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Titulo do original em italiano Opera Aperta Copyright by Casa Editrice VALENTINO BOMPIANI & C. Milano Direitos em lingua portuguesa reservados a EDITORA PERSPECTIVA S.A. Avenida Brigadeiro Luis Antonio, 3025 01401 - Siio Paulo - SP - Brasil i;~~fones: 885-8388/885-6878 ,J A. abertiJra de Obra Aherta . IntrodUfQo a edirQo brasileira .. Introduriio a segunda ediriio . ~A. poetica da obra aberta 37 AnQlise da linguagem poetica 67 Croce e ~ey •...•.............. 68 ~ de ttes proposi96es 73 1. Propos~6es com fun~io referencial . . 75 2. Proposi~6escom fun~ sugestiva . . . 76

ECO,Umberto Obra Aberta

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Titulo do original em italianoOpera Aperta

Copyright by Casa Editrice VALENTINO BOMPIANI & C.Milano

Direitos em lingua portuguesa reservados aEDITORA PERSPECTIVA S.A.Avenida Brigadeiro Luis Antonio, 302501401 - Siio Paulo - SP - Brasili;~~fones: 885-8388/885-6878 ,J

A. abertiJra de Obra Aherta .IntrodUfQo a edirQo brasileira ..Introduriio a segunda ediriio .

~A. poetica da obra aberta 37AnQlise da linguagem poetica 67

Croce e ~ey •...•.............. 68~ de ttes proposi96es 73

1. Propos~6es com fun~io referencial . . 752. Proposi~6escom fun~ sugestiva . . . 76

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3. A sugestio orientada .

o estimulo estetico .

o valor estetico e as duas "aberturas" ..

Abert£P'a, informafiio, comunicQfiio

I . A teoria da informacao

Significado e informa~ao na mensagempoetica .

.J Do universo do "sinar' ao universo do"sentido" ...................:

II. Discurso poetico e informa~ao

Aplica~Oes ao dis~urso musical

A informa~ao, a ordem e a desordem

III . Informa~ao e transa~ao psicol6gica ..

Transa~ao e abertura .

Informa~ao e perce~ao ; .

./. A obra aberta nos artes visuais .

A obra como metMora epistemol6gica .

Abertura e info~ao .

J Forma e abertura .

Estruturas est6ticas da transmissio direta ..

()Liberdade dos eventos e determinismos dohAbito .

,Zen e Ocideme '.' .

Do modo de formar como engajamento para coma realidade .

Entrevista com Umberto Eco (A ugusto de Cam-pos) ; .

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180 o pensamento de Umberto Eco caracteriza bas-tante bem 0 momento de desprovincianiza~ao da culturaitaliana, e se tern configurado nestes Ultimos anos comoa expressao do interlocutor talvez mais autorizado -sem dl1vida aquele de maior capacidade formulativa emaior ressonancia - no sentido da retomada de umdiscurso cultural interrompido par mais de vinte anosde ditadura. Com exce~ao do caso especialissimo deBenedetto Croce, nao se teve na ItaIia, por urn taolongo perfodo, nenhum tra~o da batalha de ideias queanimava proftcuamente 0 debate intelectual de muitosoutros paises. Alem de bloquear 0 desenvolvimento dacultura, 0 fascismo conseguiu esterilizar, por absor~ao,

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o que de mais vital se produzira nos anos que prece-deram imediatamente ao seu surgimento, Assistiu-seassim, entre outras coisas, a redu~ao a termos gro-tescamente nacionalistas de um movimento que se ca-racterizara, desde suas primeiras manifesta~es, por uminsopitavel impulso supranacional e cosmopolita: 0 Fu-turismo, cuja violenta carga destrutiva foi encapsuladae transformada em instrumento exatamente por aque-las for~as contra as quais se tinha levantado. Com 0que se verificou 0 absurdo do abandono oU deforma~aode todas as inumeras instiga~oes de que fora rico 0Futurismo, e isto justamente no pais que as vira eclo-dir. Entrementes, fora da ItaIia - e 0 Brasil e umdos mais notaveis exemplos deste processo - tais ins-tiga~es eram recolhidas e frutificavam, influenciandoprofundamente inteiras culturas nacionais atraves demuitos contributos de alto nivel - aqui, nesta distanteAmerica, num Brasil asfixiado pelos Machado Penum-bra, explodia a Semana de Arte Modema de 1922,com 0 seu mentor poetico, Oswald de Andrade, 0 an-trop6fago.

Hoje, com a nova gera~ao de intelectuais a qualpertence Umberto Bco, a Italia reata finalmente urn dia-logo de nivel europeu e intemacional, e vai recuperan-do com rapidez 0 tempo perdido, trabalhando em di-versas dire~oes, Uma das constantes dessa atividade erepresentada pela corajosa retomada de temas aparen-temente exauridos, temas que sac repropostos a umaleitura nova, depois de terem sido objeto de uma re-cupera~ao crftica - uma quase restitui~ao a sua per-dida virgindade.

:e nesse sentido que Obra Aberta repropOe os con-ceitos de comunica~ao, informa~ao, abertura, aliena-~ao e outros, e e a partir de tal empresa de recupera-~ao que se iniciam e fundam as contribui¢es mais ori-ginais de Umberto Bco para a formula~ao de uma poe-tica sobre a abertura da obra.

Dentro de urn campo de interesse claramente cir-cunscrito - a poesia -, encontramos no Brasil certaspostula~Oes anaIogas e mesmo anteriores. No ambitodas pesquisas levadas a efeito pelo Movimento Concretode Sao Paulo, e a fim de definir a problematica funda-mental de urn trabalho poetico em curso, Haroldo deCampos publicava em 1955 0 artigo intitulado "A Obra

de Arte Aberta" 1. Nesse texto, 0 poeta paulista pro-curava delinear "0 campo vetorial da arte de nossotempo", com base na conjun~ao de obras como UnCoup de Des de Mallarme, 0 Finnegans Wake de Ja~~sJoyce, os Cantos de Ezra Pound, os poemas eSpa~IaISde e.e.cummings, a musica de Webem e sellS segUldo-res e os "mobiles" de Calder. A maneira de conclu-sao, 0 articulista se reportava a um dialogo entre Pier-re Boulez e Decio Pignatari, durante 0 qual 0 compo-sitor frances manifestara seu desinteresse por uma obrade arte "perfeita" "chissica". "tipo diamante", decla-rando-se por out;o lado a favor de um obra aberta,como urn barroeo rrwderno, mais apta a interpretar asnecessidades de expressao e de comunica~ao da artecontemporanea.

o conceito de abertura que nos prop5e UmbertoBco e de maior amplitude, na medida mesma em quee mais variado e diferenciado 0 campo de aplica~espor ele submetido a indaga~ao, ~lem, obviaJ?epte, dadiversa possibilidade de desenvolvl1I~entodas ~delas queoferece urn livro em rela~ao a urn Simples artlg!? Ficaevidente, no entanto, a coincidencia de alguns pontosde vistafundamentais : os concretistas, por exemplo,expressam 0 seu desinteresse por uma atividade poe-tica voltada para a cria~ao deobras de arte "tipo dia-mante" (esta posi~ao, alias, e bem caracterfstica dafase inicial, dita "organica" ou "fenomenologica", dapoesia concreta brasileira); Umberto Eco recusa-se aexercitar 0 seu mister de crftico na analise de obras dearte como urn "cristal", ganhando ~ssim a excomu-nMo, em termos polidamente polemi.cos, de ClaudeLevi-Strauss, a luz da "ortodoxia" estruturalista. Eco,na realidade, sustenta urn "modelo teorico" de obraaberta, que nao reproduza uma presumida estrutura ob-jetiva de certas obras, mas represente antes a estrutu-ra de uma relllfiio fruitiva, isto independentemente daexistencia pnitica, fatual, de obras caracterizaveis co-mo "abertas". Ele nao nos oferece 0 "modelo" de umdado grupo de obras, mas sim de um gropo de rela-roes de frui~ao entre estas e seus receptores. Trata-se

(1) Agora na Teoria da Poesia Concreta, Slio Paulo, edil;OesInven-l;lio, 1965, pp. 28-31; veja-se tambem a elaboral<lio_do !ema no estudo"A Arte no Horizonte do Provavel", revista Invenfao, Sao PaulO, nQ 4,dezembro de 1964, pp. 5-16.

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o que de mais vital se produzira nos anos que prece-deram imediatamente ao seu surgimento. Assistiu-seassim, entre outras coisas, a redu~ao a termos gro-tescamente nacionalistas de um movimento que se ca-racterizara, desde suas primeiras manifesta95es, por uminsopitavel impulso supranacional e cosmopolita: 0 Fu-turismo, cuja violenta carga destrutiva foi encapsuladae transformada em instrumento exatamente por aque-las for~s contra as quais se tinha levantado. Com 0que se verificou 0 absurdo do abandono oU deforma~aode todas as inumeras instiga~6es de que fora rico 0Futurismo, e isto justamente no pais que as vira eclo-dir. Entrementes, fora da Its.lia - e 0 Brasil e umdos mais notaveis exemplos deste processo - tais ins-tiga95es eram recolhidas e frutificavam, influenciandoprofundamente inteiras culturas nacionais atraves deml,litos contributos de alto nive! - aqui, nesta distanteAmerica, num Brasil asfixiado pelos Machado Penum-bra, explodia a Semana de Arte Modema de 1922,com 0 seu mentor poetico, Oswald de Andrade, 0 an-trop6fago.. Hoje, com a nova gera~ao de intelectuais a qualpertence Umberto Beo, a Italia reata finalmente um dia-logo de nivel europeu e intemacional, e vai recuperan-do com rapidez 0 tempo perdido, trabalhando em di-versas dire~6es. Uma das constantes dessa atividade erepresentada pela corajosa retomada de temas aparen-temente exauridos, temas que san repropostos a umaleitura nova, depois de terem sido objeto de uma re-cupera~ao crftica - uma quase restitui~ao a sua per-dida virgindade.

:E: nesse sentido que Obra Aberta reprop6e os con-ceitos de comunicayao, informaylo, abertura, aliena-~ao e outros, e e a partir de tal empresa de recupera-~ao que se iniciam e fundam as contribuiyOes mais ori-ginais de Umberto Beo para a formul~ao de uma poe-tica sobre a abertura da obra.

Dentro de um campo de interesse claramente cir-cunscrito - a poesia -, encontramos no Brasil certaspostula~6es an8.logas e mesmo anteriores. No ambitodas pesquisas levadas a efeito pelo Movimento Concretode Sao Paulo, e a fim de definir a problematica funda-mental de um trabalho poetico em curso, Haroldo deCampos publicava em 19550 artigo intitulado "A Obra

de Arte Aberta" 1. Nesse texto, 0 poeta paulista pro-curava delinear "0 campo vetorial da arte de nossotempo". com base na conjun~ao de obras como UnCoup de Des de Mallarme, 0 Finnegans Wake de Ja~~sJoyce, os Cantos de Ezra Pound, os poemas eSpa~lalSde e.e.cummings, a musica de Webem e seus segmdo-res e os "mobiles" de Calder. A maneira de conclu-sao, 0 articulista se reportava a um di8.logo entre Pier-re Boulez e D6cio Pignatari, durante 0 qual 0 compo-sitor frances manifestara seu desinteresse por uma obrade arte "perfeita" "classica". "tipo diamante", decla-rando-se por out;o lado a favor de urn obra aberta,como um barroco moderno, mais apta a interpretar asnecessidades de expressao e de comunica~ao da artecontemporanea.

o conceito de abertura que nos propOe UmbertoBeo e de maior amplitude, na medida mesma em quee mais variado e diferenciado 0 campo de aplica95espor ele submetido it indagayao, ~lem, obvia~~~te, dadiversa possibilidade de desenvolvlIl~ento das ~delas queoferece urn livro em rela~ao a um SImples artlg!? FIcaevidente, no entanto, a coincidencia de alguns pontosde vistafundamentais: os concretistas, por exemplo,expressam 0 seu desinteresse por uma atividade poe-tica voltada para a cria~ao de obras de arte "tipo dia-mante" (esta posi~ao, alias, e bem caracterfstica dafase inicial, dita "organica" ou "fenomenologica", dapoesia concreta brasileira); Umberto Eco recusa-se aexercitar 0 seu mister de crftico na analise de obras dearte como urn "cristal", ganhando ~ssim a excomu-nhao, em termos polidamente polemicos, de ClaudeLevi-Strauss, it luz da "ortodoxia" estruturalista. Eco,na realidade, sustenta urn "modelo teorico" de obraaberta, que nao reproduza uma presumida estrutura ob-jetiva de certas obras, mas represente antes a estrutu-ra de uma rela{:iio fruitiva, isto independentemente daexistencia pratica, fatual, de obras caracterizaveis co-mo "abertas". Ele nao nos oferece 0 "modelo" de urndado grupo de obras, mas sim de urn grupo de rela-{:oes de frui~ao entre estas e seus receptores. Trata-se

(l) Agora na Teoria da Poesia Concreta, Sao Paulo, edi~6esInven-~ao, 1965, pp. 28-31; veja-se tambem a elabora~ao_do !ema no estudo"A Arte no Horizonte do Provavel", revista lnven,ao, Sao PaulO, nQ 4,dezembro de 1964, pp. 5-16.

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portanto da tentativa de estatuir uma nova ordem devalores que extraia os seus pr6prios elementos de jui-zo e os seus pr6prios parametros da analise do con:..texto no qual a obra de arte se coloca, movendo-seem suas indagac;:oespara antes e depois dela, a fim deindividuar aquilo que na verdade interessa: nao aobra-defini9aO, mas 0 mundo de relafoes de que estase origina; nao a obra-resultado, mas 0 processo quepreside a sua formac;:ao;nao a obra-evento, mas as ca-racteristicas do campo de probabilidades que a com-preende. Este, segundo Bco, e um dos aspectos funda-mentais do discurso aberto, que e tipico da arte, eda arte de vanguard a em particular. 0 outro e cons-tituido pela ambigiiidade, dado que a abertura elide aunivocidade. Ambas as coisas, no fundo, estao emintimLj.correlac;:ao: uma vez que 0 fulcro de nossa aten-c;:ao se poe na analise e no estudo das estruturas, eque se admite que estas sao governadas pelas leis deprobabilidade, a ambigiiidade enUio nao e mais doque um corolario derivado desta assunc;:aode base. Aobra-evento, portanto, e a manifestac;:ao ambigua deuma arte cujos limites sac fixados por leis matemati-cas, as leis que regem a teoria da probabilidade.

A pericia e a extrema desenvoltura com que Um-berto Eco enfrenta tais problemas, propondo e experi-mentando diversas aplicac;:oes a diferentes campos ar-tisticos, de um lado; de outro, a evoluc;:aodo homemmoderno no sentido da globaliza~ao de todos os pro-blemas, no empenho de chegar a uma visao totalizan-te que 0 permita superar as angustias da especializa-c;:ao,da setorizac;:aoa qual e impelido pelos grupos con-servadores que esUio no poder, burgueses ou nao, noslevam .a pensar na possibilidade de extrapola~ao dealguns postulados fundamentais de Obra A berta, paraoutros dominios que nao apenas os da arte.

Parece-nos possivel e Hcita a tentac;:ao de, porexemplo, compreender e valorizar prospectivamente 0fermento que agita as universidades e fabricas de todoo mundo· e que, ao menos por enquanto, encontrousuas mais violentas e completas manifestac;:oesna Fran-c;:a, a luz dos instrumentos interpretativos fornecidospar Eco. Nao estaremos diante das primeiras escara-muc;:asde uma obra aberta na esfera da organizac;:aosocial e poHtica?

As grandes mudanc;:as que 0 homem impOe a or-dem filosofica que esta na base do ser, da sua presenc;:ana terra, parecem responder todas a um desenvolvimen-to peculiar, a uma especie de reac;:aoem cadeia queseprocessa no sentido ciencia-arte-organizac;:ao coletiva,social e poHtica. Descobertas e revoluc;:oesno mundoda ciencia sempre determinaram profundas modifica-c;:6esna esfera da arte, para a seguir serem transpostas,atraves de um labor de mediac;:oese de penetrac;:ao emnivel intelectivo, ao terreno da organizac;:aoda sociedadecomo grupo. Enquanto nos, como observa Eco, conti-nuamos a dizer que "0 sol se levanta" ou "se poe",a revoluc;::aocoperniciana perfez inteiramente 0..seu ci-cIo, a sua reac;:ao em cadeia, havendo dado curso auma profunda renovac;:ao seja nos outros ramos daciencia, seja no mundo da cultura e das artes, renova-c;:aoque se traduz, com a Revoluc;:ao Francesa, numaordem nova, em nova organizac;:ao adequada ao ho-mem novo emerso da derrocada do velho edificio pto-lomaico-feudal. Por volta de 1930, 0 mundo da fisicaclassica, baseado na noc;:ao de certeza, foi sacudidopelos enunciados da teoria quantica, baseada na noc;:aode probabilidade. Descobriu-se que nao era exato afir-mar que "no instante X 0 eletron A se encontrara noponto B", mas que 0 correto seria dizer "no instanteX havera uma certa probabilidade de que 0 eletron Ase encontre no ponto B".

A mUsica, a pintura, a escultura, a. poesia, as artesem geral foram profundamente influenciadas nestesquase quarenta anos pela aplicac;:aode conceitos dire-ta ou indiretamente tianspostos desta descoberta. Eas violentas manifesta¢es de inquietac;:ao da juventu-de de hoje poderao talvez explicar-se com 0 fato deque se iniciou e esta em curso uma outra transferen-cia desses principios, do campo da arte para 0 da es-trutura social. Por que nao se estenderiam tamb6m aorganizac;:ao social as caracteristicas de mutabilidade eflexibilidade tipicas de uma estrutura nao univocamen-te definida, mas que se define, com maior ou menorvariabilidade, dentro de um "campo de provaveis"?No fundo da rebeliao dos jovens parece haver um po-deroso e irreversivel impulso no sentido de colocar aproblematica social, economica e poHtica em contatocom a riqueza da moderna capacidade criativa e ima-

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ginativa, com 0 objetivo de efetuar a reestrutura~aodessa problematica em termos de "obra aberta". Aarte moderna, contestando os valores "classicos" de"acabado" e "definido", propoe uma obra indefinidae plurfvoca, aberta, verdadeira rosa de resultados pos-sfveis, regida e governada pelas leis que regem e go-vernam 0 mundo ffsico no qual estamos inseridos. Pro-p5ee procura uma alternativa "aberta", que se vemconfigurando como um feixe .de possibilidades moveise intercambiaveis mais adaptadas as condic;oes nasquais 0 homem moderno desenvolve suas ac;5es. Algoque substitua e suplante 0 conceito de "ordem", ri-gorosa e unlvocamente entendido como neutra codifi-cac;ao de comportamentos estereotipados, engastadosnum remanso a-dialetico. E nao importa a etiquetasob a qual a ordem canonizada se apresenta: para umjovem de hoje, 0 mais angustiante e 0 pensamento deque deva limitar-se a assistir impotente a substituic;aoda decrepita estrutura burguesa pela "nova" ordemde urn socialismo ja seniI, que se comporta desde ago-ra como um herdeiro testamentario e legal, voltado adefiniC;ao e defesa de uma "ortodoxia" que cheira amuseu, mesmo que se trate de museu marxista.

Alguns aspectos da arte moderna, ainda que naoexaustivos, podem ajudar a exemplificar este tipo depreocupac;ao. Nos espetaculos de musica ou de teatro,o publico e· cada vez mais frequentemente convidadoa intervir na criac;ao mesma da obra remontando-seassim, talvez, a uma antiqilissima pratica de participa-c;ao, da qual 0 "coro" do teatro grego classico naosera mais do que uma codifica~ao, uma das tantas quedesde a civiliza~ao grega ate hoje deram ao nossomundo 0 perfil que de tem. Nas. artes plasticas, 0fruidor se deparara cada vez mais com muitas obrasem .uma, passando a ter a possibilidade de estabelecerurn feixe de relac;oes, no momenta em que aceita 0convite que 0 proprio autor the faz de "operar" e"manobrar" a obra.

o modo de resolver os problemas artisticos, e maisainda 0 modo de coloca-Ios, tem por tras de si todoum conjunto de relac;5es cuja origem se prende a umadeterminada visao do mundo e a uma certa maneirade ser. Por isto rtlesmo os ensaios contidos· em ObraA berta - em especial 0 Ultimo deles - se apresen-

tam como muito mais do que simples ensaios de "es-tetica te6rica", ou ainda ensaios sobre a "historia dacultura" ou sobre a "historia das poeticas", como osdefine 0 proprio Eco. Para um leitor atento, transfor-mar-se-ao em utilfssimo instrumento de compreensaoda obra de arte, mediante um singular processo expo-sitivo, cuja meta fundamental e a compreensao globale totalizante do mundo em que vivemos.

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Se alguma vez houve livro fiel a seu· proprio titulo,esse e 0 caso de Obra Aberta. Desde 1958, quandoredigi 0 primeiro ensaio, nunca mais parei de reescre-ve-Io. .A edigao francesa nao e como a italiana, a es-panhola e diferente da francesa, as varias tradu~oesem andamento (alema, romena, holandesa, tchecoslova-ca) diferem todas entre si e a segunda edigao italiana,sobre a qual foi feita a presente, e diferente de todas.E, na verdade, mesmo a edigao brasileira nao e exata-mente igual a italiana.

Poderiamos dizer que, confiando imodestamente nasobrevivencia de meus escritos, diverti-me em ofereceraos estudiosos do futuro farto material de pesquisa

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filologica (cola~oes, edl~6es cdticas, quebra-cabecaspara teses universitarias): mas se continuo a reescrevereste li~ro e justa~ente porque nao pretendo que elesobrevlva. Ele fot e permanece a tentativa de explicaralgo que vem acontecendo sob nossos olhos, e mudacontinuamente: quando nao muda 0 objeto da indaga-c;ao, mudam os metodos para interpreta-Io. Se esteli~ro, que nao devera sobreviver para dar lic;oes aosposteros, pode no entanto servir de lic;ao a algucmdevera entao ensinar que vivemos num pedodo d~evoluc;ao acelerada: e a unica palavra que a culturadeve proferir para poder defini-Io sera uma palavrade recusa das defini~oes estaveis e catedraticas. En-quanta escrevo, os estudantes de meu pals estao colo-cando em crise, definitivamente, as estruturas de· urnpoder cultqral professorai, dogmatico, administrador deverdades incontrovertiveis, e. estao substituindo a "li-~ao" p~l~ "disc~ssao". Assim, no discurso que nestehvro .dtnJo a rmm .mesmo, resolvi, faz tempo, jamaisacredltar no que dlssera na vez anterior.

Ja pelo modo como 0 livro nasceu (e os variosensaios como que trazem as marcas geologicas disso)se ve a tentativa de justapor a urn unico fenomenopo~tos de vi~ta diversos,. tecnicas de indaga~ao varia-velS. A vanedade e a mcerteza eram talvez excessi-v~s, e hoje voltaria a escrev.e-Iode urn unico ponto devIsta, pOlS 0 trabalho destes ultimos anos levou-mea aperfeic;oar os instrumentos de indagac;ao semiol6gi-ca, como aparece em minha ultima obra La stru-ttura assente - Introduzione alia ricerca semiolo-gica. ("A estrutura ausente - Introdu~ao a pesquisasemioI6gica".) E foi a luz dessas minhas recentes pes-quisas que modifiquei a maior parte do capitulo sobrea teoria da informac;ao. Mas a decisao de adotar umatecnica unitana nao contradiz Q que escrevi acima. ~ - . 'lStOe, nao me lsenta do dever e do direito a revisaoe a contradic;ao: pois a pesquisa semiologica, pelomenos como a entendo, nao visa a definir urn sistemade comunica~ao baseado em estruturas imutaveis doEspirito Humano (como quer certo estruturalismo on-tologico), e sim tentar cOIltinuamentedar formas cadavez .mais abrangentes e operativas as modalidades pelasquaIs OShomens se comunicam no curso da historia eatraves de modelos socio-culturais diferentes. Modi-

fiquei 0 capitulo sobre informacao, dizia eu, pois aoescrever Obra Aberta p~receu-me que a teoria da infor-mac;ao propunha uma chave boa para todos os usos,tambem no campo das ciencias humanas; hoje acho(como aparece em parte do capitulo em questao) queela precisa ser integrada numa perspectiva semiol6gicamais ampla. Em todo caso, 0 leitor que tiver duvidasao ler este livro saiba que procurei em seguida tomarmais rigoroso urn discurso que aqui se apresenta aindacomo uma aventura explorativa, de resultados incertos.

Ouis frisar esses pontos pois sei 0 quanta a cul-tura brasileira e sensivel a estes problemas. A novaescola critica de Sao Paulo debate, h:i tempos, 0 pro-blema da aplicac;aodos metodos informacionais a obrade arte, e as contribuic;6es de muitos criticos, e estu-diosos brasileiros foram-me uteis nestes Ultimos anospara levar adiante minhas pesquisas. E mesmo curiosoque, alguns anos "antes de eu escrever Obra A berta,Haroldo de Campos, num pequeno artigo, the ante-cipasse os temas de modo assombroso, como se detivesse resenhado 0 livro que eu ainda nao tinha es-crito, e que iria escrever sem ter lido seu artigo. Masisso significa que certos problemas se manifestam de

'maneira imperiosa num dado momento historico, de-duzem-se quase que automaticamente do estado daspesquisas em curso. Em todo caso, estou feliz emsaber que Obra Aberta e agora acessivel a um am-biente cultural que foi dos mais sensiveis na compar-ticipacao e antecipacao de sua problematica.

Ao publicar esta nova edic;ao do meu livro umaduvida me assalta, duvida que assalta qualquer estu-dioso que se dispae a tratar problemas teoricos e em-preender anaIises que requerem,para suas verificac;6es,longos decursos de tempo. Vem acontecendo hojeno mundo fenomenos que parecem por em crise apropria existencia de uma cultura de reflexao, comose a praxe, em sua violenta urgencia, tomasse inutile culpada· toda reflexao te6rica. Ted sentido empre-ender uma pesquisa critico-filosOficasobre a arte con-temporanea quando os jovens de todos os paises afir-mam, e com razao, a primazia do compromisso poli-tico, da ac;ao direta, da reorganizac;ao radical de todasas relac;Oes,procurando estabelecer, nao novos modos

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de ver, representar au estudar a vida, mas novas mo-dos de vida, mais justos e mais livres?

Nestes dias, em que me entrego a uma apaixonanteexperiencia de novas modalidades de gestao coletivacom os estudantes de minha universidade, ja nao seise escreveria ainda urn livro sobre as problemas daarte contemporanea. Aplicaria, como fa~o, 0 conheci-mento dos processos de comunicagao que adquiri nareflexao semiol6gica, paraestudar possibilidades deintervengao no universe das comunicagoes, de inter-vengao a curto prazo, interven~ao politica, intervengaodesmistificaJora de todas as manipula<;oes do consensoe das pr6prias mistificagoes esteticas, mediante as quaisas varios Poderes substituem as livres escolhas pelasopinioes pre-fabricadas. Mas h:i um ponto pelo qualme alegro por ter feito urn discurso como 0 de ObraAberta.

E que a visao de novas possibilidades de relagao,tais como hoje se vem afirmando, fora antedpadajustamente pelas formas artistic as que este livro es-tuda, as quais se propunham 0 explicito projeto deeducar 0 homem contemporaneo para a contestagaodas Ordens estabelecidas, em favor de uma maior plas-ticidade intelectual e de comportamento. Se esta nas-cendo uma sociedade diferente, essa sociedade foi an-tecipada, em suas possiveis estruturas, pela arte devanguarda, mesmo quando esta se inseria - por forgadas contingencias - no circuito mercantil dos con-sumos culturais. Reduzida a mercado~ia como objeto,a arte de vanguarda, como proposta duma nova for-Ina das coisas, nao era suscetfvel dessa redu<;ao. Anova forma era experimentada no objeto estetico: co-mega hoje a perfilar-se como uma possivel forma novade vida. Se a arte reflete a realidade, e fato que a;:eflete com muita antecipagao. E nao ha antecipagao- ou vaticfnio - que nao contribua de algum modoa provocar 0 que anuncia.

Pode ser que num momenta hist6rico estabelecidoninguem mais tenha 0 direito, ao menos por um certotempo, de trabalhar numa serie musical para alteraras hierarquias fixas e sagradas do sistema tonal; oude trabalhar no sentido da destruigao das ordens pre-sumidamente naturais da perspectiva renascentista, paracriar urn espago diferente; ou quebrar as leis secretas

da linguagem para por em crise com elas as ideolo-gias que refletiam: e que deva abandonar a a<;ao ar-tfstica para empreender outras formas de interven~aosobre a realidade. Mas e certo que, para chegar aeste momento, 0 trabalho de quem trabalhou sobreas formas artisticas nao foi van - nem irrelevante.

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Se lngres deu ordem a quietu.de, eu desejaria darordem ao movimento.

As relaroes tormais dentro de uma obra e entreas varias obras constituem uma ordem, urna me-((lfora do universo.

Os ensaios contidos neste livro nasceram de umacomunica~io (0 Problema da Obra Aberta) apresen-tada no XII Congresso Intemacional de Filosofia, em1958. Apareceram depois com 0 titulo de Obra Abertaem 1962. Naquela edi~ao,· coDlpletava-os um longo

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estudo dedicado ao desenvolvimento da poetlca deJoyce, primeira tentativa pessoal de acompanhar 0desenvolvimento de um artista no qual 0 projeto deuma obra aberta manifesta em transparencia, ao nivelda pesquisa das estruturas operacionais, toda uma aven-tura cultural, a solu<;aode um problema ideologico, amorte e 0 nascimento de dois universos morais e filo-soficos. Esse estudo encontra-se agora 'editado sepa-radamente \ com 0 titulo As Poeticas de Joyce; assim,o presente volume reu.ne apenas a discussao teorica, porsi so aut6noma, dos problemas mencionados. Acres-centamos entretanto um longo ensaio ("Do modo deformarcomo compromisso com a realidade") que apa-receu no Menabo n. 5, poucos meses apos a publicac;aode Obra Aberta - e, portanto, escrito dentro do mes-mo clima de discussao e pesquisa. Ensaio que, conse-qiientemente, encontra em Obra Aberta a colocac;aoapropriada, porque, tal como os ensaios desta coletanea,despertou na Italia oposic;6ese polemicas que hoje pa-receriam desprovidas de sentido; e nao somente porterem estes ensaios envelhecido, mas tambem porquea cultura italiana rejuvenesceu.

Se devessemos sintetizar 0 objeto das presentes pes-quisas, valer-nos-iamos de uma noc;ao ja adotada pormuitas esteticas contemporaneas: a obra de arte e umamensagem fundamentalmente ambigua, uma pluralida-de de significados que convivem num so significante.Essa condic;ao constitui caracteristica de toda obra dearte - e 0 que procuramos demonstrar 0 segundo en-saio, "Analise da linguagem poetica"; mas 0 tema doprimeiro, e dos ensaios seguintes, e que tal ambigiiidadese torna -- nas poeticas contemporaneas - uma das fi-nalidades explfcitas da obra, urn valor a realizar de pre-ferencia a outros, conforme modalidades para cujacaracterizac;ao nos pareceu oportuno aproveitar instru-mentos fornecidos pela teoria da informac;ao.

Visando a ambigiiidade como valor, os artistascontemporaneos voltam-se conseqiientemente e amiudepara os ideais de informalidade, desordem, casualidade,indeterminac;ao dos resultados; dai por que se tentoutambem imposta 0 problema de uma dialetica entre

"forma" e "abertura": isto e, definir os limites dentrodos quais uma obra pode lograr 0 maximo de ambi-giiidade e depender da intervenc;aoativa do consumidor,sem contudo deixar de ser "obra". Entendendo-se por"obra" um objeto dotado de propriedades estruturaisdefinidas, que permitam, mas coordenem, 0 revezamen-to das interpretac;6es, 0 deslocar-se das perspectivas.

Mas, justamente por quererem comprender a natu-reza da ambigiiidade almejada pelas poeticas contempo-raneas, tiveram estes ensaios de enfrentar uma segundaperspectiva de pesquisa, que assumiu, sob certos aspec-tos, uma func;ao primordial: isto e, procuramos verifi-car as analogias apresentadas pelos programas opera-cionais dos artistas em face dos programas operacionaiselaborados no ambito da pesquisa cientifica contempo~ranea. Em outras palavras, procuramos verificar comouma concepc;ao de obra nasce em concomitancia ouem explicita rela<;ao com deterrninadas impostac;6esdas metodologias cientificas, da psicologia ou da 10-gica contemporaneas.

Ao apresentarmos a primeira edic;aodeste livro, afi-gurara-se-nos oportuno sintetizar 0 referido problemaatraves de urn conjunto de formulac;6es nitidamentemetaforicas. Dissemos: "0 tema comum a essas pes-quisas e a reac;ao da arte e dos artistas (das estruturasformais e dos programas poeticos que a elas presidem)ante a provocac;ao do Acaso, do Indeterminadd, doProvavel, do Ambiguo, do Polivalente. .. Enfim, pro-pusemo-nos pesquisar os varios momentos em que aarte ,contemporanea se ve as voltas com a Desordem;que nao e a desordem cega e incuravel, a denota detMa possibilidade ordenadora, mas a desordem feeun-da, cuja positividade nos foi evidenciada pela culturamoderna: a ruptura de uma Ordem tradicional, queohomem ocidental acreditava imutavel e identifi-cava 'com a estrutura objetiva do mundo... Ora,desde que essa n~ao se dissolveu, atraves de urn de-lenvolvimentoproblematico secular, na duvida meto-dica, na instaurac;ao das dial6ticas historicistas, nas hi-p6teses da indeterminac;ao, da probabilidade estatistica,des modelos explicativos provisorios e variaveis, a arteDie tern feito outra coisa senao aceitar essa situac;aoe tentar - como e sua vocac;ao - dar-lhe forma",

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Mas e preciso admitir que, em assunto Hiodelicadode rela~6es entre diferentes universos disciplinares, de"analogias" entre maneiras de operar, urn discurso me-taf6rico, apesar das cautelas, corre 0 risco de ser en-tendido como discurso metaffsico. Portanto acre-ditamos seja util definir com maior profundidade erigor: 1) qual 0 ambito de nossa pesquisa; 2) qualo valor da no~ao de obra al>erta;3) 0 que significafalar de "estrutura de uma obra aberta" e compararessa estrutura com a de outros fenomenos culturais;4) enfim, se uma pesquisa deste genero deve encon-trar urn fim em si mesrna, ou preludiar correla¢essubseqiientes.

1 . Antes de mals nada, estes nao sac apenas en,:"saios de estetica te6rica (nao elaboram, antes pressu-pOem uma serie de defini~6es sobre arte e valores es-teticos): sac de preferencia ensaios de hist6ria da cul-tura - e, mais precisamente, de hist6ria das poeticas.Tentam iluminar urn momento da hist6ria da culturaocidental (0 atual), escolhendo como ponto de vistae via de acesso (como approach) as poeticas da obraaberta. 0 que se entende por "poetica"? 0 filaoque desde os formalistas russos vai ate os .atuais des-cendentes dos estruturalistas de Praga entende por"poetica" 0 estudo das estruturas lingtiisticas de umaobra liteniria. Valery, na Premiere Lefon du Coursde Poetique, ampliando a ace~ao do termoa todosos generos artisticos, falava de urn estudo do fazerardstico, aque1e pdiein "qui s'acheve en quelque oeu-vre", "l'action qui fait", asmodalidades do ato deprodufiio que visa a constituir urn objeto em vista deurn ate de consutnafiio.

N6s entendemos "poetica" num sentido mais liga-do a acep~ao chlssica: nao como sistema de regrascoercitivas (a Ars Poetica como norma absoluta), mascomo programa operacional que 0 artista se propOe'de cada vez, 0 projeto de obra a realizar tal comoe entendido, expHcita ou impiicitamente, pelo artista.ExpHcita ou impllcitamente: de fato, uma pesquisa so-bre aspoeticas (e uma hist6ria das poeticas; e, por-tanto, uma hist6ria da cultura vista atraves do prismadas poeticas) baseia-se seja nas declara~6es expressasdos artistas (urn exemplo: a Art poetique, de Ver-

laine, ou 0 prefacio a Pierre et Jean de Maupassant),seja na anaIise da,s estruturas da obra, de sorte queda maneira como a obra esta feita se possa deduziro modo pelo qual ela queria ser feita. Esta claro por-tanto que, na nossa acep<;ao, a no~ao de "poetica"como projeto de forma~ao ou estruturac;ao. da obraacaba abrangendo tambem 0 primeiro sentido mencio-nado: a pesquisa em tomo do projeto originario aper-fei<;oa-seatraves da analise das estruturas finais doobjeto artistico, vistas como documentos de uma in-ten<;aooperacional, indkios de uma intenc;ao. 0 fatede ser impossivel, em tal pesquisa, deixar de perceberas disparidades entre projeto e resultado (uma obrae ao mesmo tempo 0 esbo<;odo que pretendia ser edo que e de fato, ainda que os dois valores nao co-incidam), faz com que seja recuperado tambem 0 sil!-nificado dado ao termo por Valery.

Por outro lado, aqui nao nos interessa 0 estudodaspoeticas com a finalidade de verificar se as variasobras cumpriram ou nao 0 projeto inicial: essa e ta-refa do jUlzOcritico. 0 que nos interessa e esdareceros projetos de poeticapara iluminarmos atraves deles(inclusive quando dao lugar a obras malogradas ou dis-cudveis do ponto de vista estetico) uma fase da hist6-ria da cultura - embora, na maioria dos casos, sejasem duvida mais facil individuar uma poetica mediantea referencia a obras que, a nosso ver, atingiram seusprop6sitos.

2. A nOc;aode "obra aberta" nao apresenta rele-vancia axiol6gica. 0 espirito destes ensaios naoe (al-guem assim os entendeu, e depois sustentou virtuosa-mente a inaceitabilidade da tese) dividir as obras dearte em obras vaIidas ("abertas") e obras nao vali-das, obsoletas, feias ("fechadas"); acreditamos terafirmado suficientemente que a abertura, entendidacomo ambigtiidade fundamental da mensagem artistica,6 uma constante de qualquer obra em qualquer tempo.E, a alguns pintores ou romancistas que, lido estelivro, nos apresentavam seus trabalhos perguntando--nos se eram "obras abertas", fomos obrigados a res-ponder, com uma rigidez evidentemente polemica, queJamais haviamos vistouma "obra aberta" e que ela pro-

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vavelmente nao existe na realidade. Era esse um modode dizer,. por meio de um paradoxo, que a no<;aode"obra aberta" nao e uma categoria critica, mas repre-senta um modelo hipotetico, embora elaborado com a~ju?a de numer?sas analises concretas, utilissimo paraI~dIcar, numa formula d~ manuseio pratico, uma dire-<;aoda arte contemporanea.

Poderiamos, em outras palavras, indicar 0 feno-meno da obra aberta como aquilo que Riegl chamavaKu.nstwollen e que Erwin Panofsky define melhar (des-pOJa.ndo-ode certas suspeitas de idealismo) como "umsentIdo derradeiro e definitivo, encontravel em feno-m~nos art.is~icosdifer.entes, independentemente das pro-pnas decisoes conSCIentese aptid5es psicologicas doau.tor"; acrescenta,?do que. tal no<;ao indica nao pro-pnamente como sac resolvldos os problemas artisticos,~a~ como sac propostos. Em sentido mais empirico,dmamos tratar-se de uma categoria. explicativa, ela-~orada para exem~lificar uma tendencia das varias poe-tIc~s. Portanto; VIStOtratar-se de uma tendencia ope-raclOnal, podera ser encontrada em maneiras diferen-tes, . incorporada a multiplices contextos ideologicos,reahzada de modo mais ou menos explicito; tantoque, para torna-Ia explieita, foi necessario petrifica-Ianuma abstra<;ao que, como tal, nao e encontrada con-cretamente em parte alguma. E essa abstra<;ao justa-mente 0 modelo da obra aberta.

A.0 dizerm~s "modelo", ja estamos implicandouma lmha de discurso e uma decisao metodologica.Retomando uma resposta de Levi-Strauss a Gurvitchdiremos que so nos referimos a um modelo na medid~em que este possa ser manobrado: e um processo ar-t~sanal. e operatorio. Elabora-se um modelo para in-dicar uma forma comum a diversos fenomenos. 0f~t? de se pensar na obra aberta como urn modelo sig~mflCa que se acreditou poder individuar em diversosmodos A de. opera<;ao ~ma tendeneia operativa comum,a tendenCIa a produzir obras que, do ponto de vistada rela<;aode consuma<;ao,apresentassem similaridadesestruturais. Justamente porque abstrato, este modeloparece aplicavel a diversas obras que, em outros pIa-nos (no. myel da ideologia, das materias usadas, do"genero" artistico realizado, do tipo de apelo dirigidoao consumidor), sao extremamente diferentes. Hou"1e

quem ficasse escandalizado com 0 fato de sugerir-sea aplica<;aodo modelo fruitivo da obra aberta, tantoa um quadro informal quanto a urn drama de Brecht.Pareceu impossivel que urn simples apelo a desfrutaras rela<;5esentre eventos matericos apresentasse simi-laridades de qualquer tipo com 0 apelo engage a umadiscussao raeional de problemas politicos. Nesse casonao se comprendeu que - por exemplo - a analisede urn quadro informal a nada mais visava senao ilu-minar certo tipo de rela<;ao entre obra e fruidor, 0momento de uma dia16tica entre a estrutura do objeto,como sistema fixo de rela<;5es,e a resposta do consu-midor como livre inser<;ao e ativa recapitula<;ao da-quele mesmo sistema. E ao redigir estas observa<;5esconforta-nos reler uma entrevista dada por RolandBarthes a Tel Quel, na qual a presen<;a desta tipicarela<;aoem Brechte lucidamente individualizada: "aumoment meme ou il liait ce theatre de la significationa une pensee politique, Brecht, si l'onpeut dire, af-firmait Ie sens mais ne Ie remplissait pas. Certes, sontheatre est ideologique, plus franchement que beau-coup d'autres: il prend parti sur la nature, Ie travail,Ie racisme, Ie fascisme, l'histoire, la guerre, l'aliena-tion; cependant c'est un theatre de la conscience, nonde l'action, du probleme, non de la reponse; commetout Iangage litteraire, il sert a formuler, non a faire;toutes Ies pieces de Brecht se terminent implieitementpar un Cherchez ['issue adresse au spectateur au nomde ce dechiffrement auquel Ia materialite du spectacledoit Ie conduire. .. Ie role du systeme n'est pas ieide transmettre un message positif (ce n'est pas untheatre des signifies), mais de faire comprendre queIe monde est un object qui doit etre dechiffre (c'estun theatre des signifiants)" 2.

o fato de que neste livro se elabore urn modelode obra aberta, inspirado, mais do que em obras do

(2) "No momento mesmo em que ligava esle teatro da Significa~ao• urn pensamento politico, Brllcht, se 0 podemos dizer, afirmava 0••nlldo, mas nao 0 completava. Certamente, seu leatro e mais franca-m.nte ideologico do que muitos outros: toma posi~ao.quanto 11nature-D, ao trabalho, ao racismo, ao fascismo, 11historia, 11guerra, 11aliena-Vlo: entretanto, e urn teatro da consciencia nao da a~ao, do problema,nlo da resposta; como toda Iinguagem literaria, serve para formular,nlo para fazer; todas as pe~as de Brecht terminam implicitamente porum Procure a solurQo endere~ado ao espectador em nome dessa decifra-Vlo a que a materialidade do espetaculo deve conduzir... 0 papel doliitema, a,qui, nao e transmitir uma mensagem positiva (nao e' urn teatrodo•• Ignificados), mas fazer compreender que 0 mundo e urn objeto quedlvlser .decifrado (e urn teatro dos significantes)",

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tipo Brecht, em obras onde a pesquisa formal das es-truturas de finalidade autonoma e mais explicita e de-cidida, decorre do fato de que nessas obras 0 modelose apresenta de mais facil individua~ao. E decorre dofato de que 0 exemplo de Brecht permanece aindae:xemplobastante isolado de obra aberta resolvida numapelo ideologico concreto; ou melhor, 0 unico exemploclaro de apdo ideo1ogico resolvido em obra abertae, portanto, capaz de traduzir uma nova visao do mun-do, nao so na ordem dos conteudos, mas na das es-trutura.c;comunicativas.

Mas e justamertte para por em foco a generalidadee transponibilidade desse sistema de rda~6es que sereduz uma forma a urn sistema de rela~6es: justamentepara mostrar no objeto isolado a presen<;a de uma"estrutura" que 0 aparenta com outros objetos. Temoscomo que urn desossamento progressivo do objeto, pri-meiro para reduzi-lo a urn esqueleto estrutural, e de-pois para escolher, nesse esqueleto, aquelas rela~6esque sao comuns a outros esqueletos. Em Ultima ana-lise, portanto, a "estrutura" propriamente dita de umaabra e 0 que ela tern em comum com outras obras,aquilo que em definitivo e posto a luz por urn mo-delo. Assim, a "estrutura de uma obra aberta" naosera a estrutura isolada das varias obras, mas 0 mo-delo geral (sabre 0 qual ja se discutiu) que descrevenao apenas urn grupo de obras, mas um grupo deobras enquanto postas numa determinada relariio frui-tiva com seus receptores.

3. Foi possivel adiantara hipOtesede urn modeIoconstante, porque nos pareceu observar que a rela~aoprodu~ao-obra-fiui~ao, em casos diferentes, apresentavauma estrutura similar. Talvez valha a pena esclarecermelhor 0 sentido que queremos dar a no~ao de "es-trutura de uma obra aberta", pois 0 termo "estru-tura" presta-se a numerosos equivocos e vem sendousado (inclusive neste mesmo livro) em acep~6es naocompletamente unlvoeas. Falaremos da obra como deuma "forma": isto e, como de urn todo organico quenasce da fusao de diversos nlveis de experiencia an-terior (ideias, em~6es, predisposi~6es a operar, ma-terias, modulos· de organiza~ao, temas, argumentos,estilemas prefixados e atos de invenyao). Uma for-ma e uma obra realizada, ponto de chegada de· umaprodu~ao e ponto de partida de uma consuma~ao que- articulando-se - volta a dar vida, sempre e denovo, a forma inicial, atraves de perspectivas diversas.

Usaremos, porem, vez por outra, como sinonimode forma, tambem 0 termo "estrutura": mas uma estru-tura e uma forma, nao enquanto objeto concreto esim enquanto sistema de rela¢es, rdayaes entre seusdiversos niveis (semantico, sintatico, fisico, emotivo;nivel dos temas e nivel dos conteudos ideologicos;nivel das relayOes estroturais e da resposta estruturadado receptor; etc.). Falar-se-aassim de estrutura emlugar de formaquandose quiser por em foeo, noobjeto, nlio sua consistencia fisica individual, mas simsua analisabilidade, sua possibilidade de ser decompos-to em rel~6es, de maneira a, poder-se isolar, dentreelas, 0 tipo de rela~lio fiuitiva exemplificado no mode-10 abstrato de uma obra aberta.

Concluindo, cumpre-nos lembrar dois pontos:

a) 0 moddo de uma obra aberta nao reproduzuma suposta estrutura objetiva das obras, mas a esttu-tura de uma rela<;aofruitiva; uma forma so e descriti-vel enquanto gera a ordem de suas proprias interpre-ta~6es, e e bastante claro que, assim fazendo, nossoproceder se afasta do aparente rigor objetivista de cer-to estruturalismo ortodoxo que pretende analisar for-mas significantes abstraindo do jogo mutavel dos signi-ficados que a historia faz para e1as convergir. Se 0 es-truturalismo julga poder analisar e descrever a obrade aIle como urn "cristal", pura estrutura significante,aquem da historia de suas interpreta<;6es - entaOLevi-Strauss tern razao ao polemizar com Obra Aberta(como fez na entrevista dada a Paolo Caruso paraPaese Sera-Libri, 20-1-67): nossa pesquisa nada tern aver com 0 estruturalismo.

Mas e possivel tao decididamente 0 abstraimentode nossa situa~ao de interpretes, situados historica-mente, para vermos a obra como urn cristal? QuandoLevi-Strauss e Jakobson analisam Les Chats de Bau-delaire, foealizam uma estrutura que esta aquem desuas leituras possiveis, ou pelo contrario nos dao delauma execu~ao, possivel somente hoje, a luz das aquisi-

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<;6esculturais de nosso seculo? Nessa suspeita baseia--se toda a Obra A berta.

b) 0 modelo de obra aberta assim obtido e urnmodelo absolutamente teorico e independente da exis-tencia factual de obras definiveis como "abertas".

