ao gênero humana, como social, política e relacional. assim, a Economia Solidária além de se propor a atender às necessidades materiais dos seus integrantes, também busca suprir outro tipo de aspirações, como reconhecimento, autonomia e inclusão social, num modelo que se propõe a ser superior ao capitalista.

Euclides Mance (1999) apresenta como proposta para a Economia Solidária a formação de um sistema de redes de colaboração solidária capaz de integrar diferentes empreendimentos de forma complementar, integrando produção e consumo. Propõe a articulação entre diferentes unidades cooperativas de Economia Solidária, que trocam elementos entre si, complementando-se e fortalecendo-se, aumentando continuamente a sua abrangência e capacidade de atender a novas demandas. Esta proposta apresenta-se como uma alternativa ao mercado capitalista, desenvolvendo-se paralelamente a este e substituindo-o progressivamente num processo que almeja auto-suficiência. O autor apóia-se no apelo ao consumo solidário como base fundamental para a viabilização e potencialização das redes frente ao mercado tradicional, ou seja, os diversos operadores solidários que atuam na cadeia produtiva deverão dar prioridade a produtos provenientes de outras iniciativas de Economia Solidária como forma de fortalecimento de toda a rede.

Page 78: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

78

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Rosangela Barbosa (2007) desenvolve um raciocínio mais crítico em relação à Economia Solidária e seus empreendimentos cooperativos. a autora parte da tese de que se o desemprego, a pobreza e todos os problemas que se repercutem em exclusão social são decorrentes de uma estrutura social perversa, querer transferir a resolução desses problemas para a esfera individual é antes de mais nada incoerente e injusto. ao querer-se fomentar o empreendedorismo coletivo através de grupos de excluídos do mercado de trabalho convencional, considerando sua baixa formação técnica e auto-estima debilitada por anos de subserviência, torna-se uma lógica perversa e de sucesso bastante duvidoso. Problemas estruturais terão de ser solucionados corrigindo-se as próprias estruturas e não transferindo a responsabilidade para as vitimas deste processo.

Santos e Borinelli (2010) dentro da mesma lógica de Rosangela Barbosa, percebe como arriscado pensar-se a Economia Solidária inserida dentro do mercado tradicional, considerando-se todos os revés que lhe são inerentes, como a baixa escolaridade e formação técnica dos seus membros, histórico de miséria e subserviência, dificuldade de acesso a financiamentos e know how, capacidade de inovação permanente, entre tantos outros obstáculos inerentes ao mercado competitivo que terão de enfrentar. considerando-se esse quadro perverso e desanimador, o autor defende que haja uma mudança na letra da lei de compras públicas, de forma a se privilegiar produtos e serviços provenientes de empreendimentos da Economia Solidária. a garantia de demanda e o fomento à criação de novos empreendimentos que possam satisfazer uma parcela das necessidades do poder público, poderá-se tornar uma solução inteligente e efetiva de inclusão social, aliando a mudança das estruturas excludentes com a formação de uma nova modalidade de parceria público-privada amparada em prioridades sociais e emancipatórias.

2.3 Desafios

Cattani (2003) descreve três grandes desafios a serem enfrentados pela Economia Solidária: O primeiro deles diz respeito ao trabalho, ou melhor à dificuldade em garantir-se meios eficientes e decentes de integrar o contingente de desempregados e marginalizados pelo sistema econômico dominante. O segundo desafio é fazer com que a Economia Solidária não seja confundia com o terceiro setor, ou seja, um campo de trabalho voluntário ou envolto em relações caritativas que reforçam a dependência destes. E por fim, o terceiro e último desafio é que a economia solidária não seja reduzida a uma alternativa para pobres e excluídos, mas sim proporcionar avanços na sociedade de forma

Page 79: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

79

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

mais ampla e consistente, avançando em novas experiências econômicas e de sociabilidade.

Além dos desafios apontados por Cattani (2003) para a Economia Solidária, outros se fazem presentes como a prática da autogestão que exige um abandono da lógica hierárquica tradicional e que impõe maior grau de responsabilidade por parte de todos os integrantes do empreendimento. Também a liderança, que apresenta contornos mais informais e flexíveis, nem sempre fácil de exercer e que muitas vezes afasta-se do modelo democrático participativo e em outros casos, fragmenta-se, fragiliza-se e afasta-se do compromisso em responder com rapidez e eficiência às contingências impostas pelo ambiente (SantOS; BORinELLi, 2010).

Portanto, a Economia Solidária pode ser visualizada numa perspectiva de múltiplas alternativas e experiências que tentam se impor diante da realidade, cada uma ao seu modo, considerando o ambiente inóspito que tende a condenar grande parcela ao fracasso. ainda não se pode apontar para um modelo hegemônico ou privilegiado, mas antes uma multiplicidade de empreendimentos tentando se consolidar e ultrapassar a fase de sobrevivência, o que ainda se torna o desafio principal da maioria das iniciativas de Economia Solidária presentes no Brasil.

3 Metodologia

A presente pesquisa buscou realizar um mapeamento do perfil da Economia Solidária na cidade de Londrina, considerando o empenho tanto do poder público em fomentar este modelo organizacional, como da Universidade Estadual de Londrina através de uma incubadora que visa dar apoio a estes empreendimentos na cidade. Foram pesquisadas 4 organizações dentro do escopo da Economia Solidária: intES – incubadora tecnológica de Empreendimentos Solidários; cOPERSOL – que é apoiada pelo Programa Municipal de Economia Solidária; cOOPERSiL - cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos da Região Metropolitana de Londrina e comunidade doze tribos.

a pesquisa teve caráter qualitativo na medida em que buscou coletar informações em documentos e registros nas próprias organizações, de forma a conseguir caracterizar o perfil da Economia Solidária no município. também foram efetivadas entrevistas junto aos dirigentes de cada uma das entidades para levantar seu histórico, forma de gestão, liderança e estratégias de ação priorizadas por cada entidade, e por fim buscou-se discutir quais as perspectivas futuras e desafios enfrentados pela Economia Solidária em Londrina na perspectiva dos seus principais dirigentes.

Page 80: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

80

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

3.1 caracterização das organizações pesquisadas

3.1.1 Incubadora tecnológica de empreendimentos solidários (intes)

a incubadora tecnológica de Empreendimentos Solidários da Universidade Estadual de Londrina (intES-UEL) é um projeto de extensão vinculado ao Programa nacional de incubadoras de cooperativas Populares (PROninc), aprovado pela Financiadora de Projetos e Pesquisa (FinEP), e apoiado pela Fundação inter-universitária de Estudos e Pesquisas sobre o trabalho (UnitRaBaLHO) e está em atuação desde 2005

A INTES tem como missão fornecer apoio profissional aos grupos de trabalho coletivo, selecionados previamente de acordo com as necessidades e potencialidades de cada um, contribuindo para a sua inserção política, social e econômica. a incubadora busca acompanhar sistematicamente os diferentes grupos encampados e oferece assessoria técnica e administrativa a cada um dos empreendimentos. também faz parte das atribuições da incubadora desenvolver treinamentos em diferentes áreas técnicas e de gestão, como organização do trabalho, princípios da autogestão, orientação jurídica, contabilidade básica, gestão financeira, mercadológica, entre outros temas necessários.

atualmente o projeto atende a sete grupos de geração de trabalho e renda, que são caracterizados a seguir:

GRUPO ÁREA DE ATUAÇÃONº DE

INTEGRANTESMão na terra – Horta comunitária Verduras e legumes sem agrotóxicos. 6

Verde Vida Plantação e comercialização de orquídeas e bromélias. 3

Grupo aMaR artesanato em papel reciclável. 4

Grupo cOM UniãO costura e tingimento de lençóis com a técnica taidai. 4

Ervas de Salete Produção e comercialização de ervas medicinais secas. 6

Unidas Somos Mais artesanato em retalho – patchwork. 4

Grupo UniaRtE artesanato com materiais recicláveis da construção civil. 8

Quadro 1: Grupos atendidos pela intESFonte: Pesquisado e elaborado pelos autores

Predomina a diversidade de atividades, o que acaba por ser um complicador a mais no desenvolvimento das iniciativas que de uma forma geral encontra-se ainda em fase incipiente e longe de garantirem autonomia econômica e técnica. Destaca-se, no entanto, o grupo “mão na Terra” que

Page 81: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

81

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

trabalha com verduras sem agrotóxico e que vem conseguindo avanços promissores. a comercialização dos produtos desenvolvidos pelos grupos é realizada principalmente em feiras específicas e de forma avulsa para conhecidos.

Os critérios para o ingresso de um novo grupo ou o aumento no número de integrantes destes, leva em conta a vontade da própria pessoa em trabalhar de forma cooperativa e aderir aos princípios da Economia Solidária e a possibilidade da intES em absorver mais empreendimentos. a intES está aberta à entrada de novos grupos, desde que estes se enquadrem dentro dos critérios e perspectivas preconizados pela Economia Solidária.

3.1.2 COPERSOL – Promovida e Apoiada pelo Programa Municipal de Economia Solidária

a Prefeitura Municipal de Londrina desde 2005 conta com um Programa Municipal de Economia Solidária que visa a formação de grupos de trabalho e renda coletivos junto a comunidades de baixa renda da cidade. Esta iniciativa atende a 30 grupos de Economia Solidária dando apoio material inicial, formação técnica, assessoria e conta com um local próprio para comercialização dos produtos - Centro Público de Economia Solidária - que se localiza numa região central da cidade (REPRESEntantE da cPES).

O referido programa foi responsável pela criação de uma cooperativa (cOPERSOL) em 2010, que integrou nove grupos atendidos pelo Programa de Economia Solidária da Prefeitura Municipal de Londrina e que compreendem três áreas distintas de atuação: alimentos, confecção e artesanato. O esforço em criar-se a cooperativa se deve principalmente à necessidade em se atuar formalmente potencializando a oportunidades de comercialização dos produtos provenientes dos grupos.

no quadro abaixo são apresentadas as iniciativas encampadas pelo Programa Municipal de Economia Solidária da Prefeitura de Londrina:

Page 82: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

82

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Grupo Área de Atuação Número de Integrantes

Aeroflores Flores ornamentais 3amar artesanato em papel reciclado 4arte no tear artesanato no tear 2Baby acessórios confecção 4Belas art’s artesanato em MdF 2Beleza Pura Salão de beleza 2Brincar de Q. artesanato – brinquedos educativos 3casa de Pães alimentação 6ciranda confecção – roupa infantil 3com União artesanato – roupa de cama 3crochê ideal artesanato em crochê 3Ellus pães alimentação 3Fino Sabor alimentação 2Fuxico Brasil artesanato em fuxico 2Girassol colorido Produção de flores 2Jeito de Ser Vestuário – pijamas 2Ki doce doce alimentação - cocadas 3Kre Kygfy artesanato indígena - cestos 20Lumarte artesanato – decoração em tecido 3Mãos e arte artesanato em MdF 5Marreca Vestuário – camisetas 3Marrom Glacê alimentação – doces 2Mel Ouro Fino alimentação – mel 3Moda da casa artesanato – utilidades domésticas 2Padaria Pão Maravilha Padaria e confeitaria 5Parceria da Beleza Salão de beleza 2Sabor de Quero + alimentação – bombons e trufas 3Sabores do campo alimentação - salgados 4Salgados Santa izabel alimentação – salgados, bolos e jantares 2Sol para todos artesanato em crochê 2

Quadro 2: Grupos atendidos pela Prefeitura Municipal de Londrina/PRFonte: Pesquisado e elaborado pelos autores

de forma semelhante à realidade encontrada na intES, os grupos assessorados pelo Programa Municipal de Economia Solidária, apresentam-se de forma bastante incipiente, sendo que apenas um destes, a “ Padaria Pão Maravilha” consegue gerar recursos suficientes para garantir a sua autosuficiencia e potencial de expansão.

O Programa Municipal de Economia Solidária não fornece recursos financeiros para as atividades apoiadas, mas garante o fornecimento da matéria prima necessária para cada grupo iniciar suas atividades produtivas e mantém este apoio até que o grupo consiga atingir auto-suficiência. A maioria dos grupos de Economia Solidária busca viabilizar suas atividades através de parcerias ou envolvimento de apoiadores diversos, como igrejas, OnGs e empresas.

Page 83: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

83

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

Para a coordenadora do Programa o fornecimento da matéria prima necessária ao desenvolvimento das atividades é de extrema relevância, considerando-se a precariedade de recursos financeiros predominante nos empreendimentos. Os grupos são acompanhados inicialmente por dois anos pelos técnicos da prefeitura, dando suporte técnico e administrativo até que os empreendimentos consigam ganhar vigor suficiente para se desenvolverem autonomamente, o que na realidade vem sendo um dos grandes entraves, já que na grande maioria dos casos este período não vem sendo suficiente para que estes atinjam a tão sonhada autosuficiencia, o que faz com que o prazo de “incubagem” seja prorrogado.

Para a adesão de novos grupos ao Programa de Economia Solidária da Prefeitura Municipal de Londrina, existem alguns pré-requisitos fundamentais que foram mencionados pela coordenadora do programa: Os grupos de Economia Solidária são formados por pessoas em alta vulnerabilidade social, fora do mercado de trabalho e que demonstram interesse em participar de uma atividade econômica coletiva, além de se submeterem aos princípios da Economia Solidária. Posteriormente passam por um processo de formação em cooperativismo e Economia Solidária, além do aprimoramento técnico necessário ao desenvolvimento das atividades.

3.1.3 Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos da Região Metropolitana de Londrina - COOPERSIL

Em setembro de 2009, foi criada a cooperativa dos catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina – cOOPERSiL e atua em parceira com o poder público municipal, desenvolvendo o serviço de coleta seletiva de resíduos sólidos na cidade de Londrina. inicialmente a cooperativa foi formada por catadores autônomos que se encontravam organizados em forma de associações civis, sujeitos às imposições de atravessadores, o que limitava seus rendimentos, além da precariedade das condições de trabalho.

a cooperativa conta com 145 cooperados, mas encontra-se aberta à entrada progressiva dos demais autônomos que ainda se encontram fora da organização. A parceria entre a cooperativa e o poder público municipal garante um repasse fixo da Prefeitura no valor de R$30.000,00 por mês e R$64,00 por tonelada de produto recolhido. Além disso, ficou acertado que a cooperativa ficaria responsável por realizar visitas aos domicílios da cidade com a finalidade de conscientização ambiental da população e reforçarem a

Page 84: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

84

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

importância da separação dos resíduos, atividade esta remunerada com R$ 0,05 por domicílio visitado. dessa forma houve um incremento considerável no nível médio de rendimentos dos trabalhadores que saltou de R$ 270,00, para uma média em torno de R$ 700,00, com picos que ultrapassam os R$ 1000,00 (REPRESEntantE da cOOPERSiL).

3.1.4 Comunidade Doze Tribos

a comunidade doze tribos surgiu nos EUa há 40 anos e conta atualmente com cerca de 2000 pessoas no total, encontrando-se presente em países como Estados Unidos, canadá, argentina, França, Espanha, austrália, alemanha, inglaterra, e há vinte anos deu inicio às suas atividades no Brasil. No Brasil existe uma única tribo localizada no Estado do Paraná e que é sub-dividida em 3 comunidades instaladas em campo Largo, Mauá da Serra e Londrina. a comunidade de Londrina, na qual foi realizada a pesquisa com um dos seus membros mais velhos, é a maior das 3 e mantém uma certa centralidade em relação às demais, considerando o numero mais expressivo de membros, contando atualmente com cerca de 80 pessoas (dOZE tRiBOS, 2010).

a comunidade doze tribos faz parte de um movimento religioso de carisma cristão , ainda que não institucionalizado, e busca resgatar a essência originária dessa doutrina, vivendo em comunidade e dividindo tudo entre todos, compartilhando tarefas e rendimentos sem hierarquia definida ou unidade de comando, o que faz com que esta experiência se enquadre no modelo de autogestão e mantenha presentes os princípios fundamentais da Economia Solidária.

a entidade é legalmente constituída como associação e está localizada numa pequena fazenda na região rural de Londrina, onde produzem parte das necessidades básicas dos seus integrantes, além de manterem algumas unidades produtivas que lhes asseguram os rendimentos necessários à manutenção da comunidade. Entre as principais atividades desenvolvidas pela comunidade, destacam-se as atividades agrícolas de subsistência, comercialização de alimentos integrais, artesanato, artefatos em madeira e erva mate orgânica. O produtos são comercializados, na sua maioria, em feiras em várias regiões do país e num ponto comercial dentro da própria comunidade.

todas as funções buscam ser rotativas, para não criar privilégios ou feudos de poder e para que todos tenham conhecimento do processo de forma integral. as atividades são orientadas por coordenadores, que são rotativos, o que dá oportunidade para que todos possam exercer diferentes

Page 85: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

85

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

papeis e funções. Os integrantes da comunidade vivem como grandes famílias, dividindo-se em clãs de aproximadamente 30 pessoas cada, para que se mantenha a proximidade nos relacionamentos e se garantam os vínculos fraternais entre os integrantes, elemento visto como principal para a viabilidade de um modelo de vida comunitário.

3.2 a gestão nas organizações pesquisadas

a intES é formada por uma equipe de colaboradores que inclui 11 professores, sete técnicos ou recém-formados e 26 estagiários. na intES a liderança principal é exercida pela coordenadora da própria entidade, eleita diretamente entre os professores, e que em conjunto com os demais professores integrantes da incubadora define as estratégias e políticas de ação da organização. Os professores orientam os técnicos e os estagiários, que por sua vez são responsáveis por dar o suporte técnico e orientação de gestão aos grupos. Os técnicos têm a responsabilidade de supervisionar as atividades dos estagiários e acompanhar os grupos juntamente a eles.

A INTES é uma incubadora que tenta congregar profissionais de diferentes áreas do conhecimento para que haja uma integração e complementaridade de saberes. atualmente a entidade conta com representam das áreas de agronomia, artes, administração, ciências contábeis, comunicação (relações públicas), design de moda, design gráfico, direito, economia, psicologia e serviço social.

no Programa Municipal de Economia Solidária a liderança é exercida através de indicação da Secretaria de ação Social. Já na cOPERSOL todos os cargos são escolhidos por meio de assembléia, com a participação igualitária dos cooperados (integrantes dos grupos), formando-se a diretoria administrativa, diretoria financeira e um conselho administrativo com representantes de todos os grupos que compõem a cooperativa.

na cOOPERSiL a liderança é exercida por uma diretoria e em cada núcleo existe um coordenador de atividades. Esta diretoria é escolhida através de assembléia, em que todos os cooperados participam e têm direito a um voto e o mandato da diretoria é de dois anos. Já os coordenadores de núcleo são escolhidos de acordo com a análise do perfil dos candidatos e suas habilidades de liderança, comunicação, conhecimento dos processos e que tenham aceitação da maioria do grupo a ser liderado. O tempo de permanência na função depende do bom desenvolvimento das atividades e da afinidade com o grupo liderado. Dentro da estrutura da COOPERSIL predomina a liderança participativa, exercida por um conselho administrativo

Page 86: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

86

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

composto por 20 membros, escolhidos pelos demais cooperados, cabendo a estes o gerenciamento das atividades cotidianas, sendo as decisões de cunho estratégico definidas em assembléia geral.

a comunidade doze tribos não possui uma liderança formal, a maioria das decisões são tomadas em conjunto numa espécie de assembléia informal que se busca estabelecer consensos na condução da entidade. Porém, aprofundando-se a compreensão da estrutura de funcionamento da Comunidade Doze Tribos, verifica-se que existe um respeito especial em relação à opinião dos membros mais velhos, aqueles que participam da comunidade há mais tempo e que transferem aos mais jovens os valores e diretrizes da comunidade. nesse sentido percebe-se que, ainda que não explicito ou formalizado, a opinião do grupo dos membros mais velhos tem um peso assimétrico na definição dos destinos da entidade.

ao se analisar o discurso predominante nas diferentes entidades de Economia Solidária em atuação na cidade de Londrina, percebe-se uma congruência no discurso que aponta a autogestão, a democracia participativa e a solidariedade como princípios básicos que norteiam o funcionamento dessas organizações. Porém, um olhar mais atento consegue captar que lideranças informais tendem a emergir, nem tanto pela sedução de poder, mas mais pela omissão da maioria dos integrantes em assumirem responsabilidades e desafios.

3.3 Desafios e perspectivas para a economia solidária de Londrina

Para a coordenadora da intES há grandes avanços em Londrina no que se refere à Economia Solidária, destacadamente através da transformação desta temática em política pública municipal, o que se efetivou através da criação do Centro Público de Economia Solidária, destinado ao apoio, assessoria e comercialização dos produtos destas organizações. também se destaca o caráter integrado das políticas públicas que se articulam com as demais ações da assistência social, o que demonstra uma preocupação com a inclusão social e econômica. Quanto ao futuro e alcance da Economia Solidária a coordenadora da intES considera que poderá haver maior apoio do poder público, nas suas diferentes esferas, municipal, estadual e federal de forma mais sinérgica visando resultados mais consistentes. também defende a necessidade de se viabilizarem linhas de crédito especiais, incentivos fiscais e a aprovação de uma legislação especifica e capaz de impulsionar e facilitar o desenvolvimento desta modalidade especifica de cooperativismo. a entrevistada também reforçou a importância de serem criados fóruns

Page 87: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

87

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

de discussão na cidade, o que fortaleceria e fomentaria novas iniciativas de Economia Solidária.

Para a coordenadora da cOPERSOL ocorreram avanços desde o inicio dos primeiros grupos de Economia Solidária de Londrina em 2005, como a melhoria da renda de alguns grupos, agregação de novos conhecimentos, desenvolvimento da cultura solidária e a melhoria na auto-estima de boa parte dos seus integrantes. Porém, o desenvolvimento dos grupos e de seus integrantes não se apresenta de forma uniforme, além de persistir uma dependência excessiva em relação ao Programa Municipal de Economia Solidária, o que compromete os ideais emancipatorios que animam esta forma de economia e de sociabilidade. a entrevistada acredita que deveria haver um avanço na legislação para facilitar a formalização dos empreendimentos de Economia Solidária e impulsionar esse modelo como alternativa efetiva no combate à pobreza e à exclusão social. assim como a representante da intES, a diretora da cOPERSOL aponta para a dificuldade encontrada pelos empreendimentos de Economia Solidária no acesso a crédito especial, principalmente para viabilizar a aquisição de equipamentos e desenvolver a produção.

de acordo com a diretora da cOPERSOL deveriam haver mais espaços de debate e comercialização dos produtos da Economia Solidária na cidade, tais como fóruns, encontros, feiras e mostras de trabalhos. assim como a representante da intES, a diretora da cOPERSOL também reforçou a importância de avanços na legislação para que os empreendimentos de Economia Solidária possam ter um enquadramento jurídico especifico, facilitando a sua formalização e desenvolvimento, para que não fiquem limitados às leis tradicionais do associativismo e do cooperativismo tradicional, distantes da realidade deste modelo organizacional.

a cOOPERSiL transformou-se na experiência mais êxitosa de Economia Solidária da cidade de Londrina e isso fica claro no ânimo do entrevistado, que reforça as conquistas alcançadas pela cooperativa, destacadamente no aumento significativo nos rendimentos dos trabalhadores, além da melhoria nas condições de trabalho. de acordo com o Presidente da cooperativa os avanços não se limitam ao plano econômico e têm contribuído para o aprimoramento pessoal, com programas de alfabetização, controle de natalidade e conscientização para a cooperação. Pretende-se conseguir adquirir mais equipamentos para que haja uma expansão na capacidade de absorção de mais trabalhadores e com isso integrar progressivamente todos os recicladores autônomos à cooperativa, bem como fazer com que haja reconhecimento da categoria enquanto profissão.

Page 88: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

88

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

O representante da cOOPERSiL foi o mais enfático em destacar a importância fundamental da parceira entre a Economia Solidária e o poder público, ilustrando sua argumentação através do exemplo de sucesso da entidade que faz parte. O modelo de parceria defendido pelo entrevistado é visto como a vocação principal para os empreendimentos de Economia Solidária, mas para que esta proximidade possa-se estabelecer de forma consistente, terá de haver mudanças na lei de licitações e de parcerias, o que deverá se tornar numa das principais bandeiras no momento.

Para a COOPERSIL as dificuldades parecem ser mais tangíveis, como a escassez de recursos próprios para a expansão das atividades da cooperativa que necessita de investimentos em infra-estrutura para atender à demanda da cidade que ainda é muito superior à capacidade de atendimento da organização. a falta de espaço também se torna um importante limitador para a aceitação de novos membros o que minimiza o potencial da cooperativa em retirar da condição de miserabilidade um contingente expressivo de catadores autônomos presentes na cidade.

Já a comunidade doze tribos encara o desenvolvimento da Economia Solidária como um processo de aprendizado, que envolve a busca da essência do indivíduo e do amor ao próximo, ou seja, para os membros da entidade esse modelo de organização econômica é a expressão natural de uma convivência fraterna. Não querem ser enquadrados em categorias especificas, já que não se percebem realizando nada inovador, mas o que foi idealizado há dois mil anos por cristo.

O representante da comunidade das doze tribos entrevistado, apresenta um discurso vago em relação às expectativas e avanços necessários à Economia Solidária, segue uma linha mais autônoma desarticulada de outras instituições e mesmo do movimento da Economia Solidária em sentido maior. a perspectiva espiritual predomina em todas as suas falas e parece distanciar a entidade de relações mais estreitas com outras instituições congêneres. no entanto foi mencionado pelo entrevistado a necessidade de se aumentarem os espaços de comercialização e divulgação para produtos provenientes da Economia Solidária.

Em relação às principais barreiras e limitações para a Economia Solidária, o entrevistado ateve-se mais a aspectos éticos e morais, sendo no seu entender, a incapacidade de homem em relacionar-se fraternalmente com os outros e com o mundo a raiz de todos os problemas. a maior barreira ao crescimento da Economia Solidária estaria dentro do próprio homem que se vem esquecendo de valores morais fundamentais.

apesar das diferentes formas de perceber e vivenciar a Economia Solidária, nota-se que sobressai uma visão positiva em relação às perspectivas

Page 89: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

89

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

futuras dos empreendimentos presentes na cidade de Londrina. Entretanto, a presente pesquisa pôde detectar um discurso comum a todos os entrevistados que aponta a necessidade de algumas mudanças para que hajam avanços reais e se consolidem as iniciativas presentes na cidade e nesse sentido desponta o apelo a uma participação mais eficiente do poder público e da própria sociedade civil no incentivo e apoio a este modelo organizacional.

As considerações efetuadas pelos diferentes entrevistados confirmam a abordagem de Barbosa (2007), quando a autora afirma que problemas estruturais como desemprego e pobreza são injustamente transferidos para a esfera privada, sendo os apoios públicos escassos e incipientes para a gravidade do problema que a Economia Solidária se propõe a enfrentar. isso pode ser percebido na escassez e dificuldade de acesso a crédito, na burocracia impeditiva e fora da realidade dos empreendimentos e mesmo na falta de uma legislação especifica. Também existe uma falta de ações especificas por parte dos Bancos de desenvolvimento, como o Banco nacional do desenvolvimento (BndES), que poderiam viabilizar linhas de crédito especiais e fomentar as iniciativas de Economia Solidária. a autora também critica a SEnaES – Secretaria nacional de Economia Solidária, que não faz uma divulgação eficiente do próprio movimento, o que recebe eco por parte de todos os entrevistados que reclamaram da falta de visibilidade. Por último, Barbosa (2007) mais uma vez, sintoniza-se com os discursos identificados na presente pesquisa, apontando a falta de socialização e debate no estabelecimento dos critérios para aprovação de projetos, além das exigências burocráticas que se distanciam da realidade da maioria dos empreendimentos.

4 Considerações finais

ao se analisarem os dados levantados na presente pesquisa, percebe-se que existe uma heterogeneidade nas organizações, mesmo todas se enquadrando dentro do modelo de Economia Solidária. a multiplicidade de experimentos encontrada dão a tônica da realidade deste modelo organizacional específico e abrem um campo fértil à investigação científica que se torna mais rico à medida em que pode analisar o processo inicial de construção, necessitando de acompanhamento ao longo do tempo para poder identificar avanços e recuos destas iniciativas de forma a avaliar o potencial esperado.

apesar da diversidade entre os modelos organizacionais aqui expostos, há uma certa semelhança entre os grupos encampados pela incubadora da

Page 90: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

90

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Universidade Estadual de Londrina – intES e a cOPERSOL, cooperativa proveniente da articulação e apoio do Programa de Economia Solidária da Prefeitura Municipal de Londrina. ambas as iniciativas comportam grupos de pequeno porte, organizados de fora para dentro sem antecedentes identitários entre os grupos ou mesmo entre seus integrantes. O fato destas organizações não terem surgido de forma espontânea e autônoma por iniciativa dos seus próprios integrantes, mas por articulação e fomento externo, parece reduzir a sua força e capacidade interna de ação, tornando-os dependentes do protagonismo externo. Talvez esta seja uma das explicações da dificuldade em encontrar iniciativas vigorosas e pujantes dentro destes grupos.

ainda em relação às duas iniciativas descritas, parece haver um descompasso entre os produtos e serviços ofertados e as demandas do mercado, a maioria das iniciativas estão ligadas a artesanato, confecção e alimentos e apresentam dificuldades em alinhar estes produtos com as necessidades e desejos dos consumidores. Percebe-se que nem todos os produtos são adequados à realidade da Economia Solidária, já que em muitos casos para que haja viabilidade econômica a quantidade de unidades vendidas supera largamente o potencial, tanto de produção dos grupos como de absorção média do mercado local, o que inviabiliza o empreendimento à partida.

A COOPERSIL apresenta resultados que a classificam, à priori, como uma experiência bem sucedida. a situação anterior de seus integrantes era dominada por uma situação de extrema pobreza e precariedade nas condições de trabalho e vida e podem-se perceber avanços claros na qualidade de vida e na renda das famílias integrantes da cooperativa. Parece que o grande impulso foi dado através do modelo de parceria estabelecido entre a cooperativa e a Prefeitura Municipal de Londrina, o que poderá estar apontando para uma possível vocação para empreendimentos de Economia Solidária, tornando-os fornecedores privilegiados de produtos e serviços do poder público. Considerando-se as inúmeras limitações da maioria dos empreendimentos de Economia Solidária, em que predominam fortes restrições financeiras, baixa escolaridade e qualificação técnica de seus integrantes, torna-se frágil pensar-se na parceria Economia Solidária e poder público.

a comunidade doze tribos apresenta características muito próprias, principalmente pelo seu forte vinculo com questões espirituais. de todas as iniciativas aqui analisadas é a que se caracteriza por uma maior coesão entre os membros do grupo, assemelhando-se a uma família, o que lhes garante uma forte identidade e assim capacidade para desenvolver projetos econômicos em conjunto com elevados padrões motivacionais e de comprometimento.

Page 91: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

91

o mapa dos EmprEEndimEntos dE Economia solidári dE londrina-pr

Porém, pelas singularidades desta iniciativa é difícil imagina-la sendo replicada facilmente.

com exceção da comunidade doze tribos, atestou-se uma forte proximidade entre todas as iniciativas pesquisadas com o poder público. Os recursos públicos são essenciais para o fomento das atividades, porém são vistos como insuficientes o que provoca uma dificuldade em planejar os empreendimentos no longo prazo. além dos problemas de fomento e incentivo, também a superação em se ultrapassar a cultura individualista tradicional, torna-se um dos maiores desafios.

Por fim, o que se pode observar é que as atividades de Economia Solidária ainda são escassas em Londrina e mais ainda, são na sua maioria bastante frágeis, sobrevivendo de incentivos governamentais, já que a maioria destas experiências ainda não conseguiu encontrar uma vocação própria nem um espaço apropriado no mercado o que dificulta a sua consolidação e autonomia. Porém, há que se considerar que são iniciativas recentes e que estão trabalhando dentro de uma lógica pouco comum e por isso sem alicerces teóricos e mesmo experiências praticas que apontem coordenadas seguras, o que redobra a importância em se fomentarem espaços de dialogo e debate sobre a temática e incentivar a adesão da sociedade civil a conhecer e adotar produtos e serviços de empreendimentos solidários.

Referências

aLBUQUERQUE, Paulo Peixoto de. autogestão. in: cattani, antonio david (Org.). A Outra Economia. Porto alegre: Veraz Editores, 2003, p. 20-26.

BaRBOSa, Rosangela nair de carvalho. Economia solidária como política pública: Uma tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: cortez, 2007.

catanni, antonio david. A outra economia. Porto alegre: Veraz Editores, 2003.

dOZE tRiBOS. Quem Somos. disponível em: <http://www.dozetribos.com/artigos.php?aid=37> . acesso em: 19 jul. 2010.

GEnnaRi, adilson Marques; OLiVEiRa, Roberson. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Saraiva, 2009.

SantOS, Luis Miguel Luzio dos; BORinELLi, Benilson. Economia Solidária: propostas e perspectivas. in: BORinELLi, Benilson; LUZiO dOS SantOS, Luis Miguel; PitaGUaRi, Sinival Osório (Org.). Economia Solidária em Londrina: Aspectos Conceituais e a Experiência Institucional. Londrina: Eduel, 2010, p. 1-23.

MancE, Euclides andré. A revolução das redes: a colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

Page 92: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

92

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

SantOS, Boaventura de Sousa. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. São Paulo. civilização Brasileira, 2002.

SinGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. 1.Ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu abramo, 2002.

SinGER, Paul; SOUZa, a. R. de. A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: contexto, 2000.

Page 93: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

93

PARCERIA ENTRE ECONOMIA SOLIDÁRIA E PODER PÚbLICO: AVANÇOS E DESAFIOS

DA COOPERSIL

Luís Miguel Luzio dos SantosJoseane de LimaThayla Ferreira

1 Introdução

O Brasil é um dos países que mais vem-se destacando mundialmente pelo crescimento de sua economia e tem dentro desse cenário o grande desasafio de conseguir aproveitar o momento favorável para corrigir distorções sociais históricas que condenaram milhões de brasileiros à exclusão absoluta em relação aos bens de consumo básicos e às benesses da vida moderna. Incorpora-se, ao desafio de conseguir crescer com desenvolvimento social, a necessidade de incluir nessa equação o equilíbrio ambiental, ameaçado por um modelo de crescimento econômico desorganizado e predatório.

a história brasileira foi construída sob uma racionalidade em que as elites econômicas se perpetuaram ao longo dos séculos, apoderarando-se do Estado como uma extensão dos seus proprios domínios individuais. Essa aliança entre poder economico e político gerou uma das mais injustas sociedades do mundo, em que nem mesmo as condições naturais privilegiadas conseguiram garantir um mínimo de bem-estar para boa parte da população. assistiu-se a um processo de apoderação contínuo que fez com que as imensas potencialidades nacionais ficassem concentradas nas mãos de um número extremamente reduzido de pessoas, condenando os demais a uma condição de subserviência crônica e de exploração contínua, num ciclo vicioso que se reproduziu ao longo da história.

a interação entre homem e natureza e mais ainda entre economia e meio-ambiente sempre foi vista numa relação de subordinação do segundo ao primeiro, valendo a tese de que para o primeiro avançar haveria a necessidade de explorar o segundo até ao seu limite máximo. as condições priviligiadas do Brasil fizeram com que o meio ambiente fosse percebido como inesgotável e que deveria ser conquistado tendo-se em vista o crescimento econômico e o progresso. Esta lógica perdurou ao longo de toda a nossa história e somente agora começa a ser questionada e a enfrentar as suas mais fortes resistências,

Page 94: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

94

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

o que forçou o debate e a mobilização da opinião pública em torno da necessidade de pensar um novo modelo de desenvolvimento partindo-se de recursos limitados e capazes de incoporar a dimensão socioambiential de forma sustentavel.

Quando se analisam os problemas que afligem a maioria das nossas cidades e por consequência o próprio país, verifica-se a difícil tarefa de conseguir trabalhar com soluções que possam atender às três demandas – economica, social e ambiental, de forma simultanea, havendo geralmente, um trabalho em frentes autônomas e isoladas que fazem com que haja um gasto excessivo de recursos e em que o avanço numa das dimensões implica invariavelmente o comprometimento das demais. Um exemplo clássico relaciona-se ao gerenciamento do lixo, em que, na maioria dos casos, os residuos urbanos são despejados em aterros sanitários já saturados, constituindo-se em problemas ambientais crônicos.

diante disso, vêm surgindo alternativas variadas que tentam equacionar a questão ambiental com a dimensão econômica e social. as iniciativas de seleção, reciclagem e reaproveitamento de materiais têm ganhado destaque em todo o Brasil e tem-se tornado uma fonte importante de trabalho e renda para contingentes de pessoas de baixa renda, desempregados ou subempregados que veem nestas atividades a única garantia de sobrevivência.

a cidade de Londrina apresenta um quadro que se assemelha a muitas outras cidades brasileiras de rápido crescimento, ou seja, conta com um número expressivo de pessoas que não conseguem ingressar no mercado de trabalho e que vêem, na atividade de coleta de resíduos sólidos para reciclagem, a única alternativa de sobrevivência, submetendo-se a condições de trabalho de extrema precariedade e baixa remuneração. Esta é uma realidade de longa data que teve início com trabalhadores que exerciam, suas atividades, de forma autônoma e desorganizada, passando posteriormente a se organizar em associações de catadores de papel, e conquistando melhoria na força de mobilização, notoriedade e autoestima.

Esses trabalhadores desempenham um papel de extrema relevância ambiental ao contribuir para a minimização do acúmulo de resíduos, que até então, eram destinados integralmente ao aterro sanitário da cidade passarando assim, a ser selecionados para reciclagem. Esta realidade se dá num momento importante em que se estabelece uma proximidade entre o poder público e os catadores de resíduos sólidos da cidade, os quais, ao se organizarem em forma de cooperativa, possibilitaram a formalização de um convênio de parceria entre eles e a prefeitura do municipio.

O presente artigo propõe-se a apresentar o contexto e o perfil dos integrantes da cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e de

Page 95: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

95

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

Resíduos Sólidos de Londrina (coopersil), o seu processo de formação, suas principais dificuldades, perspectivas e avanços alcançados.

trata-se de uma pesquisa descritiva-exploratória do tipo qualitativa. O estudo foi realizado no período entre julho de 2009 e março de 2010. Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram pesquisas documentais, periódicos, observação direta e entrevistas semiestruturadas junto aos dirigentes das 15 associações que formaram a cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina (coopersil).

2 Da exclusão à organização

como contraponto a todo desenvolvimento econômico e tecnológico proporcionado pelo modelo globalizado das últimas décadas que impulsionou os processos produtivos e que resultou em abundância sem igual, assiste-se ao agigantamento das desigualdades sociais e da exclusão de milhões de pessoas ao redor do mundo, o que cria um quadro dominado por extremas contradições que colocam em questão os avanços e conquistas, alcançados ao longo da história, e o próprio conceito de desenvolvimento.

com os contínuo avanços nos processos produtivos assiste-se ao uso intensivo de tecnologia em susbstituição ao trabalho humano, o que levou a um acelerado processo de desemprego ou de precarização do trabalho, refletido no alto índice de informalidade e de subemprego em todo o mundo. Esse fenômeno tem ampliado os níveis de pobreza e dificultado os avanços sociais, num jogo de forças desproporcional em que o fator trabalho vê-se enfraquecido e desprestigiado (SinGER 1998).

como reação a todo esse processo de desenvolvimento que exclui um contingente cada vez mais numeroso de pessoas, que se agrava com a concentração produtiva em poucas regiões do globo, crescem as formas de geração de trabalho e renda que se apoiam em atividades informais. de acordo com Grayson e Hoges (2002, p. 60), “a economia informal dá meios de vida àqueles que não conseguem ingressar no setor formal. Por outro lado, perpetua a pobreza, pois raramente proporciona recursos suficientes para viver com dignidade ou prover a educação dos filhos”. Segundo Domeneghetti (2001, p. 12), “o crescimento da exclusão social aliado ao avanço da tecnologia estão criando uma nova realidade para a qual o Estado e a sociedade não estão preparadas”. diferentes formas de associativismo vêm ocupar um papel de destaque na organização de cidadãos vitimados pela estrutura socioeconômica das últimas décadas e torna-se um mecanismo importante de enfrentamento do desemprego e do subemprego ao se transformarem esforços isolados em

Page 96: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

96

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

iniciativas compartilhadas, potencializando-se a capacidade de transformação social de grupos de baixa renda e isso pode gerar iniciativas de trabalho e renda coletivos por parte das classes populares, como esclarece Singer (2000, p.25):

a economia solidária começou a ressurgir, de forma esparsa na década de 1980 e tomou impulso crescente a partir da segunda metade dos anos 1990. Ela resulta de movimentos sociais que reagem à crise de desemprego em massa, que tem seu inicio em 1981 e se agrava com a abertura do mercado interno às importações, a partir de 1990.

Paul Singer caracteriza a economia solidária como fruto do anseio de construir uma sociedade melhor do que a que encontramos hoje. E por este motivo a economia solidária adapta-se aos princípios e valores de quem a aplica, razão por que não há uma homogeneidade no modelo conceitual, mas diferentes experiências convivendo lado a lado. Para o autor, esta diferença nos conceitos é positiva, pois estimula a troca de idéias entre múltiplas propostas;

a economia solidária foi inventada por operários, nos primórdios do capitalismo industrial, como resposta à pobreza e ao desemprego resultantes da difusão “desregulamentada” das máquinas-ferramenta e do motor a vapor no início do século XiX. as cooperativas eram tentativas por parte de trabalhadores de recuperar trabalho e autonomia econômica, aproveitando as novas forças produtivas. Sua estruturação obedecia aos valores básicos do movimento operário de igualdade e democracia sintetizado na ideologia do socialismo (SinGER, 2005, p.83).

O referido autor confere à economia solidária uma função maior do que apenas uma resposta econômica à incapacidade do capitalismo de integrar todos os seus membros ao mercado de consumo. Para Singer (2002), a economia solidária pode ser uma “alternativa superior ao capitalismo”, já que esta superioridade não deve ficar restrita ao plano econômico, mas sim em termos de qualidade de vida e uma sociabilidade mais rica, ao incluir a dimensão da convivência e da intensificação dos laços afetivos.

neste estudo interessa analisar as cooperativas de trabalho que se caracterizam pela união de pessoas ligadas a uma determinada ocupação profissional com a finalidade de melhorar a remuneração e as condições de trabalho de forma autônoma. Este é um segmento extremamente abrangente e que apresenta as suas próprias particularidades. Singer (2005) caracteriza duas formas de cooperativas de trabalho. a primeira se origina de iniciativas

Page 97: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

97

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

de trabalhadores marginalizados, como os catadores de materiais recicláveis, sem chance de obter emprego regular. a segunda de trabalhadores em perigo de perder o trabalho que possuem, como é o caso, p.ex. dos trabalhadores de empresas em crise, que se organizam em cooperativas ora para tentar recuperar a sua ex-empregadora (comprando-a com seus créditos trabalhistas), ora para disputar o mercado de serviços terceirizados, tendo como arma sua proficiência profissional.

Formam também cooperativas de trabalho, trabalhadoras e trabalhadores em condições de extrema pobreza, que sobrevivem vendendo seus serviços individualmente e tentam obter melhores condições de ganho unindo-se em forma de cooperativas de trabalho, tornando-se esta uma estratégia na luta contra a pobreza e o desemprego.

Segundo Queiroz (1997), as cooperativas de trabalho independente de sua área de atuação possuem três objetivos em comum:a) melhoria de renda de seus associados, ao se valorizar o trabalho e

conseguir-se uma melhor negociação quanto à remuneração. O sistema cooperativo, ao respeitar os seus princípios fundamentais, devolve o excedente gerado pelo trabalho coletivo aos seus associados, na mesma proporção da quantidade e da qualidade do serviço prestado o que tende a conduzir a uma maior justiça social;

b) melhoria das condições de trabalho, já que estas tendem a melhorar na medida em que as cooperativas transformam empregados em associados, os quais determinam, em comum e de forma democrática, as regras de atuação da cooperativa. Os direitos dos trabalhadores são garantidos de forma estatutária, visando-se resguardar, sempre, a predominância do trabalho sobre o capital;

c) melhoria da produção dos trabalhadores, visto que, ao se tornarem associados, eles passam a ser autogestores de suas próprias atividades, tendo maior empenho e responsabilidade sobre as próprias ações e resultados.

conforme os objetivos expostos anteriormente, percebe-se que as cooperativas de trabalho se caracterizam como um tipo de sociedade distinta, em que o valor principal de sua existência não segue a ordem mercantilista – de maximização do lucro – mas sim a melhoria de vida do trabalhador que deixa de ser um empregado limitado as suas funções e se torna um associado que gerencia todo o processo e dele participa. O resultado do empenho de cada trabalhador reflete-se no todo organizacional, e o esforço de todos resulta em benefícios para cada um.

Page 98: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

98

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Porém, há que se levar em conta que existem inúmeras modalidades de cooperativismo que não estão vinculadas à economia solidária e em razão disso elas têm de ser analisadas sob diferentes perspectivas. a partir da contribuição de Lima (1998, p.4) alerta-se para alguns tipos de cooperativas que fogem à essência das iniciativas de economia solidária, como as “Cooperfraudes” ou “Pseudocooperativas”: na experiência brasileira, essa forma de cooperativa é um negócio organizado por empregadores que direcionam toda forma de contratação de mão-de-obra servindo-se de tais cooperativas de prestação de serviços, as quais, porém, são organizadas pelos representantes dos empregadores. Os trabalhadores são contratados sem garantias trabalhistas e recebem remuneração reduzida, o que é ilegal. Esse modelo de contratação intensifica os processos de precarização das condições de trabalho e contribui para a constituição de experiências negativas na história do cooperativismo no Brasil.

Como se pode verificar, o cooperativismo assim como a economia solidária apresentam diferentes configurações em seu seio. A economia solidária, em especial, possui vocação e posicionamentos ainda em processo de construção, o que lhe dá um forte caráter experimental. nesse sentido, ressaltam-se diferentes posicionamentos das iniciativas de economia solidária e algumas das alternativas mais comuns de viabilidade dessas experiências, como se esclarece: 1- Podem vir a suprir uma necessidade da própria comunidade onde elas estão inseridas e, ao mesmo tempo, gerar trabalho e renda para alguns dos seus membros; 2- aproveitam-se de nichos de mercado que não necessitam de grande escala de produção para se viabilizarem, apoiando-se na diferenciação e na customização de produtos e serviços; 3- agrupam esforços, antes individuais, num processo de produção conjunta capaz de gerar escala e complementaridade; 4- Posicionam-se como fornecedoras ou parceiras prioritárias do Estado.

Este estudo vem apresentar, de forma particular, uma experiência que se baseia na parceira entre uma organização de economia solidária e um governo municipal. a estratégia de enfrentar a exclusão mediante o modelo de produção preconizado pela economia solidária encontra eco na abordagem de Rosangela Barbosa (2007), que alerta para o risco de querer-se transferir para o trabalhador toda a responsabilidade por sair da pobreza, quando a sua exclusão faz parte de um problema estrutural histórico e dessa forma torna-se incoerente e injusto querer individualizar a responsabilidade por problemas construídos pela sociedade num processo coletivo.

Page 99: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

99

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

3 O contexto da reciclagem em Londrina

na década de 1990, aproximadamente 80 pessoas passavam o dia no aterro sanitário da cidade de Londrina a recolher materiais descartados pela população os quais passavam a ser reaproveitados para reciclagem. O trabalho era feito de forma degradante e insalubre, expondo-se os catadores a um ambiente fétido e causador de muitas doenças. Este quadro inspirou a criação do Programa de coleta Seletiva do Município de Londrina, em 14 de novembro de 1996, pela autarquia Municipal do Meio ambiente – aMa, atual Secretaria do Meio ambiente – SEMa. no início, a coleta abrangia apenas 5% da área urbana do município e coletava-se cerca de 4 toneladas por dia de materiais recicláveis.

desde 1988, a Promotoria do Meio ambiente exigia que os catadores fossem retirados do aterro, em cumprimento ao tac – termo de ajuste e Conduta firmado com o Ministério Público. Esse tratado só entrou em vigor, efetivamente, no ano de 2001, em decorrência da morte de um catador, dentro do lixão, soterrado pelos caminhões e tratores que trabalhavam no local enquanto ele dormia. Em decorrência do compromisso e ajustamento firmado com o Ministério Público para a retirada dos “garimpeiros” do aterro, a companhia Municipal de trânsito e Urbanização – cMtU/Ld - propôs a formação de associações de recicladores que passaram a utilizar o sistema porta a porta para realizar a coleta seletiva. Surgiu assim o Programa de coleta Seletiva “Reciclando Vidas”.

Em 2002, foi fundado o Conselho das Organizações dos Profissionais da Reciclagem de Resíduos Sólidos de Londrina, sob o nome fantasia de central de Pesagem e Vendas – cEPEVE, com a função de prensar os materiais das associações que não dispunham de prensa e acumular um volume de material suficiente para elas alcançarem um melhor preço de comercialização. a cMtU forneceu às associações, através de empresa terceirizada, os caminhões, equipe de guarnição, sacos plásticos verdes, carrinhos manuais, prensas de papel, trituradores de vidro e de plástico, balança digital, postos de entrega voluntária, capas de chuva e camisetas.

O trabalho das associações seguiu um procedimento padrão que garantisse que os serviços atenderiam as demandas da cidade. Primeiramente, cada associação, na região de sua responsabilidade, distribuiria sacos plásticos verdes e panfletos com informações sobre a coleta seletiva, além de agendar com o morador o dia em que seria realizada a coleta. nos dias previamente agendados, os membros da associação passariam de casa em casa para recolher os sacos plásticos verdes com o material reciclável, substituindo-os

Page 100: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

100

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

por outros vazios. Logo após, o material passaria a ser conduzido ao centro de triagem onde se daria a pesagem, em seguida era tratado e depois vendido para intermediários.

A experiência do programa de coleta seletiva “Reciclando Vidas” foi uma das primeiras iniciativas deste tipo no país. apesar de não estar vinculado ao Programa Municipal de economia solidária, o programa atendia aos princípios desta modalidade de economia, já que o trabalho realizado se dava de forma coletiva e os rendimentos eram divididos entre todos de forma equitativa. Esta iniciativa baseava-se no modelo de administração participativa, ou seja, adotava-se a autogestão, a cooperação e a solidariedade. até meados de 2009 existiam 35 associações de recicladores em atuação no Município de Londrina, integrando aproximadamente 300 pessoas.