Formuladas essas premissas, resta ainda repetir quefalar em similaridade de estrutura entre diversas obras(no nosso caso: similaridade do ponto de vista dasmodalidades estruturais que permitem uma consuma-<;aoplurlvoca) nao significa, para nos, dizer que exis-tern fatos objetivos que apresentam caracteres seme-lhantes. Significa dizer que, perante uma multiplici-dade de mensagens, parece possivel e util definir cadaunia delas utilizando os mesmos instrumentos e redu-zindo-as portanto a parametros semelhantes. Esta es-pecifica<;ao e feita para esc1arecer urn segundo ponto.Tal com falamos da estrutura de urn objeto (no caso,a obra' de arte), tambem ja falamos da estrutura deuma opera<;ao e de urn procedimento: quer se trate daopera<;ao produtiva de uma obra (e do projeto depoetica que a define), quer se trate da opera<;ao depesquisa do cientista, que conduz a defini<;6es, objetoshipoteticos, realidades aceitas, pelo menos provisoria-mente, como definidas e esHiveis. Nesse sentido e quefalamos da obra aberta como metafara epistemologica(usando naturalmente outra metatora): as poeticas daobra aberta apresentam caracteres estruturais seme-lhantes aos de outras opera<;6es culturais qlle visama definir fenomenos naturais ou processos logicos. Parafocalizar tais similaridades estruturais, reduz-se a ope-rac;ao de poetica a urn modelo (0 projeto de obraaberta) a fim de apurar se este apresenta caracteressemelhantes a outros modelos de pesquisa, a modelos deorganiza<;ao 16gica, a modelos de processos perceptivos.Estabelecer, portanto, que 0 artista contemporaneo,ao dar vida a uma obra, preve entre esta, ele pr6prioe 0 consumidor uma rela<;ao de nao-univocidade -igual a que 0 cientista preve entre 0 fato que descrevee a descri<;ao que dele oferece, ou entre sua imagemdo universo e as perspectivas que e possivel tra<;arsobre esse universo - tudo isso nao significa absoluta-mente 0 desejo de procurar, a qualquer pre<;o, umaunidade profunda e substancial entre as pressupostas

formas da arte e a pressuposta forma do real. Significaquerer estabelecer se, para definir ambas as rela<;6es(se ao definir ambos os objetos que derivam dessas re-la<;6es), e passivel recorrer a instrumentos definit6riossimilares. Ese, a,inda que instintivamente ou com cons-ciencia confusa, isso ja nao tera acontecido de fato. 0resultado nao e uma revela<;ao acerca da natureza dascoisas: e uma c1arifica<;aoacerca de uma situa<;ao cul-tural em processo na qual se desenham conexoes, aserem aprofundadas, entre os varios ramos do sabere as varias atividades humanas.

Seja como for, cabe frisar que os ensaios destelivro nao alimentam absolutamente a pretensao de for-necer modelos definitivosque permitam realizar talpesquisa de modo rigoroso (diversamente do que sefez em outros lugares, confrontando, por exemplo, asestruturas socia~s com as lingiHsticas). .Em certa me-dida, enquanto os ensaios estavam sendo escritos, naotfnhamos presentes todas as possibilidades e implica<;oesmetodologicas que ora fomos expondo. Mas julgamosque estes ensaios possam indicar urn caminho ao longodo qual prosseguir, nos ou outros, semelhante opera<;ao.S e ao longo. dessa diretriz que pensamos possam serrefutadas certas obje<;6es, segundo as quais todo con-'ronto feito entre procedimentos da arte e procedimen-tos da ciencia constituiria uma analogia· gratuita.

Aproveitaram-se freqiientemente categorias elabo-radas pela ciencia, traduzindo-as desenvoltamente· pa-ra Qutros contextos (moral, estetico, metaflsico etc.).S bem fizeram cis cientistas, advertindo que tais ca-t'sorias eram simples instrumentos empiricos, validos.penas dentro de seu reduzidissimo ambito. Mas, umavoz levado em conta esse fato, pensamos que seriamuito esteril desistir de perguntar se nao existiria por-ventura, entre diversas atitudes culturais, uma unidaded. comportamento. Estabelecer essa uni<;lade signi-tlca, por urn lado, esclarecer ate que ponto uma cul-tura e homogenea, e, por outro, procurar realizar embale interdisciplinar, ao nivel dos comportamentos cuI-turais, aquela unidade do saber que, ao nive! metaflsico,•.••ultou iIusoria, mas que ainda assim deve ser ten-tldl de alguma maneira, para tomar homogeneos• trBduziveis nossos discursos a respeito do mundo.Au.ves da individua<;ao de estruturas universais ou

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atraves da elabora~ao de uma metalingu~gem? A res:posta a esse problema, embo!a ~ao seJa estranha anossa pesquisa, certame~te va~ alem de1a. Empre~n-dem-se pesquisas desse genero Justamente para, urn dm,reunir elementos uteis a uma resposta.

4. Oltimo problema, 0 que concerne aos limitesde nosso discurso. Elaborar uma no~ao de obra abertaresponderia a tbdas as indaga0es acerca da naturezae da fun~ao da arte contempodlne;a ou da a~te emgeral? Certamente que nao. Mas O!l~ntar.este ,?lscursopara a peculiarissima rela~ao de frUl~~oatlva na~.!ed~-ziria a problematica da arte. a urn dlscurso es:enl so-bre as estruturas formais, obhterando suas rela~oe~coma historia, a situa~ao concreta, os valores que ~a!s no~preocupam? Parece impossive~,mas /essa obJe~ao ~Oljulgada fundamental. Parece l~POSSIVe1,porque mn-guem repreertderia urn entomologlStapor demorar-se naanalise das modalidades do vOo de uma ab~lha, semestudar logo sua ontogenese, filogenese e aptldao_paraproduzir mel hem como 0 papel que a produ~ao dome1 representa na economia mundial. ~or, outr~ lado,e bem verdade que uma obra de ~t~ ~ao ~ u~ mseto,suas rela~6es com 0 mundo da hlstona nao sa~ a~e_s-sorias ou casuais, mas participam de sua c?nstltuwaode tal maneira que parece arrisc~do. reduzl-Ia a ~~jogo abstrato de estruturas .co~umcatlvas e A

de. eqUl!l-brios relacionais, em que slgmflcados, re~erenclas hlS-toricas, eficacia pragmatica entrem exc!uslva~e~te .co-mo elementos da rela~ao, siglas entre slglas, mcogmtasde uma equa~ao. Trata-se mais um~ vez ?a ~is~uta so-bre a legitimidade de uma pesqUlsa sm~romca quepreceda a pesquisa diacronica e dela abstrala.

Muitos nao ficaram satisfeitos com a resposta deque uma descrigao das est~~ras comu~ica.tivas ?aopode constituir senao 0 pnmeuo passo. mdlspensavelem tbda pesquisa que pretenda em segulda po-Ias emrelagao com 0 mais amplo background da ?bra comofate inserido na hist6ria. E no entanto, ao flm de con-tas, depois de haver tentado tbdas as integra0es via-veis, nao parece possivel sustentar nenhu.ma.outra tese,sob pena de cair na improvisagao, no deseJo generosode esc1arecer tudo depressa, e mal.

A oposi~ao entre processo e estrutura constitui urnproblema bastante debatido: no estudo dos grupos hu-manos, observa Levi-Strauss, "foi preciso esperar osantropologos para descohrir-se que os fenomenos so-ciais obedeciam a assestamentos estruturais. A razao esimples: e que as estruturas nao aparecem a nao ser auma observa~ao de fora para dentro".

Em estetica, diremos nos, essa constatagao e bemmais antiga, pois a rela~ao entre interprete e. obra foisempre uma relagao de alteridade. Ninguem duvidade que a arte seja urn modo de e~truturar certo ma-terial (entendendo-se por material a propria personali-dade do artista, a historia, uma linguagem, uma tra-di~ao, urn tema espedfico, uma hip6tese formal, urnmundo ideologico): 0 que sempre foi dito, mas se ternsempre posto em duvida, e, ao inves, que a arte podedirigir seu discurso sobre 0 mundo e reagir a historiada qual na~ce, interpreta-la, julga-Ia, fazer projetoscom ela, llnicamente atraves desse modo de formar;ao mesmo tempo que, somente pe10exame da obra comomodo de formar (tornado modo de ser formada, gra-!tas ao modo como nos, interpretando-a, a formamos),podemos reencontrar atraves de sua fisionomia espe-c1fica a hist6ria da qual nasce.

o mundo ideologico de .Brecht e comum ao demuitas outras pessoas as quais podem ligar-nos iguaiship6teses poHticas, anaIogos projetos de a~ao: mas tor-na-se 0 universo Brecht tao logo se articula como urntipo de comunica~ao teatral, que assume caracteres pro-prios, dotados de peculiares caracteristicas estruturais.56 assim se torna algo mais que aquele mundo ideolo-Sico originario, torna-se urn modo de julga-Io e derepresenta-Io como exemplar, permite faze-Io compreen-,(vel tambem a quem dele nao compartilhe, mostra,uas possibilidades e riquezas que 0 discurso do doutri-nador deixava encobertas; ainda mais, justamente gragas1estrutura que assume, convida-nos a uma colabora~aoque 0 enriquece. Sublimando-se em modo de formaro considerado como tal, nao nos oculta 0 resto: for-n.ce-nos uma chave de acesso a ele, quer sob formad. adesao emotiva, quer de pesquisa critica. Mas eprecise passar atraves da ordem dos valores estrutu-rala. Como frisavam Jakobson e Tynjanov, reagindoaontra certos enrijecimentos tecnicistas do primeiro

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formalismo russo, "a historia literaria esHi intimamenteligada a outras 'series' historicas. Cada uma dessasseries e caracterizada por leis estruturais proprias. Fo-ra do estudo dessas leis, e impossivel estabelecer co-nex6es entre a serie liteniria e os outros conjuntosde fenomenos culturais. Estudar 0 sistema dos siste-mas, ignorando as leis internas de cada sistema indi-vidual, seria cometer grave erro metodologico".

Esh! claro que de uma posi~ao desse genero de-riva uma dialetica: indagar as obras de arte a luz desuas leis estruturais especificas nao significa renunciara elabora~ao de urn "sistema dos sistemas"; pelo quepoderiamos dizer que a referenda as estruturas dasobras, a uma compara~ao de modelos estruturais entrevarios campos do saber, constitui 0 primeiro apeloresponsavel a uma pesquisa de carater historico maiscomplexo.

Os varios universos culturais nascem, sem duvida,de urn contexto historico-economico e tornar-se-ia bas-tante dificil compreender a fundo os primeiros, semos relacionar com 0 segundo: dentre as li~6es do mar-xismo, uma das mais fecundas e 0 apelo a rela~aoentre base e superestruturas, entendida obviamentecomo rela~ao dialetica e nao como rela~ao deterministade sentido umco. Mas uma obra de arte, como urnprojeto metodologico cientifico e urn sistema filosofico,nao se refere de imediato ao contexto historico - amenos que recorramos a deploraveis interferenciasbiogrMicas (tal artista nasce em tal grupo, OU vive ascustas deste outro grupo, sua arte, portanto, exprimetal ou qual grupo). Vma obra de arte, ou urn sis-tema de pensamento, nasce de uma rede complexade influencias, a maioria das quais se desenvolve aonivel especifico da obra ou sistema de que faz parte;o mundo interior de urn poeta e influenciado e for-mado pela tradi~ao estilistica dos poetas que 0 prece-deram, tanto e talvez mais do que pelas ocasi6es his-toricas em que se inspira sua ideologia; e atraves dasinfluencias estilisticas ele assimilou, sob a especie de mo-do de formar, urn modo de ver 0 mundo. A obra queIra produzir podera ter fraquissimas conex6es com seuproprio momenta historico, podera expressar uma fasesubseqiiente do desenvolvimento geral do contexto, ou

podera expres~ar, da Jase em que ele vive, niveis pro-fundos, qUAeamda nao aparecem muito claros a seusconte~poraneos. Mas para que se possam reencontrar,~trav.:s daquele modo de elaborar estruturas, todas ashga~oe~ entre a o~ra e seu tempo, 0 tempo preterito,ou ,0 vmdou~o, a mdaga~ao histo~ca imediata so po-dera proporclOnar resultados aproxlmados. Unicamen-te comparando aquele modus operandi com outras ati-tudes_culturais da epoca (ou de epocas diversas, numarel~~o ~e defasage~,. que~ em termos marxlstas, e pos-siv~l mdlCar.com? dlspandades de desenvolvimento"),Untcamente Identlflcando entre essas atitudes elementoscom~ns, r~dutiV~is _as mesmas categorias descritivas,P7rf~l~r-se-a a d~~e9ao ao longo da qual uma pesquisahlstonca subsequente devera individuar as conex6esmais pr~fu1!das e articuladas que se encontram debaixodas slITlllandades apuradas anteriormente. Com maisrazao, quando - como em nosso caso - 0 ambitodo discurso e 0 periodo do qual nos proprios somos aomesmo t~mpo jufzes e. produto, 0 jogo das rela<;6esentre fenomenos culturms e contexto historico torna-semuito ~ais intrincado. Cada vez que, por polemica oud~gmatl~~o: procuramos estabelecer uma rela~ao ime-dla~a, ~llstlflca~os uma realidade historica que e sempremals. nca e ~utll .~o q~e do mo?o como a propomos.Por ISSO,a slmphflCa9aQ produzlda por uma descri~aoem te~mos de modelos estruturais nao significa ocultara reahdade: representa 0 primeiro passo rumo a suacomp~eensao. Estabelece-se entao aqui, em nivel mais.mpmco, ,a. rela~ao, .ainda problematica entre logicaformal e loglca dlaletlca (e tal, em ultima analise, nosparece ser 0 sentido de muitas das atuais discuss6esentre. n:eto?ologias diacronicas e sincronicas). Nossaconvlc9ao e de qu~ os dois universos sac recuperaveis.Que em certa medlda, embora a revelia a conscienciada historia j~ age em toda pesquisa sObre as configu-r.~s formals dos fenomenos; e podera continuar atllindo quando, introduzidos os modelos formais elabo-r.do~ no circu~t? d: urn discurso historico mais amplo,I .~1'1edas venfica90es puder tambem levar-nos a reela-bora9ao do mesmo modelo inicial.

Fixar portanto a aten9ao, como temos feito sobre• rela9~~ fruitiva obra-consumidor, como se co~figuranl. poetlcas da obra aberta, nao significa reduzir nossa

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formalismo russo, "a historia literaria esta Intimamenteligada a outras 'series' historicas. Cada uma dessasseries e caracterizada por leis estruturais proprias. Fo-ra do estudo dessas leis, e impossivel estabelecer co-nex6es entre a serie literaria e os outros conjuntosde fenomenos culturais. Estudar 0 sistema dos siste-mas, ignorando as leis internas de cada sistema indi-vidual, seria cometer grave erro metodologico".

Esta claro que de uma posi«ao desse genero de-riva uma dialetica: indagar as obras de arte a luz desuas leis estruturais especifieas nao significa renunciara elabora«ao de urn "sistema dos sistemas"; pelo quepoderiamos dizer que a referencia as estruturas dasobras, a uma COmpara«aOde modelos estruturais entrevarios campos do saber, constitui 0 primeiro apeloresponsavel a uma pesquisa de carater historico maiscomplexo.

Os varios universos culturais nascem, sem duvida,de urn contexto historico-economico e tornar-se-ia bas-tante dificil compreender a fundo os primeiros, semos relacionar com 0 segundo: dentre as li«6es do mar-xismo, uma das mais fecundas e 0 apelo a rela«aOentre base e superestruturas, entendida obviamentecomo rela«ao dialetica e nao como rela«ao deterministade sentido unico. Mas uma obra de arte, como urnprojeto metodologieo cientifico e urn sistema filosofico,nao se refere de imediato ao contexto historico - amenos que recorramos a deploraveis interferenciasbiograficas (tal artista nasce em tal grupo, OUvive ascustas deste outro grupo, sua arte, portanto, exprimetal ou qual grupo). Vma obra de arte, ou urn sis-tema de pensamento, nasce de uma rede complexade influencias, a maioria das quais se desenvolve aonivel especffico da obra ou sistema de que faz parte;o mundo interior de urn poeta e influenciado e for-mado pela tradi«ao estilfstiea dos poetas que 0 prece-deram, tanto e talvez mais do que pelas ocasi6es his-toricas em que se inspira sua ideologia; e atraves dasinfluencias estilfstieas ele assimilou, sob a especie de mo-do de formar, urn modo de ver 0 mundo. A obra queira produzir podera ter fraquissimas conex6es com seuproprio momento hist6rico, podera expressar uma fasesubseqiiente do desenvolvimento geral do contexto, ou

podera expres~ar, da_fase em que ele vive, niveis pro-fundos, qUAeamda nao aparecem muito claros a seusconte?Iporaneos. Mas para que se possam reencontrar,~trav~s daquele modo de elaborar estruturas, todas ashga«oe~ entre a o~ra e seu tempo, 0 tempo preterito,ou ,0 vmdou~o, a mdaga«ao historica imediata so po-dera proporclOnar resultados aproximados. Unicamen-te comparando aquele modus operandi com outras ati-tudes_culturais da epoca (ou de epocas diversas, numar~la«~o ~e defasage~~.\que~ em termos marxlstas, e pos-slv.elmdlcar. com? dlspandades de desenvolvimento"),Umcamente ldentlflcando entre essas atitudes elementoscom.uns, r~dutiV~is _as mesmas categorias descritivas,p~~l~r-se-a a d~7e«ao ao longo da qual uma pesquisahlstonca subsequente devera individuar as conex6esmais profundas e artieuladas que se encontram debaixodas similaridades apuradas anteriormente. Com maisraza~, quando - como em nosso caso - 0 ambitodo dlSCurSOe 0 .~riodo do qual nos proprios somos aomesrno t:mpo JUlZes e. produto, 0 jogo das rela~6esentre fenomenos culturals e contexto historico torna-semuito ~ais intrincado. Cad a vez que, por polemica oud?gmat1~~o: procuramos estabelecer uma rehi«ao ime-dla~a, 1?lstlfICa~os uma realidade hist6rica que e sempremals. nca e ~utll .~o que do modo como a propomos.Por ISS0, a slmphflCa«aO produzida por uma descri«aoem te~mos de modelos estruturais nao signifiea ocultara reahdade: represent a 0 primeiro passo rumo a suacomp~eensao. Estabelece-se entao aqui, em nivel maisempmco, ,a. rela~ao, .ainda problematica entre logieaformal e loglca dlaletlca (e tal, em ultima analise, nosparece ser 0 sentido de muitas das atuais discuss6esentre. ~eto?ologias diacronieas e sincronieas). NossaCOnVIC«aOe de qu~ os dois universos sao recuperaveis.Que em certa medlda, embora a revelia a conscienciada historia j~ age em toda pesquisa sabre as configu-r.~es formalS dos fenomenos; e podera continuar aiqindo quando, introduzidos os modelos formais elabo-r.do~ no circu~t? d~ urn discurso historieo mais amplo,, .'rle das venflCa«OeSpuder tambern levar-nos a reela-bora9ao do mesrno modelo inieial.

Fixar portanto a aten9ao, como temos feito sobre• rela9~? fruitiva obra-consumidor, como se co~figuraII. poetlcas da obra aberta, nao signifiea reduzir nossa

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rela~ao com a arte aos termos de urn puro j?~O tec-nicista, como muitos gostariam. E, pe~o cont~3!lo, urnmodo entre muitos, aquele que nos e permltIdo p~rnossa especifica voca~ao para a pesquisa, de reumre coordenar os elementos necessarios a urn discursosobre 0 momento historico em que vivemos.

Uma primeira indica~ao ,d~ssas poss~bilidades de de-senvolvimento e dada pelo UltImo ensalO deste volume("Do modo de formar como compromisso com a r~a·lidade"): nnde 0 discurso conduzldo pelas formas h.n-giilsticas da obra e encarado como reflexo de u~ dlS-curso ideologico mais amplo, _que pas~a atraves dasformas da lingua gem e que nao podena ser compre-endido se nao fossem antes analisadas as formas dalinguagem enquanto tais, como "serie" autonoma.

Finalizando, desejo lembrar que as pesquisas so-bre a obra aberta tiveram infcio quando acomp~nha~aas experiencias musicais de Luciano Berio .e dlscuttaos problemas da musica nova com ele, !Ienn. Pouss~ure Andre Bucurechliev; que os apelos a teona da lll-forma~ao foram posslveis gra<;as a ~ssistencia de ~'B. Zorzoli, que fiscalizou meus movll~entos em tern-torio tao especializado; e que Fran<;01s ~ a~l - queme ajudou, estimulou e aconselhou na reVlsao da tra-du<;ao francesa - influenciou grandemente a refo~-mula<;ao de muitas paginas, que tornam a segunda edl-c;ao parcialmente diferente da primeira.

A proposito de "Do modo de formar" devo recor-dar que este ensaio nasceu sob 0 impulso (como. sem-pre, feito de co-participa<;6es di~cor~a?-tes, de amm~dae fraternal opo siC;ao) de Elio Vlttonm, qu~ estava )US-tamente abrindo, com 0 nll 5 de Menabo, uma novafase de sua discussao cultural.

Enfim, das cita<;6es e das referencias indiretas,. 0leitor depreendera a dlvida que contral c,.?m a. teonada formatividade de LuigiPareyson; eu nao term che-gada ao conceito de "obra aberta" sem a analise queele fez do conceito de interpretac;ao, embora 0 qua~dro filosofico, onde depois inseri tais contribuic;6es, se-ja de minha inteira responsabilidade.

Entre as recentes prodUC;6esde musica instrumen-tal podemos notar algumas composi<;6es assinaladas poruma caracteristica comum: a peculiar autonomia exe-cutiva concedida ao interprete, 0 qual nao so dispoeda liberdade de interpretar as indica<;6es do composi-tor conforme sua sensibilidade pessoal (como se dano caso da musica tradicional), mas tambem deveIntervir na forma da composic;ao, nao raro estabele-aendo a dura<;ao das notas ou a sucessao dos sons,num ato de improvisac;ao criadora. Citemos alguns'IClmplos dentre os mais conhecidos: 1) No Klaviers-lUck Xl, de Karlheinz Stockhausen, 0 autor prop6e aoIXlCutante, numagrande e unica folha, uma serie de

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grupos entre os quais devera escolher primeiramenteo grupo com 0 qual iniciar, e depois, um de cada vez,os que devem ser unidos ao anterior; nessa execu~ao,a liberdade do interp:rete baseia-se na estrutura "com-binatoria" da pe~a, "montando" aUWnomamente a su-cessao das frases musicais. 2) Na Sequenza per flautosolo, de Luciano Berio, 0 interprete acha-se diante deuma partitura que the propoe uma textura musical ondesac dadas a sucessao dos sons e sua intensidade, en-quanta que a dura~ao de cada nota depende do valorque 0 executante deseje conferir-lhe no contexto dasconstantes quantidades de· espa~o, correspondentes aconstantes pulsa~Oesde metronomo. 3) A prop6sito desua composi9ao Trocas, assim escreve Henri Pousseur:"Trocas, mais do que uma pe~, constituem um cam-po de possibilidades, um convite a escolha. Constamde 16 se90es. Cada uma delas pode ser concatenadacom outras duas, sem que fique prejudicada a continui-dade l6gica do devir sonoro: duas s~oes, com efeito,s,ao introduzidas por caracteres semelhantes (a partirdos quais evoluem sucessivamente de forma divergen-te), duas outras podem, ao contrario, convergir parao mesmo ponto. 0 fato de se poder come9ar e aca-bar com qualquer uma das se90es torna possivel gran-de variedade de resultados cronol6gicos. Finalmente,as duas s~Oes iniciadas no mesmo ponto podem sersincronizadas, dando lugar a uma polifonia estruturalmais complexa. .. Nada proibe imaginar que tais pro-postas formais, gravadas em fita magnetica, sejam des-se modo mesmo colocadas a venda. Dispondo de umainstala9ao acu.stica relativamente dispendiosa, 0 pro-prio publico poderia entao, .gra9as a elas e em suapropria casa, exercitar uma imagina9aOmusical inedita,uma nova sensibilidade coletiva do material sonoro edo tempo". 4) Na Terceira Sonata para Piano, PierreBoulez preve uma primeira parte (Antiphonie, For-mant 1), constituida por 10 s~oes, em 10 folhas sepa-radas,. combillliveis como fichas (embora nao sejampermitidas todas as combina90es); a segunda parte(Formant 2, Thrope) compe-se de quatro s~oes deestrutura circular, podendo-se com~ar por uma qual-quer e liga-la as outras ate se fechar 0 clrculo. Nao Mpossibilidade de grandes varia90es interpretativas nointerior das se90es, mas uma delas, por exemplo, Pa-

renthese, inicia-se por um compasso de tempo especifi-cado e prossegue com amplos parenteses dentro dosqu~is 0 temI?O~ liv!e. Ulll:a especie de regra e estabe-leclda pelas mdlca~oes de hga9ao entre um e outro tre-cho (ex.: sans retenir, enchalner sans interruptionetc.).

Em tod?s. esses.~as?s (e trata-se de quatro apenas,entr,e os mUltos posslvels), impressiona-nos de prontoa. dlf:ren9a .macrosc6pica entre tais generos de comu-mC~9aomusIcaLe aqueies a que a tradi~ao classica noshavIa acostumado. Em termos elementares essa di-fere11:9apode ser assim formulada: uma ob;a musicalCl~sslca,uma fuga de Bach, a A ida, ou Le Sacre duPrzntemps, consistiam num conjunto de realidades so-noras que 0 autor organizava de forma definida e aca-b.ad~, oferecendo-o ao ouvinte, ou entao traduzia emsmals. convencionais capazes de guiar 0 executante demanelra que este pudesse reproduzir substancialmentea. fo.rmaimaginada pelo compositor; as novas obras mu-SICalS,ao c011:tr.ario,nao consistem numa mensagemacabada e d~fmlda, numa forma untvocamente organi-zada, mas slm numa possibilidade de vilrias organiza-~oes confiadas a iniciativa do interprete, apresentando--se, portanto? .nao como obras concluldas, que pedempara ser reVIVldase compreendidas numa· dire<;ao es-t!Ut~ral dada, mas, como obras "abertas", que seraoflttal~zadaspelo interprete no momento em que as fruirestetIcamente ,1.

~ara 11:aose incorrer em equivocos termino16gi-cos, e preclSO observar que a defini9ao de "aberta"da~a a essas obras, ainda que sirva magistralmente paradehnear uma nova' dialetica entre obra e interprete,

(I) Aqui, e preciso eliminar desde ja a possibilidade de equivoco',vldentemente,. a operac;iio pratica do interprete enquanto "executante;',0 Instrument!sta que executa uma pec;a musical ou 0 ator que declamaum'texto) dlfere da ,de urn, jnt~rprete enquanto fruidor (quem olbapara urn .quadro ou Ie em sIlencIO uma poesia, ou, ainda, ouve umaPt~. muslc~l. executada por outrem), Contudo, para os prop6sitos daIn.lIse estellca, cumpre encarar ambos os casos como manifestac;6esdtVlrs~~ ~?_u~~ mesma atitude interpretativa: cada "leitura", "contem-p IQlo, gozo de uma obra dearte representam uma forma aindaC1u1calada e pa!ticular. de "execuc;iio". A noc;iio de processo i~terpre-Itl vo abrange todas essas atitudes. Retomamos aqui 0 pensamento deLul,l Pareyson, E;stetic,a - T,eoria delia jormativitiJ, Torino, 1954 (2"~l~ Bologna, Zamchelli, 1960. De ora em diante nos referiremos a esta'_I~,>, N,,~~ralmente podera <;Iar-se0 ~aso de obras que se apresen-tam Ua~ertas ao executante (mstrumentlsta. ator) e seriio restituidas•• p bhco como resultado ja univoco de uma selec;iio definitiva' emlulrOB casos, apesar da escolha do executante, pode permanecer a' pos-tlbllldade de Uma escolha Subseqiiente a que 0 publico e convidado.

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deve ser tomada aqui em virtude de uma convenc;aoque nos permita fazer abstrac;ao de outros significadospossiveis e legitimos da mesma expressao. Tem-se dis-cutido, de fato, em estetica, sabre a "definitude" e a"abertura" de uma obra de arte: e esses dois termosreferem-se a uma situac;ao fruitiva que todos nos ex-perimentamos e que frequentemente somos levados adefinir: isto e, uma obra de arte e urn objeto produzidopor urn autor que organiza uma sec;aode efeitos comu-nicativos de modo que cada possivel fruidor possa re-compreender (atraves do jogo de respostas a configu-rac;ao de efeitos sentida como estimulo pela sensibili-dade e pela inteligencia) a mencionada obra, a formaorigim1r'iaimaginada pelo autor. Nesse sentido, 0 autorproduz uma forma acabada em si, desejando que aforma em questao seja compreendida e fruida talco-mo a· produziu; todavil:).,no ate de reac;ao a teia dosestfmulos e de compreensao de suas' relac;6es, cadafruidor traz uma situac;ao existencial concreta, umasensibilidade particularmente condicionada, uma deter-minada cultura, gostos, tendencias, preconceitos pes-soais, de modo que a compreensao da forma origi-naria. se verifica segundo uma determinada perspectivaindividual. No fundo, a forma torna-se esteticamentevalida lla medida em que pode ser vista e compreen-dida segundo multiplices perspectivas, manifestando ri-queza de· aspectos e ressonancias, sem jamais deixar deser ela propria (urn sinal de transito, ao inves, s6 podeser encarado de maneira 6nica e inequivoca, e se fortransfigurado por alguma interpretac;ao fantasiosa deixade ser aquele sinal com aquele significado especlfico).Neste sentido, portanto, uma obra de arte, forma aca-bada e fechada em sua perfeic;ao de organismo perfei-tamentecalibrado, e tamb6m aberta, isto e, passivelde mil interpreta¢es diferentes, sem que isso redundeem alterac;aode sua irreproduzivel singularidade. Cadafruic;ao e, assim, uma interpretGfiio e uma execu~iio,pois em cada fruic;ao a obra revive dentro de uma.perspectiva original 2.

Mas e claro que obras como as de Berio ou Stock-hausen sao "abertas" numa acep<;aomenos metaf6ricae bem mais palpavel; dito vulgarmente trata-se deobras "inacabadas", que 0 autor, aparent;mente desin-~er~ssadode ~omo irao terminar as coisas, entrega aomterpr.ete malS ..ou menos como as pec;as saltas deurn bnnquedo de armar. Essa interpretac;ao dos fatose. paradoxal e i~~xa~a,por~m, 0 ~specto mais superfi-cIal des~asexpenencIas mUSICalSda azo, efetivamente, aurn eqUlvocodo genero; equivoco alias produtivo, poiso lado .desconcertante de tais experiencias deve levar--nos a mdagar por que, hoje em dia, 0 artista sente ne-cessidade de trabalhar nessa direc;ao; como resultadode que evoluc;aohist6rica da sensibilidade estetica' emconcomitancia com que fatores culturais de nosso tem-po; e como e mister encarar tais experiencias a luz deuma estetica te6rica.

(2) Para essa n~iio de interpreta\fao, v. Luigi Pareyson, op. cU.(em especial, caps. V e VI); com respeito a "disponibilidade" da obra,levada as ultimas conseqiiencias, v. Roland Barthes: "Essa disponibili-dade nao oSuma virtude menor; trata-se pelo contrario do pr6prio serda literatura, levado ao seu paroxismo. Escrever significa fazer estre~mecer 0 sentido do mundo, colocar uma pergunta Indireta a qual. 0escrltor, numa derradeira indetermina\fao, se abstem de responder. A

A poetica da obra "aberta" tende, como diz Pous-seur3, a promover no interprete "atos de liberdadeconsciente", pO-Ie como centro ativo de uma rede derelac;6es inesgotaveis, entre as quais ele iilstaura suap!6pria forma, sem ser determinadopor uma neces-SI~atJ:que !he prescr~va os modos definitivos de orga-nlZac;ao da obra fruIda; mas (apoiando-nos naqueles~gnificadomais amplo do termo "abertura" que men-ClOnamosantes) poder-se-ia objetar que qualquer obrade arte,. embora nao se entregue }D.aterialmente.ina-cabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmoporque nao podera ser realmente compreendida se 0

interprete nao a reinventar num ato de congenialidadecom 0 autor. Acontece, porem, que essa observac;aoconstitui urn recoilhecimento a que a estetica contem-.f.lposta quem d~ oScada urn de n6s, que Ihe traz a sua hist6ria suaUnlUalfe~,. sua liberdade; mas como hist6ria, Iinguagem e liberdad~ va-rlarn ~frm~ente, a resposta do mundo ao escritor oSinfinita: naooella JamlU~de responder ao que estli escrito para aloSmde qualqu\lr:ta; afirmados, contraditos depois, por fim substituidos, os signifi-

Oll passam e a pergunta permanece... Mas, para que 0 jogo seaomplete ( ... ). devem-se~espeltar algumas regras: oSpreciso, de urn lado,

JU' a q&rlt seJa verdadetramente uma forma, que ela indique urn sen-do duvid,?so,nao urn sentido fechado... " ("Avant-propos", Sur Racine,II'I~ SeUlI, 1963). Nest~ ~ntido, par conseguinte, a Iiteratura (diria-

~. toda mensagem artistica) designaria de modo certo um ob;etoql'll,rto.

(3) "La nuova sensibilita musicale",· em Incontri Musicali n9 2malo de 1958, pag. 25. • ,

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poranea so chegou depois de teralcan~ado mad~raconsciencia critica do que seja a rela~ao mterpretatlva,e a artista dos seculos passados decerto estava bemlonge de .ser crlticamente consciente dessa realid~de;hoje tal consciencia existe, principalmente no artlstaque, em lugar de sujeitar-se a "abert~ra" co~o fat~rineviHivel,erige-a em programa prod~tlvo e ate propoea obra de modo a promover a malOr abertura pos-sivel.o peso da quota subjetiva na rela~ao de frui~ao (0fato de que a frui~ao implica uma rela~ao interatuanteentre 0 sujeito que "ve" e a obra enquanto dado ob-jetivo) nao passou absolutamente despercebido aos ~n-tigos,mormente em suas disserta~6es sobre artes flgu-rativas. Platao, no Sofista, observa, por exemplo, queos pintores pintam as propor~s, n_aose~d'o umaconveniencia objetiva, mas em rela~ao ao an~lo, ~oqual as figuras san vistas pelo observador; VltrilVIOdistirigue entre simetria e eurritmia, ~ntend~n~o es!aultima como adequa~ao das propor~oes obJetlvas asexigencias subjetivas da visao; as des~nvolvimentos deuma ciencia e da pnitica da perspectlVa testemunhamo amadurecimento de uma consciencia da fun~ao dasubjetividade interpretante em face da obra. Contudo,e outrossim ponto pacifico que'tais convi~oes leva-yam a agir justamente em oposi~ao a abertura e afavor do fechamento da' obra: os varios artificios deperspectiva representavam exatamente outras tantasconcessoes feitas as exigencias da situacionalidade doobserv.adorpara levarem-no a ver a figura no unico ":0-do certo possivel, aquele para 0 qual 0 autor (arql;ute-tando artificios visuais) procurava fazer converglr aconsciencia do fruidor.

Tomemos outro exemplo: no medievo desenvolveu--se uma teoria do alegorismo que preve a possibili-dade de se ler a Sagrada Escritura (e mais tarde tam-hem a poesia e as artes figurativas). nao s6 e~ .seusentido literal mas em tres outros sentldos, 0 alegonco,o moral e 0 ~nag6gico. Tal teoria tornou-se-nos fa~i-liar gra~as a Dante, mas vamos encontrar .suas ~alzesem Sao Paulo (videmus nunc per speculum zn aenzgma-te tunc autem facie ad faclem), e foi desenvolvida porS~o Jeronimo, Agostinho, Beda, Escoto Erigeno, Hugoe Ricardo de Sao Vitor, Alain de Lille, Boaventura,

Tomas e outros, a ponto de constituir 0 eixo da p06-tica medieval. Vma obra assim entendida e, sem du-vida, uma obra dotada de certa "abertura"; 0 leitordo texto sabe que cada frase, dl cada figura se abre

.para uma multiformidade de significados que ele de-vera descobrir; inclusive, conforme seu estado de ani-mo, ele escolhera a chave de leitura que julgar exem-plar, ·e usara a obra na significa<;aodesejada (fazen-do-a reviver, de certo modo, diversa de como possi-velmente ela se the apresentara numa leitura anterior).'Mas nesse caso "abertura" nao significa absolutamen-te "indefini~ao" da comunicagiio, "infinitas" possibili-dades da forma, liberdade da frui~ao; M somente urnfeixe de resultados fruitivos ngidamente prefixados econdicionados, de maneira que a rea~ao interpretativado leitor nao escape jamais ao controle do autorJIi Eiscomo se exprime Dante na decima terceira Epistola:"Esta maneira de tratamento, para que seja mais cla-ra, pode ser vista nos versos: In exitu Israel de Egyp-to, domus Jacob de populo barbaro, facta est Judeasantificatio ejus, Israel potestCMejus. De fato, se osconsiderarmos ao pe da letra, significam a saida dosfillios de Israel do Egito, ao tempo de Moises; se con-siderarmos sua alegoria, significam nossa reden<;aoporobra de Cristo; se considerarmos seu sentido moral,significam a conversao da alma, do luto e da miseriado pecado ao estado de gra<;a; se considerarmos seusentido anag6gico, significam a saida da alma santa da

. lervidao desta corrup<;ao para a liberdade' da gl6riaeterna". Esta claro que nao ha outras leituras possi-veis: 0 interprete pode orientar-se mais para urn senti-do do que para outro, no ambito dessa frase de quatro••tratos, mas sempre segundo regras de univocidade ne-cessaria e preestabelecida. 0 significado das figurasaleg6ricas e dos emblemas que 0 medieval encontraraem suas leituras esta fixado pelas enciclop6dias, pelosbestiarios e pelos lapidarios cia epoca; a simb6lica eobjetiva e institucional 4. A essa poetica do univocoe

(4) Paul Ricoeur, em "S~c~re et I!ermeneutique", Esprit, Dovern-

Ero de 1?63!sugere que a pohs~rma do slmbolo medieval (que pode re-rlrole mdIferentemente a realidades opostas - veja-se um catalogo.11. oscila\(Oesem Reau, Iconographie de I'art chretien, Paris, 1953)

!6 interpretavel com base Dum repert6rio abstrato (exatamente bes-Arlo ou lapidario), mas sim no sistema de rela\(Oes,na ordo de um

to (rl" um contexto) relacionada ao Livro Sagrado, que orientariaI procura das chaves de leitura. Dai a atividade do interprete medievaltal eXerce, no confronto com os outros livros, ou com 0 Iivro da na-

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do necessano subordina-se um cosmo ordenado, umahierarquia de entes e leis que 0 discurso poetico po-de aclarar em mais niveis, mas que cada qual deveentender da unica maneira possivel, que e a instituidapelos logos criador. A ordem da obra de arte e a mes-ma de uma sociedade imperial e teocratica; as regrasde leitura saD regras de um governo autoritario, queguiam 0 homem em cada um de seus atos, prescreven-do-Ihe os fins e oferecendo-Ihe os meios para realiza-Ios.

Nao que as quatro possibilidades do discurso ale-g6rico sejam quantitativamente mais limitadas do queas muitas possibilidades oferecidas por uma obra "aber-ta" contemporanea: tal como tentaremos mostrar, es-sas experiencias diferentes subentendem uma diferentevisao do mundo.

Num rapido escor~o hist6rico encontramos um as-pecto evidente de "abertura" (na moderna acep~ao dotermo) na "forma aberta" barroca. Nesta, nega-sejustamente .a definitude estatica e inequivoca da for-ma c1<lssicarenascentista, do espa~ desenvolvido emtorno de um eixo central, delimitado por linhas sime-tricas e angulos fechados, convergentes para 0 centro,de modo a sugenr mais uma ideia de eternidade "es-sencial" do que de movimento. A forma barroca, pelocontrario, e dinamica, tende auma indetermin~ao deefeito (em seu jogo de cheios e vazios, de luz e som-bra, com suas curvas, suas quebras, os angulos nasinclina~oes mais diversas) e sugere uma progressiva di-lata~ao do espa~o; a procura do movimento e da ill!saofaz com que as massas plasticas barrocas nunca per-mitam uma visao privilegiada, frontal, definida, masinduzam 0 observador a deslocar-se conbnuamente pa-ra ver a obra sob aspectos sempre novos, como se elaesiivesse em continua mut~ao. Se a espiritualidadebarroca e encarada como a primeira manifesta~ao clarada cultura e da sensibilidade modernas, e porque nelao homem se subtrai, pela primeira vez, ao habito docanonico (garantido pela ordem c6smica e pela esta-bilidade das essencias) e se defronta, na arte como naciencia, com um mando em movimento que exige dele

atos de inven~ao. As poeticas do pasmo, do genio, dametajora, visam, no fundo, alem de suas aparenciasbizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do ho-mem novo, que ve fia obra de arte, nao um objetobaseado em rela~6es evidentes, a ser desfrutado comobela, mas um misterio a investigar, uma missao a cum-prir, um estimulo a vivacidade da imagina~a05. Contu-do, tambem estas saD conclus6es alcan~adas pela criticahodierna e que a estetica, hoje, pode coordenar emleis: porem seria leviano ver na poetic a barr&a umateoriza<;ao consciente da obra "aberta".

Entre classicismo e iluminismo, enfim, vai-se deli-neando uma id6ia de "poesia pura" justamente por-que a nega<;:ao das id6ias gerais, das leis abstratas,levada a cabo pelo empirismo ingles, vem afitmar a"liberdade" do poeta, e prenuncia, portanto, uma te-matica da "cria<;ao". Das afirma~6es de Burke sobreo poder emocional das palavras, chega-se as de No-valis sobre 0 poder puramente evocativo da poesiacomo arte do sentido vago e do significado impre-ciso. Vma id6ia se afigura entao tanto mais indivi-dual e estimulante "quanto mais numerosos forem ospensamentos, mundos e atitudes que nela se cruzam ese tocam. Quando uma obra apresenta diversos pretex-tos, muitos significados e sobretudo muitas faces e mui-tas maneiras de ser compreendida e amada, entao cer-tamente ela e interessantissima, entao e uma cristalinaexpressao da personalidade" 6.

Concluindo a parabola romantica, a primeira vezque aparece uma poetica consciente da obra "aberta"e no simbolismo da segunda metade de 1800. A ArtPoetique de Verlaine e bastante expHcita a respeito:

De la musique avant toute chose,et pour cela prefere l' impairplus vague et plus soluble dans 1'airsans rien en lui qui pese et qui pose.

tureza, uma atividade hermencutica. Isto nao impede que os lapidanos,por exemplo, oferecendo as diversas possibilidades de interpreta~ao deum mesmo simbolo, ja se constituam numa base de decodific~ao e queo pr6prio Livro Sagrado possa ser entendido como "c6digo" que insti-tui algUmas dire~Oes de leitura, excluindo outras.

(5) Para uma analise do barroco como inquietude e manifesta~aoda sensibilidade moderna, vejam-se as paginas de Luciano Anceschi emSarocco e Novecento, Milano, Rusconi e Paolazzi, 1960. Sabre 0 valor•• Urnu!ante das pesquisas de Anceschi para uma hist6ria da obra aberta,procurei falar no n'? III, 1960, da Rivista di Estetica.

(6) Sobre a evolu~ao, nesse sentido, das poeticas pre-romanticas erornAnticas, v. ainda L. Anceschi, Autonomia ed eteronomia del/'aru.2f ed., Firenre, Vallecchi, 1959.

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Car nous voulons Ia nuance encore,pas Ia couleur, rien que Ia nuance!Oh! Ia nuance, seule fianceIe reve au reve et Ia flute au cor!De Ia ll1usiqueencore et toujours!Que ton vers soit Ia chose envoleequ'on sent qui 'fuit d'une ame en alleevers d'autres cieux et d'autres amours.Que ton vers soit Ia bonne aventureeparse au vent crispe du matinqui va fleurant Ia menthe et Ie thym ...Et tout Ie reste est litterature.

Kafka como uma obra "aberta" por excelencia: pro-cesso, castelo, espera, condena~ao, doen~a, metamor-fose, tortura, nao sao situa~6es a serem entendidas emseu significado literal imediato. Mas, ao con.tnirio dasconstru~6es aleg6ricas medievais, aqui os sabre-sen-tidos nao sao dados de modo univoco, nao sao ga-rantidos por enciclop6dia alguma, nao rep01!sam sbbrenenhuma ordem do mundo. As varias interpretac;6es,existencialistas, teol6gicas, cHnicas, psicanaHticas dossimbolos kafkianos s6 em parte esgotam as possibili-dades da obra: na realidade, a obra permanece ines-gotada e aberta enquanto "ambigua", pois a um mun-do ordenado segundo leis universalmente reconhecidassubstituiu-se um mundo fundado sabre a ambigiii-dade, quer no sentido negativo de uma carencia decentros de orientac;ao, quer no sentido positive de umacontinua revisibilidade .dos .valores e das certezas.

Dessa maneira, mesmo onde e dificil estabelecer sehavia, no autor, intenc;ao simb6lica e tendencia ao in-determinado ou ao ambiguo, certa poetica critica en-carrega-se hoje de ver toda a literatura contempora-nea como estruturada em eficazes aparatos simb6licos.Num livro sbbre 0 simbolo literario, W. Y. Tindall,atraves da analise das maioresobras da literatura mo-dema, visa a tomar te6rica e experimentalmente de-finitiva a afirmac;ao de Paul Valery - "il n'y a pasde vrai sens d'un texte" - ate concluir que uma obrade arte· e uma estrutura que qualquer pessoa, inclu-sive seu autor, pode "usar" como bem entender. Essetipo de critica visa, portanto, a considerar a obra lite-raria como continua possibilidade de aberturas, reservaIn~efinida de significados; e sob esse prisma cumpreencarar todos os estudos norte-americanos sobre a es-trutura da metafora e sobre os varios "tipos de ambi-aUidade" oferecidos pelo discurso poetico 8.

E superfluo lembrar aqui ao leitor, como exemplomaximo de obra "aberta" - com 0 intuito justamentede proporcionar uma imagemde certa condic;ao exis-

(8) Veja-se W. Y. Tindall, The Literary Symbol. New York, Co-lumbia Un. Press, 1955. Para um desenvolvimento atual das ideias deVII'ry, v. Gerard Genette, Figures. Paris, Seui!, 1966 (especialmente"La lltterature comme teIle"). Para uma analise da relevancia esteticacli no~lio de ambigiiidade, v. as importantes observa~oes e as referen-.1•• blbliograticas em Gillo Dorfles, II divenire delle arti, Torino, Einau-dl, 1959, pag. 51 e segs.

Ainda mais extremas e empenhadas sao as afirma-r;:6esde Mallarme: "nommer un object c'est suppri-mer Ies trois quarts de la jouissance du poeme, quiest faite du bonheurde deviner peu a peu: Ie sug-gerer. .. voila Ie reve ... " 7. E preciso evitar que urnsentido unico se irnponha de chofre:o espac;o brancoem tomo da palavra, 0 jbgo tipografico, a composic;aoespacial do texto poetico, contribuem para envolver 0termo num halo de indefinic;ao, para impregna-Io demil sugest6es diversas.

Com essa poetica da sugestao, a obra se coloca in-tencionalmente aberta a livre reac;ao do fruidor. Aobra que "sugere" realiza-se de cada vez carregando--se das contribuic;6es emotivas e imaginativas do inter-prete. Se em cada leitura poetica temos um mundopessoal que tenta adaptar-se fieimente ao mundo dotexto, nas obras poeticas deliberadamente baseadas nasugestao, 0 texto se prop6e estimular justamente 0mundo pessoal do interprete, para que este extraia desua interioridade uma resposta profunda, elaboradapor misteriosas consonancias. Alem das intenc;6es me-taflsicas ou da preciosa e decadente disposic;aode es-pirito que move tais poeticas, 0 mecanisme fruitivorevela esse genero de "abertura".

Nessa linha, grande parte da· literatura contempo-ranea baseia-se no usa do simbolo como comunicac;aodo indefinido, aberta a rea~6es e compreens6es sem-pre novas. Facilmente podemos pensar na obra de

(7) "denominar um objeto e suprimir tres quartos da frui~lio dopoema, ~ue e feita d~, felicidade de adivinha-Io poueo a poueo: sugeri--10... els 0 sonho ...

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tencial e ontol6gica do mundo contemporaneo -, aobra de James Joyce. Em Ulisses, urn. capitulo como"Wandering Rocks" constitui um pequeno universoobservavel dentro de perspectivas sempre novas, ondedesapareceu totalmente 0 Ultimo vestigio de uma poe-tica de molde aristotelico, e com ela um decurso unf-voco do tempo dentro de um espa~o homogeneo. Comodisse Edmund Wilson 9: "Sua for~a (de Ulisses), ao in-yes de acompanhar uma linha, expande-se a si mesmaem todas as dimens6es (inclusive a do Tempo) emtomo de um linico ponto. 0 mundo de Ulisses e ani-mado por uma vida complexa e inexaurivel: revisitamo--10 tal com fmamos com uma cidade, a qual voltamosmais vezes para reconhecer os rostos, compreender aspersonalidades, estabelecer rela~oes'e correntes de inte-resses. Joyce desenvolveu consideravel mestria tecnicapara apresentar-nos os elementos de sua historia numaordem tal que no~ tome capazes de encontrar sozinhosos nossos caminhos: duvido bastante que uma memo-ria humana consiga satisfazer todas as exigencias deUlisses, na primeira leitura. E, quando voltamos a le--10, podemos com~ar de um ponto qualquer, comose nos defrontassemos com algo de solido, como umacidade que existe realmente no espa~o. e na qual sepode entrar por onde quer que se queira - alias, 0 pro-prio Joyce declarou, ao compor 0 livro, ter trabalhadosimultaneamente em vadas de suas partes".

Em Finnegans Walee encontramo-nos enfim, verda-deiramente, na presen~a de um cosmo einsteiniano, cur-vado sobre si mesmo - a palavra inicial une-se a pala-vra final - e portanto acabado, mas pdr isso mesmoilimitado. Todo acontecimento, toda palavra, encon-tra-se numa rela~ao possivel com todos os outros e e daescolha semantica efetuada em presen~ de um termoque depende 0 modo de entender todos os demais.Isso nao significa que a obra nao tenha um sentido:se Joyce introduz nela certas chaves e justamente pordesejar que a obra' seja lida num sentido determinado.Mas esse "sentido" tem a riqueza do cosmo, e 0 au-tor quer, ambiciosamente, que ele implique a totalidadedo espa~o e do tempo - dos espa~os e dos tempos pos-

(9) Edmund Wilson, Axel's Castle, London-New York,. Scribner:sSons, 1931, pag. 210 da ed. 1950 (tr. italiana: II castello di Axel, MI-lano, II Saggiatore, 1965).

SlvelS. 0 instrumento-mor dessa ambigliidade integrale 0 pun, 0 calembour: onde duas, tres, dez raizes dife-·rentes se combinam de forma que uma linica palavrase tome um n6 de significados, cada qual podendoencontrar-se e correlacionar-se com outros centros dealusao abertos ainda a novas constela~6es e probabili-dades de leitura. Para definirmos a situa~ao do leitorde Finnegans Wake parece-nos servir perfeitamente adescri~ao dada por Pousseur da situa~ao do individuoque ouve uma compogi~ao serial p6s-dodecafonica: "Jaque os fenomenos nao mais estao concatenados uns aosoutros segundo um determinismo conseqtiente, cabe aoouvinte colocar-se voluntariamente no centro de umarede de rela~6es inexaurlveis, escolhendo, por assimdizer, ele proprio (embora ciente de que sua escolhae condicionada pelo objeto visado), seus graus de apro-xima9ao, seus pontos de encontro, sua escala de refe-rencias; e ele, agora, que se disp6e a utilizar simul-taneamente a maior quantidade de gradua~6es e de di-mens6es possiveis, a dinamizar, a multiplicar, a esten-der ao maximo seus instrumentos de assimila~ao" 10.

E com essa cita~ao fica sublinhada, como se distohouvesse necessidade, a convergencia de todo 0 nossodiscurso para um ponto linico de interesse, e a uni-dade da problemlitica da obra "aberta" no mundocontemporaneo~

Nao que 0 convite a abertura se manifeste ex-clusivamente no plano da sugestao indefinida e dasolicita9.aoemotiva. Se examinarmos a poetica teatralde Bertolt Brecht, encontraremos uma conce~ao daa~ao dramatica como exposi~ao problematica de de-terminadas situa~6es de tensao; propostas essas situa-y6es - segundo a conhecida tecnica da recita~ao "epi-ca", que nao quer sugestionar 0 espectador, mas apre-sentar-lhe de modo distanciado, estranhado, os fatosa observar - a dramaturgia brechtiana, em suas ex-press6es mais rigorosas, nao elabora solu~6es; cabera aoespectador tirar conclus6es criticas daquilo que viu.Os dramas de Brecht tambem terminam numa situa<;aode ambigilidade (tipico, e maior entre todos, Galileu):.qui, porem, ja nao se trata da ambigliidade morbidade um infinito entrevisto ou de urn misterio sofrido

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na angUstia, mas da mesma ambigiiidade concreta daexistencia social como choque de problemas nao resol-vidos, para os quais e preciso encontrar uma soluc;ao.Aqui a obra e "aberta" como e "aberto" um debate: asoluc;aoe esperada e auspiciada, mas deve brotar da aju-da consciente do publico. A abertura faz-se instru-mento de pedagogia revoluciomiria.

Em todos os fenomenos examinados, a categoriade "abertu!'a" era empregada para definir situac;6esami-ude diversas, mas no conjunto os tipos de obra estu-dados diferenciam-se todos das obras dos musicos pos--webernianos que submetemos a exame no infcio. Semduvida, do barroco as atuais poeticas do simbolo, foi--se definindo cada vez mais um conceito de obra deresultado nao-univoco, mas os exemplos examinadosno panigrafo anterior nos propunham uma "abertura"baseada na colabora~ao teoretica, mental, do fruidor,o qual deve interpretar livremente um fato de arte japroduzido, ja organizado segundo uma completude es-trutural (ainda que estruturado de forma a tornar-seindefinidamente interpretavel). Ao contrario, uma com-posic;ao como Trocas, de Pousseur, representa algo deulterior: enquanto que, ao ouvir uma obra de Webern,o ouvinte reorganiza livremente e frui uma serie derelac;6es no ambito do universo sonoro· que Ibe e ofe-recido (e ja completamente produzido), em Trocas 0

fruidor organiza e estrutura, no proprio campo da pro-du~ao e da manualidade, 0 discurso musical. Colaborapara fazer a obra.

Nao pretendemos afirmar que essa diferen~ subse-qiiente qualifique a obra como mais ou menos validaem rela~ao as ja feitas: em todo 0 presente discursoacham-se em questao diversas po6ticas avaliadas pelasitua~ao cultural que refletem e constituem, independen-temente de qualquer juizo de validade estetica dos pro-dutos; e evidente, contudo, que uma composic;ao dotipo de Trocas (ou outras ja mencionadas) levante umproblema novo, induzindo-nos a reconhecer, no am-bito das obras "abertas", uma categoria mais restritade obras que, por sua capacidade de assumir diversas

estruturas imprevistas, fisicamente irrealizadas, pode-riamos definir como "obras em movimento".

o fenomeno da obra em movimento, na presentesituac;ao cultural, nao esta absolutamente limitado aoambito musical, mas oferece interessantes manifesta-~6es no campo das artes plasticas, onde encontramoshoje objetos artisticos que trazem em si mesmos como

, que uma mobilidade, uma capacidade de reproduzir-secaleidoscopicamente aos olhos do fruidor como eter-namente novos. 'Em nivel mais restrito, podemos lem-brar os mobiles de Calder ou de outros autores, estru-turas elementares que possuem justamente a capaci-dade de mover-se no ar, assumindo disposic;6es espa-ciais diversas, criando continuamente seu proprio es-pa~ e suas proprias dimens6es. Em nivel mais am-plo, lembramos a nova Faculdade de Arquitetura daUniversidade de Caracas, definida como "a escola ainventar todos os dias": as salas dessa escola saG cons-tituidas de paineis moveis, de modo que professores ealunos, consoante 0 problema arquitetonico e urbanis-tico em exame, constroem 0 ambiente de estudo apro-priado, modificando continuamente a estrutura internado ediffcio 11. Ainda, Bruno Munari idealizou um novoe original genero de pintura em movimento, com efei-tos verdadeiramente surpreendentes: projetando, me-diante uma lanterna magica comum, um collage deelementos plasticos (uma esp6cie de composic;ao abs-trata obtida pela justaposic;ao ou pelo encrespamentode foIbas finissimas de material incolor, de linhas di-versas), e fazendo passar os raios luminosos atravesde uma lente polaroide, obtem-se sobre a tela umacomposi~ao de intensa beleza cromatica; pondo, emseguida, a girar vagarosamente a lente polaroide, a(igura projetada muda gradativamente suas cores, pas-S'andopor toda a gama do arco-iris e realizando, atra-vell <la rea~ao cromatica dos diversos materiais plasti-cos e das diferentes camadas de que saG constituidos,uma serie de metamorfoses que incidem inclusive so-bre a propria estrutura plastica da forma. Regulandoa seu criterio a lente giratoria, 0 fruidor colabora efe-tivamente para uma cria~ao do objeto estetico, pelomenos no ambito do campo de possibilidades que lhe

(11) V. Bruno Zevi, "Una seuola da inventare ogni giorno", em'-'Espresso, 2 de fevereiro de 1958.

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permitem a existencia de uma gama de cores e a pre-disposic;aophistica dos diapositivos.

Por seu turno, 0 desenho industrial nos oferxeexemplos menores mas evidentes de obras em movi-mento com certos objetos de decorac;ao, H'tmpadasar-ticuladas, estantes recomponiveis em formas diferen-tes, poltronas capazes de metamorfoses de insofismaveldignidade estilistica, permitindo ao homem de hoje pro-duzir e dispor ele proprio as formas entre as quaisvive, conforme 0 seu proprio gosto e as exigenciasde uso.

Se nos voltarmos ao setor literano para procurarum exemplo de· obra em movimento, encontraremos,em lugar de um pendant contemporaneo, uma antecipa-c;ao ja classica: trata-se do Livre de Mallarme, a obracolossal e total, a Obra por excelencia que, para 0poeta, devia constituir nao somente 0 objetivo Ultimode sua propria atividade, mas 0 pr6prio objetivo domundo (Le monde existe pour aboutir a un livre). Mal-larme nao levou a cabo essa obra, embora nela traba-lhasse a vida inteira, mas existem seus esboc;os, recen-temente .trazidos a luz por um sagaz trabalho de filolo-gia 12. As intenc;6esmetafisicas subjacentes a essa em-presa sao amplas e discutiveis; permitam-nos pO-las delado, para tomar em considerac;ao tao-somente a estru-tUfa dinamica desse objeto artistico, que pretende rea-lizar um ditame de poetica bem definido: "un livre nicommence ni ne finit; tout au plus fait-il semblant".o Livre devia ser um monumento m6vel, e nao s6 nosentido em que era m6vel e "aberta" uma composic;aocomo 0 Coup de des, onde gramatica, sintaxe e dispo-sic;ao tipografica do texto introduziam uma polimorfapluralidade de elementos em reiac;ao nao determinada.

No Livre as pr6prias paginas nao deveriam obede-cer a uma ordem fixa: deveriam ser agrupaveis emordens diversas, consoante leis de permutClfi'io. Estabe-lecida uma serie de fasciculos independentes (nao reu-nidos par uma paginac;aoque determinasse sua seqUen-cia), a primeira e a ultima pagina de um mesmo fas-ciculo deveriam ser escritas numa unica grande folha,dobrada em duas, que marcasse 0 inicio e 0 fim do

(12) Jacques Scherer, Le "Livre" de Mallarme (Premieres recherchessur des documents inedits), Paris, Gallimard, 1957 (v. especialmente 0cap. III, Physique du Livre).

fasciculo: no interior dela deslocar-se-iam folhas sol-tas, simples, moveis, intercambiaveis, mas de tal ma-neira que, fosse qual fosse a ordem de sua colocac;ao,o discurso possuisse urn sentido completo. Evidente-mente, 0 poeta nao pretendia obter de cada combinac;aourn sentido sintatico e urn significado discursivo: apr6pria estrutura das frases e das palavras isoladas, ca-da uma delas encarada como capaz de "sugerir" e deentrar em relac;ao sugestiva com outras frases ou pa-lavras, tornava possivel a validade de cada permutac;aoda ordem, provocando novas possibilidades de rela-c;ao e, portanto, novos horizontes de sugestao. 1.£ vo-lume, malgre ['impression fixe, devient, par ce jeu, mo-bile - de mort il devient vie. Vma analise combina-t6ria eqilidistante dos jogos da Ultima escolastica (eespecialmente do lullismo) e das tecnicas matematicasmodernas possibilitava ao poeta compreender como,de um numero limitado de elementos estruturais mo-veis, poderia surgir a possibilidade de urn numero as"'tronomico de combinac;6es; 0 agrupamento da obraem fascicuIos, com certo limite imposto as possiveispermutac;6es,embora "abrindo" 0 Livre a uma serie am-pHssima de ordens a escolher, amarrava-o a urn cam-po de sugestividade a que, alias, 0 autor ja visavaatraves do oferecimento de certos elementos verbais eda indicac;ao de sua combinabilidade.

o fate de a mecanica combinat6ria por-se aqui aservic;ode uma revelac;ao de tipo orfico nao influi narealidade estrutural do livro como objeto m6vel eaberto (nisso, singularmente pr6ximo a outras expe-ri8ncias ja mencionadas e nascidas de outras intenc;6escomunicativas e formativas). Permitindo a permutabi-Udade de elementos de um texto ja por si sO capazde sugerir relac;6es abertas, 0 Livre queria tornar-seurn mundo em continua fusao, que se renova conti-nuamente aos olhos do leitor, mostrando aspectos sem-pre novos daquela poliedricidade do absoluto que ten-ctonava, nao diriamos expressar, mas substituir e rea-l!zar. Em tal estrutura, nao se deveria encontrar ne-nhum sentido fixe, assim como nao era prevista umaforma definitiva: se uma so passagem do livro tivesseum sentido definido, univoco, inacessivelas influen-

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cias do contexto permuHivel, tal passagem teria blo-queado 0 mecanismo todo.

. A_ut6pic~ fac;a~a de Mallarme, complicada porasprrac;oes e mgen'llldades verdadeiramente desconcer-tantes, nao foi levada a cabo; e nao sabemos se, umavez acabada, a experiencia seria vmida, ou se revelariauma equfvoca encamac;ao mfstica e esoterica de umase.nsibilidade decadente ao fim de sua parabola. In-~h~amo-nos para a segunda hip6tese, mas certamentee_mte!essante encontrar, ao alvorecer de nossa epoca,tao VIgorosa sugestao de obra em movimento, sinalde que certas n~cessidades pairam no ar e, pelo sim-ples fato de existirem, justificam-se e sao explicadascomo dados de cultura a serem integrados no· pano-rama de uma epoca. Por isso se levou em consi-derac;ao a expe?~ncia de Mallarme, conquanto ligadaa uma problemattca bastante ambfgua e historicamentebem delimitada, ao passo que as atuais obras em mo-vimento, pelo contrario, procuram estabelecer relac;6esde conveniencia harmonicas e concretas e - comoacontece com as recentes experiencias musicais - ti-rocf~os da sensi~i~dade e ?a imaginac;ao, sem a pre-tensao de constltulr sucedaneos 6rficos do' conheci-mento.

Com efeito, e sempre arrlscado sustentar que a me-tMora ou 0 sfmbolo poetico,a realidade sonora ou aforma plastica constituem instrumentos de conheci-mento do r.eal mais profundos do que os instrumen-tos proporclOnados pela 16gica. 0 conhecimento domundo tern na ciencia seu canal autorizado e todaaspirac;ao.do artis~a 11 videncia, ainda que po~ticamen-te produttva, contem sempre algo de equfvoco. A arte,mais do que conhecer 0 mundo, produz complemen-tos do mundo, formas autonomas que se acrescentamas existentes,. exibindo leis pr6prias e vida pessoaI.Entretanto, toda forma artfstica pode perfeitamenteser encarada, se nao como substituto do conhecimentocientffico,.como metafora epistemol6gica: isso significaque, em cada seculo, 0 modo pelo qual as formas daarte se estruturam reflete - 11 guisa de similitude demetaforizac;ao, resoluc;ao, justamente, do conceito' em

figura - 0 modo pelo qual a ciencia ou, seja comofor, a cultura da epoca veem a realidade.

A obra fechada e unfvoca do artista medieval refle-tiu uma concepc;ao do cosmo como hierarquia de 'or-dens claras e predeterminadas. A obra como mensa-gem pedag6gica, como estruturac;ao monocentrica enecessaria (inclusive na pr6pria ferrea constric;ao in-tema de metros e de rimas) , reflete uma ciencia silo-gfstica, uma 16gicada necessidade, uma consciencia de-dutiva pela qual 0 real pode manifestar-se aos 'poucos,sem imprevistos e numa Un1ca direc;ao, partindo dosprincfpios primeiros da ciencia que se identificamcom os princfpios primeiros da realidade. A aberturae 0 dinamismo barrocosassinalam, justamente, 0 ad-vento de uma nova consciencia cientifica: a substi..;tuic;ao do tatiI peln visual, isto e, 0 prevalecer do as-pecto subjetivo, 0 deslocar-se a atenc;ao do ser para aaparencia dos objetos arquitetonicos e pict6ricos, porexemplo, nos lembra as novas filosofias e psicologiasda impressao e da sensac;ao, 0 empirismo que resolvenuma serie de percepc;6es a realidade aristotelica dasubstfmcia; e, por outro lado, 0 abandono do centronecessitante da composic;ao, do ponto de vista privi-legiado, acompanha a assimilac;aoda visao copemicia-na do universo, que eliminou definitivamente 0 geo-centrismo e todos os seus corolarios metaffsicos; nouniverso cientffico modemo, assim como na constru-c;ao ou na pintura barrocas, as partes aparecem t&lasdotadas de igual valor e autoridade, e 0 todo aspira adilatar-se ate 0 infinito, nao encontrando limites oufreios em nenhuma regra ideal do mundo, mas parti-cipando de uma geral aspirac;ao 11 descoberta e aocontato sempre renovado com a realidade.

A "abertura" dos simbolistas decadentes reflete, aseu modo, urn novo trabalbo da cultura que vem des-cobrindo horizontes inesperados; e cumpre lembrar co-mo certos projetos mallarmeanos sobre a decomponi-bilidade polidimensional do livro (que de bloco uni-tario deveria cindir-se em pIanos reversfveis e gerado-res de novas profundidades atraves da decomposic;aoem blocos menores, por sua vez m6veis e decomponf-veis) trazem 11 mem6ria 0 universo das novas geome-trias nao-euclidianas.

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Pelo que, nao ~era ousado reencontrar na poeticada obra "aberta" (e mais ainda, da obra em movi-mento), da obra que a cada frui<;ao se apresenta sem-pre diferente de si mesma, as ressonancias vagas ou c'l

definidas de algumas tendencias da ciencia contempo-ranea. Hi se tomou lugar-comum da ctitica maisatualizada a referencia ao continuo espacio-temporalpara explicar a estrutura do universo de Joyce; e naoe por acaso que Pousseur, para definir a natureza desua composi<;ao, fala de "campo de possibilidades".Assimprocedendo, e1e usa dois conceitos tornadosde emprestimo a cultura contemporanea e extre-mamente reveladores: a no<;ao de campo the provemda fisica e subentende uma visao renovada das rela-<;oes c1assicas de causa e efeito univoca e unidirecio-nalmente entendidas, implicando, pelo conirario, urncomplexo interagir de for<;as, uma constela<;ao deeventos, urn dinalllismo de estrutura; a no<;ao de pos'-sibilidadee uma no<;ao filos6fica que reflete tOdauma tendencia da ciencia contemporanea, 0 abandonode uma visao estatica e silogistica da ordem, a aber-tura para uma plasticidade de decis6es pessoais e parauma situacionalidade e historicidade dos valores.

o fato de que uma estrutura musical nao mais de-termine obrigatoriamente a estrutura subseqiiente -o pr6prio fato de que, como ja acontece na musicaserial, independentemente das tentativas de movimentoflsico da obra, nao mais exista urn centro tonal quepermita inferir os movimentos sucessivos do discurso apartir das premissas formuladas anteriormente - deveser encarado no plano geral de uma crise do principiode causalidade. Num contexto cultural em que a 16gicade dois valores (0 aut aut classico entre verdadeiroe falso, entre urn dado e seu contradit6rio) nao e maiso unico instrumento possivel de conhecimento, masonde se prop6em 16gicas de mais valores, que daolugar, por exemplo, ao indeterminado como resultadovalido da opera<;ao cognoscitiva, nesse contexto deideias eis que se apresenta uma poetica da obra dearte desprovida de resultado necessario e previsivel,em que a liberdade do interprete joga como e1ementodaquela descontinuidade que a fisica contemporaneareconheceu nao mais como motivo de desorienta<;ao,

mas como aspecto inelitninave1 de toda verifica<;aocien-tffica e como comportamento verificavel e insofisma-vel do mundo subatomico.

Do Livre de Mallarme ate certas composi<;6es mu-sicais examinadas, notamos a tendencia a fazer comque cada execu<;ao da obra nunca coincida com umadefini<;ao ultima dessa obra; cada execu<;ao a explicamas nao a esgota, cada execu<;ao realiza a obra mastodas saD complementares entre si, enfim, cada execu-<;aonos da a obra de maneira completa e satisfat6riamas ao mesmo tempo no-la da incompleta, pois naonos oferece simultaneamente todos os demais resultadoscom que a obra poderia identificar-se. Seria casual 0

fato de tais poeticas serem contemporaneas ao princi-pio flsico da complementaridade, segundo 0 qual nao epossivel indicar simultaneamente diversos comportamen-tos de uma particula elementar, e para descrever estescomportamentos diversos valem diversos modelos, que"sao portanto justos quando utilizados no lugar apro-priado, mas se contradizem entre si e se chamam, porisso, reciprocamente complementares"13? Nao poderia-mas ser levados a afirmar, a respeito dessas obras dearte, como 0 faz 0 cientista com a sua peculiar situa<;aoexperimental, que ci conhecimento incomp1eto de urn sis-tema e 0 componente essencial de sua formula<;ao, eque "as dados obtidos em condi<;6es experimentais di-versas nao podem ser englobados numa unica imagem',mas devem ser considerados complementares, no sen-tido de que somente a totalidade dos fenomenos esgo-ta a possibilidade de informa<;6es sobre os objetos"14?

(13) Werner Heisenberg, Natura e fisica moderna, Milano, Garzanti,Ill", psg. 34.

(14) Niels Bohr, Discussione epistemologica con Einstein ern Albert'Instein scienziato e filosofo. Torino, Einaudi, 1958, psg. 157. Cornloorto os epistem610gosligados 11metodologia quantica alertaram contralima ingenua transposi\<liodas categorias ffsicas para 0 campo etico ep.lco16gico (identifica\<liodo indeterrninismo corn a liberdade moral etc.;Y., por ex., Philipp Frank, Present Role of Science, relat6rio introdutivo10 XII Congr. Intern. de Filosofia, Veneza, setembro de 1958). Nlio••ria legitimo, portanto, entender a nossa como uma analogia entre asI.lruturas da obra de arte e as pressupostas estruturas do mundo. In-dllormina9lio, complementaridade, nlio-casualidade, nlio slio modos de(,r do mundo fisico, slio sistemas de descri~iio uteis para operar nele.Por conseguinte, a rela9lio que nos interessa nlio e aquela - presu-I\Ilda - entre uma situa9lio "ontoI6gica" e uma qualidade morfol6gicafa obra, mas a rela\<iioentre urn modo de explicar operativamenle osI!rocessos ffsicos e urn modo de explicar operativamenle os processosII produ\<iioe frui9iio artfstica. Rela9lio, portanto, entre uma metodo-",Ia cientlfica e uma pohica (explicita ou implicita).

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Falou-se acima de ambigilidade como disposi~aomoral e contraste problematico: e hoje, tanto a psicolo-gia como a fenomenologia falam tambem de ambigilida-des perceptivas como possibilidades de colocar-se aquemda convencionalidade do conhecer habitual para colliero mundo com 0 vi~o de possibilidades que antecedecada estabi1iza~aodevida ao uso e ao babito. Ja Hus-sed advertia que "cada momenta de vida de conscienciatern urn horizonte que varia com 0 mudar da sua cone-xao de consciencia e com 0 mudar da sua fase de desen-volvimento. .. Porexemplo, em cada perce~ao exter-na, os dados propriamente percebidos do objeto deperce~ao contem uma indica~ao dos lados ainda so-mente entendidos de maneira secundaria, nao aindapercebidos mas apenas antecipados no modo da expec-tativa e tambem na ausencia de toda intui~ao - comoaspectos que ainda estao 'por vir' na perce~ao. Eesta uma protensiio continua, que adquire urn sentidonovo em cada fase da perce~ao. Alem disso, a percep-~ao possui horizontes que contam outras possibilidadesde perce~ao, e sao aquelas possibilidades que poderia-mos ter se dirigissemos 0 processo da percepc;ao emoutro sentido, isto e, se dirigfssemos 0 olha nao deste,mas outro modo, se fossemos para a frente, oupara 0 lade, e assim por diante"15. E Sartre lembraque 0 existente nao pode reduzir-se a uma serie finita demanifesta~Oes,pois cada uma.delas esta em relac;aocomurn sujeito em continua muta~ao. Assim, urn objetonao somente apresenta diversas Abschattungen (ou per-fis), mas sao posslveis diversos pontos de vista sobreuma Unica Abschattung. 0 objeto, para ser definido,deve ser transcendido em dire~ao a serie total da qualele, enquanto uma das possiveis apari~6es, e membro.Nesse sentido, ao dualismo tradicional de ser e pare-cer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito,de tal modo que 0 infinito se p6e no proprio cora~ao

(1S) Edmund Husserl, Meditazioni Cartesiane, trad. F. Costa. Mila-no, Bompiani, 1960, pag. 91. Ha em Husserl, vivfssima, a nocao deum objeto que e forma acabada, individuavel como tal e eontudo "aber-ta": "0. cubo, por. exempl0" deixa aberta uma variedade de determi-nacOes, pelos lados que nao sao atualmente vistos, entretanto e apre-endido exatamente como um cubo, especlficamente eomo eolorido, asperoetc., mesmo antes de explicitacOes ulteriores, e cada determinacao em que"Ie e apreendido deixa sempre abertas outras tantas determinacoes par-ticulares. Este 'deixar aberto' ja e, antes mesmo dlill efetivas determi-nacOes ulteriores que talvez nunca sejam feitas, um momenta eontidono relativo momento de eonsciencia, e e justamente 0 que eonstitui 0horizonte" (pag. 92).

do finito. Este tipo de "abertura" esta na base mesmade cada ate perceptivo e caracteriza cada momenta denossa experiencia cognoscitiva: cada fenomeno parece-ria assim "habitado" por certa potencia, a "potencia deser desenvolvido numa serie de aparic;oesreais ou pos-siveis". 0 problema da rela~ao do fenomeno com seufundamento ontologico, dentro de uma perspectiva deabertura perceptiva, transforma-se no problema de re~la~ao do fenomeno com a plurivalencia das percepc;oesque dele podemos ter16• Esta situa~ao acentua~se nopensamento de Merleau-Ponty: "como podera entao- pergunta-se 0 fi1osofo - uma coisa apresentar-severdadeiramente a nos, ja que a slntese nunca se com-pleta .. , Como posso ter a experiencia do mundo co-mo de urn individuo existente em a~ao, quando nenhu-

, ma das perspectivas segundo as quais 0 vejo consegueesgota-Io e quando os horizontes estao sempre aber-tos? . .. A cren~a na coisa e no mundo nao pode senaosubentender a presun~ao de uma sintese acabada - eentretanto este acabamento torna-se impossivel pela pro-pria natureza das perspectivas a corre1acionar, pois cadauma de1as remete cont1nuamente atraves de seus hori-zontes a outras perspectivas. .. A contradi~ao que en-contramos entre a realidade do mundo e seu inacaba-mento e a propria contradic;ao entre a ubiqilidade daconsciencia e seu engajar-se num canipo de presenc;a...Essa ambigtiidade nao e uma imperfei~ao da conscien-cia ou da existencia, mas e sua propria definic;ao....••A consciencia, que passa por ser 0 lugar da cJareza, e,ao contnirio, 0 proprio lugar do eqUIVOCO"17.

Tais sao os problemas que a fenomenologia colocana propria base de nossa situa~ao de homens no mun-do; propondo ao artista, assim como ao fi1osofo e aopsicologo, afirma~es que nao podem deixar de teruma func;aode estimulo a sua atividade formativa: "Eportanto essencial a coisa. e ao mundo apresentarem-secomo 'abertos' ... prometer sempre 'algo maisa ver' "16:

(16) J. P. Sartre, L'Essere e il Nulla, trad. G. Del Bo"Milano, 1959.Sartre contemporllneamente percebe a eqiiivalencia entre esta situacao per-ceptiva, constitutiva de todo nosso conhecimento, e a relacao cognosci-tlvo-interpretativa oue mantemos com a obra de arte: "0 genio deProust, embora reduzido as obras produzidas, nao equivale menos alnfinidade dos pontos de vista posslveis que se poderao assumir emtllrno desta obra e que serao chamados 'a inesgotabilidade' dil obraproust;ana" (pag. 12).

(17) M. Merleau-Ponty, Phenomen%gle de /a perceplion. Paris,Gallimard, 1945, pags. 381-383.

(18) Idem, pag. 384.

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· (19) Estli fora de duvida que 6 perigoso estabelecer simples ana-Joglas; ma~ .6 i~almente J?Crigosorecu~ar a indiyidualizar certas rela!;Oespor uma tnJusttflcada fobla as analol!las, pr6pnas dos espfritos simplesou das inteligencias conservadoras. Gostarfamos de lembrar uma frasede Roman Jakobson: "Aqueles que se amedrontam facilmente com asa~alogias arriscadas, responderei que tambem detesto fazer analogias pe-ngosas: ma.s adoro as a~al?gias fecundas" (Essais de linguist/que ge-nera~e. ~ans, Ed. de MtnUlt, 1963, plig. 38). Uma analogia deixa des~r l!ldevlda.quando 6 colocada como ponto de partida para uma veti-flca~aOultenor: 0 problema agora consiste em reduzir os diversos feno-!De':1~s(est6!!cos.e. nao) a. mode/os estruturais mais tigorosos para nelestndlVlduarnao malS analoglas, mas homolog/as de estrutura similaridadesestruturais. Estamos cOnsciosdo fato que as pesquisas de;te livro aindaest~o a~u6m de uma for!Daliza~aode tal genero, que requer um metodamats ngoroso, a. renunCla a numerosos niveis da obra, a coragem deempobrecer ultenormente os fenomenos para deles obter um modelomais manuselive\. Continuamos pensando nestes ensaios como numa intro-du~ao geral a um trabalho assim.

(20) Sobre "ste "eclateinent multidirectionel des structures" v. tam-bCm A. Boucourechliev, "Problemes de la musique modeme" NRFdezembro de 1960 - janeiro de 1961. ' ,

luto, constitui seu sistema de re1a<;:Oesfazendo-oemer-gi~ ~e ~m continuo sonoro, em que .nao existem pontospnvI1egtados mas todas as perspectivas sac igualmentevalidas e ricas de possibilidades - parece muito pro-ximo do universo espacio-temporal imaginado porEinstein, no qual "tudo aquHo que para cada urn denos constitui 0 passado, 0 presente, 0 futuro e dadoem bloco, e 0 conjunto dos acontecimentos sucessivos(do nosso ponto de vista) que constitui a existenciade uma partkula material e representado por uma li-nha, a linha de universo da particula. .. Cada obser-vador, com 0 passar de seu tempo, descobre, por assimdizer, novas por<;:5esdo espa<;:o-tempo,que se the apre-sentam como aspectos sucessivos do mundo material,embora, na realidade, 0 conjunto dos eventos que cons-tituem 0 espa<;:o-tempoja existisse antes de ser conhe-cido"21.

o que diferencia a visao einsteiniana da epistemo-logia quantica e, no fundo, justamente essa confian<;:anatotalidade do universo, um universo em que desconti-nuidade e indetermina<;:ao podem, em ultima analise,desconcertar-nos com sua imprevista apari<;:ao,mas quena realidade, para usarmos as palavras de Einstein, naopressup5em um Deus que joga dados, mas 0 Deus deSpinoza, que rege 0 mundo com leis perfeitas. Nesteuniverso, a relatividade e constituida pela infinita varia-bilidade da experiencia, pela infinidade das mensu-ra<;:5ese das perspectivas possiveis, mas a objetividadedo to?O reside na invariancia das descri<;:5essimplesformalS (das equa<;:5es diferenciais) que estabelecemexatamente a relatividade das mensura<;:5es empiricas.Aqui nao nos cabe julgar da validade cientifica dessalmpHcita metafisica einsteiniana; mas 0 fate e que exis-te uma sugestiva analogia entre esse universoe 0 uni-verso da obra em movimento. 0 Deus de Spinoza, quena metaflsica einsteiniana e somente urn dado de con-fian<;:aextra-experimental, para a obra de arte toma-seuma realidade de fato e coincide com a obra ordenado-ra do autor. Este, numa poetica da obra em movimen-to, pode perfeitamente produzir em vista de urn convi-te a liberdade interpretativa, a feliz indetermina~ao dosresultados, a descontinua imprevisibilidade das escolhas

Poder-se-ia perfeitamente pensar que esta fuga danecessidade segura e s6lida e esta tendencia ao ambi-guo e ao indeterminado refletem uma condi<;:aode crisedo nosso tempo; ou entao, ao contriirio, que estas poe-ticas, em harmonia com a ciencia de hoje, exprimem aspossibilidades positivas de urn homem aberto a umarenova<;:aocontinua de seus esquemas de vida e saber;produtivamente empenhado· num progresso de suas fa-culdades e de seus horizontes. Seja-nos permitido sub-trair-nos a esta contraposi~ao tao facH e maniq\Jelsta,e limitemo-nos, aqui a apontar concordancias, ou pelomenos, consonancias; consonancias que revelam umacorrespondencia de problemas dos mais diversos seto-res da cultura contemporanea, indicando os elementoscomuns de uma nova visao do mundo.

Trata-se de uma convergencia de problemas e deexigencias que as formas da arte refletem atraves doque poderiamos definir como analogias de estrutura,sem que,. contudo, se devam ou se possam instaurarparalelos rigorosos19. Acontece assim que fenomenoscomo os das obras em movimento reflitam ao mes-mo tempo situa<;:5esepistemol6gicas contrastantes entresi, contradit6rias ou ainda nao conciliadas. Acontece,por exemplo, que, enquanto abertura e dinamismo deuma obra lembram as no<;:5esde indetermina<;:aoe des-continuidade, pr6prias da fisica quantica, os mesmosfenomenos aparecem simultaneamente como imagenssugestivas de algumas situa<;:oesda fisicaeinsteiniana.

o mundo multipolar de uma composi<;:aoserial20 ~

onde 0 fruidor, nao condicionado por urn centro abso-

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subtraidas a necessidade" mas esta possibilidade para aqual se abre a obra e tal no ambito de urn campo derela"oes. Como no universo einsteiniano, na obra emmovimento 0 negar que haja uma unica experienciaprivilegiada nao implica 0 caos das' relac;6es, mas aregra que permiiea organiza~ao das rela"oes. A obraem movimento, em suma, e possibilidade de uma mul-tiplicidade de interven"Oes pessoais,. mas nao e conviteamorfo a interven"ao indiscriminada: e 0 convite naonecessario nem univoco a interven"ao orientada, a nosinserirmos livremente num mundo que, contudo, e sem-pre aquele desejado pelo autor.

o autor oferece, em suma, ao fruidor uma obraaacabar: nao sabe exatamente de que maneira a obrapodera ser levada a termo, mas sabe que a obra levadaa termo sera, sempre e apesar de tudo, a sua obra, naooutra, e que ao terminal' 0 diilogo interpretativo ter--se-a concretizado uma forma que e a sua forma, aindaqueorganizada pOl' outra de urn modo que nao podiapreyer completamente: pois ele, subst:::mcialmente, ha-via proposto algumas possibilidades ja ,racionalmenteorganizadas, orientadas e qotadas de exigencias organi-cas de desenvolvimento.

A Sequenza de Berio executada pOl' dois flautistasdiferentes, 0 Klavierstiick Xl de Stockhausen ou os'Mobiles de Pousseur executados pOl' diferentes pianis-tas (ou tocados duas vezes pelos mesmos executantes)nunca parecerao iguais, mas jamais serao algo de ab-solutamente gratuito. Deverao ser entendidos como rea-liza"oes de fato de uma formatividade fortemente in-dividualizada cujos pressupostos estavam nos dados ori-ginais oferecidos pelo artista.

Isso acontece com as obras musicais ja examinadas,isso acontece com as produ"oes: plasticas que tomamosem considera~ao: onde a mutabilidade e sempre orien-tada no ambito de urn gosto, de determinadas tenden-cias formais; e e, enfim, permitida e orientada pOl' ar-.ticulabilidades concretas do material oferecido a ma-nipulayao. Em outro campo, 0 drama brechtiano, ape-lando para a livre resposta do espectador, e construidoentretanto (como aparato retorico e eficacia argumen-tativa) de forma a estimular uma resposta orientada,pressupondo enfim - como se evidencia em certas

paginas da poetica brechtiana - uma logica de tipod,ial~tico-marxista como fundamento das respostas pos-SlvelS.

Todos os exemplos de obras"abertas" e em movi-mento apontados por nos revelam este aspecto fun-damental pelo qual elas surgem, apesar de tudo como"obras" e n~o como coagulos de elementos casuai~ pron-tos a emergtr do caos em que estao, para se tornaremuma forma qualquer.

o diciomirio, que nos apresenta milhares de pala-vras com as quais livremente podemos compor poemase tratados flsicos, cartas anonimas ou listas de generosalimentic~os, e muit.o "aberto" a qualquer recomposi,,3.odo matenal que eXlbe, mas nao e uma obra. A aber-tura e 0 dinamismo de uma obra, ao contrario, consis-tern em tornar-se. disponivel a varias integra~oes, com-plementos produttvos concretos, canalizando-os a prioripara 0 jogo de uma vitalidade estrutural que a obrapossui, 'embora inacabada, e que parece valida tamb6mem vista de resultados diversos e mUltiplos.

Isso deve ser sublinhado porque quando se fala emobra de arte nossa consciencia estetica ocidental exigeque por "obra': ~e entet,tda uma produ~ao pessoal que,embora as frUl"oes vanem, mantenha uma fisionomiade organismo e manifeste, qualquer que seja a formapela qual. for entendida ou prolongada, a marca pes-loal em vutude da qual consiste, vale e comunica. Essasobserva"Oes devem ser feitas do ponto de vista teoricoda estet~ca, a .qual considera a variedade das poeticasmas aspua, afmal, a definigoes gerais - nao ~essa-rlamente dogtnaticas e eternas - que permitam aplicarhomogeneamente a categoria "obra de arte" a m6.1ti-~las experiencias (que podem ir da Divina Comedia a~omposig3.o eletronica baseada na permutagao de es-truturas sonoras). Exigencia valida que visa a reencon-trar, mesmo na evolu<;ao historica dos gostos e das ati-tudes perante a arte, uma constancia de estruturas fun-damentais dos comportamentos humanos.

Vimos portanto que: 1) as obras "abertas" enquan-to em movimento se caracterizam pelo convite a fazer aDbra com 0 autor; 2) num nivel mais amplo (como

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genera da especie "obra em movimento") existem aque- .las obras que, ja completadas ftsicamente, permanecemcontudo "abertas" a uma germinalfao continua de re-lalfOes internas que 0 fruidor deve descobrir e esco-lher no ato de perceplfao da totalidade dos estimulos;3) cada obra de arte, ainda queproduzida em confor-midade com uma expHcitaou impHcitapoetica da neces-sidade e substancialmente aberta a uma serie virtual-, .mente infinita de leituras possiveis, cada uma das qUaiSleva a obra a reviver, segundo uma .perspectiva, urngosto, uma execuriia pessoal.

Tres niveis de intensidade em que se apresenta urntinieo problema; 0 terceiro nivel e que interessaaestetiea como formulalfao de definilfoes formais; e sO-bre esse tipo de abertura, de infinidade da obra aca-bada, a estetica contemporanea muito insistiu. Vejam--se, por exemplo, estas afirmal;6es extraidas das. quejulgamos entre as mais validas paginas de fenomenolo-gia da interpretalfaO: "A obra, de arte ... e u.ma form~,isto e, um movimento conclmdo, 0 que eqmvale a. dI-zer um infinito colhido numa definitude; sua totahda-de resulta de uma conclusao, e exige, portanto, ser con-siderada nao como 0 fecho de uma realidade estaticae imovel, mas como a abertura de um infinito que sefez inteiro abrigando-se numa forma. A obra, portan-to, tem infinitos aspectos, que nao sao somente 'part~s'ou fragmentos, pois cada um deles contem a obra m-teira, e a revela numa determinada perspectiva. Avariedade das execulfoes possui, pois, seu fundamentona complexa natureza tanto da pessoa do interpretequanto da obra a executar. .. Os infinitos pontos devista dos interpretes e os infin\tos aspectos da obrase correspondem e se encontram e se esclarecem reci..:procamente, de maneira que determinado ponto de vis-ta coIiseglle revelar a obra inteira somente se conseguircapta-Ia naquele seu particulanssimo aspecto, assimtambem um aspecto peculiar da obra, que a desvendeinteira sob uma nova luz, deve esperar 0 ponto de vistacapaz de capta-Io e projeta-Io".

Pode-se afirmar, portanto, que "tbdas as in-terpretalfoes SaD definitivas, no sentido de que cadauma delas e, para 0 interprete, a propria obra, e provi-sorias, no sentido de que cada interprete sabe da ne-

cessidade de aprofundar continuamente a propria inter-preta~ao. Enquanto definitivas, as interpretalfOes SaDparalelas, de modo que uma exclui as outras, sem con-tudo nega-Ias... "22.

Tais assertivas, feitas do ponto de vista teorico daestetica, sao aplicaveis a todo fenomeno de arte, aobras de todos os tempos; mas nao e intitil notar quenao e casual 0 fato de que justamente hoje a esteticasinta e desenvolva uma problematica da "abertura".Em certo sentido, estas exigencias que a estetiea, deseu ponto de vista, imp6e a cada tipo de obra de arteSaDas mesmas que a poetiea da obra "aberta" manifestade modo mais expHcitoe decidido. Isso porem nao sig-nifiea que a existencia de obras "abertas" e de obras

• em movimento nao acrescente absolutamente nada anossa experiencia, pois tudo ja estava presente no to-do, desde 0 tempo dos tempos, assim como cada des-coberta parece ja ter sido feita pelos chineses. E precisoaqui distinguir 0 myel teorico e definitorio da estetieaenquanto disciplina filosofica, do nivel operativo e par-ticipante das poeticas enquanto programas de prodUlfaO.A estetica, validando uma exigencia particularmente vi-va em nossa epoca, descobre as possibilidades de urncerto tipo de experiencia em todo produto da arte, inde-pendentemente dos criteriosoperativos que presidirama sua produc;:ao;as poeticas (e a pratica) das obras em

.!!J'Wimento sentem essa possibilidade com6~voCalfaOes-pedfica e, ligando-se mais aberta e conscientemente aconvicc;Oese tendencias da ciencia contemporanea, le-yam a atualidade programatica, a evidencia tangivelo que a estetica reconhece como sendo a condic;:aoseral da interpreta<;ao. Essas poeticas, portanto, sen-tern a "abertura" como a possibilidade fundamental dofroidor e do artista contemporaneo. A estetica, por seulado, devera reconhecer nessas experiencias uma con-tirmalfao de suas intuilfoes, a atualfao extremada deuma situalfaOfruitiva que pode realizar-se em diversosnfveis de intensidade.

Mas essa nova pratica fruitiva abre, com efeito, urncapitulo de cultura bem mais amplo, e, nesse sentido,nio pertence somente a problem<'iticada estetiea. A

(22) Luigi Pareyson, Estetica - Teoria delia formativitil, ed. cit.,",. !94 e seguintes, em gera! todo 0 cap. VIU (Lettura, interpre-t.done e critica).

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poetica da obra em movimento (como em parte a poe.,.tica da obra "aberta") instaura um novo tipo de rela-<;:Oesentre artista e publico, uma nova med.nica dapercep<;:aoestetica, uma diferente posi<;:3.odo produtoartistico na sociedade; abre uma pagina de sociologiae de pedagogia, alem de abrir uma pagina da hist6riada arte. Levanta novos problemas praticos, criando si-tua<;:oescomunicativas, instaura uma nova rela<;:aoen-tre contemp1ariio e uso da obra de arte.

Esclarecida em seus pressupostos hist6ricos e no jo-go de referencias e analogias que a aparentam com va-rios aspectos da visao contemporanea do mundo, esta si-tua<;:aoda arte e agora uma situa<;:aoem via de desen-volvimento, que, longe de estar completamente explica-da e catalogada, oferece uma problematica em maisniveis. Em suma, uma situa<;:aoa1;>ertae em movimento.

Das estruturas que se movem aquelas em quen6s nos movemos, as poeticas contemporaneas nos pro-poem uma gama de formas que apelam a mobilidadedas perspectivas, a multiplice variedade das interpreta-~oes. "Mas vimos tambem que nenhuma obra de arte6 realmente "fechada", pois cada uma delas congloba,em sua definitude exterior, uma infinidade de "leituras"possiveis.

Ora, se se pretende prosseguir um discurso sobre 0

tipo de "abertura" proposto pelas poeticas contempo-rlneas, e sobre sua caracteristica de novidade em rela-~io ao desenvolvimento hist6rico das ideias esteticassera preciso distinguir com maior profundidade a di~

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ferenc;a entre a abertura programatica das hodiernascorrentes artisticas e aquela abertura que ja definimoscomo caracteristica tipica de toda obra de arte.

Em outras palavras, procuraremos ver agora emque sentido toda obra de arte e aberta; sobre quais ca-racteristicas estruturais esta abertura se fundam.enta; aque diferenc;as de estrutura correspondem os diversosniveis de ·'abertura".

Croce e Dewey

Toda ubra de arte, desde as pinturas rupestres ateI promessi sposi, de Manzoni, propoe-se como objetoaberto a uma infinidade de· degustac;oes. E nao por-que uma obra seja um mero pretexto para todas asexercitac;6esda sensibilidade subjetiva que faz conver-gir sobre ela os humores do momento, mas porque etipico da obra de arte 0 por-se como nascente inexau-rida de experi~ncias que, colocando-a em foeo, dela .fazem emergir aspectos sempre novos. A estetica con-temporanea insistiu longamente sobre este ponto, tor-nando-o um de seus temas.

No fundo, 0 proprio conceito de universalidadecom que se costuma designar a experiericia estetica re-fere-se a este fenomeno. Quando digo que "a soma dosquadrados dos catetos e igual ao quadrado da hipote-nusa", afirmo algo de verificavel e universal, pois seprop6e como lei valida em todas as latitudes, mas istocom referencia a um unico comportamento determina-do da realidade; ao passo que, quando pronuncio umverso ou um poema inteiro, as palavras que profironao se apresentam imediatamente traduziveis em umdenotatum capaz de exaurir suas possibilidades de sig-nificac;ao,mas implicam uma serie de significados queganham profundidade a cada olhar, de forma· que, emtais palavras, parece-me descobrir, reduzido e exem-plificado, 0 universo inteiro. Pelo menos nos parecepossivel entender nesse sentido a doutrina, alias bas-tante equivoca, do carater de totalidade da expressaoartistica, tal como nos e proposta por Croce.

A representac;ao da arte abrangeria 0 todo e refle-tiria em si 0 cosmo, pois "nela' a unidade palpita davida do todo e 0 todo esta na vidada unidade; e todasingela representac;ao artistica e ela mesma e 0 univer-

so 0 universo na forma individual e a forma indivi"d~al como universo. Em toda expressao de urn poeta,em toda criatura de sua fantasia, esta inteiro. 0 destinohumane todas as esperanc;as, todas as ilus6es, as do-res e a; alegrias, as grandezas e as miserias humanas,o drama inteiro do real, a devir e crescer perpetuamen-te sobre si mesmo sofrendo e alegrando-se"l. Estas eou~ras frases de C~oce protocolam com indubitavel efi-cacia certa confuS~ sensac;ao que muitos experi~enta-ram ao degustar uma poesia; mas, enquanto r~glstr~ 0fen6meno, 0 fi16sofo, na verdade, nao 0 exphca,. IStoe nao prove uma fundac;ao categorial capaz de ahcer-c;~-lo;e quando afirma que "dar ... ao conteudo sen- •timental a forma artistica e ao mesmo tempo dar-lhe. amarca da totalidade, 0 sopro 'c6smico"2, Croce e~lUcleIamais uma vez a exigencia de uma fundac;ao !1~OrOSa(atraves da qual se realize a equac;.aoforma artls~lca, .totalidade), mas nao nos fornece lOstrumentos ~llosofl-cos aptos a estabelecerem 0 nexo que sugere; pOlS.me~-mo afirmar que a forma artistica ~ 0 resultado da mtUl-craolirica do sentimento, nao pe~ID1t~:hegar ~ nada, ex-ceto a afirmar que qualquer mtUlc;ao sentlmental, s.etorna lirica justamente ao organizar-se .em forma a~IStl-ca e assume assim 0 carMer da totalidade (termman-do desse modo a argum~nta~ao p?~ uma petic;ao ~eprincipio que fa~ da. medl.tac;a~estetlca uma o~erac;aode sugestivo nommahsmo, IstOe, fornecendo,fascl~ant~stautologias para indicar fen6menos que, porem, nao sacexplicados) . . _

E nao e Croce 0 unico a registrar uma condlc;aodefruic;ao sem procurar os caminhos que. e~plica~ seumecanismo. Dewey fala, por exemplo, do sentldo d?todo inclusivo implicito" que invade qualquer expen-encia ordinaria e nota como os simbolistas fizeram daarte 0 instrumento principal para e~press,~~essa con-dic;ao de nossa relac;ao com as COlsas. A_ volta decada objeto explicito e focal ha uma retrac;ao para 0implicito que nao se apreende intelectivamente. Na re-flexao chamamo-la 0 indistinto e 0 vago." Mas Deweyesta c6nscio do fato de que 0 indistinto e 0 vago daexperiencia originaria - aquem dos enrij~ciment,:s ca-tegoriais a que a reflexao nos coage - saG func;ao da

(1) Breviario di estetica, Bari, Laterza, IX ed .. 1947, pag. 134.(2) Ob. cit., pag. 137.