3.1 antes da coopersil

durante o mês de agosto de 2009, antes da formação da cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina – coopersil -foram entrevistados os coordenadores das 15 associações que passaram a ser integradas à cooperativa de forma a levantar as princiapais características dessas entidades isoladamente e poder avaliar as expectativas em relação à nova configuração administrativa e jurídica de que passam agora a fazer parte.

nas 15 associações pesquisadas, a media mensal de renda de cada trabalhador girava em torno de R$ 270,00; apenas uma das associações apresentava um rendimento superior a esse valor e girava em torno de R$ 500,00. Esta diferença é justificada pelo fato de que a referida organização recebeu verba de uma instituição internacional, o que possibilitou a construção de um barracão próprio e a compra de uma prensa. dessa forma não pagavam aluguel e conseguiam maior preço de venda para o seu produto.

Verifica-se que o rendimento dos integrantes das diferentes associações pesquisadas era bastante limitado, bem abaixo do salário mínimo nacional, constituindo-se fator desestimulante das atividades, conforme foi constatado nas entrevistas com os associados, e tornou-se um dos principais motivos para a formação da cooperativa. Espera-se que com a criação desta os ganhos aumentem e proprocionem a todos os integrantes o crescimento da renda além de melhores condições de trabalho. Esta posição vem ao encontro do que refere Cruzio( 2000) ao afirmar que a melhora dos rendimentos é um dos principais objetivos do trabalhador quando busca se organizar em forma de cooperativa e isso se dá em virtude da eliminação de atravessadores.

Page 101: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

101

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

Substituem a figura do intermediario, pois fazem a ligação entre o tomador de serviço e o associado; eliminam a figura do atravessador uma vez que o associado produz,e ele mesmo vende sua produção diretamente ao consumidor; negociam melhores preços , reduzem custos da produção ou aqueles decorrentes da prestação de serviços por terceiros (cRUZiO, 2000, p.21 ).

O autor também alerta para a necessidade de entender que um maior ganho proporcionado pela cooperativa não se deve limitar a maiores retiradas mensais pelos trabalhadores, mas deve também ser reinvestido no empreendimento como forma de gerar maior vigor e potencialidade economica.

O volume de materiais coletados por dia pelas associações pesquisadas apresentou uma certa uniformidade, ainda que o número de integrantes de cada organização seja desigual. Já que 12 associações coletavam mais de 450kg por dia, enquato as outras 3 coletavam entre 350 e 450kg. algo que acontecia com frequência entre as associações era a doação de materiais umas às outras, pelo fato de algumas destas não terem como estocar todo o material recolhido.

de acordo com os representantes das associações entrevistados, as principais dificuldades enfrentadas para a realização das tarefas do dia-a-dia eram as instalações inadequadas e a falta de equipamentos apropriados para a coleta. Estes problemas existiam porque o espaço físico e as estruturas das associações eram inadequados para separação e armazenamento dos materiais recolhidos, além da falta de equipamentos próprios para coleta do material, o que fazia que houvesse uma dependência crônica de caminhões da prefeitura.

Em relação às sedes em que estavam instaladas as diferentes associações existiam várias situações adversas. algumas encontravam-se localizadas em barracões pequenos geralmente insuficientes para o armazenamento e separação do material coletado, outras funcionavam na residência de algum dos membros, constituindo-se sério problema para a saúde da familia e dos vizinhos. Ressalta-se ainda a localização inadequada de muitas das sedes das associações dificultando a logistica das atividades, ressalta-se, o caso de uma associação que se estabeleceu em fundo de vale, o que acarretava sérios problemas ambientais.

todas as associações possuíam, para regularizar as suas atividades, um regimento interno, que definia que o coordenador deveria ser escolhido através de votação direta. Entretanto a maioria declarou que a escolha do líder era baseada em critérios que se afastavam do regimento, como o “maior tempo de casa”, maior grau de escolaridade ou disposição para assumir

Page 102: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

102

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

responsabilidades. Pôde-se verificar que havia uma forte restrição por parte de boa parte dos integrantes das associações em assumir posições de maior responsabilidade e destaque.

3.2 Sobre a gestão

todas as associações estudadas apresentavam uma formalização bastante precária, não condizente com as tarefas desenvolvidas, inclusive com a atividade comercial. Não recolhiam impostos nem útilizavam nota fiscal. O único meio de mensurar as entradas e saídas era através de recibos. todos os controles gerenciais eram incipientes e se limitavam a cadernos em que eram anotadas as principais informações e serviam de registros para a tomada de decisão e o acompanhamento das atividades ao longo do tempo. não havia controle efetivo em relação à quantidade de materiais coletados diariamente e a quantidade vendida; tudo era realizado por controles pessoais, sem padronização e sem ferramentas apropriadas de registro. Pôde-se perceber facilmente uma carência em relação aos conhecimentos e técnicas administrativas mais básicas, como atesta Tenório (1997, p. 25), “as ONG’s exercem a gestão tendo por base a intuição e o bom senso, carecendo de embasamento técnico em administração”.

Sobre o relacionamento entre os membros das diferentes associações, todas os representantes entrevistados declararam existir um bom relacionamento interpessoal e que isso ajudará no desenvolvimento da cooperativa. Estes ressaltaram haver um certo sentimento de solidariedade, por terem todos a mesma origem e serem, em muitos casos, parentes ou vizinhos, fator que os aproxima naturalmente e auxilia na coesão do grupo e na consolidação das relações de confiança.

Sobre a participação nas decisões que são tomadas cotidianamente e que envolvem todos os membros, percebe-se que existiam mecanismos de participação efetivos, já que há unanimidade nos relatos, istoé, de que existe espaço para todos opinarem e darem sugestões para a condução das atividades. Porém, há que se levar em conta os aspectos não formais e até subjetivos existentes na maioria dos grupos pesquisados. isso parece fazer com que alguns membros possuam maior poder de influência sobre os demais, havendo distorção da relação democrática que a princípio parecia existir.

a grande maioria dos entrevistados respondeu que sabia o que era cooperativismo e quais os seus principios básicos de funcionamento, no entanto o que se percebe é que existe uma certa insegurança a respeito deste conceito. Em momento algum eles foram convidados a explicar, porém a

Page 103: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

103

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

grande maioria admitiu que estão aprendendo com os treinamentos que a companhia Municipal de trânsito e Urbanização - cMtU tem realizado constantemente com os integrantes da cooperativa.

Questionados sobre as suas expectativas em relação à formação da cooperativa, os representantes das associações manifestaram as principais demandas que motivaram a mudança de estrutura organizacional e salientaram as seguintes: uma remuneração mais digna, pelo menos um salário mínimo; vender o material a preços melhores, através da eliminação de atravessadores, e conseguir crescer ao aprimorar as atividades, com maior infraestrutura e num espaço de trabalho mais adequado.

Quanto ao relacionamento entre os lideres das diferentes associações estudadas, há unanimidade quanto à existência de um bom relacionamento entre todos e isso favorece o bom andamento da cooperativa. Percebe-se que existe esforço em ultrapassar possíveis barreiras impeditivas de um projeto maior que poderá melhorar a vida de todos. Percebe-se também um entusiasmo generalizado, o que certamente é um elemento fundamental para o desenvolvimento da cooperativa e para aparar arestas e contratempos que possam surgir.

4 A Cooperativa de Catadores de Material Reciclável de Londrina – Coopersil

Em setembro de 2009, foi criada a cooperativa cOOPERSiL – cooperativa dos catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina, propondo-se ser um avanço em relação ao modelo de associação para um perfil mais profissional e condizente com o desenvolvimento desta atividade. Fazem parte da cooperativa 15 das 35 associações que compunham o programa de reciclagem existente em Londrina, totalizando 145 pessoas, mas esta apresenta-se aberta a incorporar outros interessados à medida em que a infraestrutura seja ampliada.

O perfil dos integrantes da cooperativa é predominantemente feminino, sendo 84% dos seus integrantes mulheres e apenas 16 % homens. a faixa etária dos cooperados está entre 30 e 40 anos, o que representa cerca de 60% do total. a escolaridade é, de forma geral, bastante baixa, sendo 15% analfabetos, 37% estudaram até à 4ª série, 40% terminaram o ensino fundamental e apenas 3% têm ensino médio. destaca-se que somente 1% está cursando o nível superior e 3% não quiseram opinar sobre esta questão.

com a criação da cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina (coopersil) pretendeu-se humanizar o trabalho destes profissionais e garantir avanços no campo econômico através

Page 104: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

104

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

de uma maior remuneração com a formalização das atividades e a venda direta para as indústrias, havendo intenção de avançar para a universalização da coleta em toda a cidade.

a Prefeitura, através da companhia Municipal de trânsito e Urbanização – cMtU, auxiliou na formação da cooperativa, disponibilizou treinamento e capacitação em cooperativismo aos associados, além de disponibilizar 5 barracões para o desenvolvimento das atividades, até que estes possam assumir o custo do espaço. a cooperativa já possui 03 prensas, uma recebida do poder público e duas da empresa de embalagens Tetra Pak. As prensas são especialmente importantes por permitirem agregar maior valor ao produto, já que os consumidores preferem comprar esse tipo de produto prensado. Entretanto, a cooperativa ainda esbarra na falta de equipamentos essenciais, como esteira rolante que facilita a separação do material.

após um período de calorosas discussões que envolveram tanto a Prefeitura de Londrina como a sociedade civil em geral, em janeiro de 2010 foram estabelecidos os termos de parceria entre a Prefeitura e a coopersil, balizados pela argumentação de que a responsabilidade pela coleta seletiva pertence à Prefeitura e já que essa tarefa está sendo desenvolvida pela cooperativa de catadores, sem integrantes remunerados adequadamente por isso. como permite a Lei federal 8.666/93, que rege as licitações, foi estabelecido o contrato entre a companhia Municipal de trânsito e Urbanização (cMtU) e a coopersil, sem a necessidade de realização de processo licitatório. Ficou estabelecido que o município passe a pagar aos trabalhadores da coleta seletiva R$ 64 por tonelada de material comercializado. Além disso, ficou acertado que estes realizarem visitas aos domicílios da cidade com a finalidade de conscientização ambiental da população e reforçarem a importância da separação dos resíduos, sendo esta atividade remunerada com R$ 0,05 por domicílio visitado pelos catadores.

a cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e de Resíduos Sólidos de Londrina – coopersil – passou, assim, a ser contratada pela Prefeitura para realizar a coleta do material reciclável em toda a cidade. Os catadores passam a ter garantias asseguradas pela lei, como qualquer trabalho formal, têm também obrigações, como prestação de contas, recolhimento de impostos, como o INSS, e a emissão de nota fiscal. A organização dos catadores em forma de cooperativa, com contrato e todas as responsabilidades que cabem a uma empresa prestadora de serviço, é uma nova etapa no sistema de coleta seletiva de Londrina, iniciado há mais de uma década.

Page 105: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

105

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

5 Desafios e perspectivas

diante dos resultados apurados, percebe-se a precária condição de vida das pessoas que trabalham com a coleta seletiva no município de Londrina, tornando-se uma das poucas alternativas para desempregados e subempregados, apesar da enorme relevância dos serviços prestados. O modelo organizacional inicialmente adotado – a associação – não conseguiu atender convenientemente às demandas desta atividade, o que resultou na necessidade de evoluir para o modelo cooperativo.

nessa nova etapa, o modelo cooperativo adotado permitiu que se estabelecesse uma parceria estratégica com o poder publico que, a principio garante a consolidação das atividades e a viabilidade da coopersil. Porém, não se pode deixar de alertar para o risco de cooptação desta organização por parte da Prefeitura, haja vista a dependência extrema que esta cooperativa passa a ter em relação ao poder público, o que poderá vir a limitar a autonomia tão acalentada pelos integrantes da entidade. Há que se superar a relação de subserviência e de dependência e evoluir para uma parceria em que os dois lados se apresentem com graus semelhantes de interesse no sucesso do acordo e que se ultrapasse a possível visão de assistencialismo para a de direitos constituídos. como ressalta a aliança cooperativa internacional - aci (2010), o principio da autonomia e independência faz parte de um dos pilares que sustentam o cooperativismo e devendo, por isso, ser perseguido e consolidado:

as cooperativas são organizaçoes autônomas, de ajuda mutua controladas por seus membros. Se estas firmarem acordos com outras organizaçoes, incluindo instituiçoes publicas, ou recorrerem a capital externo, devem faze-lo em condições que assegurem o controle democrático pelos seus membros e mantenham a autonomia das cooperativas

O receio de interferência excessiva e até mesmo subordinação ao poder

público em relação à gestão da cooperativa foi uma das principais razões de algumas associações terem hesitado em participar e outras não terem aderido ao acordo e preferir ficar fora da cooperativa, pelo menos nesse primeiro momento.

considerando-se que a cooperativa é formada, não por um grupo coeso, mas por ex-associações que se integraram em novo formato jurídico, existe outro grande desafio que é conseguir trabalhar de forma integrada com equilíbrio e harmonia nas relações, ainda que diferenças existam. torna-se essencial para a cooperativa a construção de uma identidade própria capaz de

Page 106: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

106

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

criar convergência dos diferentes grupos e conduzir à coesão necessária para o desenvolvimento sadio das atividades ao longo do tempo. nesse sentido, torna-se indispensável o aprendizado cooperativo, incorporando-se os princípios essenciais como a autogestão, a democracia interna, a solidariedade e a equidade, o que exige uma mudança cultural significativa e contínua.

a maior esperança de todos os catadores de material reciclável, que aceitaram a formação da cooperativa, é o reconhecimento da importância do seu trabalho e sua valorização, a garantia de uma remuneração justa, direitos assegurados e, talvez o mais relevante, o respeito de toda a sociedade. ainda que todo o processo esteja no início e seja prematura qualquer avaliação mais acurada, já se pode perceber um aumento significativo nos rendimentos dos trabalhadores que, em média, estão conseguindo ganhos de aproximadamente um salário mínimo por mês, o que é mais do dobro do que o alcançado antes da criação da cooperativa.

Há que se considerar o enorme desafio a ser enfrentado para a integração das diferentes associações num formato organizacional único, pois que isso exige a renúncia a individualidades e a interesses particulares em prol de um projeto conjunto. Esse esforço apresenta-se ainda mais complexo quando se conta com um expressivo numero de membros que compõem a cooperativa, ainda mais num ambiente dominado pela escassez de recursos materiais, financeiros e educacionais. Esse desafio é enfrentado partindo-se de um novo arranjo organizacional em que os princípios da gestão democrática, da equidade e da sustentabilidade são elementos essenciais na condução das atividades e tornam-se vitrines para novas iniciativas amparadas na mesma racionalidade.

ainda que existam possíveis ameaças na forma de parceira entre as organizações de economia solidária e o poder público, acredita-se que este relacionamento poderá tornar-se uma vocação particularmente interessante e promissora em que as cooperativas de economia solidária poderão ocupar o espaço de fornecedoras privilegiadas do Estado criando-se um novo modelo de parceria entre o público e o privado e de mecanismos de inclusão social. Esse modelo poderá potencializar iniciativas populares, proporcionando a geração de trabalho coletivo e renda num processo de emancipação com benefícios estendidos a toda sociedade.

Londrina vem dando passos importantes referentes à gestão dos resíduos sólidos. Entretanto, não se pode esquecer que para os catadores esta situação é nova, e recheada de desafios a serem enfrentados. Este estudo pretende ser o primeiro de uma série que tentará acompanhar o desenvolvimento da cooperativa de catadores de Materiais Recicláveis e

Page 107: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

107

parcEria EntrE Economia solidária E podEr público:

de Resíduos Sólidos de Londrina – coopersil, assim como a parceria que se estabeleceu com a Prefeitura Municipal de Londrina. certamente se está diante de um modelo de economia solidária que desperta interesse ao viabilizar-se através da aproximação entre as demandas públicas e os serviços ofertados por cooperativas populares num processo de parceria sinergica que tende a potencializar os resultados alcançados com beneficios socioeconomicos e ambientais, além de poder vir a ser um embrião de outros modelos de parceria em que a economia solidária poderá encontrar um formato particularmente interessante ao se desenvolverem políticas de priorização dessas organizações como fornecedoras e parceirias priviligiadas do poder público.

Referências

aLiança cOOPERatiVa intERnaciOnaL. disponivel em: <http://www.ica.coop/al-ica/> . acesso em: 10 de jan 2010.

aSSOciaçãO BRaSiLEiRa dE EMPRESaS dE LiMPEZa PÚBLica E RESÍdUOS ESPEciaiS. disponível em: <http://www.abrelpe.org.br/pdf/9_conclusoes.pdf>. acesso em 18 de maio 2009.

BaRBOSa, R. n. de c. A Economia Solidária como Política Pública: Uma tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez, 2007.

cOMPanHia MUniciPaL dE tRanSPORtE E URBaniZaçãO. coordenadoria de coleta Seletiva. 2009.

cOMPROMiSSO EMPRESaRiaL PaRa REcicLaGEM. disponível em: <htpp://www.cempre.org.br>. acesso em 12 de jul. de 2009.

cOnSELHO MUniciPaL dE PROtEçãO aMBiEntaL. disponível em: <http://www.compam.com.br/oquereciclagem.htm> .acesso em 12 de jul. 2009.

cRUZiO, H de O. Como Organizar e Administrar uma Cooperativa: Uma alternativa para o desemprego. Rio de janeiro. Fundação Getulio Vargas, 2000.

dOMEnEGHEtti, ana Maria M. de Souza. Voluntariado: Gestão do trabalho voluntário em organizações sem fins lucrativos. 2.ed. São Paulo: Esfera, 2001.

FOLHa dE LOndRina. a coleta seletiva em Londrina. Folha de Londrina. Londrina, 22 jan. 2009.

GRaYSOn d.; HOdGES a. Compromisso Social e Gestão Empresarial. São Paulo: Publifolha, 2002.

LiMa, J. c. desconcentração industrial e Precarização dotrabalho: cooperativas de Produção do Vestuário no Brasil. in: intERnatiOnaL cOnGRESS, n. 31., 1998, chicago. Anais... [S.l.; s.n.] 1998.

Page 108: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

108

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

QUEiROZ, c. a. R. S. de. Manual da cooperativa de serviços e trabalho. 3. ed. São Paulo: StS, 1997.

SinGER, P. Globalização e Desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: contexto, 1998.

______, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu abramo, 2002.

______, P. introdução. in: Sylvia Leser de Mello;. (Org.). Economia solidária e autogestão: Encontros internacionais. São Paulo: nESOL, 2005. p. 9-16.

______, P.; SOUZa, a. R. de. A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: contexto, 2000.

tEnÓRiO. F. G. Gestão de Ong’s: principais funções gerenciais. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1997.

Page 109: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

109

AS RELAÇÕES DE PODER FOUCAULTIANAS E A ECONOMIA SOLIDÁRIA

Dayanne Marciane GonçalvesMauro Guilherme Maidana Capelari

Luis Miguel Luzio dos Santos

1 Introdução

A industrialização globalizada é um dos principais fatores do chamado desemprego estrutural. Sua faceta de atuação encontra-se enraizada no momento em que um determinado país passa a importar produtos ao invés de produzi-los, mudando suas características empregatícias. Essa mudança faz com que a maioria dos trabalhadores industriais, que agora já não mais o são, não tenha pronto acesso a novos postos de trabalho, acarretando, assim, em uma deterioração do mercado de trabalho para esses proletários, aumentando a exclusão social e a pobreza (SINGER, 2003).

Yunus (2008, p. 19) expõe de forma bastante clara o quadro de pobreza que se instalou no mundo em decorrência da hiper liberalização dos mercados globais e da concorrência assimétrica que se estabeleceu. Ele trata da má distribuição de renda no mundo, quando afirma que “A própria distribuição de renda global expõe os fatos: 94% dos rendimentos mundiais vão para 40% da população, ao passo que os outros 60% têm de viver com somente 6% do total da renda”. Diante deste quadro dominado por extremos e de descaso em relação ao ser humano e ao meio ambiente, a Economia Solidária surge como uma alternativa socioeconômica que propõe um novo modelo de desenvolvimento amparado no equilíbrio entre a dimensão social, econômica e ambiental. Tanto é assim que Lisboa (2005) a define como a busca do rendimento sem a necessidade do lucro máximo, por meio de valores éticos e sociais, que permitam o desenvolvimento sócio-econômico e ambiental.

Assim, Economia Solidária pode ser definida como um fenômeno, resultado de um conjunto de experiências que questionam o sistema econômico capitalista (SINGER, 2002). Ou ainda, pode ser caracterizada como alternativa de subsistência e geração de trabalho e renda pautada em uma nova estratégia de ação: a solidariedade. Há, inclusive, outras expressões que se aproximam da definição de Economia Solidária como: socioeconomia, economia social, redes de colaboração solidária, empresas

Page 110: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

110

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

autogestionárias, entre tantas outras (BORINELLI; SANTOS, 2010). No entanto, o presente estudo prioriza o termo Economia Solidária diante da inversão de valores, ao se subordinar os aspectos econômicos aos sociais “numa proposta de sociabilidade que vai além do simples atendimento às necessidades materiais” (BORINELLI; SANTOS, 2010, p. 1). Logo, segundo estes autores, a Economia Solidária pode ser caracterizada por valores de cooperação e da solidariedade, visando atender às necessidades materiais e sociais, por meio de mecanismos como a democracia participativa e de autogestão, que garantam a emancipação e o bem-estar individual, comunitário, social e ambiental.

Entre as características da Economia Solidária, destaca-se a autogestão, razão pela qual se buscou diferenciar as formas de gestão: heterogestão, autogestão e co-gestão; e compreender como as relações de poder legitimam-se dentro destas estruturas. Os princípios básicos que norteiam o movimento da Economia Solidária tornam-no intimamente ligado às diretrizes preconizadas pelo modelo de autogestão, em que impera a participação, a mutualidade e a horizontalidade nas relações, o que tende a se afastar de qualquer forma de poder central, seja ele formal ou informal.

Entre o vasto universo de experiências de Economia Solidária espalhadas por todo o território nacional, algumas chamam a atenção de forma particular pelas suas características singulares, como se pode presenciar na iniciativa da comunidade Doze tribos de Londrina – PR e, por isso, transformou-se em objeto do presente estudo. A comunidade Doze tribos apresenta uma estrutura organizacional e um modelo de convivência entre seus integrantes pautados em preceitos bíblicos e, principalmente, na solidariedade, tanto que vem sendo classificada como exemplo de Economia Solidária no Estado do Paraná. Note-se que não há, ainda, estudos profundos que a caracterizem como exemplo de modelo de Economia Solidária, no entanto, há fortes indícios, em seus preceitos, que a caracterizam como exemplo, entre eles se destacam: a subordinação dos preceitos econômicos (lucro máximo) à solidariedade; o necessário, mas para todos; e a autogestão e democracia participativa.

Assim, o presente estudo propõe-se, primeiramente, a apresentar as bases em que se apóia a Economia Solidária, recorrendo a autores de referência na área como: Santos & Rodríguez (2002) e Paul Singer (2002). Num segundo momento, apresenta-se a definição de poder de acordo com a vertente analítica de Foucault (1979). Sob a perspectiva destes dois conteúdos, o presente estudo se propôs a estudar a existência de possíveis relações de poder que se estabelecem na Comunidade Doze

Page 111: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

111

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

tribos, localizada na região de Londrina, Paraná. Partindo do pressuposto de que a comunidade enquadra-se na definição de Economia Solidária, apresentando o discurso de um modelo de Autogestão, pautado no princípio democrático de que todos participam ativamente da tomada de decisões ligadas às atividades exercidas.

Para alcançar o objetivo da pesquisa, utilizou-se da metodologia não convencional chamada “Fenomenológica”, por meio da técnica de etnografia ou observação participante, e de entrevistas não estruturadas, com a inserção de dois pesquisadores de sexos opostos no convívio das atividades e tarefas cotidianas da comunidade, nos dias 30 de junho e 01 de julho de 2010, além de visitas esporádicas à comunidade que auxiliaram na coleta de informações e na percepção da realidade vivida.

Entre os resultados obtidos, através da convivência junto aos membros da comunidade, pode-se atestar a presença de certas relações de poder, ainda que se apresentem obscurecidas por discursos e certas práticas, a realidade concreta faz emergir hierarquias, ainda que dentro de sutilezas, as quais, quando percebidas, colaboram para o enriquecimento do fenômeno estudado.

As relações de trabalho na economia capitalista utilizam-se do poder como meio de garantir a disciplina e estabelecer as funções hierárquicas dentro de uma organização, tornando-se este elemento fundamental na lógica das empresas tradicionais. A Economia Solidária, ao apresentar-se distante dessa racionalidade, faz com que despontem, naturalmente, questionamentos sobre como se estabelecem as relações de trabalho, seguindo os pressupostos da solidariedade, igualdade e horizontalidade das relações em que a participação nas decisões se estabelece de forma direta, sem privilégios nem intermediários. Além disso, esse estudo tem sua relevância atestada ao trabalhar com uma temática ainda incipiente em análises empíricas, principalmente relacionando Economia Solidária com relações de poder, além de escolher como método de pesquisa a etnografia, que tende a conseguir captar a realidade de uma perspectiva que não poderia ser entendida com a utilização de outra metodologia.

2 Desenvolvimento alternativo

Santos e Rodríguez (2002) trazem o tema referente à produção alternativa, a globalização alternativa, ou desenvolvimento alternativo. Apresentam os principais resultados de um projeto de investigação intitulado “Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos”. Realizado

Page 112: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

112

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

em seis países - África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal, o projeto visou analisar iniciativas e movimentos de resistência e de formulação de alternativas por parte das classes populares e dos grupos sociais subalternos em vários domínios sociais, nomeadamente iniciativas de produção coletiva.

Os autores apresentam a preocupação com o predomínio e aceitação do capitalismo sem qualquer questionamento ou resistência, após a queda do sistema “socialista de economias centralizadas” a qual não oferecia “uma alternativa emancipatória ao capitalismo” (p. 25). Sendo assim, em seu livro, apresentam ideias que vão contra a hegemonia do capitalismo, apresentando alternativas que se propõem emancipatórias e capazes de conciliar desenvolvimento econômico e formas de sociedades mais justas. É preciso ressaltar que os autores procuram por alternativas viáveis às sociedades capitalistas, apontando para uma transformação gradual da economia para formas de produção, intercâmbio e consumos não capitalistas. Nesse sentido, afirmam que:

Como poderá ser visto no estudo que apresentamos mais à frente, estas alternativas são muito menos grandiosas que a do socialismo centralizado, e as teorias que lhes servem de base são menos ambiciosas que a crença na inevitabilidade histórica do socialismo que dominou o debate do marxismo clássico (...) elas representam formas de organização econômica baseadas na igualdade, na solidariedade e na proteção ao meio ambiente (SANTOS; RODRÍGUEZ, 2002, p. 25).

Os autores analisam as práticas econômicas não capitalistas alternativas sob uma perspectiva “hermenêutica das emergências”, considerando que têm caráter anti-sistêmico e que são experiências e propostas frágeis e incipientes. Ou seja, buscam analisar como essas economias sobrevivem e aderem a princípios não capitalistas, mesmo inseridos em uma sociedade capitalista, e fundamentam a necessidade da adoção de práticas alternativas às características negativas das economias capitalistas, que são resumidas em três contradições fundamentais: o capitalismo produz desigualdades de recursos e poder; as relações de concorrência exigidas pelo mercado capitalista produzem formas de sociabilidade empobrecida com base no benefício pessoal e não na solidariedade; e a exploração crescente dos recursos naturais.

Acerca do significado da palavra desenvolvimento, Paul Singer (2004), no site sobre “A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-USP)”, conceitua desenvolvimento solidário como “um processo de

Page 113: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

113

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

fomento de novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção, de modo a promover um processo sustentável de crescimento econômico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se encontram marginalizados da produção social e da fruição dos resultados da mesma”. 1

Santos e Rodríguez (2002, p. 30) não defendem a ideia radical de excluir o desenvolvimento como a única forma de garantir uma existência justa, sustentável e capaz de proteger as condições físicas de sobrevivência na Terra, acreditam antes num modelo de “desenvolvimento alternativo” e “alternativas ao desenvolvimento” dentro do sistema capitalista, uma vez que “abrem as portas a transformações graduais em direções não capitalistas e criam enclaves de solidariedade no seio do capitalismo”. O desenvolvimento alternativo pregado pelos autores muda o sentido dos projetos de desenvolvimento econômico que se viabilizavam “a partir de cima” sem a participação das comunidades afetadas ou envolvidas no processo. Essa visão verticalizada marginalizou outros objetivos sociais, econômicos e políticos, tais como: participação democrática na tomada de decisões, a distribuição equitativa dos frutos do desenvolvimento e a preservação do meio ambiente (SANTOS; RODRÍGUEZ, 2002).

Segundo Santos e Rodríguez (2002), o desenvolvimento alternativo buscou integrar a economia e estabelecer uma relação de interdependência com a sociedade. Ou seja, a partir deste enfoque, a economia deixaria de ser uma área estanque e apartada das demais dimensões e passaria a defender e a se condicionar aos bens e valores sociais. Outrossim, defendem a ideia de que um dos pressupostos para o sucesso das comunidades ou cooperativas solidárias é a educação e, muitas vezes, até a mudança das relações sociais que envolvem o processo de produção. Os autores citam, como exemplo de sucesso, o Complexo Cooperativo de Mondragón, na Espanha, experiência maior de Economia Solidária, que soube desenvolver-se dentro do mercado convencional, sem se submeter à lógica tradicional capitalista, num embrião de “socialismo de mercado”.

O foco de todo o esforço dos autores é o de analisar o potencial emancipatório das diversas experiências alternativas que têm sido praticadas por todo o mundo, que apresentam formas de organização econômica baseadas na igualdade, na solidariedade e na proteção ao meio ambiente,

1 a incubadora tecnológica de cooperativas Populares (itcP-USP) é um programa de extensão, vinculado a Pró-Reitoria de cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, que trabalha para o desenvolvimento da Economia Solidária, por meio da formação de trabalhadores, estudantes, profissionais e professores.

Page 114: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

114

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

contrariando a lógica capitalista tradicional. Por fim, acentuam que nenhuma dessas novas propostas representa uma alternativa sistêmica ao capitalismo, mas sim implantes socialistas no “seio” do sistema capitalista, o que aponta para mudanças graduais e não na linha revolucionária clássica. Santos e Rodríguez (2002) procuram a construção de alternativas econômicas concretas que sejam emancipatórias, viáveis e dêem um conteúdo específico às propostas por uma globalização contra-hegemônica.

2.1 Economia Solidária

A Economia Solidária é uma das alternativas de economia que visa garantir a igualdade, a solidariedade e a proteção ao meio ambiente. Assim, num primeiro momento, cabe defini-la, buscando a sua origem, a fim de compreender o seu objetivo e a sua proposta enquanto estrutura organizacional. De acordo com Singer (2002), o precursor da ideia de Economia Solidária foi Robert Owen, ao lado de Fourier e Saint-Simon. Ela surgiu em resposta ao capitalismo industrial, que acarretou o empobrecimento dos artesãos e a exploração dos trabalhadores, ao que Robert Owen, empresário britânico bem sucedido e proprietário de um imenso complexo têxtil em New Lanark, passou a se opor, imprimindo uma verdadeira revolução em suas empresas, humanizando as relações de trabalho e avançando em experiências cooperativas, comunitárias e dando impulso para as primeiras iniciativas sindicais.

De acordo com Singer (2002), foi por meio da sindicalização que ocorreu o “cooperativismo revolucionário”, entendido como embrião da Economia Solidária, tendo em vista que os trabalhadores uniram-se em prol de seus interesses coletivos para garantir condições mínimas de trabalho e remuneração. Inicialmente, estes movimentos obtiveram bons resultados até o momento em que as indústrias adotaram a ideia do lock-out , conhecida como greve patronal, a qual demitia os trabalhadores que pertenciam ao Sindicato dos Trabalhadores, o que enfraqueceu o movimento proletário. Apesar desse revés, o “cooperativismo revolucionário” deixou um importante legado para a humanidade, entre os quais a aprovação do Factory Act, legislação protetora do trabalhador de fábrica, que limitava a jornada de trabalho a dez horas.

Posteriormente a essas primeiras iniciativas do que viria a se chamar Economia Solidária, na década de 1980 com o advento da globalização, em que se assiste a uma precarização das relações de trabalho e ao crescimento do desemprego estrutural, ressurgem os ideais coletivistas, o que passa a

Page 115: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

115

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

ser conhecido por “novo cooperativismo” e embasa o que é hoje conhecido por Economia Solidária. Suas características voltadas para princípios, democracia, igualdade, autogestão e aversão ao assalariamento, assim como sua adesão a posturas solidárias e disposição para segui-las na vida cotidiana, fazem parte, incessantemente, da tentativa de criação de uma lógica de desenvolvimento oposta ao modelo de produção dominante. Singer (2002, p. 116) defende a ideia de transformar a Economia Solidária “numa forma geral de organizar a economia e a sociedade, que supere sua divisão em classes antagônicas e o jogo de gato e rato da competição universal”.

Com relação às formas de atuação da Economia Solidária, Singer (2002) aponta para distintas alternativas: a forma isolada (por meio da criação de comunidades, autossuficientes e protegidas da competição das empresas), ou por meio do consumo solidário (o qual daria preferência a bens e serviços produzidos por empreendimentos solidários). Porém, o autor demonstra maior simpatia pela inserção destas iniciativas no mercado convencional, garantindo eficiência e qualidade, capaz de fazer destas experiências embriões de um novo modelo de sociedade, capaz de superar o modelo capitalista tradicional.

2.1.1 Empresa Solidária x Empresa Capitalista

Singer (2002) confronta a solidariedade e a competição como dois princípios distintos que disputam hegemonia na construção de projetos políticos e econômicos capazes de organizar a convivência social. Nesse sentido, o autor reforça a prioridade dada ao princípio da competição no modelo capitalista, a qual tem demonstrado ser geradora de desigualdades sociais sem limites. Isso porque, segundo Singer (2002, p. 08), “os ganhadores acumulam vantagens e os perdedores acumulam desvantagens” ao longo do tempo, o que acaba se refletindo no desequilíbrio competitivo e de oportunidades entre indivíduos. Ou seja, os descendentes daqueles que acumularam elevadas somas de capital terão sempre uma nítida vantagem em relação aos descentes dos perdedores num ciclo vicioso sem fim.

Com base nessa argumentação e preocupado com as conseqüências do monopólio da competição sobre outras formas de organização social mais solidárias e colaborativas, o autor alerta para os riscos da dominação sem barreiras do capitalismo e sua aceitação incondicional. Assim, Singer (2002, p. 09) propõe a inserção do princípio da solidariedade e da cooperação na economia por meio da “associação entre iguais”, e não um “contrato entre desiguais”. Dentro da mesma linha, Santos e Rodríguez (2002) também

Page 116: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

116

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

alertam para o fato da ausência de resistência ao sistema capitalista tornar-se o campo ideal para o seu avanço em moldes cada vez mais selvagens e desumanos, o que impõe, necessariamente, o desenvolvimento de novos projetos econômicos emancipatórios e contra-hegemônicos.

Para Armando de Melo Lisboa (2005), a originalidade da Economia Solidária é estar no mercado sem se subordinar à busca do lucro máximo, uma vez que guia seus empreendimentos pela prática do preço justo. O novo campo das finanças solidárias (que está a democratizar o crédito) também permite ver a preocupação com a rentabilidade econômica, mas suas operações pautam-se pelo respeito a valores éticos e humanistas. Assim, “quando um empreendimento econômico abre mão da possibilidade de maximizar o lucro em função duma perspectiva social e ecológica, então esta empresa tem uma postura solidária dentro da troca mercantil. Esta é a novidade da Economia Solidária” (LISBOA, 2005, p. 3). Por isso, o autor, diferentemente da maioria de pesquisadores da área, defende que a autogestão não é necessária como pré-requisito da Economia Solidária, basta a percepção de uma perspectiva social, econômica e ecológica para a sua existência.

Singer (2002, p. 11) apresenta, em seu texto, as diferenças entre empresas capitalistas e solidárias. Nas primeiras, prevalece a relação capital trabalho, em que os empregados ganham salários desiguais entre si, “conforme uma escala que reproduz aproximadamente o valor de cada tipo de trabalho determinada pela oferta e demanda pelo mesmo mercado de trabalho”. Cria-se, com isso, uma cadeia de cargos onde os diretores ganham mais que os gerentes, e estes mais que os técnicos e assim por diante. Em tese, há liberdade tanto dos empregados em procurar as empresas que melhor lhes convir, assim como dos empregadores em demiti-los quando assim desejarem. Diferentemente, na empresa solidária, os sócios têm direito a retiradas de acordo com a receita obtida e essas retiradas podem ser iguais para todos ou diferenciadas, conforme o acordo estabelecido democraticamente em assembléia coletiva. Muitas empresas solidárias adotam a desigualdade de retiradas para não perder a colaboração de cooperados mais qualificados para empresas capitalistas. Utilizam a seguinte lógica: “pagar melhores técnicos e administradores permite à cooperativa alcançar ganhos maiores que beneficiam o conjunto dos sócios, inclusive os que têm retiradas menores” (SINGER, 2002, p. 13).

Para entender as diferenças entre o modelo capitalista de empresa e o solidário, há de se compreender o destino dado ao lucro ou às sobras auferidas pelos empreendimentos. Na empresa capitalista, o lucro destina-se,

Page 117: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

117

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

primeiramente, para remunerar os acionistas, revertendo-se em dividendos; em segundo lugar, para os fundos de investimento; e, em terceiro, a reversão destes fundos será novamente distribuído em ações. Já na empresa solidária, ocorre uma inversão, ou seja, uma parte da sobra é destinada a um fundo para a educação dos cooperados, outra parte é destinada ao fundo de investimento e a última parte é dividida entre os associados em partes iguais ou diferentes, de acordo com os critérios estabelecidos inicialmente em assembléia.

A princípio, pode parecer que não há diferença com relação à empresa capitalista, uma vez que permitiria uma remuneração desigual. Mas Singer (2002) afirma que a empresa capitalista evidencia a busca pelo lucro, e as decisões dos gerentes estarão ameaçadas se a empresa não obtiver o lucro almejado. Em contrapartida, na solidária as retiradas são determinadas pelos sócios e mesmo quando apresentam diferenças, estas ocorrem dentro de um limite máximo, o que reduz distorções acentuadas preservando-se o princípio da equidade.

2.1.2 Poder: Autogestão x Heterogestão

Singer (2002) também se debruça sobre as diferenças entre os modelos de gestão adotados pelas empresas. Nas empresas capitalistas tradicionais, predomina a heterogestão que se baseia na administração hierárquica com níveis sucessivos de autoridade. Por outro lado, na Economia Solidária utiliza-se predominantemente o modelo de autogestão, que pressupõe relações horizontalizadas, democráticas e participativas em que as decisões são tomadas em conjunto por todos os membros da organização.

Page 118: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

118

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

FORMaS GEStãO dEciSÕES VantaGEnS/ dESVantaGEnS

HEtEROGEStãO

administração hierárquica, formam níveis sucessivos de autoridade.

as informações e consultas fluem de baixo para cima e as ordens e instruções de cima para baixo.

Vantagens: competição sadia entre setores e departamentos;Desvantagens: competição exacerbada entre departamento e seções que acabam prejudicando os objetivos organizacionais. Os trabalhadores do nível mais baixo sabem muito pouco além do necessário para que cumpram suas tarefas, que tendem a ser repetitivas e rotineiras.

aUtOGEStãO

administração democrática, em que todos participam das decisões.

as informações e demandas fluem de cima para baixo e as ordens e instruções devem fluir de baixo para cima.

Vantagens: quando pequena as decisões são tomadas em assembléias, quando há necessidade. todos participam democraticamente das decisões que envolvem a cooperativa.cooperação inteligente, que exige esforço adicional de todos, sem competitividade;Desvantagens: quando a empresa é grande existe a dificuldade em realizar assembléias -gerais. isso acarreta a delegação de poder a alguns sócios.-Os níveis mais altos, na autogestão, são delegados pelos mais baixos e são responsáveis perante os mesmos;-decisões que possam gerar conflitos entre os sócios;-O desinteresse dos sócios e sua recusa ao esforço adicional que a prática democrática exige;-decisões que devem ser tomadas rapidamente sem haver tempo para consultar os demais sócios;

cO-GEStãO administração semi-democrática.

comporta co-decisão: uma decisão só pode ser tomada por concordância das partes.

Vantagens: há um conselho interlocutor orgânico e os trabalhadores são qualificados para dialogar (tRaGtEnBERG, 1980).Desvantagens: Os poderes desses conselhos são limitados aos problemas que existem nos estabelecimentos (tRaGtEnBERG, 1980).

Quadro 1- Heterogestão x Autogestão Fonte: Adaptado de Singer (2002) e Tragtenberg (2002).

Page 119: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

119

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

O quadro 1 faz um comparativo entre a heterogestão e a autogestão, destacando as diferenças entre estes dois modos de gestão e as vantagens e desvantagens de cada um. Pode-se perceber que as duas políticas de gestão possuem limitações e problemas, não se devendo cair em radicalismos apressados e míopes que tendem a mascarar a realidade. Assim, não há que se pontuar qual gestão é melhor, se a heterogestão ou a autogestão, mas se deve perceber que ambas representam fins diferentes em si. A heterogestão corresponde às expectativas dos donos da empresa em obter lucros, potencializando a competitividade, até mesmo dentro da empresa. Já a autogestão visa ser eficiente em tornar empresas solidárias, economicamente produtivas, centros de interação democráticos e igualitários que representam os anseios dos seus membros.

Benini e Figueiredo Neto (2008, p. 9) questionam: “pode-se encarar o projeto de economia solidária como sendo ele mesmo um projeto em disputa: Inclusão social no capitalismo ou emancipação social do capitalismo?” . Ou seja, os autores destacam que “se a opção for pela inclusão, então continua em primeiro plano a meta de geração de emprego e renda”, mas este processo de inclusão pode acarretar um discurso vazio em relação à Economia Solidária frente à ausência de conteúdo crítico ou de um projeto político de transformação, promovendo uma pseudo-autogestão, que “na verdade não passa, na melhor das hipóteses, de práticas de auto-ajuda, ajuda mútua, uma autogestão de grupo sem o conteúdo radical de ruptura com lógica dominante (capitalismo burocrático) que se pressupõe de uma autêntica prática autogestionária” ,

Singer (2002, p. 20) defende que é preciso trabalhar a autogestão para que ela possa efetivar-se consistentemente o que obriga a um processo de educação permanente, não só técnico, mas principalmente para a cooperação. O autor alerta para o fato de que as cooperativas “que vão mal têm alto índice de participação dos sócios” e as cooperativas que “vão bem podem vir a apresentar o quadro oposto: a lei do menor esforço concentra o poder de decisão de fato nos gestores e a empresa escorrega sem perceber para uma prática de heterogestão”. Ou seja, concentram a maior parte de suas decisões nas mãos de alguns gestores que imprimem uma lógica hierárquica, que se aproxima da heterogestão e do modelo capitalista de empresa.

Page 120: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

120

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

2.2 Relações de poder

Não se pode estudar modelos organizacionais sem abordar a questão do poder que os atravessa e que aqui é especialmente trabalhada dentro do contexto da Economia Solidária. A complexidade do tema impõe distintas abordagens, o que faz com que se tenha que fazer escolhas condizentes com o delineamento da vertente epistemológica utilizada e que melhor contribua com a compreensão do fenômeno aqui exposto.

Nessa perspectiva, observa-se o poder como emanado de todos os lugares sociais e que, segundo Foucault, é entendido como “um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente, por isso não existe “o poder”, o que existe são relações de poder, ou seja, formas heterogêneas em constante transformação” (FOUCAULT, 1979, p. X).

Foucault (2004) trata as ações de poder como uma tática, uma estratégia. Esses dois termos são apresentados para mostrar a subjetividade do poder, assim como seu formato de não propriedade. De acordo com o autor, admite-se que o poder é utilizado em maior quantidade do que se possui e que não se restringe a privilégios de classes dominantes, mas é determinado pela posição estratégica que determinada pessoa ocupa em uma sociedade. Assim, tem-se, como exemplo clássico, um chefe de família ou um professor dotado de conhecimento em uma sala de aula. Ademais, deve-se compreender que as pessoas são os centros ativos de transmissão e recepção de poder, fazendo com que suas atitudes sejam reflexos dessa relação.

Ainda na tentativa de caracterizar a essência do Poder dentro da visão foucaultiana, necessário é explicar que essas relações não são vistas exclusivamente sobre a ótica pejorativa de repressão, punição e de limites. Elas são observadas, também, sobre uma percepção positiva, como se pode observar:

É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, ele reprime, ele recalca, ele censura, ele abstrai, ele mascara, ele esconde. De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2004, p. 161).

Page 121: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

121

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

Ao analisar o poder, Foucault (1995) levanta a questão: como se exerce o poder? Para responder a essa pergunta, o autor fundamenta-se no método da genealogia e da arqueologia2, focando na procura de responder como determinadas práticas surgem e se estabelecem, tornando-se manifestações do poder. Para esse método genealógico e arqueológico tornar-se útil nos estudos foucaultianos, ele precisa analisar o poder a partir de suas externalidades, fugindo de um centro de comando; precisa, também, ser estudado a partir de práticas reais e efetivas; além de precisar ser entendido como algo que circula, que nunca está nas mãos de alguém, uma não-propriedade.

2.2.1 Poder Disciplinar e Biopoder

Foucault constrói relações diretas de entrelaçamento entre poder e saber. Para o pensador, não existe relação de poder sem constituição correspondente no campo do saber, nem saber que não componha ao mesmo tempo relações de poder. Assim, o estudo da genealogia foucaultiana (Poder- Saber) analisa o surgimento dos saberes, que acontecem a partir de condições de possibilidades externas aos próprios saberes (MACHADO, 1982, p. 187).

Foucault descreve duas técnicas de exercício do Poder: a disciplinar e a do biopoder. Adentraremos nos pormenores dessas duas abordagens, contudo focando, de maneira mais intensa, as relações disciplinares, pois acreditamos que melhor respondem ao fenômeno aqui estudado. A técnica disciplinar de poder refere-se ao adestramento individual através das diversas instituições modernas que envolvem o viver cotidiano (escola, fábrica, hospital, prisão, etc.). Foucault (1999) utiliza a expressão “docilizar” os corpos para mostrar o potencial influenciador dessas instituições em adaptar e condicionar os indivíduos ao modelo de produção industrial, num processo em que o autor descreve como de adestramento, ampliação das aptidões, extorsão das forças, crescimento da utilidade e docilidade humana e integração em sistemas de controle econômicos de extrema eficácia.

Nota-se, assim, que a técnica disciplinar do poder é fundamentada diretamente no corpo dos indivíduos, sempre buscando manipular seus gestos e comportamentos de uma maneira invisível, sem a presença de um poder soberano, tudo é observado sem se notar. O objetivo da disciplina é

2 Por arqueologia entende-se a exumação das regras de pensamento que limitam os conceitos. Genealogia é um termo utilizado para descrever a história dos saberes, mostrando como se modificam quanto à concepção de verdade.

Page 122: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

122

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

aumentar a utilidade do indivíduo, ao proporcionar o crescimento de suas habilidades e aptidões, mostrando, assim, que o exercício do poder é também construto de conhecimento. Foucault (1979, p. XVII) resume a disciplina como o “diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capitalista”.

Complementarmente ao poder disciplinar, edifica-se o que Foucault chama de biopoder. Deve-se ater que a disciplina está contida no biopoder, contudo o biopoder é uma extensão, que a transforma ao seu modo. Na análise de uma sociedade, pode-se encontrar, segundo Foucault (1979), a coexistência dessas duas técnicas no mesmo tempo e espaço. Biopoder, contudo, atua dentro de uma visão macro, na qual a preocupação é observar as relações de poder dentro da sociedade ou da comunidade; está diretamente relacionado com a gestão da vida das pessoas, adaptando-as e transformando-as para um melhor controle social. Sua preocupação perpassa temas como natalidade, mortalidade e saúde populacional; temas que devem fazer parte da esfera do poder, a partir de regulamentação que previna e garanta a vida.

Assim, o quadro a seguir, serve de síntese e também de clarificação da relação entre poder disciplinar e biopoder:

Poder Disciplinar Biopoder

indivíduo- corpo População

individualização Massificação

treinamento individual Equilíbrio Global

disciplina Regulação

Quadro 2 – Poder Disciplinar versus Biopoder Fonte: Adaptado de Pogrebinschi (2004).

A técnica disciplinar torna-se importante para o objeto de estudo desse artigo, pois trabalha com uma perspectiva de manipulação do indivíduo por meio organizacional, em que os colaboradores são mantidos sobre uma relação de poder, muitas vezes não detectada, sutil e mesmo subliminar. Essa relação de poder consegue controlar e manter o mesmo padrão da produção de uma determinada organização, fazendo-a atingir seus objetivos pré-determinados e utilizando o máximo de saber dos trabalhadores, sem,

Page 123: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

123

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

contudo, serem percebidas as estratégias de manipulação e adestramento impressas no processo.

2.2.2 Sujeitos do Poder Disciplinar

Foucault (1979) expõe a existência de quatro tipos de dispositivos de poder disciplinar. Esses dispositivos são: o olhar hierárquico; o registro contínuo do conhecimento; o controle sobre o tempo e a organização do indivíduo no espaço. O olhar hierárquico é entendido como a ampliação do termo vigilância. A vigilância, por sua vez, permeia a constante e perpétua observação dos indivíduos.

Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares. É assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção, do general chefe até o ínfimo soldado, que permitem que cada indivíduo seja observado permanentemente (FOUCAULT, 1979, p. 62).

A vigilância contribui com a automatização e o aumento da extensão

do poder, assim como para a individualização do sujeito submetido a essa vigilância. Ela produz o que Foucault chama de potencialmente vigiados, ou seja, os funcionários ao saberem que estão sendo vigiados em determinado momento ficam com a impressão de que a todo o momento estão sobre o efeito de vigília, mesmo quando isso não ocorre. Esse comportamento acarreta que cada trabalhador passa a vigiar um ao outro, ocorrendo o aumento da extensão do poder presente.