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situa~ao total ("Ao pOr do sol, 0 escurecer e urnaagradavel qualidade do mundo inteiro. £: sua manifes-ta~ao. Toma-se aspecto peculiar e ilocivo somentequando impede a distinta perceP9ao de algo particu-lar, que desejamos discernir"). Se a reflexao nos obri-ga a escolher e a focalizar apenas alguns elementos dasitua~ao, "a indefinida qualidade invasiva de uma ex-periencia e a que liga todos os elementos definidos, osobjetos de que estamos focalmente conscientes, fazendodeles um todo". A reflexao nao funda, e fundada,em sua possibilidade de sele~ao, por esse poder inva-sivo originario. Ora, para Dewey, seria proprio daarte justamente evocar e acentuar "esta qualidade deser um tOOoe de pertencer a um todo maior, que tu-do inclui e que e 0 universo no qual vivemos" 3. Bstefato, que explica a em~ao religiosa que nos acometeno ato da contempla~ao estetica, Dewey 0 percebe commuita clareza, pelo menos com a mesma que Croce,embora em outro contexto filosofico; e e esse justa-mente um dos tra~os mais interessantes daquel1l suaestetica que,por seus fundamentos naturalistas, poderiaparecer, a um exame superficial, rigidamente positivis-ta. Mesmo porque naturalismo e positivismo em Deweysap de origem oitocentista e romantica, e tbda analise,conquanto inspirada na ciencia, nao deixa de culminarnum momenta de como~ao perante 0 misterio do cos-mo (nao e a toa, alias, que seu organicismo, emborafiltrado atraves de Darwin, provem tambem de Colerid-ge e Hegel, nao importando ate que ponto isso sejaconsciente)4; por conseguinte, a soleira do misterio c6s-mico, Dewey quase parece ter receio de dar mais umpasso a £rente, que the permita desossar essa tipicaexperiencia do indefinido, reportando-a as suas coorde-nadas psicologicas, e, inexplicavelmente, declara forfait:"Nao consigo enxergar nenhum fundamento psicologicopara essas propriedades particulares da experiencia,. anao ser que, de alguma maneira, a obra de arte opereno sentido de aprofundar e esclarecer aquela sens~ao

de um todo indefinido que nos envolve, sensa~ao queacompanha cada experiencia norm~1"5. Sem~lhan~eomissao parece injustificavel tanto malS que na filosoftadeweyana existem os pressupostos para um esbo~o es-clarecedor, e esses pressupostos reaparecem no ~e~moArt as Experience, justamente uma centena de pagInasantes das observa~oes que acabamos de citar.

Isto e existe em Dewey uma conce~ao transativado conhecimento Cluese toma imediatamente rica de, ~"" -sugestoes quando posta em contato com a s~a ~ogaode objeto estetico como termo de uma expenencIa or-ganizadora, em que experiencias pessoais, fatos, va~o-res, significados, se incorporam a um dado matenale se fundem com ele, num todo, apresentando-se, comodirla Baratono, "assimilados" a de (a arte, em suma,e "a capacidade de transformar uma ideia vaga e umaemo~ao num medium definido")6. Ora,'.a condi~aopara que uma obra possa resultar expresslVa a quema percebe e dada "pela existencia d~A si~ificados .evalores extraidos de precedentes expenenclas e enral-zados de tal modo que se fundem com as qualidadesapresentadas diretamente na obra de arte" 7. 0 1D:a-terial de outras experiencias do observador deve mlS-turar-se com as qualidades da poesia ou da pinturapara que estas nao se reduzam a objetos estranhos.Portanto, "a expressividade do objeto artistico deve-seao fato de oferecer uma perfeita e plena compenetra-9ao dos materiais da fase passiva e ativa, incluindo nestaUltima uma completa reorganiza~ao do material her-dado por nos da experiencia passada... A expres-sividade do objeto e 0 sinal e a celebra~ao da fusaocompleta que experimentamos e do que nossa atividadede atenta perceP9ao acresce ao que recebemos atravesdos sentidos"8. Conseqiientemente, dar forma "ca-racteriza uma maneira de considerar, de sentir e apre-sentar a materia utilizada de modo que ela, mui prontae eficazmente, se tome urn material para a constru~ao

(3) John Dewey, Arte come esperlenza, Firenze, La Nuova !talia,1951, pag. 230.

(4) ];: conhecida a acusal;30 de idealismo movida contra Dewey porS. C. Pepper (Some Questions on Dewey's Aesthetics, em The Philo-sophy oj J. D., Evanston and Chicago, 1939, pallS. 371 e sellS.) segundoa qual a estetica do fil6sofo mistura os caracteres, incompatfveis, dumatendencia organistic e uma tendencia pragmatista.

(5) Dewey, ob. cit., pag. 230.(6) Ob. elf., pag. 91.(7) Ob.clf., pag. 118.(8) Ob. cit., pag. 123. Daf por que "0 alcance de uma obra de arte

mede-se pelo numero e pela variedade dos elementos pro!eni,;,ntes d~Ixperlencias anteriores, absorvldos orgilnicamente na percePl<ao tJda aqulI tiOra" (pag. 146).

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de uma experiencia adequada para aqueles que sao me-nos dotados do que 0 criador original"9.

Essa ainda nao e uma clara explic~ao psicologicade como, na experiencia estetica, se verifica aquela pre-sun~ao de "totalidade" registrada por tantos criticos efilosofos, mas sem duvida constitui sua premissa filoso-fica. Tanto isso e verdade que dessas e outras afir-ma~6es deweyanas adveio uma metodologia psicologica,chamada trarisacionista, para a qual 0 processo de co-nhecime!lto e, justamente, um processo de transa~ao,uma fatigante contrata~ao: diante do estimulo originalo sujeito intervem carreando para a percep~ao atual amemoria de suas percep~s passadas, e e so assimque ~articipa da forma~ao da experiencia em processo;expenencia que nao selimita, portanto, a registrar umaGestalt preexistente a guisa de configura~ao autonomado real (tampouco e, ideahsticamente falando um nos-so livre ato .de posi~ao do objeto), mas ap~esenta-secomo resultado situacional denossa inser~ao processualno mundo, ou melhor, 0 mundo como resultado finaldessa inser~ao ativa1u

• Por conseguinte, a experienciada "totalidade" (que e experiencia do momento esteti-co como momenta "aberto" do conhecimento) permite~~a explica~ao psicologica, e 0 defeito desta explica~aomflrma os· protocolos crocianos e - em parte - osdeweyanos.

Transposto para 0 campo da psicologia, 0 proble-ma envolveria de imediato a condi~ao geral do conhecer,e n~o apenas a experiencia estetica, a menos· que sedeseJas.seconverter a experiencia estetica na condi~aoalvoral de todo conhecimento, sua fase primeira e es-senci~l (0 que tambem e possivel, mas nao neste pontodo dlscurSO:quando muito, a guisa de conclusao mimdiscurso ulterior). Mas 0 discurso, necessariamenteencarado como discussao sobre 0 que acontece no pro-cesso de transa~ao entre indivfduo e esnmulo est6ticopodera organizar-se de maneira simples e clara se versa;sobre um fenomeno definido como 0 da Jinguagem. Alinguagem nao e uma organiza~ao de estimulos'naturais,

como pode se-Io 0 feixe de f6tons que nos impressionaenquanto estimulo luminoso; e organiza~ao de estimulosefetuada pelo homem, fato artificial, como fato artificial6 a forma artistica; e portanto, mesmo sem realizar umaidentifica~ao arte-linguagem, poder-se-a proceder ulti-mamente ao transporte para um desses campos dasobserva~Oesque puderam ser realizadas no outro. Co-mo bem compreenderam os lingtiistas 11, a linguagemnao e urn meio de comunic~ao entre outros; 6 "0 fun-damento de tada com6nica~ao"; melhor ainda, "a lin-guagem e realmente 0 proprio fundamento da cultura,Em rela~ao a linguagem, todos os outros sistemas desimbolos sao acessorios ou derivados" 12.

A analise de nossa rea~ao perante uma proposi~aosera 0 primeiro passo a dar para vermos as modalida-des de rea~ao diversas (ou radicalmente iguais) que seconfiguram diante do esnmulo lingiHstico comum ediante daquele que comumente apontamos como este-tico; e se 0 discurso nos levar a reconhecer dois es-quemas de reagao diversos em face de dois usos di-versos da linguagem, poderemos entao individuar a pe-culiaridade da linguagem estetica.

. (9) Ob. cit., pag. 131: Assim "0 Partenon, OU qualquer coisa, ~.Universal porque pode contmuamente inspirar novas realizal.'Oes pessoaisna experiencia" (pag. 130).

(10) Para numerosas confirmal.'Oes experimentais v Explorations inTransactional Psychology, por F. P. Kilpatrick, New York. Un. Press1961 (trad. It. La pslcologla transazlonale, Milano, Bompiani. 19(7).

o que significa carrear para uma experiencia alembran~a de experiencias passadas? E como se realizaessa ;itua~ao na rela~ao comunicativa que' se estabe-lece entre uma mensagem verbal e seu receptor? 13

Sabemos que uma mensagem lingilistica pode aspi-rar a diversas fungOes; referencial, emotiva, conativa(ou imperativa), fatica (ou de contato), est6tica e me-talingiHstica14. Mas uma subdivisao desse genero japressup6e uma consciencia articulada da estrutura' da

(11) Ver Nicolas Ruwet. Prefacio a08 Essoil de IIn,ulstique ,h1eralede Jakobson (ob. clt., pag. 21).

(12) R. Jakobson, ob. clt., pag. 28.(13) A presente analise da como aceita a subdivlslo da cadela

COmunicativa em quatro fatores: 0 reme/ente, 0 receptor, a mensagem eo codlgo (que, como iremos ver. nao consiste somente num repert6riode definil.'oes 16glca.s e abstratas. mas tambem em disposlllOoS emotivas.'OSlos, habitos culturais, em suma, num almoxarifado de represent8\lOespre-fabricadas. de possibilidades previstas e organizadas em sistema).

'(4) V. Roman Jakobson, ob. clt~ pails. 209 e scp. ("Llnguistlque,t po6tique").

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mensagem e pressup6e (como se ve) que ja .se saiba 0

que distingue a fun~ao estetica das outras. Aqui, aocontrario, e justamente esta distin~ao que, a luz dosdiscursos anteriores, nos interessa apurar. E conside-rando portanto a subdivisao mencionada como resul-tado de uma indaga~ao ja amadurecida, optamos poruma dicotomia divulgada ha algumas decadas pelosestudiosos de semantica: a distin~ao entre mensagenscom fuYlfiio referendal (a mensagem indica algo deumvocamente definido e - se for preciso - verifi-cavel) e mensagens com fuYlfiio emotiva (a mensagemvisa a suscitar rea~es no receptor, a estimular asso-cia~6es, a promover comportamentos de resposta quevaG alem do simples reconhecimento da coisa indi-cada).

Como veremos adiante, esta distin~ao, ainda quenos permita retomar desde 0 ponto de partida as insu-ficientes defini~6es de Croce e Dewey,' que justamentereduziam a experiencia e.stetica a uma especie de emo-~ao nao melhor definida, nao nos da plenamente a razaoda mensagem estetica. E entao perceberemos como adistin~ao entre referendal e emotivo nos obriga, poucoa pouco, a aceitar outra subdivisao entre fun~ao de-notativa e fun~ao cOlWtativa do signa lingtiistico 15.

Ver-se-a como a mensagem referencial pode ser enten-dida como mensagem com fun~ao denotativa, enquantoque as estimul~s emotivas que a mensagem exercesobre 0 receptor (e que podem ate ser simples res-postas pragmaticas) 16, na mensagem estetica se mos-tram como sistema de conota~6es direto e controladopela pr6pria estrutura da mensagem 17•

(15) Reportamo-nos aqui, como a um resumo util das diversasposi~iies no caso, a Roland Barthes, "~Iements de semiologie" emCommunications, n'1 4 (trad. it., Elementi di semiologia Torino Ei~audi1966). ' , ,

(16) Referimo-nos aqui a subdivisao morrisiana (C. Morris "Foun-dations of the Theory of Signs", em Int. Encyclopedia 0/ UnifiedScience, I, 2, Chicago, 1938): 0 significado de um termo pode serindicado em fun~ao da rea~ao psicol6gica de quem 0 recebe e esse e 0aspecto pragmatico; 0 aspecto semantico prende-se a rela~ao entre signoe denotat~_m; 0 aspecto sintatico. enfim, prende-se a organiza~ao intemade mais termos em urn discurso.

(17) Nas paginas seguintes, portanto, recorreremos, como a uteisinstrumentos de trabalho preliminar, as no~iies de usa referencial e deuso emotivo da Jinguagem propostas por C. K. Ogden e I. A. Richards,The Meaning of Meaning, London, 1923. 0 usa referendal (ou sim-b6lico) da Jinguagem preve, conforme 0 not6rio "trli.•.•gulo" de Ogden--Richards, que: 1) ao simbolo corresponde um referente que representaa coisa real indicada; 2) a cprrespondencia entre sfmbolo e referentee indireta, enquanto, no processo de significa~ao, e mediada pela refe-rencia, isto e, 0 conceito, a imagem mental da coisa indicada. Para redu-

Diante de uma expressao como "Aquele homemvem de Millio" realiza-se em nossa mente uma associa-~ao unlvoca entre significante e significado: adjetivo,substantivo, verba e complemento circunstancial de lu-gar, representado pela preposi~ao "de" e pelo nome pr6-prio da cidade, referem-se, cada um, a algo de bemdefinido ou a uma a~ao inequlvoca. Isto nao significaque a expressao em si possua todos os requisitos parasignificar abstratamente<a situa~ao que de fato signi-fica Quando a compreendo: a expressao e um purocoacervo de termos convencionais que, para serem com-preendidos, pedem uma colabora~ao de minha parte,e exigem precisamente que eu fa~a convergir sobrecada termo uma soma de experiencias passadas queme permitam esclarecer a experiencia em processo.Bastaria que eu nunca tivesse ouvido pronunciar 0termo Milao e desconhecesse que de se refere a umacidade, para que a comunica~ao que receba resultasseinfinitamente depauperada. Entretanto, mesmo que 0receptor compreenda plenamente 0 exato significadode todos os termos empregados, isso ainda nao querdizer Que 0 conjunto de informa~s recebidas por deseja igUal aquele fruivel por qualquer outro que estejaa par dos mesmos termos. E 6bvio que, se estou es-perando importantes comunica~es de .Milao, a sen-ten~a tem para mim mais valor, e me agride com umaviolencia muito maior do que se daria com quem nao

, tivesse as mesmas motiva~6es. Enfim. se Milao estiverligada na minha mente a um conjunto de lembran~as,saudades, desejos, a mesma frase despertara um va-galhao de emo~es que outro ouvinte nao estaria emcondi~6es de compartilhar. A Napoleao exilado emSanta Helena a frase "Aquele homem vem de Paris"zlr a fun~ao referendal a fun~ao denotativa e interpretar a fun~ao emoti-va em termos de conota~ao, deveremos voltar a subdivisao saussuriana en-~e significante e significado (F. de Saussure, Cours de linguistique gene-rale, Paris, 1915). Uma rigorosa correspondencia entre as categorias daIOmiologia saussuriana e as da semllntica richardsiana ainda esta emdlscussao (v. Klaus Heger, Les. bases methodologiques de l'onomasio-logie et du classement par concepts, em "Travaux de linguistique et deIItterature" II, 1, 1965): aqui adotaremos como provis6rias as seguintcsequlvalencias: 0 slmbolo richardsiano sera usado como equivalente deIlgnijicante; a referencia como sentido ou significado, mas no sentidode significado denotativo; 0 processo de significa~ao que liga 0 signifi-oante ao significado poderia ser entendido, continuando 0 discurso, comoequivalente ao meaning. Quanto ao referente como "coisa" real, naotem equivalente na semiologia saussuriana.

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teria despertado uma emoyao cuja intensidade dificil-mente podemos imaginar. Portanto, cada urn, diantede uma expressao rigorosamente referencial, que exigeurn esquema de compreensao bastante uniforme, com-plica .sua compreensao de referencias conceituais ouemotivas que personalizam 0 esquema e the conferemuma colorayao peculiar. Na realidade, nao importaquantos resultados "pragmaticos" estas diversas com-preensOescomportem: quem quisesse reduzir, para con-trole, a compreensao de varios ouvintes a urn patternunitario, poderia faze-Io facilmente. A expressao "0trem para Roma parte as 17,45 da Est{lfiio Central,portiio n. 7" (dotada da mesma univocidade referen-cial da expressao anterior) pode, sem duvida, provo-car emoyOes diferentes em dez ouvintes diversamenteinteressados em empreender viagem para Roma, con-form,.ese trate de uma viagem de neg6cios, de correra cabeceira de urn moribundo, de ir receber uma he-ranya, ou perseguir uma esposa infiel: mas que subsisteurn esquema unitario de compreensao, redutivel aosminimos termos, e algo verificavel exatamente na basepragmatica, pela averiguayao de que ate as 17,45 cadauma das dez pessoas chegou, por caminhos diversos,a seu lugar no trem designado. A reayao pragmaticadas dez pessoas estabelece uma base de referencialidadecomum, a mesma que seria percebida por urn cerebroeletronico oportunamente instruido; quanta ao resto,em torno de uma expressao tao univocamente referen-cial, permanece urn halo de "abertura" - desconhe-cido ao cerebro eletronico - que acompanha -indubi-tavelmente todo ato humano de comunicayao. '

Examinemos agora a orayao "Aquele homem vemde B{lfora". Endereyada a urn habitante do Iraque,ela teria, mais ou menos, 0 mesmo efeito da £rasesobre Milao dita a urn italiano. Dita a uma pessoaabsolutamente ignorante, que desconheya por completoa geografia, podera deixa-Ia indiferente, ou quandQmuito curiosa, perante este impreciso lugar de prove-niencia, ouvido pela primeira vez, que provoca em suamente uma esp6cie de vacuo, urn esquema referencial

falho, urn· mosaico desfalcado de pedras. Dita enfima uma terceira pessoa, a menyllo de Bayora poderiadespertar imediatamente a lembranya, nao de urn lo-cal geografico determinado, mas de urn "lugar" do fan-tastico, conhecido atraves da leitura das Mil e Uma Noi-tes. ,Neste ultimo caso, Ba'Yora nao constituira urnestimulo capaz de estabelecer uma referencia imediata,com urn significado preciso, mas provocara urn "cam-po" de lembranyas e sentimentos, a sensa'Yaode umaproveniencia ex6tica, uma emoyao complexa e esfu-mada em que conceitos indeterminados se misturama sensayoes de misterio, indolencia, magia, exotismo.Ali Baba, 0 haxixe, 0 tapete voador, as odaliscas, asessencias e as especiarias, os ditos memoraveis de milcalifas, 0 som de instrumentos orientais, a circuns-peyao levantina e a astucia asiatica do mercador, Bag-da. .. Quanto mais incompleta sua cultura ou fervidasua imagina'Yao, tanto mais sua reayao sera fluida eindefinida, seus contornos desfiados e incertos. Lem-bremos 0 que urn letreiro como "Agendath Netaim"chega a provocar na mente monologante de LeopoldBloom, no quarto capitulo de Ulisses (e 0 quanto,neste, como em outros casos, 0 stream of consciousnessreconstruido pelo narrador consegue constituir-se emprecioso documento psicoI6gico): nestas aventuras damente que divaga perante 0 estimulo indefinido, a pa-lavra "Ba'Yora" reverbera a sua imprecisao tambemsobre os termos precedentes, e uma expressao como"aqudehomem" acaba por designar urn significadocheio de misterio, muito mais merecedor de interesse;assim como 0 verba "vem" nao mais indica apenas umaproveniencia, mas passa a evocar a ideia de uma via-gem, amais densa e fascinante concepyao de viagemque tenhamos elaborado, a viagem de quem vem delonge e por veredas magicas, a Viagem como arque-tipo. A mensagem (a frase) abre-se a uma serie deconot{lfoes que superam em muito 0 que ela denota.

Que diferenya separava a frase "Aquele homemvem de B{lford" dita a urn habitante do Iraque da mes-ma £rase dita ao nosso imaginmo ouvinte europeu?Formalmente, nenhuma. A diferente referencialidadecia expressao nao reside, portanto, na expressao em si,mas .no receptor. Contudo, a possibilidade da variayaonao e absolutamente exterior a proposiyao em foco: a

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car, com sugest6es fOnicas, a imprecisao das referen-cias, materializando a rea~ao fantastica atraves de urnfate auditivo.

o fato de sustentar a referencia indeterminada e achamada mnemonica por meio de urn apelo mais diretoa sensibilidade atraves do artificio fonetico leva-nos,sem duvida, ao limiar de uma opera~ao comunicativaparticular, que poderemos indicar, ainda que em sen-tido latente, como "estetica". 0 que estabeleceu a pas-sagem ao estetico? A tentativa mais decidida de unirurn elemento material, 0 som, a urn elemento concei-tual, os significados postos em jogo: tentativa canhes-tra e elementar, pois os termos ainda sac substituiveis,o casamento de som e significado quase casual, e, dequalquer forma, convencional, baseado num certo ha-bito, presumido nos ouvintes, de ouvir pronunciar no-mes analogos em referencia a territorios da Arabia eda Mesopotamia. Seja como for, diante dessa mensa-gem, 0 receptore levado nao somente a individuarpara cada significante urn significado, mas a demorar--se sobre 0 conjunto dos significantes (nesta fase ele-mentar: degusta-los enquanto fatos sonoros,intenciona--los enquanto "materia agradavel"). Os significantesremetem tambem - se nao sobretudo - a si mesmos.A mensagem surge como auto-reflexiva 18.

Objeto de arte, efeito de constru~ao consciente,veiculo de certa cota comunicativa, a expressao exami-nada leva-nos a compreender por que caminhos sepade chegar aquilo que entendemos como efeito es-tetico, mas para aquem de certo limite. Passemosentao a urn exemplo mais promissor.

HipOlitodecide deixar a pcitriapara lan~ar-se numava procura de Teseu; mas Teramene sabe que esta naoe a verdadeira razao da partida do principe e adi-vinha uma dor mais profunda: 0 que induz Hipolitoa deixar os lugares queridos de sua infancia? Hipolitoresponde: Estes lugares perderam a antiga do~ura des-de que foram infestados por uma presen~a madrasta:Fedra. Fedra e ma, moldada no odio, mas sua mal-dade nao e apenas urn dado de carater. Ha algo quefaz de Fedra uma personagem odiosa, implacavelmente

mesma frase, pronunciada pelo recepcionista de urnescritorio de informa~6es ou por alguem que nos desejetomar interessante a personagem, transforma-se verda-deiramente em duas frases diversas. Evidentemente, 0

segundo, escolhendo dizer "Bar;ora", organiza sua for-mula lingtiistica segundo uma inte:q~aosugestiva preci-sa: a rea~ao indefinida do ouvinte nao e acidental emrela~ao a sua comunicac;ao, pelo contrano, constitui-seno efeito por ela desejado. Dizendo "Bar;ora" elenao quer denotar exclusivamente uma certa cidade,mas conotar todo urn mundo de memorias que eIeatribui ao ouvinte. Quem comunicar conforme tal in-ten~ao sabe tambem que 0 halo conotativo de urn ou-vinte nao sera igual ao de outros eventualmente pre-~entes; mas, tendo-os escolhido em identicas condi~6espsicologicas e culturais, pretende justamente organizaruma comunica~ao de efeito indefinido - delimitadoporem por aquilo que podemos chamar de "campode sugestividade". 0 local, 0 momento em que pro-nuncia a frase, a audiencia a que se dirige, garantem--lhe certa unidade de campo. De fato, podemos preyerque, pronunciada com as mesmas inten~6es, mas noescrit6rio do presidente de uma companhia petrolffera,a frase nao provocaria 0 mesmo campo de sugesti-vidade. .

Aquele que a pronuncia com tais inten~es deveraentao proteger-se contra as dispersOes do campo se-mantico, orientando seus ouvintes na direc;ao que de-seja; e, se a frase tivesse urn valor rigorosamente deno-tativo, a empresa seria facil; mas, desde que ele querjustamente estimular uma resposta indefinida, circuns~crita entretanto dentro de certos !imites, projetar urnfeixe de conota~Oes, uma das possiveis solu~6es seraacentuar certa ordem de sugest6es, reiterar 0 estimulo,recorrendo a referencias analogas.

"Aquele homem vem de BOfora, atraves de BishaeDam, Shibam, Tarib e Hofuf, Anaizae Burada, Me-dina e Khaibar, Eufrates acima ate A lepo"; eis urnmodo de reitera~ao do efeito, alcan~ado atraves demeios bastante primarios, capazes todavia de compli-

(18) "Intencionar a mensagem como tal, enfatizar a mensagem emseu sentido intrinseeo, eis 0 que earaeteriza a fun~lio poetiea da men-sagem" (Jakobson, ob. cit., pag. 218).

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Immlga, e e isto que Hip6lito sente; ha alguma coisaque faz de Fedra uma personagem essencialmente tra-gica, e isto Racine deve dizer a seus espectadores,de tal modo que 0 "carater" fique estabelecido desdeo come~o e tudo 0 que se segue nada mais pare~aque 0 aprofundamento de uma necessidade fatal. Fe-dra e ma porque sua estirpe e maldita. Basta umasimples enuncia~ao genealogica para que 0 espectadorseja tomado de horror: 0 pai 6 Minos, a mae Pasifae.Pronunciada num cartorio de registros, a frase seriaminuciosamente referencial; pronunciada perante 0 pu-blico da trag6dia, seu efeito 6 muito mais poderoso eindefinido. Minos e Pasifae sac dois seres terriveis,e as raz6es que· os tornaram odiosos criam 0 efeitode repugnancia e terror que nos domina ao simples soarde seus nomes.

Terrivel.6 Minos por sua conota~ao infernal, odio-sa Pasifae pelo ate bestial que a tornou famosa. Aoiniciar-se a tragedia, Fedra ainda nao 6 nada, mas seestabelece ao seu redor urn halo de odiosidade justa-mente pelos multiplos sentimentos evocados pelo no-me de seus pais, nome que, a16m do mais, se colorede lenda e lembra as profundezas do mito. Hipolitoe Teramene falam num decor barraco, em elegantes eclassicos alexandrinos; mas a menc;ao das duas miti-cas persona gens introduz agora a imaginac;ao de novassugest6es. Portanto, todo 0 efeito residiria nesses doisnomes, se 0 autor se limitasse a uma cornunicac;aogenericamente sugestiva; mas Racine esta predispondouma forma, num efeito est6tico. :E: precise que os doisnomes nao se apresentem sob a forma de comunicac;aocasual, entregues it simples forc;a das sugest6es desor-denadas que comportam. Se a referencia genealogicadeve estabelecer as coordenadas tragicas de tudo 0que ira desenrolar-se, a comunicac;ao devera impor-seao espectador de modo que a sugesUio opere sem falta,e que, uma vez operada, nao se reduza ao jogo dereferencias a que 0 ouvinte foi convidado; 6 precisoque ele possa voltar quantas vezes quiser it forma daexpressao proposta, para sempre encontrar nela esti-mulo a novas sugest6es. A expressao "Aquele homemvem de Baroni" surte efeito da primeira vez; depoispertence ao repertorio do ja conhecido; apos a pri-meira surpresa e a primeira divagac;ao, quem a ouvir

uma segunda vez nao mais se sentira convidado a urnnovo itinerario imaginativo. Mas se cada vez que voltoa expressao encontro nela motivos de prazer e satisfa-c;ao, se 0 convite ao itinerario mental me 6 oferecidopor uma estrutura material proposta sob aparenciasagradaveis, se a f6rmula da proposta tiver assim conse-guido maravilhar-me sempre pela sua eficacia, se euencontrar nela urn milagre de equilibrio e necessidadeorganizativa, pelo qual serei incapaz de cindir a refe-rencia conceitual do estimulo sensivel, entao a surpresadesse conubio originani, todas as vezes, urn complexojogo de imaginac;ao: capaz agora nao somente de apre-ciar a referencia indefinida, mas tambem de gozar juntocom ela 0 modo par que a indefinic;ao me 6 estimulada,o modo definido e calibrado com que ela me e sugerida,a precisao do mecanismo que me convida ao impreciso.Entao, toda reac;ao conotativa, toda explorac;ao no ter-ritorio do vago e do sugestivo, sera por 'mim relacio-nada a f6rmula originaria a fim de verificar se elaa pressup6e e a cont6m - e toda vez poderei desco-brir nela novas possibilidades de orientac;ao da minhaimaginac;ao. E, simultaneamente, a presenc;a da f6r-mula de origem, rica em poder sugestivo e, contudo,rigida e inequivoca em seu propar-se a minha sensi-bilidade, constituir-se-a em enderec;o de meu itinerariomental, delimitac;ao do campo sugestivo.

Assim Racine resume sua genealogia num unicoverso, num alexandrino que leva ao maximo do vir-tuosismo sua incisividade -caracteristica e sua naturezasim6trica, distribuindo os dois nomes pelas duas meta-des do verso, ocupando a segunda com 0 nome damae, capaz de uma sugestao mais profunda e atroz:

Depuis que sur ces bords les Dieux ont envoyeLa fitle de Minos et de Pasiphae.

Ora, 0 conjunto dos significantes, com sua bagagemde conotac;6es multiplices, nao pertence mais a si pro-prio; nem sequer pertence ao espectador que aindaqueira, por seu intermedio, perseguir fantasias vagas(da evocac;ao de Paslfae passar para considerac;6esmorl;>idasou moralistas sobre a uniao bestial em geral,sobre 0 poder da paixao incontrolada, sobre a barba-

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rie da mitopoietica chissica ou sobre sua sabedoria ar-quetipa ... ). Ag6ra, a palavra perlence ao verso, asua medida indiscutivel, ao contexto de sons em quee imersa, ao ritmo ininterrupto do eloquio teatral, adialetica incontrohivel da ayao tnigica. As sugestoessac voluntarias, estimuladas, exphcitamente evocadas,mas dentro dos limites preestabelecidos pelo autor, ou,melhor, pela maquina estetica que ele pos em movi-mento. A maquina estetica nao ignora as capacidadespessoais de rea<;aodos espectadores, pelo contrario, cha-ma-as a a<;ao e converte-as em condi<;ao necessariapara sua subsistSncia e para seu sucesso; mas orienta-ase domina-as.

A emo<;ao, simples rea<;ao pragm:itica que a puraeficacia denotativa dos dois nomes teria desencadeado,agora se amplifica e se define, se orden a e se identificacom a forma que a originou e em que repousa; nao secircunscreve a ela mas amplifica-se gra<;asa ela (torna--se uma de suas conota<;oes); nem a forma fica mar-cada por uma unica emo<;ao, mas sim pela vastfssimagama das emo<;oessingulares que suscita e dirige, comopossfveis conota<;oes do verso - 0 verso como for-ma articulada de significantes que significam, acimade tudo, a articula<;ao estrutural de1es mesmos.

Na realidade, a uso de uma expressao para urn fimdeterrrtinado (referencial ·ou emotivo) aproveita sem-pre ambas as possibilidades comunicativas da propriaexpressao, e nos pareceu tipico 0 caso de certas comu-nica<;Oessugestivas em que 0 halo emotivo se estabelecejustamente porque 0 signo usado, conquanto ambiguo,e recebido ao mesmo tempo como referSncia exata. 0signo "Minos" preyS 0 significado cultural-mitol6gicoa que se refere ullivocamente, e simultaneamente preYSo vagalhao de conota<;oes que se associa a kmbran<;ada personagem e a instintiva reayao as mesmas suges-toes fOnicas que Sle suscita (e que sao impregnadase infiltradas de conota<;oes confusas e nao claramentecodificadas, hipoteses sobre conota<;oes, conota<;oes ar-bitrarias) 19.

Chegados ao limiar da realiza<;ao estetica, toma-mos assim consciSncia de que a esteticidade nao esta'mais do lado do discurso emotivo do que do lado dodisGurso referencial; a teoria da metatora, por exemplo,preyS urn rico usa de referSncias. 0 emprego esteticoda linguagem (a linguagem poetica) implica, portanto,urn usa emotivo das referSncias e urn usa referencialdas emo<;oes, pois a rea<;ao sentimental manifesta-secomo realiza<;ao de urn campo de significados cono-

(19) Podemos corrigir a rigidez das primeiras distin90es de Ogden eRichards com as conclusDes de Ch. Stevenson (Ethics and Languag •.Yale Un. Press, 1944. cap. III, 3), pelas quais, na Iinguagem, 0 aumentode disposi90es desoritivas (referendais) e emotivas nao represent a doisprocessos isolados: Stevenson examina 0 caso da expressao metaf6rica,0.1 qual os aspectos cognoscitivos influenciam os aspectos emotivos dodi~curso total. Conseqi.ientemente, significado descritivo e emotivD sao"aspectos distintos de uma situa~ao total, naD partes del a que podemser estudadas isoladamenle". E identificando lambem urn tipo de signi-ficado que naD e descritivo nem simplesmente emotivo, mas deriva de-uma forma de incoerencia gramatical e procura uma espeeie de "perplexi-dade filos6fica", 0 "significado confuso" (e serfamos tentados a pensarnos vocabuJog "berlos e ambiguos de Joyce). Stevenson conclui que"pode haver, assirn, urn significado emotivo dependente de urn significadodescritivo, como ja se viu; e tambern urn significado emotivo que dePfndede urn significado confuso". As pesquisas dos formalistas russos levarama resultados aniilogos. N a decada de 20, Chklovski e J akubinski assimila·ram a poesia a funfiio emotiva da Iinguagem. Mas chegou-se rapidamentea corrigir esse ponto de vista, antes de tudo por meio de uma formali-za9ao crescente da expressao poelica. Em 1925, Tomachevski relegava asegundo plano a fun~ao comunicativa da linguagem poCtica, para conferirautonomia absoluta as estruturtu verbais e as leis imanent~s da poesia.Depois, durante a decada de trinta, os estruturalistas de Praga tentaramver a obra poetica como uma estrutura ~ultidimensional, na qual 0 nive]r.cmantico aparece integrado a Qutros. "Os forrnalistas autenticos haviamnegado a preseo9a de ideias e emo90es oa obra poetica e se havi31nIImitado a declarar dogmalicamente ser impossivel lirar alguma conc1usaode uma obra literaria; as estruturalistas, ao contrario, acentuaram a ioe-vllavel ambigiiidade da proposi9ao poetica, que se silua, de modo ptecario,em diversos niveis semanticos" (Victor Erlich, II jormaUsmo rosso. Mi~Inno, Bompiani, 1966).

Nesta altura, podemos concluir que uma subdivi-sac da lingua em referendal e emativa, se nos servecomo uti! aproxima<;ao ao argumento do uso estetico dalinguagem, nao resolve a problema; antes de mais nada,vimos que a diferen<;a entre referencial e emotivo naoconcerne tanto a estrutura daexpressao quanta ao seuusa (e portanto ao contexto em que e pronunciada).Encontramos uma serie de frases referenciais que, co-municadas a alguem em dadas circunstancias, assumiamvalor emotivo; e igualmente poderiamos encontrar urncerto numero de expressoes emotivas que, em certassitua<;oes,assumem valor referencial. Pense-se nas sina-liza<;oes rodoviarias, como "Cuidado Devagar!", queindicam sem duvida a proximidade de urn posto defiscaliza<;ao e, portanto, de urn trecho a percorrer emvelocidade reduzida, com proibi<;ao de ultrapassagem.

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tados. Tudo isso se obtem atraves de uma identifi-ca~ao de significante e significado, de "vekulo" e"teor"; em outros termos, 0 sinal estetico e aquele queMorris chama de iconico, em que a evocac;ao seman-tica nao se consome na referencia ao denotatum masse enriquece contiDuamente toda vez que fruimos a ma-neira insuhstituivel pela qual ela se incorpora ao mate-rial com que se estrutura; 0 significado reflete-se con-tinuamente s()bre 0 significante e se enriquece comnovos ecos 20; e isso tudo nao se da por um inexpli-cavel milagre, mas pela pr6pria natureza interativa darelac;ao gnusio16gica, tal como e explicavel em termospsico16gicos, isto e, entendendo 0 signa lingiiistico emtermos de "campo de estimulos". 0 estfmulo esteticoaparece de tal modo estruturado que, diante dele, 0receptor nao pode executar a simples operac;ao queIhe e permitida por qualquer comunicac;ao de uso pu-ramente referencial: dividir os componentes da expres-sac para individuar seu referente singular. No estimuloestetico, 0 rece:1tor nao pode isolar um significantepara relaciona-lo univocamente com seu significado de-notativo: deve colher 0 denotatum global. Todo signaque aparec;a ligado a outro e dos outros receba suafisionomia completa significa de modo vago. Cada

(20) Segundo Ch. Morris (Segni, linguaggio e comportamento. Mila-no, Longanesi, 1949) "urn sinal e ic6nico na medida em que ele propriotern as propriedades de seus denotata". A defini~ao, aparentemente vaga,e, peto contnirio, bastante restrita, pais de fatc Morris sugere que urnretrato naD pade ser, a rigor, iconico "pais a tela pintada nao tern amesma estrutura de pele nem a mesma faculdade de falar e de mover-seque possui a pessoa retratada" (pag. 42). Na realidade, logo em seguidao proprio Morris corrige a estreiteza da defini93.0, admitindo que aiconicidade e uma questao de grau: portanto a onomatopeia pareceriaurn excelente exemplo de iconicidade realizada pela Iinguagem (pag. 258);e existiriam caracteristicas icOnicas naquelas manifesta~6es da poesia emque se entrosam, afinal, estilo e conteudo, materia e forma (pag. 263).Neste easo, ieonicidade torna-se sinonimo de fusao organica dos elementosda obra, no sentido que proeuramos esclareeer. Mais tarde, Morris ten-tara definir a iconicidade pr6pria da arte, explieando que "0 signa este-tieo e urn signo ieonico que designa urn valor" (Science, Art and Techno-logy, em "Kenyon Rev.", I, 1939), justainente no sentido de que aquiloque 0 fruidor pracura no signo estetico e sua forma sensfvel e 0 modopelo qual se propoe. Neste sentido, esta caracteristica do signo esteticoe sublinhada por Wellek e Warren (Teoria delia letteratura e metodo-logia dello studio letterario, Bologna, II Mulino, 1956), quando afirmamque "a poesia organiza urn esquema de palavras tinieo, irrepetfvel, cadauma das quais e ao mesmo tempo objeto e sinal e e usada de formaque nenhum sistema externo a poesia poderia prever" (pag. 251); e porPhillip Wheelwright (The Semantics of Poetry, em "Kenyon ~ev."_ II,1940) quando define 0 signo estetico como plurlssigno, oposto ao monos-signo referencial e recorda que 0 plurissigno "e sema.nticamente reflexivono sentido de que e parte daquilo que significa". V. tambem GalvanoDella Volpe, Critica del gusto. Milano, Feltrinelli, 1960: 0 discurso poe-tica e plurissigniticado, nao univoco como ° discurso cientifico, justamentepela sua natureza organica e contextual.

significado, que nao possa ser apreendido senao ligadocom outros significados, deve ser percebido como am-biguo 21.

No campo dos estimulos esteticos, os signos apare-cem ligados por uma necessidade que apela a habitosenraizados na sensibilidade do receptor (ou seja, 0 g()sto- uma especie de c6digo que se sistematizou histO-ricamente); ligados pela rima, pelo metro, por con-venc;6es proporcionais, por rela<;6es institutivas atravesda referencia do real, ao verossimil, ao "segundo sediz" ou ao "conforme 0 habito estilistico", os estimu-los apresentam-se num todo que 0 fruidor percebe naopoder romper. Torna-se-lhe, portanto, impossivel iso-lar as referencias e deve collier a complexa replica quelhe e imposta pela expressao. Isso faz com que 0 sig-nificado seja multiforme e nao univoco e que a primeirafase do processo de compreensao nos deixe, ao mesmotempo, satisfeitos e insatisfeitos por sua pr6pria varie-dade. Dai 0 voltarmos a mensagem, Ja enriquecidosdesta vez por um esquema de significa~6es complexasqu.e inevitavelmente puseram em j()go nossa memoriade experiencias passadas; a segunda rece~ao sera, por-tanto, enriquecida por .uma serie de lembranc;as des-pertadas, que passam a interagir com os significadoscolhidos no segundo contato; significados que, por suavez, ja de inkio serao diferentes dos que foram reali-zados no primeiro contato, pois a complexidade doestimulo ten'i permitido automaticamente que a novarecepc;ao se de segundo umaperspectiva diferente, se-gundo uma nova hierarquia dos estimulos. 0 recep-tor, voltando novamente sua aten~ao para 0 ~omplexo

(21) Stevenson (Db. cU., cap. III, 8) lembr~. ,!ue nao existe somenteuma ambigiiidade (ele fala em vagueness) semanttca, por ex,:mpl?, dostermos eticos, mas tambem uma ambigiiidade da constru~ao smtatica deum discurso e, em conseqiiencia, uma ambigiiidade no plano p~agma.ticoda re~ao psicol6gica. Em termos estruturalistas, Jakobson aflrma que"a ambigiiidade e uma propriedade intrlnseca, inalienavel, ~e tod.a m~-sagem centralizada em si pr6pria; em suma, e um corolano ~bngat6noda poesia" (tudo isso nos remete a Empson e a sua conC':,~ao de a!"-bigiiidade) . "A supremacia da fun~ao poetica subre a fun~ao referencl.alnlo elimina a referencia (a denota~ao) mas torna-a ambfgua" (EssalS,elt. pag. 238). Sohre a palavra poetica enquanta acompanhada porIOd~s os sentidos possiveis, v. Roland Barthes, "Existe uma escriturapo6tica?", em II grado zero delia scrittura, Milano, IA:rici, 1960. Trata-seaqui dos mesmos problemas levantados pelos formalistas russos quandoaflrmavam que 0 ohjetivo da poesia e tornar perceptivel a text\ll'a deuma palavra em todos os seus aspectos (v. Eichenbaum, Lermontov, Le-ninllrado, 1924) . Em outros termos, para eles a essencia do discursopo6tieo consistia nao na ausencia e SilO na. multiplicidade das significa~Oes.

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d.e estimulos, tenl posto desta vez em primeiro planoslgnos que, an~es, havia considerado numa perspectivasubalterna, e VIce-versa. No ato transativo em que secomp5em a bagagem de lembran9as despertadas e 0

~istema de significados que emergiu da segunda fase,]U~to com 0 sistema de significados que emergiu dapnmeira (e que interveio a titulo de lembran9a -de "harmonico" da segunda fase de compreensao), eisque toma forma urn mais rico significadQ da expres-sac originaria. E quanto mais a compreensao se com-plica, tanto mais a mensagem originaria - tal comoe, constituida pe1a materia que a realiza - em vez degasta, aparece renovada, pronta para "leituras" maisaprofundadas. Produz-se agora uma verdadeira rea9aoem cadeia, tipica daquela organiza9ao dos estimulosque costumamos indicar como "forma". Essa rea9ao,em teoria, e irrefreavel e de fato s6 termina quando aforma deixa de parecer estimulante ao receptor; masnesse caso evidentemente entra em jogo 0 afrouxamentoda aten9ao, uma especie de habitua9ao aos estimulos:de urn lado, os sinais que os comp6em, a for9a de se-rem focalizados - como urn objeto olhado em demasiaou uma palavra cujo significado nos propusemos maise n:ais vezes, obsessivamente -, geram uma especie desacledade e parecem obtusos (quando 0 que existe e ape-nas uma obtusidade temporaria de nossa sensibilidade);e, de outro lado, arrastadas pelo mecanismo do habito,~s ~embran9as que trazemos para 0 ate perceptivo, aolllves de serem urn produto espontfmeo da mem6ria ex-citada, constituem-se como esquemas, resumos das lem-bran9as anteriormente carreadas. Bloqueia-se aqui 0processo de frui9ao estetica e a forma, tal como econsider ada, resolve-se dentro de urn esquema con-vencional em que nossa sensibilidade, demasiadamentesolicitada, deseja repousar. E 0 que acontece quandonos tornamos conscientes de estar, ha muitos anosouvindo e apreciando uma pe9a musical; chega 0 mo~mento em que a pe9a ainda nos parece bela, mas ex-clusivamente por nos termos habituado a consider a-Iacomo tal, e, na realidade, 0 que desfrutamos agora,ao ouvi-Ia, e a lembran9a das em090es que experi-mentamos outrora; de fate, nao mais sentimos emo<;aalguma e nossa sensibilidade, nao mais estimulada, dei-xa de arras tar nossa hnagina9ao e nossa inteligencia

a novas aventuras interpretativas. A forma, para n6s,e por certo perfodo, desgastou-se 22. Freqtientemente,cumpre revirginar a sensibilidade, impondo-Ihe umalcnga quarentena. Voltando a pe<;a muito tempo de-pois, redescobrimo-nos novamente espontfrneos e mara-vilhados diante de suas sugest6es: e nao apenas pornos termos desabituado dos efeitos daqueles estimulosacusticos .organizados de urn certo modo; a maioria dasvezes, paralelamente, tambem nossa inteligencia amadu-receu, nossa mem6ria foi enriquecida, nossa cultura apro-fundou-se; issoe suficiente para que a forma originariapossa despertar zonas da inteligencia ou da sensibilidadeque antes nao existiam e que agora se reconhecem noestimulo de base pelo qual sac suscitadas. Mas podeacontecer, as vezes, que nenhuma quarentena consiga de-volver-nos 0 assombro e 0 prazer de outrora, e que aforma tenha morrido definitivamente para n6s; e istopode significar que nosso crescimento intelectual atro-fiou-se ou entao que a obra, como organiza9ao de esti-mulos, dirigia-se para urn receptor diferente daquele quehoje somos; e conosco mudaram tambem os outros re-ceptores: sinal portanto de que a forma, nascida numambito cultural, torna-se de fato inutil em outro ambi-to, podendo seus estimulos manter uma capacidade dereferencia e de sugestao para homens de outro perfodoque nao 0 nosso. Neste caso, somos os protagonistasde urn mais amplo acontecimento do gosto e da culturae experimentamos uma daque1as perdas de congeniali-dade entre obra e fruidor, que amiude caracterizamuma epoca cultural e obrigam a escrever aqueles ca-pitulos criticos que se denominam "sorte da obra tal".Nesse caso, seria inexato afirmar que a obra morreuou que morreram os filhos do nosso tempo para a com-preensao da verdadeira beleza; essas sac express6esingenuas e superficiais que se fundam na presun9aO daobjetividade e imutabilidade do valor estetico,comodado capaz de subsistir .independentemente do pro-cesso transativo. Na realidade, para aque1e determi-

(22) Sabre 0 "desgaste" das farmas, das expresSoes lingiifsticas, ve-jam-se as varias observa90es de Gillo Dorfles, p. ex.: Le oscillationi delgusto (caps. XVIII e XIX); II divenire delle arti, capitulo V; e 0 ensaioEntrapia e razionalita del- linguaggio litterario, em "Aut Aut", n. 18.

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nado perfodo da. hist6ria da civiliza<;:ao(ou de nossahist6ria pessoal), bloquearam-se algumas possibilidadesde transa<;:ao compreensiva. Em fenomenos relativa-mente simples, como a compreensao de urn determi-nado alfabeto, tais bloqueios de possibilidades transa-tivas san facilmente explicaveis: hoje nao compreen-demos a lingua etrusca porque perdemos seu codigo,algo semelhante a tabuinha comparativa que nos per-mitiu descobrir a chave dos hieroglifos egipcios. En-tretanto, em fenomenos complexos como a compreen-sao de uma forma estetica, onde interagem fatares ma-teriais e conven<;:6essemanticas, referencias lingiifsticase cuhurais, aptid6es da sensibilidade .e decis6es da inte-ligencia, as raz6es sao hem mais complexas, de talmodo que comumente se aceita a faha de congeniali-dade como fenomeno misterioso, ou entao procura-senega-Ia atraves de capciosas anaIises criticas que pre-tendem demonstrar a absoluta e supratemporal vali-dade da incompreensao (como fez Bettinelli com Dante) .Trata-se, na realidade, de fenomenos esteticos que aestetica - embora possa estabelecer suas possibilidadesem geral 23 - nao pode explicar na sua particularidade.E tarefa que cabe a psicologia, a sociologia, a antropo-logia, a economia e as outras ciencias que estudam jus-tamente as mudan<;:asverificadas no interior das vitriasculturas.