Assim, o dispositivo de vigilância reafirma o conceito de poder trazido por Foucault, ao observá-lo em toda parte da estrutura organizacional de forma relacional e não como manifestação de uma pessoa ou de um chefe. Aponta, também, para um poder relacionado à produção e ao saber, no qual a maior quantidade de poder exercido sobre os trabalhadores gerará maior produtividade e maior saber por eles.

O registro contínuo do conhecimento é outro dispositivo de poder importante apontado por Foucault (1979). O autor coloca que o registro permanente e, na medida do possível, exaustivo do que acontece constitui uma esfera documental que vem a se transformar em um acúmulo e formação de saber. Ao aglomerar informações, os funcionários encarregados de coordenar as atividades adquirem maior possibilidade de produzir poder. A direção para a qual o fluxo do registro das ações encaminha-se está

Page 124: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

124

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

dentro de um padrão recursivo de baixo para cima, onde a efetividade desse mecanismo é alcançada à medida que nenhum detalhe, acontecimento ou qualquer outra informação escape ao saber dos coordenadores. Somente, a partir daí pode-se, para Foucault, medir, julgar, localizar, classificar e utilizar os trabalhadores ao máximo.

Ao tratar do dispositivo de controle sobre o tempo, Foucault coloca em ênfase técnicas de domínio das atividades dos indivíduos dentro de uma organização industrial. Esse domínio transcorre desde o controle do tempo, controle de gestos, elaboração temporal das ações até a articulação entre o corpo e o objeto. Essas formas de manter o controle sobre os indivíduos são conhecidas desde o surgimento do capitalismo e estudadas a partir de pressupostos tayloristas (PAULI, 2005).

Por fim, trata do dispositivo relativo à organização do indivíduo no espaço. Foucault (1979) coloca que a estrutura organizacional é uma forma de intervenção sobre o trabalhador3, na qual se procura estabelecer um local pré-determinado e plenamente especificado. Esse local seria estratificado, de acordo com as atuações dos trabalhadores, tanto quanto fosse necessário para o pleno controle de suas ações. Isso provocaria uma rapidez em localizar os trabalhadores e suas determinadas funções dentro da organização. Esse dispositivo pode ser utilizado, também, para acompanhar a eficiência do trabalhador e uma possível cobrança de explicações, caso saia do previsto.

3 Metodologia

Segundo Martins (1994, p. 4), ao citar Hanguette (1990, p.5), a pesquisa etnográfica é um processo por meio do qual a presença do observador, numa situação social, é mantida para fins de investigação científica. Assim, o observador mantém “relação face-a-face com os observados, e, em participando com eles em seu ambiente natural de vida, coleta dados”. De acordo com o autor, o observador é parte do contexto que está sendo observado, podendo modificar ou ser modificado pelo contexto. O observador pode ser classificado, ainda, como: formal ou informal; encoberto ou revelado; integrante da estrutura social ou ser apenas uma parte periférica da estrutura. Assim, optou-se pelo método “fenomenológico” por meio da técnica intitulada observação participante ou pesquisa etnográfica.

A pesquisa etnográfica, ainda pouco utilizada no campo organizacional brasileiro (FERTAZ; CAVEDON, 2004), tem por

3 no caso, Focault usou os termos voltados para a gestão hospitalar; substituímos, portanto, a palavra paciente por trabalhador e hospital por organização.

Page 125: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

125

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

pressuposto fundamental descrever o ponto de vista referente aos valores, experiência de vida, pensamentos, emoções, sentimentos e práticas que constituem realidade existencial nativa. Assim, para Tedlock (2000), a etnografia em um contexto mais significativo envolve um avanço na tentativa de estabelecer encontros específicos, acontecimentos e compreensões mais amplas deste. Envolve mais do que simplesmente produzir informação ou pesquisa de dado, mas caracteriza o modo em que tal informação ou dado é transformado em uma forma visual ou escrita. Godoy (2010) defende que a vida em grupo é o foco da pesquisa etnográfica abrangendo a descrição dos eventos que ocorrem na vida.

No caso, o presente estudo foi embasado na inclusão dos observadores de maneira informal, revelada e como integrantes da estrutura social ao se envolverem nas tarefas executadas pelos observados no dia a dia, além de terem sido efetuadas várias visitas junto à comunidade no decorrer do estudo, que serviram para aprofundar as análises. As visitas foram realizadas especificamente às sextas-feiras, nos dias 28 de maio e 24 de junho de 2010, durante o momento de celebração da comunidade, em que se abre um espaço para o diálogo e o compartilhamento de suas vivências cotidianas.

Nos dias 30 de junho e 01 de julho (quarta e quita-feira) de 2010, o casal de pesquisadores foi à comunidade e participou de todas as atividades diárias, sendo inseridos nos trabalhos realizados no dia a dia. Estes momentos serviram especialmente para observar as relações de poder que se manifestavam dentro da comunidade, mesmo que, formalmente, estas tivessem sido negadas em favor de um discurso em torno da coesão e do consenso harmonioso que se estabelece em decorrência de um trabalho interior de desprendimento e abertura ao desenvolvimento espiritual.

4 Resultados e discussões

A Comunidade Doze Tribos foi criada há cerca de 30 anos no sul dos E.U.A. A intenção do fundador e dos primeiros membros era formar uma nova ordem social influenciada pelas experiências do cristianismo primitivo, onde as pessoas viviam em pequenas comunidades compartilhando tudo o que possuíam. Com o passar do tempo, a comunidade foi crescendo e outras foram sendo criadas, expandindo-se para vários países do mundo.

No Brasil, existem quatro comunidades: uma localiza-se em Londrina-PR, outra em Curitiba-Pr, uma terceira em Mauá da Serra-Pr e a quarta em Campo Largo-Pr; juntas, formam uma tribo, que recebeu o nome de Naftali, nome hebraico em alusão a uma das Doze Tribos de

Page 126: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

126

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Israel. Desenvolvem diversas atividades produtivas que lhes garantem sustentabilidade, tais como: agricultura orgânica (destacadamente erva-mate), construções em madeira, artesanato (móveis e velas aromáticas), alimentos naturais e, ainda, possuem um restaurante e uma padaria. Todos os empreendimentos seguem os princípios da igualdade de direitos e deveres, havendo rotatividade de funções para evitar privilégios.

A Comunidade Doze Tribos (Naftali) chama a atenção por apresentar uma proposta diferenciada de gestão, estrutura organizacional, relações sociais e de sociabilidade, o que a distingue das organizações tradicionais. Por estas razões, pode enquadrar-se dentro dos pressupostos básicos que compreendem a Economia Solidária, ainda que possua singularidades próprias do seu caráter religioso. Pode-se perceber que existem marcas profundas de doutrinação entre os membros da comunidade num esforço em se garantir a coesão do grupo e a blindagem contra possíveis cisões provenientes de pensamentos distintos; esse fato fica claro ao se observar a similaridade nos discursos e nas atitudes dos membros.

Os integrantes da comunidade definem a sua forma de vida como uma “Nova Ordem Social”, na qual se enfatiza a convivência solidária e conjunta, em que o coletivo e comum se sobrepõem às individualidades e vontades próprias de cada membro. A comunidade, em seu site, apresenta a seguinte definição da “Nova Ordem Social”:

É uma nova ordem social onde a paz que reina no nosso meio não é devido à leis e a imposição da lei. Nós não fazemos as coisas por obrigação, mas porque nós queremos fazê-las. Nesta vida de amor, ninguém tem o direito de ser frio com seu semelhante. Malícia, desencorajamento e revanche são estranhos, recusados em nosso modo de vida. O amor nos impede de lutar para passar à frente dos outros, impede-nos de tirar vantagem dos outros, de voltar as costas para os outros nos momentos difíceis (DOZE TRIBOS, 2010).

Nessa “Nova Ordem Social”, as pessoas vivem juntas, assemelhando-se a uma grande família. Trabalham e fazem as refeições em conjunto, apenas tendo a individualidade nas pequenas residências que são concedidas a cada nova família que se forma na comunidade. Todos os comportamentos buscam ser fundamentados nas escrituras bíblicas, evocando constantemente o “mestre Yahshua”, nome hebraico de Jesus e se inspiram nas primeiras comunidades cristãs, em que “todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum” (ATOS 2:44).

Page 127: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

127

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

Com base nessa convivência e na forma como os membros da comunidade compartilham suas vidas, seus bens e seu trabalho, a presente pesquisa buscou levantar as relações de poder que se manifestam de forma informal através de sutilezas, nem sempre fáceis de captar, e que asseguram a coesão e harmonia tão valorizada e defendida pelos membros da comunidade, como é descrito em seguida.

4.1 Autogestão x Poder

Pode-se observar, através da presente pesquisa, que a comunidade Doze tribos procura seguir os princípios da autogestão, embasada nos princípios bíblicos. Apoiam-se na idéia central da distribuição do poder entre todos os participantes, na divisão do trabalho entre os que concebem e os que executam, ausência de relações de subordinação, controle do processo de trabalho parcial ou total pelos trabalhadores. Para melhor compreensão do modelo de autogestão desenhado pela comunidade, alguns pontos-chave foram destacados:1. O modo de produção e a propriedade são tratados como domínio de

todos os integrantes da comunidade, ou seja, todos os possuem por igual; o saldo obtido é distribuído de modo consensual e de acordo com regras estabelecidas através da participação de todos os membros.

2. A tomada de decisão ocorre por meio de um conselho, composto por 8 membros, que tomam as decisões mais importantes referentes às estratégias. Estes são escolhidos de acordo com a “graça e a aptidão”. Normalmente são os membros mais velhos da comunidade. Há decisões que compõem processos diários que são coletivas e descentralizadas tendo, assim, a participação direta de todos os membros da comunidade.

3. A comunicação dentro da comunidade ocorre por meio de 2 reuniões diárias e assembléias mensais para a disseminação de informações. Essa comunicação garante o conhecimento global por parte dos integrantes sobre os processos e interações da organização. Existem também reuniões exclusivas para o conselho, que se fazem valer durante um dia da semana, freqüentemente, no período noturno.

4. A divisão de funções é pautada na rotatividade de tarefas cotidianas, não existindo uma divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual e, conseqüentemente, não se estabelece uma hierarquia de cargos.Toda semana é produzido um calendário, no qual se encontram as atividades de cada membro da comunidade estratificada em dias. Por seguir uma rotatividade freqüente, os membros têm a oportunidade de exercer diversas tarefas.

Page 128: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

128

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Logo, a comunidade apresenta as principais características que compõem o modelo de autogestão, entre as quais: os trabalhadores são detentores dos meios de produção; o saldo obtido com a venda de produtos é remetido em benefício de todos, sem discriminação; tomada de decisão democrática; a comunicação ocorre de baixo para cima; a divisão das funções ocorre de acordo com as necessidades da comunidade e a disponibilidade dos membros, bem como há rotatividade de tarefas (garantindo a ausência de privilégios e a concentração do conhecimento nas mãos de poucos).

Na verdade, o que se observou durante o período em que os pesquisadores interagiram com os membros da comunidade, é que existe a aplicação do princípio da solidariedade, de tal sorte que eles se dispõem a se ajudar mutuamente. Essa disponibilidade em ajudar os outros e contribuir em todas as atividades para o bem da coletividade foi pregada durante todo o tempo que os pesquisadores permaneceram na comunidade. Pode-se observar in loco um exemplo emblemático em que dois membros da comunidade negociavam, de maneira informal, a mudança de planos de trabalho em decorrência de um deles precisar cuidar do filho. Esse tipo de comportamento solidário é uma marca muito forte nos relacionamento dentro da comunidade, porém se percebe que aqueles que porventura se contrapõem a esse comportamento são reprimidos pelos demais membros, freqüentemente, apelando para ilustrações bíblicas, manifestando-se, assim, um poder disciplinar incutido nas palavras e ações desenvolvidas pelos membros da comunidade.

Ao entrevistar uma das tutoras que acompanhava os pesquisadores, ela respondeu que “a ordem é cuidado, e o cuidado é amor” (Iasha em hebraico). Logo, verificou-se que a “Nova ordem social” proposta pela comunidade é pautada na disciplina como forma de amor e respeito ao próximo, que se materializa através do cuidado. Assim, a vigilância sobre o comportamento dos membros da comunidade encontra eco no “poder disciplinar” apresentado por Foucault (1979), o qual foi identificado durante a permanência na comunidade. Essa vigilância mútua estabelecida entre os membros das Doze Tribos aumenta a extensão das relações de poder estabelecidas de maneira informal. A tendência, portanto, é que o poder exercido sobre a vigilância constante e mútua entre os membros acarreta a sua maior efetividade diante das contendas do dia a dia, eliminando possíveis conflitos internos.

O poder disciplinar pode ocorrer ainda por meio do registro de conhecimento. Durante a estadia na comunidade, verificou-se, durante entrevista com um dos membros, que existe um conselho, composto

Page 129: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

129

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

por apenas 8 (oito) membros, o qual é responsável pela definição de estratégias de negócios, como aquisição e venda de bens, abertura de novos estabelecimentos e alocação de recursos entre as comunidades. Perguntados sobre os critérios de escolha destes conselheiros, os membros responderam que são eleitos aqueles que apresentam “Graça e aptidão”. Ao observá-los, verificou-se que os 8 (oito) membros possuem entre 40 (quarenta) e 50 (cinquenta) anos, e fazem parte da comunidade há mais tempo. Por isso, conclui-se que o poder, neste caso, está atrelado ao registro de conhecimento apresentado pelos membros, assim, quanto maior o conhecimento referente aos processos e às tarefas exercidas dentro da comunidade, bem como o carisma (graça) perante os demais membros, maior a probabilidade de compor o conselho, porém não existem pré-requisitos formais que definam a composição do conselho.

Em contrapartida, existem decisões operacionais que compõem as tarefas cotidianas, as quais são colocadas perante toda a comunidade que, em conjunto, discute e define as possíveis soluções a serem adotadas. Estas reuniões se realizam às quintas-feiras de cada semana, no período da manhã, compreendido entre os horários das 7:30 às 8:00 horas. Essas decisões dizem respeito à colocação da necessidade de ajuda para determinadas tarefas de toda a comunidade. Para se compreender melhor o funcionamento destas reuniões, durante o período em que os pesquisadores permaneceram na comunidade, na manhã do dia 01 de julho de 2010, os homens foram convidados para ajudar a limpar a estrutura de uma fossa que havia sido alagada pelas águas da chuva. Ou seja, o coordenador do Sítio e encarregado de levantar as necessidades referentes à propriedade, avisou a todos os membros da comunidade, na reunião matinal, sobre o problema que estava ocorrendo. Em seguida, pediu para aos homens que se dirigissem até a fossa e quem pudesse poderia ajudar na atividade de limpeza da fossa. O pesquisador masculino, presente nesta reunião, candidatou-se a colaborar com a limpeza. Portanto, há um poder disciplinar implícito e imbuído de solidariedade pregado pelos membros da comunidade, como forma de manter a ordem, pautada em princípios religiosos.

Verificou-se que a rigidez disciplinar encontrada na comunidade acaba sendo um processo de seleção natural, quase que um ritual de passagem para aqueles que pretendem integrar as 12 tribos, uma vez que não existem requisitos pré-definidos para a entrada de novos membros. Assim, aqueles que conseguem adequar-se à rigidez disciplinar da comunidade, conseqüentemente demonstram as qualidades essenciais para permanecer

Page 130: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

130

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

na mesma e, dessa feita, fortalecem e legitimam o próprio grupo e o poder disciplina vigente.

4.2 Hierarquia

Qualquer classificação que tenha como base as relações entre superiores e dependentes pode ser definida como hierarquia. Qualquer classificação por ordem caracteriza uma hierarquia de valores. Assim, de acordo com a definição de hierarquia, apesar de os membros em entrevista relatarem que não há uma hierarquia pré-definida, os membros do conselho elegem “coordenadores” dentro da comunidade, que garantem o seu funcionamento e a sua ordem. Da mesma maneira que os membros do conselho são eleitos a partir de requisitos como “graça e aptidão”, os coordenadores também devem demonstrar conhecimento aprofundado sobre a atividade que irão liderar.

Além disso, a comunidade está dividida em dois clãs, cada um composto por 40 (quarenta) membros; esta divisão visa facilitar a comunicação e manter a coesão e o cuidado entre os integrantes, algo difícil em grupos maiores. Os dois pesquisadores, durante a estadia na comunidade, foram alocados em clãs distintos, a fim de obter mais informações e participar das atividades da comunidade de forma mais completa. Assim, o quadro 3 apresenta, de forma estruturada, as coordenações referentes às atividades exercidas dentro da comunidade e a sua divisão entre os membros que a compõem.

Page 131: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

131

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

Espécies organizacionais Coordenação Distribuição

Organização empresarial

- da colméia

-Fábrica de velas (Sub-coordenação)- Saboaria (sub-coordenação)- óleos essenciais (Sub-coordenação)

- setor de vendas

- Padaria - panificação

- Feiras - equipe de seis membros dispostos a viajar (rodízio)

- compras - um membro é designado para elaborar uma lista de compras dos itens solicitados pelos outros membros da comunidade

Organização doméstica

- cozinha- equipe para lavar a louça determinada pela coordenadora (rodízio)

- equipe para lavar panos de prato- equipe para cozinhar

- Lavanderia- equipe para lavar roupas determinada pela coordenadora (rodízio)- equipe para lavar cobertores determinada pela coordenadora (rodízio)

Organização do conhecimento

- Escola/ Secretária e até os coordenadores

- equipe de professores- equipe de pedagogos

- equipe administrativa

Organização campesina

- campo- agricultura- horta

- construção- equipe de pedreiros- mestre de obra- engenheiro

Quadro 3: Hierarquia Informal Fonte: Elaborado pelos autores (2010).

O quadro 3 demonstra que apesar de não existir uma hierarquia formalmente desenhada e estabelecida, esta se estabelece de forma informal e é determinada pelos membros através de mecanismos que tendem a naturalizar as relações de poder. Geralmente as decisões de cunho estratégico são sugeridas pelo conselho aos restantes membros da comunidade, os quais, por consenso, acatam ou não essas prerrogativas, porém percebeu-se que as sugestões apontadas pelo conselho dificilmente são questionadas, ainda que teoricamente exista espaço para tal.

Assim, verificou-se, durante a estadia na comunidade, que as mulheres exercem tarefas menos desgastantes em relação a esforço físico, permanecendo na coordenação e manutenção de atividades domésticas como: cozinha, lavanderia, compras, limpeza e educação. Porém, constatou-se que nenhuma das mulheres da comunidade faz parte do conselho, além de não liderar nenhuma das atividades produtivas, fato que parece demonstrar uma divisão do trabalho com características sexistas.

Pode-se observar também que os dois últimos poderes disciplinares de Foucault (1979) encontram-se presentes na comunidade, ou seja, controle sobre o tempo e organização do indivíduo no espaço. Existe a delegação de poder entre os membros da comunidade de acordo com seu conhecimento e aptidão e cabe aos coordenadores de cada atividade distribuir as atribuições dos demais. Verificou-se na administração da cozinha que as mulheres são

Page 132: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

132

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

coordenadas de maneira harmoniosa e são responsáveis pelo preparo das refeições para toda a comunidade. O café da manhã é servido às 8:00 horas da manhã; às 13:00 horas o almoço; às 20:00 horas é ofertado o jantar. Depois do pôr-do-sol, as atividades são encerradas e cada membro dirige-se para o seu aposento em companhia de sua família.

Como resultado das observações efetivadas pelos presentes pesquisadores, pode-se observar que os 4 (quatro) tipos de poder disciplinar de Focault (1979) são encontrados dentro da comunidade, ainda que de forma sutil e velada, permeando as relações de trabalho e sociais, o que, de certa forma, é o que garante a coesão do grupo, considerando-se o grande número de membros que o compõem.

5 Considerações finais

Assim, a Economia Solidária, como medida alternativa de desenvolvimento, é definida como um fenômeno resultante de um conjunto de experiências que questiona o sistema econômico capitalista dominante e desenvolve iniciativas autônomas de geração de trabalho e renda pautada em princípios como a solidariedade, a equidade, participação e a sustentabilidade nas diferentes dimensões. A principal diferença entre a empresa capitalista e a empresa solidária está na forma como os rendimentos são obtidos, ou seja, sem a busca desenfreada pelo lucro máximo e a serviço prioritariamente dos donos dos meios de produção, em vez disso o bem coletivo é prerrogativa fundamental na condução dos empreendimentos solidários.

Com base na definição de Economia Solidária e de poder de Foucalt (1979), o presente estudo objetivou compreender as possíveis relações de poder dentro da comunidade Doze tribos de Londrina- Paraná, a qual apresenta características do modelo de Economia Solidária. Assim, partiu-se do pressuposto de que a Economia Solidária é caracterizada pela autogestão, bem como por princípios de valores sociais, em que se busca a igualdade. Por isso, há o seguinte questionamento: como manter a organização de uma comunidade composta por 80 pessoas sem a utilização do poder autoritário e centralizado? Buscando a resposta da presente indagação, utilizou-se a vertente analítica de Foucalt (1979) para levantar a existência ou não de possíveis relações de poder dentro da comunidade. Assim, Foucalt (1979) apresenta os quatro tipos de poder disciplinar: olhar hierárquico, registro do conhecimento, controle do tempo e organização do indivíduo no espaço. Além disso, a escolha dos quatro poderes de Foucalt

Page 133: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

133

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

(1979) aconteceu porque trabalham com a análise do indivíduo dentro dos parâmetros organizacionais, nos quais o controle e a manutenção do padrão de produção fazem o trabalhador atingir o máximo de seu saber e, conseqüentemente, seus objetivos pré-fixados com mais qualidade e velocidade.

Assim, os ensaios de Foucault remetem ao objetivo central do presente estudo: analisar a existência das possíveis relações de poder na “comunidade de Israel 12 (doze) tribos”, localizada na região de Londrina, Paraná. Esta comunidade apresenta algumas das características essenciais do modelo de Economia Solidária, nomeadamente o princípio da autogestão. Logo, buscou-se detectar as possíveis relações de poder que emergem das relações de trabalho existentes dentro da comunidade, compreendendo como o poder é estruturado e distribuído perante os membros que a compõem, bem como a influência que exerce na vida cotidiana dos membros.

Entre as características normalmente pontuadas na Economia Solidária, a autogestão é difundida como essencial. Observou-se que a comunidade de Israel Doze Tribos apresenta uma pseudo-autogestão, uma vez que apresenta relações de poder nas atividades de trabalho, ao se detectar os quatro dispositivos Foucaltianos dentro da comunidade, bem como uma hierarquia informal, a qual determina coordenadores e membros do conselho responsáveis pelas decisões estratégicas de negócios da comunidade. O processo de tomada de decisões estratégicas está, portanto, limitado ao poder de gestão delegado ao conselho, composto por 8 (oito) membros, que corresponde à pseudo-autogestão. Inclusive Singer (2002, p. 20) aponta que as cooperativas com melhor desempenho geralmente concentram a maior parte de suas decisões nas mãos de alguns gestores, o que leva à aproximação do modelo de heterogestão.

A experiência junto à comunidade Doze tribos trouxe à tona algumas marcas importantes, como a presença de relações de poder intrínsecas na comunidade, ainda que sutis e negadas, de tal forma que há uma estrutura de poder bem articulada e distribuída entre todos os membros da comunidade. Percebe-se uma hierarquia informal em que o conselho representado por alguns dos membros mais velhos exerce um poder notório sobre os destinos do grupo. Porém, percebeu-se um esforço para evitar privilégios entre os membros, havendo rodízio semanal das atividades internas.

Ainda que o discurso da Comunidade Doze Tribos seja dominado por elementos de auto-organização, em que a autonomia e a responsabilidade não são definidas ou impostas de cima para baixo, mas emergem do comprometimento de cada indivíduo com o bem do grupo,

Page 134: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

134

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

percebe-se na realidade prática que as relações de poder existem e podem ser entendidas dentro do modelo exposto por Focault (1979) e definido por poder disciplinar e, é dessa forma, que se garante a coesão do grupo e a estabilidade das relações dentro da Comunidade Doze Tribos.

O estudo limitou-se à verificação do poder disciplinar de Focault (1979), sem abranger as demais vertentes de poder existentes. Razão pela qual pode ainda ser foco de futuros estudos que abordem outras vertentes de poder, bem como uma análise mais profunda da forma de convivência e de produção encontrada na comunidade Doze tribos  como exemplo singular de Economia Solidária e de vida comunitária.

Referências

BÍBLIA SAGRADA AVE MARIA. Virtudes dos Primeiros Cristãos. In: Atos dos Apóstolos, 2:44. Tradução dos Originais Grego, Hebraico e Aramaico Mediante a Versão dos Monges. Edição Claretiana, 2009.

BENINI, E. G; FIGUEIREDO NETO, L. F. Desemprego e Economia Solidária: Repensando a Autogestão. SEGeT – Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Disponível em: http://www.aedb.br/seget/artigos07/1412_Economia_Solidaria_Seget.pdf (2008). Acesso em: 20 fev. 2011.

DOZE TRIBOS. Quem Somos. Disponível em: <http://www.dozetribos.com/artigos.php?aid=37> . Acesso em: 19 jul. 2010.

FERTAZ, D. L. S.; CAVEDON, N. R. As culturas organizacionais de uma loja autogestionada de economia popular solidária de Porto Alegre. In: XXVIII Encontro Nacional da ANPAD; 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD 2004.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

______. O Sujeito e o Poder in RABINOW, P. ; DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

______. História da Sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1999.

______. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.

GODOY, A. S. Estudo de caso qualitativo. In: GODOI, C. K.; BANDEIRA-DE-MELLO, R.; SILVA, A. B. Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. São Paulo: Saraiva, 2010. p . 115-146.

Page 135: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

135

as rElaçõEs dE podEr foucaultiana E a Economia solidária

LISBOA, A. M. Economia Solidária e autogestão: imprecisão e limites. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n. 3, p. 109-115, 2005.

MARTINS, G. A. Metodologias Convencionais e não-convencionais e a pesquisa em administração. São Paulo: Cadernos de Pesquisa em Administração, 1994.

MACHADO, R. Ciência e Saber: a Trajetória da Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

PAULI, J. O Poder nas Redes de Economia Solidária. 2005. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

POGREBINSCHI, T. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. São Paulo: Lua Nova, n. 63, 2004.

SANTOS, B. S.; RODRÍGUEZ, C. Introdução: Para ampliar o cânone da produção. In: SANTOS, B. S. (Org.). Produzir Para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 23-74.

SANTOS, Luis Miguel Luzio dos; BORINELLI, Benilson. Economia Solidária: propostas e perspectivas In: BORINELLI, Benilson; SANTOS, Luis Miguel Luzio dos; PITAGUARI, Sinival Osório (Org.). Economia Solidária em Londrina: Aspectos Conceituais e a Experiência Institucional. Londrina: Eduel, 2010, p. 1-23.

SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

______. Globalização e Desemprego: Diagnóstico e Alternativa. São Paulo: Contexto, 2003.

______. Desenvolvimento: significado e Estratégia. Disponível em: http://www.trabalho.gov.br/ecosolidaria/prog_desenvolvimentoestrategica.pdf. Acesso em: 01 abr. 2010.

TRAGTENBERG, M. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Morais, 2002.

TEDLOCK, B. Ethnography and ethnographic representation. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of qualitive research. London: Sage Publication, 2000.

YUNUS, M. Um Mundo Sem Pobreza: a empresa social e o futuro do capitalismo. São Paulo: Ática, 2008.

Page 136: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS
Page 137: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

137

COOPERATIVISMO E ECONOMIA SOLIDÁRIA: TEORIA E PRÁTICA NA COPAVI

PARANACITy -PR

Edson Elias de MoraisFabio Lanza

Luis Miguel Luzio dos SantosSílvia Schroeder Pelanda

1 Introdução

Tornou-se lugar comum dizer que a essência humana está em sua capacidade de socialização. Inúmeras dificuldades de convivência nas sociedades formadas pelos homens e mulheres são amplamente conhecidas. Os dilemas morais, sociais, econômicos e ambientais gerados pela vivência em coletividade já foram objetos de estudo das várias áreas do conhecimento.

No decorrer dos séculos (XVIII ao XXI) análises e teorias sociais foram formuladas com o objetivo de compreender, reformar ou refutar o sistema capitalista e as suas conseqüências. Neste sentido, no século XVIII e XIX ocorreram os experimentos do Socialismo Utópico e na atualidade as teorias e experiências vinculadas a Economia Solidária podem ser compreendidas como uma alternativa na busca da igualdade social e da emancipação humana frente à lógica do capital.

É verdade que cada período econômico da história humana apresentou seus obstáculos na distribuição das riquezas. Mas o capitalismo, e é este sistema econômico que nos interessa, apresenta essas discrepâncias sociais e econômicas de um modo muito claro e instituído por meio da organização do Estado e das leis. A desigualdade no capitalismo ocorre de maneira crescente e cumulativa, como ilustra Singer “os ganhadores acumulam vantagens e os perdedores acumulam desvantagens” (SINGER1, 2008, p.8).

1 A temática a seguir envolve a discussão implementada por Singer no cenário nacional nas últimas décadas, por isso, pode ser útil uma breve biografia: “Prof. Paul Israel Singer - Secretario Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Desde 1996 se dedica à Economia Solidária. Nasceu na Áustria, em 1932, numa família de pequenos comerciantes judeus. Iniciou seus estudos ainda em seu país de origem, tendo imigrado para o Brasil em 1940. Concluiu o equivalente ao primeiro grau já em São Paulo. Em seguida, fez o curso técnico de eletrotécnica na Escola Técnica Getúlio Vargas. De 1952 a 1956 trabalhou em indústrias como eletrotécnico, tendo se filiado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Liderou a greve de 1953 que paralisou a indústria paulistana por mais de

Page 138: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

138

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

O processo sócio-histórico de constituição e formação do sistema capitalista tem como destaque a primeira Revolução Industrial que ocorreu na Grã-Bretanha a partir do século XVIII. Deane esclarece que diversos fatores que modificaram a estrutura social aconteceram nos séculos anteriores, mas foi no referido século que eventos determinantes aconteceram (DEANE, 1969, p. 13-14).

A substituição da produção manufatureira em detrimento de um novo modo de produção conhecido como sistema de fábrica no século XVIII, de maneira geral, originou a Revolução Industrial (LANDES, 1998, p. 206-207).

Outras condições foram igualmente importantes ao processo de industrialização ocorrido na Grã-Bretanha. Oliveira explica que um dos fatores básicos que a Revolução Industrial demandou, foi à existência de um grande número de trabalhadores disponíveis para trabalharem nas indústrias. A acumulação de capital em dinheiro foi outro fator influente no desenvolvimento industrial, tal acúmulo de capital foi providenciado pelos mercados previamente estabelecidos na Grã-Bretanha (OLIVEIRA, 2003, p. 161) e em outros continentes a partir dos acordos comerciais com diferentes monarquias.

Conforme já dito, a existência de uma massa de mão-de-obra nas cidades foi fator fundamental no desenvolvimento da Revolução Industrial. Estes grupos de proletários eram formados por camponeses que haviam sido expulsos do meio rural, nos domínios senhoriais, para as cidades. Absorvidos pelas fábricas, homens, mulheres e crianças eram explorados sem nenhum aparo legal, sujeitando-se a longas jornadas de trabalho. A

um mês. Em 1954, filiou-se ao PSB, interessando-se progressivamente por economia. Fez o curso de ciências econômicas e administrativas da USP entre 1956 e 1959. Foi, então, convidado a integrar o quadro docente da Faculdade de Ciências Econômicas da USP, do qual se demitiu em decorrência do golpe de 1964. Voltou à USP em 1966 como professor da Faculdade de Higiene e Saúde Pública em cujo Departamento de Estatística instalava-se o Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip). No ano acadêmico de 1966-67, fez o curso de estudos populacionais da Universidade de Princeton. Retornou ao Brasil em 1967 e começou a lecionar no Cedip. Com o AI-5, em 1969, aposentou-se compulsoriamente. Então, com alguns dos demais colegas expurgados, entre outros, particularmente aqueles com quem tinha estudado a obra máxima de Karl Marx, no famoso Seminário de O Capital, fundou o Cebrap. Foi, também, um dos fundadores do PT, tendo sido secretário do Planejamento do Município de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina. Dentre suas obras, destacam-se estudos sobre agricultura, sobre população, desenvolvimento, socialismo etc.” Disponível em: http://www.mte.gov.br/imprensa/homenagem/23_paul_singer.asp e http://www.brazil-brasil.com/content/view/259/111/. Acessado em: 23 Jan. 2010.

Page 139: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

139

Cooperativismo e Economia Solidária:

produtividade, muitas vezes, era comprometida em virtude da exploração desenfreada e muitos desses trabalhadores acabavam por falecer (SINGER, 2008, p. 24).

As consequências negativas das Revoluções Industriais (XVIII-XIX) impulsionaram indivíduos mais esclarecidos a buscar proteção aos trabalhadores e diminuir o grande hiato entre as classes sociais que se formavam na época.

Nesse sentido, o Socialismo Utópico foi um movimento que aconteceu na França e na Inglaterra, caracterizado especialmente pelas experiências com as cooperativas e associações de trabalhadores. Diversos foram os ativistas do socialismo utópico, entre eles alguns se destacaram como Robert Owen e Fourier.

Robert Owen implantou em suas indústrias jornadas de trabalhos limitadas e proibição do trabalho infantil, o que fez com que sua produtividade aumentasse. Owen, em 1825 estabeleceu nos Estados Unidos a chamada Aldeia Cooperativa que pretendia ser um modelo para as sociedades futuras. Embora tal Aldeia Cooperativa não tenha obtido sucesso, muitas de suas idéias foram colocadas em prática por seus seguidores (SINGER, 2008, p. 26).

Outro pensador importante no estudo do Socialismo Utópico é Charles Fourier, francês nascido em 1772, possuía na mesma linha de Owen, seus projetos para o desenvolvimento da sociedade. Concebeu a idéia dos falanstérios, que consistiam em comunidades que ofereciam a seus habitantes, oportunidades diversas de trabalho, assim, os indivíduos trabalhariam por paixão e não pela remuneração. No falanstério, como explica Singer (2008: 36), os princípios capitalistas seriam mantidos, como a propriedade privada e a liberdade do indivíduo na escolha do trabalho. Ele elaborou, ainda, mecanismos para a distribuição das riquezas, para não haver retenção de patrimônio na mão de poucos. O “sistema de Fourier é uma variedade de socialismo de mercado, centrado na liberdade individual, na livre escolha dos trabalhos, organizados em equipes e na propriedade por ações dos meios de produção” (SINGER, 2008, p. 37).

Buber (1971) observa no socialismo utópico a existência “de um elemento de edificação e planejamento orgânico que procura reestruturar a sociedade. Isso não após a extinção da ditadura do proletariado num futuro indeterminado, mas aqui e agora, a partir das condições atuais” (BUBER, 1971, p. 27).

A busca de alternativas à sociedade capitalista promoveu as estratégias frustradas do Socialismo Utópico nos séculos anteriores, mas atualmente

Page 140: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

140

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

esse trajeto é percorrido pelas propostas e experimentos da Economia Solidária2, que pode ser caracterizada como um modo de produção que se baseia na igualdade, seguindo dois princípios: “a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual” (SINGER, 2008, p. 10).

O conceito de Economia Solidária não é, todavia, tão claramente delineado, como seus princípios. Singer caracteriza a Economia Solidária como sendo fruto do anseio de construir uma sociedade melhor do que a que nos encontramos hoje. E por este motivo a Economia Solidária adapta-se aos princípios e valores de quem a aplica. Para o autor, esta diferença nos conceitos é positiva, pois estimula a troca de idéias e propostas (SINGER, 2005b, p. 11).

Paul Singer confere à Economia Solidária uma função maior do que apenas uma resposta à incapacidade de capitalismo de integrar todos seus membros. Para o autor, a Economia Solidária pode ser uma “alternativa superior ao capitalismo” ele explica que esta superioridade não é apenas no sentido econômico, mas sim em termos de qualidade de vida que aquela proporcionará aos produtores e consumidores (SINGER, 2008, p. 114).

Ao compreender que a perspectiva da Economia Solidária não é uníssona e nem linear é perceptível os motivadores das polêmicas entorno do debate sobre essa temática e outros temas vinculados, como por exemplo, o cooperativismo.

2 Perspectiva(s) Contemporânea(s) do cooperativismo e Economia Solidária

O grande projeto do socialismo do século XIX foi eliminar as classes sociais, e propor uma nova sociedade justa e igualitária, em que não houvesse a exploração do homem pelo homem, ou uma classe pela outra, marca da história da humanidade como afirmam Marx e Engels: “A história de todas as sociedades até os nossos dias é a história de luta de classes (Marx e 2 Nessa perspectiva inúmeras experiências e iniciativas já ocorriam no Brasil desde as décadas de 1970 e 1980. Os debates acadêmicos também se apropriaram e aprofundaram os estudos e projetos de extensão com essa temática a partir da década de 1990. Em 2003 houve um salto qualitativo nessa trajetória, com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores. O sítio do referido ministério disponibiliza materiais para formação, publicações, dados de pesquisa entre outros sobre a temática, para maior aprofundamento sobre a temática e a instrumentalização enquanto política pública ver: http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/sies.asp.

Page 141: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

141

Cooperativismo e Economia Solidária:

Engels, 2007, p. 47)3. Como já se sabe, na concepção marxiana as classes só serão eliminadas mediante o fim da propriedade privada. Na sua época (séc. XIX) em pleno desenvolvimento da segunda Revolução Industrial a mobilização dos trabalhadores apresentava-se como a maior contradição frente a indústria capitalista e seus proprietários, em suas análises, a classe trabalhadora possui o potencial revolucionário em suas ações políticas para a tomada do poder de Estado, instalação da ditadura do proletariado como período transitório para o Comunismo e, enfim, a eliminação das classe sociais.

O que está em jogo nessa perspectiva é posse dos meios de produção, pois a partir daí é possível fazer uma análise estrutural da sociedade, que não se pode confundir com estratificação social. Esta se refere às aparências de uma estrutura social, onde é posto em uma ordem hierárquica o prestigio, seja racial, econômico ou de gênero, portanto, esse conceito permite fazer apenas descrições4 e não análise estrutural. Por sua vez, classe social, na abordagem marxiana, permite analisar e explicar as contradições da sociedade, pois como afirma Stavenhagen, classe social é um “fenômeno real, o que lhe permite dá justamente seu valor como conceito analítico” (STAVENHAGEN, 1969, p. 148).

Numa perspectiva de reflexão e abstração marxiana, a sociedade está cindida em duas classes fundamentais, a burguesia, proprietária dos meios de produção, e o proletariado, proprietário da força de trabalho que é vendida para o capitalista, sendo toda sua produção alienada à propriedade do capitalista, restando apenas o salário para o trabalhador, como forma de pagamento pela venda da sua força de trabalho. Enquanto o burguês enriquece à custa da exploração do trabalhador5 na produção e no lucro da circulação, o trabalhador recebe

3 Vide texto na íntegra disponível em: http://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestiDo PartidoComunista/index.htm4 Por meio do exercício de estratificação social a partir da distribuição do poder econômico, inspirado na teoria weberiana e os tipos ideais de análise, é possível agrupar os indivíduos de uma dada sociedade e descrever cada segmento ou estrato de inúmeras formas: classe A, B, C, D a partir da mensuração da renda mensal; classe de alto poder aquisitivo, médio ou baixo, entre outros.5 Essa é a manifestação perversa do capitalismo, a qual Marx irá afirmar que: “Este tipo de intercambio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema de salariado, e tem que conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista. [...] A renda territorial, o juro e o lucro industrial [...] não provêm do solo como tal, nem do capital em si; mas o solo e o capital permitem a seus possuidores obter a sua parte correspondente na mais-valia que o empregador capitalista extorque ao operário. É o empregador capitalista quem extrai

Page 142: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

142

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

somente seu salário, caracterizando essa relação de exploração, antagonismo e complementaridade dentro da sociedade capitalista6.

Desde a Revolução Industrial (XVIII e XIX) o movimento socialista procurou desenvolver estratégias que subvertesse o sistema capitalista, e propôs um modelo de produção em que as sobras, e não salários, fossem partilhadas pelo grupo, ou cooperados, não havendo assim expropriação da mais-valia para o empresário capitalista. E nisso está a diferença entre o marxismo, denominado de Socialismo Científico, e o Socialismo Utópico. Para este é possível uma forma de organização de trabalho não-capitalista, utilizando do modelo de produção industrial e economia de mercado. Para aquele é impossível uma sociedade justa sem eliminar com todo resquício de mercado e consequentemente o capitalismo. Nas palavras de Mészáros:

O objetivo estratégico e real de toda transformação socialista é, e continua sendo, a radical transcendência do próprio capital, em sua complexidade global e na totalidade de suas configurações históricas dadas e potenciais,

diretamente do operário esta mais-valia, seja qual for a parte que, em última análise, possa reservar para si. Por isso desta relação entre o empregador capitalista e o operário assalariado dependem todo o sistema do salariado e todo o regime atual de produção”. (MARX, 1974: 89-92. Grifo do autor). A mais-valia é extraída sob duas formas: mais-valia absoluta que é permitida pelo prolongamento das horas da jornada de trabalho, porém essa sendo limitada pelo esgotamento físico do trabalhador. E a mais-valia relativa é a redução da jornada de trabalho, no entanto mediado pela maquinaria, portanto a produção é intensificada em menos tempo, podendo o capitalista extrair maior mais-valia.6 Para melhor compreensão sobre a diferença entre estratificação social e classe social ver: STAVENHAGEN, Rodolfo. Estratificação Social e Estrutura de Classe. In: VELHO, Otávio; PALMEIRA, Moacir; BERTELLI, Antônio (orgs). Estrutura de classes e estratificação social. 2 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1969: 117-146. É verdade que há um profundo debate dentro da tradição marxista sobre a teoria das classes sociais, como forma de esclarecimento ver SANTOS, Theotônio. Conceito de Classes Sociais. Petrópolis RJ, Vozes, 1982. Nesse sentido é possível ter apoio nas análises de Ridenti: “é visível que Marx usa [...] o termo classe com muita abrangência, no sentido de classificar os tipos de trabalho dentro das fábricas, pois ele chama de ‘classes principais’ os ‘ocupados com as máquinas-ferramentas’ e os ‘meros ajudantes’; fala também em uma ‘classe mais elevada de trabalhadores’ que estaria ‘ao lado das classes principais’, só ‘agregada’ aos operários, ‘externa’ a seu círculo, quando se refere a engenheiros, mecânicos e outro pessoal ‘numericamente insignificante’ que se ocupa com o controle e a reparação do conjunto da maquinaria. [...] Torna-se possível interpretar que os membros de uma ‘classe mais elevada de trabalhadores’ comporiam uma das frações possivelmente constituintes da classe trabalhadora (classe dos trabalhadores assalariados), classe que necessariamente aparece estilhaçada em fragmentos pela dinâmica de funcionamento do capitalismo. Mas também fica em aberto a hipótese de que pelo menos uma parte dessa ‘classe mais elevada’ possa constituir-se no que certos autores chamam de nova classe média, típica do capitalismo, como seria o caso de supervisores, engenheiros, cientistas, gerentes etc (RIDENTE, 1994, p. 72-73).

Page 143: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

143

Cooperativismo e Economia Solidária:

e não meramente dessa ou daquela forma particular de capitalismo mais ou menos desenvolvido (subdesenvolvido) (MÉSZÁROS, 2009, p. 78).

Ou seja, se faz necessário uma organização política e uma ação revolucionária por parte da classe trabalhadora, atitudes que Marx não via nos primeiros socialistas – intitulados de utópicos, sendo sua crítica contundente:

Suas proposições referentes à sociedade futura – como supressão do antagonismo entre cidade e campo, abolição da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, proclamação da harmonia social e transformação do Estado numa simples administração da produção – todas essas proposições nada fazem do que anunciar o desaparecimento do antagonismo das classes, antagonismo que começa somente a se desenhar e que os inventores de sistemas só conhecem suas primeiras formas indistintas e confusas. Por isso essas proposições têm somente um sentido puramente utópico (MARX; ENGELS, 2007, p. 86).

Mas, há que se lembrar de que existem processos distintos, um é de organizar politicamente trabalhadores empregados, outro é de proporcionar uma forma de trabalho não-capitalista dentro do sistema capitalista para aqueles que estão desempregados, ou a margem do sistema social e produtivo. Ou seja, responder as necessidades imediatas com vista a projeções futuras, segundo afirma Maria Nezilda Culti: “para amenizar a questão do desemprego e oferecer oportunidades para aqueles que estão socialmente excluídos, é importante criar alternativas reais de reinserção na economia por sua iniciativa individual ou coletiva (CULTI, 2000, p. 118). Uma das questões posta pelos sujeitos vinculados a perspectiva do Socialismo Utópico é romper com a separação do capital/trabalho imposta pelo sistema capitalista. Portanto era um projeto de subversão ao capitalismo, criar meios para que o trabalhador seja proprietário dos meios de produção e dos resultados obtidos do processo produtivo. Havia uma necessidade que precisava ser suprida, e também uma preocupação político-econômica urgente que não poderia esperar uma articulação mundial de uma grande transformação (o processo revolucionário). Sobre isso Singer afirma que

A economia solidária foi inventada por operários, nos primórdios do capitalismo industrial, como resposta à pobreza e ao desemprego resultantes da difusão “desregulamentada” das máquinas-ferramenta e do motor a vapor no início do século XIX. As cooperativas eram tentativas por parte de trabalhadores de recuperar trabalho e autonomia econômica,

Page 144: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

144

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

aproveitando as novas forças produtivas. Sua estruturação obedecia aos valores básicos do movimento operário de igualdade e democracia sintetizado na ideologia do socialismo (SINGER, 2005ª, p. 83).

Os experimentos e organizações dentro da perspectiva da economia solidária surgiram como proposta de suprimir a desigualdade social, fenômeno característico-essencial do sistema capitalista, para que haja a reprodução do próprio sistema é necessário que haja esse antagonismo, portanto a desigualdade social e exploração são inerentes a lógica capitalista. Sua forma mais extrema é representada pela necessidade de um “exército industrial de reserva, ou superpopulação relativa7” (MARX, 1992, p. 125). Estes são trabalhadores sem trabalho, ou seja, desempregados, que foram “para as fileiras de supérfluos” (MARX, 1992, p. 126) devido ao progresso industrial que expulsa os trabalhadores em períodos de crise, e os reabsorve em tempos de expansão, ficando, assim, a mercê dessas oscilações. No entanto, devido às necessidades imediatas, esses trabalhadores, se submetem a vender sua força de trabalho por remunerações mais baixas e a aceitam atividades precárias, aumentando a taxa de mais-valia (exploração) para o empregador capitalista. Essa superpopulação relativa força a redução de salário e tende a desarticular a classe dos trabalhadores uma vez que intensifica a concorrência entre os mesmos na busca de postos de trabalho.

As estratégias de organização produtiva que surgiram a partir do Socialismo Utópico e das formas cooperativas fizeram frente a toda essa realidade nos idos do século XIX, propondo a muitos trabalhadores nova possibilidade de trabalho não explorado, oferecendo-lhes aspectos que foram expropriados pela produção especificamente capitalista. Nessa nova prática econômica, os trabalhadores puderam experimentar os princípios da democracia e igualdade, equidade e solidariedade, e de serem donos de sua própria produção. Além das primeiras cooperativas nascidas na Inglaterra e França como frutos da Revolução Industrial, a Itália experimentou essa forma de organização, inédita na época, chegando a possuir 2.351 cooperativas em 1919, em sua maioria no ramo da construção, eram pedreiros, britadores, carregadores que trabalhavam autonomamente sem intermediários (conf. Culti, 2000, p. 121). Zardo apresenta algumas cooperativas italianas que merecem ser destacadas:

A fábrica de vitrais artísticos de Altere, fundada em 1850; a fábrica de locomotivas, caldeiras, barcos a vapor etc., fundada em 1883 pelos

7 Segundo Marx o exército industrial de reserva ou superpopulação relativa é composto por três categorias: A) Os aptos para o trabalho; B) Órfãos e filhos de indigentes; C) Degradados, desmoralizados e incapazes de trabalho (MARX, 1992, p. 128).

Page 145: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

145

Cooperativismo e Economia Solidária:

grevistas do Estabelecimento Ansaldo; a cooperativa dos pedreiros de Milão, fundada em 1887, que contava com 715 sócios, ficando logo famosa por muitos trabalhos executados, entre estes o cemitério de Musocco (ZARDO apud CULTI, 2000, p. 121).

Esse quadro, acima apresentado, demonstra a emergência de um novo tipo de organização: o cooperativismo augestionário e suas relevâncias diante de um período marcado pela precarização do trabalho e da vida de milhares de trabalhadores testemunhas da Revolução Industrial no século XIX. Mas que, no entanto, perdeu fôlego e muitas cooperativas não duraram por muitos anos. Isso devido a “feroz reação da classe patronal e pela declarada hostilidade do governo” (Lechat, 2002, p. 2), e também pelas propostas políticas do New Deal após a crise de 1929, desenvolvidas por Roosevelt fundamentadas a partir da teoria keynesiana, que preconizava uma política de emprego além do controle econômico pelo Estado, e que após a Segunda Guerra Mundial foi retomada como propostas do Welfare State até meados da década de 1960. Alain Bihr afirma que o “compromisso fordista” desenvolvido no inicio do século XX garantiu os direitos formais e reais da classe proletária prometendo eliminar a “condição proletária” marcada pela: miséria, instabilidade, incerteza do futuro e opressão desenfreada (Conf. BIHR, 1998)8. João Roberto Lopes Pinto afirma que a concorrência dos empreendimentos capitalistas e o excesso de burocratização promoveram uma descaracterização das cooperativas, transformando-as em empresas capitalistas, assalariando a maioria da força de trabalho (PINTO, 2006, p. 29).

Como se pode perceber, na investigação histórica, o avanço do ideário cooperativista autogestionário ocorreu em momentos de crise do capital, como as de 1873-98, 1929-32, 1970 e 2008, caracterizados por grande taxa de desemprego. Esse processo é pertinente a própria lógica do capital, uma vez que seu objetivo é o lucro, e tão somente ele, promove reestruturação

8 Bihr (1998) afirma que a lógica do desenvolvimento do capitalismo impôs tanto ao proletariado quanto a patronato um acordo tácito que denominou de “compromisso fordista”, onde o proletariado “renunciou sua aventura histórica” em troca das garantias da seguridade social. E o capitalista por um lado neutraliza o conflito proletário, no entanto está posto que sua dominação não é absoluta. Sendo esse compromisso arbitrado pelo Estado. Tal compromisso ofereceu quase três décadas de crescimento econômico ininterrupto, tanto que o modelo de Ford tornou-se paradigma para a produção industrial. No entanto a “ruptura do compromisso” é provocada pela crise do capital, ao qual Bihr irá indicar quatro fatores: a) diminuição dos ganhos de produtividade; b) Elevação da composição orgânica do capital; c) Saturação da norma social de consumo. d) desenvolvimento do trabalho improdutivo.

Page 146: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

146

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

da produção e gerenciamento organizacional com o intuito de recuperar a taxa de lucratividade e para tal objetivo investe em novos modelos de produção. Manuel Castells esquematiza quatro pontos de concordâncias entre as várias análises feitas sobre a crise de 1970 que promoveu novo paradigma de produção capitalista, afirma ele:

1) Quaisquer que sejam as causas e origens da transformação organizacional, houve, de meados dos anos 70 em diante, uma divisão importante (industrial ou outra) na organização da produção e dos mercados na economia global. 2) As transformações organizacionais interagiram com a difusão da tecnologia da informação, mas em geral eram independentes e precederam essa difusão nas empresas comerciais. 3) O objetivo principal das transformações organizacionais em várias formas era lidar com a incerteza causada pelo ritmo veloz das mudanças no ambiente econômico, institucional e tecnológico da empresa, aumentando a flexibilidade em produção, gerenciamento e marketing. 4) Muitas transformações organizacionais visavam redefinir os processos de trabalho e as práticas de emprego, introduzindo o modelo da “produção enxuta” com o objetivo de economizar mão-de-obra mediante a automação de trabalhos, eliminação de tarefas e supressão de camadas administrativas (CASTELLS, 1999, p. 210)9.

Essas foram atitudes que redefiniram a produção industrial e que se tornou modelo mundial, sob o título de reestruturação produtiva10. Enquanto esse processo tenta salvar a lucratividade das empresas, concomitantemente causa um desastre no mundo do trabalho processo muitos direitos conquistados pelos trabalhadores são modificados, níveis dos salários são reduzidos, leis de proteção ao trabalhador são remodeladas, fazendo surgir empregos de tempo parcial, terceirizações, trabalhos temporários e informais, ou seja, ampliação da precarização do trabalho, além da alta taxa de desemprego. Esse é um movimento lógico do capital, pois como afirma Mészáros:

9 Castells se baseia nas análises de Piore e Sabel (1984), Harrison e Storper (1994), Coriat (1990) e Tuomi (1999).10 “Entende-se estrutura produtiva a distribuição das atividades produtivas por setores específicos que caracterizam a especialização de cada economia. A reestruturação produtiva, por sua vez, é entendida como o conjunto das transformações na estrutura produtiva das empresas [...] em busca de modernizar e diminuição de custos” (DALL’ACQUA, 2003, p. 33).

Page 147: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

147

Cooperativismo e Economia Solidária:

O capital, quando alcança um ponto de saturação em seu próprio espaço e não consegue simultaneamente encontrar canais para nova expansão, na forma de imperialismo e neocolonialismo, não tem alternativa a não ser deixar que sua própria força de trabalho local sofra as graves conseqüências da deterioração da taxa de lucro (MÉSZÁROS, 2009, p. 70)

E a conseqüência dessa deterioração se resolve com o “enxugamento da empresa”, ou transferências dos pólos produtivos para localidades onde a força de trabalho é mais barata, ou possui menor regulamentação legal, tudo isso vinculado às demissões em massa e aos programas de demissão voluntária (PDV). Portanto para Mészáros o desemprego é a característica dominante do sistema capitalista, porque está configurado como uma característica estrutural. Nessa fase atual a onda de desemprego não está restrita tão somente aos países periféricos, ou trabalhadores desqualificados, mas todos estão no fio da navalha. Já na década de 1970 Mészáros afirmava que

Como resultado dessa tendência, o problema não se restringe à situação dos trabalhadores não-qualificados, mas atinge também um grande número de trabalhadores altamente qualificados, que agora disputam, somando-se ao estoque anterior de desempregados, os escassos – e cada vez mais raro – empregos disponíveis. Da mesma forma, a tendência da amputação “racionalizadora” não está mais limitada aos “ramos periféricos de uma indústria obsoleta”, mas abarca alguns dos mais desenvolvidos e modernizados setores da produção (MÉSZÁROS, 2006, p. 29, grifo do autor).

Tem ocorrido desde o final do século XX uma globalização do desemprego estrutural, seja em países centrais de capitalismo avançado, onde sempre houve a promessa do pleno emprego mediante as benesses do liberalismo político e econômico, seja em países “pós-capitalistas”, ou ainda, nos países periféricos. Por exemplo, há mais de 40 milhões de desempregados nos países industrialmente mais desenvolvidos, a Europa possui mais de 20 milhões e a Alemanha ultrapassa os 5 milhões; na Índia os números chegam a 336 milhões de desempregado; na Hungria 5 mil, e a China com estimativas de 268 milhões de desempregados (MÉSZÁROS, 2006, p. 30).

No Brasil a onda de desemprego em massa é uma realidade desde a década de 1990, período em que o Brasil assumiu a agenda do neoliberalismo, portanto um compromisso com o livre mercado, desregulamentação das leis trabalhistas e, conseqüentemente desestruturação do mercado de trabalho

Page 148: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

148

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

como parte do processo de reestruturação produtiva, nos moldes vistos acima. Márcio Pochmann (2006) compreende o fenômeno do desemprego no Brasil como estrutural, assim como Mészáros, e não decorrente de competitividade empresarial, alto custo de contratação e/ou qualificação inadequada dos trabalhadores, explicação oficial acerca do fenômeno. Em concordância, Paula Marcelino afirma que

A década de 1990 significou para o Brasil uma ofensiva neoliberal de peso. Sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso durante dois mandatos consecutivos, o país obedeceu às coordenada econômicas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial: controle da inflação através da recessão, desregulamentação do mercado e da força de trabalho, queda progressiva – mas rápida das tarifas sobre importações, desestatização da economia (MARCELINO, 2004, p. 111).

Para Pochmann o desemprego estrutural está relacionado a persistência de baixas taxas de expansão da economia brasileira e a evolução de um novo modelo econômico desde 1990. Segundo o referido autor, o Brasil possui uma economia instável, que oscila constantemente em sua produção, podem ser observados períodos de recessão (1981-1983, 1990-1992, 1998-1999, 2002-2003), fases de recuperação (1984-1986, 1993-1997), e de estagnação (1987-1989, 2002), ou seja, o capitalismo em crises de taxas de produção e lucro constantes, a solução é a reestruturação, que redundou, segundo os dados de Censo de 2000 do IBGE, em 11,5 milhões de desempregados. O que há de novo na composição econômica brasileira é que, diferentemente de outros momentos históricos, em períodos de recuperação da economia, como em 1993 e 1997, a taxa de emprego formal não aumentou, decorrente da terceirização e informalização do trabalho. Esse processo fez o Brasil subir no ranking do desemprego, enquanto que em 1986 o Brasil ocupava a 13° posição do desemprego mundial, em 2002 subiu para 4° posição, sendo essa a maior crise do emprego da história Brasileira (POCHMANN, 2006).

A conclusão de Pochmann é de que o desemprego no Brasil possui um caráter estrutural e também desigual referente as classes de rendimentos, gênero, raça e nível de escolaridade. Os dados apresentados mostram que o desemprego é maior nas faixas mais baixas de renda. Entretanto não se restringe a essas camadas, acompanhando a dinâmica mundial atinge também os trabalhadores com rendimentos mais elevados. Referente a escolaridade não há garantias de emprego, ao contrário a população pobre com curso superior a taxa de desemprego é ainda maior. Na população

Page 149: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

149

Cooperativismo e Economia Solidária:

negra quanto maior o nível da renda, maior é o índice de desemprego, e entre as mulheres a maior taxa de desemprego é em níveis mais baixos de rendimento (POCHMANN, 2006, p. 72).

Todo esse processo de desemprego estrutural e a incapacidade de absorção da massa da população pelo sistema capitalista no mundo do trabalho associado a precarização da reestruturação produtiva e flexibilização dos direitos trabalhistas é uma mistura explosiva para qualquer tipo de organização de classe dos trabalhadores. Todas essas relações objetivas sendo alimentada pelas ideologias do capitalismo que valoriza o individualismo extremado e a competitividade a qualquer custo interferindo diretamente na subjetividade dos indivíduos naturalizando relações de dominação e exploração, tornando latente uma classe trabalhadora fragmentada, dificultando a formação da consciência de classe e conseqüentemente sua luta política.

É diante desse quadro de crise do capital, associado à crise estrutural do emprego e fragmentação da classe proletária que surge a reinvenção do ideário cooperativista autogestionário. Este nasce em período de crise do capital e grande pobreza, depois experimenta um período de declínio motivado pela expansão do capital e reabsorção da força de trabalho, e voltando a ressurgir mediante as novas crises do capital. No entanto, como visto acima, mesmo com uma próxima expansão do capital a tendência será de continua elevação da taxa de desemprego, o que exige mais do que nunca uma nova economia.

As análises que apontam essa possibilidade, novas formas de produção cooperativista e autogestionada, também intitulada por sócio economia ou economia solidária, não são únicas e muito menos consensuais. Para outros as estratégias dessa forma de organização produtiva inspirada na socialização da propriedade privada e das sobras oriundas de todo o processo (custeio, impostos, investimentos tecnológicos e de formação dos cooperados, aluguéis, etc) se trata de uma forma de “capitalismo reformado”, de pequenas e médias unidades que servem ao grande capital, tendo em vista sua posição na cadeia produtiva ou a sua dependência dentro da economia capitalista.

Pautados numa abordagem analítica que privilegia a percepção das contradições e a valorização das mesmas, é possível concluir que os apontamentos críticos a essa nova perspectiva econômica vêem contribuir para o aprimoramento das análises e do próprio processo produtivo. Nesse contexto, parafraseando o dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”.

Na conjuntura nacional do início do século XXI, em que há uma

Page 150: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

150

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

combinação de elevação da taxa de desemprego e desemprego estrutural, de precarização das condições de trabalho, de reformas trabalhistas que promovem a terceirização e a subcontratação da mão-de-obra, conseqüentemente com a ampliação da informalidade e do estímulo às estratégias de “empreendedorismo empresarial” em que o trabalhador passa a ser o único responsável pelo sucesso ou fracasso do seu novo-negócio, em que a classe trabalhadora no geral não está articulada em sindicatos combativos e que busquem a radical transformação a partir do capitalismo, a perspectiva cooperativista abordada (autogestionária, socioeconômica, solidária) tornou-se:

uma via de sobrevivência para muitas pessoas que já estavam à margem do sistema produtivo capitalista (como por exemplo no segmento dos trabalhadores da coleta seletiva e reciclagem ou assentados rurais do programa de Reforma Agrária);

um campo de formação de uma nova cultura, em que os participantes por livre adesão, rompem com a hegemonia individualista norteadora dos dias atuais, em que ocorre a adesão ao processo sócio-educativo oriundo da vida coletiva, da participação nas assembléias ou mesmo do contato com os profissionais (administradores, agrônomos, assistentes sociais, contadores, sociólogos, pedagogos, profissionais da saúde ...) que atuam nas políticas públicas de fomento e assessoria dos experimentos de economia solidária;um micro-espaço de formulação de uma contra-hegemonia capitalista, que poderá vir-a-ser significativos para a instalação de um outro projeto societário, em que as relações sociais produtivas estejam subordinadas às demandas sociais e ambientais e não ao lucro individualizante e concentrador. uma estratégia a partir dos subalternizados, e não dos incluídos nos benefícios do lucro e da condição de estratos médios da sociedade, de possibilidade de mudança a longo prazo do panorama atual de descrença absoluta no ser humano e na sua capacidade de reflexão, mobilização e viabilização de novos projetos e utopias.

Essa busca de sobrevivência e novas formas de vivência e educação é relevante! Os homens e mulheres simples estão cristalizando uma nova sociabilidade. Estimular essas novas formas de organização e produção cooperativista (autogestionário, socioeconômico ou solidário) está em consonância com o que

Sugere Lefebvre e concorda Heller, a revolução implica mudar a vida. A revolução de modo algum se confunde com o golpe de Estado, com a chamada “tomado do poder”. Como já se viu, é possível tomar o poder

Page 151: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

151

Cooperativismo e Economia Solidária:

e não revolucionar nada. Ou melhor, a sociedade toma o poder quando arrebata o Estado, direitos e possibilidades, e também responsabilidades, que lhe foram confiscados por ele, quando assume e realiza por si mesma, sem intermediários, a compreensão e a gestão de suas necessidades. Isso implica profundas mudanças na vida, isto é, no viver, no modo de viver. É aí que se situa o núcleo da criatividade social, da invenção do novo a partir das possibilidades abertas pela práxis. (MARTINS, 2000, p. 163).

Nesse sentido estudar, conhecer, analisar e interpretar os experimentos que se desenvolvem no campo do referido cooperativismo é também, um exercício teórico-prático que colabora e difunde uma nova consciência, um novo saber e estimula a participação dos sujeitos no processo histórico emancipatório e criador. Essa criação social, contrária aos processos de reprodução social do status quo,

depende de que o homem [e a mulher] se apropie[m] de seu destino, de algum modo, ainda que limitado, segundo as possibilidades do momento histórico. O homem se produz na História, produzindo sua sociedade, suas relações sociais, insurgindo-se contra os poderes que o subjugam: a dominação e o cerceamento políticos, a pobreza, os bloqueios no acesso às grandes inovações culturais referidas à universalidade do gênero humano. (MARTINS, 2000, p. 163).

O debate nessa encruzilhada da produção do conhecimento e frente a essas novas formas de produção e organização da vida, implicam ampliar e mediar o conceito de revolução social contra o capitalismo. José de Souza Martins colabora frente a essa empreitada epistemológica e indica que

Toda apropriação das conquistas do gênero [humano], toda luta contra sua privatização, contra sua conversão em privilégio, é revolucionária e transformadora. Toda luta pela educação de boa qualidade, pela escolarização, pelo acesso ilimitado aos bens culturais, aos monumentos reais e simbólicos, é uma luta revolucionária e libertadora. [...] Todo ato de luta contra a pobreza, contra a exploração de quem trabalha, contra a privação de vida e dignidade, é um ator em favor da mudança na vida, é um ato revolucionário. De modo que o novo e a inovação se põem diante de cada um de nós de diferentes modos e sob diferentes temas. (MARTINS, 2000, p. 163).

Assim, sob nossa ótica analítica, é necessário compreender que os sujeitos sociais envolvidos nos processos de cooperativismo (autogestionário,

Page 152: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

152

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

sócioeconômico ou solidário) compõem um processo de busca na contramão do processo histórico capitalista e por isso, é necessário aprofundar o debate entorno da temática, bem como, dessa perspectiva reinventada da Economia Solidária.

3 A Economia Solidária e o cooperativismo

Segundo a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), o cooperativismo é um modelo socioeconômico que objetiva o desenvolvimento econômico aliado ao bem-estar social. Seus princípios são participação democrática, solidariedade, independência e autonomia11.

O cooperativismo se divide em categorias que ilustram suas funções no mercado, como as cooperativas de consumo, de crédito, de compra e venda e de produção. O grande diferencial das cooperativas vinculadas à perspectiva da Economia Solidária e não configuradas como empresas capitalistas, é o modo de sua administração, as primeiras possuem sua administração pautada na autogestão enquanto as segundas praticam a heterogestão (SINGER, 2008, p.16).

Nas empresas e cooperativas capitalistas existe a administração hierárquica, isto é, o poder de controle acontece em níveis sucessivos. Os funcionários de menor importância à instituição pouco sabem sobre a empresa na qual trabalham, conforme a hierarquia aumenta seu conhecimento amplia-se em igual proporção. A dificuldade oriunda desta forma administrativa surge quando a competição entre setores prejudica a própria corporação. Como elucida Singer, os empregados devem competir entre si para que sua produtividade seja alta, ao mesmo tempo em que cooperam entre os setores para que a empresa prospere. Nesta contradição, a heterogestão se transforma constantemente em busca da maneira mais efetiva de extrair a maior quantidade de trabalho e eficiência de seus funcionários (SINGER, 2008, p. 16-18).

Já a autogestão é verificada nas cooperativas solidárias. O princípio da autogestão é como o próprio nome sugere a administração da cooperativa operada pelos seus donos, isto é, os cooperados. Se a cooperativa possui poucas pessoas, as decisões são tomadas por todos através das assembléias gerais. No entanto, se a cooperativa possui sócios em maior número e a assembléia não é um recurso viável, opta-se pela delegação de poder a cada setor e estes decidem conjuntamente o destino da cooperativa. Na cooperativa, e a grande diferença reside aqui, todos devem estar

11 Disponível em: http://www.ocb.org.br/site/cooperativismo/institucional.asp.

Page 153: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

153

Cooperativismo e Economia Solidária:

informados a respeito dos fatos ocorridos, pois cada um é responsável pelo desenvolvimento dessa organização. A autogestão exige um empenho extra, entretanto, não é necessário o incentivo constante de seus sócios a partir da competição.

Existem problemas no processo de autogestão, porque se pode tornar desgastante, todavia, a discussão constante de cada passo da cooperativa e a falta de interesse dos sócios trazem sérios riscos à organização. É preciso, por parte dos sócios, desejo de participar da cooperativa, além de interesse na luta por um modo de produção mais justo, pois além de lhes conferir sua subsistência financeiramente, a autogestão confere desenvolvimento humano a quem a pratica. (SINGER, 2008, p. 18-21).

Comparar os dois tipos administrativos é uma temática nula, pois elas se diferenciam em seu fim. Enquanto a heterogestão objetiva o lucro, intenção de seus praticantes, a autogestão procura dar às cooperativas solidárias viabilidade econômica além de democracia e igualdade (SINGER,2008, p. 23).

A busca pela redução de custos de produção levou as indústrias a lançarem mão de diversos recursos tecnológicos que possuem rebatimento sobre a gestão da mão de obra, causando uma maior exploração da classe trabalhadora.

Boaventura de Sousa Santos delineia os benefícios da Economia Solidária: “as cooperativas de trabalhadores geram benefícios não econômicos para os seus membros e para a comunidade em geral, que são fundamentais para contrariar os efeitos desiguais da economia capitalista” (SANTOS, 2002, p. 37).

Ainda, há que se destacar segundo Singer (2008) a cooperativa de Mondragón, porque trata-se do maior complexo cooperativo do mundo. Fundada em 1956 na cidade basca de Mondragón, ao norte da Espanha, por iniciativa de José Maria Arizmendiarreta, mais conhecido com padre Arizmendi, a corporação combina cooperativas de produção industrial e de serviços comerciais com um banco cooperativo, uma cooperativa de seguro social, uma universidade e diversas cooperativas dedicadas à realização de investigações tecnológicas. Para o autor o que torna Mondragón ainda mais notável é a aplicação coerente dos princípios do cooperativismo a todas destas sociedades: elas não empregam assalariados, a não ser em caráter excepcional. Ainda segundo o mesmo autor é inegável a incessante procura por parte dos integrantes do complexo em praticar a autogestão numa medida que hoje, dificilmente se encontra nas grandes organizações cooperativas.

Page 154: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

154

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

A história12 do complexo cooperativo de Mondragón começou com o esforço do padre Arizmendi, que com a ajuda da comunidade local conseguiu criar uma escola técnica, de onde saíram os cinco técnicos que iniciaram a cooperativa Ulgor, uma indústria de fogões que seria sucedida por outras indústrias que produziam os insumos usados pela Ulgor e assim se foram surgindo novas iniciativas integradas em forma de rede, incluindo um banco cooperativo, a Cajá Lalboral Popular, considerada por muito como a chave do grande sucesso de Mondragón e uma universidade.

Hoje a atividade empresarial da corporação cooperativa de Mondragón se divide em três áreas, a financeira, a industrial e a distribuição, que funcionam de forma autônoma dentro de uma estratégia global, coordenada pelo Centro Corporativo. O Complexo Cooperativo de Mondragón conta hoje com mais de duzentos e cinqüenta (250) cooperativas associadas, e está presente em países como Brasil, China, Índia, México, Rússia e Estados unidos da América e conta com mais de 60.000 associados, sendo 80% da força de trabalho da cooperativa. A maior parte dos trabalhadores não sócios, estão na forma transitória, já que geralmente se tornam sócios cooperativistas no prazo de dois ou três anos13.

Segundo os próprios integrantes da cooperativa, como a chave para a experiência bem sucedida de Mondragón se pode apontar fatores como o papel da liderança Arizmendiarrieta, promotor de experiência, com sua grande visão e total ascendente sobre os estudantes e discípulos, no momento de implementar suas idéias; a natureza pessoal da cooperativa, na qual a pessoa tem precedência sobre capital, o que se traduz em um grande envolvimento da cooperativa seu parceiro, a partir de uma participação direta no capital e gestão, contribuindo para criar um ambiente positivo, de consenso e cooperação; uma abordagem decididamente empresarial cooperativa de fato, assumindo como uma questão de princípio, a rentabilidade da empresa e de eficiência na gestão, planejada, rigorosa e exigente; reinvestimento da quase totalidade dos recursos gerados; continua adaptação ao ambiente em mudança com investimentos permanentes em pesquisa e desenvolvimento visando inovação permanente; por último, um elemento-chave para o êxito da experiência de Mondragón, tanto em suas origens como, hoje, reside na importância dada à formação: tanto no que diz respeito à educação para o cooperativismo, como a técnica e científica através da Universidade de Mondragón.

12 Para maior aprofundamento sobre o Complexo Cooperativo de Mondragón ver: http://www.mondragon-corporation.com/.13 Fontes eletrônicas disponíveis em: www.portaldocooperativismo.org.br e www.ica.coop/al-ica/, acessadas em 01 de dez de 2009.

Page 155: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

155

Cooperativismo e Economia Solidária:

Qualquer sócio pode fazer parte dos órgãos de governo, desde que receba o apoio suficiente dos restantes sócios na assembléia, cumprindo o seu papel sem qualquer remuneração monetária. Do mesmo modo qualquer sócio pode ser diretor presidente, desde que preencha os requisitos profissionais e de liderança que são exigidos para tal responsabilidade. O modelo de Mondragón particulariza-se por priorizar cooperativas pequenas, dividindo-as sempre que tendem ao gigantismo de forma a proporcionar maior agilidade e proximidades das relações.

As cooperativas de economia solidária contêm em si a capacidade em curto prazo de integrar os membros excluídos do sistema de produção capitalista, possibilitando um processo de conquista da subsistência, da dignidade e da emancipação, enquanto a longo prazo tende a se expressar como uma alternativa, ao sujeitos envolvidos, de saída do modelo capitalista, e suas desigualdades extremas14.

4 A Economia Solidária e o cooperativismo no Brasil

O cooperativismo surgiu no Brasil no início do século XX quando emigrantes europeus trouxeram as primeiras experiências e organizações. As cooperativas no início do século tomaram forma, principalmente, de consumo e agrícolas. As cooperativas de consumo acabaram, anos mais tarde, sendo compradas por mercados de grande porte, enquanto as agrícolas se expandiram. Todavia, é necessário salientar que ambas não praticavam a econômica de autogestão (SINGER, 2008, p. 122). Ainda segundo Singer:

A economia solidária começou a ressurgir, de forma esparsa na década de 1980 e tomou impulso crescente a partir da segunda metade dos anos 1990. Ela resulta de movimentos sociais que reagem à crise de desemprego em massa, que tem seu inicio em 1981 e se agrava com a abertura do mercado interno às importações, a partir de 1990 (SINGER, 2000, p. 25).

No Brasil, existem ainda as cooperativas e grupos de produção que estão vinculadas às Universidades e seus projetos de extensão junto

14 Retomando o caso do Complexo Cooperativo de Mondragón, ainda que o sucesso seja inegável e emblemático considerando-se o modelo adotado, algumas críticas têm-se repetido recentemente em virtude da sua forte expansão mundial, nomeadamente na China incorporando mão de obra assalariada desses países. Durante toda a sua trajetória sempre houve um esforço em manter vivos os princípios do cooperativismo a qualquer custo, porém percebe-se que começa a ser cada vez mais difícil conciliar ganhos contínuos de mercado e manter intactos os fundamentos cooperativos originais.

Page 156: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

156

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

às comunidades locais, essas formas de organização são denominadas Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, as ITCPS. Estas ITCPS são compostas por alunos, professores e funcionários, de diversas áreas, que oferecem a comunidade o apoio que necessitam para viabilizarem suas iniciativas autogestionárias (SINGER, 2008, p. 123). Embora o cooperativismo enfrente dificuldades no Brasil, existem bons resultados com a Economia Solidária no país.

Mas existem várias organizações em forma de cooperativas, que não estão vinculadas à perspectiva da Economia Solidária. A partir da contribuição de Lima que possui como realidade de pesquisa o setor produtivo do vestuário, as cooperativas podem ser classificadas em diversas categorias, a saber:

Cooperativas de produção ou de trabalho: As cooperativas de produção surgem no curso histórico em momentos críticos da economia, existindo em um limitado espaço de tempo. No Brasil, desde a alteração das leis em 1988, os trabalhadores se organizam, cada vez mais, em cooperativas de trabalhado, objetivando, na maioria dos casos, fornecerem serviços especializados. Nas indústrias, as cooperativas de produção são uma alternativa a busca da redução dos custos com mão de obra e muitas vezes servem ao aumento da exploração do trabalho. Os trabalhadores das cooperativas de produção prestam serviços às indústrias em troca de um valor em dinheiro, distanciando-se dos funcionários assalariados apenas no que tange a ausência dos direitos consolidados dos trabalhadores, pode ser uma forma de tentativa de burlar os direitos trabalhistas. Todavia, a parceria com órgãos públicos pode modificar este quadro, se aliado a projetos de geração de renda podem trazer benefícios em um espaço de tempo curto, ainda que sua continuidade não seja garantida, seus aspectos positivos permanecem como a atração de investimentos, inserção social dos cidadãos e a manutenção dos indivíduos em suas cidades de origem (LIMA, 1998:4). “Cooperfraudes” ou “Pseudocooperativas”: A terceirização da produção às cooperativas é muito forte no setor do vestuário ou nas áreas agrícolas de produção de laranja no Estado de São Paulo. Na experiência brasileira essa forma de cooperativa é um negócio organizado pelos empregadores que direcionam toda forma de contratação de mão-de-obra a partir de tais cooperativas de prestação de serviços, no entanto, essas são organizadas pelos representantes dos empregadores para contratar sem ter obrigações trabalhistas e com menor remuneração, o que na realidade é uma ilegalidade. Na perspectiva formal trata-se de uma cooperativa de trabalho, em expansão no cenário nacional “por meio da Lei n. 8949/1994, [em que] aboliu-se o vínculo empregatício entre

Page 157: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

157

Cooperativismo e Economia Solidária:

o cooperativado (cooperativa de trabalho) e o tomador de serviços – o contratante da cooperativa” (BARBOSA, 2008, p. 110). Esse modelo de contratação intensifica os processos de precarização das condições de trabalho e contribui para a constituição de experiências negativas na história do cooperativismo no Brasil. Cooperativas, que atuam como empresas capitalistas: nos mais diferentes setores da economia são constituídas as formas de organização cooperativa que possuem dentro dos princípios do cooperativismo uma diversidade de relações entre os cooperados, bem como, entre os seus funcionários. O estado do Paraná nas últimas décadas estimulou a organização de cooperativas agrícolas ou agroindustriais, que se estabeleceram no segmento produtivo e comercial e galgaram muitos ganhos aos seus associados, alguns exemplos da região norte-paranaense: Corol – Cooperativa Agroindustrial, Integrada Cooperativa Agroindustrial, Cocamar – Coopeerativa Agroindustrial de Maringá, entre outras, todas essas organizações são formas de cooperativas com estatutos e regimentos internos de normatizam a gestão, participação e distribuição de sobras aos seus sócios e que ao mesmo tempo, são grandes empregadoras de mão-de-obra assalariada, tendo em vista que não estão enquadradas na perspectiva da economia solidária e não são parecidas com o Complexo Cooperativo se Mondragón que possui um pequeno percentual de mão-de-obra que pode ser contratada assalariadamente. Outro exemplo típico dessa forma de cooperativismo é no segmento da prestação de serviços de saúde, com as diversas UNIMED’s presentes em todo o território nacional.Cooperativas agrícolas ou agroindustriais na perspectiva da Economia Solidária: Essa última forma de cooperativismo é a que nos interessa para delimitarmos a discussão desenvolvida até o momento, as formas de organizações produtivas desenvolvidas no campo na perspectiva da Economia Solidária15.

As cooperativas de trabalhadores rurais, que possuem seus minifúndios e se organizam em “experiências de geração de trabalho e renda, de forma solidária e associativa [...] passam a dar lugar, gradativamente, a

15 Essa delimitação também já foi desenvolvida pelo “O ciclo de debates sobre cooperativismo foi um evento promovido pelo programa ‘UFSCar 30 ANOS’, pelo Núcleo de Extensão UFSCar-Cidadania/PROEX, pela Incubadora Regional de Cooperativas Populares/PROEX e pelo Departamento de Engenharia de Produção, com o apoio do Ministério da Justiça e da UNESCO” em 2000 e sintetizado e publicado por Farid Eid, disponível em: http://www.unitrabalho.org.br/IMG/pdf/cooperativismo-reforma-agraria-e-direitos-humanos.pdf e também in: VALÊNCIO, Norma (org.) Caminhos da Cidadania: um percurso universitário em prol dos Direitos Humanos. São Carlos, Editora UFSCar, 2001.

Page 158: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

158

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

uma realidade que se expande e se dinamiza, motivando ações de entidades de classe e de políticas públicas no campo popular, orientadas para uma economia alternativa concreta que está em processo de gestação” (EID, 2001, p. 3).

Esses experimentos vinculados à Economia Solidária no campo conquistaram nas últimas duas décadas um saber inovador aplicado no campo produtivo, social e ambiental. É verdade que nem todas cooperativas obtiveram sucesso e longevidade, tendo em vista, que nem todos os integrantes conseguem ultrapassar a forma de pensamento individual, a leitura da realidade a partir dos valores predominantes da economia capitalista e machista. No entanto, muitas experiências foram fortalecidas e produziram essa nova forma de produção e sociabilidade entre seus cooperados.

Assim, o desenvolvimento desse cooperativismo permitiu uma nova racionalidade dentro do próprio sistema capitalista e ao mesmo tempo, ultrapassa a condição de improvisação, falta de planejamento ou tradicionalismo que marcam o cotidiano das pequenas e médias propriedades rurais brasileira.

Dentro desse panorama, a organização da produção e do trabalho assume importante papel para o desenvolvimento de um assentamento. Onde existe maior organização política dos assentados, foi garantido um melhor acesso às políticas públicas sociais e produtivas. Do mesmo modo, nos assentamentos analisados, onde havia falta de organização política, resultou em baixa capacidade de interlocução com os diversos órgãos públicos, bem como na falta de organização produtiva, o que poderia permitir uma utilização mais racional dos investimentos e na potencialização dos sistemas produtivos. (EID, 2001, p. 8).

É importante compreender que os experimentos que se desenvolveram no campo não seguiram uma cartilha ou regra pronta. Tal qual já foi destacado no início de trabalho, as diversas formas de organização dentro dos princípios da economia solidárias se constituíram nas mais diferentes realidades e processos sócio-históricos. Nos assentamentos pesquisados há várias formas de organização e gestão dessa nova forma coletiva de ser e de ter,

a cooperação pode iniciar com as formas mais simples tais como: mutirão, troca de serviços e/ou de insumos, grupos de trabalho coletivo, semicoletivos e associações prestadoras de serviço e ir evoluindo, aos poucos, em direção a formas mais desenvolvidas de cooperação, como

Page 159: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

159

Cooperativismo e Economia Solidária:

as Cooperativas de Prestação de Serviços (CPS), as Cooperativas de Produção e Prestação de Serviços (CPPS), Cooperativas de Crédito e as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPA’s) (EID, 2001, p. 9).

Dentro dessa abordagem e sem dar conta de todo o universo que se constituiu nas últimas décadas, selecionamos como dado da realidade um exemplo que aponta alguns elementos para reflexão sobre os processos de desenvolvimento das cooperativas (autogestionárias, solidárias ou socioeconômicas) e que auxilia na construção de um novo saber sobre a temática, é uma aproximação das discussões apresentadas e que serviu à pesquisa de campo com visita in loco. Trata-se da experiência da COPAVI – Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória Ltda, com sede no município de Paranacity a 110 km de Maringá, na região Noroeste do estado do Paraná, e tem aproximadamente seis mil habitantes. O início desse experimento foi relatado da seguinte forma:

Eram oito horas da manhã do dia 19 de janeiro de 1993. Um grupo de trabalhadores do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), ocupam uma área de 256, 52 hectares de terra, em Paranacity, norte do Paraná, a 110Km de Maringá. A Fazenda Santa Maria, foi declarada latifúndio por exploração e desapropriada em 30 de junho de 1988, apesar de reconhecida como área de interesse social para fins de Reforma Agrária no mesmo ano pelo Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), mas estava arrendada pela Usina Santa Terezinha. Oito anos de exploração pela cana-de açúcar, transformaram o solo arenoso da região em terra de baixa produtividade. A ocupação das terras foi uma articulação do MST estadual. O curioso é que as famílias chegaram às quatro da manhã, no lugar errado, um sítio de quatro alqueires. O responsável pelo setor de contabilidade da cooperativa, Valmir Strozake, conta que o sitiante olhou para fora da casa e quase desmaiou. Já no local certo, trabalhadores e trabalhadoras do MST, montaram o acampamento embaixo do pé de manga e próximo à água. “No outro dia veio a polícia, para saber o que estava acontecendo, mas tudo acabou bem, quando explicamos a desapropriação”, diz Valmir. O corte da cana-de-açúcar foi feito no facão, sem queimada. Os trabalhadores ocuparam a terra com o objetivo de implantar ali um sistema coletivo de exploração agrícola, organizado em forma de cooperativa. Eram 25 famílias. Segundo Elson Borges dos Santos, o Zumbi, engenheiro agrônomo e um dos líderes da cooperativa, o INCRA pretendia assentar ali, apenas nove famílias, em lotes individuais: “As Universidades Estaduais de Londrina e Maringá,

Page 160: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

160

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

emitiram um laudo segundo o qual se as famílias fossem assentadas em 25 hectares de terra morreriam de fome e a montagem de uma empresa seria melhor para os assentados”. Em 1994, depois de quase um ano acampadas em barracas de lona, o INCRA entrega os títulos de propriedade da terra, libera financia-mentos para as famílias que se unem e fundam a Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), dando início as atividades produtivas. Os trabalhadores rurais, então, passam a ser associados. “Todas as famílias são proprietárias, cada um é sócio da empresa e pode participar das assembléias que tomam as decisões”, diz Zumbi. Hoje, a cooperativa possui um núcleo de moradia urbanizado, com casas com energia elétrica, água encanada e telefone comunitário (FELISARDO-UEL)16.

O assentamento Santa Maria, onde está organizada a COPAVI, conta com noventa e oito pessoas (adultas e crianças), num total de vinte e duas famílias. Segundo o cooperado Élson Borges dos Santos – popularmente conhecido como Zumbi,

...produzimos 30 toneladas de açúcar mascavo [orgânico] por mês, distribuídas em 14 estados. Temos um rebanho de gado leiteiro de 250 cabeças, produzimos queijo, iogurte, leite, rapadura, hortaliças, verduras, pães e também cachaça, cerca de 150 mil litros por ano, e boa parte dessa produção é exportada. (YUDI, 2007, p. 6)

A estrutura organizativa da COPAVI, segundo a cooperada Joelci Dannacena, compreende diferentes órgãos. Sendo composta pelo Conselho Deliberativo com cinco membros17 com fórum de discussão semanal onde se dirimem assuntos de ordem cotidiana. Ainda, as famílias são organizadas em dois Núcleos que possuem reuniões mensais e as discussões envolvem a prestação de contas, questões de ordem social e mesmo assuntos que serão encaminhados para as assembléias. O órgão máximo da cooperativa é a Assembléia Geral que se reúne mensalmente, define as diretrizes, estratégias, projetos e atividades da COPAVI. Essa caracterização da

16 Mara Felisardo, disponível em: http://www2.uel.br/projetos/trialogos/mst/MST19.htm, disponível em 08 Fev. 2010.17 O Conselho Deliberativo é composto por três representantes dos coordenadores dos setores e dois da representação dos núcleos de família. Exemplifica outro cooperado, o Sr. Franscisco Stronzak, “... tem o que coordena a pecuária de leite, outro que coordena a indústria de canas, daí tem o comércio, cozinha, panificadora, [...] o pessoal da horta, daí os coordenadores desses setores [possuem seus representantes que] também formam o Conselho Deliberativo” (STRONZAK, 2010).

Page 161: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

161

Cooperativismo e Economia Solidária:

organização é reforçada por Joelci Dannacena ao indicar que “o diferencial que faz com que a cooperativa venha a ser um empreendimento ao mesmo tempo econômico, de geração de renda e de inclusão social, sem dúvida é a autogestão”.

Nesse processo de gestão, os cooperados da COPAVI realizam em seu cotidiano uma participação democrática direta e promove uma nova forma de sociabilidade, bem como produz uma práxis pedagógica que contribui na formação dos adultos, jovens e crianças.

Segundo o cooperado Franscisco Stronzak, uma das dificuldades de agregar novas famílias é a cultura do brasileiro, isto é, a cultura individualista característica da sociedade capitalista, a grande maioria das pessoas pensam “... eu tenho que ter uma vaca que é minha, eu tenho que ter um lote de terra que é meu, que ali eu faço o que eu quero, e aqui [COPAVI] é administrado pelo grupo.” (STRONZAK, 2010). Na COPAVI a perspectiva é valorização do coletivo, “tem que aprender a falar [...] o nosso, chega aqui, nós falamos, são nossas vacas, nosso trator.” (STRONZAK, 2010).

Nesse trajeto novas formas de sociabilidade foram constituídas. Ele ainda esclarece que apesar do esforço continuo que deve ser empregado na cooperativa por parte dos cooperados, a estrutura que existe na COPAVI oferece as condições necessárias para a vida dos mesmos. (STRONZAK, 2010) ilustra dizendo que além do adiantamento mensal das sobras resultantes do fechamento contábil anual, a cooperativa proporciona “a questão da alimentação, tem a horta, o leite, a carne, o doce, já tem cachacinha”.

Dessa forma, o homem e a mulher do campo alçaram vôo por horizontes desconhecidos, tendo em vista o processo de formação sócio-histórico brasileiro, ultrapassaram a barreira do individualismo (que fragiliza os pequenos produtores), os valores machistas porque as mulheres participam do processo decisório e possuem voto nas assembléias das cooperativas e muitas vezes aliaram o saber tradicional da produção no campo com as novas formas de tecnologia produtivas e gerenciamento.

Vários aspectos que foram destacados ao longo desse trabalho, alguns eixos centrais são colocados como desafios na busca dessa forma de organização produtiva autogestionária, democrática e solidária: - o interesse dos sujeitos envolvidos e a clareza do projeto à seguir; a articulação entre a mobilização social desses sujeitos e as políticas públicas, bem como, a importância da assessoria técnica; o papel das universidades no contexto regional; e a importância da compreensão do valor da propriedade coletiva e a conquista dos benefícios na mesma forma.

Page 162: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

162

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Esse exercício de valorização da propriedade coletiva e das formas de gestão das mesmas tem referências históricas e são o contraponto a ideia liberal de propriedade privada. Essa discussão ganhou novo fôlego a partir do prêmio Nobel de Economia de 2009, quando foi concedido a Elinor Ostrom18 por suas pesquisas sobre “governança econômica”.

A Academia Sueca citou a importância de Elinor [...] dizendo que seu trabalho demonstrou como a propriedade comum pode ser gerenciada com sucesso por associações. Elinor Ostrom desafiou o conhecimento convencional com estudos demonstrando que propriedades administradas por usuários, como áreas madeireiras e ativos de pesca, eram frequentemente melhor administradas do que as teorias padrão previam. A visão anteriormente aceita era de que a propriedade comum era mal gerenciada e deveria ser centralmente regulada ou privatizada19.

Estudos de governança econômica  - Elinor Ostrom estudou a administração de propriedades coletivas por grupos de proprietários, contrastando com a administração de instituições governamentais e privadas. Baseada em estudos sobre estoques de peixes, pastagens, florestas, lagos e bacias subterrâneas administradas pelos usuários, Ostrom descobriu que os resultados muitas vezes são melhores que os previstos pelas teorias-padrão. Observou também que os usuários de recursos frequentemente desenvolvem sofisticados mecanismos para lidar com conflitos de interesse e tomadas de decisão, caracterizando as regras que promovem resultados positivos. Em resumo, a auto-governança pode ter sucesso. (CASTANHO, 2009).

Tendo em vista a conjuntura de crise global, detonada em 2008, a ampliação permanente das taxas de desemprego, os processos de reestruturação produtiva e precarização das condições de trabalho, associado a “insegurança social [como] uma das faces do custo social da informalidade, resultante das mudanças ocorridas no processo de acumulação do capital, que, por sua vez, afetaram as relações entre Estado, mercado e sociedade” (LIRA, 2008, p. 153), o prêmio Nobel de Economia em 2009 trouxe à tona

18 Ver matéria do Conselho Federal de Economia disponível em: http://www.cofecon.org.br/index.php?option=com_content &task=view&id=1899&Itemid=51, acessado: 08 Fev. 2010.19 Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/mat/2009/10/12/dois-americanos-dividem-nobel-de-economia-2009-uma-mulher-ganha-pela-primeira-vez-768018974.asp publicada em 12/10/2009, acessado em 08 Fev. 2010.

Page 163: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

163

Cooperativismo e Economia Solidária:

o reconhecimento dado às formas de organização coletiva como estratégia de gestão, produção, conservação e sobrevivência dos grupos envolvidos e do meio ambiente. Encaminhando as análises é possível afirmar que o caminho traçado pelas diversas experiências da Economia Solidária (sócioeconomia ou cooperativismo autogestionário), e seus benefícios coletivos, são uma aposta e possibilidade de exercitar novas demandas humanas e ambientais distanciadas das práticas capitalistas já conhecidas e desenvolvidas pela iniciativa privada, pelo mercado e pelo Estado.

Referências

AGENCIA UEL DE NOTÍCIAS. Zumbi dos sem-terra, dá aula na pós-graduação. Disponível em: <http://www2.uel.br/com/noticiadigital/index.php?arq=ARQ_jnt&FWS_Ano_Edicao=1&FWS_N_Edicao=1&FWS_N_Texto=5314&FWS_Cod_Categoria=15>. Acessado em: 17 de março 2010.

BARBOSA, Rosangela Nair de Carvalho. Economia Solidária: estratégias de governo no contexto da desregulamentação social do trabalho. In: SILVA, Maria Ozanira da Silva; YASBEK, Maria Carmelita. Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil contemporâneo. 2 ed., São Paulo, Cortez; São Luiz MA, FAPEMA, 2008, p.90 – 129.

BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1998.

BLOG: Economia Solidária e Agroenergia. Disponível em: <http://economiasolidariaeagroener giaparana.blogspot.com/2008/05/o-secretrio-de-economia-solidria-do.html>. Acesso em: 08 Fev. 2010.

BUBER, Martin. O socialismo Utópico. São Paulo: Perspectiva, 1971.

CASTANHO, Manoel. COFECON. Nobel da paz é dividido; pela primeira vez, mulher é premiada. Disponível em: <http://www.cofecon.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1899 &Itemid=51>. Acessado em: 08 Fev. 2010

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

CULTI, Maria Nezilda. Sócios do suor: cooperativas de trabalho. In: PRIORI, Angelo (org). O Mundo do Trabalho e a Política: Ensaios interdisciplinares. Maringá: EDUEM, 2000. pp. 113-137.

DALL’ACQUA, Clarisse Torrens Borges. Competitividade e participação: cadeias produtivas e a definição dos espaços geoeconômicos, global e local. São Paulo: Annablume, 2003.

DEANE, Phyllis. A Revolução Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

Page 164: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

164

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

EID, Farid. Cooperativismo de reforma agrária e direitos humanos no Brasil. In:

VALÊNCIO, Norma (org.) Caminhos da Cidadania: um percurso universitário em prol dos Direitos Humanos. São Carlos, Editora UFSCar, 2001.

ICA. Internacional Co-operative Alliance. Disponível em: <www.ica.coop/al-ica>. Acesso em: 01 Abr. 2010.

LANDES, David S. A Riqueza e a Pobreza das Nações: por que algumas são tão ricas e outras são tão pobres. 11° Edição, Rio de Janeiro: Elsevier, 1998.

LECHAT, Noëlle Marie Paule. As raízes históricas da economia solidária e seu aparecimento no Brasil. In: <http://www.itcp.usp.br/drupal/node/250>. Palestra proferida na UNICAMP por ocasião do II Seminário de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, em 20/3/2002. Acessado em 13 de novembro de 2009.

LIMA, Jacob Carlos. Desconcentração Industrial e Precarização do Trabalho: Cooperativas de Produção do Vestuário no Brasil. 1998. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lasa98/Lima.pdf. Acesso em: 17 Abr. 2010.

LIRA, Izabel Cristina Dias. Trabalho informal como alternativa ao desemprego: desmitificando a informalidade. In: SILVA, Maria Ozanira da Silva e; YASBEK, Maria Carmelita. Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil contemporâneo. 2 ed. São Paulo, Cortez; São Luiz MA, FAPEMA, 2008, p.130-160.

MARCELINO, Paula R. A lógica da terceirização do trabalho na Honda do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974. p. 61-105.

MARX. Karl. Classes sociais e contradição de classes. In: IANNI, Otávio. Karl Marx. Coleção: Pensadores. São Paulo: Ática, 1992. p. 120-130.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Escala, 2007.

MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. <http://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista /index.htm>. Acessado em: 13 Nov. 2009.

MÉSZÁROS, István. Desemprego e precarização: Um grande desafio para a esquerda. In: ANTUNES, Ricardo (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, pp. 27-44.

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.

MINISTERIO DO TRABALHO E EMPREGO. Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/ ecosolidaria/sies.asp>. Acesso em: 19 de Fev. 2010.

MONDRAGON CORPORATION. Mondragon Corporation. Disponível em: <http://www.mondragon-corporation.com>. Acesso em: 19 Abr. 2010.

Page 165: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

165

Cooperativismo e Economia Solidária:

O GLOBO. Economia: Dois americanos dividem Nobel de Economia 2009; uma mulher ganha pela primeira vez. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/mat/2009/10/12/dois-americanos-dividem-nobel-de-economia-2009-uma-mulher-ganha-pela-primeira-vez-768018974.asp>. Acesso em: 08 Fev. 2010.

OCB. Organização das Cooperativas Brasileiras. Disponível em: <http://www.ocb.org.br/site/co operativismo/institucional.asp>. Acesso em: 05 Março 2010.

OLIVEIRA, Carlos Alonso Barbosa de. Do Capitalismo originário ao atrasado. Campinas: Editora Unicamp, 2003.

PINTO, João Roberto Lopes. Economia solidária: de volta à arte da associação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006

POCHMANN, Márcio. Desempregados no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (Org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, pp. 59-73.

PORTAL DO COOPERATIVISMO. Cooperativismo.Disponível em: <www.portaldocooperativismo.org.br>. Acesso em: 01 Dez. 2009.

RIDENTI, Marcelo. Classes sociais e representação. 2 ed. São Paulo, Cortez, 1994.

SANTOS, B. de S. (Org.).  Produzir Para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002.

SANTOS, Theotônio. Conceito de Classes Sociais. Petrópolis RJ, Vozes, 1982.

SINGER, Paul; SOUZA, André R. de. A Economia Solidária no Brasil: A autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000.

SINGER, Paul. A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In: SANTOS, Boaventura Souza (org). Produzir para viver: Os caminhos da produção não capitalista. Reinventar a emancipação social: para novos manifestos; 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 (a), pp. 81-129.

SINGER, Paul. Introdução. In: Mello ,Sylvia Leser de (Org.). Economia solidária e autogestão. Encontros internacionais. São Paulo: NESOL, ITCP e PW, 2005 (b).

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008.

SINGER, Paul. Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/imprensa/homenagem/23_paul_singer.asp>. Acesso em: 23 Jan. 2009.

SINGER, Paul. Economia Solidária Fala, Brasil. Disponível em: <http://www.brazilbrasil.com/ content/view/259/111/, 23/01/2010>. Acesso em: 20 Set. 2009.

STRONZAK, Francisco. Depoimento coletado na visita à COPAVI. Parancity PR. Disponível em: 20 março de 2010.

STAVENHAGEN, Rodolfo. Estratificação Social e Estrutura de Classe. In: VELHO, Otávio; PALMEIRA, Moacir; BERTELLI, Antônio (orgs). Estrutura de classes e estratificação social. 2 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1969, p. 117-146.

Page 166: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

166

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

TRIALOGOS. Sete anos de luta pela e com a terra: Assentamento se transforma em modelo de produção e qualidade de vida. Disponível em: <http://www2.uel.br/projetos/trialogos/mst/MST19.htm>. Acesso em: 09 de Março 2010.

UNITRABALHO. Cooperativismo reforma agrária e direitos humanos. Disponível em: <http://www.unitrabalho.org.br/IMG/pdf/cooperativismo-reforma-agraria-e-direitos-humanos.pdf >. Acesso em: 01 Abr. 2010.

YUDI, Chico. Zumbi, dos sem-terra, dá aula na pós-graduação. Notícia. Universidade Estadual de Londrina PR, n. 1.137, 29.ago.2007 (jornal semanário também disponível em: http://www2.uel.br/com/noticiadigital/index.php?arq=ARQ_jnt&FWS_Ano_Edicao=1&FWS_N_Edicao=1&FWS_N_Texto=5314&FWS_Cod_Categoria=15).