Tudo que dissemos ate aqui nos permitiu esclarecerque a impressao de profundidade sempre nova, de to-talidade inclusiva, de "abertura" que nos parece reco-nhecer sempre em toda obra de arte, funda-se na du-plice natureza da organiza<;:ao comunicativa de umaforma estetica e na tipica natureza transativa do pra-cesso de compreensao. A impressao de abertura etotalidade nao esta no estimulo objetivo, que porsiso e materialmente determinado; e nao esta no sujeito,que por si s6 esta disposto a todas e a nenhuma aber-tura: mas na rela<;:aocognoscitiva no curso da qual serealizam aberturas suscitadas e dirigidas pelos estf-mulos organizados segundo a inten<;:aoestetica.

A .(23) Uma all}pla fenomenologia da rela\llio interpretativa, com refe-renc'a aoueles fenomenos de congenialidade nos quais Se estabelecem aspossibilidades e as dificuldades de interpreta\llio de uma forma, den.-sebuscar em Luigi Pareyson. Estetica (especialmente 0 paragrafo 16 do capi-tulo Leu,ura, interpretazione, critica).

Portanto, sob esse aspecto, a abertura e a condi<;:aode toda frui<;:ao estetica, e tada forma fruivel comodotada de valor estetico e "aberta". E "aberta", co-mo ja vimos, mesmo quando 0 artista visa a uma comu-nica<;:aounivoca e nao ambigua.

Contudo, a pesquisa sobre as obras abertas reali-zada contemporuneamente revelou, em certas poeticas,uma inten<;:aode abertura explicita e levada ate 0 limiteextremo: uma abertura que nao se baseia exclusivamen-te na natureza caracterfstica do resultado estetico, masnos elementos mesmos que se comp6em em resultadoestetico. Em outras termos, 0 fato de uma frase doFinnegans Wake assumir uma infinidade de significadosnao se explica em termos de resultado estetico, comose deu no caso do verso de Racine; Joyce visava algomais e diferente, organizava esteticamerite urn aparatode significantes que por si so ja era aberto e ambiguo.E, por outra lado, a ambigiiidade dos signos nao podeser separada de sua organiza<;:ao estetica, muito pelocontrario, os dois valores se sustentam e motivam umao outra.

o problema ficara mais claro se compararmos doistrechos, urn da Divina Comedia e 0 outro de FinnegansWake. No primeiro, Dante quer explicar a naturezada Santissima Trindade, comunicar portanto 0 conceitomais alto e mais diffeil de todo 0 seu poema, umconceito ja esclarecido, todavia, de maneira bastanteunivoca pela especula<;:aoteologica, e passivel, por isso,pelo menos segundo a ideologia dantesca, de uma unicainterpreta<;:ao que e a ortodoxa. 0 poeta usa portantopalavras que tern cada uma delas urn elemento referenteprecise, e diz:

o Luce eterna, che sola in Te sidi,Sola t'intendi e, da te intellettaEd intendente te, ami ed arridi!240

Como dissemos, a ideia da Trindade e explicadade modo univoco pela teologia catolica e nao sac possi-

Lume eterno que a serle em Ti s6 tendo,S6 te entendes, de Ii sendo entendido,E te amas e sarris, s6, te entendendo. .

(Trad. de Jose Pedro XaVier Pinheiro)

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veis interpreta90es diversas do conceito; Dante aceitauma _e unica interpreta9ao, e uma e Unica e a que elepropoe: contudo, apresentando 0 conceito numa for-mula absolutamente original, ligando as ideias expres-sas a? mater~al foni<:o e rftmico, a tal ponto que essematenal m~mfesta nao somente 0 conceito em questaomas 0 senbmento de alegre contemplac;ao que acompa-nha a sua compreensao (a tal ponto que, nele, valoresreferenciais e valores emotivos se fundem numa formafisica doravante indissociavel), faz com que a n093.(teologica se. associe com 0 modo pelo qual e exposta,em tal med1da que dai por diante sera impassivel lem-brar uma formula9ao mais eficaz e densa. Paralela-mente, cada vez que se rele a estrofe, a ideia do mis-terio trinitario se enriquece de novas em~6es e den~;as , sug~stoes imaginativas, e seu significado, quealias e umvoco, parece aprofundar-se e enriquecer-sea cada leitura.

Joyce, ao contrario, no quinto capitulo do Finne-gans Wake, quer descrever a misteriosa carta encon-trada num monturo e cujo significado e indecifravel,obscuro porque multiforme; a carta e 0 proprio Fin-negans, ou melhor, uma imagem do universo que 0Finnegans reflete lingihsticamente. Defini-Iae, no fun-do, definir a propria natureza do cosmo; defini-Ia 6tao fundamental quanto, para Dante, definir a Trin-dade. Mas da Trindade is.dada uma unica n09ao, en-quanto que 0 cosmo Finnegans Wake-carta e urn "ca-osmo", e defini-Io quer dizer indicar-Ihe, sugerir-lhe asubstancial ambigiiidade. Portanto, 0 autor deve falarde urn objeto nao univoco e usando signos nao univocosinterligados segundo rela90es nao univocas. A defi-ni9ao ocupa paginas e paginas do livro, mas, no fundo,cada frase nada mais fazque repropar, numa pers-pectiva diferente, a ideia-base, alias, 0 campo de id6ias.Tomemos uma delas, ao acaso:

. "From quiqui quinet to michemiche chelet and a jambeba-tIste to a brul?brul<?! It is t?ld in sounds in utter that, in signsso adds. t.o, In unIversal, In pQlygluttural, in each ausiliaryneutra! IdIom, sordomutics, flori!ingua, sheltafocal, flayflutter,a con s cubane, a pro's tutute, strassarab, efeperse and any-thongue athall."

A caoticidade, a polivalencia, a multiinterpretabili-dade desse caosmo escrito em todos os idiomas, seu re-fletir a historia inteira (Quinet, Michelet) mas sob for-ma do cicIo viquiano (jambebatiste), a polivalencia deurn glossario barbarizado (polygluttural), a referencia aGiordano Bruno queimado (brulobrulo) 25, as duas alu-soes obscenas que unem numa unica raiz 0 pecadoe a doen<;a, eis uma serie - uma serie apenas, quesurge de uma primeira inspe9ao interpretativa - desugestoes que derivam da propria ambigiiidade dasraizes semanticas e da desordem da constru9ao sin-tatica. Essa pluralidade semantica nao determina ain-da 0 valor estetico. E contudo e justamente a multi-plicidade dos etimos que provoca a audacia e a ri-queza sugestiva dos fonemas, e ate, com freqiiencia,urn novo etimo e sugerido pela rela<;ao entre dois sons,de modo que 0 material auditivo e 0 repertorio dasreferencias se fundem indissoluvelmente. Assim, a von-tade de comunicar de modo ambiguo e aberto influina organiza<;ao total do discurso, determinando 'suafecundidade sonora, sua capacidade de provoca9ao ima-ginativa; e a organiza<;ao formal que esse material sofre,num calibrar-se de rela90es sonoras e rftmicas, reverbe-ra sobre 0 jogo das referencias e das sugest6es, enri-quecendo-o e permitindo urn arranjo organico tal, quea essa altura nem a menor raiz etimologica pode serdeslocada para fora do conjunto.

o que acontece no terceto dantesco e na frase joy-ceana e, no fundo, urn procedimento anaIogo, visandoa uma defini9ao da estrutura do efeito estetico: certoconjunto de significados denotativos e conotativos fun-de-se com valores fisicos para formar uma forma orga-nica. Ambas as formas, se contempladas sob seu aspec-to estetico, revelam-se abertas enquanto estimulo a umafrui9ao sempre renovada e mais profunda. Entre-tanto, no caso de Dante, frui-se, de modo sempre novo,a comunica<;ao de uma mensagem univoca; no casode Joyce, 0 autor deseja que se frua de modo semprediverso uma mensagem que par si s6 (e gra<;as a forma

(25) Edgar Quinet (1803-1875) e Jules Michelet (1798-1874), historia-dores franceses; Giambattista Vico (1668-1744), fil6sofo ilaliano cuja obraInlluenciou grandemente a forma9ao de Joyce; Giordano Bruno (1548-1600), frade dominicano italiano queimado vivo pela Inquisi9ao por suasobras filos6f1cas tidas como herelicas. (N. do T.)

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que realizou) e plurivoca. A riqueza tipica da frui<;aoest6tica junta-se aqui uma nova forma de riqueza queo autor moderno se prop6e como valor a realizar.

Este valor que a arte contemporanea procura in-tencionalmente, aquele que se tentou identificar em Joy-ce, e 0 mesmo que procura realizar a musica serial, li-bertando a audiencia dos trilhos obrigatorios da tona-lidade e multiplicando os parametros com que organi-zar e degustar 0 material sonoro; e 0 que busca a pin-tura informal quando tenta propor nao mais uma, masvanas dir~6es de leitura de urn quadro; e ao que vi~sa 0 romance quando nao nos conta mais uma unicaestoria e urn unico enredo, mas procura enderec;:ar-nos,num so livro, a individuac;:aode mais estorias e enredos.

E urn valor que nao se identifica, teoricamente,com 0 valor estetico, pois se trata de' urn projeto comu-nicativo que deve incorporat-se numa forma bem suce-dida para tornar-se eficaz; e que somente se realiza seamparado por aquela abertura fundamental propriade tbda forma artistica bem sucedida. Reclprocamente,este valor, quando procurado e realizado, caracterizaas formas que 0 reali;zam de tal maneira que sua rea-liza~ao estetica nao mais pode ser fruida, avaliada eexplicada a nao ser fazendo referencia a ele (em ou-tros termos, nao se pode apreciar uma composic;:aoatonal, senao levando em conta 0 fato de que ela desejarealizar uma especie de abertura no que concerne asrelac;:6esfechadas da gramatica tonal e e valida somentese 0 consegue de maneira relevante).

Esse valor, essa especie de abertura de segundograu visada pe1a arte contemporanea, poderia ser defi-nida como acresc.imento e multiplicac;ao das significa-C;6espossiveis de uma mensagem: mas 0 termo presta--se ao equivoco, pais muitos nao estariam dispostos afalar de "significado" a proposito do tipo de comunica-c;ao fornecido por urn sinal pict6rico nao figurativo oupor umaconste1ac;:ao de sons.

Definiremos portanto essa especie de aberturacomo urn acrescimo de injomu:v;iio. Mas tal definic;aodesloca nossa pesquisa para outro plano, obrigando-nosa estabelecer as possibilidades de emprego, no campoestetico, de uma "teoria de informac;ao".

As poeticas contemporaneas, ao propor estruturasartistic as que exigem do fruidor urn empenho autono-mo especial, frequentemente uma reconstruc;:ao,se~p~evariave1, do material proposto, refletem uma tendenclageral de nossa cultura em dir~ao aqueles processosem que, ao inves de uma seqUencia univoca e neces-saria de eventos, se estabelece como que urn campode probabilidades, uma "ambigilid~de" de s~tuac;ao,c~-paz de estimular escolhas operatlVas ou mterpretatl-vas sempre diferentes.

Essa situac;ao estetica singular e a dificuldade dedefinirmos exatamente aque1a "abertura" a que aspiramvarias poeticas hodiernas nos induzem agora a exa-

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minar um setor das metodologias cientificas, 0 da tea-ria da informa<;ao, no qual nos parece possivel en-contrar indica<;oes interessantes para os fins de nossapesquisa. Indica<;oes em dois sentidos: de um lade,acreditamos que certas poeticas refletem a seu modoa propria situa<;ao cultural em que tiveram origem aspesquisas sobre a informa<;ao; de outro, acreditamosque determinados instrumentos oferecidos por estaspesquisas podem ser empregados, feitas as devidastransposi<;oes, em campo estetico (0 que, como vere-mos, ja foi feito por outros). Mas prevemos a faci!obje<;ao de que entre pesquisas da ciencia e opera<;oesda arte nao podem existir elos efetivos, e que todoparalelo instituido e absolutamente gratuito. Entao,para evitarem-se transposi<;oes imediatas e superficiais,nao sera inutil examinar inicialmente os principios geraisda teoria da informa<;ao sem tentar referencias a es-tetica, e somente depoisdisto verificar se existem equais sao as conexoes e a que pre<;o os instrumentosde urn campo podem ser empregados no outro.

Estabele<;amos uma situa<;aocomunicativa das maissimples 1. Deseja-se saber, na central instalada no vale,quando uma represa, localizada no reconcavo entreduas montanhas, alcan<;a um nivel de satura<;ao de-terminado, que definiremos como nivel de alarma.

Chamemos 0 nivel de alarm a de ponto O.Que haja agua ou nao; que esteja ela acima ou

abaixo do ponto 0; quanta acima ou quanto' abaixo;qual a velocidade com que sobt~; tudo isso - e maisainda - constitui uma serie de inform(Jfoes que podemser fornecidas pela represa, que, portanto, consideroF9nte ou Nascente de informa<;ao.

Suponhamos que na represa exista um aparelho(identificavel com uma especie de Mia) que, atin-gindo 0 nivel 0, sensibiliza urn aparelho transmissor,capaz de emitir um sinal (por exemplo, um sinal ele-

(I) 0 exemplo que segue inspira-se no ensaio apresentado por Tulliode ~auro, "Modelli semiologici - L'arbitrarieta semantica", em Linguae sll1e. I. 1. ~ uma das mais claras e uteis inicia~oes aos problemasda codifica~iio.

trico). Esse sinal vlaJa atraves de urn canal (fioeletrico, ondas de radio etc.) e e captado na centraldo vale por um aparelho receptor; 0 recept~r recon-verte 0 sinal numa forma dada, que constltUl a men-sagem dirigida ao destinatario. No nosso cas?, 0 ~es-tinatario e outro aparelho, oportunamente mstrUldo,que ao receber a mensagem ag~ corrigindo a situa<;aoinicial (por exemplo, um mecamsmo de feed-back, queprovidencia a evacua<;ao da agua na represa). .

Vma cadeia comunicativa deste genero age em mUl-tos aparelhos chamados de homeostatos, os quai~, porexemplo, garantem que uma dada temperatura. nao ul-trapasse 0 limite prefixado, predispond~ suceSSlVascor-re90es da situa<;ao termica na fonte, tao logo recebamuma mensagem oportunamen~e c~~ificada. Mas e .amesma cadeia que podemos Ident1flcar numa comum-ca<;ao radiofonica: a fonte da informa9ao e 0 r~me-tente da mensagem que, identificado urn dado conJ~ntode eventos a comunicar, os faz chegar ao transmlssor(0 microfone), que os transforma em sinais fisi~os, osquais viajam ao longo de um canal (ondas hertzlanas)e sao captados por uma transmissora que os rec?nve,r~eem mensagem (sons articulados) que 0 destmatarl.orecebera. Quando falo com outra pessoa (como dlzWarren Weaver) 2, 'meu cerebro e a fonte da informa:<;ao, 0 do outro, 0 destinat:irio; meu sistema vocal eo transmissor e 0 ouvido do outro, 0 receptor.

Mas, como veremos, no momento em que inseri-mos na rela<;ao dois seres humanos, cada urn num ex-tremo da cadeia, a propria rela<;ao se complica; reto~-nemos portanto ao nosso modelo que estuda duas ma-quinas nos pOlos opostos da cadeia.

Para avisar 0 destinat:irio do momento em que aagua alcan<;a 0 nivel 0, e preciso enviar-Ihe uma men-sagem. Pensemos nessa mensagem em termos de um~lampada que se acende em dado momen:o ~ ~as eclaro que 0 aparelho destinat:irio, que na,? dlspoe de6rgaos sensorios, nao precisa "ver" uma lampada ace-sa; pode bastar-Ihe urn fenomeno diferente, c?m~ 0

soHar de urn comutador, a abertura de um ClfCUltO.(2) Warren Weaver, "The Mathematics of Communication", em ~ci-

,nt/fic American, 181, 1949 (trad. it. em AAVV, Controllo automat/co.Milano, Martello, 1956),

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Para reduzir ao minimo os riscos do ruido devocomplicar 0 c6digo. Suponhamos que eu instale duasHl.mpadas, A e B. Quando A esta acesa, significa quetudo esta bem; quando A se apaga e acende-se Bsignifica que a agua esta acima de O. Nesse caso, do~brei a "despesa" da comunicac;ao, mas reduzi as pos-sibilidades de ruido. Uma interrupc;ao da corrente apa-gari~ ambas as lampadas, e 0 c6digo que adotei naoconsl~era ~ possibilidade de "duas lampadas apagadas";estarel asslm em condic;6es de distinguir os nao-sinaisdos sinais.

De outro lado, ainda existe 0 risco de que urn de-feito eletrico facta acender A em lugar de B, ou vice--versa; para eliminar este risco, deverei complicar ul-teriormente as possibilidades combinat6rias do c6digo.Introduzirei mais duas lampadas e disporei de umaserie ABCD, com base na qual poderei estabelecerAC = nivel de seguratlfa e ED = nivel O. Terei as-

sim reduzido as possibilidades de que uma serie dedisturbios no canal possa alterar minha mensagem.

Assim, introduzi no c6digo elementos de "redun&dcmcid': 0 usa de duas Hl.mpadasopostas a outras duas,para dizer 0 que podia ser dito com a simples alternan-cia. de aceso-apagado de uma s6 lampada, permite-mereiterar a mensagem, apoia-Ia numa forma de repetic;ao.

Mas a redundancia nao significa apenas que possorepetir a mensagem para torna-Ia mais segura: signi-fica tamb6m que 0 c6digo, assim complicado, pode"ria permitir-me comunicar outros tipos de mensagem.Com efeito, 0 c6digo, dispondo dos elementos ABCD,permite diversas combinac;6es: por exemplo, A - B_ C - D - AB - BC - CD - AC - BD -'-AD - ABC - BCD - ACD - ABD - e tambemas formas alternadas "AB - CD" ou "A - C - B_ D", e assim por diante. 0 c6digo fixa urn reper-t6rio de simbolos, entre os quais posso escolher aquelesa atribuir a dados fen6menos. Os outros pod em per-manecer como reserva, como possibilidades nao signi-ficantes (reconheciveis caso se verifiquem por ruido),prontos para indicar outros fen6menos que eventual-mente me parec;am dignos de comunicac;ao.

Eis que, com as possibilidades pre-ordenadas indi-cadas adma, meu c6digo pode indicar-me algo maisdo que 0 simples nivel de perigo O. Posso assinalaruma serie de niveis que vao da tranqililidade absolutaao pre-perigo (chamando-os niveis -3, -2, -1 etc.) euma serie de niveis acima de 0 (+ 1, +2, +3), dasituac;ao de alarma a de perigo maximo; e posso fazercorresponder a cad a urn de tais niveis uma combina-c;ao do c6digo (que se realizara com base em oportu-nas instruc;6es fornecidas aos mecanismos transmissorese receptores).

Com urn c6digo desse tipo, no que se baseia atransmissiio de urn sinal? Numa escolha alternativa,que podemos indicar como oposi{:iio entre "sim" e"niio". Ou a lampada esta acesa, ou esta apagada (oua energia passa ou nao passa). Mesmo no caso de 0

aparelho destinatario ter de responder com base em ins-truc;6es recebidas ao disparar de um comutador, a co-municaC;aode urn impulso, 0 processo nao muda. Ra

Continuemos todavia a imaginar a mensagem - paramaior comodidade - sob a forma de lampada.

A lampada ja constitui 0 principio de um c6digo:"lampada acesa" significa "nivel 0 atingido", ao passoque "lampada apagada" significa "abaixo de 0". 0c6digo ja estabelece uma correspondencia entre umsignificante (a lampada acesa e apagada) e urn signi-ficado. No caso em exame, 0 significado e apenas adisposi{:iio que 0 aparelho tem de responder de umacerta nianeira ao significante. Contudo, mesmo nessesentido, 0 significado se distingue do referente, ou seja,o fen6meno real ao qual 0 sinal se refere (isto e, 0nivel 0), porque 0 apareIho nao "sabe" que a aguaatingiu urn certo nivel, mas foi instruido para atribuirum determinado valor ao sinal "lampada acesa" e aresponder·:}he de acordo.

Existe, por outro lado, um fen6meno conhecido co-mo ruido. 0 r.uido e urn distu.rbio que se insere nocanal e pode alterar a estrutura fisica do sinal. Pode~er uma serie de descargas "eletricas, uma interrupc;aoImprevista da energia eletrica, que faz com que 0 aci-dente "lampada apagada" (por interrupc;ao da ener-gia) seja interpretado como mensagem ("agua abai-xo de 0").

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uma oposi~ao binaria, uma oscila~ao maxima entre 1 e0, entre sim e nao, entre aberto e fechado.

Nao cabe estabelecer aqui se 0 metoda binario -que, conforme veremos, e adotado pela teoria da ih-forma~ao - se apresenta como 0 artificio mais sim-ples para descrever a passagem de uma informa~ao, ouse qualquer tipo de comunica~ao repousa sempre, deurn modo ou de outro, numa mecfmica binaria (isto e,se nos comunicamos sempre, de qualquer maneira queo fa~amos, atraves de uma serie sucessiva de escolhasalternativas) .

o fate de varias disciplinas, da lingiiistica a neuro-psicologia, se apoiarem no metodo binario para expli-carem os processos de comunica<;ao, aponta, de qual-quer maneira, neste metodo, raz6es de economia que 0tornam preferivel a outros.

Quando, entre dois eventos, sabemos qual ira ve-rlficar-se, temos uma informa~ao. Supae-se que osdois eventos tern iguais possibilidades de verificar-se, eque, portanto, nossa ignorfmcia acerca da disjun~ao deprobabilidades seja total. A probabilidade e a rela~aoentre 0 numero dos casos favoraveis a verifica~ao doevento e 0 numero de casos posslveis. Se lan~o parao alto uma moeda (e espero cara ou coroa), tenho umaprobabilidade de 1/2 para cada face da moeda.

No caso do dado, onde sac seis as faces, tenhouma probabilidade de 1/6 para cada uma das faces (nocaso de jogar dois dados, a probabilidade de dois even-tos independentes se verificarem conjuntamente - que,por exemplo, eu consiga fazer seis e cinco - e dadapelo produto das probabilidades individuais: eu terla,nesse caso, 1/36).

A rela~ao entre uma serle de eventos e a serle dasp.:oba~ilid,a?es conexas e a rela<;ao entre uma progres-sac ar~tmettca e uma progressao geometrlca, e a segun-da sene representa 0 logaritmo da primeira.

Isso significa que, dado urn evento e 64 probabili-dades de diferentes realiza~6es (par exemplo: qual dascasa~ de urn tabuleiro de xadrez sera escolhida?), quan-do fICOsabendo qual dos eventos se realizou obtiveumai~f~rma~ao igual a Ig264 (que da 6). lsto e, para in-dlvlduar urn dentre sessenta e quatro eventos eqiiipro-

vaveis, foram necessarias seis disjuIi~6es ou escolhas bi-narias.

Este mecanismo pode ser melhor escIarecido peloesquema abaixo, que, reduzindo 0 numero dos elemen-tos em jogo para facilitar a opera~ao, nos mostra que,dados 8 eventos cuja ocorrencia nao e possivel predi-zer, pois possuem iguais probabilidades de verificar-se,a individua~ao de urn deles mediante escolhas binariasimplica tres movimentos de escolha, tres 0~6es, tresalternativas.

Foram indicados com letras alfab6ticas os pontosde disjun~ao binaria. E ve-se que para identificar, porexemplo, 0 evento nC?5, sac necessarlas tres escolhasbinarias: 1) de A escolho B1 on B2; 2) de B2 escolhoa dire~ao para Ca; 3) de Ca escolho a dire~ao para j;

ao inves de 6.

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J ii que se tratava de individuar urn evento entreoito, a expressao logaritmica da situa9ao dii:

canstituem oposi9ao fonemiitica. Ao contriirio, em in-gles as duas maneiras diferentes em que pronuncio a"i" em "ship" e em "sheep" (que a vocabuliirio indicade modo diferente: "Sip" e "Si:p") constituem oposiriioentre dais fonemas diferentes (e de fato, no primeirocaso, temos a significado "navio" e no segundo a sig-nificado "ovelha"). Neste caso tambem teriamos umainforma9ao que nasce da escolha realizada entre asdais polas de uma oposi9ao.

A teoria da informa9ao chama unidade de informa-9ao au bit (de "binary digit", isto e, "sinal biniirio")a unidade de disjun9ao biniiria que serve para indivi-duar uma alternativa. Diremos entao que, no casode individua9ao de urn entre oito elementos, recebi 3bit de informa<;ao;no caso de 64 elementos, eu haviarecebido 6 bit.

Pelo metoda da disjun<;aobiniiria e possivel indivi-duar urn evento entre urn nu.mero infinito de eventospossiveis. Basta proceder com constancia a uma seriede bifurca90es sucessivas, eliminando as alternativas amedida que se apresentam. Os cerebros eletronicoschamados "numericos" ou "digitais", trabalhando a al-tissima velocidade, conseguem proceder por disjun90esbiniirias sobre sistemas de eqtiiprobabilidade que poemem jogo urn numero astronomico de elementos. Lem-bramos que 0 calculador digital funciona com base nasimples alternativa de passagem/nao-passagem de ele-tricidade, simboliziivelpelos dois valores 1 e O. E nes-tes termos pode realizar as mais variadas opera90es,jii que a iilgebra de Boole permite justamente efetuarqualquer opera9ao pelo uso de disjun90es biniirias.

Contudo, as mais recentes pesquisas lingiiisticas su-gerem a ideia de que, mesmo ao nivel de sistemasmais complicados, como, por exemplo, a da linguaverbal, a informa9ao surge por disjun9ao biniiria. De-vemos considerar que todos os signos (as palavras) deuma lingua sao construiveis mediante a combina<;aodeurn ou mais fonemas; os fonemas sao as unidades mi-nimas de emissao vocal providas de valor diferencial;sao breves emiss6es vocais que podem ou nao identifi-car-se com uma letra do alfabeto, e que - tomadas emsi - nao tern qualquer significado: salvo que a pre-senra de um fonema exclui a de um outro que, se ti-vesse aparecido no Lugar do primeiro, teria mudado 0

significado da palavra. Par exemplo, em portugues pos-so pronunciar de urn modo diferente a "e" de "gente"ou de "noite", mas as variedades de pronuncia nao

Mas voltemos ao nosso modelo comunicativo. Fa-lamas de "unidade de informa9ao" e estabelecemos quequando, par exemplo, sou informado de qual eventose verificarii entre oito eventos possiveis, recebo 3 bitde informa9ao. Mas a valor "informa9ao" niio deveser identificado com a noriio que me e comunicada,mesmo porque na teoria da informa9ao a significadodo que me e comunicado (0 fato de que 0 evento en-tre as oito posslveis seja um numero, urn nome depessoa, um bilhete de loteria ou um simbolo griifico)nao conta. Para a teoria da informa9ao conta a nu-mero de alternativas necessarias para definir 0 eventosem ambigliidades. E contam as alternativas que -na fonte - se apresentam como co-posslveis. A infor-ma9ao nao IS tanto a que IS dito, mas 0 que pode serdito. A informa9ao Ii a medida de uma possibilidadede escolha na seler;iio de uma mensagem. Uma men-sagem computavel num bit (a escolha entre duas pos-sibilidades eqtiiproviiveis) e uma compuHivel em 3 bit(a escolha entre oito possibilidades eqtiiproviiveis) sedistinguem pelo numero maior de escolhas possiveisque a segunda situa9ao apresentava - na fonte -com rela9ao a primeira. No segundo caso, a mensa-gem informa mais porque - na fonte - havia maiorincerteza quanta a escolha que viria a ser feita. Paradar urn exemplo fadl e compreensivel: ha mais sus-pense num romance policial em que a assassino podeser suspeitado entre mais personagens e a solU9aOche-ga mais inesperada. A informariio representa a liber-dade de escolha que temos ao construir uma mensa~gem, e portanto deve ser considerada propriedade esta-tistica da nasoente das mensagens. Em outros termos,a informa9ao e aquele valor de eqtiiprobabilidade en-tre muitos elementos combinaveis, valor que IS tanto

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maior quanta mais numerosas forem as escolhas pas-siveis: de fato, num sistema em que estivessem em jogonao duas, ou oito, ou 64, mas n bilhoes de eventoseqiiiprovaveis, a expressao

daria urn mimero mais alto. E quem recebesse umamensagem de uma tal fonte, receberia, ao individuar~m evento entre os n bilhoes possiveis, muitos bit demforma<;ao. Mas claro esta que a informa<;ao recebidaja represe.ntaria uma redu<;ao, urn eqtpabrecimento daenorme nqueza de escolhas possiveis que existia nafonte, antes que 0 evento fosse escolhido e a mensa-gem emitida.

.., A inf?~ma<;ao mede, portanto, uma situa<;ao deeqU1probabIlldade, de distribui<;ao estatistica uniformeqU,e.existe n~ fonte; e esse valor estatistico e 0 que osteoncos da mforma<;ao, mutuando-o da termodinami-ca, c?amam, de entropia3• Com efeito, a entropia deum sIstema e 0 estado de eqiiiprobabilidade a que ten-dem seus elementos. A entropia e tamb6m identifica-da com urn estado de desordem, no sentido de que aorde';l e um sistema de probabilidades que se introduzno sIstema para pader prever-lhe 0 andamento. Nateoria cinetica dos gases preve-se a seguinte situa<;ao:dado urn recipiente dividido em dois setores; unidos poruma passagem, a existencia puramente te6rica de urna~a.relho, chamado demonio de Maxwell, deveria per_mItIr que as mo16culas gasosas mais velozes passassempara urn dos setores e as mais lentas permanecessem nooutro; dessa maneira, introduzir-se-ia urn principio deordem no sistema e seria possivel preyer uma diferen-cia<;aotermica; na realidade, 0 demonic de Maxwell naoexiste, e as mol6culas de gas, chocando-se desordenada-mente, nivelam suas respectivas velocidades criandopor assim dizer, uma situa<;ao "media", qu~ tende ~eqiliprobabilidade estatistica: 0 sistema e assim de en-tropia altissima e nao e passivel preyer 0 movimentoindividual de cada mol6cula.

(3) Norbert Wiener, Cibernetica, Milano, Bompiani, 1953; C.B. Shan-no~, W. Weaver, The mathematical theory of inforrtl4tion. Urbana, 1949;Coh,? <:.J'erry,On human communication, cit.; A. G. Smith, ed., Com-mUnlCatlOnand Culture (parte I). N. Y., Holt, Rinehart & Winston, 1966.

Ora, se todas as letras do alfabeto que podem serformadas com 0 teclado de uma maquina de escreverconstituissem um sistema de altissima entropia, teria-mos uma situa<;ao de informa<;ao maxima. Segundourn exemplo de Guilbaud, diriamos que, desde quenuma pagina datilografada posso preyer a existencia de25 linhas, cada uma de 60 espa<;os, e ja que 0 tecladoda maquina de escrever (contemplada no exemplo)possui 42 teclas - cada uma das quais pode produzir2 caracteres - e que, somando 0 espa<;o (que ternvalor de sinal), 0 teclado pode produzir 85 signos di-ferentes, eis que surge 0 problema: se 25 linhas vezes60 espa<;os tornam possiveis 1500 espa<;os, quantas se-qiiencias diferentes de 1500 espa<;os podem ser pro-duzidas escolhendo cada urn dos 85 signos disponiveisdo teclado?

Pode-se obter urn numero total de mensagens decomprimento L forneciveis por urn teclado de C signos,elevando C a potencia L. No nosso caso, sabemos quepoderiamos produzir 851500 mensagens possiveis. Tale a situa<;ao de eqiliprobabilidade existente na fonte;'as mensagens possiveis sac expressas por urn numerode 2895 algarismos.

Mas quantas escolhas binarias sac necessarias paraindividuar uma das mensagens possiveis? Urn nu.me-ro altissimo, cuja transmissao exigiria urn consideraveldispendio de tempo e de energias, tanto mais que cadamensagem possivel, como sabemos, se comp6e de 1500espa<;os e cada urn desses signos deve ser individuadopor escolhas binarias sucessivas entre os 85 sinais pre-vistos pelo teclado... A informa<;ao na fonte, comoliberdade de escolha, e consideriiv.el, mas a possibilida-de de transmitir essa informa<;ao passivel, individuandonela uma mensagem realizada, torna-se muito dificit4•

Aqui intervem a fun<;ao ordenadora do c6digo. 0que se obtem introduzindo urn c6digo? Limitam-se aspossibilidades de combina<;ao entre os elementos emjogo e 0 numero dos elementos que constituem 0 re-peit6rio. Introduz-se na situa<;ao de eqiliprobabilida-de da fonte urn sistema de probabilidades: algumascombina<;oes sac possiveis e outras menos. A informa-

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a um sistema de expectativas, e portanto muito maisprevisivel. Contudo, ainda que 0 numero de mensa-gens possiveis por lauda datilografada sempre sejabastante grande, 0 sistema de probabilidades introdu-zido pelo c6digo exclui que minha mensagem possaconsiderar seqtiencias de letras como "wx\Vxxsdewvxvxc"(que a lingua portuguesa nao admite - a nao ser nocaso de formula<;6es metalingtiisticas, como a que estaem exame); exclui que ap6s a sequencia dos simbo-los "ass" possa estar a letra "q", e deixe preyer queao inves surja uma das cinco vogais (de cuja aparigaopoderia depender depois, com uma probabilidade com-putavel com base no vocabulario, a palavra "assaz" ou"assim" ou "assumir" e assim por diante). A existen-cia do c6digo, embora permitindo combina<;6es de va-rios tipos, limita enormemente 0 numero das escolhaspossiveis.

Definiremos - para conduir - 0 c6digo comosendo 0 sistema que estabelece 1) um repert6rio de sim-bolos que se distinguem por oposiriio reciproca; 2) suasregras de combinariio; 3) e, eventualmente, a corres-pondencia termo a termo entre cada simbolo e um dadosignificado (sem que um c6digo deva, necessariamente,possuir juntas estas tres caracteristicas) 6.

gao da fonte diminui, a possibilidade de transmitir men-sagens aumenta.

.Sha~non5 define a informa9ao de uma mensagemque Imphca N escolhas entre h simbolos como

Ora, uma mensagem que deva ser selecionada entreum numero altissimo de simbolos, entre os quais saopossiveis urn numero astronomico de combinag6es, re-sultaria muito informativa, mas seria intransmissivelporque exigiria demasiadas escolhas binarias (e as es-colhas binarias custam porque podem ser impulsos ele-tricos, movimentos meca.nicos, ou mesmo simplesmen-te operacr6es mentais: e cada canal de transmissao so-mente permite a passagem de certo numero de tais es-colhas) . Portanto, para que a transmissao seja possi-vel,. para que se possaro formar mensagens, cumpre re-duzlr os valores de N e de h. :E: mais facil transmitiruma mensagem que deve fornecer-me informacr6es sb-bre. urn sistema de elementos cujas combina<;6es saoregldas por um sistema de possibilidades prefixadas.As alternativas sao menores, a comunicacrao mais facil.

o c6digo introduz, com seus criterios de ordemessas possibilidades de comunicacrao; a c6digo represen~ta um sistema de probabilidades sobreposto a eqilipro-babilidade do sistema inicial, para permitir domina-locomunicativamente. Em todo caso, nao e 0 valor es-tatistico "informacrao" que exige este elemento de or-dem, ea sua transmissibilidade.

Com a sobreposicrao do codigo, uma fonte de ahaentropia, como era 0 teclado da maquina de escrever,reduz suas possibilidades de escolha; no momenta emque eu, de posse do codigo da lingua portuguesa, co-mecro a escrever, a fonte possui uma entropia menor:em outros termos, do teclado nao poderao nascer 851500mensagens possiveis por pagina, mas urn numero muitomenor, regido por leis de probabilidade, que responde

(5). !Masa primeira formula~io desta lei estli em R. V. L. Harthley.TransmIssIOn of Information, em "Bell System Tech. J.". 1928. Veja-<letambem (alem de Cherry, cit.) Anatol Rapaport What is Information?em "ETC", 10, 1953 (atualmente em Communic~tion and Culture, cit.):

Tudo 0 que dissemos acima nos permite voltar aonosso modelo inicial.

Na represa poderiam verificar-se fenomenos de va-rios t~pos. A agua poderia alcan9ar infinitos niveis, comdiferen<;as infinitesimais. Se eu tivesse de comunicartodos os niveis possiveis, seria preciso usar urn reper-torio muito amplo de simbolos, e com efeito de nadame adiantaria saber se a agua aumentou ou diminuiuurn milimetro ou dois. Escolho entao situacr6es descon-tinuas, discretas, recortadas no continullm dos fatospossiveis, e e1ejo-as como traros pertinentes aos finsda comunica<;ao que me interessa. Estabelecido que meinteressa saber se a agua passa do nivel -2 ao nivel -1,o fato de que a agua esteja alguns centimetros ou algunsmilimetros acima de -2 nao me interessa. 0 niveldeixara de ser -2 Sbmente quando chegar a ser -1. 0

(6) Por exemplo, a maquina de nosso modelo exclui 0 ponto 3. Ossinais que recebe nao correspondem a urn significado (no maximo, cor-respondem somente para quem instaurou 0 c6digo).

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resto nao me diz respeit6, nao e pertinente. E possoentao elaborar um c6digo que, entre as numerosas com-bina~6es posslveis entre os quatro slmbolos ABC eD, considere somente algumas delas como as ~ai; pro-vaveis. Por exemplo:

em rela~ao as mensagens que pode gerar, constitui elepr6prio, embora de maneira reduzida, um sistema eqUi-provavel (que somente pode ser limitado pela emissaode uma mensagem unica). A mensagem unica, repre-sentando uma forma concreta, uma escolha de uma enao de outra seqUencia de slmbolos, constitui umaordem definitiva (adiante veremos ate que ponto) quesesobrep6e a (parcial) desordem do c6digo.

Diremos portanto que n~6es como a de inform a-~ao (oposta a mensagem), de desordem (oposta a or-dem), de eqiiiprobabilidade (oposta a sistema de pro-babilidades), sao todas no~6es relativaJ:. A fonte eentr6pica em rela~ao ao c6digo que limita seus ele-mentos pertinentes aos fins da comunica~ao, mas 0

cooigo possui uma entropia relativa em rela~ao asmensagens indefinidas que pode gerar.

Ordem e desordem silo conceitos relativos; somosordenados em rela<;Iioa uma desordem anterior e de-sordenados em rela~ao a uma ordem posterior, exata-mente como somos jovens em rela<;ao a nosso pai evelhos em rela<;ao a nosso filho, libertinos em rela<;aoa urn sistema de regras morais e moralistas em rela~aoa outro mais ductil.

A elementos AB =-2BC =-2 BCD

B desprovidosCD =-1 ACD

combina-de significado,ABC = 0 ABD

!tOes niioC com valorAC = + 1 AB-CD

puramente A-C-B-D previstasBD - +2D diferenciaI. - etc.AD = +3

, Nesse sentido, 0 aparelho destinatario pode ser ins-trUld~ de_modo ~ responder de maneira adequada asc~mbll~a~oes .l:'revIs~as,ea nao responder as combina-~oes nao prevIstas, mterpretando-as como ruldo. Nadaexdui, como havlamosdito, que as combina~6es naoprevistas. pos~am se~ utilizadas quando quisermos obteruma malOr dIferencIa<;aodos niveis, identificando assimoutros tra<;os pertinentes no c6digo.

Ora, cabe observar que, ja a esta altura 0 conceitode informa<;ao como possibilidade e liberdade de esco-lha na fonte cindiu-se em dois conceitos formalmenteiguais (trata-se de medida de liberdade'de escolha)mas denotativamente diferentes. De fato, temos um~informllfiio da fonte: esta (na ausencia de elementoshidrogrlificos e meteorol6gicos que me permitam adian-t~r previs~s) deve ser considerada como eqiiiprobabi-hda~e; .a agua pode encontrar-se em tooas as posi~6espossIveIs.

Essa informa~a~ da fonte 6 corrigida pelo c6digoque estabelece um SIstema de probabilidades. A de-sordem estatistica da fonte e substituida por uma ordemprobabiHstica.

Temos, porem, uma informariio do c6digo: de fa-t~, com base no c6digo, posso elaborar sete mensagensdlVersas, em situa<;aode eqiiiprobabilidade entre elas. 0c6digo introduziu uma ordem no interior do sistemaflsico e reduziu as possibilidades de informa<;ao, mas

Que sentido assumem esses conceitos, uma vezaplicados aquele tipoespecial de mensagem que e amensagem estetica? Considera-se comumente palavrapoetica aquela que, pondo numa rela~ao absolutamentenova som e conceito, sons e palavras entre si, unindofrases de maneira incomum, comunica, juntamente comurn certo significado, uma emo~ao inusitada; a tal· pon-to que a emo~ao surge ainda quando 0 significado naose faz imediatamente claro. Consideremos um amanteque deseje expressar 0 seguinte conceito e 0 expressesegundo todas as regras de prQbabilidade que 0 discur-so the imp6e: "As vezes, quando procuro me lembrarde alguns fatos que me aconteceram muito tempo atras,parece-me quase rever um curso de agua; a agua quecorria em tal curso era fria e llmpida. A lembran~adesse curso de agua impressiona-me de modo especial,pois junto dele ia sentar-se a mulher pela qual eu es-

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tava entao apaixonado, e pela qual ainda hoj-: estouapaixonado. Estou tao apaixonado por essa mulher que,por uma deforma~ao tipica dos apaixonados, sou leva-do a tomar em considera~ao somente a ela, unicamen-te a ela, entre todos os seres humanos do sexo femini-no existentes no mundo. Devo acrescentar, se me epermitida a expressao, que aquele curso d'agua, pelofato de estar associado em minha memoria a lembran-9a da mulher que amo (e devo dizer que essa mulhermuito bonita), agora gera em minha alma uma certa do·9ura; ora eu, por outro processo comum aos apaixona-dos, transfiro essa do¢ura que sinto para 0 curso d'aguadevido ao qual a sinto: portanto atribuo a d09ura aocurso d'agua, como se elafosse uma qualidade sua.Isso e 0 que eu queria dizer; espero ter sido bastanteclaro". Assim soaria a frase do nosso apaixonado seele, preocupado ern comunicar urn significado incon-testavel e compreensivel, respeitasse todas as leis daredundancia. Compreenderiamos 0 que ele diz, mastalvez,depois de algum tempo, esquecessemos os fatosnarrados. Entretanto, se 0 apaixonado se chama Fran-cesco Petrarca, passando por cima das regras de cons-tru9ao comum, usando translados audaciosos,eliminan-do passagens 16gicas, descurando ate mesmo de avisarque nos fala de urn fate rememorado e deixando-o per-ceber apenas atraves do uso do preterito perfeito, nosdira:

Chiare, fresche, e dolci acqueDove Ie belle membraPose colei che sola a me par donna7•

Assim fazendo, em nao mais de 16 palavras, consegueate mesmo nos dizer que de urn lado ele recorda e deoutro ainda ama. e 110S diz com quanta intensidadeama atraves do proprio movimento vivacissimo dessalembran9a que se exprime num grito, com a imediatezde uma visao presente. Jamais como aqui sentimos deperto a violencia e a d~ura de urn amor, a qualidadeangustiante de uma recorda9ao. Recebida esta comu-

(7) Ao pc! da letra os verSOs de Petrarca soariam assim:H Claras, frescas, e daces aguasOnde os formosos membrosPos aquela que sozinha a mim parece mulher:'

(N. do T.)

nica9ao capitalizamos uma enorme taxa de informal;aoacerca do amor de Petrarca e da essencia do amor emgeral. Entre os dois discursos apresentados nao M ne-nhuma diferenl;a de significado; porta~to, n~ .s~~ndocaso, a originalidade da organiza9ao,.~ ImprevIslblhdadeem relariio a um sistema de probablhdades, a desorga-nizal;ao nele introduzida, foi 0 unico elemento que de-terminou 0 acrescimo de informa9ao.

E aqui respondemos antecipadamente ~ uma .f~c~lobje9ao: nao e unicamente 0 aumento de Impr~vIslbl-lidade que determina 0 fascinio do discurso poetlco; seassim fosse, muito mais poeticos deveriam ser estes ver-sos de Burchiello:

Zanzaverata di peducci frittiE belletti in brodetto senza agrestoDisputavancon .ira nel DigestoOve parla de' broccoli sconfitti 8.

Aqui desejamos tao-soment~ afirmar que u"! certomodo de usar a linguagem insohtamente ~e.termmou 0resultado poetico; e que 0 usa das probablhdad~s con-sideradas pelo sistema lingliistico nao nos term J?ro-porcionado nada. Isto ao. men?s, desde que a novlda-de estivesse mais nas COlsas dlt~ do qu.e nas expre~-s6es - ou num modo de reVIver sentlmentos .habl-tuais: e nesse sentido urn jomal falado que anuncm, deacordo com todas as regras da redunda~cia, 0 lan9a-mento de uma bomba atomic a sobre 0 RIO de JanelfOseria repleto de informal;ao. Mas este discurs? nosleva para alem do exame das estruturas ,d.e urn ~lstemalingliistico (e tambem do disc.urso estetlco : ~mal deque. a estetica deve realmente mteressar-se mals. pelosmodos de dizer do que pelo que e dito). E malS, en-quanta os versos do Petrarca veiculam. in~~rmal;ao par~quem quer que saiba colher seu slgmflcado, e atepara 0 proprio Petrarca, 0 jomal fa~a~o sobr.e 0 lan-l;amento atomico nada diria, ao contrarIO, ao pIloto queefetuou 0 lan9amento, e ja nao diria mais nada a quemo ouvisse pela segunda vez. Estamos, portanto, exa-

(8) Domenico di Giovanni, dito "II Burchiello" (l~-l~?). ba.rbeiroe eta jocoso f1orentino; os versos, ao pc! da letra, d.lzem: G~nglbradade ~ezinhos fritos / E cosmc!ticos em calda. sem a~ddl~~a(~ DJsp'¥')vamcom ira no Digesto / Onde fala dos br6colis venCl os. . 0 .

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minando a possibilidade de veicular uma informardo,que nao seja "significado" habitual, atraves de un'l em-prego das estruturas convencionais da linguagem quese oponha as leis de probabilidades que a regulamentaminternamente.

Conseqtientemente, em tal caso, a informa<;:aoesta-ria associada nao a ordem mas a desordem, pelo me-nos a urn certo tipo niio-ordem-habitual-e-previsivel.Ja dissemos que a medida positiva de uma tal infor-ma<;:ao(enquanto diferenciada do significado) e a en-tropia. Mas se a entropia e a desordem em seu maxi-mo grau e - em seu seio - a coexistencia de todas asprobabilidades e de nenhuma, entao a informa<;:aodadapor uma mensagem organizada intencionalmente (men-sagem poetica ou comum) apresentar-se-a apenas comouma forma muito particular de desordem: uma desor-dem que parece desordem enquanto parte de uma or-dem preexistente.

Voltemos ao nosso modelo inicial e suponhamosque 0 destinatario da mensagem proveniente da represanao seja mais uma maquina, porem um ser humano.

Instruido segundo 0 c6digo, ele sabe que ABC cor-responde a "ponto zero" e que outros sinais corres-pendem a outros niveis de minimo e maximo perigo.

Supenhamos agora que 0 homem receba 0 sinalABC. Nesse caso, ele compreendera que a agua al-can<;:ou0 nivel 0 (perigo), mas nao se limitara a isso.Poderia assustar-se, por exemplo. 0 susto nao e ca-talogavel entre as rea<;:6esemotivas independentes dosfenomenos de comunica<;:ao,porque se baseia nurn fe-nameno de comunica<;:ao. Osimbolo ABC, evento pu-ramente fisico, de fato, alem de constituir para ele 0significante do significado denotativo "nivel 0", cono-ta-Ihe tamb6m "perigo". 0 que nao acontecia com amaquina: a maquina recebia ABC e, conforme as ins-tru<;:6es,reagia do modo devido; recebia uma informa-<;:ao,mas nao urn significado; a maquina nao sabia 0

que significava ABC, nao compreendia nem "nivel 0"nem "perigo". Recebia tantos bit computaveis pelo en-

genheiro encarregado de cuidar das possibilidades detransmissao ao longo do canal, e operava de acordo.

Ao nivel da maquina encontnivamo-no's ainda nouniverso da cibemetica, que esta interessada no sinal.Introduzindo 0 homem, passamos para 0 universo dosentido. Abriu-se urn processo de significariio, porqueo sinal nao e mais uma serie de unidades discretascomputaveis em bit de informa<;:ao,mas uma forma sig-nificante que 0 destinatario humano devera encher designificado. Passamos de uma teoria matematica dainforma<;:aopara uma teoria geral da comunica<;:ao,ousemiologia.