Page 167: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

167

ECONOMIA POPULAR SOLIDÁRIA E SUA CONFIGURAÇÃO NO ATLAS DA ECONOMIA

Francisco Quintanilha Véras Neto

1 Introdução

O presente artigo intenta estabelecer uma breve reflexão acerca da questão da formatação sócio-jurídica da economia solidária nos quadros do Atlas da Economia Solidária de 2005, quais aspectos centrais são destacados nos dados deste inventário. Ele apresenta a economia solidária com 11% dos empreendimentos autogestionários do tipo cooperativo e revela, também, o amadurecimento interregional destas experiências no quadro de nosso país, o que é de suma importância para a compreensão de sua relevância nas teias econômicas e sociais da realidade nacional.

2 A Economia Solidária e o Cooperativismo no Cenário Nacional

A economia popular solidária é composta por um mosaico de organizações. Isto implica na observação precisa dos seus atores principais e do papel desempenhado pelos membros. Neste sentido, a apologização de um dos seus atores mais expressivos, as cooperativas populares, remete-nos, ao menos no plano utopístico, ao protagonismo autêntico dos processos de autogestão desencadeados no plano civilizatório eurocêntrico1, dentro dos processos clássicos representados de forma idealtípica pela Revolução Industrial Inglesa2, 1 A cooperação acompanha o próprio processo de construção da cultura humana neste planeta, e é evidente até mesmo no plano biocêntrico característico das formas de cooperação estabelecidas por outras formas de vida. A experiência dos Egidos. Os egidos são uma experiência ameríndia de propriedade coletiva das comunidades aldeães, que delas foram despojadas. (CROUZET, 1963, p. 19).2 Nesta altura, é preciso introduzir as cooperativas, que tinham sua origem também em reações defensivas de trabalhadores, no caso contra preços altos de bens de primeira necessidade. A mais antiga cooperativa, com existência documentada, parece ter sido iniciativa de trabalhadores empregados nos estaleiros de Woolwich e Chatham que, em 1760, fundaram moinhos de cereais em base cooperativa para não ter de pagar os altos preços cobrados pelos moleiros, que dispunham de um monopólio local. No mesmo ano, o moinho de Woolwich foi incendiado e os padeiros da localidade foram acusados de serem os culpados. Graças ao

Page 168: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

168

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

e a sua formatação social dentro do capitalismo industrial naquele continente.

No plano existencial cotidiano, as novas formas de produção não surgem com uma identidade ideológica pré-programada. A internalização das experiências como ideologia, no sentido de um novo planejamento social democrático-participativo, deve implicar na mudança de estilos de vida e em possíveis padrões alternativos de sociabilidade centrados na cooperação social e econômica, como exprimem certos caminhos da economia solidária, desde que não-colonizados, ainda que perifericamente, pela lógica do globalitarismo neoliberal3. Neste sentido, no que concerne à codificação dos novos horizontes metamorfoseados do mundo do trabalho, que reconfiguram dialeticamente o seu panorama, com a sua consequente ressignificação acelerada por mudanças, que designam novos projetos de mutação do mercado mundializado, atingindo a estrutura do Estado e da Sociedade Civil, reconfigurados pelo movimento do capital – processo largamente expresso por nomenclaturas socialmente reconhecíveis como: a

incidente, a história registrou a existência destas duas cooperativas de produção. Moinhos e padarias cooperativas multiplicaram-se na Inglaterra, sobretudo depois que começaram as guerras contra a França (1793) e o preço do trigo disparou. A cooperativa de consumo mais antiga, registrada pela documentação, foi a da sociedade de tecelões de Fenwick, iniciada em 1769. A segunda mais antiga foi outra cooperativa escocesa, a Govan Victualling Sociaty, de 1777. A mais antiga cooperativa de consumo inglesa foi a Oldham Co-operative Supply Company, de 1795. E como exemplo antigo de cooperativas de produção não destinadas a abastecer seus sócios, cita-se a formada pelos alfaiates de Birmingman, em 1777 (COLE, 1944, p. 13-15, apud SINGER, 1998, p. 90).3 Neste sentido, Antônio David Cattani define o intervencionismo estatal de forma crítica, embora saibamos que o neoliberalismo implica num retrocesso enorme, até em relação aos padrões de intervencionismo cíclico do Estado no campo econômico dentro de sua moldura clássica Keynesiana no capitalismo, ditado agora, unicamente pelos interesses da financeirização neocolonial da economia, que se exemplifica pela sua imposição pelo desconstrutivismo neoliberal do multilateralismo, configurando um Keynesianismo reacionário de mercado unicamente a favor de monopólios transnacionais e para os agentes do sistema financeiro especulativo contrário a qualquer fomento ou desenvolvimento social induzido por políticas estatais. O intervencionismo estatal foi, em primeiro lugar, uma tradução política dos conflitos de interesse que já não podiam continuar se desenvolvendo no marco da esfera privada. Mais tarde, incrementou-se como resposta aos desafios e reajustes colocados pelo crescimento econômico, pela reestruturação agrária, pela hiperurbanização, pelas mudanças ocorridas na estratificação e mobilizações sociais e pelos conflitos ideológicos e políticos, alternando-se ciclos de autoritarismo e democracia. (CUNILL apud CIMADAMORE; CATTANI 2007, p. 133).

Page 169: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

169

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

terceira via, o terceiro setor, a economia solidária4 e o cooperativismo, que expressam tendências não neutras, e que podem estar interligadas a formas de gestão neoconservadoras5 ou a novos projetos parcialmente emancipatórios que se descortinam respectivamente, novos horizontes, universos de regulação e de gestão neoliberais da crise ou de emancipação se instrumentalizados em novas dinâmicas transcendedoras do atual modo de produção capitalista.

Para alguns, a economia solidária representa um conjunto de novas formas de produção capazes de enfrentar tais desafios presentes no contexto da globalização. A partir desses elementos, o professor do departamento de economia da UFSC, Armando Lisboa, fixa uma série de nuanças das quais ele designa como terceiro setor, expressão que, na sua conotação, também abrange a economia solidária focalizada igualmente nos marcos do hibridismo societal latino-americano. Segundo Armando Lisboa, essa economia, de forma assemelhada, constitui-se como uma alternativa gerada por baixo, como proposição de contra-hegemonia à imposição centralizada e conservadora das políticas neoliberais. Essa é, portanto, uma luta subterrânea ditada por um quadro macroeconômico avassalador, em que o equilíbrio entre a solidariedade e o cálculo estratégico deve ser localizado em uma inter-relação entre a solidariedade e o interesse (LISBOA, 2002).

Para esta visão da teoria social da sócio-economia solidária6, esta

4 O segundo desafio a ser enfrentado pela economia solidária é a demarcação precisa entre as verdadeiras alternativas e as práticas conservadoras no chamado terceiro setor. As elites dominantes vêm desenvolvendo uma ardilosa estratégia para assegurar a hegemonia nesse campo. Sob o charme cativante do trabalho voluntário, das parcerias cidadãs, das empresas sociais, observa-se a tentativa de preservar privilégios, assegurando a legitimidade elitista na condução dos processos sociais. Os estragos do capitalismo foram tão grandes que, se nada for feito, a exclusão, a marginalização e o empobrecimento de largas faixas da população trazem o risco de convulsão social ou do direcionamento da violência contra os poderosos. Como demonstrou Bronislaw Geremek, em A piedade e a força (1978), ao longo da história ocidental, para frear essa ameaça, as elites se valem hora da força, hora da piedade. Atualmente, a ofensiva caritativa conservadora disputa terreno com as verdadeiras iniciativas do solidarismo emancipador, mas, se não der resultados, a estratégia poderá ser outra. (CATTANI, 2003, p. 12-13).5 A estratégia social, no período de Fernando Henrique Cardoso, consistia em retirar o Estado dos setores sociais e delegar funções sociais para as organizações da sociedade civil; essa foi a perspectiva do Fundo Social de Emergência, parâmetro primordial para o desencadeamento dessas novas formas de gestão da crise social, sendo que as ONGs fundadas com programas de ajuda internacional assumiram, gradualmente, muitas funções dos governos municipais. (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 181).6 A nova utopia social da economia solidária poderia ser implantada macroeconomicamente fora da égide do modo de produção capitalista; isso supera a dicotomia de que o capitalismo

Page 170: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

170

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

poderia traduzir uma solução, ainda que parcial, expressando o sintoma de uma transição societal, visando à reintegração da economia na sociedade sob um novo viés de cunho civilizatório e emancipatório autenticamente estruturado para propiciar a mobilização das energias sociais atreladas a um referencial utópico, que visa à reconstrução de um caminho da gestão e planejamentos autogestionários, calcados numa ambiência democrático-participativa.

Porém, os limites da miséria e da sobrevivência impõem severas restrições para essa luta de reconstituição da esfera pública societal, incluindo a dimensão da busca da cidadania econômico-social fora dos limites formais da democracia de mercado, sustentada pela ideologia neoliberal, e do seu caminho suave representado pela terceira via, que oculta no seu filantropismo a saída da atuação social estatal referendada pela saída de cena das políticas públicas estatais, substituídas por entidades que facilitam os processos de descentralização estatal, fundando-se em práticas de terceirização privatizadora dos serviços sociais estatais e, por isso, pode gerar redes de sociabilidade social alternativa, o que tornaria distante a apregoação de uma alternativa para o capitalismo, conforme o idealizado por alguns autores7.

Nesse aspecto, o desemprego surge da mesma forma que as novas necessidades de criar caminhos inéditos para a absorção do contingente de jovens, o que expressa o fenômeno do desemprego em massa, de caráter estrutural, que vem assolando esses países há décadas e, nesse novo contexto, emergem várias dessas organizações que hoje exercem tarefas que antes do período neoliberal eram realizadas por funcionários públicos (SINGER, 2003), embora as atuais políticas desenvolvimentistas tenham

sabe produzir, mas não sabe distribuir. No socialismo, o processo seria inverso para os defensores da economia solidária. A autogestão democrático-participativa permitiria edificar um sistema harmonioso na produção e na distribuição, corrigindo algumas das principais falhas do socialismo e do capitalismo respectivamente, pois o primeiro saber distribuir e o segundo produz, mas não sabe distribuir. (LISBOA, 2002, p. 131).7 Mas esta diferença entre sociedade e capitalismo abre também espaços para sociabilidades alternativas, para outros modos de vida. Os caminhos de ultrapassagem do capitalismo passam por potencializar ao máximo esta brecha, alargando esta zona de não identificação entre o capitalismo e a subjetividade em seu entorno (Gorz). Não temos dúvida de que a emergência da Economia Solidária (ES) é sintoma desta transição societal civilizatória. A economia capitalista de mercado não é o destino inexorável da sociedade humana, mas apenas uma forma perversa de diferenciação, uma fase histórica ensanduichada entre um longo período de incrustamento e a contemporânea luta pela reintegração da economia na sociedade. (LISBOA, 2002, p. 131).

Page 171: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

171

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

contrariado as teses monetaristas recessivas, por um modelo misto, em que o desenvolvimento econômico não se exime de metas inflacionárias.

Um grande número de ONGs é sustentado, primordialmente, pelos poderes públicos mediante contratos, por isso é possível estabelecer uma vinculação entre a economia sócio-solidária e o terceiro setor, pois ambas dependem igualmente do aporte de recursos estatais para a efetivação dessas políticas de cunho sócio-econômico, que demandam a estruturação de um conjunto de políticas públicas de fomento e igualmente voltadas para a criação de uma formalização jurídica adequada às metas do cálculo racional e a racionalização de um setor que, embora não lucrativo, também busca segurança e previsibilidade para a sua estruturação, alcançando um âmbito sistêmico adequado a sua irradiação social rizomática em redes, que hoje caracterizam uma superestrutura social imbricada com a sustentação da infraestrutura social capitalista, compondo um bloco histórico cimentado pelo poder público, o qual, por meio de contratos, integra a economia solidária ao terceiro setor8, e pode assumir a feição também dos movimentos sociais, como os Sem-Terra.

Desta forma, os movimentos sociais também se utilizam da instrumentalização das cooperativas para desenvolver contextos revolucionários ou de reformismo emancipatório; isto é relatado por James Petras (1999), que se refere a outro importante aspecto da instrumentalização de cooperativas pelas mais importantes iniciativas surgidas de movimentos sociais, como os de ocupações de terras, compondo, nesses processos, cooperativas de trabalhadores rurais em países como o Brasil e Paraguai.

Esse também é o caso dos cocaleiros na Bolívia (hoje representados pela ascensão de Evo Moralez), embora tais estratégias tenham nascido, em grande parte, de um quadro defensivo de deterioração das condições de vida das populações miseráveis dessas regiões sob os auspícios da crise e da redemocratização da América Latina, nos anos 80, com o agravamento

8 Paul Singer relaciona a vinculação entre terceiro setor e a economia solidária nos programas sociais europeus, que vicejam com a retração do Welfare State, pois se apropriam de jovens sem perspectiva de emprego e com alta escolaridade, para que estes realizem tarefas assistenciais e de ajuda solidarista aos desfavorecidos. Essas novas formas de trabalho voluntário em expansão permitem cobrir ainda que de forma insuficiente, os problemas sociais, sem ampliar o gasto social em face ao crescimento da demanda provocada pela ampliação da crise social desencadeada pelas medidas neoliberais. Nesse contexto, a economia solidária assume um papel importante de combate ao desemprego também no Brasil, pois se caracteriza pela inserção social ao organizar esses jovens em cooperativas. Essas organizações cooperativas gestadas no seio das experiências sócio-solidárias passam a ser chamadas em alguns lugares como “sociais”. (SINGER, 2003, p. 116).

Page 172: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

172

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

da imposição do neoliberalismo nos anos 90, que compuseram um cenário de profunda austeridade social. Portanto, as cooperativas sob o controle dos trabalhadores, como uma reação desses segmentos sociais atingidos pelos processos de exclusão desencadeados por situações que ampliaram a vulnerabilidade social, devido ao aumento do desemprego e do êxodo rural, essas organizações de produção cooperativada do MST, também buscam alianças com alguns setores representativos dos trabalhadores urbanos, assim compõem o quadro da nova resistência de movimentos de massas não controlados pela esquerda pragmática (PETRAS, 1999), mas que podem ser beneficiadas, como no caso de recursos orientados pelo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o qual fornece importante fonte de subsídios para o fortalecimento da Agricultura Familiar, ligada ou não, aos movimentos sociais, em assentamentos ou na camada campesina convencional.

O terceiro setor e a economia solidária transformaram-se, nos anos 90, em mecanismos de incorporação de homens e mulheres que foram expulsos do mercado de trabalho e das relações de emprego assalariadas e passaram a desenvolver atividades não lucrativas, embora cumpram um papel de funcionalidade em relação ao sistema, que não se responsabiliza pelos desempregados (ANTUNES, 2000). Hoje, a constituição de redes de economia solidária e o apoio de políticas públicas governamentais possibilitam um salto qualitativo nesta situação meramente defensiva do auge do neoliberalismo, especialmente no governo FHC.

O projeto visava diminuir os impactos sociais da reforma, cooptando os movimentos sociais, além de ampliar o domínio internacional sobre esses contingentes populacionais descartados através da vigilância da comunidade doadora fomentadora da nova microeconomia (CHOSSUDOVSKY, 1999). A economia solidária inserida dentro do âmbito do solidarismo emancipatório deve ser integrada ao possível cenário das experiências democratizantes e emancipatórias, que se apresentariam como alternativas até certo ponto “desafiadoras” da lógica capitalista dominante. Conforme define Antônio David Cattani (2003), essa lógica capitalista orienta-se pela busca de hegemonia pelas elites, através dessas estratégias que impõem um caráter caritativo e conservador aos seus postulados, em oposição a estratégias legitimamente formuladoras de um viés emancipador. A autogestão9 deve ser um mecanismo fundamental de estruturação de

9 Um indicador estatístico da autogestão está na periodicidade da realização de assembleias ou reuniões. 79% dos Empreendimentos de Economia Solidária afirmaram realizar assembleias ou reuniões com periodicidade de até 3 meses, sendo que 49,2% realizam assembleias ou reuniões mensalmente, 10,5% semanal ou quinzenalmente e 11,2 bimestral ou trimestralmente. Na

Page 173: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

173

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

movimentos que garantam uma prática autêntica de igualdade de direitos de todos os membros, com a repartição dos recursos10, dentro das organizações da economia solidária, em suas mais variadas formas de expressão como nas cooperativas, associações, clubes de troca, de poupança, etc.

As utopias devem necessariamente migrar para uma nova compreensão do homem ao reconhecer a sua pluralidade e singularidade e, ao mesmo tempo, servirem de horizonte crítico contra as sociedades totalmente reificadas, em que o saber é somente regulatório, e o conhecimento é cooptado por possantes indústrias culturais voltadas para a acumulação do capital e que transformam toda esperança em mercadoria; assim, a economia solidária sinaliza para uma realização não panaceica, mas que permite estruturar novas relações econômicas solidárias, contrárias ao laissez-faire, em lugar da concorrência, a cooperação11.

No entanto, o mesmo Singer procura definir qual o tipo de economia

região Nordeste, o destaque está na participação da peridiocidade mensal (64,7%) e na região Sudeste, a peridiocidade semanal ou quinzenal (21,1%) está acima da média nacional. Nas regiões Sul e Centro-Oeste, a peridiocidade anual ou superior destaca-se em relação à média nacional (24,9% e 28,0% respectivamente) (BRASIL, 2006, p. 44).10 A autogestão significa que a mais completa igualdade de direitos de todos os membros deve reinar nas organizações da economia solidária. Se a organização for produtiva (uma cooperativa ou associação de produção agrícola, extrativa ou industrial, por exemplo), a propriedade do capital deve estar repartida entre todos os sócios por igual; que em consequência, terão os mesmos direitos de participar nas decisões e na escolha dos responsáveis pelos diversos setores administrativos da mesma. Outra modalidade de organização solidária é a cooperativa (ou outra forma de associação), que reúne pequenos produtores autônomos (agricultores, taxistas, compras e ou vendas em comum). A ela também se aplicam as regras da autogestão. O mesmo vale para clubes de troca, clubes de poupança, cooperativas de consumo, de crédito, habitacionais e assim por diante. (Para facilitar a leitura, esta locução ou outra forma de associação será omitida neste texto, devendo ser subentendida cada vez que o termo cooperativo for usado como exemplo concreto de empreendimento de economia solidária. Cooperativa é a forma clássica dessa espécie de empreendimento, mas por diversos motivos ela é substituída, às vezes, por outras formas associativas.). (SINGER, 2003, p. 116).11 A economia solidária não é uma panaceia. Ela é um projeto de organização socioeconômico por princípios opostos ao do laissez-faire: em lugar da concorrência, a cooperação; em lugar da seleção darwiniana pelos mecanismos do mercado, a limitação – mas não eliminação! – destes mecanismos pela estruturação de relações econômicas solidárias entre produtores e entre consumidores. O projeto cooperativo já é antigo, ele foi originalmente concebido como alternativa socialista ao capitalismo industrial. Foram inúmeras as tentativas de colocá-lo em prática. Fico tentado a acrescentar: tendo a maioria fracassado. Mas o que é o fracasso? As colônias cooperativas de Owen nunca funcionaram por mais do que alguns anos, o mesmo sendo verdadeiro para muitas outras. Mas os Kibutzim em Israel estão na terceira geração, a vigorosa indústria em Mondragón, no país basco, já tem mais de 40 anos. (SINGER, 1998, p.09).

Page 174: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

174

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

solidária e que cooperativas precisam ser criadas no quadro da Economia Solidária como alternativas concretas ao neoliberalismo; caso contrário, este modelo será edificado, através do cooperativismo tradicional12, um tipo de cooperativismo que se associa comumente às iniciativas flexibilizadoras neoliberais, e não para um novo campo autossustentável da Economia Solidária, constituída a partir da sociedade civil, aqui entendida como um espaço de lutas sociais, e não apenas de interesses egoísticos de produtores e consumidores, dentro de uma perspectiva fragmentadora e pós-moderna.

Em face do crescimento das cooperativas e do fenômeno maior da economia solidária e das novas formas capitalistas baseadas na terceirização, torna-se necessário entender as mudanças que estão ocorrendo no capitalismo em nível internacional, nacional e regional, para visualizar as possíveis alterações na divisão internacional do trabalho13 e na redução do contingente da força de trabalho formalmente assalariada.

12 Hoje se pode distinguir entre o cooperativismo tradicional e o novo cooperativismo, que traz as marcas da crise ideológica da esquerda e a necessidade de enfrentar o neoliberalismo e a atual crise das relações de trabalho. O novo cooperativismo constitui a reafirmação da crença nos valores centrais do movimento operário socialista: democracia na produção e distribuição, desalienação do trabalhador, luta direta dos movimentos sociais pela geração de trabalho e renda, contra a pobreza e exclusão social. Nem sempre o novo cooperativismo insere-se nos mesmos espaços institucionais do tradicional. Estes, muitas vezes, foram cooptados por órgãos governamentais ou se burocratizaram, ou degeneraram mesmo. Há “cooperativas de comercialização – sobretudo agrícolas ou agroindustriais – cujos sócios são empregadores capitalistas. Obviamente estas pretensas cooperativas formadas por trabalhadores que procuram criar para si e para toda a sociedade alternativas democráticas e igualitárias ao capitalismo. A situação do cooperativismo difere de país a país. Apesar de estar organizado internacionalmente na Aliança, o cooperativismo está hoje em processo acentuado de transformação. O novo cooperativismo surge em grande medida como resultado de novas formas de luta do sindicalismo mais combativo e se opõe à globalização em sua modalidade neoliberal e à devastação que ela ocasiona no seio da classe trabalhadora. No que segue, procuraremos resumir as causas e as formas assumidas pelo novo cooperativismo no Brasil. (SINGER, 1999).13 O sistema mundial competitivo configura nova divisão internacional do trabalho e mantém forte assimetria. O Primeiro Mundo opera uma economia de serviços e de alta tecnologia, uma economia da informação com empresas “limpas” (não-poluidoras) e produtos de alto valor. No pólo oposto, a economia do Terceiro Mundo abriga setores poluidores e especializa-se em produtos agroindustriais, matérias-primas e manufaturados de tecnologia intermediária. Contrapõem-se, assim, uma economia de conhecimento (Knowledge-ware), cujo combustível é a “matéria cinzenta”, o engenho e o intelecto (brainpower), e economias agroindustriais, produtoras de hardware, movidas pela força física e pelo labor penoso, executado em condições precárias. O Primeiro Mundo parece empenhado em edificar uma sociedade terciária e, a um só tempo, quaternária, sintonizado com a avalanche das inovações geradas pela Revolução Digital. Por sua vez, o Terceiro Mundo ainda arrasta as carroças e os vagões da sociedade agrícola (primária) e industrial (secundária), além de atuar como força de reserva, a reboque do destino alheio. (SROUR, 1997, p. 36).

Page 175: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

175

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

Inclusive, deve-se criticar a incessante diminuição do emprego e da proteção da força laboral por uma legislação social e trabalhista conquistada ao longo das lutas trabalhistas deste século. O capitalismo vem transformando por completo as relações de trabalho atuais e propiciando o surgimento do fenômeno da informalização, da flexibilização, do trabalho e do desemprego, propiciando também o aumento da exclusão social nas cidades e no campo14. Autores como PERIUS (1995) posicionam-se, neste aspecto, assimilando o fato de que as cooperativas não são a melhor solução, mas se constituem em uma alternativa possível que surge no que tange à geração de trabalho e de renda nas difíceis condições sociais existentes.

Na perspectiva marxiana, de Carlos Montaño (2002), o terceiro setor, em cujo bojo se insere a problemática da economia solidária, classifica-se como modelo social capitalista situado dentro da moldura da democracia formal deste sistema, que nunca permitirá a edificação de uma sociedade materialmente mais justa (socialista), na conceituação tradicional da teoria social contemporânea. Pela perspectiva defendida por este autor, não há mais diferenciação entre o terceiro setor e a sociedade civil, respectivamente, pois a sociedade civil é homogeneizada em uma visão supraclassista que indiferencia as organizações de cada uma destas instâncias constituídoras da sociedade civil, decretando a morte das ideologias e da luta de classes subsumidas, agora, sob o paradigma comunicacional integrado ao receituário neoliberal do Consenso de Washington, que idealiza uma troca recíproca e harmoniosa, entre os três setores salientados pela instrumentalização, ideológica da teoria razão comunicativa, respectivamente incluindo o

14 “... O próprio capitalismo passa por um processo de profunda reestruturação, caracterizado por maior flexibilidade de gerenciamento; descentralização das empresas e sua organização em redes tanto internamente quanto em suas relações com outras empresas; considerável fortalecimento do papel do capital vis-à-vis, o trabalho, com o declínio concomitante da influência dos movimentos de trabalhadores; individualização e diversificação cada vez maior das relações de trabalho; incorporação maciça das mulheres na força de trabalho remunerada, geralmente em condições discriminatórias; intervenção estatal para desregular mercados de forma seletiva e desfazer o estado do bem-estar social com diferentes intensidades e orientações, dependendo da natureza das forças e instituições política da cada sociedade; aumento de concorrência econômica global em um contexto de progressiva diferenciação dos cenários geográficos e culturais para a acumulação e a gestão do capital (...). Devido a essas tendências, houve também a acentuação de um desenvolvimento desigual, desta vez não apenas entre o Norte e o Sul, mas entre os segmentos e territórios dinâmicos das sociedades em todos os lugares e aqueles que correm o risco de tornar-se não pertinentes sob a perspectiva da lógica do sistema...”. (CASTELLS, 1999, p. 21-22).

Page 176: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

176

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Estado, o Mercado e Sociedade Civil (Mundo da Vida), transformando essas premissas em paradigmas de gestão e reengenharia social em tempos de financeirização da riqueza num quadro de reestruturação produtiva atuante como tentativa de reverter a crise de acumulação do capital15.

O terceiro setor refere-se à ajuda ao próximo e à própria auto-ajuda, no conceito expresso por uma sociedade civil, apenas cooperativa, situada fora do conceito de sociedade civil classista, em que deve aparecer o conjunto de organizações de classe e de luta político-econômica pela hegemonia. No primeiro caso (terceiro setor), o termo é parceria; no segundo caminho classicista inclui-se a dimensão do confronto, do combate. No primeiro caminho, ocorre um impasse no desenvolvimento democrático, sem o qual não há a possibilidade de superação da ordem do capital posta (MONTAÑO, 2002), o que parece caracterizar o caminho sincrônico da economia solidária.

O modelo de uma democracia formal e de uma justiça social confinada aos quadros e horizontes de uma filantropia modelada por parcerias sociais brandas e negociadas, sob o ponto de vista da governabilidade, constituem-se em eixos axiológicos e principiológicos instransponíveis e irredutíveis do terceiro setor, da década passada, afirmados pelos modelos de boa governança ligados a sua gênese dentro da concepção da terceira via, com seu intuito nitidamente legitimador dos modelos de governabilidade neoliberal possível, dentro da ideologia liberal, que encobre políticas que

15 Digamos que os custos de transação-como se diz no jargão contábil da nova economia institucional preconizada pelas repartições multilaterais de Washington- da atual reestruturação produtiva com financeirização da riqueza, responsável pelo surgimento de uma nova classe de credores profissionais, e crescente iniquidade social, tem sido eficazmente amortizados por essa surrealista troca simbólica entre os três setores de uma sociedade integralmente produtora de mercadorias, sendo que as imateriais são as que mais rendem, sobretudo o conforto imaginário de uma integração social puramente virtual. Três setores, a saber: os dois subsistemas estruturados pelo funcionamento supostamente neutro e impessoal dos meios poder e dinheiro e o vasto Mundo da Vida em que floresce o gosto pela sociabilidade de que tanto carece o ambiente competitivo do novo cenário econômico. Já é possível demonstrar que essas transfusões entre poder, dinheiro e cultura associativa não seriam simbólica e materialmente funcionais se não houvesse um nítido contraste normativo, entre os valores comuns aos dois primeiros subsistemas, e o Terceiro Setor, que por isso mesmo, pode se apresentar, como o portador da promessa de uma bem próxima harmonia das esferas, a integração possível, e desejável do Estado, Mercado e Sociedade Civil. Enfim, uma regulação moral da reprodução social. Dessa miragem, dá notícia a Teoria da Ação Comunicativa, que acabamos de pastichar linhas acima, ou por outra, que vem ela mesmo glosando espontaneamente o advento do admirável mundo novo da Sociedade Civil, também redescoberta não por acaso nos mesmos termos da apologética corrente. (ARANTES, 2000)

Page 177: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

177

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

edificam um gigantesco estatismo beneficiador das políticas anticíclicas, que sustentaram o capitalismo da Nova Ordem Mundial, modelado pela “Pax Americana”, idealizada naquele período, antes dos fiascos do Iraque e Afeganistão.

Essas premissas ajustavam-se perfeitamente, naquele período, ao modelo neoliberal de contenção social das variáveis socialmente explosivas, agora reconsideradas em face do aguçamento das contradições sociais caóticas, referentes ao quadro que caracteriza a atual crise de sociabilidade capitalista, assim, exige re-instrumentalizar sujeitos, instituições, práticas e valores, assim se condensa a estratégia de gestão da crise dentro dos princípios neoliberais de gestão da crise do capitalismo monopolista16, assim as condições sociais de trabalho, cada vez mais precárias devido ao desemprego e pelo ajustamento estrutural que exigiam mecanismos pseudocompensadores, para a crise social explícita, mantêm as sequelas sociais associadas ao neoliberalismo, não permitindo evidenciar a clara percepção das causas das mazelas sofridas pelas populações atingidas pela governança neoliberal (MONTAÑO, 2002). A vinculação entre o terceiro setor e o neoliberalismo daquele período podia ser estabelecida, igualmente, por meio da crítica abrangente de Carlos Montaño, pois muitas das especificidades do terceiro setor tornam-se funcionais as estratégias de restrição das prestações sociais do neoliberalismo (MONTAÑO, 2002).

Ricardo Antunes inclusive aponta um crescimento da empregabilidade, dentro do terceiro setor, constituindo uma forma alternativa de ocupação, em empresas de perfil comunitário, abarcando um amplo leque de atividades, sobretudo assistenciais. Dessa forma, o terceiro setor no Brasil e no mundo decorria da retração do mercado de trabalho industrial e terciário formal, e correspondia à busca de soluções para o movimento de reestruturação produtiva do capital, que visava reduzir o trabalho vivo e ampliar o trabalho morto (ANTUNES, 2000).

O programa neoliberal inicialmente tentou firmar um mote de engenharia social, que reduzisse os efeitos negativos das políticas macroeconômicas, que acentuaram o êxodo rural, levando à formação de uma mão-de-obra nômade, que migra de uma metrópole para outra, nas grandes

16 Desta forma, o capitalismo monopolista, orientado pelos princípios neoliberais, desenvolve uma nova estratégia geral de enfrentamento da atual crise, de acumulação capitalista, de reprodução das relações sociais e de legitimidade sistêmica, tal que, como apontamentos, exigem re-instrumentalizar sujeitos, instituições, práticas, valores. (ANTUNES, 2000, p. 232).

Page 178: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

178

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

cidades do mundo subdesenvolvido, e mesmo naqueles países integrantes do núcleo orgânico do capitalismo, assim se inseriu o caso brasileiro, em que surge em uma camada de pobreza urbana substancialmente nova (socialmente ampliando, a população das periferias, que caracterizava as favelas, decorrente da escravidão, do êxodo rural da revolução verde e do movimento de militarização e “modernização conservadora” verde oliva do período do golpe civil-militar).

No contexto do neoliberalismo dos anos 90, milhares de trabalhadores assalariados e funcionários burocráticos, que viviam em áreas residenciais de classe média e baixa foram despejados, socialmente marginalizados e excluídos para áreas de cortiço (CHOSSUDOVSKY, 1999). O terceiro setor e a economia solidária transformam-se em mecanismos de incorporação de homens e mulheres que foram expulsos do mercado de trabalho e das relações de emprego assalariadas e passaram a desenvolver atividades não lucrativas17.

A estratégia social, no período de Fernando Henrique Cardoso, consistia em retirar o Estado dos setores sociais, e delegar funções sociais para organizações da sociedade civil; essa foi a perspectiva do Fundo Social de Emergência, parâmetro primordial para o desencadeamento dessas novas formas de gestão da crise social, sendo que as ONGs fundadas com programas de ajuda internacional assumiram, gradualmente, muitas funções dos governos municipais, cujos fundos foram congelados pelo PAE (CHOSSUDOVSKY, 1999).

O projeto visava diminuir os impactos sociais da reforma, cooptando os movimentos sociais, além de ampliar o domínio internacional sobre esses continentes populacionais descartados e incorporados microeconomicamente, com uma estreita vigilância da comunidade doadora com premissas racionalizadoras, visando à certificação segundo padrões de consumo e comércio sócio-ambientais18·.

17 ... Esses seres sociais veem-se, então, não como desempregados excluídos, mas como realizando atividades efetivas, dotadas de algum sentido social. Aqui há, por certo, um momento de dispêndio de atividade útil e, portanto, positiva, relativamente à margem (ao menos diretamente) dos mecanismos de acumulação. Mas é bom não esquecer, também, que estas atividades cumprem um papel de funcionalidade em relação ao sistema, que hoje não quer ter nenhuma preocupação pública e social com os desempregados. (ANTUNES, 2000, p. 113).18 Essa microeconomia instalada sob a vigilância estreita da comunidade doadora servia também ao propósito de controlar o desenvolvimento de movimentos sociais populares independentes. Os recursos alemães financiavam os salários de especialistas vindos do exterior, ao passo que os fundos de investimento destinados à manufatura de pequena

Page 179: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

179

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

A economia solidária inserida no âmbito do solidarismo emancipatório deve ser integrada ao possível cenário das experiências democratizantes e emancipatórias, que se apresentariam como alternativas até certo ponto “desafiadoras” da lógica capitalista dominante, porém através da lógica capitalista surge um horizonte de hegemonia das elites através dessas estratégias do terceiro setor, que impõem um caráter caritativo e conservador aos seus postulados (CATTANI, 2003), em oposição a estratégias legitimamente formuladoras, de um viés emancipador19.

O último período de ruptura parcial com os dogmas neoliberais aqui analisados tem orientado o surgimento de uma economia solidária robustecida por redes e políticas públicas, de natureza não totalmente defensiva no quadro de sutura dos direitos sociais, mais de cunho propositivo, com autonomia impulsionada por projetos extensionistas e universitários; o tamanho desta nova economia é essencialmente paradigmático.

2 Definição de Economia Solidária e mapeamento dos empreendimentos pelo Atlas da Economia Solidária no Brasil

O estudo do Atlas de Economia Solidária realizou-se no segundo semestre de 2005, sendo visitados 14954 empreendimentos Econômicos Solidários, com realização de entrevistas em todas as unidades da federação, abrangendo 2274 municípios, sendo que, após a supervisão do trabalho de campo, com a coleta e posterior digitação, registrou-se em um banco de dados, que é a base de informação do SIES (Sistema Nacional de Informações

escala deviam ser autofinanciados por um meio de um fundo rotativo administrado pela comunidade local. (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 181).19 “O segundo desafio a ser enfrentado pela economia solidária é a demarcação precisa entre as verdadeiras alternativas e as práticas conservadoras no chamado terceiro setor. As elites dominantes vêm desenvolvendo uma ardilosa estratégia para assegurar a hegemonia nesse campo. Sob o charme cativante do trabalho voluntário, das parcerias cidadãs, das empresas sociais observa-se a tentativa de preservar privilégios, assegurando a legitimidade elitista na condução dos processos sociais. Os estragos do capitalismo foram tão grandes que, se nada for feito, a exclusão, a marginalização e o empobrecimento de largas faixas da população trazem o risco de convulsão social ou do direcionamento da violência contra os poderosos. Como demonstrou Bronislaw Geremek, em A piedade e a força (1978), ao longo da história ocidental, para frear essa ameaça, as elites se valem hora da força, hora da piedade. Atualmente, a ofensiva caritativa conservadora disputa terreno com as verdadeiras iniciativas do solidarismo emancipador, mas se não der resultados, a estratégia poderá ser outra”. (CATTANI, 2003, p. 12-13).

Page 180: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

180

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

da Economia Solidária) (BRASIL, 2006, p. 09). Para esta compilação, a economia solidária é o conjunto de atividades econômicas - de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito- organizadas e realizadas, solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras, sob a forma coletiva e autogestionária, em que se destacam quatro importantes características: cooperação, autogestão, viabilidade econômica e solidariedade. É necessário perceber que essas características, embora sejam complementares e nunca funcionem isoladamente, podem ser observadas e compreendidas objetivamente como categorias analíticas diferentes, mas sempre presentes na economia solidária (BRASIL, 2006, p. 11).

Os empreendimentos devem congregar a cooperação, a autogestão, a atividade econômica e a solidariedade como vetores da sua configuração (BRASIL, 2006, p. 11). Os tipos de organização da economia solidária envolvem organizações coletivas-organizações, suprafamiliares, singulares e complexas, tais como: associações, cooperativas, empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de trocas, redes e centrais etc. Os trabalhadores envolvidos nestes empreendimentos podem ser urbanos e rurais que exercem, coletivamente, as atividades, assim como a alocação dos resultados permanentes; incluindo aqueles que estão funcionando com o grupo de participantes constituído e as atividades econômicas definidas; com diversos graus de formalização, prevalecendo a existência real sobre o registro legal e; que realizam atividades econômicas de produção de bens, de prestação de serviços, de fundos de crédito (cooperativas de crédito e os fundos rotativos populares), de comercialização (compra, venda e troca de insumos, produtos e serviços) e de consumo solidário. Além disto, aglutinam-se entidades de apoio, assessoria e fomento à Economia Solidária; são aquelas organizações que desenvolvem ações nas várias modalidades de apoio direto, junto aos empreendimentos econômicos solidários, tais como: capacitação, assessoria, incubação, assistência técnica e organizativa e acompanhamento (BRASIL, 2006, p. 13).

O novo mapa da economia solidária traçado pelo Atlas reúne os vários atores congregados pela economia solidária como instâncias governamentais: entes federativos da União, Estados e Municípios, Ministério do Trabalho e Emprego, Secretaria de Economia Solidária, redes de gestores públicos. Em outro setor estão os empreendimentos econômicos solidários: organizações de finanças solidárias, empresas autogestoras, cooperativismo popular, redes de empreendimentos, associações, clubes de troca, grupos. Outro ponto aglutinador é o Fórum Brasileiro de Economia Solidária que reúne uma série de organizações como: Faces do Brasil, Fóruns Estaduais, Rede

Page 181: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

181

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

de Socioeconomia Solidária. Uma série de movimentos e organizações também está interligada com a economia solidária pelo mecanismo de Ligas ou Uniões. Este é o caso do MST (COCRAB), com a ANCOSOL, UNICAFES, UNISOL, ANTEAG (BRASIL, 2006, p. 14). Outro ponto de reunião da economia solidária envolve entidades sindicais, universidades e ONGS é efetuado através de Entidades de Apoio ou Fomento associadas com o Movimento Sindical (ADS/CUT), Universidades Incubadoras, Cáritas Pastorais, ONGs: FASE, IBASE, PACS, IMS FEES. No universo do mapeamento estatístico o desenvolvimento regional da economia solidária não é homogêneo, considerando que a distribuição territorial é desigual e combinada, há uma maior concentração dos empreendimentos de economia solidária na região nordeste, com 44%. Os restantes 56% estão distribuídos nas demais regiões: 13% na região Norte, 14% na região Sudeste, 12% na região Centro-oeste e 17% na região Sul (BRASIL, 2006, p. 15).

Uma questão interessante retratada no Atlas da Economia Solidária é que os empreendimentos econômicos solidários estão distribuídos em cooperativas, associações, grupos informais e outros (Sociedades Mercantis etc.). No Brasil, a maior parte dos empreendimentos está organizada sob a forma de associação (54%), seguida dos Grupos Informais (33%) e Organizações Cooperativas (11%) e outras formas de organização (2%). Esta distribuição é diferenciada de acordo com as regiões. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste predominam o perfil nacional, diferentemente das regiões Sul e Sudeste, onde há menor participação das Associações e maior participação de grupos informais (BRASIL, 2006, p. 19).

3 Uma interpretação possível do cenário estabelecido pelo Atlas de Economia Solidária

O próprio Atlas de Economia Solidária fornece um panorama do caráter recente e do desenvolvimento da economia solidária no Brasil. A grande maioria dos Empreendimentos de Economia Solidária teve seu início na década de 90 com gradativa expansão no século atual. A questão da forma de organização também se mostra interessante, pois crescem os grupos informais com maior taxa de crescimento após a metade da década de 90, enquanto as associações apresentam uma redução de sua expansão e o número de novas cooperativas mantém-se relativamente estável. Neste contexto, o crescimento da Economia Solidária parece ter sido homogêneo em todo o Brasil, com destaque para uma maior expansão na região nordeste

Page 182: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

182

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

(BRASIL, 2006, p. 24). Uma possível interpretação deve-se à expansão da economia

informal nos anos 90 provocada pela expansão do neoliberalismo, embora os economistas neoliberais, contra todas as evidências, sempre acusem o Estado e o marco normativo, apesar de toda a correlação entre a destruição do Estado nos anos 90 e o crescimento da economia informal, de acordo com Paul Singer20. Outra abordagem, menos ideológica que a alternativa de mercado apregoada pela direita, é a chamada estruturalista, que define a economia informal como um conjunto de atividades geradoras de renda, de forma desregulamentada do aparelho do Estado e da fiscalização contábil, inspirando-se nas formas alternativas de trabalho utilizadas pelas grandes empresas formais, como o trabalho em tempo parcial ou casual, os contratos de prestação de serviços e a subcontratação (terceirização de bens e serviços), assim muitos empreendedores e trabalhadores informais são considerados integrantes da economia informal moderna (SINGER, 2001).

A informalização da economia dos países periféricos é descrita por Pierre Size em seu Dicionário da Globalização, no qual o autor detecta a influência das políticas internacionais gestadas por órgãos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, assim esses agentes são os grandes responsáveis pela ampliação da economia informal, nos países periféricos. Essas conseqüências são decorrentes das medidas de ajustamento estrutural, com seus severos impactos sobre o emprego formal, em um contexto de recessão e de baixo crescimento econômico. Desta forma, expande-se a economia subterrânea e também toda forma de economia ilícita, que se amplia consideravelmente em face às condições econômicas, que incentivam a adoção de uma economia clandestina, e isso possui uma nítida relação com a aplicação das políticas conduzidas pelos governos nacionais, que se submetem aos ajustamentos sugeridos pelo FMI

20 A análise do PREAL/OIT colide com a visão dos economistas liberais, que afirma que a economia informal não é um setor definido com precisão, pois inclui todas as atividades econômicas extralegais, inclusive a produção e o comércio orientados pelo mercado ou para a subsistência direta. A origem da informalidade é atribuída à excessiva regulamentação da economia pelo Estado. Sob esse ponto de vista, o trabalho informal seria a resposta popular às restrições legais, derrubando com sucesso a barreira estatal legal, implantando a desregulamentação de fato e representando a irrupção das forças do mercado contra a economia engessada pela regulamentação. Neste caso, o empreendedor informal não seria um produtor marginal de baixa produtividade, como afirma o PREAL/OIT, mas um herói econômico que logra sobreviver e mesmo prosperar, apesar da perseguição estatal contra suas atividades. (SINGER, 2001, p. 14).

Page 183: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

183

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

e pelo Banco Mundial. Hoje, o setor informal chega a mais de 50% do PIB e cresce também com o aumento do tráfico de drogas, que se torna mais lucrativo do que o investimento em commodities como o café, que teve seus preços rebaixados pela atuação trustificada de setores como o do agro-negócio internacional, que é largamente controlado por multinacionais agro-alimentares (SIZE, 1997).

Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também demonstram o rápido crescimento da economia informal na América Latina, no período entre 1986 a 1996. Nesses anos, para cada cem (100) novas ocupações criadas na América Latina, oitenta (80) correspondiam a ocupações surgidas nos setores informais da economia clandestinizada, pela destruição do mercado formal de trabalho; fenômeno em grande parte atribuível às desastrosas políticas recessivas de cunho neoliberal, adotadas como modelos de anti-desenvolvimento (estatismo reacionário pró-mercado) e de atendimento das exigências dos credores internacionais, por meio de medidas impostas ao longo da segunda metade dos anos 80 e 90 (SINGER, 2001, p. 15).

No Brasil, como em toda a América Latina, o setor informal alimentou-se do enorme êxodo rural ocorrido entre 1950 e 1980, constituindo um processo gigantesco de saída do homem da zona rural, que envolveu uma diáspora de mais de 35 milhões de pessoas.

Assim sendo, esse processo foi considerado um dos maiores movimentos de deslocamento populacional do mundo. Os dados demonstraram, também, um declínio do emprego formal na população economicamente ativa (PEA) do Brasil, que corresponde a 22,3 milhões de pessoas, equivalente a 49% da população economicamente ativa. Os demais trabalhadores sustentam-se de atividades precárias da economia informal (subterrânea, clandestina). Portanto, esses dados exprimiram uma contínua substituição do trabalho formal pelo informal, com o desemprego atingindo 7 milhões de pessoas em 1998, contra 2 milhões de pessoas no início da década (SINGER, 2001).

O setor informal, no caso brasileiro, sofre influência do fator regional, sendo maior a presença de trabalho informal nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, devido ao fato dessas economias regionais serem menos estruturadas, em detrimento do Sul e Sudeste, em que o nível de industrialização, de estruturação do comércio e dos serviços é mais consolidado (BRASIL, 2006, p. 16).

Esta tendência ao desemprego manifesta-se no maior centro industrial brasileiro (São Paulo), considerado a locomotiva industrial do

Page 184: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

184

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Brasil. Esse quadro é ilustrado pela presença de ambulantes e de perueiros nas ruas da maior cidade do país21.

Esse fenômeno correspondeu a uma maior precarização e informalização do mercado de trabalho, e esse aumento estrutural das taxas de desemprego conduz as pessoas ou grupos em situação de risco, ou excluídos do mercado de trabalho, a buscarem alternativas de sobrevivência, pois o mercado de trabalho formal torna-se, cada vez mais restrito22. Isto deve explicar, em parte, o crescimento homogêneo de grupos informais, no período dos anos 90.

Isto também explica a expansão da economia solidária conforme os três fatores apontados como essenciais para explicar o seu desenvolvimento como efeitos derivados do contexto social de imposição do neoliberalismo impulsionando respostas pragmáticas aos 3 elementos gerados pela mesma: alternativa ao desemprego (45%), complemento da renda dos sócios (44%) e obtenção de maiores ganhos (41%). Dois outros fatores teriam destaque: a possibilidade de gestão coletiva da atividade (31%) e condição para acesso a crédito (29%) Essa situação modifica-se de acordo com várias regiões. Nas regiões Sudeste (58%) e Nordeste (47%) a alternativa ao desemprego é o motivo mais citado. Por sua vez, na região Sul, os motivos mais citados são a possibilidade de obter maiores ganhos (48%) e fonte complementar de renda (45%). Nas regiões Norte e Centro-Oeste, o principal motivo citado é o complemento de renda (46% e 53% respectivamente) (BRASIL, 2006, p. 26).

Devido a este crescimento estão associados, nos empreendimentos econômicos solidários, mais de 1 milhão e 250 mil homens e mulheres, resultando em uma média de 84 participantes por Empreendimentos de Economia Solidária. A este conjunto agrega-se mais 25 mil trabalhadores e trabalhadoras participantes que, embora não sócios, possuem algum vínculo com os Empreendimentos de Economia Solidária. (BRASIL, 2006, p. 28).

21 É muito grave a dimensão e a contínua expansão desse tipo de atividade, envolvendo hoje quase metade dos ocupados que trabalham e/ ou moram em São Paulo. A situação é visível pela quantidade de vendedores-ambulantes e de pontos fixos, que em muitas ruas ocupam a maior parte das calçadas-, pela quantidade de pessoas revirando os depósitos de lixo, pela grande oferta de empregadas domésticas e faxineiras e, mais recentemente, pelo advento do transporte clandestino. Este último merece uma referência especial, pois a categoria dos perueiros, segundo a Associação de Perueiros de São Paulo, já ultrapassou o número de 30.000, ocupando um espaço importante aberto pela desregulamentação proposital do transporte urbano realizada durante o mandato dos prefeitos Paulo Maluf (1993-96) e Celso Pitta (1997-2000) (SINGER, 2001).22 Cf. Projeto de desenvolvimento solidário. CUT. Seminário regional economia solidária e sindicalismo. 04 e 05 de agosto/99, Florianópolis. Escola Sul- CUT, p. 4.

Page 185: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

185

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

A partir dessas constatações, ocorre uma inserção produtiva diferenciada das mulheres em relação aos homens, num processo descrito como feminização da força de trabalho; esse processo não deve desconsiderar a dimensão da emancipação feminina, porém não se deve dissociá-lo da lógica difusa que se insere nos processos dentro das dinâmicas mais amplas incorporadas ao sistema de acumulação capitalista23. Essa tendência de feminização da força de trabalho capitalista não se manifesta ainda, de acordo com os dados do Atlas da Economia Solidária; no conjunto dos participantes associados aos empreendimentos de Economia Solidária, a participação relativa dos homens é superior a das mulheres (64% e 36%, respectivamente). Na região Sul, a participação relativa dos homens é superior à média nacional (71%), enquanto que, na região Centro-Oeste, a participação das mulheres é superior à média nacional (41%) (BRASIL, 2006, p. 30).

Outra amostragem retratada pelo Atlas da Economia Solidária é que 50% dos empreendimentos atuam exclusivamente na área rural, 33% atuam exclusivamente na área urbana e 17% têm atuação tanto na área rural como na área urbana. Na região Sudeste, a maioria, abrangendo 60%, trabalha na área urbana. Já nas regiões Norte e Nordeste, a participação dos Empreendimentos de Economia Solidária, que atuam exclusivamente na área rural, está acima da média nacional (57% e 63% respectivamente) (BRASIL, 2006, p. 34).

O tipo de produção pertencente à economia solidária é majoritário no setor agropecuário, extrativismo, pesca (42%), alimentos e bebidas (18,3%) e diversos produtos artesanais (13,9%) (ATLAS, 2006, p. 35).

O desenvolvimento da economia solidária, na região Sudeste, deve sugestivamente estar correlacionada com a retração do mercado de trabalho, assim como ao processo de acentuação do êxodo rural devido à concentração fundiária, precarização e à mecanização das atividades laborais, dentro do espectro da monocultura exportadora nas suas múltiplas manifestações (cana, soja, café, laranja, etc). Porém, devido ao valor agregado dos produtos, já se manifesta o caráter desigual das atividades econômicas, pois os

23 É evidente que a ampliação do trabalho feminino no mundo produtivo das últimas décadas é parte do processo de emancipação parcial das mulheres, tanto em relação à sociedade de classes quanto às inúmeras formas de opressão masculina, que se fundamentam na tradicional divisão social e sexual do trabalho. Mas - e isso tem sido central - o capital incorpora o trabalho feminino de modo desigual e diferenciado em sua divisão social e sexual do trabalho. Vimos, anteriormente, com base nas pesquisas referidas, que ele faz precarizando com intensidade maior o trabalho das mulheres. (ANTUNES, 2000, p. 109).

Page 186: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

186

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

produtos relativos ao crédito e finanças, com valor médio mensal 1628,5% superior à média geral dos produtos organizados, por tipo de atividade, os produtos da mineração com 145,1% e os produtos industrializados com 126,6%. Cabe destacar que, embora os produtos artesanais e da produção têxtil e confecção sejam citados por muitos Empreendimentos de Economia Solidária, o valor médio mensal da sua produção é relativamente baixo em relação aos demais. As atividades abrangem serviços relativos a crédito e finanças (1658,5%), produção mineral (diversos-145%), produção industrial (diversos-126,6%), produção e serviços de Alimentos e Bebidas (98,0%), produção agropecuária, Extrativismo e Pesca (97,9%), prestação de serviços (diversos-72,9%), produção de Fitoterápicos, Limpeza e Higiene (33,2%), produção de Artefatos artesanais (33,0%), Serviços de Coleta e Reciclagem de materiais (28,7%), Produção Têxtil e confecções (25,9%), produção e serviços diversos (64,1%) (BRASIL, 2006, p. 37).

Assim, as atividades de indústria e finanças, embora pequenas quando comparadas aos empreendimentos de outros segmentos econômicos, representam uma enorme concentração de renda em relação às outras atividades mais citadas, mas representam uma pequena percentagem do ponto de vista econômico. Os produtos das atividades econômicas dirigem-se preferencialmente para o espaço local, 56% destes empreendimentos da economia solidária afirmaram vender ou trocar produtos e serviços no comércio local comunitário e 50% em mercados/comércios municipais. Apenas 7% dos Empreendimentos de Economia Solidária afirmaram que o destino de seus produtos é o território nacional e 2% realizam transações com outros países (BRASIL, 2006, p. 41).

Outro aspecto importante é o de que os Empreendimentos de Economia Solidária (38%) compreendem 16% de empreendimentos, que estão em situação deficitária, ou seja, não obtiveram faturamento suficiente para pagar as suas despesas, e 33%, embora não obtendo sobras, conseguiram pagar as despesas realizadas. Outro dado é que a porcentagem de 13% dos Empreendimentos de Economia Solidária não são organizados com vistas à obtenção dos resultados financeiros ou não informaram estes procedimentos. (BRASIL, 2006, p. 41).

O quadro de obtenção de sobras pelos Empreendimentos de Economia Solidária também é desigual, pois a maior parte das sobras é obtida por empreendimentos de economia solidária do Sul e Norte, bem acima da média nacional com (48% e 40% respectivamente), enquanto que as regiões Centro-Oeste (33%), Nordeste (37%) e Sudeste (35%) estão abaixo da média (BRASIL, 2006, p. 42).

Page 187: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

187

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

Talvez, a explicação esteja na composição do tipo de atividade econômica focada em cada região, o que exigiria uma análise regional das atividades para entender o perfil desigual da distribuição de atividades econômicas, e mesmo para apreciar o desempenho das diversas atividades econômicas, visando ao entendimento da maior obtenção de sobras e da maior ou menor agregação de valor da pauta de produtos principais, de cada atividade dos vários ramos da economia solidária. Em parte, tal análise poderia ser empreendida pela distribuição das atividades econômicas por municípios, constante nos mapas 16, 17, 18, 19, 20, 21 do referido Atlas (BRASIL, 2006, p. 43).

A renda gerada pelos empreendimentos foi fornecida por 8870 (59,3%) dos empreendimentos. Deste total, 50% apresentaram remuneração com valor até meio salário mínimo. Em 26,1%, a remuneração é de meio salário mínimo, totalizando 76,1%. Este dado deve ser compreendido à luz das motivações que originaram os Empreendimentos de Economia Solidária, pois para muitos empreendimentos a razão de sua existência está na possibilidade de complementação de renda dos associados.

Considerando a situação regional, a região Sul apresenta uma participação proporcionalmente menor em relação à média nacional nas faixas inferiores de renda, diferentemente da região Nordeste, onde a participação está acima da média nacional (BRASIL, 2006, p. 43).

Para a caracterização das práticas de autogestão, é fundamental estabelecer critérios que identifiquem o nível de participação dos sócios dentro da edificação da gestão coletiva dos empreendimentos de economia solidária. Nos números do Atlas constatou-se que 79% dos empreendimentos de economia solidária realizavam assembleias ou reuniões com peridiocidade de até 3 meses, sendo que 49,2% realizam assembleias ou reuniões mensalmente, 10,5% semanal ou quinzenalmente e 11,2 bimestral ou trimestralmente. Na região Nordeste, o destaque está na participação na peridiocidade mensal (64,7%) e na região Sudeste, a peridiocidade semanal ou quinzenal (21,1%) está acima da média nacional. Nas regiões Sul e Centro-Oeste, a periodicidade anual ou superior destaca-se em relação à média nacional (24,9% e 28,0% respectivamente) (BRASIL, 2006, p. 44).

Destaca-se, também, a participação dos sócios e sócias, principalmente nas decisões cotidianas e na escolha de direção. Destaca-se que 66% dos empreendimentos de economia solidária afirmam existir mecanismos de participação nas decisões cotidianas e 62% afirmam existir mecanismos de participação para eleição de diretoria, 62% afirmam que a prestação de contas é realizada em assembleias e reuniões e 60% afirmam que os sócios

Page 188: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

188

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

e sócias têm acesso aos registros e informações nos Empreendimentos de Economia Solidária (BRASIL, 2006, p. 45).

As dificuldades de constituição da economia solidária dentro do modo de produção capitalista periférico dependente, situado também dentro de perspectivas regionais de desenvolvimento assimétrico, são constatáveis, pois, por exemplo, 61% têm dificuldades na comercialização, 49% para acesso a crédito e 27% não tiveram acesso a acompanhamento, apoio ou assistência técnica. A região Norte está acima da média nacional em todos os itens (68% comercialização, 54% crédito e 34% apoio ou assistência). A região Nordeste destaca-se pela dificuldade de crédito (58% dos Empreendimentos de Economia Solidária) e a região Centro-Oeste, pelo não acesso ao apoio ou à assistência técnica (35%) (BRASIL, 2006, p. 46).

A nova economia pronuncia-se também no mundo da práxis, da ação cotidiana, visando resultados, no caso sob a condução de uma ética prática cooperativa, inclusive no sentido da intercooperação entre os empreendimentos. Estes empreendimentos efetuam no mínimo um dos seguintes atos: aquisição de insumos dos próprios associados ou de outros empreendimentos econômicos solidários e comercialização/ troca de seus produtos ou serviços com outros empreendimentos da economia solidária. No Brasil, mais de 5500 empreendimentos (37%) afirmam estar nesta situação. Cabe destacar a Região Centro Oeste, onde 41% dos Empreendimentos de Economia Solidária afirmam efetuar algum ato cooperativo com outros empreendimentos de economia solidária, enquanto no Sudeste somente 26% (abaixo da média nacional) (BRASIL, 2006, p. 49).

O envolvimento com a comunidade, com a sociedade civil, e a preocupação com o consumo solidário, perfazendo uma integração entre produção, distribuição e consumo, itens que revelam a necessidade do englobamento destas esferas para uma transcendência ainda que residual do modo de produção capitalista, a transformação não residual e periférica exige esforços de mudança da estrutura social de forma bem ampliada, o amadurecimento do capitalismo e da malha institucional, assim como singularidades culturais podem inclusive denotar maior ou menor permeabilidade a ação comunitária e de movimentos sociais, como pode ser o possível caso da região nordeste, apesar da ampla mudança da estrutura urbana e na diversificação econômica ocorrida na última década, especialmente nas capitais daquela região. Na amostragem estatística transparecem estas associações.

Do total de empreendimentos de economia solidária afirmam que se preocupam com a qualidade de vida dos consumidores de seus produtos

Page 189: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

189

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

e serviços e 58,2% têm compromisso social ou comunitário. 59,4% participam de movimentos sociais e solidários e 42,2% de redes ou fóruns de Economia Solidária. Avaliando a situação regional, constata-se que no Sul e no Sudeste, os empreendimentos de economia solidária participam acima da média nacional das redes ou fóruns de Economia Solidária (51,5% e 49,0% respectivamente) No Nordeste, os Empreendimentos destacam-se pela participação nos movimentos sociais e populares (66,1%) (BRASIL, 2006, p. 50).

A malha institucional de entidades de Apoio e Fomento à Economia Solidária verifica uma descentralização sinalizada pelos dados, de forma que a participação nas regiões é semelhante à participação relativa dos empreendimentos, com maior concentração na região Nordeste (51%) (BRASIL, 2006, p. 55).

A metade destas agências tem abrangência municipal (37%) ou intermunicipal (20%). As Entidades, cujo território abrange o território nacional, correspondem a 10% do total (BRASIL, 2006, p. 56).

Outra questão simbiótica deve remeter ao espectro legal formal do cooperativismo, que está centrado na Lei cooperativa que é a lei 5764/7124, parcialmente alterada pela lei 6981, de 30 de março de 1982 (BRASIL, 2006, p. 135), que hoje rege a política nacional do cooperativismo. Desta forma, a lei foi constituída no quadro do período militar, que visava fortalecer o cooperativismo agrário25, suportado por grandes proprietários, não foi projetada em um contexto de participação comunitária ou de movimentos sociais, mas em um período refratário às demandas sociais sob os anos de chumbo da ditadura militar brasileira26. 24 No Brasil, o conceito legal de cooperativa está no art. 4º da Lei 5764/71, de 16 de dezembro de 1971: “As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados”. (LIMA NETO, 2004, p. 134).25 Segundo o sociólogo João Elmo Schneider, o cooperativismo, ao longo dos anos, confinou-se, especialmente, no setor primário, tendo se relegado à integração produção-consumo, ou seja, as cooperativas de consumo pioneiramente sedimentadas nos centros urbanos tinham a clara função de baratear a aquisição de produtos alimentícios. No entanto, sucumbiram ao poderio das grandes redes de supermercados nascidas com o mercado consumidor de massas sedimentado ao longo da industrialização e a modernização capitalista do país principalmente com a internacionalização da economia nos anos 70 (SCHNEIDER, 1981, p. 14).26 Como exemplo contemporâneo, desta dinâmica formal, está o novo Código Civil de 2002, que instituiu a indivisibilidade do fundo de reserva, visando fortalecer o patrimônio da cooperativa para os credores através do art. 1094, ampliando a previsão do art. 28, I da lei cooperativa, que estabelecia. O fundo para a garantia da solvência de eventuais passivos, ou mesmo para a realização de investimentos nas melhorias das atividades da cooperativa,

Page 190: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

190

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

A responsabilidade dos cooperados, no artigo 1095, que pode ser limitada ao valor de suas cotas do capital social ou ilimitada, sendo que em ambos os casos a responsabilidade será subsidiária, nos termos do art. 13 da Lei 5764/71 do Cooperativismo (BRASIL, 2006, p. 177). Talvez o ponto vital das modificações introduzidas pelo novo código civil esteja no II, do art. 1094, que diz que: são características da sociedade cooperativa: II - concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo, pois eliminou o óbice da constituição das cooperativas por 20 membros, o que era próprio da lei criada sob o viés da Lei 5764/71, feita no bojo do incentivo do setor primário como empresa rural ou latifúndio extensivo. Desta forma, considera-se essencial, mais uma vez, utilizar a máxima de que o rótulo jurídico nivelador mais confunde do que identifica, no caso das cooperativas; daí a necessidade do estudo meticuloso do suporte fático27.

O cooperativismo tradicional remete ao espectro formal, não transformador, a sua visão é a da interligação com as redes capitalistas convencionais, constituindo-se em uma forma de arregimentação da escala de redes empresariais, de grande porte, sustentadas pelo aporte legal convencional28. Deste modo, o formalismo legal vigente difere completamente do pluralismo jurídico emancipatório identificado com a proposta transformadora da autêntica economia solidária, que busca a transformação social através da práxis reconhecedora da alteridade do ser humano que edifica a formação ética de cooperativas, associações, entidades comunitárias motivadas pelo conduto material do solidarismo, arregimentando um direito pluralista comunitário e participativo, dito

com a formação do fundo com o valor mínimo de 10% das sobras líquidas, sendo captadas pela dedução de um pequeno percentual do retorno, a quem tem direito a cada cooperado. (CAMARGOS, 2008, p. 176).27 O rótulo jurídico confunde, pois, mais do que identifica, o que é cooperativismo. Sobretudo se quiser distinguir o cooperativismo conservador do renovador. O cooperativismo dos grandes daquele dos pequenos. O cooperativismo dos latifundiários daquele dos sem-terra. O cooperativismo capitalista, do de perfil socialista. A prática efetiva e não a mera etiqueta jurídica é o critério identificador da associação cooperativa, a qual pressupõe as seguintes características: propriedade, gestão e repartição cooperativas. Essas características, e não o registro junto aos “órgãos competentes” são os reais indicadores de uma prática cooperativista, in: (RIOS, 1987, p. 61).28 O óbice, a autogestão torna-se desta forma evidente: Por exemplo, a Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB defende que “o cooperado, através de sua participação ativa, direcione as atividades da cooperativa para os interesses que lhes dizem respeito”. Por outro lado, estabelece que o sistema, através da coordenação nacional, definirá as diretrizes que embasarão a execução da auto-gestão [sic], in: (CRÚZIO, 1999, p. 21).

Page 191: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

191

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

como informal apenas dentro do plano do convencionalismo legal burguês. A exemplificação de tal dilema transparece, pela homogeneização, embora esta não seja clara para a maioria das pessoas integrantes destes movimentos, que buscam apenas a difícil sobrevivência cotidiana, a preservação ou construção de uma identidade através de empreendimentos focados na sua existência, no mundo das necessidades29, dentro de um meio social periférico matizado pela concentração de renda em cenários regionais do Brasil, outra questão é a do vicejamento destas experiências em contextos do capitalismo avançado30. A declaração dos princípios cooperativos de Rochdale, pela doutrina do cooperativismo jurídico tradicional, demonstra a desconexão entre o verniz jurídico e a contextualização histórica31, como o princípio da adesão livre, o controle democrático pelos sócios, a participação econômica dos sócios, autonomia e independência, educação, treinamento e informação, cooperação entre cooperativas (ALMEIDA, 2006) e, na prática, evidencia-se o uso das cooperativas para estruturar práticas neo-escravistas, de subcontratação, nas malhas da terceirização, etc.

Dentro desta orientação, uma série de legislações cooperativas da América Latina tem se adaptado ao contexto social para exprimir um apoio ao cooperativismo popular autêntico (ALMEIDA, 2006), tendo em vista as dificuldades do transplante dos marcos principiológicos cooperativos situados nos moldes culturais eurocêntricos de Rochdale, para o contexto

29 As possibilidades e motivações no interior de cada empreendimento de Economia Popular são diversas, e não se deve querer transformar uma ideologia totalizante (o capitalismo) com outra (o solidarismo). Há que buscar valores neste movimento que permitam uma ampla identificação das ocorrências, para aglomerá-las e, somente então, tentar construir uma nova força política. (SOTO, 2008. p. 19).30 Uma nota ideológica quer exteriorizar. O movimento cooperativista é, muitas vezes, associado à ideia anticapitalista, como uma forma de precedência à sociedade capitalista ou comunista. Não ingressaremos nessa seara, principalmente porque, se a doutrina cooperativista, muitas vezes, traz tal conotação, não se pode afirmar que os cooperativistas, na prática, busquem tal finalidade ideológica. E podemos exemplificar isso por intermédio do movimento cooperativista que mais se desenvolveu no Brasil ao longo do período que antecedeu à Constituição Federal de 1988, o cooperativismo agrícola, cujos membros, fazendeiros, constituem uma classe reconhecidamente conservadora. E mais, as sociedades cooperativas desenvolvem-se muito em países notoriamente capitalistas, como a Inglaterra e os EUA. Ao largo de toda discussão filosófica que cerca o tema, afirmamos que nossa análise restringir-se-á a aspectos normativos, tratados com neutralidade enquanto objetos de outras áreas do conhecimento científico. (BECHO, 1999, p. 83).31 22º) Lei 8.949. de 09-12-1994 acrescentou parágrafo único ao art. 442 da CLT, para declarar a inexistência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados e entre estes e os tomadores de serviços daquelas. (MAUAD, 1999, p. 36).

Page 192: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

192

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

específico das comunidades latino-americanas (SOTO, 2008), como um exemplo desta formulação32. Outro ponto fundamental a ser discutido na questão do cooperativismo tradicional conservador e nas organizações sociais do terceiro setor como um todo é o do reposicionamento, do poder estatal, de maneira que os serviços essenciais deste migrem para o terceiro setor, que gera o marco regulatório legal de desconstrução plena do Estado Social. Neste caso, ocorre a quase total delegação da prestação destes serviços sociais públicos para as entidades constituintes do terceiro setor, como Fundações, OSCIPS, Organizações sociais, cooperativas, etc. Por outro lado, dentro da forma de organização das entidades de apoio e fomento destacam-se organizações vinculadas à forma institucional hegemônica no terceiro setor, como Organizações Não Governamentais com natureza jurídica de associação (46%), com quase metade dos casos. Em seguida, as fundações (13%) e Oscips (organizações da sociedade civil de interesse público) com 12% do total (Atlas, 2006, p. 57). Dentre as atividades desenvolvidas por estas instituições, predominam as de formação (39,5%) e as de articulação/mobilização (34,7%) (BRASIL, 2006. p. 58).

Assim, não se trata de negar o possível e bem-vindo papel suplementar destas instituições, mas a total substituição das políticas públicas estatais por estas entidades captadoras dos fundos públicos com a privatização do planejamento estatal33, por este modelo delegativo, que dentro de sua configuração conservadora, neoliberal, terá por objetivo a cooptação, competição e combate do autêntico modelo associativo, cooperativo autogestionário. Esta visão de subvenção neoliberal da terceira via, sustentada na ideologia do público não estatal, está evidenciada na 32 No caso das cooperativas populares, tendo em vista sua formação comunitária, familiar ou cultural, como regra seus integrantes fazem parte de um grupo restrito e bem determinado por relações pessoais. Não se pode imaginar que uma cooperativa familiar possa ser obrigada a aceitar indivíduos estranhos ao seu núcleo. Exemplificativamente, também não é razoável imaginar artesãs que trabalhem por prazer de convívio, com relações de décadas, obrigadas a aceitar o ingresso de novas mulheres, sem laços afetivos com o grupo. (SOTO, 2008, p. 33).33 Ao contrário do ideário do terceiro setor que proclama o Estado prestador de serviços como antidemocrático e o Estado neoliberal que apenas exerce a regulação como democrática, opinamos que um Estado pode ser radicalmente democrático apenas buscando um engajamento da sociedade civil na discussão e constituição de políticas públicas sem, necessariamente, utilizar-se do chamado terceiro setor para atendimento das demandas de responsabilidade direta do Estado. Ou seja, um Estado pode ser substancialmente democrático, conforme lição já esplanada de Celso Antônio Bandeira de Mello, sem necessariamente privatizar os seus serviços públicos, principalmente os sociais, as entidades sem fins lucrativos, ou mesmo realizar a atividade de fomento junto ao terceiro setor. (VIOLIN, 2006, p. 146).

Page 193: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

193

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

contratualização neoliberal das políticas públicas, pelas reformas de Estado, da América Latina, iniciadas durante a governança neoliberal de Bresser Pereira34. Parte-se, após esta visão multifacética, para as considerações finais.

4 Considerações finais

O quadro revelado demonstra a existência de um grande número de empreendimentos econômicos solidários, sendo que as cooperativas aparecem em pequeno número (11%) em relação aos outros empreendimentos.

A comprovação acontece por meio de dados do estabelecimento de redes de produção calcadas em comunidades nas mais variadas regiões e demonstra a consolidação de setores da economia solidária em nosso país.

A participação democrática, a feminização, a cooperação através da formação de redes, as dificuldades de crédito, de comercialização retratam as dificuldades de um modo de produção ainda residual e periférico. O atrelamento às comunidades e aos movimentos sociais são indicadores fortes da sedimentação destas experiências e das dificuldades que devem ser superadas, porém reforçam as possibilidades de congregação positiva de novos sujeitos coletivos plurais.

A formação de um marco institucional do terceiro setor, formado por ONGS, OSCIPS e fundações comprometidas com a formação, apoio e fomento destas organizações demonstra também o estabelecimento de parcerias institucionais, que amadurecem este modo de produção, assim como podem torná-lo passível de cooptação, por parte de modelos neoliberais de substituição do Estado em prol de metas de reforma financeirizada do Estado.

Porém, apesar do risco desta leitura, não se pode negar a importância da consolidação da economia popular solidária neste novo momento de ruptura com parte da ortodoxia neoliberal de outrora, com o fim das privatizações e a volta de iniciativas de fomento estatal para os setores sociais vulneráveis.

34 Então a figura do contrato de gestão ocupa lugar de destaque na estratégia administrativa preocupada em alterar o perfil do Estado. A relação entre núcleo estratégico do Estado e demais setores deixa de ser disciplinada pela lei, na qual impera uma relação de mando, de subordinação, e passa a ser disciplinada pelo contrato, no qual impera uma relação de coordenação, de cooperação, sendo que, por intermédio do contrato de gestão, o núcleo estratégico do setor do Estado apresenta aos demais núcleos os objetivos que devem ser cumpridos. (ROCHA, 2006, p. 48).

Page 194: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

194

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Por outro lado, devem ser estudadas as razões que determinam que o protótipo maior de autogestão e coletivismo representado no imaginário utópico de superação do capitalismo, as cooperativas, não correspondem ao grosso da malha associativa retratada no Atlas da Economia Solidária (predomínio de associações e empreendimentos informais, conforme os dados do Atlas), reforçando a suspeita das barreiras legais, culturais e sociais para a formatação do ideal cooperativista autêntico e popular em detrimento do cooperativismo de matriz tradicional associado ao capitalismo selvagem vigente em nosso país, que abrange desde as gato e fraudo cooperativas, do agronegócio do setor primário aos processos da terceirização no setor de serviços.

Entretanto, as mudanças sinalizam para importantes metamorfoses, que demonstram a importância destas instâncias de caráter cooperativo, da economia solidária e de sua interligação com movimentos sociais, como os sem-terra, outros movimentos populares e a extensão universitária, hoje moldada pela perspectiva da pesquisa-ação, implicando na indissociabilidade destas esferas, assim como devido à constituição de instâncias governamentais direcionadoras de políticas públicas por secretarias governamentais de economia solidária, como a Senaes, que apesar de não receber os recursos na escala desejada, identifica outra matriz alternativa, a via de mercado fomentada no período neoliberal, que possuía nítida interligação com uma malha associativa gestada pela ideologia neoconservadora da terceira via e do terceiro setor manipuladora do bem intencionado voluntariado e manufaturadora de um comunitarismo feito de cima para baixo, para isentar prestações estatais no campo social e de fomento ao trabalho e ao emprego, que deveriam ser remetidos a via da precarização e flexibilização.

Hoje, importantes setores da economia solidária de cunho popular e as cooperativas populares, de cunho emancipatório, crescem no âmbito de políticas públicas capazes de fomentar setores excluídos da sociedade civil, na busca de uma cidadania material e de uma outra economia alternativa, ainda que de forma residual, a economia capitalista do globalitarismo neoliberal do final do século XX.

Referências

ALMEIDA, Marcus E. M. de; BRAGA, Ricardo P. (Coord.). Cooperativas à luz do Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

Page 195: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

195

Economia Popular Solidária e sua Configuração no Atlas da Economia

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre afirmação e a negação do trabalho. 3. ed. São Paulo: Editempo, 2000.

ARANTES, Paulo E. Esquerda e direita no espelho das ONG. In: ABONG Cadernos da ABONG. ONGs, identidade e desafios atuais. n. 27. São Paulo: Editora Autores Associados, 2000. p. 10-11.

BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999.

BRASIL; Ministério do Trabalho e Emprego; SENAES. Atlas da Economia Solidária no Brasil. Parte I. II. III e IV 2006. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/sies_atlas.asp> . Acesso em: 05 jun. 2010.

CAMARGOS, Ana Amélia Mascarenhas. Direito do Trabalho no Terceiro Setor.São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1

CATTANI, Antonio D. A outra economia: os conceitos essenciais. In: CATTANI, Antonio D. (Org). A outra economia. Porto Alegre: Veraz, Editores, 2003.

CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza. Impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Moderna, 1999. 320p. Tradução de: the Globalization of Poverty: Impacts of IMF and World Bank Reforms.

CIMADAMORE, Alberto D. ; CATTANI Antonio D. Produção da pobreza e desigualdade na América Latina. Porto Alegre: Tomo, 2007.

CROUZET, Maurice. A Época contemporânea. O desmoronamento dos impérios coloniais e o surto das ciências e das técnicas. São Paulo: Difusão européia do livro, 1963.

LIMA NETO, Arnor. Cooperativas de Trabalho. Intermediação de mão-de-obra e subtração de direitos dos trabalhadores. Curitiba: Juruá, 2004.

LISBOA, Armando de Melo. Mercado e economia solidária. In: SCHERER-WARREN, Ilse (Org.) Transformações Sociais e Dilemas da Globalização: um diálogo Brasil/Portugal. São Paulo: Cortez, 2002. p. 123.

MAUAD, Marcelo. Cooperativas de trabalho sua relação com o Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1999.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e Questão Social. Crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.

PETRAS, James. Armadilha Neoliberal e alternativas para a América Latina. São Paulo: Xamã, 1999.

Page 196: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

196

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

RIOS, Gilvando Sá Leitão. O que é cooperativismo. São Paulo: Brasiliensi, 1987.

ROCHA, Sílvio F. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

SCHNEIDER, João Elmo. “O cooperativismo agrícola na dinâmica social do desenvolvimento periférico dependente: o caso brasileiro,” In: LOUREIRO, Maria Rita (Org.). Cooperativas agrícolas e capitalismo no Brasil. São Paulo: Cortez, 1981.

SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998.

______. Uma utopia militante. Repensando o socialismo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

______. “Cooperativismo e Sindicatos no Brasil”. Texto constante no Projeto de desenvolvimento solidário. CUT. Seminário regional economia solidária e sindicalismo. 04 e 05.08.1999, Florianópolis. Escola Sul - CUT.

______.O trabalho informal e a luta da classe operária. In: JAKOBSEN, Kjeld; MARTINS Renato; DOMBROWSKI, Osmir (Org.). Mapa do Trabalho Informal. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2001. p. 11-24.

______. Economia Solidária, In: CATTANI, Antonio D. (Org.). A Outra Economia. Porto alegre: Veraz editores, 2003.

SIZE, Pierre. Dicionário da Globalização, A Economia de “A” a “Z”.Florianópolis: Obra Jurídica, 1997.

SOTO, Luis Eduardo Muñoz. Cooperativismo e Direito Identidade Latino-Americana das Cooperativas Populares. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito)–Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.

SROUR, Robert Henry. Poder, cultura e ética nas organizações. São Paulo: Campus, 1997.

VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

Page 197: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

197

POLÍTICAS PÚBLICAS E A AVENTURA DA COMERCIALIZAÇÃO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA:

UMA EXPERIÊNCIA EM LONDRINA

Benilson BorinelliLuís Miguel Luzio dos Santos

Sinival Osório Pitaguari

1 Introdução

Vivemos num tempo dominado por contradições que colocam em questão o próprio conceito de progresso e de desenvolvimento. Acreditou-se, por muito tempo, que o crescimento e o desenvolvimento das forças produtivas levariam a um mundo melhor, acabando com a miséria, as contradições entre capital e trabalho, libertando-nos para atividades superiores, como a arte, a reflexão e o convívio social. Porém, o tão afamado “reino da felicidade” nunca chegou perto de se concretizar e, mais ainda, nunca esteve tão desacreditado como nos tempos atuais, em que as utopias deixaram de povoar os desejos mais íntimos da raça humana.

Assim o aprofundamento dessa crise abriu espaço para o surgimento e avanço de outras formas de organização do trabalho, consequência, em grande parte, da necessidade dos trabalhadores encontrarem alternativas de geração de renda. Experiências coletivas de trabalho e produção vêm se disseminando nos espaços rurais e urbanos, através das cooperativas de produção e consumo, das associações de produtores, redes de produção, consumo e comercialização, instituições financeiras voltadas para empreendimentos populares solidários, empresas de autogestão, entre outras formas de organização que se enquadram no mesmo “guarda-chuva” conceitual conhecido genericamente por economia solidária (ES).

Londrina é um município pólo regional localizada no norte do Paraná, cuja origem esteve ligada a expansão da economia cafeeira na década de 20 do século passado, o que contribuiu para que a cidade crescesse muito rapidamente, chegando a atingir atualmente aproximadamente meio milhão de habitantes, e possuir uma diversificada rede de serviços comerciais e financeiros, agroindústrias, escolas, universidades, modernos hospitais, etc. Porém, Londrina sofreu muito com o êxodo rural na região provocado pela crise de erradicação do café e a conseqüente diversificação e mecanização da agricultura na segunda metade da década 70. Foi

Page 198: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

198

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

prejudicada também pela crise econômica nacional nos anos 80 e 90. A conseqüência foi o surgimento de inúmeras habitações irregulares e um alto índice de desemprego, e apesar da recuperação obtida na última década, o percentual de pobreza das famílias londrinenses é de 7,59% (11.115 famílias). (PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE LONDRINA, 2008).

Em resposta a esse contexto de exclusão social e de falta de alternativas, desenvolveu-se na Universidade Estadual de Londrina (UEL), em parceria com o Centro Público de Economia Solidária (CPES) de Londrina e a Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Solidários (INTES), um projeto de extensão denominado Rede de Comercialização e Apoio a Produtos e Serviços de Organizações de Socioeconomia (PROSOL). Ele possui como objetivo geral a concepção e a operacionalização de uma rede de comercialização e apoio a produtos e serviços de organizações de socioeconomia da região de Londrina. Para a execução dessa tarefa, foram traçadas, inicialmente, duas metas básicas. A primeira concentra-se no levantamento de experiências de redes de comercialização no município, em outras cidades países. A segunda meta fundamenta-se na criação e operacionalização da rede. Para o pleno cumprimento desta meta, serão realizados estudos para a execução de um planejamento estratégico participativo, que englobe a estrutura formal, jurídica e dos processos da rede. Concomitantemente à criação da rede, será elaborado um site, que terá como finalidade a divulgação da rede e a disseminação das atividades e dos princípios da socioeconomia de Londrina.

Integram o projeto professores, recém-formados e graduandos dos cursos de Administração, Ciências Econômicas e Serviço Social, todos atuantes na UEL. A duração do PROSOL foi de 12 meses, com início em dezembro de 2008 e término em novembro de 2009. Este artigo é uma análise dos primeiros seis meses do projeto PROSOL.

Ainda que o período analisado seja curto, alguns conflitos e questões deixam clara a complexidade de trabalhar em ambientes que se almejam democráticos e economicamente viáveis, o que pôde ser sentido nos embates institucionais, decorrentes das diferentes culturas, percepções, interesses e até mesmo concepções do que vem a ser ES. Os conflitos acirraram-se no grau de concessões entendidas como necessárias para que ao mesmo tempo se preservem os princípios da ES e se viabilizem as iniciativas dentro do mercado capitalista.

Para o desenvolvimento do artigo foram, inicialmente, analisados dados documentais, além de entrevistas junto aos diferentes núcleos e instituições envolvidas no projeto, no sentido de tentar compreender o ambiente em que se pretende aplicar a transferência de tecnologias. A

Page 199: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

199

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

troca de saberes demonstra-se fundamental para a efetividade das ações, já que o conhecimento científico não se sustenta num ambiente dominado por tamanha complexidade, obrigando a um exercício permanente de humildade e de reflexão sobre as próprias certezas, havendo a necessidade de um constante diálogo entre o conhecimento científico e o popular.

Este artigo está estruturado em duas principais partes. Na primeira, são expostos alguns conceitos e compreensões das relações entre ES, comercialização e a idéia de redes. A segunda parte é dedicada a dimensões que sintetizam a experiência vivenciada, onde expomos a experiência da “Colomba Solidária”, os desafios e alternativas a questões relativas às políticas públicas de ES e à produção e comercialização desse modelo.

2 A Economia Solidária, comercialização e redes

Socioeconomia solidária, segundo Marcos Arruda (2003), pode ser definida como um sistema socioeconomico aberto, fundado nos valores da cooperação e da partilha, da reciprocidade e da solidariedade e organizado de forma autogestionaria a partir das necessidades, desejos e aspirações da pessoa, comunidade, sociedade e espécie, com o fim de emancipar sua capacidade cognitiva e criativa e libertar seu tempo de trabalho das atividades restritas à sobrevivência material de modo a tornar viável e sustentável propriamente humano, social e de espécie. O que elucida o sentido da socioeconomia é uma nova economia cujo objetivo é responder às necessidades sociais e humanas, ou também atender à dupla demanda na reprodução simples (sobrevivência) e na reprodução ampliada da vida (crescente bem estar individual, comunitário e social).

Na acepção do autor a terminologia socioeconomia solidária se distingue da economia solidária devido ao seu caráter muito mais social e generalista. De acordo com Arruda (2003), ela apresenta o sentido idêntico a proposta da humano-economia, feita pelo economista tcheco Eugen Loebl (1978): uma economia a serviço do humano. Embora o presente projeto tenha como referência de trabalho o conceito de socioeconomia de Arruda, fundamentaremos a presente discussão, sobretudo, na economia solidária por entender que institucional e teoricamente ela é a forma de socioeconomia mais desenvolvida e adotada e, principalmente, que as iniciativas de economia solidária podem ser incluídas entre a diversidade de experiências abarcadas pela socioeconomia.

A ES surge como modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, casando o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de

Page 200: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

200

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

produção e distribuição. A lógica da ES é a oposição à ditadura do capital e ao poder ilimitado que o direito de propriedade proporciona, excluindo e controlando vidas, além dessas mesmas desigualdades abalarem a própria estrutura democrática em que se baseiam as sociedades modernas, criando-se um mundo polarizado e insustentável.

Os princípios básicos dos núcleos de produção de ES são a priorização da solidariedade à competição, e a preservação dos postos de trabalho como primazia à lucratividade. Os trabalhadores se dispõem a fazer sacrifícios individuais a favor do bem coletivo. Ajuda e confiança mútuas são condições básicas para o sucesso de qualquer empreendimento dessa natureza, também o são a adesão voluntária aos princípios da solidariedade, da igualdade, da democracia e da responsabilidade, são esses atributos que levam os trabalhadores a penetrar no campo da cultura e da ética.

No que diz respeito aos benefícios do desenvolvimento das iniciativas de ES, Sousa Santos (2002, p. 37) destaca que elas:

[...] ampliam a democracia participativa, estendendo o principio de cidadania à gestão das empresas. Semelhante ampliação da democracia tem efeitos emancipadores evidentes, por cumprir a promessa de eliminação da divisão que impera hoje entre a democracia política, de um lado, e o despotismo econômico do outro.

As modalidades que compõem a ES são variadas, desde experiências provenientes das bases, como a união de trabalhadores vitimados pelo desemprego, em pequenas unidades produtivas, ou pequenos produtores que se unem para comprar e vender em conjunto, além de diferentes formas de agricultura familiar, redes de comércio justo, incubadoras de empresas, clubes de troca e de microcrédito, entre outras.

As organizações de ES apresentam, como uma de suas vantagens, o seu processo de decisão que, em vez de individual é coletivo, tendendo a ser mais democrático e participativo, visto que conta com a experiência de todos os participantes e não fica restrito à imposição de uma minoria. Com isso tende-se a criar um maior comprometimento de todos. Por outro lado, as decisões, por sua natureza democrática, tendem a ser mais lentas, o que muitas vezes pode tornar-se uma barreira a ser trabalhada.

As iniciativas de ES só poderão ser realmente competitivas se atuarem de forma conjunta, garantindo ganhos de escala e integrando-se complementarmente em forma de rede. Ao criarem-se conexões entre diferentes unidades organizacionais, tem-se a possibilidade de criar uma estrutura verticalizada de produção e distribuição, excluindo-se

Page 201: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

201

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

atravessadores e agregando-se ganhos de produtividade e escala. Porém, além dessas possíveis melhoras, as redes ainda possuem outros potenciais, nascidos da integração e/ou parceria com centros de pesquisa, assessorias técnico-científicas, centros de formação continuada de trabalhadores (onde os sindicatos têm exercido papel importante em apoio a trabalhadores que assumem o comando de empresas falidas), como também na procura do desenvolvimento de um quadro de especialistas capazes de inovar estando ao mesmo tempo sintonizados com as necessidades do mundo moderno (SINGER, 1998).

Aqui, também a universidade tem um papel estratégico para ES com o seu potencial para desenvolver conhecimentos e tecnologias apropriadas a esses empreendimentos, algo que estaria mais próximo do que se vem denominando de tecnologia social. O desafio que se apresenta é restringir o uso das tecnologias convencionais e substituí-las por tecnologias sociais. As tecnologias convencionais não são adequadas à inclusão social, seu principal objetivo é maximizar o lucro privado, característica essa que limita a sua eficácia para a inclusão social. Ela maximiza a produtividade em relação a mão-de-obra, ou seja, quanto maior a quantidade utilizando o menor número de funcionários, mais produtiva ela é. Além disso, as tecnologias convencionais geram e são geradas pela concentração econômica e política, pois as altas tecnologias existentes estão no poder de poucos e grandes capitalistas, enquanto os pequenos empresários ficam sempre atrasados, defasados, utilizando técnicas que foram descartadas pelos grandes empreendimentos. Por último, as tecnologias convencionais, em regra, promovem processos produtivos ambientalmente insustentáveis seja porque não considera a degradação do meio ambiente como custo, seja porque foi concebida dentro de uma lógica atrelada ao consumismo.

Quase que por exclusão, tecnologia social é “um conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida.” (INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL, 2004, p. 6). Ela deve ser adaptada ao reduzido tamanho físico e financeiro; não discriminatória; liberadora do potencial e da criatividade do produtor direto; orientada para o mercado interno de massa; liberada da diferenciação entre patrão e empregado. E principalmente deve ser competitiva, pois só assim os empreendimentos autogestionários serão viabilizados economicamente e serão uma alternativa real de inclusão social para a população marginalizada. (DAGNINO, 2004).

Page 202: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

202

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

As possíveis contribuições das tecnologias convencionais para as tecnologias sociais ainda é um debate aberto e encerra diversos conflitos e dilemas. Não podem ser ignorados fatos como o de as novas tecnologias convencionais (incorporação da microeletrônica e informática nas máquinas-ferramentas) viabilizarem a produção em escalas cada vez menores (SHIMA, 2006). A questão é em que medida a tecnologia social pode se apropriar desses conhecimentos, quais as precauções, as implicações e os riscos?

A universidade desempenha um papel central na busca de respostas a essas questões. Como Dagnino (2004) defende, para que tecnologia social vingue o papel das universidades como geradora e disseminadora de tecnologia e conhecimento é essencial. Entretanto, na prática não são poucas as barreiras a serem superadas para que isso aconteça. Ainda prevalece na universidade uma visão positivista de ciência, segundo a qual a ciência se desenvolve por suas próprias leis, e que a única forma de fazer isso é isolada da sociedade.

Outra alternativa à viabilidade das experiências de ES é a sua atuação em ramos específicos, nichos que não necessitem de escala de produção para se viabilizarem, apoiando-se na diferenciação e na customização de produtos e serviços como estratégia de desenvolvimento local e comunitário.

Singer (1998) defende a necessidade de algum tipo de mercado, portanto de competição mercadológica, mesmo dentro de um modelo dominado pelos princípios solidários de organização. Segundo o autor:

Será importante que haja várias empresas competindo pelos consumidores em cada ramo de produção, dentro do setor, para que cada uma delas seja estimulada a melhorar a qualidade e baixar os custos. (1998, p.123).

Singer, no entanto, reforça que esta deverá se dar entre semelhantes. Todavia, o autor defende a possível necessidade de um mercado protegido inicialmente da competição externa, até poder garantir ganhos de eficiência e aprendizado necessários ao enfrentamento do mercado externo.

Singer (2002) defende a necessidade do Estado como incentivador dos diferentes modelos de ES, mediante a disponibilização de linhas de crédito especiais e de medidas de desenvolvimento tecnológico, assim como a prioridade de compra dos produtos e serviços das redes de ES de acordo com as necessidades de abastecimento do Estado. Entretanto, essas estratégias privilegiadas não devem permanecer infinitamente, a ponto de

Page 203: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

203

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

gerar dependência excessiva e acomodação, mas escalonadas no tempo de forma a garantir um processo de desenvolvimento.

Adicionalmente, as redes podem se beneficiar do apoio oferecido pelas universidades. A academia pode capacitar e instrumentalizar essas iniciativas, garantindo-lhes níveis mais elevados de eficiência e eficácia capazes de consolidar a sua efetivação. Um exemplo disso são as incubadoras de ES (OLIVEIRA; ALVES; PONTELO, 2007).

Além das diferentes modalidades e iniciativas que compreendem o vasto universo das organizações de ES, destaca-se, também, o modelo defendido por Euclides Mance, denominado por ele de Redes de Colaboração Solidária. A concepção da idéia de rede parte do princípio de que núcleos de produção que operam isoladamente tendem a fracassar, pois não conseguem superar a concorrência capitalista. A alternativa das redes de colaboração solidária é o trabalho em conjunto, mediante a interligação com movimentos de consumo e produção, sendo de suma importância a verticalização da produção, ou seja, o complemento entre células produtivas: se uma produz determinado bem final, demanda insumos que podem ser produzidos por outra célula, num processo cadenciado.

[...] unidades produtivas que operam isoladamente na Economia Informal tendem a fracassar, cedo ou tarde, pois não conseguem superar a concorrência sob a lógica competitiva do mercado capitalista, seja na eficiência em produzir e distribuir a mercadoria, equilibrando preços baixos com qualidade elevada, ou em produzir subjetividades e agenciar o consumo alienante através de semioses publicitárias. [...] Sob a lógica da rede Economia, entretanto, destaca-se que toda a célula produtiva é, primeiramente, uma célula de consumo e que todas as células da rede interligam-se por movimentos de consumo e produção das diversas células interconectadas (MANCE, 2000, p. 48).

O modelo de ES defendido por Paul Singer assemelha-se às redes de colaboração solidária no tocante aos valores centrais. Porém, a diferença entre as duas propostas é evidente. Para começar, Mance (2000) acredita que não há a necessidade de apoio do governo para o desenvolvimento das redes, diferentemente de Singer que vê no apoio governamental um dos fatores essenciais para o desenvolvimento de qualquer iniciativa que almeje ser uma alternativa em larga escala.

Mance (2000) defende a criação de uma rede paralela à do modelo capitalista, enquanto Singer propõe o desenvolvimento do modelo de ES inserido no sistema capitalista, devendo este ser capaz de evoluir a ponto

Page 204: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

204

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

de superá-lo. Mance não aceita qualquer tipo de concorrência, enquanto Singer aponta a necessidade de competição, como forma de pressão para melhoria de produtos, preços e eficiência, o que não seria conseguido pela simples pressão dos consumidores.

Para Singer (2002), a argumentação de Mance (2000) torna-se frágil por apoiar-se basicamente na simples priorização do consumo solidário, mesmo quando os produtos são de pior qualidade e até mais caros. Outra dificuldade desta iniciativa seria fazer com que a totalidade da produção das cooperativas da rede pudesse ser absorvida pelos seus integrantes, sendo estes, na sua maioria, de classes mais pobres e havendo, então, a necessidade do excedente ser vendido no mercado capitalista não protegido. Além do mais, o modelo que se baseia em consumo solidário, puro e simples, limitaria a inovação e atualização, gerando comodismo numa situação inferior e cada vez mais distante da realidade fora da rede.

As redes de ES se apoiam num outro paradigma, como salienta Marcos Arruda (2003, p. 234): “A lógica do capital é migrar para onde há mais capital e possibilidades de acumulação e de lucro, e não para onde há mais necessidades humanas a satisfazer”. É na busca de satisfazer necessidades e desejos que se apoia a lógica deste modelo de sociedade, o que implica, é certo, num “trabalho cultural para fazer emergir uma solidariedade consciente”.

Existe constantemente a tentação de buscar alternativas definitivas, que pressupõem soluções com certezas e programações em excesso, não se levando em conta as ambiguidades e subjetividades próprias da complexidade humana. Deve-se evitar o puritanismo e acreditar na capacidade de criar múltiplas e variadas possibilidades, num ambiente aberto, diverso e em construção, condizente com a natureza complexa do próprio gênero humano, como concordam Singer (2002) e Sousa Santos (2002).

Acreditamos na intransferível e vital articulação das iniciativas de economia solidária com o Estado, sendo este um agente privilegiado de empoderamento deste modelo socioeconômico, principalmente em sua fase inicial, avançando nas políticas publicas em prol de soluções emancipadoras. Por via inversa, as organizações de economia solidária podem transformar esse mesmo Estado através da sua lógica organizacional amparada em níveis de participação e democracia superlativos, conseguindo subjugar avanços econômicos a fins sociais, algo que se idealiza para esse mesmo Estado. Por certo, a tarefa não é nada fácil. É preciso prevenir-se contra as armadilhas do “engaiolamento” das demandas solidárias pelas burocracias do Estado,

Page 205: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

205

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

as estruturas de vínculos eleitorais e personalismos, mas sobretudo contra as próprias restrições impostas pelas afinidades estruturais entre o Estado e a economia capitalista. O “sucesso” e expansão da ES devem angariar não necessariamente mais apoio, mas também um maior grau de oposição organizada, o que pode induzir a conformismos e retrocessos. As brechas abertas também se fecham. Seja como for, como todo ato político insurgente a ES é uma aposta em um terreno adverso que nos desafia em nossas convicções, paciência e criatividade. (SANTOS, BORINELLI, 2010).

Nos itens seguintes, apresentar-se-ão as propostas em torno do projeto PROSOL e algumas considerações extraídas da experiência acumulada até este momento.

3 Uma leitura do contexto da Economia Solidária em Londrina: desafios e alternativas

Neste tópico, discorrer-se-á sobre alguns pontos que sintetizam a experiência do PROSOL em sua primeira fase. Após a exposição de uma atividade integrada de produção econômica, são apresentados e discutidos os desafios e as alternativas a questões relativas às políticas públicas de ES e à produção e comercialização desse modelo.

3.1 A “Operação Colomba Solidária”

A primeira grande atividade conjunta das instituições e grupos de produção ocorreu na Páscoa de 2009. Foi deliberado conjuntamente, apenas 45 dias antes da semana da Páscoa, o lançamento de um produto comemorativo: a Colomba Solidária. A colomba é um bolo no formato de uma pomba que simboliza a paz, e tradicionalmente é comercializado no país na época da Páscoa.

Embora o prazo fosse muito curto para desenvolvimento e comercialização de um produto, aceitou-se o desafio por entender-se que a finalidade da atividade não era a obtenção satisfatória de produtividade e lucro, mas desenvolver uma experiência na qual fosse possível avaliar o comportamento, capacidade de interação e conflitos entre as instituições envolvidas e entre estas e os núcleos de produção na consecução de um objetivo econômico comum. Tentava-se antecipar futuros desafios institucionais e técnicos para a constituição e operação de uma cooperativa.

Após a aprovação do PROSOL, o CPES deliberou pela criação de uma cooperativa dos grupos de produção incubados por ele. A cooperativa

Page 206: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

206

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

pretende abarcar 20 dos 43 núcleos de produção incubados pelo CPES, cerca de 80 trabalhadores diretamente envolvidos em atividades produtivas dos segmentos de artesanato, alimentos e confecção.

Após um grande empenho e cooperação dos integrantes e técnicos vinculados às instituições e à boa parte dos núcleos de produção, sobretudo daqueles pertencentes ao segmento de alimentos, os resultados foram bastante satisfatórios.

Num curto espaço de tempo foram desenvolvidas e testadas receitas, embalagens, etiquetas para dois tipos de colombas: uma tradicional, a base de farinha branca, e outra, inédita no mercado, a base de farinha integral. Ambas com 500 gramas.

Outras atividades fundamentais realizadas no período foram o treinamento de membros dos núcleos de produção para vendas das colombas, a ampla divulgação dos produtos nos meios de comunicação locais, a preparação de 4 pontos de vendas, e a distribuição das colombas solidárias no período de Páscoa.

No total foram produzidas 282 colombas tradicionais e 257 colombas integrais, totalizando 539 colombas. Destas, foram vendidas 285 unidades. A diferença entre produção e vendas, deveu-se às perdas, 140 que estragaram antes de serem vendidas devido a problemas na combinação dos ingredientes, à degustação para a divulgação do produto, e uma pequena sobra.

Numa avaliação coletiva, após o encerramento da atividade, constaram-se alguns limites da “Operação Colomba Solidária”. Quanto à produção foram identificadas: a) falhas no planejamento da produção, ficando a mesma bem abaixo do estimado. Esse fato comprometeu seriamente o esforço de divulgação do produto; b) falhas na comunicação entre as instituições. Muitas vezes os dados e as informações não possuíam precisão e fluência necessárias, o que em parte levou ao descumprimento de datas críticas do cronograma.

Quanto às relações institucionais, ficaram evidentes as diferenças relativas à cultura interna das organizações, à concepção e expectativas em torno da ES e da cooperativa e ao grau de capacitação das equipes nas questões econômicas, administrativas e mercadológicas.