A essa altura, porem, e oportuno estabelecer ascondi<;:6esde uso do termo "significado" - ao menosno ambito das paginas que iraQ seguir9•

Para faze-Io, e preciso, antes de mais nada, livrarocampo da nociva identifica<;:aode significado e refe-rente.

Recorreremos, para tanto, ao conhecido triangulode Ogden e Richards10 que pode ser formulado da ~e-guinte maneira:

Por simbolo podemos entender, por exemplo, umsigna da lingua verbal, como a palavra "cao". Bste sim-

(9) Para uma inicia!;ao preliminar e uma ampla bib~iografia sobre ?assunto, veja-se: Adam Schaff, Imroduzlone _aI/a s~man/lCa, R~m_a,Edl~tori Riuniti 1965- Pierre Guiraud, La seman/lea, MIlano, Bomplam, 1966,Tullio de Mauro: In/roduzlone aI/a seman/I,:a, Bati, Laterza, 1965; ~te-phen Ullmann, La seman/lea, Bologna, ¥,:,bno, 1966; W. V. O. Qume~l/ problema del slgni/lca/o, Roma, Ubaldml, 1966; L. Antal, Probleml dlsigni/lca/o. Milano, Silva, 1967,

(10) C. K. Ogden, I. A. Richards, l/ signilica/o del signllica/o, Mi-lano, II Saggiator", 1966,

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bol~ tern uma rela~ao sem motivo e nao natural com~qu~lo que indica, isto e, 0 cao propriamente dito (emmgles, no extremo esquerdo do triangulo, teriamos"dog" 1 d" - ". . em ugar e cao, sem que a rela~ao se mo-dlfique) . Mas a media~ao entre simbolo e 0 referen-t~ e dada pela "referencia", que nada mais e - comodl~ Ullmannll

- que "a informa~ao que 0 nome trans-~lte ao ouvinte". Essa defini~ao pode bastar proviso-name?te para indicar algo que, para alguns, sera urnc?ncelto, para. outros uma imagem mental, para outrosamda a cond/riio de uso do simbolo em questao etc.De t?do modo, esta claro que, enquanto a rela~ao en-tre sl~bolo e refer~nt~ e discutivel, e de qualquer for-ma nao natural e mdlreta, a rela~ao que se estabeleceentr~ simbolo e referencia e imediata; reclp,roca e re-verslvel; quem usa a palavra "cao" pens a no signifi-ca~o ."~ao" e quem a ouve e conduzido mentalmentea mdlVlduar a mesma ordem de fenomenos definivelcomo "cao"; assim, quem quiser indicar urn dio em-pregara 0 simbolo "cao"., Sao infinitas as discuss6es sabre as rela~6es entre

slmbolo, referente e referencia. Aqui assumiremos ape-nas que, n~ma perspectiva semiologica, 0 problema doreferente nao tem qualquer pertinencia. As criticas cor-rentes a no~ao de referente evidenciam que urn simbo-10 I?ao pode ser verificado com base no controle con-d~Zldo sobre 0 referente; podem existir simbolos que.t~m ~~a referencia e nao tern urn referente (como "uni-cO~~lO, _que s.e refere a urn animal fantastico que, to-davIa, nao eXlste; 0 que nao impede a quem ouve apalavra "unicornio" saber perfeitamente do que se estafalando); M simbolos diferentes com significado dife-rente que dizem respeito ao mesmo referente: exem-plo celebre e 0 que concerne a duas entidades astrono..micas conhecidas pelos antigos, a "estrela da tarde" ea "estrela da manha", cujos significados san bastantediferentes ao passo que na realidade 0 referente, comoo sabe a astronomia moderna, e urn so; e assim duasexpress6es tais como "minha sogra" e "a mae de mi-nha esposa" dizem respeito a urn mesmo referentemas possuem significados diferentes e podem ser usa'

. (11) Vej~-se ~odo 0 cap!t':!lo 3 da obra citada, pags. 90-130. Em es-pecial foram dlscutldas as pos190es de Bloomfield (Language,'N. Y., 1933).

dos' em contextos diferentes para indicar situa~6es afe-tivas opostas. Em alguns sistemas semanticos indica--se como derwtariio de urn simbolo a classe das coisasreais a qual se estende 0 uso do simbolo ("cao" de-nota a classe de todos os caes reais), e como conota-riio 0 conjunto das propriedades que devem ser atri-buidas ao conceito indicado pelo simbolo (entender-se--ao como conota~6es de "cao" aquelas propriedadeszoologicas mediante as quais a ciencia distingue 0 caode outros mamiferos de quatro patas). Nesse sentido,a denota~ao identifica-se com a extensionalidade e co-nota~ao com a intensionalidade do conceito. Em todocaso, nas paginas seguintes niio usaremos "denota~ao"e "conota~ao" nesta ace~ao.

A presen~a do referente, sua ausencia ou sua ine-xistencia, niio influem rw estudo de um simbolo en'"quanta usado em determinada sociedade em relariio adeterminados c6digos. Nao cabe a semiologia saber seo unicornio existe ou nao (pertence a zoologia e a umahistoria de cultura que deseje esclarecer 0 papel doimaginario na civiliza~ao de uma epoca): ao pass9que e import ante saber como, em determinado contex-to, a forma significante "unicornio" recebe determina-do significado com base num sistema de conven~6eslingi.ilsticas; e quais associa~6es mentais, baseadas emhabitos culturais adquiridos, a palavra "unicornio" pro-voca em determinados destinatarios da mensagem.

Nesse sentido, portanto, a semiologia consideraapenas 0 lado esquerdo do triangulo de Ogden-Richards.So que 0 considera muito a fundo, conscia de que aolongo daquele lado esquerdo se verificam numerososfenomenos de significa~ao. Por exemplo, entre 0 sig-nificado e 0 simbolo interp6em-se rela~6es orwmasio-16gicas (conferem-se determinados nomes a determina-dos significados), ao passo que entre 0 simbolo e 0significado interp6em-se rela~6es semasiol6gicas' (de-terminados simbolos designam determinados significa-dos) . E ainda - como veremos nas paginas seguintes_ a rela~ao entre urn simbolo e seus significados podemudar, crescer, deformar-se: 0 simbolo permanece cons-tante e 0 significado torna-se mais rico ou mais pobre.Este processo dinamico continuo sera chamado "senti-do". E assim usaremos esses termos, definidos de uma

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vez por todas, ainda que, para alguns autores, elesdevam ser empregados de maneira opostal2•

Mas, para usarmos os termos com maior proprie-dade, valer-nos-emos de uma serie de distin~6es intro-duzidas pela lingiiistica saussuriana e que nos parecemmais apropriadas a implanta~ao de uma pesquisa se-miol6gica (e com efeito, os capftulos seguintes s6 vi-sam a verificar a utilizabilidade dessas categorias paraurn enquadramento que abranja igualmente certos fe-nomenos como os visuais).

De Saussure prop6e uma no~ao de signo lingtifs-tico como sendo urn objeto que apresenta uma estreitaunidade (como as duas faces de uma folha de papel) designificante e significado: "0 signo lingtifstico nao uneuma coisa e urn nome, mas urn conceito e uma imagemacustica" 13. 0 significado nao e a coisa (0 significado"cao" nao e 0 objeto real cao estudado pela zoologia);e 0 significante nao e a forma fOnicado nome (a emis-sac vocal "dio", estudada pela fonetica e que podeser registrada por aparelhos eletromagneticos). 0 sig-nificante e a imagem da forma fOnica, ao passo que 0significado e uma imagem mental da coisa, aquela quepode ter rela~ao onomasiol6gica com outros significa-dos (como arbor, tree, baum, arbre, arvore etc.).

o liame entre significante e significado e arbitra-rio,mas na medida em que e impasto pela lingua (que,veremos, e urn c6digo) 0 significado torna-se necessa-rio para quem fala. Alias, e justamente essa imposi-~ao que 0 c6digo exerce sobre quem fala, que nos per-mite nao entender necessariamente 0 significado comourn conceito, uma imagem mental (perigosa concessao"mentalista" que valeu a semiologia saussuriana crfti-cas de varios generos); e, na medida em que maisadiante definiremos a natureza dos c6digos, podemosfugir tambem da identifica~ao entre 0 significado e 0

uso corrente que se faz de urn significante (definicraomais empfricado que a anterior, que permite fugir da. (12) UI~mann,por exemplo, propiie Urn uso oposto colocando 0 "sen-

bdo" no ver.tice do triingu]o eo "significado", comparado ao "meaning".ao lon.go do lado .e~querdo, como processo continuo de signiflcal;ao quese c:nnq,:,ece. Decldlmos ater-nos, ao lnves, ao usa mais comum entre ossenuologlstas franceses.

(13) Ferdln!'J1d de Saussure, Cours de lIngulstlque genera/e, Paris,Payot, 1915 (0 bvro, como se sabe, reconstitui as aulas minlstradas de1906 a 1911), trad. ita!. sob supcrvlsao de T. de Mauro, Bari, Later-za, 1967.

hipostatiza~ao de urn significado como entidade platO-nica, mas que se presta a outras obje~5es). Ao contra-rio, 0 significado deve aparecer como aquilo que 0 co-digo coloca numa reiafiio semasiologica com 0 signifi-cante. Em outras palavras, 0 c6digo estabelece queurn dado significante denota urn determinado significa-do. Se depois tal significado se realiza na mente dequem fala sob forma de conceito, ou na s~cieda?e sobforma de media dos usos concretos, tudo IS so dlZ res-peito a disciplinas como a psicologi'l ou a estatfstica.Paradoxalmente, no momenta em que se disp6e a de-finir 0 significado, a semiologia se arrisca a deixar deser semiologia, para tornar-se 16gica,psicologia ou me-taffsica. Em certo sentido, 0 fundador da ciencia dossignos; Charles Sanders Peirce, tentava fugir deste ris-co, introduzindo a no~ao de "interpretante", sobre aqual vale a pena demorar-nosI4•

Numa forma. que lembra 0 triangulo richardsiano,Peirce entendia 0 signo ("alguma coisa que esta paraalguem em lugar de outra sob algum aspecto ou ca-pacidade") como uma estrutura triadica que tern emsua base 0 sfmbolo ou representamen, posta em rela-~ao com urn objeto que representa; no vertice do tri-angulo 0 signo tern 0 interpretante, que muitos sac ~e-vados a identificar com 0 significado ou a referencIa.De qualquer maneira, a interpretante niio e 0 interr:re-te, isto e, quem recebe 0 signa (mesmo que em Pe1rc~haja uma confusao deste genero). 0 interpretante eaquilo que garante a validade do signo mesrno na au-sencia do interprete.

Poderia ser entendido como o· significado porque edefinido como "aquilo que 0 signo produz na quasemente que e 0 interprete"; mas tambem foi visto comoa defini~ao do representamen (e portanto, a conota~ao--inten~ao). Todavia, a hip6tese que parece mais fe-cunda e a de ver 0 interpretante como uma outra re-presenta~iio que se refere ao mesmo objeto. Em outrostermos, para estabelecer 0 que seja 0 interpretante de

(14) Os textos semi6ticos de Charles Sanders Peirce estao em Col-lected Papers of C. S. P., Harvard Un. Press, 19!11 1936. Pela difiwl-dade em reconstruir 0 pensamento de Peirce, referimo-nos, em nossa ex-posil;ao, a Nynfa Bosco, La filosofia pragmatica di Ch. S. Peirc~. To-rino, Edizioni di "Filosofia", 1959; veja-se tambem Ogden e Richards,obra cit., App. D. e M. Bense, Aesthetica, Baden Baden, Agis "y'C?rlag,1965 (onde porem a nOl;30de "interpretante" e sobreposta a de mter-prete").

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urn signo,e preciso designa-Io mediante outro signo,que por sua vez tern outro interpretante desigmivel comoutro sinal e assim por diante. Abrir-se-ia, a esta al-tura, urn processo de semiose ilimitada que, embora pa-radoxal, e a 6.nica garantia para 0, estabelecimento deurn sistema semiologico capaz de justificar-se somentepor seus pr6prios meios. A linguagem seria entao umsistema que se esclarece por si mesmo, atraves de suces-sivos sistemas de conven,ri5esque se explicam reClproca-mente.

Pareceria facil sair deste clrculo, pensando que, seeu quiser indicar 0 significado do significante "cao",basta apontar 0 dedo para urn dio qualquer. Mas, aparte 0 fato de que 0 significado de "cao" pode sermuito mais rico, e mudar de cultura para cultura (urnhindu apontaria, como nos, uma vaca de verdade paraestabelecer 0 significado do significante "vaca", e ape-sar disso 0 significado de "vaca" e para ele infinitamen-te mais complexo do que para nos), diante de signi-ficantes como "beleza", "unicornio", "todavia" ou"Deus" nao podemos apontar para nada. 0 esclareci-mento do significado de tais significantes, excluido 0recurso as ideias platonicas, as imagens mentais e amedia dos usos, s6 advirci do recurso a outros signos dalingua usada, que 0 traduzam, que !he definam as con-di<;oesde emprego, em suma, que recorram ao sistemada lingua para explicarem urn seu elemento, ao codigopara esclarecerem 0 c6digo. Nesse sentido, sendo a lin-guagem que fala sabre a linguagem uma metalingua-gem, a semiologia nos levaria tao somente a uma hie-rarquia de metalinguagens. Certas teorias rigorosa-mente estruturalistas limitam-se a definir urn significadoem termo.s de sua diferen<;a e oposi<;aocom significadosvizinhos no ambito da mesma lingua, ou em compara-<;ao com significados de outras linguas. De qualquerforma, fique claro que a semiologia nao estuda osprocessos mentais do significar, mas apenas as conven-<;oescomunicativas como fenomeno de cultura (no sen-tido antropologico do termo). Nesse sentido, nao es-gota 0 problema da comunica<;ao, limitando-se a indi-vidua-Io onde e reconhecivel e descritivel.

Com base num c6digo dado, urn significante de-nota portanto urn significado. A rela<;ao de denota<;ao

e uma rela<;ao direta e univoca, dgidamente fixada pelocodigo, no sentido em que, no .exemplo da repres~,ABC denotava "nivel 0". Mas Vlmos que 0 nosso hl-patetico destinatario humano da mensagem, tendo rece-bido ABC, tambem 0 entende como "perigo". Di:~~osque nesse caso 0 significante, alem de denotar mvel0", tambem conota "perigo".

A rela<;ao de conota<;ao coloca-se quando 0 parfarmado por significante e .significado ?eI!~tado se tor-nam, juntos, 0 significante de urn sIgnIfIcado acres- ,centado 15.

Por exemplo, 0 termo "cao" denota certo tipo oeanimal (0 interpretante poderia ser a imagem de urncao a defini<;ao "animal quadr6.pede que ladra para a

, b'" t "lua a noite" etc.)" mas tam em conot~ mau enor.Porem 0 significado "cao" nao se. encontr~ no ~esmotipo de rela<;ao, seja com 0 concelto de cao, seJa como de mau tenor. Indica-se como "cao" urn mau tenorporque se associa 0 conceito de cantor ~nabil nao auma imagem ac6.stica, mas a outro concelto, 0 d~ urnanimal de voz desgraciosa. Portanto, a conota<;ao seestabelece nao com base no simples significante, mas nosignificante e no significado deno~ativo unidos. Poderadepois ocorrer que essa conota<;ao gere uma segunda,em rela<;ao a qual 0 significado ja conotado se tomesignificante do novo significado. Por exempl~, num.aexpressao como: "em seu dueto c0,.?1"ao~osl<;ao 0 ml-nistra X comportou-se como urn cao , 0 Jogo das me-tciforas e das similitudes ("dueto" e metcifora, "comourn cao" e similitude) baseia-se em mecanismos. co?-~-tativos; decomposta em seuscompon~ntes .se~ologl-cos, a expressao nos da uma denota<;ao pnmana, daqual gera uma primeira conota<;ao (cao = mau tenor)da qual gera uma segunda conota<;ao (m~u tenor =mau politico), segundo urn esquema deste tlpo:

(15) Veja-se especialmente Barthes, Elementi di Semiologia, Torino,1966, cap. IV. 0 problema e retomado e .aprofundado por Roland B'!.'"-thes em Systeme de la Mode, Paris, SeUlI, 1?67. Para o~tra acep!iaode conota93.0 (entendida mais como aura emotiva que se. Cr13; ~m tomado termo por evoca!iao individual), v. Charles Bally, LmgUlstlca gene-rale, Mil~no, Saggiatore, 1963 (especialmente a Se!iao .Segunda) ... ,M!'s,como bem ressalva Cesare Segre .na Nota intr'!du!.t;v'!. a lingulsticade Bally e Iingillstica da parole, alem de lingUlsllca da. langue,acentua os valores afetivos que se est:,belecem ~o. e.xercfc~o co~-creto, processua! da linguagem, e port.anta e....leva~a a mdlvld!1ar 0 moY-l-mento gerador de significados onde amd,,: n~o ~X1ste.u'3'. c6d,~go qu~ fl~:suas correspondencias, mas 0 processo hnguf~tIco slnt~tlco" aprmoma-da nebulosa primitiva, isto e, do pensamento nao comumcado (pag. 171).

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"carrefour lingliistico"16pelo qual a palavra vaca lei-teira pode trazer-me a mente as id6ias de pasto,. deleite de trabalho, de serenidade agreste, de mugldo;e a ~m hindu as ideias de ritualidade, religiosidade, res-peito, e assim por diante. Assim, n?sso d~sti~~tarioda mensagem ABC pode ligar a esse Slg~O.(Slglllflca~temais significado) as id6ias de morte Imme~te, ~~~nada aldeia no vale, casas destruidas, alarma, msuflclen-cia dos sistemas de controle e de interven~ao, conformea isso 0 predisponha sua experiencia anteri~r. Na .me-dida em que tal experiencia, que se traduzlU em slste-nas de expectativas, e co-participada por outros, a c~-nota~ao e prevista por ~m 16xicoc~notativo (quer dl-zer que, convencionalmente, proverbtalmente, A~C po-de conotar alarma ou casas destruidas pela aluVtao).

o significante apresenta-se entiio cada vez mai~ co-mo forma geradora de sentido, que se enche de a,c~mu-los de denot~{jes e conot~{jes gr~as a uma serle .dec6digos e de texicos que estabelecem suas corresponden-cias com grupos de signijicados.

, Neste sentido, a mensagem como fo~ma sign~ican-te, que devia constituir uma .redu~ao ~a mforma<;:ao(e,como sinal fisico, a constitUl) - pOlSrepres~~ta u,maescolha de alguns e nao de outros ent:e os Va;l<;>SSlm-bolos eqi.iiprovaveis (embora em rela~ao ao COdlgO~o-mo sistema de probabilidades) - de fato se propoe,assim como sai do canal e e traduzida. pel? .receptornuma forma fisica reconhedvel pelo ~es:lI!-atano,com~fonte de mensagens-significados posSlvels. Ela possU!entao a mesma caracteristica (nao.~ mesm? grau) dedesordem, de ambigi.iidade, de eqUlpr.obabllidade queeram pr6prias da fonte. E raesse sentld<~podem?s fa-lar de informar;ilo, como valor que cons~ste na rlquezade escolhas possiveis, individutivel ao mve! da r:zensa-gem-significante; informa~ao que e r~uzlda som~ntequando a mensagem-significante, refenda a determma-dos lexicos, se torna mensagem-signif~cad?,.e portantoescolha definitiva efetuada pelo destlnatarlO.

Essa iilforma~ao da mensagem nao. 6 do m~sm?tipo de informa~ao da fonte: aquela era mform~ao fl-

(16) Sao as le?rias de Trier, Malor", Sperber elc., examinadas porGuiraud, La semantlCQ, Clt.

Ora, todos quantos usam 0 cOdigoda lingua portu-guesa sabem 0 que denota a palavra "cao". Nao eigualmente certo que todos saibam que conota "mautenor", e com freqiiencia essa conota<;:aoe evidenciadasomente pelo contexto do enunciado. E e ainda maisfacH que certos distinatarios nao captem a semelhan-<;:aentre tenor e homem politico, evidenciada pela pa-lavra "dueto", e percam esta segunda conota<;:ao.Dire-mos pois que, enquanto os significados denotativos siloestabelecidos pelo c6digo, os significados conotativossilo estabelecidos por subc6digos ou "lexicos" espedfi-cos, comuns a certos grupos de falantes e nao necessa-riamente a todos; ate 0 limite extremo em que, numdiscurso poetico, uma conota<;:aoe instituida pela pri-meira vez (uma metafora arrojada, uma metonimia inu-sitada) e, Hesse caso, 0 destinatario deve inferir docontexto 0 usa conotativo proposto (salvo se depols aexpressao tiver sorte e conseguir integrar aquela mo-dalidade de emprego nas normas de uso nabitual, eportanto num lexico conotativo aceito por um grupo defalantes) .

No caso do nosso homem que recebe a mensagemABC, a correspondencia entre "nivel 0" (significadodenotado) e "perigo" (significado conotado) e estabe-lecida por um sistema de conven<;:5estao forte a pontode identificar-se quase com 0 c6digo denotativo. Masao receber ABC, 0 destinatario hl1mano pode ligar (l

significado denotativo a cutros significados coligados:pode abrir-se para ele aquilo que e variadamente defi-nido como "campo semantico", "constela<;:lioassocia-tiva", "campo associativo" ou "campo nacional" ou

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sica, computavel quantitativamente, e esta e inforrruJfiiosemiologica, nao computavel quantitativamente, mas de-finivel atraves da serie de significados que pode gemr,uma vez posta em contato com c6digos. Aquela eraeqiliprobabilidade estatistica, esta e urn feixe de proba-bilidades bastante amplo mas nao indeterminado. Aque-la era reduzida pelo c6digo, como correc;ao em termosde probabilidade (e apesar disto, sempre abertos a sai-das possiveis); esta e reduzida definitivamente pela ela-borac;ao, pela escolha de uma mensagem-significado.

Mas ambas saDdefiniveis como estado de desordemem reltlfiio a uma ordem subsequente; como sitUtlfiioambigua em reltlfiio a uma enformtlfiio ulterior; comopossibilidade de escolhas alternativas, escolha a ser fei-ta, em reltlfiio a um sistema de escolhas efetuadas quesera sua consequencia.

Vma vez estabelecido que a informac;ao semiol6gicanao possui 0 mesmo grau da informac;ao fisica, naosera, contudo, nem inoportuno nem ilegitimo denomi-narmos ambas "informac;ao", constituindo ambas urnestado de liberdade em relac;ao a determinac;oes ulte-riores17•

Quais os grausda informac;ao semiologica, e so-bre 0 que informam?

Voltemos ao nosso modelo e demos alguns exem-plos:

1) 0 destinatario que recebe a mensa gem da fonte, emlugar de urn dos sinais previsiveis, compreendidos na faixa deprobabilidades do c6digo (veja-se quadro a pag. 106) - istoe, sinais como ABC, AB ou BD - recebe urn sinal que, deacordo com 0 c6digo, nao deveria significar nada: suponha-mos "A - A - B - A - A - C".

Se 0 destinatario for uma maquina, nada acontece; elanao recebeu instru<r6es a prop6sito e considera a mensa gemcomo ruido.

Se a fonte for uma maquina, 0 destinatario humano estaautorizado a pensar em ruido. Mas se a fonte for um serhumano remetente, 0 destinatario, supondo uma intenl<ao naformulal<ao· da mensa gem, interroga-se sobre sua natureza:; Aforma da mensagem parece-Ihe ambigua. Ate que ponto estaambigiiidade nao Ihe pareceni claramente ruido, levando-o,assim, a aprofundar a interrogal<ao da mensagem? Essa per-gunta abre a problematica da mensagem ambigua e da men-sagem de funl<ao estetica.

(17) Estas explical;Oes pretendem responder tamb6m as objel;oes (fei-tas a primeira edil;ao de Obra Aberta, e a nOl;ao de "informal;ao" ne1aproposta) de Emilio Garroni, em La crisl semantica delle arti, Roma,Offieina, 1964, pags. 233-262.

2) A mensagem ambigua indica ao destinatario que erapossivel usar 0 c6digo de modo inusitado .. poe.-se, assim',:mquestiio 0 c6digo. Tambem este ponto se hga a problematlcada mensagem estetica.

Com 0 que, reconduzimos 0 Iongo discu~so sobrea teoria da informac;ao· ao problema que nos mteressa:e todavia devemos perguntar-nos se ainda e legitim?aplicar tais conceitos, a guisa de instrumentos de pesqUI-sa, as questoes de esteti~a. Ao ~e.n0s pel~. fato de .te;,ficado claro que 0 senhdo estatlstlco de mformac;aoe muito mais amplo do que 0 comunicativo.

Estatisticamente, tenho informac;3.o quandoaquem de toda ordem - disponho da presenc;a simul-tanea de todas as probabilidades ao nivel da fonte deinformariio.

Ao contrario, comunicativamente, tenho informa-\=aoquando: I) no seio da desordem original r~~ortei econstitui uma ordem como sistema de probabI1ldades,isto e, urn codigo; 2) no seio deste sistema, sem vol-tar aquem (antes dele), introduzo - atraves da elabo-ra\=ao de uma mensagem ambigua em relac;ao as regrasdo codigo - elementos de desordem, que, numa ten-saD dialetica, se contrap6em a ordem de fundo (a men-sagem poe em crise 0 codigo).

sera portanto preciso examinar como se apresen-ta 0 emprego desta desordem visada em face da comu-nicac;ao de urn discurso poetico, levando em conta queessa desordem nao pode mais ser identificada com anoc;ao estatistica de entropia a n~o ser em sentido tra;:s-lato: a desordem que comunica e desordem-em-rela\=ao--a-uma -ordem-anterior.

II. Discurso poetico e informariio

o exemplo de Petrarca enquadrava-se pa~ti~.ular-mente neste contexto: sugeriu-nos ao menos a Idem deque, na arte, urn dos elementos de peculiaridade do dis-curso estetico e fornecido pela quebra da ordem rroba-biHstica da linguagem, ordem apta a veicular significa-dos normais, justamente para aumentar 0 numero .designificados possiveis. Esse tipo de informac;ao e tiplCOde toda mensagem estetica e coincide com aquela aber-

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A una proda ove sera era perennedi anziane selve assorte, scesee s'inoltroe 10 richiamo runwre di pennech'erasi sciolto dallo stridulobatticuore dell'acqua torrida ... 18.

E se a terminologia tecnica da teoria da informa-<;ao nos desagrada, podemos dizer que 0 que entesou-ramos naoe "informa<;ao", mas "significado poetico,significado fantastico, sentido profunda da palavra poe-tica"; distinguindo-o .do significado comum teriamosafinal feito a mesma coisa; e se ainda aqui falarmosem informa<;ao para indicar a riqueza dos sentidos es-teticos de uma mensagem, isso visara a real<;ar as ana-logias que nos interessam 19.

Lembremos mais uma vez - para evitarmos equi-vocos - que, posta a equa<;ao "informa<;ao = opostodo significado", essa equa<;ao nao deve ter fun<;aoaxiol6gica e nao deve intervircomo parametro dejuizo: pois nesse caso, como ja vimos, os versos deBurchiello seriam mais belos do que os de Petrarca, equalquer cadaver delic!oso surrealista (qualquer cravodesagradavel de Constantinopla) teria mais valor doque os versos de Ungaretti. 0 conceito de informa-<;aoajuda a compreender uma dire<;ao na qual se moveo discurso estetico, e na qual intervem sucessivamenteoutros fatores organizativos: isto e, cada ruptura daorganiza<;ao banal pressup6e urn novo tipo de organi-za<;ao, que e desordem em relafiio it organizQfiio ante-rior, mas e ordem em reillfiio a parametros adotadosno interior do novo discurso. Todavia, devemos reco-nhecer que, enquanto a arte classica se realizava con-trariando a ordem convencional dentro de limites bemdefinidos, a arte contemporanea manifesta, dentre suascaracteristicas essenciais, a de colocar contmuamenteuma ordem altamente "improvavel" em rela<;ao a or-dem da qual se parte. Em outras palavras, enquanto aarte classica introduzia figuras originais no interior de

tura basica de toda obra de arte, considerada no ca-pitulo anterior. .

Passemos agora a considerar exemplos de uma artemoderna em que se pretenda, voluntariamente, acres-cer 0 significado comumente entendido.

Segundo as leis da redundancia, se pronuncio 0 ar-tigo "0", a possibilidade de que a palavra seguinte sejaurn pronome ou urn nome e altissima; e se digo "noca~o", e altissima a probabilidade de que a palavra se-gumte seja "de", e nao "elefante". Isto no discursocomum, e e born que assim seja. Weaver, que da exem-plos deste genero, conclui dizendo que, por outro lado,e baixissima a probabilidade de uma frase como' "emConstantinopla pescando urn cravo desagradavel"; isto,naturalmente, segundo as leis estatisticas que regem aHngua comum; mas e impressionante como uma frasedeste genero' se parece com urn exemplo de escritaautomatica surrealista.

Leiamos agora L'Isola (A Ilha), de Ungaretti:

f: desnecessario apontar ao leitor, uma a uma, ascontraven<;6es as leis de probabilidade, tipicas da Hn-gua italiana, presentes nesses :poucos versos. E e igual-mente desnecessacio iniciar uma longa discussao criti-ca para demonstrar-Ihe que ao ler esta poesia - ab-solutamente desprovida de "significado" na acep<;ao co-~um do termo - recebo uma massa vertiginosa demforma<;ao acerca dessa ilha, mais ainda, cada vez quevolto a ler a poesia aprendo algo mais s()bre ela; amensagem pareceproliferar a cada leitura, abrir-se paraco.ntinuas perspectivas ~ e era justamente 0 que de-.seJava 0 poeta ao escrever seus versos e 0 que procura-va no leitor ao levar em conta todas as associa<;6esquea aproxima<;ao de duas palavras dessuetas podiasuscitar.

(18) "A uma praia onde tarde era perene / de aneiis selvas absor-tas,. desceu / e adentrou-se / e despertou-o rumor de pen as / que sehavla desatado da estridula / palpita~io da agua t6rrida ... ". (N. do T.)

(19) ~ 0 problema levantado pelos formalistas russos, que nio 0pensaram, contudo, em termos de informa~ao, ao teorizarem 0 efeito de es-tranhamento (prii!m ostrannenija). E espantoso pensar que 0 artigo deChklovsky, Iskusstvo. kak priem (A arte como artificio) - que e de1917 - antecipasse todas as possiveis aplica~6es estt,ticas de uma teoriada informa~ao, que ainda nao existia. 0 estranhamento era para Chklovskyurn desviar da norma, urn agredir 0 leiter com urn artiffeio contrario aseus sistemas de expectativas e capaz de fixar sua aten~ao sobre 0 ele-mento poetico que Ihe era proposto. Ele analisa certas· solu~6es estilis-ticas de Tolstoi, onde '? autor finge nao reconhecer certos objetos e osdescreve como se os visse pela primeira vez. A mesma preocup~io estapresente na analise que Chklovsky faz de Tristram Shandy: aqui tambemele coloca em evideneia as constllll1tes viola~6es a norma em que e fun-damentado 0 romance. Veja-se Erlich, ob. cU. e - para uma tradu~aofrancesa do texto de Chklovsky - v. a antologhi (compilada por S. Todo-rov) Theorie de la litterature. Paris, Seuil, 1966 (onde contudo 0 termo"ostrannenija" e traduzido por siT/gularisalion - expressao absolutamenteinfiel ao conceito).

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urn sistema lingtiistico cujas regras basicas respeitavasubstancialmente, a arte contemporanea concretiza suaoriginalidade estabelecendo (as vezes obra por obra)urn rwvo sistema lingiiistico que traz em si suas novasleis. Na realidade, mais que de instaurac;:aode urn novosistema, pode-se falar de urn movimento pendular con-tinuo entre a recusa do sistema lingtiistico tradicionale sua conservac;:ao: se introduzissemos urn sistema ab-solutamente novo, 0 discurso dissolver-se-ia na inco-municac;:ao; a dialetica entre forma e possibilidade designificados multiplos, que ja nos pareceu essencial asobras "abertas", realiza-se justamente neste movimen-to pendular. 0 poeta contemparaneo prop6e urn sis-tema que nao e mais 0 da lingua em que se exprime,mas tambem nao e 0 de uma Hngua inexistente20: in-troduz modulos de desordem organizada no interior deurn sistema para aumentar-Ihe a possibilidade de infor-mac;:ao.

E mais do que evidente que nos versos citados dePetrarca ha uma tal riqueza de significados que naotern nada a invejar a poesia contemporanea: neles sem-pre poderemos encontrar algo de genuine e de novo acada leitura. Mas examinemos agora outra Hrica deamor, a nosso ver, uma das mais altas de todos ostempos, Le front aux vitres. .. de Eluard:

Le front aux vitres comme font les veuilleurs de chagrinCiel dont r ai depasse la nuitPlaines toutes petites dans mes mains ouvertesDans leur double horizon inerte indifferentLe front aux vitres comme font les veuilleurs de chagrinJete .cherche par dela I'attenteJete cherche par dela moi-memeEt je Ire sais plus tant je t'aimeLe que! de nous deux est absent.

vo e radicalmente diferente. Tinha-se, em Petrarca, aparcial ruptura de uma ordem da Hngua-c6digo, parainstaurar todavia uma ordem unidirecional da mensa-gem na qual, juntamente coni. uma organizac;:aooriginalde elementos fOnicos, ritmos, soluc;:6essintaticas (queconstitui a individualidade estetica do discurso), se vei-culasse simultaneamente urn significado semantico detipo comum, compreensivel de uma unica maneira; aoinves, em Eluard, ha a intenc;:aoaberta de fazer com quea riqueza dos sentidos poeticos nasc;:ajustamente da am-bigiiidade da mensagem: a situac;:aodee'Xpectativa, detensao emotiva surge justamente do fato de que 0 poe-ta sugere, juntos, muitos gestos e muitas emoc;:6esentreas quais 0 leitor pade escolher as que melhor 0 intro-duzam a co-participac;:ao do momenta emotivo descri-to, integrando as sugest6es recebidas a contribuic;:ao desuas pr6prias associac;:6esmentais.

Tudo isso significa somente que 0 poeta contempo-raneo constr6i sua mensagem poetica cQm meios e sis-temas diferentes dos do paeta medieval: nao se dis-cutem os resultados, e uma analise de obra de arteem termos de informac;:aonao visa a avaliar seu resulta-do estetico, mas limita-se unicamente a esclarecer algu-mas das suas caractedsticas e possibilidades comunica-tivas.

Mas desta comparac;:ao surgem duas poeticas dife-rentes: a segunda tende a uma multipolaridade da obrae tern todas as caracteristicas de uma criatura de seutempo, de uma epoca na qual certas disciplinas mate-maticas se interessam pela riqueza dos conteudos pos-siveis em mensagens de estrutura ambfgua, abertas mul-tidirecionalmente.

Notaremos que a situac;:aoemotiva e mais ou me-nos a mesma de Chiare, fresche, e dolci acque: contudo,independentemente da incontestavel validade esteticados dois trechos paeticos, 0 procedimento comunicati-

Transpondo 0 que acabamos de dizer para 0 planomusical, os exemplos sac intuitivos; uma sonata clas-sica representa urn sistema de probabilidades em cujoambito e facil predizer a sucessao e a superposic;:aodostemas; 0 sistema tonal estabelece outras regras de pro-babilidade com base nas quais meu prazer e minhaatenc;:aode ouvinte sac dados justamente pela especta-tiva de determinadas resoluc;:6esdo desenvolvimento mu-sical sobre a tonica. No interior desses sistemas esta

(20) Assim faziam certos dadaistas, e no "Cabaret Voltaire" de Zu-rique, em 1916, Hugo Ball recitava versos numa espeeie de jargon fan-tastico; e assim vem fazendo certa vanguarda musical, confiando UniCQMmente na eseolha feliz do aeaso. Mas esses siio exemplos-limite, eujovalor experimental eonsiste justamente na fixa~iio das fronteiras.

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claro que· 0 artista introduz continuas rupturas do es-quema probabiHstico e varia infinitamente 0 esquemamais elementar, que e representado pela sucessao emescala de todos os sons. 0 .sistema dodecafonico e nofundo outro sistema de probabilidades. Quando, aocontnrrio, numa composigao serial contempod.nea, 0musico escolhe uma constelagao de sons a ser relacio-nada de modos multiplos, ele quebra a ordem banal daprobabilidade tonal e institui uma certa desordem que,em relagao a ordem inicial, e altissima: introduz,contudo, novos modulos de organizagao que, opondo--se aos velhos, provocam uma ampla disponibilidadede mensagens, portanto uma grande informagao, e per-mitem todavia a organizagao de novos tipos de dis-curso, por conseguinte, de novos significados. Aquitambem temos uma poetica que se propoe a disponibi-lidade da informagao e faz dessa disponibilidade ummetodo de construgao. Isso nao determina 0 resultadoestetico: mil constelagoes canhestras de sons desvincu-lados do sistema tonal dir-me-ao menos (me infQrma-rao menos, me enriquecerao menos) do que Eine kleineNachtmusik. Todavia, constata-se que a nova musicase move para uma diregao construtiva, a procura deestruturas de discurso nas quais a possibilidade de re-sultados diversos aparega como fim primeiro.

Ha uma carta de Webern a Hildegard Jone21 quediz assim: "Encontrei uma serie (quer dizer doze sons)que ja contem em si mesma uma quantidade de rela-goes internas (dos doze sons entre si). Fato esse quetalvez se assemelhe a urn celebre dito antigo:

SATORAREPOTENETOPERAROTAS

los estudiosos da informagao quando examinam a tec-nica de construgao das palavras cruzadas, para estudaras possibilidades estatisticas que duas ou mais seqiien-cias de letras tem de combinar-se em mensagens dife-rentes. A imagem que Webern teve por analogia e aimagem de um exemplo tipico da estatistica; da teoriada probabilidade e da matematica da informagao. Es-tranha coincidencia. Mesma considerando que paraWebern esse achado tecnico era somente um dos meiosorganizativos de seu discurso musical, enquanto quena construc;ao de um puzzle uma analise combinatoriadesse tipo representa 0 ponto de chegada.

Vma cO'nstelac;aoe urn elemento de ordem: portan-to a poetica da abertura, ainda que implique na pes-quisa de uma fonte de mensagens possiveis provida deuma certa desordem, procura contudo realizar essa con-digao sem renunciar a transmissao de uma mensagemorganizada: oscilagao pendular, dissemos, entre urn sis-tema de probabilidades ja institucionalizado e a desor-dem pura: organiZ(J{:iiooriginal da desordem. Esta os-cilac;ao, pela qual 0 aumento de significado comportaperda de informac;ao e 0 aumento de informac;ao com-porta perda de .significado, e considerada por Weaver:"Tem-se a vaga sensac;ao de que a informac;ao e 0 sig':'nificado possam ser algo de amilogo a urn par de va-riaveis canonicamente conjugadas na teoria dos quan-ta, isto e, que a informac;iio e 0 significado possam estarsujeitos a alguma restric;ao combinada que impliqueno sacrifkio de um deles se insistirmos em obter de-mais dos outros"22.

"A ser lido uma vez horizontalmente. .. depoisverticalmente: de cima para baixo, para cima, para bai-xo ... etc." Parece-nos estranho que Webern procuras-se para a sua constelagao urn paralelo desse genero,pois essa conhecidissima construgao, legivel em muitossentidos, e a mesma que e tomada como exemplo pe-

Vma cuidadosa aplicac;ao das pesquisas sobre in-formac;iio a estetica musical foi realizada por AbrahamMoles em inumeros estudos, resumidos no volumeTheorie d,e l'information et perception esthetique23• Mo-les aceita claramente uma noc;ao de informac;ao comodiretamente proporcional a imprevisibilidade, e nftida-

(21) Veja·se Briefe (trad. ita\.: Verso la nuova musica. Milano, Bom-piani, 1963).

(22) W. Weaver, ob. cU., pag. 141.(23) Paris, Flammarion, 1958. Artigos anteriores sobre 0 mesmo as-

sunto apareceram em varios numeros dos CaMers d'eludes de Radio-.Television.

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mente distinta do significado. 0 problema que entao selevanta 6 0 de uma mensagem rica de informa<;ao en-quanta ambigua e, por isso mesmo, dificil de decodi-ficar. E urn problema que ja individuamos: ao visarao maximo de imprevisibilidade visa-se ao maximode desordem, na qual nao s6 os mais comuns, mas to-dos os significados possiveis resultam inorganizaveis.Evidentemente, este e 0 problema basico de uma mu-sica que visa a absorver todos os sons possiveis, alargara escala utilizavel, permitir a interven<;ao do caso noprocesso da composi<;ao. A polemica entre os defenso-res da musica de vanguarda e seus criticoS24 desenvol-ve-se justamente em tome da maior ou menor compre-ensibilidade de urn fato sonoro cuja complexidade su-pere qualquer Mbito do ouvido e qualquer sistema deprobabilidades como lingua institucionalizada. E paranos 0 problema 6 sempre 0 da dial6tica entre forma eabertura, entre livre multipolaridade e permanencia, navariedade dos possiveis, de uma obra.

Para uma teoria da informa<;ao a mensagem maisdificil de transmitir sera aquela que, recorrendo a umaarea mais ampla de sensibilidade do receptor, aprovei-tar urn canal mais amplo, mais disposto a deixar pas-sar urn grande numero de elementos sem filtra-los; essecanal veicula uma vasta informa<;ao, mas corre 0 riscode ser pouco ou nada inteligivel. Quando Edgard AllanPoe, em sua Philosophy of Composition, punha limitesde extensao a boa poesia, definindo como tal aquelaque pode ser lida numa unica assentada (pois 0 efei-to global, para ser valida, nao pode ser fracionado eadiado), na realidade ele se propunha a problema dacapacidade, por parte do leitor, de receber e assimilara informa<;ao p06tica; e 0 problema dos limites daobra, problema que retoma frequentemente na est6ti-ca antiga, 6 mais importante do que parece e expressaa preocupa<;ao acerca da rela<;ao interativa entre 0 su-jeito hum~no e a massa objetiva de estimulos organi-zados a guisa de efeitos compreensiveis. Em Moles,esse problema, enriquecido de consciencia psicologicae fenomenologica, toma-se 0 problema de urn "limiarperceptivo da dura<;ao": dada uma curta sucessao defatos melodicos, repetida com velocidade sempre cres-

cente chega-se a urn ponto em que 0 ouvido nao maispercebe sons distintos mas apenas urn am,alga~a ~o-noro indiferenciado. Esse limiar, mensuravel, mdicalimites intransponiveis. Mas tudo isso significa justa-mente 0 que ja foi dito, isto 6, que lima desordempura,nao predisposta em vista de uma r~la<;ao comurn sujeito habituado a mover-s~ e~tre ,SIstemas deprobabilidades, nao informa a maiS mnguem. A ten-dencia a desordem que caracteriza positivamente a p06-tica da abertura, devera ser tendencia a d.:wrdem do-minada, a possibilidade abrangida por urn campo, aliberdade velada por germes de formatividade presen-tes na forma que se oferece aberta as livres escolhasdo fruidor.

Entre a proposi<;ao de uma ph~ral~dade ~e mundosformais e a proposi<;ao do caos mOlferenciado, des-provido de qualquer possibilidade de. fr~i.<;aoest6tica,a distancia 6 curta: somente uma dIaletIca pendularpode salvar 0 composItor de obras abertas.

Exemplo dpico dessa condi<;ao, parece-nos, .6 d~d.opelo compositor eletronic<: que, dispondo do .remo 111-

mitado dos sons e dos rUldos, pode ser vencido e do-minado por ele: ele quer oferecer a~ ouvinte urn ma-terial sonoro de extrema e complexa hberdade, mas falasempre em termos de filtragem e montagem de se.u ma-terial: introduz abscissas como que para canal.~ar adesordem elementar dentro de matrizes de possibIhdadeorientada. No fundo, como bem observa Moles, emseu extremo a diferen<;a entre perturbGfiio e sinal naoexiste: ela 6 estabelecida unicamente por urn ato inten-cional. Na composi<;ao eletronica a diferen<;a entreruido e som desaparece no ate voluntario com que 0criador oferece ao ouvinte seu magma sonoro paraser interpretado. Mas nesse visar a .~axima ~esordeme a maxima informa<;ao ele deve sacnficar (fehzmente)algo de sua liberdade. ~ introdu~ir aqueles mOdulos deordem que iraQ permitIr ao ~uvmte ~over-se d~ modoorientado no meio de urn rUldo que mterpretara comosinal, porque percebera que foi objeto de uma escolhae que, em certa medida, foi organizad025•

(25) Veja-se Moles ob. cit., pi\g: 88. "Si la matiere sonor.e du brui~blanc est informe, quel' est Ie caractere d'ordre minim~~ qu'l1 faut 1mapporter pour lui conferer une identite, quel est Ie ,!"n.l~um. de?"f0rmespectrale qu'j] faut lui fournir pour lui donner. "!'tte mdlYldualite. Estee justamente 0 problema de composi9ao do muslco eletromco.

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Moles acredita poder individuar, como ji fez Wea-ver, uma especie de prindpio da indetermina<;ao quelimita a informa<;ao ao aumentar a inteligibilidade; dan-do urn passo a frente e reputando ser essa indetermi-na<;ao uma constante do mundo natural em certo nivel,express'a:-a por uma formula que the parece lembrar deperto aquela que exprime a incerteza das observa<;6esna flsica quantica. Mas a esta altura, se a metodologiae a logica da indetermina<;ao, tal como aparecem nasdisciplinas cientificas, representam, perante a experien-cia artistica, urn fato cultural que inclui na formula<;aodas poetic~s sem constituir contudo sua explica<;ao rigo-rosa, traduzivel em formulas, esse segundo tipo de inde-termina<;ao ao nivel da rela<;ao liberdade-inteligibilidade,ao contnirio, ja nao nos parece ser uma contribui<;aodas ciencias que influencie mais ou menos de longe asartes, mas uma condi<;ao mesma da dialetica produtivae da luta constante de l'ordre et de l'aventure, como diriaApollinaire; a condi<;aomesma pela qual tamhem as po-eticas da abertura sac poeticas da obra de arte.

ral tambem a nossa aterlfiio para 0 lato estrutural. Aesse ponto a tematica da informa<;ao se toma temdticada comunicafiio. E a aten<;ao deveni deslocar-se damensagem, enquanto sistema objetivo de informa<;6espossiveis, para a rel{jfiio comunicativa entre mensageme receptor: rela<;ao na qual a decisao interpretativa doreceptor passa a constituir 0 valor efetivo da informa<;aopossive!.

A analise estatistica das possibilidades de informa-<;aode urn sinal e, no fundo, uma analise d~ tipo sinta-tico: as dimens6es semantica e pragmatica nela intervemapenas secundariamente, uma no definir em que casos eem que circunstancias uma dada mensagem pode dar--me mais informa<;6es do que outra, a segunda no esbo-<;ar0 comportamento subsequente que uma dada infor-rna<;ao pode sugerir-me.

A transmissao de sinais concebidos segundo urn co-digo rigoroso, fazendo uso de urna abundante redun-dancia, podia ser explicada mesrno sem recorrer a in-terven<;ao interpretativa do receptor, pois aqui entra emjogo 0 repertorio dos valores convencionais que uma co-rnunidade confere aos elementos de uma mensagem.Entretanto, a transmissao de urna sequencia de sinaiscom uma redundancia escassa, com aHa dose de im-probabilidade, requer que, na analise, se considerem asatitudes e a~ estruturas mentais com que 0 receptor se-leciona a mensagem, introduzindo nela, a titulo de li-berdade de escolha, uma probabilidade que de fato seencontra na mensagem, mas junto a muitas outras.

IssosignifiCa, certarnente, introduzir 0 ponto devista da psicologia na analise estrutural dos fenomenoscornunicativos: e a opera<;ao parece contradizer os pro-positos antipsicologistas que nortearam as diversas me-todologias forrnalistas aplicadas a linguagem (de Hus-serI aos formalistas russos). Mas, se pretendemos exa-rninar as possibilidades de significa<;aode uma estruturacomunicativa, nao podemos prescindir do polo "recep-tor". Em tal sentido, preocupar-se com 0 polo psi-cologico significa reconhecer a possibilidade formal (in-dispensavel para explicar a esifutura e 0 eleito da men-sagem) de uma significancia da mensagem somente en-quanta interpretada por uma dada situ{jfiio (situa<;ao

Todas essas discuss6es nos demonstram que as pes-quisas rnatemiticas sobre a inforrna<;ao podem oferecerinstrurnentos de esclarecimento e urn debate sobre asestruturas esteticas; eque as pesquisas cientificas expri-mem uma tendencia, comum as artes, ao provavel e aopossive!.