Como um dos propósitos mais significativos da Colomba Solidária era a integração entre as instituições participantes do projeto, considerou-se que os resultados foram muito satisfatórios no sentido de identificar a cultura de trabalho de cada instituição, além das qualidades e limites de cada uma. O bom relacionamento pessoal entre os integrantes das equipes da UEL

Page 207: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

207

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

e do CPES, durante todo o processo, e o direcionamento das avaliações para a esfera das idéias levaram, não obstante os inevitáveis conflitos, a uma busca mais concreta de melhorias para o projeto em andamento. A experiência foi percebida como de grande valia para reavaliar o papel das instituições e das políticas púbicas na ES e definir as futuras coordenadas da intervenção.

No campo produtivo, a muito boa aceitação da Colomba Solidária integral foi um importante indicador de que podemos conceber e produzir produtos competitivos e mais saudáveis e, sobretudo, produtos que estejam mais alinhados aos princípios da ES. Contudo, para se atingir essa meta em escala e continuidade satisfatórias há que se avaliar, rever e pactuar o papel das políticas públicas na ES.

3.2 Aspectos gerais das Políticas Públicas de Economia Solidária em Londrina

Até este momento, a experiência da Colomba e a análise do contexto e da ação das frentes públicas de ES permitiram identificar alguns limites e possibilidades das políticas públicas de ES em Londrina. O desempenho e articulação dessas políticas mostraram-se fundamentais para a concepção, implementação e consolidação de uma rede de comercialização de produtos e serviços de ES no município.

Podemos afirmar que em nenhum outro momento as condições institucionais foram tão favoráveis à ES na cidade. Existem várias fontes de recursos para o financiamento de assessoria e compra de bens, equipamentos e matéria-prima para os grupos de produção, como também vários programas e projetos no âmbito do poder público, municipal, estadual e federal e em universidades cujo objetivo é o apoio a iniciativas econômicas alternativas urbanas e rurais. Por outro lado, a crise atual do sistema econômico e o maior grau de informação da população a respeito dos problemas sociais, ambientais e das grandes ameaças à saúde e ao futuro das sociedades geram uma potencialmente elevada disposição ou abertura para questionar seus estilos de vida e hábitos de consumo. Esse processo vem ampliando, e muito, a demanda por produtos e serviços da ES. Portanto, a oferta de produtos em quantidade e qualidade viáveis, agregados aos princípios da ES, é o maior desafio da ES.

Contudo, outros desafios antecedem este, são aqueles relacionados ao desempenho do arranjo institucional das políticas públicas de apoio à ES na cidade.

Page 208: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

208

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Coerente com a idéia de que o maior desafio operacional é a produção de produtos competitivos pela diferenciação solidária, o setor público deve assumir isso como desafio coletivo. E, nessa perspectiva, é importante que se assumam as seguintes premissas gerais para a ES no âmbito local: a) o projeto da ES enfrenta restrições de diversas ordens: políticas, econômicas, institucionais, ideológicas, organizacionais, gerenciais e da própria composição dos núcleos, assim apenas uma ação articulada e competente poderá construir um espaço legítimo e viável economicamente; b) a ES deve ser uma real alternativa organizacional, econômica e de desenvolvimento local à economia capitalista; c) o setor público e as universidades têm um papel estratégico e insubstituível de protagonistas neste processo de transformação. Isso implicaria enfrentar pelo menos alguns problemas.

Em particular, em uma dimensão institucional, há políticas públicas fragmentadas e de baixo impacto econômico, fruto em parte de uma baixa articulação institucional horizontal e vertical, portanto da pouca ou nenhuma sinergia institucional para a ES.

No campo, que se poderia designar de ideológico, não há uma “idéia força”, um conceito estruturante contextualizado e operacional para ES. Não existe ainda consenso local entre atores centrais sobre o escopo e posicionamento político da ES dentro da economia e dinâmica local. A concepção econômica da ES ainda é significativamente inspirada na política social compensatória e não em uma economia solidária propriamente. A maior ameaça aqui é de se reproduzir o que Pochmann (2004) denominou de assistencialismo improdutivo,

[...] pois ao operar como um fim em si mesmo [o assistencialismo improdutivo] demonstrou ser insuficiente para oferecer portas de saída emancipatória às angustias do conjunto dos excluídos. Poucas têm sido as experiências de políticas públicas articuladas e integradas a uma estratégia de inclusão soberana e de caminhos associados à autonomia social, política e econômica coletiva. (POCHMANN, 2004, p.30).

Quanto à gestão, presencia-se um excesso de amadorismo quanto à gestão estratégica e econômica e planejamento de mercados e produtos. Outro aspecto importante a destacar é a capacidade restrita de pesquisa, sistematização e processamento de dados e informações estratégicas. Em parte, a defasagem nesse campo reflete-se no fato de que, apesar de existirem duas incubadoras de empreendimentos de ES, ainda não se constituiu formalmente nenhuma cooperativa até o momento. Atualmente, há no

Page 209: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

209

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

CPES um grupo de trabalho interinstitucional empenhado em constituir a primeira cooperativa de ES da cidade.

Parece claro, como assinala Singer (2002), que sem o fortalecimento e articulação das políticas e instituições públicas de ES são bastante reduzidas as possibilidades de construir em Londrina uma ES expressiva. Referenciando-se em Dowbor (2008) pode-se dizer que em Londrina já se dispõe de condições relativamente satisfatórias para ser fazer boas sementeiras, restando preparar um terreno fértil para que essas sementes se desenvolvam. Como fica evidente cada vez mais, essas duas tarefas devem ser construídas de forma sincronizada e articulada institucionalmente. Antes de tudo, porém, precisa-se construir um consenso entre os grupos de produção e os atores estatais sobre o papel do Estado e das políticas públicas de ES, de preferência entendendo-se estes como parceiros e interlocutores privilegiados na tarefa de dinamizar o associativismo (ARAUJO; SILVA, 2005).

Diante desse quadro, parece-nos urgente, para uma maior efetividade de uma rede de comercialização em Londrina: a) criar e consolidar um espaço de interlocução institucional e entre os núcleos de produção da região; b) estabelecer um pacto entre os representantes do setor público e os núcleos para a elaboração de um plano estratégico para implantação da ES na cidade; e c) investir na capacitação de agentes de políticas públicas em ES.

É importante registrar que, como já se vem constatando em vários encontros entre atores públicos, cresce o consenso de que a ES vem alcançando e exigindo um novo estágio de organização na cidade. Superados relativamente os limites da falta de recursos, de espaços institucionais e de domínio conceitual e prático com a temática, o novo contexto pede uma maior articulação dos atores para enfrentar barreiras de maior complexidade à ES. Este é o caso da pesquisa e planejamento de linhas de produtos, suporte tecnológico, organização de cadeias produtivas, construção de uma marca forte e competitiva da ES e estratégias de comercialização. Uma importante decisão tomada recentemente por vários representantes de instituições públicas envolvidas com ES foi elaborar coletivamente a Carta da Economia Solidária de Londrina a fim de num segundo momento, definir ações estratégicas articuladas para consolidar a ES na região.

Page 210: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

210

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

3.3 Perfis dos produtos da Economia Solidária de Londrina e a proposta de novas áreas de atuação

O CPES foi implantado em 2005, como instrumento do Programa Municipal de Economia Solidária, para dar seqüência ao Programa Londrina Fome Zero. Ele tem como eixo a geração de renda e a capacitação profissional, e suas linhas de ação visam desenvolver as finanças solidárias; a educação para o consumo ético, justo e solidário; a capacitação conceitual, técnica e de gestão dos trabalhadores solidários; a acessória técnica e a implementação de uma rede solidária de produção, comercialização e consumo. O CEPES está incubando e apoiando aproximadamente 45 grupos de produção em ES. Os grupos são pequenos, em geral, reúnem de 2 a 5 pessoas. No CPES são atendidos apenas grupos de artesanato, alimento e vestuário. Os vinte grupos mais desenvolvidos, dentre os incubados pelo CPES, receberam a proposta para a fundação de uma cooperativa. São nove grupos de artesanato, nove de alimentação e dois de vestuário. Na produção artesanal destacam-se os trabalhos em “crochê”, bordados, peças de “retalhos” e de papel reciclado. Em relação aos alimentos, a produção concentra-se em pães, bolos, biscoitos, salgados para festas, coffe-break, compotas e geléias, e café. No vestuário são produzidas principalmente roupas de malha, como camisetas, blusas de moletom, cuecas, camisolas, pijamas, vestidos, e bermudas.

A partir do diagnóstico das atividades desenvolvidas pelos núcleos de produção de ES incubados pelo CPES, os mesmos citados acima, o PROSOL propôs a organização desses grupos em três grandes segmentos, ou setores de atuação, são eles: alimentos, vestuários e artesanato. O PROSOL também propôs, com base numa pesquisa de mercado, que cada um desses três segmentos escolhesse uma “família” de produtos como “carro-chefe” da linha de produtos do segmento.

A orientação para a escolha de uma família de produtos como carro chefe de cada segmento, tem dois objetivos principais: primeiro, obter ganhos de escala na produção, reduzindo custos; segundo, facilitar a identificação do consumidor com uma “marca” característica dos produtos feitos pelos grupos de ES, o que garantiria economias de escopo nas atividades de propaganda e marketing de vendas.

Para atingir o segundo objetivo o PROSOL orientou que as famílias de produtos destacados como carro-chefe buscassem cumprir todos os princípios estabelecidos pela ES, em especial, dois deles. O primeiro, relacionado ao benefício à saúde, e o segundo, relacionado à preocupação

Page 211: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

211

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

com a preservação ambiental. A partir destes preceitos, a prioridade seria dada a produtos integrais; de produção orgânica; ao uso de fibras naturais renováveis; e por fim a matérias-primas recicladas.

E por último, o PROSOL recomendou aos núcleos de produção que utilizassem a diferenciação de produtos como principal estratégia competitiva, já que tais grupos dificilmente conseguirão competir em preços, visto que os custos são elevados devido à baixa escala de produção. Portanto, os produtos carecem ser selecionados nos mercados que a teoria microeconômica tradicional denomina de “competição monopolística1”, que é caracterizado justamente por possuir um número razoavelmente grande de produtores ou vendedores competindo no mercado, com produtos e preços diferenciados.

No setor de alimentos, a escolha do PROSOL foi sugerir a criação de uma linha de produtos integrais. A experiência da Colomba Pascal inspirou esta opção. Ainda que as vendas das colombas tradicionais tenham sido maiores (o preço da colomba integral foi o dobro da tradicional, devido aos ingredientes e tempo de preparo), houve um grande afluxo de pessoas visitando o CPES durante o período de vendas justamente para conhecer o produto integral, pois não havia nenhum similar no mercado londrinense. Além disso, esse afluxo provocado pela propaganda da colomba integral e pela sua repercussão na imprensa local, contribuiu relevantemente para o aumento das vendas de outros produtos dos três segmentos.

Na avaliação pós venda, consultando-se os compradores da colomba, e também aqueles que degustaram o produto no CPES, constatou-se praticamente a unanimidade da opinião dos consumidores sobre o melhor sabor e qualidade do produto integral. Muitos manifestaram que consideram vantajoso pagar um preço um pouco mais elevado para consumir um produto com maior qualidade e sabor. Ao restante dos núcleos de produção de alimentos, o PROSOL preconiza o desenvolvimento de produtos voltados para a produção com matéria-prima advinda da produção orgânica.

No segmento de vestuário, o PROSOL sugeriu a produção de produtos voltados a características culturais e locais da região de Londrina, por exemplo, desenvolvendo estampas da fauna e flora da região londrinense. A idéia do PROSOL é que os grupos de vestuário produzam camisetas, bonés, e outras peças cuja estampa represente, além da fauna e da flora,

1 Uma explicação didática para as características e estratégias competitivas da estrutura de mercado de concorrência monopolística pode ser encontrada em MATEUS, A. M.; MATEUS, M. M. Microeconomia: Teoria e Aplicações. Lisboa: Verbo, 2002.

Page 212: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

212

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

pontos turísticos da cidade, atendendo assim um segmento de mercado que não está sendo atendido em Londrina pela economia tradicional, ou seja, a de souvenirs ou de “lembranças” destinadas aos turistas e viajantes que passam pela cidade. Esse nicho de mercado nunca foi explorado em Londrina, talvez porque os munícipes não a consideram como uma cidade turística. Não obstante, Londrina é um pólo universitário e o centro comercial de uma próspera região do Estado do Paraná e do Brasil, o que atrai respectivamente o chamado turismo de eventos e o turismo de negócios. Mas também o turismo de lazer tem um grande potencial a ser explorado, pelo menos no âmbito regional. Em breve será inaugurado na cidade um Jardim Botânico construído pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Paraná (SEMA). Já funcionam outros parques ecológicos na cidade como o Parque Arthur Thomas na área urbana, e os parques Daisaku Ikeda, Mata dos Godói, e Salto Apucaraninha na zona rural. Se houver uma política pública voltada para este setor de turismo, que articule a visitação a esses parques com a atividade de gastronomia e hotelaria rural, por exemplo, tais espaços podem ser utilizados também para a distribuição e venda dos souvenirs e alimentos produzidos pelos grupos de ES.

O segmento de artesanato também pode se beneficiar da consolidação, e contribuir para a consolidação de uma “marca ecológica” para a cidade de Londrina e para a ES, utilizando, no processo de produção, fibras, sementes, madeiras de manejo sustentável e materiais recicláveis. Graças ao trabalho desenvolvido pela articulação da Prefeitura Municipal com diversas ONGs de reciclagem de lixo, Londrina é hoje a cidade brasileira com o maior índice de reciclagem. Entretanto, muito pouco deste material é utilizado pelos grupos de artesanato da ES. O desafio dos grupos de artesanato e das instituições universitárias da cidade é desenvolver novos usos para esses materiais. O poder público municipal deve ampliar o apoio às ONGs de reciclagem, e à sociedade cabe cumprir seu papel de cidadania e separar os produtos recicláveis dos resíduos orgânicos, contribuindo ainda com os benefícios do consumo ambientalmente sustentável.

A história e a teoria econômica apontam algumas condições muito favoráveis ao projeto local de ES e à proposta do PROSOL por um lado, e de outro, apontam dificuldades que devem ser superadas.

Segundo Walter Tadahiro Shima (2006), o novo paradigma tecnológico mundial, baseado na incorporação da microeletrônica e informática nas máquinas-ferramentas, dotando-as de autonomização e flexibilidade, resultou na “banalização das economias de escala e na

Page 213: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

213

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

viabilização das economias de escopo”. Ou seja, viabilizou a produção em escalas cada vez menores. As novas tecnologias reduziram em muito o custo dos equipamentos sofisticados, e eles são oferecidos em diversos tamanhos, para diversas escalas de produção.

No novo paradigma, todas as tecnologias hard (...) estão disponíveis com relativa facilidade e a preços descrentes para todos os produtores, de tal forma que o diferencial competitivo não resulta mais do fato de se usar um ou outro equipamento, como ocorria antes do novo paradigma (SHIMA, 2006, p. 347).

O antigo paradigma a que se refere Shima é o modelo fordista, onde a produção em larga escala era o diferencial competitivo, mas a necessidade das firmas serem competitivas em mercados menores, e a necessidade de atender aos diversificados gostos dos consumidores, levou à pesquisa e desenvolvimento do novo paradigma tecnológico. Entretanto o autor alerta, ao contrário dos equipamentos, no novo paradigma há aspectos que não necessariamente estão disponíveis livremente como os conhecimentos que geram mudanças e os que não decorrem do aspecto hard. Daí que:

A fonte de competitividade da firma não vem de fora, mas da sua capacidade de encontrar, num sentido mais geral, soluções criativas – como novos processos, diferenciação de produtos e, principalmente, novos arranjos organizacionais e/ou institucionais (SHIMA, 2006, p. 347).

Esse desafio inovativo cabe tanto aos grupos de produção, quanto aos poderes públicos e as universidades envolvidos com a ES. Entretanto, ele esbarra na dificuldade de articulação entre os diversos grupos e poderes envolvidos. Conforme apontado também por Shima:

Se por um lado a cooperação cria oportunidades de aprendizado e de inovação, por outro, esses novos ganhos podem exigir a renúncia do controle de outras atividades. (SHIMA, 2006, p. 357).

Já foi possível perceber que este desafio não será fácil de superar. Na experiência da Colomba Solidária os grupos de produção não deram prioridade para o novo produto. Como vimos, o desenvolvimento de uma linha conjunta e articulada de produtos de ES, como proposto pelo PROSOL, exige, senão a renúncia da produção dos atuais artigos

Page 214: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

214

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

produzidos, pelo menos a mudança de prioridades. Ainda que os grupos de ES solidária dominem razoavelmente a produção de artigos tradicionais, tais mercadorias já estão saturadas no mercado pela produção das empresas capitalistas. Por isso, só o desenvolvimento de produtos diferenciados e inovadores pode abrir uma grande janela mercadológica para o crescimento da ES. Isso, naturalmente, não quer dizer que o problema de acesso e adaptação de novas tecnologias da economia tradicional à ES esteja superado, mas que o horizonte das redes de produção e comercialização de ES pode ser bastante promissor.

4 Considerações finais

Em relação à proposta original de montar uma rede de apoio à comercialização de produtos e serviços de socioeconomia, os objetivos do PROSOL vêm sendo relativamente alterados para atender a novas demandas que se consideram estratégicas para a efetivação de uma rede de comercialização. Esse é o caso principalmente do apoio à constituição de uma cooperativa dos núcleos de produção do CPES, requisito fundamental para a formalização desses empreendimentos, e do suporte à melhoria da qualidade dos produtos e à prospecção de nichos de mercado e produtos estratégicos para a atuação da ES em Londrina.

A exposição feita até aqui demonstra que a construção de arranjos institucionais mais favoráveis à efetivação da ES exige intervir num campo extramente complexo e contraditório. Os obstáculos encontrados nos primeiros momentos do projeto são bastante amenizados diante do alto grau de motivação e comprometimento dos técnicos envolvidos, da boa disponibilidade de recursos e, principalmente, da boa recepção e engajamento dos integrantes dos núcleos de produção. Esse contexto amplia as probabilidades de construção de uma experiência inédita de criação de novos arranjos institucionais e tecnológicos para a viabilização da ES em Londrina, em que pesem os vários conflitos e contradições enfrentados diariamente.

Os conflitos e dificuldades vivenciados nessa primeira fase devem ser vistos como desafios a serem superados dentro de uma nova lógica socioeconomica e de convivência social, que tem na cultura individualista, autoritária e competitiva o seu maior obstáculo. O exercício de construção de ambientes democráticos, participativos e solidários é ainda experimental e por isso povoado de indefinições e incertezas, mas também capaz de mover paixões de quem se vê empenhado na proposta de construção de um novo amanhã, mais justo, fraterno e sustentável.

Page 215: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

215

Políticas públicas e a aventura da comercialização na economia solidária:

É necessário ter sempre em mente que a maior parte dos desafios pessoais e institucionais com os quais nos defrontamos, são constituídos de embates não apenas “tecnológicos” ou mercadológicos, mas políticos e ideológicos. Como seria de se esperar, embates inevitáveis para um projeto contra-hegemônico como se pretende a ES, em sua busca por um modelo econômico social e ambientalmente alternativo ao capitalismo. De qualquer forma, essa busca dá-se hoje em um terreno relativamente aberto à criatividade, à inovação e à determinação na construção de novos saberes, tecnologias e formas de organização social e produtiva.

A avaliação geral feita até este momento permite-nos afirmar que Londrina, a exemplo de outras regiões do país e do mundo, em que pesem todos os desafios apontados, possui um grande potencial para a conquista e consolidação de importantes avanços na construção de arranjos institucionais de apoio à produção e comercialização de produtos e serviços da ES.

Referências

ARAÚJO, Herton Ellery; SILVA, Frederico A. Barbosa. Economia solidária: um novo paradigma de política pública? Notas Técnicas. Mercado de Trabalho - Conjuntura e Análise. Rio de Janeiro: IPEA, n. 28, set. 2005.

ARRUDA, Marcos. Socioeconomia solidária. In: CATTANI, Antonio David. (Org). Outra Economia. Porto Alegre: Veraz, 2003. p. 232-242.

DAGNINO. Renato. A tecnologia social e seus desafios. In: Tecnologia Social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. p. 187- 211.

DOWBOR, Ladislau. A organização de iniciativas locais. In: Desafios da Economia Solidária. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2008.

INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL. Reflexões sobre a construção do conceito de tecnologia social. 2004. Disponível em: <http://www.itsbrasil.org.br/pages/12/Reflexoes_construcao_conceito_TS.pdf.> . Acesso em: 20 mai. 2009.

MANCE, E. A. A Revolução das Redes: a colaboração solidária como alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petropolis: Vozes, 2000.

MATEUS, A. M; MATEUS, M. M. Microeconomia: Teoria e Aplicações. Lisboa: Verbo, 2002.

OLIVEIRA, B. A. M; ALVES, F. K. N.; PONTELO, T. C. As contribuições das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares para o Desenvolvimento da Economia Solidária e para a Construção de um novo Modelo de Extensão

Page 216: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

216

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Universitária. In: ABREU, J. C. (Org.) Cooperativismo Popular e Redes Solidárias. São Paulo: All Print, 2007. p. 121-132.

POCHMANN, Marcio. Economia Solidária no Brasil: possibilidades e limites. Notas Técnicas. Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise. Rio de Janeiro: IPEA, n. 24, ago. 2004.

PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE LONDRINA. Perfil do Município de Londrina. Londrina: PML/SMP, 2008.

SHIMA, Walter Tadahiro. Economia de Redes e Inovação. In: PELAEZ, Victor; SZMRECSÁNYI, Tamás (Org.). Economia da Inovação Tecnológica. São Paulo: Hucitec, 2006.

SANTOS, B. de S. (Org.). Produzir Para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002.

SANTOS, L. M. L; BORINELLI, B. Socioeconomia Solidária: propostas e perspectivas. Londrina: Mimeo, 2010.

SINGER, P. Globalização e Desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998.

______. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

Page 217: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

217

NAS MEADAS DO BARBANTE: A PRECARIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO DAS

CROCHETEIRAS NA REGIÃO DO VALE DO IVAÍ

Marcio Pascoal CassandreValdir Anhucci

Wagner Roberto do AmaralEmília Vella Falleiros Neta José Stefferson Pessoa Lellis

Juscilene Chved

1 Introdução

O modo de produção capitalista tem como essência a garantia do lucro para o dono dos meios de produção. Diante de períodos de crises provocadas pelo próprio sistema capitalista, as altas taxas de lucro foram diretamente afetadas. Nessa situação, o capital teve que articular outras formas de produção a fim de manter sua lucratividade, e uma das medidas tomadas, no final da década de 1960, foi a implementação do projeto neoliberal. No Brasil, o neoliberalismo começou a ser implantado durante a década de 1980, reduzindo direitos dos trabalhadores e eliminando postos de trabalho. A partir do projeto neoliberal, a retomada dos lucros passa, entre outros fatores, pela redução dos gastos com políticas sociais e com o aumento do exército industrial de reserva, a fim de fragilizar a capacidade de organização dos trabalhadores, precarizando suas condições de trabalho.

Diante dessa situação, o trabalho informal tem crescido, apresentando-se de diversas formas. Na região do Vale do Ivaí, localizada no Norte do Paraná, a saída para muitas pessoas que não conseguem se inserir no mercado de trabalho foi buscar renda através da confecção de tapetes de barbante, que são produzidos para uma empresa localizada na região sul do Brasil. Assim, muitas famílias representadas, principalmente, por mulheres que são conhecidas como “Crocheteiras de Barbante”, submetem-se a confeccionar tapetes artesanais, a fim de complementarem a renda de casa.

Isso significa um trabalho extremamente precário, à medida que essas trabalhadoras não têm nenhum direito garantido pela legislação trabalhista brasileira. Devido à característica informal, a remuneração do trabalho desempenhado por elas é extremamente baixa. Trata-se da precarização

Page 218: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

218

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

absoluta das condições de trabalho diante da ausência de possibilidades da inserção no mercado de trabalho formal. Essa atividade econômica está presente em boa parte dos municípios dessa região, tendo inclusive o apoio do poder público local, que justifica a necessidade desse tipo de trabalho diante do alto índice de desemprego que a região apresenta.

Tal situação foi identificada a partir de um trabalho de assessoria desenvolvido por um projeto de extensão implementado pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana. Trata-se do “Programa de diagnóstico, formação e aprimoramento de pequenos empreendimentos do setor têxtil, vestuário e calçados do Vale do Ivaí”, que ao desenvolver um trabalho na perspectiva da Economia Solidária, junto a grupos organizados na região, deparou-se com situações de exploração em que muitas mulheres estavam submetidas. Nesse sentido, o presente estudo tem por objetivo discutir a realidade da precária condição de trabalho, na qual se encontram muitas trabalhadoras de municípios do Vale do Ivaí, ampliando, assim, a reflexão sobre o assunto.

2 A reestruturação produtiva e o desemprego

A passagem do feudalismo para o capitalismo, acompanhado pelo desenvolvimento tecnológico e industrial, significou avanços significativos para o processo produtivo. Por outro lado, a modernização no processo produtivo sempre favoreceu a classe capitalista, em detrimento da classe trabalhadora. De acordo com Singer (2000, p.10):

O capitalismo é um modo de produção regido pelos princípios de direito da propriedade individual aplicado ao capital e o direito à liberdade individual. A aplicação destes princípios divide a sociedade em duas classes básicas: a classe proprietária ou possuidora de capital e a classe que ganha vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade.

O fortalecimento do capitalismo ocorre não apenas pelo acúmulo

de capital, mas também pela manutenção de bolsões de mão-de-obra à disposição das necessidades do capital. Segundo Marx (1984), essa farta mão-de-obra desocupada tem possibilitado sua remuneração com baixos salários, que apenas os mantém fortes o suficiente para produzirem.

O modo de produção capitalista altera-se com agilidade sempre que necessário para sua manutenção. De acordo com Antunes (2003), diante da crise econômica da década de 70, novas estratégias foram engendradas para

Page 219: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

219

Nas meadas do barbante:

a acumulação de capital. A política econômica keynesiana, acompanhada do processo de produção fordista - que foi saída estratégica da última crise cíclica de 1929 do sistema capitalista, foi substituída pelo modelo neoliberal, acompanhada de uma nova fase de produção, qual seja a acumulação flexível. Neste processo, Antunes (2003) enfatiza o avanço tecnológico (automação, robótica e a microeletrônica), que aumenta o trabalho morto; a flexibilização do processo de trabalho; o enfraquecimento da social-democracia; e a desmobilização da classe trabalhadora. Isso é reforçado por Tavares (2004, p.17), ao afirmar que o “[...] excedente mundial de força de trabalho e a taxa de desemprego aberto vêm crescendo mundialmente nas duas últimas décadas”. Nesse aspecto, Pochmann afirma que:

[...] cerca de 150 milhões de trabalhadores encontram-se na categoria de desemprego aberto, enquanto 850 milhões são considerados na condição de subemprego, exercendo atividades de sobrevivência, com jornadas de trabalho insuficientes e de remuneração muito comprimida (POCHMANN, 2001, p.81 e 82)

No Brasil, de acordo com Pochmann (2008), o balanço econômico e social das últimas décadas não é positivo, à medida que a renda per capita permaneceu praticamente estagnada, enquanto o salário mínimo perdeu 50% do seu poder aquisitivo e o desemprego aberto foi multiplicado 3,5 vezes. Como consequência disso, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional, que era de 50% em 1980, passou para apenas 36% em 2003. Segundo Mattoso (1999), o Brasil perdeu 3,3 milhões de postos de trabalhos formais, numa realidade de cerca de 18 milhões de assalariados, num total de 70 milhões de população economicamente ativa.

Segundo Serra (2006), no final do século XX e início do século XXI, houve uma retração na oferta de emprego e nos índices de crescimento da economia. É notável, nos últimos 15 anos, a relação da falta de emprego com a implantação do processo de reestruturação produtiva, provocando o desemprego estrutural, bem como a crescente diminuição de oferta de postos de trabalho.

Na década de 1980, o Brasil foi marcado por alterações em sua conjuntura no que se refere ao mercado de trabalho. Para Mattoso (2000), com certa intensidade os níveis de desemprego mostravam, pela primeira vez, a deterioração das condições de trabalho e aceleravam a informalidade. Diante da manutenção das estruturas industriais e produtivas, os índices de desemprego e a precarização apresentavam-se relativamente baixos e, sobretudo, vinculados às intensas oscilações do ciclo econômico na década e ao processo inflacionário.

Page 220: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

220

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Este quadro se agrava, quando se considera a atuação do Estado, pois, segundo Pochmann (2008), o Brasil nunca constituiu um sistema público nacional de emprego. Mesmo durante a grave crise de emprego, gerada desde 1990, não houve ações significativas, com medidas articuladas e integradas entre si, além de universalizadas para o conjunto do mercado de trabalho.

O desemprego estrutural está relacionado com a reordenação produtiva, levando à diminuição de mão-de-obra nos processos produtivos. Para Pochmann (1997, p.24), a “[...] dimensão estrutural do desemprego no Brasil decorre do abandono do projeto de industrialização, da crise dos anos oitenta e do processo abrupto de abertura comercial e de reestruturação empresarial em curso nos anos noventa”. Consequentemente, a referida reestruturação do processo produtivo aumenta o número de trabalhadores informais e a necessidade de implementação de programas voltados para geração de trabalho e renda, na medida em que o crescimento econômico não é capaz de absorver toda a mão-de-obra disponível no mercado.

Neste processo, Antunes (2003) recorda que houve o aprofundamento do ciclo de financeirização e mundialização do capital, o mercado de trabalho deflagrou-se, resultando em desemprego explosivo, aumento do trabalho informal, a extrema precarização, o rebaixamento salarial, além da perda de direitos.

3 A informalidade como estratégia para desonerar o capital

Na década de 90, houve um grande aumento do trabalho informal na produção capitalista e, consequentemente, a precarização das relações de trabalho. Para Tavares (2004), a informalidade e precarização do trabalho mostram como estes elementos são funcionais ao modelo de acumulação flexível. A autora chama a atenção para a intensa exploração que vem se configurando no âmbito do trabalho, resultado do processo de reestruturação produtiva implementada pelo capital. Cumpre destacar que o setor informal, antes considerado um dos fatores do atraso econômico do Brasil e países similares, atualmente tem sido estimulado como estratégia para retomada das altas taxas de lucro. O aumento significativo do trabalho informal tem acontecido a partir dos processos de terceirização. Cumpre destacar que o trabalho informal, diga-se de passagem, com menos ou nenhum direito social, mantém a produção. Nesse aspecto,

Questiona-se a autonomia atribuída ao trabalho terceirizado, na medida em que a eliminação do vínculo formal não altera o conteúdo do posto

Page 221: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

221

Nas meadas do barbante:

de trabalho. Ao contrário, o trabalhador desempenha a mesma função para o capital, embora em condições precárias e sem nenhuma proteção social (TAVARES, 2004, p. 23).

Outra estratégia para a desoneração do capital em relação aos custos com o trabalhador tem sido práticas que estimulam a auto-organização dos trabalhadores. Nesse sentido, Barbosa (2007) afirma que está na moda o empreendedorismo e o cooperativismo, que desoneram o capital, desresponsabilizam o Estado e responsabilizam o trabalhador pela busca do desemprego, como se não houvesse determinações políticas e econômicas macrossociais. O próprio autoemprego constitui-se política de emprego, responsabilizando única e exclusivamente o trabalhador. Para Tavares (2004), a partir do

[...] grande volume de desempregados proliferam cooperativas, empresas familiares, trabalho domiciliar, micro e pequenas empresas. Estas formas de trabalho, comumente identificadas com a independência, a autonomia e a ação espontânea promovem, ao contrário, mecanismos pelos quais os trabalhadores exploram a sua própria força de trabalho para o capital e se deixam ser lesados nos seus direitos fundamentais (TAVARES, 2004, p. 18).

Nessa perspectiva, Barbosa (2007, p. 92) mostra que o “[...] desemprego e precarização andam juntos e respondem materialmente pelas necessidades de rentabilidade financeira, fazendo recuar os salários e as proteções dos contratos de trabalho, legislações específicas e/ou negociações coletivas”. A autora aponta que a crise de acumulação do capitalismo, nas últimas três décadas, foi contornada com o aumento dos rendimentos do capital a partir do desemprego e da precarização do emprego. Neste contexto, a inflexão na atuação do Estado é um mecanismo político fundamental de transferência de renda ao capital.

Nesse sentido, Chesnais (1996 apud BARBOSA 2008) aponta que o Estado tem tido uma ação conservadora, garantindo condições políticas e culturais favoráveis à interiorização das desregulamentações sociais. Isso passou a ser praticado e aceito como sendo necessário para superação da crise; associado a essas condições, houve o recuo das lutas de classes ampliando as desigualdades sociais.

Nessa linha de pensamento, Silva e Yazbek (2008) destaca que a ação estatal é fundamental na formação do mercado de trabalho e na determinação das relações e remuneração do trabalho. Como se pode

Page 222: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

222

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

observar, diante de sua desresponsabilização, o trabalhador fica ainda mais fragilizado na atual conjuntura. Segundo Barbosa (2008), estabeleceu-se uma heterogeneidade nas relações de trabalho e a combinação de diferentes formatos de produção econômica e reprodução social. Neste contexto, observa-se a naturalização e aceitação do trabalho informal. Sendo assim, as políticas de emprego, desde então, vêm contribuindo para o que parece ser a ressignificação do trabalho como não direito. Isso significa dizer que cada um é responsável por buscar alternativas de sobrevivência, sugerindo-se, então, uma redução na responsabilidade e comprometimento do Estado.

4 Procedimentos metodológicos

Os métodos utilizados para o diagnóstico pautaram-se no levantamento bibliográfico sobre o tema, através da coleta de dados secundários, como base inicial da formatação do processo de pesquisa em si, que deverá preencher as lacunas interrogativas de forma qualitativa e exploratória.

A partir da revisão bibliográfica sobre o tema central da pesquisa, obteve-se um quadro teórico de referência norteador do referencial empírico. Conforme Marconi e Lakatos (2003, p. 62), o levantamento de dados de diferentes fontes é essencial “(...) não só por trazer conhecimentos que servem de background ao campo de interesse, como também para evitar possíveis duplicações e/ou esforços desnecessários”. Diante de tal fato, nota-se que a coleta de dados, ou seja, a documentação indireta a ser contemplada pelo presente estudo, irá ocorrer a partir de duas formas principais: através do desenvolvimento da pesquisa bibliográfica, que se alicerça, em especial, na realização de pesquisas em referenciais bibliográficos (fontes secundárias), ou seja, “(...) abrange toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico, etc.; até meios de comunicação oral” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 71).

Segundo dados colhidos em 2009 do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – IPARDES, a região do Vale do Ivaí, localizada no Norte do Estado do Paraná, é formada por 29 municípios, cujo IDH geral médio mantém-se próximo de 0,718 pontos, enquanto o IDH da renda geral média é de 0,624 pontos e o salário mínimo médio da região chega ao máximo a R$ 605,52. O maior IDH registrado do estado é do município de Curitiba com 0,856 pontos e o de menor IDH no município de Ortigueira com 0,620 pontos.

Page 223: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

223

Nas meadas do barbante:

A projeção populacional feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, demonstrou a existência de aproximadamente 345 mil habitantes nessa região, dos quais 70,7% residem na área urbana. Em termos de mão-de-obra ocupada, o complexo têxtil-vestuário é o maior empregador com 43,2% do total de trabalhadores atuantes na região, representando 19,3% do Valor Adicionado Fiscal do Estado (VAF). No ano de 2000, segundo dados do Diagnóstico Socioeconômico do Território do Vale do Ivaí apresentou um índice de 37,9% de sua população ativa sem emprego.

Muito embora esse índice obtivesse uma melhora a partir dos dados de 2007, é grande a necessidade de abertura de postos de trabalho nessa região. Tal realidade tem justificado o surgimento de experiências de organizações coletivas e programas de geração de trabalho e renda, como alternativas de enfrentamento ao desemprego.

Outra fonte de informações para essa pesquisa ocorreu a partir do levantamento que foi realizado por meio de contato com as prefeituras dos municípios do Vale do Ivaí. Num primeiro momento, isso aconteceu através de ligações telefônicas às secretarias ou a órgãos responsáveis por cooperativas de geração de trabalho e renda e projetos de Economia Solidária; durante esse procedimento, foram encontrados outros grupos de artesãos que não compunham iniciativas com base na Economia Solidária. Para isso, foi utilizado como instrumento de identificação um roteiro sistematizado de perguntas para uma caracterização e mapeamento inicial.

Para a composição desse trabalho, buscaram-se informações diretas através da coleta de dados primários com os atores sociais, denominados de entrevista 1, 2, 3, 4, e 5, envolvidos em projetos pertencentes aos vinte e nove municípios da região do Vale do Ivaí.

A aplicação do ferramental para levantamento dos dados ocorreu numa amostra formada por cinco municípios, dos 29 pertencentes à região do Vale do Ivaí, justifica-se a quantia de cinco municípios por pertencerem aos levantamentos primários sobre Economia Solidária.

Na sequência, as entrevistas foram realizadas através do deslocamento da equipe de pesquisadores até os municípios identificados, munidos de um roteiro semi-estruturado, contendo questões abertas e fechadas, servindo-se também de instrumento eletrônico de gravação (MP3), com intuito de obter dados informacionais para a melhor compreensão da configuração dos programas municipais de geração de trabalho e renda. Os itens constantes no roteiro das entrevistas foram divididos em: quantificar a produção e o produtor, rendimentos, forma organizacional e atividade econômica.

Page 224: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

224

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Para a interpretação dos dados coletados, utilizou-se a técnica da análise de conteúdo, que para Bardin (2004, p. 31) significa:

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.

Tanto as pesquisas de campo quanto as pesquisas bibliográficas já

realizadas no âmbito da atuação do projeto de extensão serviram de base para as considerações feitas neste artigo.

Com os levantamentos obtidos através da pesquisa de campo - quando da proposta de diagnosticar empreendimentos que vivenciam os princípios da Economia Solidária, reconheceu-se nas observações recolhidas pelos pesquisadores outro fato gerador de trabalho e renda, o das crocheteiras de barbante, as quais não conhecem ou tiveram algum contato com a Economia Solidária como alternativa ao modo de produção capitalista. Mediante tal constatação, fez-se necessário o desenvolvimento de um ferramental específico para levantamento de dados, no qual se percebeu a exacerbação da precarização do trabalho com o aliciamento do poder público local.

5 Precarização das crocheteiras de barbantes Nessa proposta de desenvolvimento local, a exploração tem se

configurado a partir do trabalho implementado pelos trabalhadores em suas próprias casas. Essa é uma estratégia do capitalismo que extrapola o espaço organizacional formatado para produção, a fim de ocupar o espaço privado dos indivíduos. Nessa condição, os trabalhadores têm menos chances de mobilização coletiva e identidade de classe devido ao desconhecimento dos pares no espaço de produção.

Verificou-se que, dentre os 29 municípios do Vale do Ivaí, há os que possuem programas de geração de trabalho e renda no que diz respeito à manufatura de tapetes de barbante, sendo promovidos por órgãos governamentais e não-governamentais ligados à política de assistência social, através do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) e Associação de Proteção à Maternidade e Infância (APMI).

Page 225: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

225

Nas meadas do barbante:

A partir dos dados obtidos em alguns dos municípios, verificou-se o oportunismo e exploração através da informalidade na produção de tapetes. Isso pode ser constatado pela baixa remuneração e ausência de proteção social. Cumpre destacar que parte dos ganhos com os artesanatos produzidos tem sido subsidiada por algumas prefeituras.

O campo de pesquisa é vasto e o tempo hábil para tal feito não comporta total abrangência. Porém, tem-se o conhecimento que o projeto de produção de tapetes de barbantes existe em muitos municípios da região, conforme o relato de uma das entrevistadas: “(...) nós cuida de 8 municípios, (...) toda a produção é centralizada aqui, (...) tem município que um vereador faz um belo trabalho com as mulheres (…) [sic]” (entrevista 4).

Na tabulação das informações obtidas por intermédio do questionário e da gravação, constatou-se que em três municípios a APMI é a gestora da produção de tapetes de barbantes e em dois municípios é o CRAS. Notou-se que os projetos de artesanato nos municípios pesquisados possuem entre 3 e 13 anos de existência e em todos a produção de tapetes é alicerçada em programas de geração de trabalho e renda.

Uma das entrevistadas, ao ser questionada, justificou a importância do projeto de produção de tapetes, ressaltando que não é apenas mais um programa de geração de renda, mas foi uma forma de melhorar, inclusive, a saúde de algumas trabalhadoras. Conforme sua fala: “(...) a princípio esse projeto foi pensando na geração de renda e hoje já não é mais, quando a gente vê assim pessoas curadas de depressão, da bebida, do cigarro, vê que isso funciona como terapia ocupacional, tem pessoas que não têm necessidades de fazer, mas faz como terapia (....)” (entrevista 1).

A partir da coleta de dados foi possível traçar os seguintes pressupostos, apresentados na Tabela 1:

Tabela 1- Formatação: Gestor, Produção, Faixa Etária e Famílias

Município Entrevista 1 Entrevista 2 Entrevista 3 Entrevista 4 Entrevista 5Gestor aPMi cRa’s cRa’s aPMi aPMitempo Projeto - anO 8 7 3 6 13Produção Média p/Kg 6000 2000 2000 2500 500Produção p/Peça 4500 1500 1500 1700 350Valor Médio Unitário em reais 3 3 2 2 2Famílias 136 160 110 280 15idade Variante 14 a 60 40 a 60 14 a 60 14 a 60 30 a 70Renda Variante p/Família 250 a 380 21 a 370 80 a 400 50 a 250 50 a 200

Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados da pesquisa

Page 226: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

226

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

A produção mensal, englobando as cinco amostras, ultrapassa 9.500 unidades, alcançando a soma de 13.000 quilos, sabendo-se que os modelos de tapetes são variados e possuem diferentes tamanhos.

O valor médio pago às crocheteiras gira em torno de R$ 2,00 a R$ 3,00 por peça, sendo o de menor preço na faixa de R$ 1,50 e o de maior preço na faixa de R$ 6,00. Os ganhos médios variam de R$ 50,00 a R$ 400,00 por mês.

Confrontando os valores unitários pelo valor total pago, sugere-se que uma crocheteira trabalharia 8 horas/dia, de segunda-feira a sexta-feira.

Em outro momento, a entrevistada confirma essa possibilidade de produção/dia, quando diz: “(...) tem gente que faz 5 a 6 tapetes por dia (...)” (entrevista 1).

Para determinar o horário de trabalho, buscou-se o mais comumente usado conforme a lei da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Percebe-se, então, que para a produção diária de 8 unidades, a crocheteira teria que trabalhar mais do que 8 horas/dia.

A entrevistada, ao relatar a capacidade de uma crocheteira tecer de 5 a 6 unidades/dia, não soube dizer quantas horas são dispensadas para esta produção, pois ela não tem um controle ou um estudo documentado sobre este fato, já que a produção é toda feita na casa de cada trabalhador (a), tendo a atribuição de controlar o seu tempo entre o crochê e os afazeres domésticos.

Uma das questões elaboradas foi a do contingente de pessoas envolvidas na produção dos tapetes; as entrevistadas não souberam dizer o total, pois sua forma de controle é por um representante da família, mas variam entre 110 a 280 famílias. Um dos municípios conta com apenas 15 famílias cadastradas. Nesse caso, relatou-se que no início do projeto eram cerca de 110 famílias, mas houve um desinteresse pela maioria, porque os trabalhadores questionavam os valores pagos.

Cabe ressaltar que em muitas dessas famílias existem mais de uma pessoa que participa na produção dos tapetes, pois a idade variante dos participantes encontra-se na faixa dos 14 a 70 anos. Em um dos instrumentos aplicados, relatou-se, em uma família, a existência de uma criança de 8 anos já tentando tramar suas primeiras laçadas na confecção de tapetes. Uma das entrevistadas confirma esse fato: “Esse menino olha,[sic] ele faz junto com a mãe dele (…) tem uns 12, 13 anos” (entrevista 1).

Há a informação de que há apenas dois atravessadores que mantêm relações comerciais com as prefeituras da região do Vale do Ivaí, sendo que um é originário da própria região e outro procedente de outro estado. Neste

Page 227: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

227

Nas meadas do barbante:

segundo caso, um ponto a ser registrado é o anonimato que é imposto ao trabalho das crocheteiras, pois os tapetes, ao chegarem ao estado de destino para serem comercializados, tomam a identidade de produção local, onde chega a ter reconhecimento internacional.

Sabe-se que o atravessador é, também, o produtor do barbante, o que leva a supor que ele domina desde a produção da matéria-prima até o produto final, já que também se encarrega do transporte e de todos os trâmites que ensejam sobre a produção.

Não se pode afirmar, contudo, que ao retirar a matéria-prima para entregar às crocheteiras, ele emite ou não documentação fiscal e tributária, porém nota-se que, neste modelo de produção, a emissão de nota fiscal bem como de documentos comprobatórios de origem, destino e de controles apresenta algumas falhas, dependendo apenas de anotações em cadernos sem identificação alguma.

A falta de políticas públicas eficientes e eficazes na proposição de programas de geração de trabalho e renda faz com que prefeituras tenham uma forte dependência do capital que possuem esses atravessadores. Observa-se esta dependência, quando a entrevistada cita o atravessador como sendo indispensável para a manutenção dos projetos de geração de renda, ao afirmar que “(...) o atravessador não é um mal necessário, por que eu acho assim que a princípio é o que tá ajudando a gente, (...) é complicado a gente sair daqui e ir em busca lá fora, (...) eu sei que a quantidade de barbante que a gente faz a gente tem condições, sabe... de ir muito além... que a gente tem condições de por 6000 tapetes mensal, faz (…) a gente sabe que estes tapetes é muito caro né (...)[sic]” (entrevista 1).

Nos diálogos travados, um fator que chamou a atenção é que as famílias têm a produção de tapetes como complementação de renda, porém, no momento em que se cita que homens também estão tecendo os tapetes faz supor que a produção não é tão somente complemento de renda e sim se torna a renda principal de algumas famílias, pois os cadastros feitos tanto pelo CRAS como pela APMI são em quase sua totalidade em nome das mulheres. Nesse sentido, não se sabe dizer em quantas famílias a receita do trabalho em barbantes é complemento de renda e em quantas é considerado como renda principal.

Identificou-se que as famílias geralmente são beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF). Conforme esclarecido, esta inclusão não é um requisito para participarem dos projetos de geração de renda (confecção ou artesanato) promovidos pelo CRAS, mas indica que tais iniciativas são direcionadas para as famílias de maior vulnerabilidade, ou seja, usuárias

Page 228: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

228

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

dos benefícios e programas da política de assistência social. Por outro lado, não há indicação legal de que os beneficiários do PBF são condicionados a frequentarem os projetos de geração de renda como requisito para receber o benefício.

Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2010), o (PBF) é um programa de transferência direta de renda, com condicionalidades, para famílias em situação de pobreza. O objetivo é garantir o direito à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome.

De acordo com o MDS (2010), o programa pauta-se na articulação de três dimensões essenciais: promoção do alívio imediato da pobreza por meio da transferência direta de renda; reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de saúde e educação, por meio do cumprimento das condicionalidades; coordenação de programas complementares que têm por objetivo o desenvolvimento das famílias. São exemplos de programas complementares: programas de geração de trabalho e renda, alfabetização de adultos, fornecimento de registro civil e demais documentos.

Conforme proposto no Sistema Único da Assistência Social (SUAS, 2005), o CRAS deve ofertar, entre outros serviços, a promoção para inserção no emprego e geração de renda e incentivo para Economia Solidária com sustentabilidade. O objetivo de tal promoção é a superação da situação de vulnerabilidade e pobreza da população, bem como da dependência contínua de programas de transferência de renda, ou seja, visa ao desenvolvimento humano e social mediante a inserção produtiva.

Contudo, diante do contexto dos programas de geração de trabalho e renda em foco neste estudo, nota-se que tais iniciativas são assistencialistas e tuteladoras, ao invés de emancipadoras. Tal situação é provocada tanto pelo contexto político, social e econômico da região quanto pela conjuntura macrossocial. Pode-se aplicar aqui, para reflexão, a análise de Tavares (2004), quando argumenta que tais iniciativas de trabalho informal não visam ao fim capitalista, no entanto não deixam de ser funcionais, pois são geradoras de renda que permitem consumo e cumprem o papel de mascarar o nível de desemprego.

Por outro lado, ficou claro que a realidade dos grupos pesquisados enquadra-se como trabalho informal diretamente funcional à acumulação de capital, pois se configura como processo de terceirização, à medida que “[...] o trabalhador desempenha a mesma função para o capital, embora

Page 229: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

229

Nas meadas do barbante:

em condições precárias e sem nenhuma proteção social” (TAVARES 2004, p.23).

6 Considerações finais

O estudo demonstra que o capitalismo tem buscado alternativas para a manutenção das altas taxas de lucro. Uma das estratégias tem sido explorar ainda mais a classe que depende do trabalho para sobreviver. Isso tem determinado situações de trabalho extremamente precárias, como é o caso das crocheteiras de barbante dos municípios do Vale do Ivaí.

Diante do fato da situação econômica da região não possibilitar uma maior geração de emprego e renda, muitas pessoas têm buscado estratégias de sobrevivência a partir do trabalho artesanal. Essa tem sido a única forma de complementar a renda da família, já que a maioria das artesãs é beneficiária do Programa Bolsa Família e, em alguns casos, é a única fonte de renda no atendimento das necessidades básicas. Isso tem determinado a fragilidade por parte das crocheteiras em se opor à manutenção de práticas extremamente perversas por parte dos empregadores, aceitando passivamente as condições extremamente precárias de trabalho.

Por outro lado, apresenta a ausência do Estado em assumir sua responsabilidade em efetivar o direito ao trabalho garantido na legislação brasileira. A proposta neoliberal tem prevalecido, deturpando a ideia de cooperativismo e solidariedade, à medida que atribui ao indivíduo a responsabilidade de prover sua renda. Isso tem se dado na medida em que não há políticas públicas capazes de atender às necessidades dos trabalhadores excluídos do acesso ao trabalho.

As condições econômicas, sociais e políticas têm favorecido a extrema exploração dos trabalhadores, a partir da consolidação de condições extremamente precárias de trabalho. Enquanto o objetivo maior é ampliar as taxas de lucro, legitima-se a barbárie nas relações entre o capital e o trabalho.