Mas e obvio que a teoria da informa<;1iomede umaquantidade, nao uma qualidade. A quantidade de in-forrna<;ao diz· respeito exclusivarnente a probabilidadedos eventos: diverso e 0 valor da inforrna<;lio, que dizrespeito, ao contrario, ao nosso interesse pessoal porela26• Ora a qualidade da informa<;ao nos parece jus-tamente relacionada com seu valor. Isto e, para afir-mar 0 quanta vale para nos uma situa<;ao de imprevisi-bilidade (estatlsticamente apuravel, trate-se de urn bo-letim rneteorologico, de ~etrarca ou. de Eluard), dequais atributos peculiares seja veiculo, e necessariotornar em consider{jfiio, juntamente com 0 lato estrutu-

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psic~l6gica e, atraves dela, hjst6rica, social, antropol6-gica em sentido lato) 27.

Torna-se portanto necessario considerar a rela~liointerativa que se cria, tanto ao nivel da perce~lio quan-to ao nivel da inteligencia, entre os estimulos e 0 mundodo receptor: uma rela~ao de transa9G.oque representao verdadeiro processo de forma~ao da percep~ao ou dacompreensao intelectual. No nosso caso, esse exameconstitui nao apenas uma passagem metodol6gica obri-gat6ria, mas nos fomece tambem algumas confirma~oesde tudo 0 que dissemos ate agora acerca da possibili-dade de uma frui9G.o "aberta" da obra de arte. Comefeito, um tema basilar das correntes psicol6gicas maisrecentes parece-nos 0 da "abertura" fundamental detodo processo de percep~lio e inteligencia.

Slio perspectivas originadas da critica as posi~oesda psicologia da forma. Segundo esta, de fato, na per-cep~lio se surpreenderia imediatamente uma conjigura-9iio de estimulos ja dotada de uma organiza~ao obje-tiva pr6pria; 0 ato de perce~ao nada mais faria quel'econhecer essa configura~ao gra9as a urn fundamentalisomorfismo entre estruturas do objeto e estruturas fisio--psicol6gicas db sujeit028•

Contra essa hipoteca metafisica, que onerava a teo-ria psicol6gica, levantaram-se as escolas seguintes, jus-tamente para proporem a experiencia cognoscitiva, emseus varios niveis, como experiencias que se realiza den-tro de um processo. Processo em que nao se esgotamas possibilidades do objeto, mas se esclarecem aque-

(27) Se a teoria da informa~ao corresponde ao estudo estatistico dosfenomenos do mundo 'ffsico (encarados. como Umensagens"), 0 passeque e~tamos d~t.tdo agora.. nos leva a uma teoria da comunica~lio, quese aphca ,especlflcamente a rnensagem humana. A n~ao de Umensagem"pode funclOnar da mesma forma nos dois niveis; nao nos devemos contudoesquecer da obje~ao movida por Jakobson a muitos estudiosos da cornu:nica~ao: "As pesquisas que tentaram construir urn modelo de Iinguagemabsolutamente desprovido de rela~Oes com 0 locutor e com 0 ouvinte eque assim hipostatizam urn c6digo ··separado da comunica~ao real, ar~is-cam-se a reduzir a Iinguagem a uma simula~ao escolastica" (ob. cit.,pag. 95).

. . (28) "0 .conhecimentonao cria a organiza~ao de seu objeto;•mlta-o na medlda em que e urn conhecimento verdadeiro eeficaz. Naoe a razao que dita suas leis ao universa, mas, antes, ha uma harmonianatural entre razao e universa, pais ambos obedecem as mesmas leisgerais de organiza~ao" (P. Guillaume, La psychologie de Ia forme. Paris,Flammaripn, 1937, pag. 204).

les seus aspectos passiveis de uma intera~ao com aspredisposi<;6es de quem percebe29•

De urn lado, foi a psicologia transacionalista norte--americana nutrida do naturalismo de Dewey (mas tam-bem influenciada pelas correntes francesas de que fa-laremos) a afirmar que a percep<;ao, ainda que naoseja a rece~ao de sensa90es atomistas de que falavao associacionismo classico, representa contudo uma re-la~ao na qual minhas mem6rias, minhas convic~oes in-conscientes, a cultura que assimilei (numa palavra,a experiencia adquirida) integram-se ao j<:>godos esti-mulos para conferir-lhes, juntamente com uma forma,o valor que e1es revestem para mim, considerados asfins que me proponho, Dizer que "urn atributo devalor penetta toda experiencia" sigilifica, em certa me-dida, dizer que na realiza9ao de uma experiencia per-ceptiva participa um componente artistico, urn fazersegundo prop6sitos formativos. Como disse R. S. Lil-lie: "A realidade psiquica, em sua natureza essencial,preve e interroga. Visa a terminar e completar umaexperiencia incompleta. Reconhecer a fundamental im-portancia dessa caracteristica do organismo vivo naosignifica ignorar e subestimar as condi90es fisicas esta-veis que formam uma outra parte indispensavel da or-ganiza9ao vital. No sistema psicoffsico constituido pe-10 organismo, ambos os fatores devem ser consider a-dos igualmente importantes e complementares na ati-vidade de conjunto do sistema"30. Em termos menoscomprometidos com 0 yocabulario biol6gico naturalis-ta diremos que "Como seres humanos n6s colhemoss<:>menteaqueles 'conjuntos' que possuem urn sentidopara n6s enquanto seres humanos. Existem infinitosoutros 'conjuntos' dos quais jamais saberemos coisaalguma.· E 6bvio que para n6s IS impossivel experi-mentar todos os elementos possiveis que existem emcada situa~ao e todas as suas possiveis rela~oes ... "Por isso, somos obrigados, em cada situa9lio, a invo-

(29) "Numerosos fatos mostram que as interpreta~iies perceptivas dosdados sensoriais elementares possuem uma plasticidade notavel e que urnmesmo material suscita, conforme as circunstancias, perce~5es muito·difere:ntes" (H. Pieron, Relat6rio ao Simp6sio La perception, Louvain--Paris, P. U. F., 1955, pag. 11) .

(30) "Randomness and Directiveness in Evolution and Activity in Li-ving Organism", em American Naturalist, 1948, 82, pag. 17. Para aaplica~ao de principios transacionalistas 11 experiencia estetica, v. An-giola Massucco-Costa. II contrlbuto delia psicologia transazionale al/'este-tica, em Atti del III Congresso Int. di Est., Veneza, 1956.

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car, como fator formative da percep((ao, a experien-cia adquirida: "0 organismo, sempre for((ado a 'esco-lher' entre urn nfunero ilimitado de possibilidades quepodem ser ligadas a determinado pattern da retina,apela para suas experiencias precedentes e admite queaquilo que foi mais provavel no passado ira se-Io naocasiao espedfica... Em outras palavras, 0 que ve-mos e sem duvida fuw;ao de uma media calibrada deoutras nossas experiencias passadas. Parece assim querelacionamos urn dado pattern de estimulos com expe-riencias passadas, atraves de uma complexa integra-((ao de tipo probabilista. .. Conseqiientemente, as per-ce~oes que resultam dessa opera((ao nao constituemrevelaC(6es absolutas 'daquilo que esta fora', mas re-presentam predigoes ou probabilidades baseadas emexperiencias adquiridas" 31.

Em outro contexto, Piaget falou amplamente deuma natureza probabilista da percepgao, e em polemic acom os gestaltistas procurou ver a estruturagao dodado sensorial como sendo 0 produto de urn equili-brio - devido tanto a fatores intrinsecos como a fa-tores extrfnsecos, em constante interferencia entre sj32.

Em Piaget, essa natureza processual e "aberta" doprocesso cognbscitivo revela-se com maior evidenciana analise que faz da inteligencia 33.

(31) J. P. Kilpatrick, "The Nature of Perception" em ExplorationsTransactional Psychology. New York Un. Press, 1961, pags. 41-49.

(32) "Sem duvida, tanto nos dominios da perce~lio quanto nos dainteligencia, nada se explica com base unicamente na experiencia, mas tam-bem nada se explica sem uma participa~lio, mais ou menos importanteconforme as situa~5es, da experiencia atual ou anterior" (Relat6rio aoSimp6sio La perception, cit., pag. 21). V. tambem Les mecanismes per-cept/Is, P.U.F., 1961: "A razlio das intera~5es entre objeto e sujeitonos parece absolutamente diferente daquela que 03 fundadores da teoriada forma tomaram de emprestimo a fenomenologia. A n~lio de equi-Iibrio perceptivo que os fat03 parecem sugerir-nos nlio e a de urn campofisico no qual as for~as em jogo se balan~am exata e automAticamente,mas a de uma compensa~lioativa por parte do sujeito, que visa a mo-derar a3 perturba~oes exteriores... De urn' modo mais geral, a intera~lioentre objeto e sujeito nlio e devida ao fato de que formas de organiza~lioindependentes do desenvolvimentoe ignaras de qualquer genese reuniriamnuma mesma totalidade 0 sujeito e 0 objeto, mas - ao contrano -deve-se an fata de que 0 sujeito constr6i, sem cessar, novos esquernasdurante seu desenvolvimeto, assimilando neles os obietos percebidos, semfronteiras delimitaveis entre as propriedades do objeto a3similado e asestruturas do sujeito que assimila. Como diziamos... convem portantoopor ao geneticismo sem estrutura do empirismo, e ao estruturalismo semgenese da fenomenologia gestaltista, urn estruturalismo genetico tal, quecada estrutura seja 0 produto de uma genese e que cada genese constituaa passagem de uma estrutura menos evoluida para uma estrutura mais,complexa" (pags. 450·51).

(33) La ps/cologia dell'intelligenw. Firenze, caps. I e III.

A inteligencia visa a compor estruturas "reversi-veis", nas quais 0 equiHbrio, a interru~ao, a homeos-tase sac somente 0 estagio final da operagao, indispen-savel aos fins da eficacia pratica. Mas a inteligencia,por si s6, revela todos os caracteres do que chamaria-mos urn processo aberto. 0 sujeito procede atraves deuma serie de hip6teses e tentativas, guiadas pela expe-riencia, que proporcionam como resultado nao as for-mas dos gestaltistas, estaticas e preestabelecidas, masestruturas m6veis e reversiveis (pelo que 0 sujeito,ap6s reunir os dois elementos de uma relac;ao, podedissocia-Ios e voltar assim ao ponto de partida).

Piaget da 0 exemplo da relac;ao A + A' = B, quepode assumir as form as variaveis de A = B - A',ou entao A'= B - A, ou ainda B - A = A' eassim por diante. Nesse jogo de relac;oes possiveis naoha urn processo univoco, como se daria na percepc;ao,mas uma possibilidade operat6ria que permite variasreversoes (como acontece com a serie dodecafonicaque se presta a uma multipla variedade de manipula-c;oes).

N~ perce~ao das formas, lembra Piaget, existemregulac;oes e recentralizac;oes, modificac;oes do estagiofinal, uma vez alcanc;ado, que nos permitem, por exem-plo, ver de modos diversos aquelas caracteristicas silhue-tas ambfguas que encontramos nos manuaisde psicolo-gia. Mas num sistema de raciodnios dispoe-se de algomais que uma "recentralizac;ao" (Umzentrierung): haurn descentramento geral, que permite como que umadissoluc;ao, urn degelo das formas perceptivas estaticasque redunda em favor da mobilidade operativa; dai apossibilidade indefinida de novas estruturas.

Porem, mesmo ao nivel da percepc;ao, ainda quenao, tenhamos a reversibilidade das operaC(6es intelec-tuais, dispomos, nao obstante, de regulac;oes diferentes,em parte influenciadas justamente pela contribuic;ao daexperiencia, e que ja "esboc;am ou anunciam os meca-nismos de composiC;ao que se tomarao operativos umavez que se tome possivel a reversibilidade global" 34.

Em outras palavras, se, ao nivel da inteligencia, haconstruc;ao de estruturas m6veis e variaveis, ao nivelda percepc;ao existem sempre processos aleat6rios e

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probabilistas, que concorrem sempre paraconstituirtamhem a percePriio como urn processo aberto a mui-tos resultados possfveis (apesar das constancias per-ceptivas que a experiencia nao nos permite colocar emdiscussao). Seja como for, em ambos os casos temosuma atividade construtiva por parte do sujeito 35.

Perante essa substancial processualidade e "aber-tura" do conhecimento, poderemos seguir agora duaslinhas de ctesenvolvimento, que correspondem a umadistin~ao ja proposta neste mesmo livro:

a) Interpretado em termos psico16gicos, 0 prazerestetico - como se realiza diante de toda obra dearte - baseia-se nos mesmos mecanismos de integra-~ao e completamento que se revelaram tfpicos de todoprocesso cognoscitivo. Esse tipo de atividade e essen-cial ao gozo estetico de uma forma: trata-se do queja chamamos de abertura de primeiro grau.

b) 0 problema das poeticas contemporaneas e 0de enfatizar esses mecanismos e fazer que 0 gozo es-tetico consista nao tanto no reconhecimento final daforma quanta no reconhecimento daquele processo con-tinuamente aberto que permite individuar sempre no-vos perfis e novas possibilidades de uma forma. Tra-ta-se do que chamamos de abertura de segundo grau.

Com isso, tomamos consciencia de que somenteuma psicologia do tipo transacionalista (mais atenta agenese das formas que a sua estrutura objetiva) permitecompreender a fundo a segunda atitude, a segundaace~ao da no~ao de abertura.

Vejamos, antes de mais nada,de que modo a artede todos os tempos aparece como provoca~ao de ex-periencias propositadamente incompletas, interrompidas

(3~), y. La psicologia del/'intelligenza, eit., cap. III. Para ° estudoprobablhstie~ d~ pe~ee~ao, v. Les mecanismes perceptils, eit., onde _emb~ra dlst!!'SUmdo.os processos operat~vus da inteligeneia dos da per-ce~ao - Plaget ahrma que entre os dOis "se encontra efetivamente umaserie ininterrupta de intermediarios" (pag. 13). A mesma experieneiase coloca, portanto, como "uma estrutura~ao progressiva e nao uma sim-ples leitura" (ptlg. 443). Melhor ainda: "Quer se trate de explora~io,a comeqar pela mosma oscolha dOl pontos de eentraliza~io, quer de trans-posl~~ ou de antecipal;io etc., ° sujelto nllo lofre a determlna~io doobjeto, mas dirige SCUIesfor~os como que para a solu~ao de urn pro-blema" (ptlg, 449).

de chofre para suscitar, gra~as a uma expectativa frus-trada, nossa tendencia natural ao completamento.

Esse mecanismo psico16gico e fartamente analisadopor Leonard Meyer em Emotion and Meaning in Mu-sic 36, onde a argumenta~ao e conduzida em bases am-

. plamente gestaltistas; econsiste no exame das estru-turas musicais objetivas, encaradas em rela~3ooaos nos-sos esquemas de rea~3oo- isto e, 0 exame de umamensagem dotada de certa carga informacional, que,porem, s6 adquire valor em rela~3ooa resposta de umreceptor, e somente entao se organiza realmente comosignificado.

Segundo Wertheimer, 0 processo do pensamentopode ser escrito assim: dada a situa~3ooS1 e a situa~aoS2, que representa a solu~3oode S1, 0 termo ad quem, 0processo e uma transi~3ooda primeira situa~3oopara asegunda, transi~3ooem que S1 e estruturalmente incom-pleto, apresenta uma divergencia, uma ambibgiiidade deestrutura, que aos poucos se vai definindo e resol-venda ate compor-se em S2' Vma tal no~3oode pro-cesso e assumida por Meyer para 0 discurso musical:urn estfmulo apresenta-se a aten~3oodo fruidor comoambiguo, inconc1uso, e produz uma tendencia a obtersatisfariio: em suma, provoca uma crise, de maneiraa obrigar 0 ouvinte a procurar urn ponto firme queo ajude a resolver a ambigiiidade. Em tal caso surgeuma emo"ao, pois a tendencia a uma resposta e im-previstamente estancada ou inibida; se a tendenciafosse satisfeita, n300 haveria explos3oo emotiva. Mastoda.·di1a~3ooimposta ao esc1arecimento provocara umaa,,3ooefetiva ja que uma situa"ao estruturalmente de-bil ou de organiza"ao duvidosa cria tendencias aoesc1arecimento. Esse jogo de inibi~oes e de rea"oesemotivas intervem para dotar de significado 0 discursomusical: pois, enquanto que na vida cotidiana se criamdiversas situa"oes de crise que n300 sac resolvidas ese dispersam acidentalmente tal como surgiram, namusica a inibi"ao de uma tendencia toma-se signifi-cante na medida em que a rela~ao entre tendencia esolu"ao se faz expHcita e se conc1ui. Pelo simples fatode conc1uir-se, 0 circulo est/mulo - crise - tendenciaqu,e surge - satisfariio sobrevinda - restabelecimento daordem adquire significado. "N a musica 0 proprio es-

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dmulo, a mUSica, ativa as tendencias, inibe-as e lhesfornece solu~6es significantes" 37.

Como pode surgir uma tendencia; de que tipo e acrise; quais as solu~6es que poderiam tornar-se dis-poniveis para satisfazer 0 ouvinte; tudo isso e esclare-cido pela referencia a Gestalttheorie: essa dialeticapsicologica e regida pelas leis da forma, quer dizer,as leis da pregnancia, da boa curva, da proximidade,da igualdade etc. Ha no ouvinte a exigencia de queo processo se conclua de maneira simetrica e se orga-nize do melhor modo possivel, em harmonia com cer-tos modelos psicologicos cuja presen~a a teoria daforma reconhece tanto nas coisas quanta nas estrutu-ras psicologicas. Vma vez que a em~ao nasce do blo-queio da regularidade, a tendencia a boa forma, a me-moria de experiencias formais passadas intervem noouvir para criarem, perante a crise que surge, expectati-vas: previs6es de solu~ao, prefigura~6es formais nasquais a tendencia inibida se resolve. Perdurando ainibi~ao, emerge urn gosto da expectativa, quase urnsentido de impotencia perante 0 desconhecido: e quano:-to mais inesperada e a solu~ao, mais intenso 0 prazerquando ela se verifica. Portanto, se 0 prazer e dadopela crise, esta claro em Meyer que as leis da forma,ainda que sejam base da compreensao musical, somenteregulam 0 discurso como conjunto se forem continua-mente violadas ao longo do desenvolvimento; e a ex-pectativa do ouvinte nao e expectativa de resultadosobvios, mas de resultados dessuetos, de viola~6es da re-gra que tornam mais completa e conquistada a lega-lidade final do processo. Ora, pela teoria da forma,"boa" e a configur~ao que os dados naturais assu-mem por necessidade em seu dispor-se em conjuntosunitarios. Tern a forma musical os mesmos caracteresde estabilidade originana?

Meyer, a esse respeito, modera seu gestaltismo eafirma que a no~ao de organiZl1fiio 6tima, em musica,representa urn dado de cultura. Isso significa que amusica nao e uma linguagem universal, mas que atendencia a certas solu~6es mais do que a outras e

fmto de uma educa~ao e de uma civi1iza~aomusicalhistoricamente determinada. Eventos sonoros que parauma cultura musical san elementos de crise, para outrapodem ser exemplos de legalidade que raia a monoto-nia. A percep~ao de urn todo nao e imediata e pas-siva: e urn fato de organiza~iio que se aprende, ese aprende num contexto sociocultural; neste ambito,as leis da perce~ao nao san fatos de pura naturali-dade, mas se formam dentro de determinados mode-Ios de cultura ou, numa linguagem transacionalista,mundos de formas assuntivas, urn sistema de preferen-cias e habitos, uma serie de convic~6es intelectuais etendencias emotivas que se formam em nos como efeitode uma educa~ao devida ao ambiente natural, hist6ri-co, social 38.

Meyer da 0 exemplo do conjunto de estlmulosconstituido pelas letras T1RLSEE, e prop6e variosmodos segundo os quais podemos agrupar e organizaressas letras de forma a obter agregados formalmentesatisfatorios: TT RLS EE, por exemplo, obedece a cer-tas leis de contigiiidade muito elementares e proporcio-na urn resultado de indubitavel simetria. Todavia, e evi-dente que a organiza~ao que urn leitor ingles sera leva-do a preferir sera a seguinte: LETTERS. Nessa formaele encontrara urn significado e, portanto, ela the pa-recera "boa" sob todos os aspectos. Assim a organi-za~ao se deu conforme uma experiencia adquirida: se-gundo os modos de uma ortografia e de uma Hngua.E 0 que acontece a urn conjunto de esdmulos musicais,diante dos quais a dialetica das crises, das expectativas,previs6es e solu~6es satisfatoria obedece a leis situa-veis hist6rica e culturalmente. A civiliza~ao auditivado mundo ocidental, pelo menos ate 0 inicio do se-culo, era tonal; e e no ambito de uma civiliza~ao tonalque certas crises serao crises e certas solu~6es, solu-~6es; se passarmos a examinar certa musica primitivaou oriental, as conclus6es serao diferentes.

Mas, ainda que a analise de Meyer se tenha volta-do para civiliza~6esmusicais diferentes a Jim de idooti-ficar nelas varios modos de organizagao formal, pa-rece estar impHcita em seu discurso esta proposigao:cada civilizagao musical elahora sua sintaxe, e noambi-(37) Essa teoria das erno~6es e declaradarnente deweyana, e de

Dewey e tarnbern 0 conceito de .urn cfrculo de estirnulos e respostas, crisese solu~6es, perfeitarnente fulfilled: 0 conceito de experiencia (v., emMeyer, as pags. 32-37).

. (38) V. especialrnente H. Cantril, Le motlvaz}oni dell'esperienza.Firenze, 1958 (v. tamb6rn a introdu~lio de A. Visalberghi).

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to desta da-se uma audi~ao orientada, justamente, se-gundo modelos de rea~iio educados atraves de uma tra-di~ao cultural; cada modelo de discurso tern suas leisque nada mais sac que as leis da forma e a dinamic~das crises e das solu~6es obedece a uma' especie de ne-cessidade, a dire~6esformativas fixas. No ouvinte domi-na a t:ndencia a resolv~r as crises em repouso, a per-tur?a.~ao em pa;,. 0 desv~ono retorno a uma polaridadedeflmda pelo hablto musIcal de uma civiliza~ao. A crisetern valor em vista da solu~ao, mas a tendencia do ou-vinte e tendencia a solu~ao, e nao a crise pela crise. Porisso, os exemplos escolhidos por Meyer referem-se to-dos a mlisica cllissica tradicional, porque no £Undosua argumenta~ao vem endossar uma atitude conser-vadora da musica europeia, isto e, apresenta-se comointerpreta~ao psicol6gico-estrutural da musica tonal.

Esse ponto de vista permanece fundamentalmenteimuUlvel mesmo quando Meyer, no artigo seguinte 39,

r~toma esses problemas nao mais do angulo psicol6-glco, mas com base na teoria da informa~ao. A intro-du~ao de uma incerteza, de uma ambigilidade numasequencia probabilista como e 0 discurso musicalaparece-Ihe como urn elemento capaz de desencade~a em~ao. Urn estilo e urn sistema de probabilidades,e a consciencia da probabilidade esta latente no espec-tador que arrisca previs6es acerca dos subseqiientesde urn antecedente. Dar significado estetico a urn dis-curso musical significa explicitar a incerteza e goza-Ia~om? a~t~mentede~ejavel. Meyer afirma, portanto, queo SIgnIfIcadomusIcal surge quando uma situa~ao an-

terior, pedindo uma avalia~ao acerca dos modos pro-vaveis de continua~ao do pattern musical, produz incer-teza acerca da natureza temporal tonal do subsequenteesperado. Quanto maior a incerteza, maior a infor-ma~ao. Urn sistema que produz uma sequencia desimbolos afinados com uma probabilidade e chamadode processo estocastico, e 0 caso particular de urn talprocesso, em que as probabilidades dependem de even-tos precedentes, e, chamado de processo ou cadeia deMarkoff"40. Posta a musica como urn sistema de

atra~Oes tonais, em que portanto a existencia de umevento musical, imp6e uma certa probabilidade de queoutro the suceda, entao quando urn evento musicalpassa despercebido, pois sobrevem de acordo com aexpectativa natural do ouvido, a incerteza e a em~aoconseqiientes (e portanto a informa~ao) diminuem.Dado que numa cadeia de Markoff a incerteza tendea decrescer a medida que nos afastamos do ponto departida, 0 compositor e obrigado a introduzir delibe-radamente incertezas a toda hora para enriquecer designificado (leia-se: informa~iio) 0 discurso musical.E esta a situa~ao de suspense tipica do procedimentotonal, obrigado contmuamente a romper 0 tedio daprobabilidade. A musica, como a linguagem, contemcerta dose de redundancia que 0 compositor visa sem-pre a remover para acrescer 0 interesse do ouvinte. Masa este ponto Meyer retorna a uma considera~ao acercada inalterabilidade do mundo assuntivo, e lembra queuma forma de ruido caracteristico do discurso musicale, alem do acustico, 0 cultural: e 0 ruido cultural edado pela disparidade entre nossa habitual resposta(isto e, nosso mundo assuntivo) e a requerida pelo es-tilo musical; e termina com uma nota polemica contraa musica contemporanea, que, eliminando em demasiaa redundancia, se reduz a uma forma de ruido quenos impede de realizar 0 significado do discurso musi-cal ouvido 41. Em outros termos, de percebe a osci-la~ao entre desordem informativa e ininteligibilidadetotal, que ja havia preocupado Moles, nao como pro-

(39) Leonard B. Meyer, "Meaning in Music and Information~heory", em -TournaI, of Aeathetics and Art Critic/sm, junho de 1957;

Some Remarks on Value and Greatness in Music", ib., junho de 1959.(40) Da-se uma cadeia de Markoff quando a probabiJidade de um

evento j nao e independente (pi) mas depende do evento que 0 precede:

pij = pj !(pi). Um exemplo de laborat6rio da cadeia de Markoff e 0seguinte: escrevem-se em folhas separadas vArios trigramas, repetindo cadaum deles de acordo com a freqUencia com que se apurou estatlsticamentezua recorrencia numa dada linguagem. Os trigramas sao reunidos emvarias caixas de acordo com as duas letras iniciais. Teremos assim numacaixa BUR, BUS, BUT, BUM, em outra IBA, IBL, IBU, IBRetc. Ex-trafdo um trigrama ao acaso, 18em-se as duas ultimas letras (se extrair-mos (BU, serio BU) e extrai-se um segundo trigrama da caixa dos BU.Se sair BUS procurar-se-a um trigrama iniciado por US e assim pordiante. A seqUencia sera regida pelas leis da probabiJidade expostasacima.

(41) Na polemica com Pousseur, em "(ncontri Musicali", cU., Ni-colas Ruwet (analisando muito brilhantemente, a luz da metodologia lin-gUlstica, a n~ao ,musical de grupo e procurando identificar lInidacle. disCtintivas dentro do grU1JP sonoro) no.... que CUt05 sistemas, de oposi\;Oessio encontrados em todas as Iinguas, pois possuem propriedad,cs cstrll-turais que os tomam notavelmente apropriados ao lISll, Isso lev::..,) .:perguntar se em musica 0 sistema ton~1 n50 possui juslamcnte cssascaraeterfsticas priviJegiadas. A tragedia de Webern consistiria entao nofato de que ~Ie estava consclente de mover-se num terreno estrutllral-mente in.tAvel. sem ter base.. de cdmparafiio suficientemente s61idas,nem slstelfllU de opo.lfl'e •• uficientes.

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blema a resolver mas como perigo a cvitar .. Fa-zendo distin~ao entre incerteza desejavel e incertezaindesejavel, Meyer, apesar de ter clara a historicidadeea capacidade de evolu<;:aotipica de -cada mundo as-suntivo, ~limina a possibilidade, dentro de uma lingua-gem. ~~l1ncal,,de u1?a transforma<;:ao das assun~es dasensIbIhdade capaz de levar a mundos assuntivos com-pletamente novos. A linguagem musical e entao 0 sis-~ema de. probabilidades em que a improbabilidade emtroduzlda con juicio. De maneira que somos levadosa pensar que, a longo prazo, 0 quadro das incertezaspossiveis se tornara tao normal que passara a perten-cer de dire!to as p::obabilidades, e tacitamente 0 queera antes mforma~ao se tornara mera redundancia'coisa 'lue c,omu~ente se da na pior musica ligeira:onde nao ha mats surpresa nem emo~ao, e uma novacan~ao de Claudio Villa apresenta-se tao previsivelquanta os dizeres ja impressos num carHio de boasfestas co~prado em papelaria, construido segundo re-'g~as banals e totalmente desprovido de informa~ao adi-ClOnal.

Cada ser humane vive dentro de urn certo modelocultural e interpreta a experiencia com base no mundode formas assuntivas que adquiriu: a estabilidade dessemundo e essencial para que possa mover-se razoavel-mente em meio as provoca~oes continuas do ambientee organizar as propostas constituidas pelos eventos ex-ternos em urn conjunto de experiencias organicas. Man-ter portanto nosso conjunto de assun~6es sem submete--10 a muta?o:s ~ndiscriminadas e uma das condi~esde nossa eXIstencIa de seres racionais. Mas entre man-ter 0 sistema de assun~6es em condir;6es de organici-dade, e mante-lo absolutamente inalterado ha umac~rta diferen<;:a. Outra condi<;:aode nossa ;obreviven-CIa enquan~o seres pens antes e justamente a de saberfazer evolUlr nossa inteligencia e nossa sensibilidadede ~?do que. cada experiencia adquirida enrique~a emodIfIque 0 SIstema das nossas assun~6es. 0 mundo~as formas assuntivas deve manter-·se organico no sen-tIdo de que deve crescer harmoniosamente sem saltose .s~m deforma<;:6es,mas deve crescer, e cre~cendo, mo-dlfIcar-~e. ?~ ~tima analise, e esta a diferenc;a quetorna tao dmamIco e progressivo 0 modelo culturaldo homem ocidental comparado COim0 de certos povos

primitivos. Os povos priInitivos sao tais, nao porqueo mOdelo cultural originariamente elaborado fosse bar-baro e inaproveitavel (pois, pelo contrario, adaptava--se a situa~ao para a qual havia sido imaginado),mas por nao ter esse modelo sabido evoluir; acomo-dando-se estaticamente nde, os representantes dessacultura nao foram mais capazes de interpreta-Ia emtodas as suas possibilidades originais e continuaramaceitando as assun~6es originarias como formulas ocas,elementos de ritual, tabus inviolaveis.

Temos poucos motivos para reputar universalmentesuperior 0 mOdelo cultural ocidental moderno, mas urndeles e justamente sua plasticidade, sua capacidade deresponder aos desafios das circunstancias pela elabo-ra~ao continua de novos modulos de adapta~ao e novasjustifica<;:6esda experiencia (aos quais a sensibilidadeindividual e coletiva se adapta, embora com maior oumenor tempestividade).

De fate, tudo isso tambem aconteceu nas formasda arte, no ambito daquela "tradi~ao" que parece imu-tavel e imutada mas que na realidade nada mais fezque estabelecer continuamente novas regras e novosdogmas com base em constantes revolu~6es. TOdogrande artista, dentro de urn sistema dado, violou con-tmuamente suas regras, instaurando novas possibilida-des formais e novas exigencias da sensibilidade: depoisde Beethoven 0 tipo de expectativas apresentado peloespectador ao ouvir uma sinfonia de Brahms era semduvida diferente e mais vasto do que as que eramdisponiveis antes de Beethoven, apos a li~ao de Haydn.

Todavia, as poeticas da nova musica (e com elasa arte contemporanea em geral - e enfim todos aque-les que consider am a arte contemporanea expressao deimprescindiveis exigencias de nossa cultura) reprovamna tradi~ao classica 0 fate de que essas novidadesformais e essas expectativas da sensibilidade eram ime-di:atamente organizadas no interior de um novo mundode formas assuntivas, que elegiam como valor prefe-rencial 0 completamento, a satisfa~ao final da expec-tativa, encorajando e celebrando 0 que Henri Pous-seur chama de inercia psicol6gica. A tonalidade criauma polaridad~ em torno da qual gira tOda a compo-si<;:ao,sem afastar-se dela a nao ser por breves mo-mentos: as crises, portanto, sao introduzidas para

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secundar a inercia auditiva, reconduzindo-a ao polo deatra9ao. Pousseur observa que a propria introdu9aoduma nova tonalidade no desenvolvimento de uma pe-9a exigia urn artificio capaz de veneer a custo estainercia: a modulariio. Mas a modula9ao, subvertendoo conjunto hienirquico, introduz por sua vez urn nbvopolo de atra9ao, uma nova tonalidade, urn nbvo sis-tema de inercia.

Tudo isso nao se dava por acaso: as exigencias for-mais e psicologicas da arte refletiam as exigencias re-ligiosas, poHticas e culturais de uma sociedade baseadana ordem hierarquica, na n09ao absoluta de autori-dade, na presun9ao mesma de uma verdade imutavele univoca cuja necessidade se reflete na organiza9aosocial, e que as formas da arte celebram e reproduzemem seu nivel42•

As experiencias das poeticas contemporaneas (e,apesar do discurso ter-se desenvolvido quase sempresbbre as formas musicais, sabemos perfeitamente quea situa9ao interessa a toda arte de hoje) nos dizemque a situa9ao mudou.

A busca de uma abertura de segundo grau, da am-bigilidade e da informa9ao como valor primeiro daobra representam a recusa da inhcia psicol6gica co-mo contempla9ao da ordem reencontrada.

Agora a enfase e dada ao processo, a possibilidadede individuar muitas ordens. A receP9ao de uma men-sagem estruturada de modo aberto faz com que a ex-pectaiiva de que se falou nao implique tanto uma pre--visiio do esperado quanta uma -expectativa do impre-

visto. Assim, 0 valor de uma experiencia estetica tendea emergir nao quando uma crise, depois de aberta, sef7cha consoante <?sco~tumes estilisticos adquiridos, eSlm quando - Imergmdo-nos numa serie de crisesc?~tinuas, num processo em que domine a improba-bIlldade - exereemos uma liberdade de escolha. En-tao instauramos, no interior dessa desordem sistemasde probabilidade puramente provisorios e 'tentativaseomplementares de outros que - simu1taneamente ouem .segunda ,instaneia - poderemos por sua vez as-sumlr, gozando da eqi.iiprobabilidade de todos eles eda disponibilidade aberta do processo global.

Dissemos que so uma psicologia que euide do mo-mento genetico das estruturas pode permitir-nos iusti-ficar essas tendencias da arte eontemporanea. E naverdade a psieologia pareee aprofundar hoje seu dis-eurso na mesma dirC9ao em que 0 aprofundam aspoeticas da obra aberta.

~42) "A musica cllissica fornece uma representadio do mundo e dasrela~oes deste com 0 homem sensivelrnente abstrata e, em cectos aspec-t?s! concr~ta~~nte ~eral. Baseada e~sencialmente numa estetica da repe-l1~ao, da mdlvldua~ao atual do G"e e atual no que e diferente do imovel!I0 fu~az, ela ainda volta a ligar-se, em cada uma de suas m~nifesta~5es,lnclu.:ilve "n~s men?re~, aos veIhos mHos do Eterno Retorno, a uma con-c:p~ao .clChca, pen6dlca, do tempo, como urn continuo dobrar-se do devirsobre Sl mesmo. Nessa miisica todo 0 dinamismo temporal acaba sendosempre re7c;>mposto, sempre reabs<?rvi~o num elemento de base perfeita-mente estatIco, todos os eventos sac mexoravelmente hierarquizados inte-g.ralrnente ~s':!bordinados, em substancia, a uma (mica origem, urn' unicofIm, urn umeD centro absoluto com 0 qual alias se identifica 0 ego doolivi,nte, cuja. conscje~cia e assim assirnilada a de urn deus ... A audicaoIT!uslcal de tlpo c~asslco reflete a submissao total, a subordina~ao incon-d'SlOnada do ouvmte a uma ordem autoritaria e absoluta: cujo caraterhramco era ulteriorme.nte acentuado, na epoca classica propriamente dita,pelo fato da audil;ao musical constituir tambem uma reunHio social, a1ual os membros da sociedade iluminada dificilmente podiam subtrair-se."(H. PousseuT, "La nuova sensibilita musicale", em Incontri Musicali.malo de 1958; v. tambem "Forma e pratica musicale", ib., agosto 1959.)

A mesma tematica informacional pode eonvergir napesquisa psicologica, abrindo caminhos bastante feeun-dos. Ombredane 43, ao examinar 0 velho problema deuma pereeP9ao que e no fundo uma defor1rU1{:iio doobjeto (no sentido de que ha varia9ao do objeto eon-forme a predisposi9ao do pereeptor), reconheee, jun-tamente eom outros estudiosos ja citados, que 0 proees-so de explora9ao se imobiliza afinal por efeito deuma decisao, dando origem a uma forma que se eris-taliza e se imp6e. Mas a pergunta "de onde vem estasformas?" Ombredane reeusa-se a dar a resposta ges-t::iltica inspirada nos principios do isomorfismo e exa-mina, ao inves, a genese do fenomeno estrutural aluz do fator experiencia.

"Se eompararmos os diferentes pontos de vista ...eonstataremos que 0 eaniter fundamental da pereep9aoe 0 fato de ela resultar de urn processo flutuante, quecomporta trocas ineessantes entre predisposi9ao do su-jeito e eonfigura96es possiveis do objeto, e que essaseonfigura~6es do objeto sao mais ou menos estaveis

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au instaveis dentro de urn sistema espacio-temporal maisou menos isolado, caracteristico do epis6dio compor-tamental. .. A percep~ao pode ser expressa em ter-mos de probabilidade, da ac6rdo com 0 que se ve natermodinamica ou na teoria da informa~ao." De fate,o percebido apresentar-se-ia como a configura~ao sen-sivel, momentaneamente estabilizada, sob a qual semanifesta 0 reagrupamento mais ou menos redundantedas informag6es uteis que 0 receptor extraiu do campoestimulante, no decorrer da operagao perceptiva. Issoporque 0 pr6prio campo estimulante oferece a possi-bilidade de se extrair dele urn numero indeterminadode modelos com redundancia variavel; mas tambemporque aquilo que os gestaltistas chamam de "boaforma" e, na realidade, aquele que, entre todos os mo-delos, "requer uma informagao minima e comport a umaredundancia maxima". Assim, a boa forma correspon-deria "ao estado de probabilidade maxima de urn con-junto perceptive flutuante".

Apercebemo-nos entao de que, traduzida em ter-mos de probabilidade estatistica, a nogao de boa formaperde toda conotar;ao de necessidade ontol6gica e naocomport a mais, como seu correspondente, uma estru-tura prefixada dos processos perceptivos, urn c6digodefinitivo da percepgao.

Ocampo estimulante de que fala Ombredane, queoferece varias possibilidades de agrupamento redun-dante gragas a sua indetermina~ao, nao se op6e a boaforma como se oporia ao percebido urn informe naoperceptivel. Num campo estimulante, 0 sujeito indi-vidua a forma mais redundante quando a isso e soli-citado por prop6sitos especiais, mas de tambem poderenunciar a boa forma em favor de outros modelosde coordena~ao, que permanecem possiveis em pers-pectiva.

Quer do ponto de vista operativo, quer tipol6gico,Ombredane pensa que se poderia caracterizar diver-sos tipos de explora~ao do campo estimulante: "Po-der-se-ia distinguir 0 individuo que encurta sua ex-ploragao e resolve desfrutar uma estrutura percebidaantes de ter aproveitado todos os elementos de infor-ma<;ao que poderia colher; 0 individuo que prolongasua explora<;ao, proibindo-se de adotar as estruturas quese the apresentam; 0 individuo que harmoniza as duas

at~tudes, s~ja pa~a confrontar mais decis6es possiveis,s~Ja pa~a, I.ntegra-Ias da maneira melhor num perce-bId? umtano progressiva!De~t~ construido. A elas po-denamos acrescentar 0 mdividuo que desliza de uma~ ?~tra estrutura sem tomar consciencia das incompa-tIbIhdades que podem existir entre elas -como seda. no on!rismo. Se a percepgao e urn 'compromisso',eXIstem dIVersos modos de comprometer-se ou de evitarcomprometer-se em dire<;ao a uma pesquisa de infor-ma~6es uteis".

Esta rapida resenha tipol6gica vai desde os limitesdo m6rbido ate os do quotidiano: mas permite umavasta area de possibilidadesperceptivas, justificando at6das. E desnecessario frisar 0 valor que essas hip6-teses psicol6gicas podem apresentar dentro das fina-]idades de nosso discurso estetico. Somente acrescen-taremos que, estabelecidas tais premissas, 0 psic610godevera perguntar-se em que medida urn appr(mtissagebaseado em exerdcios perceptivos e opera<;6es intelec-t~ais de !ipo. inedito Ira modificar os esquemas de rea-90e~ habitUaIS (em que medida, portanto, 0 exerdciod~ mforma<;ao transformara aquilo que ofende os c6-digOS e os sistemas de expectativas em elemento de~m novo c6digo e de urn novo sistema de expectativas).E, urn p~0.blema que ~ esteti~a e a fenomenologia dogosto venficaram atraves de seculos de experiencia (ain-da que ao nivel das macroestruturas perceptivas), de-monstrando que novos exerdcios formativos modifi-cam 0 sentido. das formas, nossas expectativas acercadas formas, nosso modo de reconhecer a pr6pria rea-lidade44.

A p06tica da obra aberta apresenta-nos justamen-te uma possibilidade hist6rica deste tipo: 0 afirmar-sede uma cultura que admite, diante do universo das for-mas perceptiveis e das opera<;6es interpretativas, a com-plementaridade de inspe<;6es e solu<;6es diferentes; a

(44 ) Em resposta a critica de Ruwet, citada na nota 41 diremosent~o que urn sistema de oposi~oes somente poden! ser jUlg~do maisestavel que outros na medida em que pudermos demonstrar que corres-p~n?e a patterns fixos e privilegiados do sistema nervoso. Se, ao con-trano, _esses proces2lOs puderem. adaptar-se e modificar-se em fun~ao daevolu~ao da sltua~ao anlropol6g1ca em seu conjunto, entao nao se que-brara aquela cadeia isom6rfica ideal que se supoe unir as estruturas deuma lingua as estruturas da percep~ao e da inteligencia (melhor: asS1~postas estruturas de uma suposta constllncia da mente humana)? Enao se estabelecera entao, entre estruturas da lingua e estruturas damente, uma rela~ao dialetica no curso da qual tornar-se-a bastante dificilestabelecer quem modifica e quem e modificado?

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justifica~ao de uma descontinuidade da ex~ri~ncia:assumida como valor em lugar de uma contmuldadeconvencionalizada, a organiza~ao de diferentes decisoesexplorativas reduzidas a unidade por um~ ~ei.que naolhes prescreva resultados absolutamente Ideilticos masque, pelo contnrrio, as encare como vlilidas justamenteenquanto se contradizem e se completam, entram emoposi<;aodialetica gerando assim novas perspectivas einforma~oes mais amplas.

No fundo, um dos elementos de crise para a civili-za<;ao burguesa contempod.nea e dado pela incapaci-dade, por parte do homem medio, de subtrair-se a"sistemas de formas adquiridas que the sao fornecidosde fora, que ele nao conquistou atraves de uma ex-plora<;ao pessoal da realidade. Doen<;as sociais taiscomo 0 conformismo ou a heterodire~ao, 0 gregarismoe a massifica<;ao,sao justamente froto de uma aquisi-~ao passiva de standards de compreensao e juizo, iden-tificados com a "boa forma" tanto em moral quantaem politica, em dietetica como no campo da moda,ao nivel dos gostos esteticos ou dos principios peda-g6gicos. As persuasoes ocultas e as excita~oes subli-minares de todos os tipos, desde a poHtica ate a pu-blicidade comercial, contam com a aquisi~ao pacificae passiva de "boas formas" em cuja redundancia 0

homem medio repousa sem esfor~o.Perguntamo-nos entao se a arte contemporanea,

educando para a· continua ruptura dos modelos e dosesquemas - escolhendo para modelo e esquema a efe-meridade dos modelos e dos esquemas e a necessidadede seu revezamento, nao somente de obra para obra,mas dentro de uma mesma obra - nao poderia repre-sentar um instrumento pedag6gico com fun~oes liber-tadoras; e nesse caso seu discurso iria alem do niveldo gosto e das estruturas esteticas, para inserir-se numcontexto mais amplo, e indicar ao homem modernouma possibilidade de recuper~ao e autonomia.

Falar numa poetica do Informal como sendo tipicada pintura contemporanea implica uma generaliza~iio:saindo da categoria critica, "informal" passa a serqualific~ao de uma tendencia geral da cultura de urnperiodo, de maneira a abranger, conjuntamente, figurascomo Wols ou Bryen, os tachistes propriamente ditos,os mestres da. action painting, a art brut, a art autreetc. A esse titulo, a categoria de informal entra nadefini~ao mais ampla de poetica da obra aberta 1.

I~ Gillo Dorfles, em VII/me tendenze dell'arte d'ogg/ (Milano, Fel-trln\iW,' 1961), limita a definii<iiode "informal" "aquelas formas deabstratismo onde falta nlio somente toda vontade e toda tentativa defigurS!<lio,mas tambem toda vontade signica e semAntica" (pag. 53).Entretanto, neste nosso ensaio,. que trata das formas "abertas" da

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Obra aberta como proposta de urn "campo" depossibilidades interpretativas, como configura<;ao deestimulos dotados de uma substancial indetermina<;ao,de maneira a induzir 0 fruidor a uma serie de "Iei-turas" sempre variaveis; estrutura, enfim, como "cons-tela<;ao" de elementos que se prestam a diversas rela-<;oes recfprocas. E nesse sentido que 0 informal napintura sc liga as estruturas musicais abertas da mu-sica pos-weberniana, bem como aquela poesia "novls-sima" que ja aceitou, par admissao de seus represen-tantes, a defini<;ao de informal.

o informal pictorico poderia ser visto como 0 eloterminal de uma cadeia de experiencias cujo objetivo eintroduzir urn certo "movimento" no interior da obra.Mas 0 termo "movimento" pode ter diversas acep<;oes,e busca de movimento e tambem aquela, desenvolvidaparalelamente a evolu<;ao das artes plasticas, que jaencontramos nas pinturas rupestres ou na Nike de Sa-motracia (busca portanto de uma representa<;ao, notra<;o fixo e imovel, de urn movimento proprio .doscbjetos reais representados). Outra forma de movi-mento obtem-se com a repeti<;ao da mesma figura,visandv a representar uma personagem ou uma inteirahist6ria em momentos sucessivos de seu desenvolvi-menta; e a tecnica adotada no timpano do portal deSouillac com a historia do clerigo Teofilo, ou a tec-nica da Tapisserie de fa Reine Mathilde de Bayeux,verdadeira narrativa "fHmica" feita de muitos fotogra-mas justapostos. Tratava-se, parem, de uma repre-senta<;ao do movimento por intermedio de estruturassubstancialmente fixas ; 0 movimento nao atingia a es-trutura da obra, a propria natureza do sinal.arte de hoje. cujos parametros organicos as vezes parecem DaD caber nano~ao tradicional de "forma", parece-nos oportuno falar de "informal"~ut,TI sentido mais amplo. E exatamente esse 0 criteria adotado r . .)· numeroU~lCO de II Verri dedicado ao informal (junho de 1961), onde aparecem,al~m de uma n~trida serie de interven96es de fi16sofos, edticos, pintores,Ires densos ensalOS, de G. C. Argan. R. Barilli, E. Crispolti. 0 presentetextc, publicado no mesmo numera, juntamente com os trabalhos acimac~tados~ nao consid~ra. por is so mesmo, essas importantes contribuic;6es itd.l~cussao sobre 0 mformal, e recomenda-os para uma arnplia~ao de ho-nzontes e urn complemento dos temas. (Acrescente-se que este ensaio foieEc:i~o. antes que, finda a "estac;ao" do informal, as varias experienciasantltetlcas aqui citadas - arte cinetica etc. - se caracterizassem comotais e rbssem etiquetadas com termos t3;is como op art e similares. Acha-mos portanto que as analises deste texto permanecem validas tambempara muitas pesquisas da arte pas-informal - e que, seja cOmo for,$~Ive~ para definir as caractedsticas historicamente salientes da expe-nencla Informal [1966].)

Ao contrario, agir sobre a estrutura quer dizer to-mar a dires:ao esbo<;ada por Magnasco, ou por Tinto~retto, au, melhor ainda, pelos Impressionistas: 0 signofaz-se impreciso e ambiguo, na tentativa de dar umaimpressao de anima<;ao interior. Mas a ambigtiidadedo signa nao torna indeterminada a visao das formasrepresentadas: sugere como que uma conatural vibra-tilidade delas, um contato mais intimo com 0 ambien-te, poe em crise os contornos, as distin<;oes rigidasentre forma e forma, entre formas e luzes, entre formase fundo. Porem 0 olho e sempre induzido a reconhe-cer aquelas - e nao outras - formas (apesar de jainduzido a encarar a possibilidade de uma eventual dis-solu<;ao, a promessa de uma fecunda indetermina<;ao,ao .assistir a uma crise das configura<;oes tradicionais,urn apelo ao informe, tal como se manifesta nas cate-drais do ultimo Monet).