A ação do Estado, que deveria providenciar proteção social criando estratégias para consolidação e viabilização dos direitos sociais, contribui, na realidade, para a manutenção e a reprodução das relações de exploração próprias do sistema capitalista, nas quais o desemprego e a precarização do trabalho são determinantes.

Nessa perspectiva, o presente estudo apresenta como esse fenômeno tem se configurado nos municípios do Vale do Ivaí. O trabalho precarizado das crocheteiras demonstra a situação de trabalhadores terceirizados com

Page 230: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

230

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

ausência de qualquer direito previsto na legislação brasileira. Essa situação de exploração é justificada e legitimada como sendo a única saída para essas famílias.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 9.ed. São Paulo: Cortez; Campinas, 2003.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2004.

BARBOSA, Rosângela N. C. A Economia Solidária como Política Pública - Uma tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

______, Rosângela N. C. Economia Solidária: estratégias de governo no contexto da desregulamentação social do trabalho. In: SILVA, Maria Ozanira da Silva.; YAZBEK, Maria Carmelita (Org.). Políticas Públicas de Trabalho e Renda no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2008. p. 90-129.

IPARDES - Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social. Índice de Desempenho dos Municípios Do Estado do Paraná 2005-2006-2007. disponível em: <http://www.ipardes.gov.br/pdf/indices/indice_geral.pdf.> Acessado em: 29 mar. 2010.

MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984, v. 1

MATTOSO, Jorge. O Brasil Desempregado: Como foram destruídos mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.

______.O Brasil Desempregado: Como foram destruídos mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

MDS. Bolsa Familia disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/o-que-e/>. Acessado em: 12 mai. 2010.

POCHMANN, Marcio. Política de emprego e renda no Brasil: algumas considerações. In: BÓGUS, Lucia; PAULINO, Ana Yara (Orgs.). Políticas de emprego, políticas de população e direitos sociais. São Paulo: EDUC, 1997, p. 21-46.

______. O Emprego na Globalização: a nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. Boitempo. São Paulo, 2001.

______, Marcio. Rumos da Política do Trabalho no Brasil. In: SILVA, SILVA Maria Ozanira da; IAZBECK, Maria Carmelita (Org). Políticas Públicas de Trabalho e Renda no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2008. p. 23-40.

Page 231: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

231

Nas meadas do barbante:

SERRA, Rose. Enfrentamento do desemprego/subemprego – alternativas de trabalho/renda na atual conjuntura brasileira. In: FREIRE, Lúcia M. B.; FREIRE, Silene de Moraes, CASTRO, Alba Tereza Barroso de (Org.) Serviço Social Política Social e Trabalho - Desafios e Perspectivas para o Século XXI. São Paulo: Cortez, 2006. p. 202-217.

SILVA, Maria Ozanira da Silva; YAZBEK, Maria Carmelita (Org.). Políticas Públicas de Trabalho e Renda no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2008. p. 23-40.

SINGER, Paul Israel. Economia solidária: um modo de produção e distribuição. In: SINGER, Paul; SOUZA, André R. de. A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo, Contexto, 2000.

TAVARES, Maria Augusta. Os Fios (In)Visíveis da Produção Capitalista: informalidade e precarização do trabalho. São Paulo: Cortez, 2004.

Page 232: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS
Page 233: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

233

TRABALHO, CONTEMPORANEIDADE & PSICOLOGIA SOCIAL: NOTAS E OUTROS APONTAMENTOS SOBRE A PRODUÇÃO

DE GRUPOS DE GERAÇÃO DE RENDA NO PROGRAMA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Márcio Alessandro Neman do Nascimento

1 “A roda do capital, a roda da vida social...” - uma breve consideração sobre o trabalho e suas implicações nos modos de vidas cotidianas

A modernidade começou a se configurar no século XV, no período da ascensão do Renascimento e ressurgimento do homem como centro da produção do conhecimento. Esse momento histórico também é marcado por um desenvolvimento acelerado do comércio, muitas produções culturais significativas e, principalmente, do ordenamento e desdobramentos do processo de urbanização1 em territórios concentrados para trocas mercantis e sociais. Com o advento da Revolução Francesa (e seus ideais liberalistas) e Revolução Industrial no século XVIII, estabeleceu-se a emergência das relações de produção mercantis que, por sua vez, (re)montou à classe dominante burguesa e, assim, ao fortalecimento do Capitalismo. Sobre esse processo de urbanização, Rosen (1994) indica que o crescimento desenfreado da industrialização mobilizou o deslocamento de muitas famílias rurais para regiões em desenvolvimento urbano, ocasionando o inchaço ocupacional que, por sua vez, incitou ainda mais a miserabilidade e a condição sub-humanas de vida. É nesse contexto de urbanização que surgem as intervenções do Estado nos momentos de crise, como foi o caso das Reformas Sanitárias e também a contribuição para os processos de estigmatização de trabalhadores e desempregados.

O Capitalismo atinge seu auge entre o final do século XIX e início do século XX, caracterizando-se pela expansão de produtividade industrial,

1 Sobre a importância da urbanização no impacto social e na produção de subjetividade, Guattari diz: “A cidade produz o destino da humanidade: suas promoções, assim como suas segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da criação em todos os domínios. constata-se muito freqüentemente um desconhecimento desse aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção da subjetividade”. (1992, p. 173). Ver: Guattari, Félix. (1992). caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34.

Page 234: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

234

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

avanços científicos e tecnológicos de manuseio de ferramentas (como por exemplo, a máquina a vapor, a locomotiva, maquinário fabris, meios de comunicação, eletricidade), e a busca incessante de novos mercados por meio da internacionalização de produtos a serem vendidos em grande escala. Nesse contexto, segundo Marx (2002; 2004) e Lafargue (1999), foi estabelecida a lógica da mercadoria - que traz em seu bojo constituinte a rentabilidade e a competitividade entre os mercados. Na sociedade capitalista, ordenada pelo lucro, tudo deve ser transformado em mercadoria, incluindo as relações humanas e o trabalho.

Partindo da contextualização supracitada, observa-se que a passagem da classe de escravos para empregados/proletariados configurou o engendramento do giro de capital (por meio do consumismo e da existência competitiva), entretanto, não possibilitou aos trabalhadores condições favoráveis para se estabelecerem como sujeitos de direitos. Assim sendo, Castel (1998) indica que o assalariado acampou durante muito tempo a marginalidade social, permanecendo subordinado e classificado pela sua inscrição no trabalho (centrada na família, na sociedade concreta e no poder de consumo), porém essa realidade catastrófica fez com que refletisse e colocasse em um patamar crítico para análise a questão do papel do trabalho enquanto grande eixo integrador difundido durante todo o século XX. A discussão, segundo esse autor, circunscreveu na ideia de que a sociedade salarial, sobretudo, pressupõe um lugar a ser ocupado na divisão social do trabalho e da vida cotidiana, não sendo somente a renda, mas conceitos como identidade, status, proteção, entre outros, propulsores do reconhecimento ou marginalização social.

Essas ditas verdades sobre a sociedade salarial estabeleceram relação entre o trabalho formal e bens de consumo como condição para participar, de modo ampliado, da vida social e assegurar direitos, tais como: alimentação, habitação, instrução, lazer, saúde, transporte, entre outros. Esse direcionamento de fluxos de ideias fez com que a classe operária vinculasse o salário não apenas enquanto retribuição pontual de uma tarefa, mas como uma forma de viver em uma sociedade excludente, visão vigente até os dias atuais. No entanto, observa-se, na contemporaneidade, um esfacelamento das produções de trabalho e o surgimento de novas estratégias em nome do poder, do controle e da disciplina dados pelo capitalismo; as frequentes mudanças de estratégias desse sistema econômico são pulverizadas pelos constantes riscos, fragilidades e incoerências que ele próprio apresenta e que podem

Page 235: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

235

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

ser descobertos a partir de um posicionamento crítico sócio-histórico e político2.

Sobre esse posicionamento, autores como Lesbaupin (1999), Moraes (2001) e Montaño (2003) ponderam sobre o sucessivo desmonte do sistema de proteção e garantias progressivamente vinculadas ao trabalho assalariado, assim como a desestabilização da ordem do trabalho que repercute em diferentes setores da vida social e pessoal. Esse desmonte é descrito por Montaño (2003) como sendo alavancado por estratégias hegemônicas e neoliberais do grande capital, da reestruturação produtiva e reforma do Estado, do processo de globalização de produção e distribuição de produtos para mercados dados no campo virtual, pela financeirização do reinvestimento do capital (frente às novas crises de superprodução) e superacumulação dos mercados instáveis. Sobre essa questão exposta, Fonseca (2002, p. 13) diz:

[...] Os modos de trabalhar territorializados e territorializantes encontram-se, no momento atual, em convulsão, como de resto outros aspectos da vida em sociedade. A globalização e a internacionalização do capital, associadas ao incremento da ideologia neoliberal, meritocrática e individualista, têm introduzido, no âmbito da sociedade globalizada, um paradigma de relações sociais marcado pela conflitualidade, pelas desigualdades, pelo modelo homogeneizador do capital, cuja lógica molar e supracodificante se estende aos campos da cultura e do cotidiano dos diferentes grupos sociais

Através dessa perspectiva teórica, para se pensar acontecimentos sociais e, subsequentemente, analisar os processos de subjetivação dos sujeitos, reflete-se sobre as incertezas processuais trazidas no mundo do trabalho e nos modos de sujeição dos trabalhadores inscritos em uma sociedade democrática e de direitos (ou que pelo menos busca a justiça social e a igualdade de direitos). Nesse panorama político neoliberal e

2 Pode-se remeter às lutas dentro de fábricas, formação de sindicatos e associações e mobilização social contra-hegemônica. Embora essas lutas não sejam iniciadas nas décadas de 1960 e 1970, é nesse momento histórico, em conjunto com outras reivindicações políticas, que o proletariado se manifesta, principalmente, contra a gestão ditatorial instalada no Brasil. Também se deve lembrar os ganhos trazidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943 por meio do decreto-lei nº 5.452. Ver: BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943: Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 1 mai. 1943. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del5452.htm>. Acesso em: 13 mar. 2009.

Page 236: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

236

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

globalizado, de profundas modificações na ordem social mundial, mas também de reconhecimento de uma pluralidade do trabalho e de singulares maneiras de organizá-lo, encontramos a proposta da Economia Solidária.

2 Sobre a Economia Solidária e o interesse da psicologia social nesse modo de gestão de produção de renda, de subjetividades e de vida

Embora a Economia Solidária (ES) seja mais fortemente difundida no transcurso dos anos 1980 na Europa e, na década de 1990 no Brasil, Singer (2002a, p. 83) aponta que esta proposta de gestão de grupos de geração de renda foi inventada por operários,

[...] nos primórdios do capitalismo industrial, como resposta à pobreza e ao desemprego resultantes da difusão ‘desregulamentada’ das máquinas-ferramenta e do motor a vapor no início do século XIX. As cooperativas eram tentativas por parte de trabalhadores de recuperar trabalho e autonomia econômica, aproveitando as novas forças produtivas. Sua estrutura obedecia aos valores básicos do movimento operário de igualdade e democracia, sintetizados na ideologia do socialismo. A primeira grande onda do cooperativismo de produção foi contemporânea, na Grã-Bretanha, da expansão dos sindicatos e da luta pelo sufrágio universal.

Percebem-se, após dois séculos (já no século XXI), tentativas sociais de superação das estratégias de marginalização similares às utilizadas por operários no início da Revolução Industrial. Ao invés do surgimento de “máquinas-ferramenta e do motor a vapor”, tem-se, agora, a transformação do mundo do trabalho mediado pela introdução do uso de novas tecnologias, virtualização e imaterialidade do trabalho. Esses dispositivos tecnológicos, consequentemente, trazem a exigência formativa e técnica para a lógica e o manuseio de modos de trabalho informatizado, entre outras cobranças.

A ressurreição da proposta da ES no Brasil, na década de 1990, configurou-se devido às crescentes taxas de desemprego, às mudanças econômicas e às novas exigências de mão-de-obra especializada, indicando a necessidade emergente de implantação de políticas públicas direcionadas para o contingente populacional, que já enfrentava a fome a e miserabilidade. Assim, como estratégias e ações afirmativas em respostas a esses problemas sociais, implantaram-se as “Políticas de Emprego e Geração de Renda”. Sobre esse modo de gestão coletiva, Singer (2002b, p.115) define:

Page 237: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

237

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

Economia solidária é ou poderá ser mais do que mera resposta à incapacidade do capitalismo de integrar em sua economia todos os membros da sociedade desejosos e necessitados de trabalhar. Ela poderá ser o que em seus primórdios foi concebida para ser: uma alternativa superior ao capitalismo. Superior não em termos econômicos estritos, ou seja, que as empresas solidárias regularmente superariam suas congêneres, oferecendo aos mercados produtos ou serviços melhores em termos de preço e/ou qualidade. A economia solidária foi concebida para ser uma alternativa superior por proporcionar às pessoas que a adotam, enquanto produtoras, poupadoras, consumidoras, etc., uma vida melhor. Vida melhor não apenas no sentido de que possam consumir mais com menor dispêndio de esforço produtivo, mas também melhor no relacionamento com familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e colegas de estudo, etc. na liberdade de cada um de escolher o trabalho que lhe dá mais satisfação: no direito à autonomia na atividade produtiva, de não ter de se submeter a ordens alheias, de participar plenamente das decisões que o afetam; na segurança de cada um saber que sua comunidade jamais o deixará desamparado ou abandonado.

Partindo da definição proposta pelo referido autor, analisa-se que a ES firma-se como um processo emancipatório, estratégia de resistência econômica para populações em condições de baixa renda ou miserabilidade. Ainda, a ES propõe o enfrentamento da reprodução e manifestação do modo capitalismo gerir o cotidiano. Para tanto, investe em uma rede solidária que empodera grupos de trabalhadores por meio de oportunidades viáveis de renda. Essa viabilização pode ser traduzida em ações que convergem para a integração de redes de grupos consumidores que, por sua vez, se conectam com outros grupos de produtores, fornecedores, prestadores de serviços, entre outros. Essas ações integradoras são dadas em um processo de cooperação, solidariedade e, respeitando uma gerência de sustentabilidade, eticamente ecológica, sem condições de trabalho de exploração, ilegal ou alienado.

Dessa forma, o posicionamento filosófico, político, tanto quanto a constituição, objetivos e processos recorrentes da proposta da ES configuram-se em objetos de estudo e intervenção da Psicologia Social, sendo problematizada como,

[...] área de conhecimento, passa a estudar o psiquismo humano, objeto da Psicologia, buscando compreender como se dá a construção desse mundo interno a partir das relações sociais vividas pelo homem. O mundo objetivo passa a ser visto, não como um fator de influência para

Page 238: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

238

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

o desenvolvimento da subjetividade, mas como fator constitutivo. (...) o homem é um ser social por natureza (...) cada indivíduo aprende a ser um homem nas relações com outros homens, quando se apropria da realidade criada pelas gerações anteriores, apropriação essa que se dá pelo manuseio dos instrumentos e aprendizado da cultura humana. O homem como um ser social, como um ser de relações sociais, está em permanente movimento (BOCK; FURTADO, 1993, p.133).

Portanto, para se compreender a Psicologia Social, deve-se pressupor um posicionamento político filosófico que aceita o homem como uma construção sócio-histórico-político e cultural, como produto/produtor de acontecimentos, a partir de sua intervenção no mundo, agenciando continuidades de dadas realidades ou a ruptura com normativas essencialistas impostas que produzem subjetividades normatizadas ou singulares. Por subjetividade, ou produção de subjetividades, pode-se refletir como um processo de multiplicidades de enunciados no fluxo do campo social e do desejo permeados por engendramentos sócio-históricos que, por sua vez, produzem práticas sociais, ou seja, práticas discursivas (ROLNIK, 1989). São essas práticas discursivas que nos levam a pensar o trabalho, o trabalhar e o trabalhador e suas relações com as culturas, os estilos de vida e a constituição dos sujeitos. Historicamente, o trabalho tem sido usado como um poderoso dispositivo de disciplina e controle, isto é, uma condição disparadora de sujeitos disciplinados, controlados e assujeitados ao poder (FOUCAULT, 1987; FONSECA, 2002).

Ainda, a Psicologia Social, como área de produção de conhecimento, traz em seu bojo constituinte, diversas teorias, especialidades e ramificações que se propõem a problematizar questões relacionadas ao mundo do trabalho, como por exemplo, a psicologia organizacional e do trabalho; a psicologia comunitária; estudos sobre processo grupal e coletivo; saúde do trabalhador e suas condições de trabalho e, mais recentemente, a inserção do psicólogo nas políticas públicas - entre elas, a Política Nacional da Assistência Social.

3 “Por uma Economia mais Solidária”: problematizando a prática e implicação do psicólogo social na proposta sa Economia Solidária

A experiência e início de proposta de intervenção com grupos de geração de renda surgiu em abril de 2008 e seguiu até março de 2009, período em que fui contratado como psicólogo no Programa de Atenção

Page 239: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

239

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

Integral à Família (PAIF), para trabalhar no Centro de Referência da Assistência Social da região sul (CRAS/Sul A). O PAIF era considerado uma das principais estratégias da Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Embora o PAIF fosse descrito para atuar com população em situação de baixo e médio grau de vulnerabilidade social3, em Londrina esse programa adquiriu uma função diferenciada do resto do Brasil, pois atuava com população em contexto e situação de alto grau de vulnerabilidade social no território e demografia demarcada como Região Sul pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Londrina. Dentre muitas atribuições dadas também ao setor da psicologia, estava presente o auxílio à implementação de ações diferenciadas para o acompanhamento dos grupos da ES da Região Sul do município. A solicitação, na época, era para auxiliar o coordenador técnico da ES da Região Sul a fortalecer a coesão e a problematizar, junto aos grupos, as condições facilitadoras e dificultadoras da manutenção dos mesmos. Entretanto, as questões mais solicitadas e as demandas identificadas eram relacionadas ao desenvolvimento de habilidades sociais, ao relacionamento interpessoal e à grande evasão dos integrantes.

3.1 Caracterização da população acompanhada

Quando iniciaram os encontros com os grupos, eles se configuravam da maneira a ser descrita a seguir. Foram acompanhados, para essa pesquisa, 8 grupos, denominados aqui por numeração:

3 O conceito vulnerabilidade social pode ser compreendido como uma ampliação dos acontecimentos sociais de modo não isolado ou individual; recorrem-se aos aspectos sócio-históricos e políticos relacionados aos processos coletivos, contextuais, condições objetivas e subjetivas que favorecem para que determinadas populações estejam mais susceptíveis que outras. Sugerem-se, como exemplo, os processos de estigmatização e práticas sociais violentas determinadas por marcadores sociais de diferenças e suas interseccionalidades devido ao: gênero, sexualidade, práticas sexuais, raça/etnia, classe social e econômica, geração (idade), nível de instrução/cultural, oriundos de certas territorialidades, estética (deficiência física, padrões normativos de beleza), entre outros. Este conceito é problematizado também por mim em minhas pesquisas e atuações relacionadas aos adolescentes em conflito com a lei, população de rua, grupos estigmatizados por questões de orientação sexual e identidade de gênero distintas das impostas pela normativa social, entre outros. A condição de vulnerabilidade social dificulta ou nega o acesso a bens de consumo, de prestação de serviços, grau de empregabilidade, expondo os sujeitos às condições precárias de vida e de saúde. Ver: CALAZANS, G. J. et al. O conceito de vulnerabilidade. In: PADOIN, S. M. M. et al. (org). Experiências interdisciplinares em AIDS: interface de uma epidemia. Santa Maria: UFSM, cap. 4, 2006.

Page 240: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

240

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Grupo 1: Inicialmente contava com oito integrantes e permaneceu apenas com três mulheres, casadas, negras e idades entre 45 e 55 anos. Passaram pela produção de pano de prato, vidro ornamental, sabonete, gesso, biscuit, bijuterias e, por fim, decidiram comercializar apenas produtos feitos com crochê de barbante. Uma característica marcante do grupo era a organização presente nas divisões de tempo, produção e reuniões específicas para questões administrativas. Os encontros, as solicitações de encomendas e os investimentos eram anotados em um caderno Ata de Reunião, de maneira que todos participavam das decisões. Em decorrência da morte de uma das integrantes (mãe de uma das três que continuaram), optou-se em manter o grupo, mesmo com o pouco retorno financeiro. A persistência promoveu a continuidade e firmamento desse coletivo.Grupo 2: Apenas dois dos três integrantes permaneceram no cultivo de flores. O grupo era constituído somente por homens e a diferença geracional (de idade) entre os dois integrantes era expressa em 32 anos; ressalta-se esse marcador de idade devido à identificação de práticas discursivas discrepantes entre ambos, trazidas por modos de subjetivação sobre o trabalhar, datada historicamente. Enquanto o mais velho, aposentado e oriundo da zona rural, acreditava na persistência do plantio e no processo árduo do trabalho (permanecia o dia todo no local de trabalho), o integrante mais novo exigia condições de trabalho, um salário, financiamento e doação de um pedaço de terra em seu nome e, não se importava com a técnica do plantio. Além disso, o integrante mais novo não aceitava a entrada de novos participantes e dizia que só abandonaria o grupo, se fosse pago o tempo de serviço prestado por ele. Grupo 3: O grupo composto apenas por três mulheres elencou confecções pelo processo de tear como produto a ser comercializado por elas. A característica desse grupo era a idade das integrantes, que variava entre 50 e 60 anos; apresentavam muitos problemas de saúde e dificuldades relacionadas à qualidade dos produtos, que eram recusados para o comércio. Devido à falta de manutenção do maquinário de tear, o grupo não podia ser aumentado. A dificuldade de relacionamento interpessoal era extrema sendo, às vezes, necessária a intervenção de coordenadores para que se respeitasse o trabalho uma da outra e pudessem produzir de maneira coletiva. Não obtinham produção qualificada para ingressar na etapa da comercialização e permaneciam em razão da função ocupacional do grupo.

Page 241: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

241

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

Grupo 4: Grupo de costura formado por 6 mulheres; formado por parentes, amigas e vizinhas. Devido à demanda do mercado, na época, antes mesmo do início da etapa da comercialização, o grupo já tinha encomendas relacionadas à confecção de bolsas de pano para serem distribuídas em congressos. Mediante as condições facilitadoras, utilizaram a aprendizagem da capacitação com as máquinas de costura para confeccionar os pedidos de bolsa, recebendo um valor monetário alto (se comparado à economia da época e ao pouco tempo de investimento no grupo). Após receber o pagamento, decidiram não investir no grupo, pois acreditavam que o tempo despendido de cada participante e as produções das mesmas eram distintas e, portanto, não iriam designar parte do dinheiro recebido no e para o grupo, salvo a possibilidade do fomento fornecido pelo Programa da Economia Solidária fosse recorrente, ou seja, ter lucro sem investimento e sem compromisso coletivo e solidário. Também nesse grupo, havia uma das integrantes com artrite e pouco refinamento no corte e na costura, convidada indiretamente a se retirar do grupo pelas colegas.Grupo 5: Formado por três mulheres jovens que procuravam desenvolver habilidades para atuar como manicure/pedicure e cabeleireira. Após a capacitação, as ausências nas reuniões eram recorrentes, justificadas pela tentativa de abrir um negócio próprio, porém de modo individual e sem a participação de outros integrantes. Grupo 6: Seis mulheres acima dos 45 anos confeccionavam guardanapo de pano (pano de prato) e pintura no tecido. Grupo de característica festiva e afetuosa, receptivo com outras companheiras, porém apenas metade dos produtos confeccionados era aceitável para a comercialização. Outro agravante que dificultava a aceitação do material do grupo era referente ao preço, pois competiam com panos de prato de lojas de “R$ 1,99” (que os vendiam a R$ 1,00 real). Outra característica do grupo era a ajuda mútua (designavam atividades entre elas de acordo com a possibilidade de cada integrante), a persistência em vender os materiais pelas ruas, casas e associações religiosas.Grupo 7: O único grupo de composição mista entre gêneros; três mulheres acima de 45 anos e um homem acima de 55 anos produziam salgados. O grupo contava com a possibilidade de expansão ocasionada pela ausência de fornecedores de salgados para festas e outros tipos de consumo. O dilema emergente era como proceder com a exigência dos respectivos maridos para que nenhum homem participasse do grupo. Embora o senhor fosse casado, tivesse um ótimo relacionamento com as

Page 242: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

242

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

participantes e tivesse auxiliado na capacitação (foi vendedor de salgados), duas integrantes ameaçavam se retirar do grupo, caso ele continuasse. Além disso, existia a problemática típica dos grupos que trabalhavam com alimentos: o cumprimento das exigências da Vigilância Sanitária em relação ao local e aos manuseios dos materiais e ingredientes.Grupo 8: Composto apenas por duas integrantes, que eram parentes. Produziam bombons de chocolate recheados. Esta dupla já possuía autossuficiência para a manutenção do grupo, devido ao bom aceite e distribuição do produto. Todavia, não aceitavam a entrada de nenhum membro no grupo e ameaçavam parar a produção se o fomento e estrutura disponibilizada pela ES fossem retirados, uma vez que não queriam investir o recurso conseguido pelas vendas no próprio grupo.

Algumas particularidades presentes entre os integrantes dos grupos eram: ser usuários do Centro de Referência da Assistência Social, receberem ou já terem recebido auxílio financeiro pelo Programa Fome Zero, ou Bolsa Família, ou auxílio alimentação do município. Outro apontamento relevante diz respeito ao fato de uma parcela significativa (mais de 50%) dos integrantes serem oriundos da zona rural e estarem sob a condição do analfabetismo. Em relação ao trabalhado formal, quase a totalidade das mulheres nunca havia trabalhado com carteira assinada, em virtude das condições das Leis Trabalhistas. Ainda, em relação ao gênero feminino, na média de 50% era arrimo de família (dentro de um modelo monoparental) ou ainda, eram avós que cuidavam de netos e filhos em suas residências; esses dados tornam-se relevantes, quando endossam o quadro nacional brasileiro relativo à feminilização da pobreza. A evidência de problemas de saúde também eram recorrentes entre os participantes.

3.2 O “fazer” e o “analisar” pesquisa sobre grupos de geração de renda na proposta da Economia Solidária

O processo da pesquisa iniciou-se mediante diversas fontes de informações que, em um primeiro momento, apresentavam-se de maneira dispersa e sem sentido. A partir do processo sistemático de acompanhamento dos grupos, foi possível verificar como cada um compreendia as etapas propostas pela Economia Solidária relacionadas às etapas de motivação, capacitação, produção e comercialização.

Com a realização de observações diretas e participativas dos encontros dos grupos nos locais onde eles trabalhavam, foi possível notar a frequência de ações convergentes com a proposta da ES e as divergências relacionais

Page 243: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

243

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

entre os participantes, que dificultavam a continuidade de alguns integrantes nos encontros. Toda observação e informação trazida por integrantes, discussões problematizadas em conjunto pelos grupos e visitas quinzenais com cada grupo (grupo focal) eram anotadas em um caderno de campo, que visava à organização das informações. Na ocasião desses encontros, eram problematizadas questões relativas ao relacionamento interpessoal e de convivência entre os integrantes, a concretude e respeito às regras por eles elencadas (para atingirem os objetivos e metas estabelecidos), trocas de experiências e a criação de um ambiente de trabalho mais prazeroso e solidário.

As visitas aos locais, onde cada grupo se reunia, visavam construir um processo exploratório, denominado de pesquisa participante com matriz etnográfica (BRANDÃO, 1999; SCHIMIDT, 2006). Nessas situações era possível descrever acontecimentos e práticas discursivas dos integrantes dos grupos, que construíam sentidos e significados para suas ações, revelando processos de subjetivação normatizados pelas ideias cristalizadas sobre emprego ou trabalho, marcadas apenas pela ordem do capital, ou ainda, expressão de sentimentos relacionados ao mal-estar em estar desempregado, não possuir habilidades ou comportamentos requisitados para o ingresso/inserção no mundo do trabalho. O papel assistencialista do Estado em apenas prover benefícios era muito frequente nos relatos dos participantes, uma vez que eles também eram usuários do serviço dos CRAS.

De acordo com Foucault (2003, 2006), os sujeitos podem ser representados por discursos que, por sua vez, revelam subjetividades:

[...] trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições (FOUCAULT, 2003, p. 256).

Partindo do pensamento foucaultiano, apresentaram-se, nesta pesquisa, algumas análises de discursos que problematizavam três categorias, ilustradas com alguns recortes de relatos e elencados como: a) o início da formação e características do grupo; b) condições facilitadoras para manutenção do grupo; c) condições dificultadoras para a manutenção do grupo.

O início da formação e características do grupo:

Page 244: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

244

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

O grupo começou na época com a minha mãe, tinha umas... umas oito pessoas, né... daí cada um queria fazer uma coisa, marcavam e num vinham, reclamavam de tudo... tinha muita encrenca e fofoca... ah, tinha as faltas sem justificativas..., mas as pessoas respeitavam minha mãe porque via que ela trabalhava, ajudava os outros a aprender, ela ouvia e dava oportunidade de fazer as coisas... ela não era nossa líder, mas todo mundo respeitava porque ela era persistente; quem queria trabalhar vinha e a gente foi se formando. (Integrante do grupo 1)

Se soubesse como é difícil para um homem na minha idade não fazer nada; parece que a vida parou. Num dá certo ficar só em casa e vendo as coisas faltando... sempre plantei, a terra é grata, tudo que se planta, se colhe. Tive essa oportunidade, me chamaram lá no CRAS e eu vim, e veio mais dois também, tinha esse projeto aqui de plantar e era uma coisa que eu sei fazer bem... o outro ali prefere desacreditar, mas eu vou insistir, porque a terra é de Deus e tudo que se planta, colhe. O pessoal deu oportunidade para nós, conseguiu esse pedaço de terra, mas já tinha avisado que era uma experiência que podia dar certo... ou não. (Integrante do grupo 2)

Eu nunca trabalhei assim..., só essas coisas de casa mesmo, de cuidar do marido, da roupa, das crianças mesmo. Daí minha vizinha me disse que dava para fazer parte do grupo de pintura de pano de prato e eu vim. Como todo mundo ia entrar, e ninguém sabia nada e iam ensinar, eu vim, gostei e fiquei (risos). (Integrante do grupo 6)

Condições facilitadoras para manutenção do grupo:

O que facilita para o grupo andar é que a gente precisa trabalhar, sabe? A gente monta nosso horário, a gente se reúne e quem não pode vir, se compromete a fazer em casa e trazer a produção. Nós decidimos todo mundo junto, então, se alguém falar que não concorda, a gente lê o que está escrito e daí a gente lembra do combinado. Não importa, se você foi no centro da cidade ou no médico, daí a noite você assiste novela e vai fazendo para todo mundo receber depois. (Integrante do grupo 1)

Eu acho, num sei se eu estou certa, mas as pessoas gostam aqui de se reunir e trabalhar juntas, você viu que a gente ouve até música aqui? O pessoal vem até arrumado (risos). A gente se ajuda e se respeita, a gente foi virando amigas; tinha gente que eu só via no ponto do ônibus e nem cumprimentava, e agora uma passa na casa da outra e grita: “Ô comadre, vamos embora senão a gente vai chegar atrasada” (risos). (Integrante do

Page 245: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

245

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

grupo 6)

Para mim é bom vir aqui, eu saio da depressão, faço amigos e a força de um ajudar o outro é bonita de se ver, a gente se sente mais forte. (Integrante do grupo 6)

Condições dificultadoras para a manutenção do grupo:

Eu acho que o que dificulta é que as pessoas já vêm com a ideia de fazer a capacitação e ir embora, como se fossem fazer um curso não pago que dá até o material. (Integrante do grupo 5)

Quando começa a falta de compromisso desanima quem está querendo trabalhar; você vem e o outro não vem e quer ganhar igual. Pior é quando o “santo não bate”, daí num tem jeito. As pessoas querem pegar a grana e ir embora, não quer continuar. (Integrante do grupo 4)

Eu não acho justo entrar gente nova e já entrar nos lucros. A gente fez tudo já, eu alguém entrar eu saio. [...] eu acho que errado tirarem a ajuda, a gente ganha pouco e daí tiram o fomento..., e a gente vai ficar fazendo as coisas para nada? (Integrante do grupo 8)

Eu sei que sou não enxergo direito e não faço coisas bonitas igual à dona “fulana”, mas se acharem que eu não devo receber, tudo bem, por eu sei que o que ela faz vende e o meu não. (Integrante do grupo 3)

Acho que essa coisa de marido ficar falando quem deve ficar ou sair do grupo não está certo. (Integrante do grupo 7)

A partir dos discursos selecionados para análise, reflete-se sobre a discussão trazida por Foucault (2006, p. 9) em sua obra A ordem do discurso, em que discorre sobre como a produção de discurso, enquanto produto social, é “ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos [...]”, ou seja, o discurso tem como função descrever hierarquizações e relações de poder em acontecimentos aleatórios, sem a obrigatoriedade da materialidade de ações práticas (visíveis aos olhos). Assim, os discursos supracitados nos oferecem pistas para se pensar condições que podem facilitar/dificultar o processo grupal e a questão do empreendedorismo solidário (quando os discursantes apresentam resistências em compreender a proposta da ES).

Page 246: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

246

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

Um primeiro ponto a ser discutido diz respeito ao público destinatário e ao processo do agrupamento para a ES. Como observado nos relatos apresentados na seção a, analisa-se que essa população apresenta características que não preenchem os padrões requeridos pelo mercado de trabalho (marcado por ideias funcionalistas e estéticas de trabalhadores, no que tange à idade, nível de escolaridade, experiência na área de atuação, etc). As condições da formação dos grupos exemplificam o agrupamento de um excedente populacional, que não atinge às exigências mínimas para o ingresso no mundo contemporâneo da empregabilidade, ocasionada, muitas vezes, pelo déficit de habilidades apresentadas pelos mesmos. Ainda, nos relatos da seção a, aponta-se a dificuldade desse público em se perceber enquanto sujeitos de direitos e não apenas tutelados pelo Estado. Isso se explica, muito provavelmente, pelo condicionamento da Política Pública de Geração de Renda com a Política Pública da Assistência Social em fornecer auxílio financeiro para superação de uma dada situação (como por exemplo, o benefício da Bolsa Família).

Também nota-se a ausência de atividades de lazer para ocupar o tempo ocioso no cotidiano dessa população, indicada por um participante quando diz: “Se soubesse como é difícil para um homem na minha idade não fazer nada [...]”. Este relato aponta para a dificuldade em refletir a atividade laboral caseira como trabalho; isto pode ocorrer, possivelmente, pela falta de seguridade para usufruir o período da terceira idade (lazer e cuidado de si) e pela construção sócio-cultural do homem enquanto provedor, proporcionando assim, a reflexão de que o tempo livre deve ser ocupado com mais trabalho. Ainda, revela a ausência de Políticas de Cultura e de lazer nos bairros periféricos do município.

Destarte, observa-se que os marcadores sociais que diferenciam essas pessoas são representados socialmente por processos de estigmatização que os marginalizam ainda mais (e não permitem que ingressem em um trabalho formal). Nesse contexto, produzem-se modos de subjetividades normatizadas e submissas que se expressam, ora na ordem do sentir-se inapto ou incompetente, ora no sentido individulista, competitivo e excludente em menosprezar aqueles que se apresentam em uma condição desfavorável a sua, como por exemplo, a questão da idade, menos eficientes e habilidosos manualmente, entre outros, apresentados na seção c. Entretanto, em uma perspectiva da análise construcionista de discurso, não se pode utilizar categorias binárias de acusação ou julgamento (bom/mau, certo/errado) para compreender a produção subjetiva do que se é dito. Deve-se, primeiramente, contemplar o contexto macropolítico para entender a

Page 247: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

247

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

produção de condições competitivas em que “se exclui ou se é excluído”. Concomitantemente, outros aspectos subjetivos revelados pelos discursos dizem respeito à interiorização de sentimentos de culpabilização individual por estar na condição de desemprego ou subemprego, como se pode notar, constantemente, nos chavões reproduzidos também por essas pessoas: “Quem poupa tem dinheiro”; “Quem é esperto sai na frente, se não vencer o outro, ele te pega...”.

Outro ponto interessante refere-se à visão restrita que essa população tem sobre o conceito trabalho e trabalhar (marcado pela visão apenas mercantilista e imediatista), respaldado pela ideia de sucesso econômico e sem considerar o processo sócio-histórico e político construído culturalmente (mesmo para aqueles que nunca atuaram no mercado formal). Essa maneira de encarar o trabalho sugere situações de exclusão dentro dos próprios grupos, provocando baixa tolerância à frustração e à sensação de estar no prejuízo.

No que tange às condições que facilitam a manutenção do grupo, apresentadas por recortes de falas na seção b, nota-se a importância do relacionamento interpessoal para a manutenção dos grupos. Diferentemente de muitas relações estabelecidas entre empregador/empregado, na proposta da ES o grupo deve tomar decisões em conjunto, assumir compromissos e responsabilidades de modo menos verticalizado e mais participativo. As exigências da tomada de decisão, ter iniciativa e resolver problemas juntos, tornam-se condições que aceleram as diferenças interpessoais e, consequentemente, a continuidade dos grupos. Entretanto, os relatos trazidos na seção b também apontam prováveis resoluções para esses embates, no que diz respeito à função terapêutica proporcionada pelos encontros dos grupos. Essa função dita terapêutica (relacionada à saúde mental) revela que o gerenciamento dos grupos da ES precisa implicar-se em objetivos que extrapolem apenas o cuidado com a gestão administrativa, econômica e produtiva e se atentar aos aspectos relacionais entre integrantes do grupo, de acordo com os relatos ouvidos durante todo o período em que foi realizado esse estudo.

Para quase a totalidade dos participantes, as relações de sociabilidade estabelecidas no local de trabalho são vistas como fator de grande importância para o alcance dos objetivos dos grupos. O contexto prazeroso e descontraído observado no grupo 6 favorece a análise de que ambientes assim aliviam o sofrimento psíquico do cotidiano e possibilitam uma nova construção acerca do mundo do trabalho e da vida profissional, além da obtenção do lucro apenas.

Page 248: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

248

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

4 Considerações finais: reticências ao invés do ponto final

Primeiramente, salienta-se que este estudo diz respeito ao relato de uma experiência, portanto, não representando a proposta da Economia Solidária desenvolvida em outras regiões do Brasil e de outras partes do mundo. Todavia, é fato que é a partir do conjunto dessas experiências relatadas que se propõem novos estudos que podem indicar convergências e divergências em conceitualização, operacionalização e execução de métodos, modos de implantação e criação de estratégias, entre outras possibilidades recorrentes do processo.

Notou-se, nesta pesquisa, que a preparação para a formação dos grupos parte do pressuposto do binarismo dos campos de poder, privilegiando apenas as análises macropolíticas entre opressores (Estado/Capitalismo) e oprimidos (marginalizados), ou seja, privilegiando uma demanda das Políticas Públicas defendidas pelo Estado. Essa binarização do poder não salienta, por exemplo, o Capitalismo como um potente dispositivo estratégico a favor do poder que se pulveriza no cotidiano e agencia os modos de subjetivação também dos integrantes dos grupos.

De maneira geral, um grande número de estratégias desenvolvidas com grupos, de modos diversos, organiza-se em torno do trabalho. Essas estratégias compõem, atualmente, o cenário dos serviços assistenciais prestados pelas políticas públicas, que atendem populações em contextos de vulnerabilidades sociais relacionadas, principalmente, em situação de desemprego, empobrecimento e miserabilidade. Muito embora com algumas divergências metodológicas, muitas dessas políticas públicas, em termos de propostas e objetivos, compartilham do pressuposto de que o trabalho pode servir como ferramenta terapêutica significativa dentro desses grupos participativos.

A função terapêutica na micropolítica do trabalho coletivo proposto pela ES pode estabelecer uma construção diferente sobre o fazer, “desnaturalizando” e “desalienando” a ideia do trabalho sofrido e atrelado apenas ao status e ao fator econômico. Essa nova construção baseia-se na ressignificação do fazer enquanto uma conquista cidadã, dada por uma produção de sentido, significado identitário e expressão subjetiva. Esses apontamentos foram trazidos pelos relatos da população observada, o que sugere que essas questões relacionadas ao efeito terapêutico dos grupos (bem-estar, sociabilidade, produtividade) podem ser vistas em outras experiências territoriais da ES.

Por fim, sair da lógica do capital, em uma análise premeditada, parece quase impossível, entretanto, recorre-se aos estudos de Foucault (2005, p.

Page 249: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

249

trabalho, contEmporanEidadE & psicologia social:

91), que revelam: “[...] lá onde há poder, há resistência [...]”, ou seja, fugir da ordem capitalista pressupõe a utilização de processos criativos em se (re)inventar o mundo do trabalho, não reproduzindo um posicionamento “empregador/empregado” do Programa Economia Solidária. É fato que a conexão realizada entre trabalho-sujeito-produção pelos integrantes dos grupos é esclarecida pelos ideais de participação social e poder de consumir; porém, a experiência pontual com essa população proporcionou questionamentos sobre a importância em se promover a construção dos laços solidários entre os grupos não somente voltados ao trabalho, mas como uma perspectiva política e filosófica tracejada em um itinerário comunitário-participativo, de onde são oriundos esses cidadãos.

Referências

BOCK, Ana Maria; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Saraiva, 1993.

BRANDÃO, Carlos R. (Org.). Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.

FONSECA, Tania Mara Galli (Org.). Modos de trabalhar, modos de subjetivar: tempos de reestruturação produtiva: um estudo de caso. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 19. ed., Petrópolis: Vozes, 1987. p. 172. Tradução de: Surveiller et punir. Naissance de la prison.

______. Estratégia, poder-saber. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 253-266.

______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque. 16. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005. Tradução de: Histoire de la sexualité 1.

______. A ordem do discurso.14. ed. São Paulo: Loyola, 2006.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Page 250: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

250

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec, 1999.

LESBAUPIN, Ivo. (Org.). O desmonte da nação: balanço do governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999.

MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. Tradução de Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2002.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant`Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2003.

MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai?. São Paulo: SENAC, 2001.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec, 1994.

SCHMIDT, Maria L. S. Pesquisa participante: Alteridade e comunidades interpretativas. Psicologia USP, São Paulo, v. 17, n.2, p.11-41, jun. 2006.

SINGER, Paul. A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002a. p. 81-129.

______, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002b.

Page 251: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

251

DADOIS DOS AUTORES

ANA CLAUDIA BANSIGraduada em Administração pela Unitoledo – Araçatuba/SP com especialização em Gestão Contemporânea de Recursos Humanos pela Universidade Estadual de Londrina - UEL, profissional recém-formada da Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Solidários (INTES-UEL), e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGA/UEL. E-mail: [email protected]

BENILSON BORINELLI Professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina, graduado em Administração pela Universidade de Federal de Santa Catarina, mestrado em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Política Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas: política ambiental, economia solidária, responsabilidade social, instituições e meio ambiente. Integrante do Projeto Rede de Apoio à Comercialização de Produtos e Serviços de Socioeconomia Solidária (PROSOL), financiado pelo programa “Universidade Sem Fronteiras”: Extensão Tecnológica Empresarial da Fundação Araucária. Organizador do livro Economia Solidária em Londrina: aspectos conceituais e a experiência institucional. E-mail: [email protected]

BERNARDO OLIVEIRA Graduado em Administração pela Universidade Estadual de Londrina; mestrando em Administração (Programa de Pós-Graduação em Administração - PPGA-UEL), bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

DAyANNE MARCIANE GONÇALVES Professora do curso de administração da UEL, mestranda em Administração (Programa de Pós-Graduação em Administração - PPGA-UEL), pós-graduada em Gestão Orientada para Pessoas (Lato Senso- Unicentro). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Curitiba (Unicuritiba), e pós-graduada em Direito Previdenciário. E-mail: [email protected]

EDSON ELIAS DE MORAIS Professor de Sociologia para o Ensino Médio, graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (2007), graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Atua como pesquisador do Grupo História, Sociedade e Religião/CNPq liderado pelo Prof. Dr. Fabio Lanza e Profa. Dra. Claudia Neves da Silva. Atua também como colaborador do Grupo de Estudos sobre Novas Tecnologias e Trabalho (GENTT).

EMÍLIA VELLA FALLEIROS NETA Graduada em Serviço Social e bolsista do projeto de extensão da Fundação Araucária.

Page 252: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

252

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

FABIO LANZA Graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Campus da UNESP (Bacharelado-1997 e Licenciatura-2001), mestrado em História pela Faculdade de História Direito e Serviço Social Campus da UNESP de Franca (2001) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2006). Atualmente é professor adjunto do ensino superior no Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina (UEL), atuando principalmente nos seguintes temas: sociologia das religiões; trabalho: cooperativismo, geração de renda e informalidade. E-mail: [email protected].

FRANCISCO QUINTANILHA VéRAS NETO Graduado em Direito pela UFSC; Mestre em Instituições jurídico-políticas - UFSC; Doutor em Direito das Relações Sociais - UFPR; Docente da Universidade Federal do Rio Grande - UFRG/FURG. Titular da cadeira de História do Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande, Políticas Públicas de Educação Ambiental do Programa de Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Membro e Líder do GTJUS - (Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade) - Diretório de Grupo de Pesquisa do CNPQ.

IRENE LOPES SALVI Graduada em Administração pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR, Pós-graduada em Administração Industrial pela Universidade Estadual de Londrina - UEL, e Gestão Estratégia de Pessoas pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR. Atualmente é docente na Universidade Norte do Paraná – UNOPAR.

JOSé STEFFERSON PESSOA LELLIS Graduado em Administração e bolsista do projeto de extensão da Fundação Araucária.

JOSEANE DE LIMA Graduada em Administração pela Universidade Estadual de Londrina.

JUSCILENE CHVED Graduada em Administração e Turismo e bolsista do projeto de extensão da Fundação Araucária.

LUÍS MIGUEL LUZIO DOS SANTOS Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Mestre em Administração pela Universidade Estadual de Londrina - UEL; Graduado em Economia e Administração, ambos pela Universidade Estadual de Londrina -UEL. Atualmente é Professor Adjunto do Departamento de Administração da Universidade Estadual de Londrina – UEL. Atua principalmente nos seguintes temas: Socioeconomia, Economia Solidária, Políticas Públicas, Terceiro Setor e solidariedade. Integrante do Projeto Rede de Apoio à Comercialização de Produtos e Serviços de Socioeconomia Solidária (PROSOL), financiado pelo programa “Universidade Sem Fronteiras”: Extensão Tecnológica Empresarial da Fundação Araucária. Organizador do livro Economia Solidária em Londrina: aspectos conceituais e a experiência institucional. E-mail: [email protected]

Page 253: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

253

compEtição ou coopEração, solidariEdadE ou individualismo:

MÁRCIO ALESSANDRO NEMAN DO NASCIMENTO Psicólogo e Professor Universitário. Graduação e Licenciatura em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Atua na área de Direitos Humanos, Psicologia Comunitária e intervenções com populações em contextos e situações de vulnerabilidades sociais. Integrante do GEPS (Grupos e Estudos e Pesquisas sobre Sexualidades). E-mail: [email protected]

MARCIO PASCOAL CASSANDRE Doutorando em Administração pela Universidade Positivo, mestre em Administração pela Universidade Estadual de Maringá, graduado em Administração (FECEA), coordenador do projeto de extensão da Fundação Araucária intitulado “Programa de diagnóstico, formação e aprimoramento de pequenos empreendimentos do setor têxtil, vestuário e calçados do Vale do Ivaí com base na perspectiva da Economia Solidária” do programa “Universidade sem Fronteiras”, docente do departamento de Administração da Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana. E-mail: [email protected]

MARIA NEZILDA CULTI Graduação e Doutorado em Economista pela Universidade de São Paulo (USP/SP) e Mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Atualmente é professora no Departamento de Economia da Universidade Estadual de Maringá - UEM. É também integrante do Conselho Nacional de Economia Solidária e componente do Grupo de trabalho (GT) de Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável da Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho. Desenvolve ensino, pesquisa e extensão, principalmente nos seguintes temas: geração de renda, economia do trabalho, economia solidária, incubadoras universitárias, processo de incubação, cooperativismo/associativismo. E-mail: [email protected]

MAURO GUILHERME MAIDANA CAPELARI Graduado em Administração pela Universidade Estadual de Londrina; mestrando em Administração (Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGA/UEL), bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

SÍLVIA SCHROEDER PELANDA Graduada em Ciências Contábeis – Universidade Estadual de Londrina – UEL, Bolsista Fundação Araucária/UEL

SINIVAL OSóRIO PITAGUAI Professor do departamento de Economia da Universidade Estadual de Londrina – UEL; bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Economia Regional pela Universidade Estadual de Londrina, Coordenador do Projeto Rede de Apoio à Comercialização de Produtos e Serviços de Socioeconomia Solidária (PROSOL), financiado pelo programa “Universidade Sem Fronteiras”: Extensão Tecnológica Empresarial da Fundação Araucária. Organizador do livro Economia Solidária em Londrina: aspectos conceituais e a experiência institucional. E-mail: [email protected]

Page 254: ECONOMIA SOLIDÁRIA NUMA PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

254

Economia solidária numa pluralidadE dE pErspEctivas

SIRLEI ROSE MARTOS Graduada em Administração pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR, especialista em Gestão Estratégica de Pessoas e Logística Empresarial e atualmente é professora na Universidade Norte do Paraná nas áreas de Gestão Empresarial, Recursos Humanos, Marketing e Logística. Mestranda em Administração (Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGA/UEL)

THAyLA FERREIRA Bacharel em Administração pela Universidade Estadual de Londrina; especialista em Gestão Social – UNIFIL.

VALDIR ANHUCCI Mestre em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, graduado em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social de Presidente Prudente e em Ciências Contábeis pela Faculdade de Ciências Contábeis de Lucélia, orientador do projeto de extensão da Fundação Araucária e professor do curso de Serviço Social na Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana. E-mail: [email protected]

WAGNER ROBERTO DO AMARAL Assistente social, professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista/Campus de Marília e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como Coordenador do Programa Paraná Alfabetizado (2004-2008) e como Chefe do Departamento da Diversidade (2008-2010) na Secretaria de Estado da Educação do Paraná.