A amplia<;ao dinamica das formas futuristas e adecomposi<;ao cubista sugerem, sem duvida alguma, ou-tras possibilidades de mobilidade das configura<;6es;mas, enfim, a mobilidade e permitida justamente pelaestabilidade das formas adotadas como dado injcial,reconfirmadas no momenta mesmo em que sad'<nega-das atraves da deforma<;ao ou da decomposi<;ao.

E na escultura que encontramos outra decisao deabertura da obra: as formas phisticas de Gabo ou deLippold convidam 0 fruidor a uma interven<;ao ativa,a uma decisao motora em favor de uma poliedricidadedo dado inicial. A forma, definida em si, e construidade modo a resultar ambigua e visivel, sob diversosangulos, de diversos modos 2. Quando 0 fruidor cir-

(2) Aparenlemenle, as declara90es de poetica de urn Gabo niioharmonizam com a ideia de obra aberla. Em carta de 1944 a HerbertRead (em Read, The Philosophy of Modern Art. London, Faber & Faber,1'952) Gabo fala do absolulo e do exato nas Iinhas, de imagens daordem e nao do caDs; "Todos nos construfmos a imagem do mundocomo gostariamos de que ele fosse e esse nossa mundo espiritual serasempre aquilo que fazemos e como 0 fazemos. ~ a Humanidade sozinhaque 0 forma numa certa ordem, fora de uma massa de realidades inco-erentes e inirnigas. Isso e 0 que me parece ser construtivo. Eu escolhia exatidao de minhas linhas." Mas relacionemos essas afirma~oes comque 0 proprio Gabo dizia em 1924 no Manifesto do Construtivismo:ordem e exatidao sao os parametros baseada nos quais a arte moldaa organiddade da natureza, sua formatividade interna,' 0 dinamismo deseu crescjmento. Portanta a arte, embora seja uma imagem conclufdae definida, e capaz de oferecer, atraves de elementos cineticos, aqueleprocesso continuo, que e crescimento natural. Tal como uma pais~gem,uma dobra do terrena, uma mancha sobre urn muro, a obra de artepresta-se a diversas visualiza~5es e apresenta perfis carnbiantes, a artereflete em si, grac;as as suas caractedsticas de ordem e exatidao, amobilidade dos evenlOs naturais. 1!: uma obra definida, podemos d1zer,

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cunavega a forma, ela Ihe aparece como varias formas.o mesmo ja se dava parcialmente com a construyaobarroca e com 0 abandono da perspectiva frontal pri-vilegiada. Obviamente, a possibilidade de ser vista dediversas perspectivas pertence a toda obra de escul-tura, e 0 Apolo de Belvedere visto de lado apresenta--se diferente de quando e visto de frente. Mas, a naoser quando a obra e construida de modo que exige avisao frontal exclusiva (pensemos nas estatuas-colunadas catedrais goticas), a forma vista sob varias pers-pectivas visa sempre a obter a convergencia da aten-yao para 0 resultado total - em relayao ao qual osaspectos de perspectiva sao complementares e permi-tem uma apreciayao global. 0 Apolo visto por trassugere 0 Apolo total, a visao frontal reafirma a visaoprecedente, uma leva a desejar a outra como comple-mento, ainda que imaginativo. A forma completa re-constroi-se pouco a pouco na memoria e na imaginayao.

Ao contrario, a obra de Gabo, vista de baixo,faz-nos intuir a coexistencia de perspectivas variaveisque se excluem reciprocamente. Satisfaz-nos em nossaperspectiva atual e deixa-nos perturbados e curiososante a suspeita de que se possa imaginar simultanea-mente a totalidade das perspectivas (0 que, na reali-dade, e praticamente impossivel)3.

Calder da um passo a frente: agora a propria for-ma se move sob nossos olhos e a obra torna-se "obraque se faz imagem duma natureza "aberta". E Read, embora cepticopara com outras formas de ambigiiidade phistica, observa: "'A peculiarvisao da realidade comum ao construtivismo de Gabo ou de Pevsner naotern sua origem nos aspectos superficiais da civilizacao mecanica nemnuma redus:ao dos dados visuais a sellS 'pIanos cubicos' ou 'v~lumesphisticos' . .. mas numa visao do processo estrutural do universo fisicotal como e revelado pela eieneia moderna. 0 melhor preparo a apre:eiac;ao da arte construtivista e 0 estudo de Whitehead ou de Schroedin-ger .. , A arte - e a sua funC;ao maxima - aceita a multiplieidadeuniversal que a ciencia investiga e revela, mas a reduz it concretude deurn simbolo plastico" (pag. 233).

(3) Ezra Pound manifesta impressao semelhante perante as obrasde Brancusi: "Brancusi escolheu uma tarefa terrtvelmente mais difieil:reunir todas as· formas numa s6 e algo que exige tanto tempo quantoa contemplac;ao do universo' para qualquer budista... Poder-se-ia dizerque cada urn dos milhares de angulos sob os quais se considera umaestatua deveria ter vida pr6pria (Brancusl permitir-me-a escrever: vidadivina) . .. Mesmo 0 extremado adorador da arte mais exercravel admi-tira que e mais facil construir umil estatua que agrade considerada deum angulo, do que fazer uma capaz de satisfazer 0 espectador emqualquer angulo pelo qual seja olbada. Compreende-se que e maisdiffcil comunicar essa 'satisfacao formal' corn a ajuda de uma unicamassa, que provocar urn interesse visual efemero por m~io de combi~nac;oes monumentais e dramaticas ... " (Oepoimento sobre Brancusipublicado en' The Little Review, 1921.)

em movimento". Seu movimento compoe-se com 0do espectador. A rigor jamais deveria haver doismomentos, no tempo, em que a posi~ao reciproca daobra e do espectador pudessem reproduzir-se de modoigual. 0 campo das escolhas nao e mais sugerido, ereal, e a obra e ~m campo de possibilidades. Os "vi-drinhos" de Muriari, as obras em movimento da no-vissima vanguarda, levam as Ultimasconseqiiencias essaspremissas 4.

E eis que, ao lado dessas direyoes formativas, te-mos as do Informal, tornado no sentido mais amploque ja definimos. Nao mais obra em movimento, poiso quadro esta ai, sob os nossos olhos, definido de umavez por todas, fisicamente, nos signos pict6ricos que 0comp6em; nem obra que exija 0 movimento do frui-dor, pelo menos nao mais do que 0 exija qualquerquadro que pede para ser visto levando em conta asvarias incidencias da luz s()bre as asperezas da ma-teria, sobre os relevos da c()r: E contudo, obra abertacom pleno direito - quase de modo mais maduro eradical - pois aqui os signos verdadeiramente se com-pOem como constel~oes nas quais a rela~ao estrutu-ral nao e, de saida, determinada de modo univocc,nas quais a ambigtiidade do signa nao e reconduzida(como para os Impressionistas) a uma reafirm~iiofinal da distin~ao entre forma e fundo, mas 0 pr6priofundo se torna tema do quadro (0 tema do quadrotorna-se fundo, comopossibilidade de continua me-tamorfose) 5.

.• ~4) Cit~l1!0s, al6m _dos dlebres vidrinhos lle Munari, certas expe-nenc,as da ultima gerac;ao, como os Mlrlorama do Grupo T (AnceschiDorian!, Colombo, Deveccni) e as estruturas transformaveis de Jacoo~Agam, as "constela~lles m6veis" ae Pol Bury, os rotorellel de Ouchamp("0 artista nao realiza sozinho 0 ato de criaC;ao, pois 0 espectador esta-belece 0 contsto da obra com 0 mundo exterior, decifrando e interpre-tando suas qualificac;lles profundas, e, agindo desta forma, aerescentasua contribuiC;ao aD processo criativo"), os objetos de composiC;ao reno-vaveJ de Enzo Mari, as estruturas articuladas de Munari, as folbas m6veisde Oiter Rot, as estruturas eineticas de Jesus Soto ("sio estruturas cin6-ticas porque aproveitam 0 espectador como motor. Refletem 0 movi-mento do espectador, mesmo que seja apenas 0 de seus olhos. Preveemsua capacidade de mover-se, solieitam sua atividade sem violenta-Ia. saoestruturas cineticas porque nao contem as for~as que as animam. Porqueas for~as que as animam, seu dinamismo, sio tomadas de emprestimoao espectador", observa Claus Bremer). as maquinas de Jean Tinguely(que, deformadas pelo espectador e postas em rotsc;io, desei1ham con·figurac;lles sempre novas).

(~) Destarte, ainda que nio seja constituido por elementos m6veis,o quadro informal aperfeic;oa a tendeneia. de varios tipos da esculturaeinetica. tomando-se, de objeto, "espetaculo", conforme observa AlbinoGalvano na nota "Arte come oggetto e arte come spettacolo" (II Vc"',n6mero sabre 0 Informal, eit., pags. 184-187).

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Oai a possibilidade - por parte do fruidor - deescolher as pr6prias dire~6es e coliga~6es, as pers-pectivas privilegiadas por eleic;:ao, e de entrever, nofundo da configurac;:ao individual, as outras individua-c;:6espossiveis, que se excluem mas coexistem, numacontinua exclusao-implica~ao reciproca. Portanto, da-qui se originam dois problemas, trazidos nao s6 poruma poetica do Informal,. mas por toda a poetica daobra aberta: I) as raz6es hist6ricas, 0 backgroundcultural dessa decisao formativa, a visao do mundoque ela comporta; 2) as possibilidades de "leitura" detais obras, as condi~6es comunicativas a que sao sub-metidas, as garantias de uma relac;:ao de comunicac;:aoque nao degenere no caos, a tensao entre a massa deinforma~ao intencionalmente posta ao dispor do frui-dor e urn minimo de compreensao garantida, a adequa-c;:aoentre a vontade do figurador e a resposta do con-sumidor. Como se ve, em ambos os problemas naose faz questao do valor estetico, da "beleza" das obras .em discussao. 0 primeiro ponto pressup6e que asobras, para manifestarem de modo fecundo uma visaoimplicita do mundo, bem como os liames com tOdauma condi~ao de cultura contemporanea, satisfac;:am,ao menos em parte, as condic;:6esindispensaveis aqueleparticular discurso comunicativo que se costuma definircomo "estetico". 0 segundo ponto exarnina as con-dic;:6es comunicativas elementares em cuja base, sub-seqiientemente, seja possivel empreender 0 exame deuma comunicatividade mais rica e profunda, carac-terizada pela fusao organica de elementos multiplices,tipica do valor estetico. A discussao sobre as possi-bilidades esteticas do Informal constituira portanto aterceira fase do discurso que desejamos desenvolver.

Com referencia ao seu primeiro aspecto, 0 Infor,.mal relaciona-se insofismavelmente com uma condi~aogeral de todas as obras abertas. Trata-se de estrutu-ras que se apresentam como metaforas epistemo16gi-cas, como resoluc;:6esestruturais de uma consciencia teo-retica difundida (nao de uma teoria determinada, masde uma convic~ao cultural assimilada): representam a

repercussao, na atividade formativa, de determinadasaquisic;:6es das metodologias cientificas contemporil-neas, e a reafirmac;:ao, na arte, daquelas categorias deindeterminac;:ao, de distribuic;:aoestatistica, que regulama interpretac;:ao dos fatos naturais. Dessa maneira, 0

Informal coloca em questao, pelos meios que the saopr6prios, as categorias da causalidade, as 16gicas adois valores, as relac;:6es de univocidade, 0 principiodo terceiro excluido.

Nao se trata aqui da objec;:aodo fil6sofo que sepreocupa em encontrar a todo custo uma mensagemconceitual implicita nas atitudes tomadas pe1as formasda arte. E um ate de autoconsciencia dos mesmosartistas que, no pr6prio vocabulario que utilizampara suas declarac;:6es de poetica, traem as influen-cias culturais contra as quais reagem. Muitas vezeso uso acritico da categoria cientifica para caracterizarurn comportamento formative e bastante perigoso; trans-portar um termo tipico das ciencias para 0 discursofilos6fico ou para 0 discurso crftico imp6e uma seriede verificac;:6es e delimitac;:6es do significado, de ma-neira a determinar em que medida 0 emprego do ter-mo tenha valor sugestivo e metaf6rico. E bem ver-dade que quem se escandaliza e teme pe1a pureza dodiscurso filos6fico quando se defronta com 0 uso, emestetica ou alhures, de termos tais como "indetermi-nac;:ao", "distribuic;:ao estatistica", "informac;:ao", "en-tropia" etc., esquece que a filosofia e a estetica tra-dicional sempre se valeram de termos como "forma","potencia", "germe" e assim por diant~, que na origemnada mais eram do que termos fisico-cosmol6gicostranspostos para outro campo. Mas tambem e verdadeque justamente devido a essas desenvoltas comist6esterminol6gicas foi possivel discutir a filosofia tradicio-nal do alto de atitudes analiticas mais rigorosas: peloque, alertados por essas lic;:6es, ao encontrarmos umartista que usa determinados termos da metodologiacientifica para designar suas intenc;:6esformativas, naonos arriscaremos a imaginar que as estruturas dessaarte refletem as presumidas estruturas do universe real;notaremos apenas que a circulac;:ao cultural de deter-minadas no~6es influenciou particularmente 0 artistaem questao, de tal forma que sua arte quer e deve servista como a reac;:aoimaginativa, a metaforiza~ao estru-

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tural, de certa VIsao das coisas (que as aquisi~6es daciencia tornaram familiar ao homem contemporaneo).Nesse sentido, nossa pesquisa niio teni ocarater deuma inspe~iio ontol6gica, mas de uma contribui~iiomais modesta a hist6ria das ideias.

Sao muitos os exemplos e poderiam ser extraidosde varios programas de exposi~oes ou artigos criticos 6.

Como urn especialmente significante, citamos 0 artigode George Mathieu, D'Aristote a l'abstraction lyrique 7,

onde 0 pintor procura delinear a passagem progressiva,na civiliza~iio ocidental, do ideal para 0 real, do realpara 0 abstrato e do abstrato para 0 possivel. E umahist6ria genetica das poeticas do Informal e da abstra-~iio Hrica, e daquelas formas novas que a vanguard adescobre antes que a consciencia comum saiba integra--las. A evolu~iio das formas apresenta-se a Mathieuparalela ados conceitos cientificos:

Se assistimos ao desmoronar de todos os valores c1assicosno dominie da arte, uma revolu~ao paralela, igualmente pro-funda, se processa no campo das ciencias, onde a recentea!lul~~ao dos con~eitos de espa~o, a materia, a paridade, a gra-vlta~ao, 0 renasclmento das noerOes de indeterminismo e pro-babilidade, de contradi~ao, de entropia, postulam 0 despertarde urn misticismo e as possibilidades de uma nova transcen-dencia.

Concordamos em que, no plano metodol6gico, umano~iio como a de indeterminismo nao postula nenhu-ma possibilidade mistica, mas somente permite des-

(6) Veja-se, pot exemplo, a declara~ao dos jovens artislas de "Mi-riorama": "Cada aspecto da realidade, cor, forma, luz, espa~os geo-metricos e tempo astronomico, e 0 aspecto diverso corn que se da 0ESPA<;o-TEMPO, ou melhor: modos diversos de perceber 0 relacionamentoentre ESPA<;O e TEMPO. Consequentemente, consideramos a realidade comodevir ininterrupto de fenomenos que se tomam perceptiveis para, 116snavaria~ao. Desde que uma realidade entendida nesses termos tomou 0lugar, na consciencia do homem (ou somente ern sua intui\;ao), de umarealidade fixa e imutavel, reconhecemos nas artes uma' tendencia a ex-pressar a realidade ern seus termos de devir. Portanto, considerando aobra como uma realidade feita corn os mesmos elementos que consti-tuem aque!a 'realidade que nos circunda, e preciso que a pr6pria obraesteja ern continua varia~ao". Outros artistas falam da introdu~ao dadimensao tempo na vida interior da obra. Alhures falou-se de relafOode indelerminafOo colocada no domlnio da imagem ja polos pr6prios(ubislas. Tambem foi dito, a prop6sito de Fautrier, que "ele estabeleceurn novo espa~o intersideral e participa das pesquisas cientificas atuais"(Verdet). E ouviu-se falar tambem de realidades nucleares representadaspela nova pintura. Mathieu falou de episthemologie du deeentremeni.Todas elas,' expressOesnao verificadas, mas que mesmo assim qualificamestados de espirito que nao podem ser deixados de lado.

(7) Em L'Oeil, abrll de 1959.

crever, com as devidas cautelas, alguns acontecimentosmicrofisicos; e em que nao deve ser permitido, noplano filos6fico, assumi-Ia com demasiada desenvoltu-ra: mas se 0 pintor, Mathieu no caso, a aceita destemodo e faz dela urn estimulo imaginativo, nao pode-mos contestar-Ihe 0 direito de faze-Io. Deveremos,ao inves, examinar se do estimulo a estrutura~ao designos pict6ricos conservar-se-a certa analogia entre avisao das coisas impHcita na no~iio metodo16gica eaquela i:nanifestada pelas novas formas. Como ja dis-semos em outra parte, a poetica do Barroco, no fundo,reage a uma nova visiio do cosmo introduzida pelarevolu~iio coperniciana, sugerida quase em termos figu-rais pela descoberta da elipticidade das 6rbitas plane-tarias realizada por Kepler - descoberta que poeem crise a posi~iio privilegiada do circulo como sim-bolo classico de perfei~iio c6smica. E assim como apluriperspectiva da constru~iio barroca se ressente destaconcep~iio - nao mais geocentric a e portanto niiomais antropocentrica - de urn universo ampliado rumoao infinito, eis que hoje tambem, como 0 faz 0 pro-prio Mathieu mais adiante em seu artigo, em teoriae possivel estabelecer paralelos entre 0 advento dasnovas geometrias nao-euclidianas e 0 abandono dasformas geometricas classicas operado pelos Fauves epelo Cubismo; entre 0 aparecimento, no campo da ma-tematica, dos numeros imaginarios e transfinitos e dateoria dos conjuntos, e 0 surgimento da pintura abs-trata; entre as tentativas de axiomatiza~ao da geome-tria por Hilbert, e as primeiras tentativas do Neoplas-ticismo e do Construtivismo:

Finalmente a Teoria dos Jogos, de von Neumann e Mor-genstern, urn dos acontecimentos cientificos mais importantesdo nosso seculo, demonstrou-se especialmente fecunda em suasaplica<;oes a arte atual, como evidenciou magistralmente Tonidel Renzio a prop6sito da action painting. Neste vasto campo,que agora vai do possivel ao provavel, nesta nova aventurado indeterminismo que rege as leis da materia inanimada, vivaou psiquica, os problemas colocados pelo Chevalier de Mere aPascal, tres seculos atras, estao tao superados quanta as no-<;oesde hasard-objectif de Dali ou de meta-ironia de Duchamp.As novas rela<;oes do acaso com a causalidade" a introdu~aodo antiacaso positivo e negativo, constituem mais uma confir-ma~ao da ruptura de nossa civiliza<;ao com 0 racionalismocartesiano.

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Nao vale a pena nos determos nas extremadas afir-ma~6es cientificas do pintor citado e na sua convic~aometafisica de que 0 indeterminismo rege as leis damateria inanimada, viva e psiquica. Mas nao' pode-mos pretender que a ciencia introduza cautelosamenteconceitos validos num ambito metodol6gico definidoe que toda a cultura de urn periodo, intuindo seu sig-nificado revolucionario, renuncie a apossar-se delescom a violencia selvagem da rea~ao sentimental e ima-ginativa. .E verdade que 0 principio da indetermina-~ao e a metodologia quantica nada dizem a respeitoda estrutura do mundo, pois somente nos informamacerca de certo modo de descrever alguns aspectos domundo; mas, em compensa~ao, nos dizem que algunsvalores que acreditavamos absolutos, vaIidos como es-truturas metafisicas do mundo (lembremos 0 principioda causalidade ou do terceiro excluido), tern 0 mesmovalor convencional dos novos principios metodol6gicosadotados, e, alem do mais, nao sao indispensaveis paraa explica~ao deste mundo ou para a funda~ao de outro.Dai, nas form as da arte, mais do que a instaura~ao ri-gorosa de valores equivalentes aos novos conceitos, en-contrarmos a nega~ao dos antigos. E simultaneamentea tentativa de sugerir, ao lado de uma nova atitudemetodol6gic~diante da provavel estrutura das coisas,uma imagem possive! deste novo mundo, uma imagemde que a sensibilidade ainda nao se apoderou, pois asensibilidade esta sempre em atraso em rela~ao asaquisi~6es da inteligencia, e ainda hoje somos levadosancestralmente a pensar que "0 sol se ergue" mesmoque ja fa~a tres seculos e meio que nossos antepassadosaprendem na escola que 0 sol nao se move.

Dai a func;:aode uma arte aberta como metaforaepistemol6gica: num mundo em que a descontinuidadedos fenomeno.s pos em crise a possibilidade de umaimagem unitaria e definitiva, esta sugere urn modo dever aquilo que se vive, e vendo-o, aceita-lo, integra-loem nossa sensibilidade. Vma obra aberta enfrenta ple-namente a tarefa de oferecer uma imagem da desconti-nuidade: nilo a descreve, ela pr6pria e a descontinui-dade. Ela se coloca como mediadora entre a abstratacategoria dametodologia cientlfica e a materia viva denossa sensibilidade; quase como uma especie de esque-

ma transcendental que nos permite comprecnder novosaspectos do mundo.

E nesta chave que devem ser interpretados as C1l10-

cienados protocolos de leitura que a critica nos pro~or-ciona diante de obras informais, quase que se entuslas-mando pelas novas e imprevistas liberdad~s que urn cam~po de estimulos tao aberto e tao amblguo oferece aimaginac;:ao:

Dubuffet Iida com realidades primordiais e com 0 'm~na·.as correntes magicas que ligam os seres humanos aosobJetosque. os cercam. Mas sua < arte e muito mai~ c?mpleta d? ~uequalquer tipo de arte primitiva. J a fiz referencla as fIlultl\?hcesambigiiidades e zonas de significado. MUltas destas sac cr~adaspela complexa organizagao espacial da tela, pela. mtenclOnalconfusao das escalas, pelo habito que tem .0 arhst~ de vere representar as coisas simultaneamente sob dlversos angulos.:.Trata-se de uma experiencia 6ptica bastan~e comple~a, P<:ISnao somente nosso ponto de vista nunca .delxa de ~ar~ar, naosomente hi'! uma grande quantidade de Impas.ses OptICO~,deperspectivas que evocam uma estrada que termma no. mel<?deuma planicie, ou aD pe de urn rochedo, mas, alem dISSO,somos constantemente atraidos pelo quadro, por uma super-ficie constantemente plana sobre a qual nao foi usada nenhumadas tecnicas tradicionais. Esta visao multi pia, entretanto, eabsolutamente normal: e assim que vemos as coisas duranteurn passeio pelo campo, subindo pequenas colinas ou seguindocaminhos sinuosos. Esta tendencia a ver as coisas colocando--nos alternativa ou sucessivamente em pontos diversos do es-pago indica tambem, evidentemente, uma relatividade - ouuma presenga simultanea do tempo. '

Fautrier pinta uma caixa como se 0 co~ceito <;Iecaixaainda nao existisse; e, mais do que um obJeto, pmta u_mdebate entre sonho e materia, urn caminhar tateante em dlregaoa caixa na esfera de incerteza onde 0 possivel e 0 real setocam. ' 0 artista tern a sensagao exata de que as coisas po-deriam ser diferentes. .. 9

A materia de Fautrier... e uma materia que nao sesimplifica, mas vai sempre adiante, ~omplicando-se, captandoe assimilando significag6es possiveis, mcorporando aspectos oumomentos do real, saturando-se de experiencia vivida ... 10

Bern outros e diversamente apropriados os atributos queconvem assegurar a representagao [de Dubuffet]: em pri~eir?lugar, os atributos da in-finidade, da i~-d!s~ingao, ~a tn~d~scn-gao (tomados, esses termos, em seu sIgnIficado ehmologlcO).Olhar atraves, segundo a 6ptica da materia, significa com efei-

(8) James Fitzsimmons, Jean Vubuffel, Bruxelles, 1958, pag. 43.(9) A. Berne-Joffroy, Les Objels de J. Faulrier, em "NRF", maio

',le 1955.(10) G. C. Argan, Va Bergson a Faulrier. "Aut Aut", jan. 1960.

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to ver desmoronar os perfis nocionais, dissolverem-se e desa-parecerem aspectos de coisas e pessoas; ou, se ainda subsistiremcorpiisculos, vestigios, presenij:as providas de alguma definiij:aoformal, discerniveis pelo olhar, essa 6ptica impoe que os co-loquemos em crise, que os inflaeionemos multiplicando-os,confundindo-os num rodopiar de projeij:oese desdobramentos. 11

o "leitor" se excita, portanto, ante a liberdade daobra, sua infinita proliferabilidade, ante a riqueza desuas adjun90es internas, das proje90es inconscientesque a acompanham, ante 0 convite que 0 quadro the faza nao deixar-se determinar por nexos causais e pelastenta90es do univoco, empenhando-se numa transac;aorica em descobertas cada vez mais imprevisiveis.

Desses "protocolos de leitura", talvez 0 mais ricoe mais preocupante seja 0 de Audiberti, quando nosrelata 0 que ve na pintura de Camille Bryen:

Finalement, il n'y a plus d'abstrait que de· figuratif. L'in-time semoule du femur des ibis, et meme des plombiers, re-cele, comme un album, comme un abhomme de famille, toutesorte de carte postale, dome des Invalides, grand hotel New--grand a Yokohama. La refraction atmospherique repercutedans Ie tissu mineral les mirages les mieux composes. Deshordes de staphylococques submedulliers s'allignent pour des-siner la silhouette du tribunal de commerce de Menton. [ ... ]L'infini de 1a peinture de Bryen me parait plus qualifie ques'il se bornait a ilIustrer l'abituel rapport de l'immobile pein-ture courante avec ce qui precede et ce qui suivra. Je repete,il Ie faut, qu'a mes yeux elle a ceei, pour e1le, q~'elle bougevraiment. Elle bouge dans tous les appels de lespace,. ducote du passe, du cote de l'avenir. Elle plonge sur ]a Ve,ge-tat ion poisonneuse du fond ou, au contraire, hors des abtmesde la carie dentaire des moucherons, elle monte vers fe clinde notre oeil et la poignee de nos mains. Les molecules quila composent, de substance chimique picturale et d'energie vi-sionnaire a la fois, palpitent et s'adjustent sous la douche ho-riwntale du regard. On prend iei sur Ie fait Ie phenomene dela creation continue, ou de la revelation continue. Une 'plume',une peinture de Bryen n'atteste pas, comme tout autre, commetoute chose iei-bas, la jonction permanente des ordres deBourse, de l'exocuticule des araignees et des bois crieur descobalts, non... Alors qu'achevee, presentable et signee, ame-nee a sa proportion sociale et commerciale, e1le attend l'atten-tion ou la contemplation de ce1ui qui la voit et dont elle faitun voyant, les formes ou les non-formes qu'elle propose aupremier abord se modifient dans l'espace en avant de la toile

(II) R. Barilli, J. Dubuffet, Materi%/(ies, Milano, Galleria del Na-viglio, 1961.

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e de la feuille et en avant, au~si, de l'ame de ce voyant,en avant! Elles accouchent, petit a petit l'astre fait sond nid,de decors et de profils secondaires tour a tour preponderants.En couches transparents ils se placquent sur l'image fonciere.Au n.iveau de la peinture, une cybernetique, comme on ditvulgalrement, se manifeste. Nous auront enfin vu I'oeuvred'art s'abhumalliser, se delacer de la signature de l'hommeacceder a une mouvementation autonome, que meme les comp~teurs d'electrons, pour peu qu'on sut au just ou les brancherse feraient un jeu de mesurer .12 '

Nesse "protocolo" temos, reunidos, OS Iimites eas possibilidades de uma obra aberta. Se metade dasrea90es anotadas nada tern a ver com urn efeito este-tieD, e sao puras divaga90es pessoais sugeridas pelossinais, tambem esse fato deve, contudo, ser Ievado emconsidera9ao: sera este limite do "leitor" em ques-tao, mais interessado nos livres jogos de sua propriaimagina9ao, ou urn limite da obra que assume aqui a fun-9ao que poderia ter, para outra pessoa, a mescalina?Mas alem destes problemas extremos, destacamos aqui,elevadas ao mais alto grau, as possibilidades de uma livreinspe9ao, de uma inesgotada revela9ao de contrastes e

(12) Jacques Audiberti, L'Oeuvre-Boite. Gallimard Paris 1952pags, 26-35. "Finalmente, nela niio ha mais abstrato do 'que fitlurativo:A intima s..cmola do femur das ibis, e mesrno dos encanadores, encerra,como urn album, como urn ab-homem de familia, toda sorte de cart6es--posta is, Dome des Invalides, grande hotel New-grand em Iokohama. Arefrac;ao atmosterica repercute no tecido mineral as miragens· mais bemcompostas. Hordas de estafilococos submedulares alinham-se para dese-nhar a silhueta do tribunal de comercio de Manton. [ .. ,] 0 infinito darl.11tl~ra de ~ryen parece-~e assim mais qualificado do que se se res-lrmglsse a llustrar a habitual relas;iio da im6vel pintura corrente como que precede e 0 que se seguini. Repito, e preciso que a rneus olhosela possui isto, em si, que ela realmente se mexe. EI~ se mexe em todosos chamados do esp~\;o, do lado do passado, do lado do futuro. Elamergulha na vegeta\;ao venenosa do fundo ou, ao contriirio fora dosabismos da carie dentaria dos mosquitos, sobe para 0 piscar' de nossosolhos e 0 aperto de nossas miios. As moleculas que a comp6em aomesI!10 tempo d~ substancia qufmica pict6rica e de energia visionan.a.palpllam e se aJustam sob a ducha horizontal do olhar. Surpreende-seaqui 0 fenomeno da cria~ao contfnua, ou da revela~ao continua. UmaH pena", uma pintura de Bryen nao atesta, como qualquer cutra, comoludo aqui emba\xo, a jun\;iio permanente das ordens de opera\;iio deBolsa, do exocutlculo das aranhas e das madeiras gritantes dos cobaltosnao. ~. QU,ando terminada, apresentavel e assinada, levada a sua pro:por\;ao social e .comercial, espera a aten\;iio ou a contempla\;iio da-quele que a vo e de quem faz urn vidente as formas ou niio-formasque prop6e ao pri!!'eiro contato modificam:se no espa\;o a frente datela e da folha e a frente, tambem, da alma deste vidente, a frente!E las parem, pouco a pouco 0 astro faz seu ninho, cenarios e periisrecundarios alternadamente preponderantes. Em camadas transparentescleg se aplicam ~a imagem fundamental. Ao nfvel da pintura, manifesta-·~e, como se dlZ vulgarmente, uroa cibernetica. Enfim, teremos viston obra de arteab-humanizarse, desatar-se da assinatura do homem,u\inp:ir uma movimenta~ao autonoma, que mesmo os contadbrcs de ele-lrons, por menos que se saiba ao certo onde articula.-los, sc divcrtiriamem n,edir".

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0posl~oes, que proliferam a cada passo. A tal pontoque, assim como 0 leitor escapa ao controle da obra, acerta altura a obra parece escapar ao controle de quemquer que seja, inclusive do autor, e prosseguir 0 dis-curso sponte sua, como urn cerebro eletr6nico enlou-quecido. Entao, nao ha mais urn campo de possibilida-des; mas 0 indistinto, 0 originario, 0 indeterminado em.estado selvagem, 0 todo e 0 nada.

Audiberti fala de liberdade cibernetica e a palavranos introduz no centro da questao: questao que jus-tamente pode ser esclarecida atraves da analise das ca-pacidades comunicativas da obra em termos de teoriada informa~ao.

A teoria da informa~ao, em suas formulac;oes nocampo matematico (nao em suas aplicac;oes praticas atecnica cibernetica)'3, fala-nos de uma diferenc;a ra-dical entre "significado" e "informac;ao". 0 significadode uma mensageni (e tambem e mensagem comunica-tiva a configura~ao pict6rica que comunica exatamentenao referencias semfmticas mas uma certa quantidadede rela~6es sintaticas perceptiveis entre seus elementos)se estabelece na proporc;ao da ordem, da convenciona-lidade e, portanto, da "redundancia" da estrutura. 0significado torna-se tanto mais claro e inequivoco quan-to mais observo as regras da probabilidade, as leis or-ganizativas prefixadas - e reiteradas atraves da repe-tic;ao dos elementos previsiveis. Ao contrario, quantamais a estrutura se torna improv8sel, ambigua, impre-visivel e desordenada, tanto mais aumenta a informa-rao. Informa~ao entendida, portanto, como possibili-dade informativa, incoatividade d.e ordens possiveis.

Em algumas condic;6es de comunicac;ao tem-se emmira 0 significado, a ordem, o' 6bvio: e 0 caso da co-municac;ao de uso pr<itico, da carta ao simbolo visual desinalizac;ao rodoviaria, que visam a ser compreendidosunivocamente, sem possibilidade de equivocos e inter-pretac;6es pessoais. Em outros casos, ao contrario, de-. (13) Acerca dos esclarecimentos que se seguem, v. 0 ensaio ante-

rior, Abertura, informa~ao, comllnica~iio.

vemos buscar 0 valor informariio, a riqueza ilimitadados significados possiveis. E 0 caso da comunicac;aoartistica e do efeito estetico - que uma pesquisa, doponto de vista da informac;ao, ajuda a explicar, semcontudo fundamenta-Io definitivamente.

, Ja dissemos que toda forma de arte, ainda queadote as convenc;oes da linguagem comum ou simbolosfigurativos aceitos pela tradic;ao, fundamenta seu valorjustamente numa novidade· de organizac;ao do materialdisponivel, que para 0 fruidor constitui sempre urnacrescimo de informac;ao. Mas atraves de arrojos ori-ginais e de rupturas provis6rias da ordem das previ-soes, a arte "classica" no fundo visa a reconfirmar asestruturas aceitas pela sensibilidade comum a qual sedirige, opondo-se a determinadas leis de redundanciaapenas para reconfirma-las de novo, ainda que demaneira original. -Pelo contrario, a arte contemporaneaparece visar como valor primeiro a quebra intencio-nal das leis da probabilidade que regem 0 discursocomum, pondo em crise os seus pressupostos, no ins-tante mesmo em que os usa para deforma-Io.6\ Quandoo poeta escreve "Fede e sustanzia di cose sperate"(Fe e substancia de coisas esperadas), adota as leisgramaticais e sintaticas da linguagem de sua epoca pa-ra comunicar urn conceito ja admitido pela teologiacorrente: comunica-o de modo especialmente fecundopois organiza termos cuidadosamente escolhidos tendopor base leis inesperadas e relac;oes originais, fundindoHio estreita e genialmente 0 conteudo semantico comos sons e com 0 ritmo geral da frase, que a torna nova,intraduzlvel, vivaz e persuasiva (capaz portanto de darao ouvinte urn alto indice de' informac;ao - que naoe porem informa~ao semantica, capaz de enriquecer aconsciencia com referentes exteriores implicados, masinformac;iio estetica, informac;iio que diz respeito a ri-queza daquela forma determinada, a mensagem comoate de comunicac;iio voltado principalmente para umaauto-explicac;iio) .

Por outro lade, 0 poeta contemporaneo que diz"Ciel dont j'ai depasse la nuit", embora realize a mes-ma operac;iio do poeta antigo (organizando numa re-lac;iio peculiar conteudos semanticos, material sonoro,ritrnos), 0 faz evidentemente com outra intenc;iio: niiopretende reconfirmar de maneira "bela", de maneira

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"agradavel" uma linguagem aceit.a e ideias ad~uiridas,mas romper as conven<;6es da lmguagem acelta e osm6dulos costumeiros de concatena<;ao das ideias, parapropor urn uso inesperado da linguagem e uma 16.gicadessueta das imagens, de tal forma que proporclOneao leitor urn tipo de informa<;ao, uma possibilidadede interpreta<;6es, urn feixe de sugest6es, que estaono antipoda do significado como comunica<;ao de umamensagem univoca.

Ora nosso discurso· em tome da informa<;ao tern, .por objetivo justa e unicamente este aspecto da comUlll-ca<;ao artistica, independentemente das outras conota-<;oes esteticas de uma mensagem. Trata-se de deter-minar ate que ponto essa vontade de novidade in~or-mativa se concilia com as possibilidades de comUlllca-<;aoentre autor e fruidor. Consideremos uma se.rie deexemplos musicais. Nesta frase, extraida de urn pe-queno minueto de Bach, Notenbuchlein fur Anna Mag-dalena Bach,

nao fosse - neste inicio de rninueto - seria fatal suporurn erro de impressao. E tudo Hio claro e lingihstica-mente consequente que mesmo urn amador pode infe-rir, a partir desta linha mel6dica, as eventuais rela<;oesharmonicas, isto e, qual seria 0 "baixo" desta frase.Completamente diverso e 0 que acontece numa com-pasi~ao serial de Webern; uma serie_de s~ns apr~sen:a--se como uma constela<;ao em que nao eXlstem dlre<;oesprivilegiadas, convites univocos ao ouvido. Falta umaregra, urn centro tonal que obrigue a prever 0 desen-volvimento da composi<;ao numa dire~ao unica. Aesta altura, ns resultados sac ambiguos: a uma sequen-cia de notas pode suceder qualquer outra, que a sen-sibilidade nao pade prever mas somente, quando mui-to - se for educada -, aceitar no momenta em quelhe e comunicada: "Do ponto de vista harmonico, emprimeiro lugar (pe1o que entendemos as rela<;6es dealtura em todos os sentidos, simultfmeos e sucessivos)constataremos que cada som, na musica de Webern,e seguido imediatamente, ou quase que imediatamente,por urn dos sons, ou ate por ambos, que formam comele urn intervalo cromatico. Porem, na maioria dasvezes este intervalo nao se apresenta como urn semi-tom, ,como segunda menor (que, em geral, ainda eessencialmente condutora, mel6dica, urn 'encadeamen- .to', e se refere sempre a deforma~ao elastica de urn mes-mo campo harmonica descrito acima), mas sim sobforma ampliada da ·setima maior ou da nona menor.Considerados e tratados como malhas elementares datessitura relacional, esses intervalos impedem a valori-za<;ao sensivel e automatica das oitavas (opera<;ao sem-pre realizavel pelo ouvido, dada sua simplicidade), fa-zem 'desviar' 0 sentido da instaura~ao de rela~oes defreqiiencia, op6em-se a imagem de urn espa~o audi-tivo 'retilineo' ... " 14.

A esse tipo de mensagem, que ja e mais ambiguado que a precedente - e traz c::,nsi~o, com uO?-sig-nificado menos univoco, uma malOr nqueza de mfor-ma~ao - segue-se, como realiza<;ao mais adiantada, acompasi<;ao eletronica, onde, nao s6 urn conjunto desons nos e apresentado fundido num "grupo" em que.e impassivel ao ouvido desenredar as rela~6es de fre-

(14) Henri Pousseur, "La nuova sensibilila musicale". em lncontriMuslcali n. 2, 1958.

podemos notar imediatamente como a adesao a umaconven<;ao probabilista e a certa redundancia con-correm para tornar claro e univoco 0 significado damensagem musical. A regra de probabilidade e a dagramatica tonal, em cujos moldes a sensibilidade doouvinte ocidental p6s-medieval e habitualmente edu-cada: nela, os intervalos nao constituem simples dife-ren~as de freqiiencia mas implicam na introdu<;ao derela<;oes.organicas dentro do contexto. 0 ouvido es-colhera sempre 0 caminho mais facil para captar essasrela<;6es, segundo urn "indice de racionalidade" ba-seado nos chamados dados "objetivos" da percep<;ao,e sobretudo no pressuposto das conven<;6es lingiiisticasassimiladas. Nos primeiros dois tempos do primeirocompasso tocam-se os graus do acorde perfeito de famaior; no terceiro tempo osol e 0 mi implicam uma har-monia dominante, que tern par evidente finalidadea reconfirma<;ao da tonica atraves do mais elementardos movimentos cadenciais; com efeito, no segundocompasso a tonica e pontualmente rebatida. Se assim

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quencia (nem 6 intengao do compositor conduzir aidentificagao dessas rela<;6es, sua intengao 6 fazer comque seja percebido 0 emaranhado dessas relag6es emtoda sua fecundidade e ambigliidade), mas tamb6m ospr6prios sons apresentados constam de freqliencias ine-ditas, desprovidas da fei<;aofamiliar de nota musical, enos transport am decididamente para fora do mundo au.-ditivo habitual, onde a presenga de probabilidades re-correntes nos conduz amiude e quase passivamente naesteira de resultados previsiveis e adquiridos. Aqui,o campo de significados se torna mais rico, a mensagemse abre para resultados diversos, a informagao aumentaconsideravelmente. Tentemos por6m, agora, levar essaimprecisao - e essa informagao - para alem do li-mite extremo: exasperemos a presen9a simultanea de to-dos os sons, enriquegamos a urdidura. Chegaremos aosom branco, a soma indiferenciada de too as as freqlien-cias. Ora, 0 som branco, que a rigor deveria propor-cionar-nos a maior informac;ao possivel, niio inform aabsolutamente mais nada. Nosso ouvido, alem de achar~-se desprovido de qualquer indicagao, nao e sequer ca-paz de "escolher". Assiste, passive e impotente, ao es-petaculo do magma original. Existe portanto um limiaralem do qual a riqueza de informagao faz-se "ruido".

Reparemos que 0 ruido tamb6m pode tornar-se si-'nal. No fundo, a musica concreta e certos exemplosde musica eletronica nada mais sac do que uma orga-nizagao de ruidos tratados como sinais. Mas 0 pro-blema da transmissao de uma mensagem desse generoconsiste justamente nisto: 0 problema da colora<;ao dosruidos brancos e 0 problema do minimo de ordem aser acrescido ao ruido para conferir-Ihe uma identi-dade, um minimo de forma espectral15•

Algo de parecido tamb6m ocorre no campo dos si-nais figurativos. Um exemplo de comunicagao redun-dante segundo modulos c1assicos, que se presta parti-cularmente a um discurso em termos de informagao, eo do mosaico. No mosaico, cada tessela pode serapreciada como unidade de informagao, um bit, e ainformagao total nos e dada pela soma das unidades.Ora, as relag6es que se estabelecem entre as tesselas deurn mosaico tradicional (tomemos, por exemplo, 0

cortejo da Imperatriz Teodora em Sao Vital de Rave-na) nao sac absolutamente casuais e obedecem a rigo-rasas regras de probabilidade. Primeira entre todas,a conven<;ao figurativa pela qual 0 fato pictorico devereproduzir 0 corpo humano e a natureza real con-ven<;ao impHcita, a tal ponto base ada em noss~s es-quemas perceptivos habituais que imediatamente levao olho a relacionar as tesselas entre si segundo as li-nhas de delimitagao dos corpos, ao passo que, porseu lado, as tesselas que delimitam os contornos saocaracterizadas por uma unidade cromatica. As tesselasn~o .su~e~em a presenga de um corpo; atraves de umadlstnbmg.ao ~lt~mente redundante, devido as repetig6esem eadem, Inslstem num determinado contorno sempossibilidadc de equivoco. Se um sinal negro ~epre-senta a pupila, uma serie de outros sinais, devidamen-te dispostos, lembrando a presenga dos dHos e daspalpebras, reitera a comunicagao em foco e induz aidentificar sem ambigiiidade alguma a presenga dool~o. Mas, serem dois os olhos, e simetricos, consti-tUI outro elemento de redundancia; e nao julguemossuperflua essa observagao, pais no desenho de um pin-tor moderno podera ser suficiente um unico olho parasugerir um rosto visto de frente; 0 fato de aqui seremos olhos sempre e rigorosamente dois, significa ado-tar .e seguir determinadas conveng6es figurativas; asquaIS, em termos de teoria da informagao, sac leisde probabilidade dentro de um sistema dado. Temosportanto aqui uma mensagem figurativa dotada de sig-nificado univoco e de uma cota de informagao limitada.

Tomemos agora uma falha de papel branco, do-bremo-Ia ao meio e borrifemos uma das metades comtinta. A configuragao resultante sera altamente casual,absolutamente desordenada. Dobremos de novo a fo-lha ao meio, de modo a fazer com que a superficieda .metade manchada coincida com a superficie dametade ainda branca. Reaberta a folha, encontrar--nos-emos diante de uma configuragao que ja recebeucerta ordem atraves da forma mais simples de dispo-sigao segundo as leis da probabilidade, segundo a for-ma mais elementar de redundancia, que e a repetigaosimetrica dos elementos. Entretanto, 0 alho, embora!Ie encontre diante de uma configuragao altamente am-bfgua, disp6e de pontos de referencia, mesmo que se-

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jam os mais obvios: encontra indicac;:oes de direc;:ao,sugestoes de relac;:oes. Esta ainda livre, muito, muitomais do que diante do mosaico de Ravena, e contudoe induzido a reconhecer algumas figuras de preferen-cia a outras. Sao figuras dessemelhante.s, para cujoreconhecimento ele carreia suas tendencias inconscien-tes, e a variedade das respost as possiveis e sinal daliberdade, da ambigiiidade, do poder de informac;:ao ti-pico da configurac;:aoproposta. ~xistem, todavia, algu-mas direc;:6esinterpretativas, a tal ponto que 0 psicologoque propoe 0 teste sentir-se-a desorientado e preocu-pado se a resposta do paciente estiver muito fora deurn campo de respostas provaveis.

Suponhamos agora que aquelas unidades de infor-mac;:ao, que eram as tesselas do mo.saico ou as man-chas de tinta, se transformem em diminutos pedacinhosde cascalho que, distribuidos uniformemente, levadosa urn ponto de grande coesao e comprimidos com forc;:apor urn rolo compressor, constituam a pavimentac;:aorodoviaria chamada "macadame". Quem olhar parauma pavimentac;:ao des.se tipo percebe a co-presenc;:adeinumeros elementos distribuidos quase que estatlstica-mente; nenhuma ordem rege sua aglomerac;:ao; a confi-gurac;:aoe abertissima e possui, em seu limite, 0 maximode informac;:ao possivel, pois estamos em condic;:oesdeligar com linhas ideais qualquer elemento a outro, semque nenhuma sugestao nos obrigue a urn sentido dife-rente. Encontramo-nos aqui na mesma situac;:aodo rui-do branco acima citado: 0 maximo de eqtiiprobabilida-de estatistica na distribuic;:ao, em vez de aumentar aspossibilidades de informac;:ao, nega-as. Isto e, mantem·,-nas no plano matematico, mas nega-as no plano da re-lac;:aocomunicativa. 0 olho nao encontra mais indica-c;:oesde ordem.

Tamb6m aqui a possibilidade de uma comunicac;:aotanto mais rica quanta mais aberta esta no delicadoequilibrio entre urn minimo de ordem admissivel e urnmaximo de desordem. Esse equilibrio assinala 0 limiarentre 0 indistinto de todas as p0ssibilidades e 0 campode possibilidades.

E este, portanto, 0 problema de uma pintura queaceite a riqueza das ambigtiidades, a fecundidade doinforme, 0 desafio do indeterminado. Pintura que pre-tenda oferecer ao olhar a mais livre das aventuras e

ao mesmo tempo constituir urn fato comunicativo, acomunicac;:ao do maximo ruido, marcada, todavia, poruma intenc;:aoque 0 qualifique como sinal. Caso con-trario, tanto faria para 0 olho inspecionar livrementeleitos de estradas e manchas sobre muros, sem necessi-dade de transportar para a moldura de uma tela essaslivres possibilidades de mensagem que a natureza e 0

acaso colocam ao nosso dispor. Repate-se bem quea intenc;:aopor si so e suficiente para marcar 0 ruidocomo sinal: a transposic;:ao pur a e simples de urn pe-dac;:ode saco para dentro do ambito de urn quadro bas-ta para caracterizar a materia bruta como artefato. Masai intervem as modalidades de caracterizac;:ao, a capaci-dade de persuasao das sugestoes de direc;:ao ante adiminuida liberdade do alho.

Freqtientemente, a modalidade de caracterizac;:aopode ser puramente mecanica, equivalente ao artifi-cio metalingiiistico constituido pelas aspas: quando cir-cunscrevo uma fenda na parede com urn trac;:ode giz,escolho-a e proponho-a como configurac;:ao dotada dealguma sugestao, e naquele trac;:ocrio-a como fato co-municativo e como obra artificial. Alias, naquele mo-mento, fac;:oate mais do que isso, caracterizo-a segun-do uma direc;:ao de "leitura" quase univoca. Outrasvezes a modalidade pode ser bem mais complexa, den-tro da propria configurac;:ao, e as direc;:oes de ordempor mim inseridas na figurac;:aopodem visar a conser-va~ao do maximo de indeterminac;:ao possivel e toda-via orientarem 0 fruidor ao longo de urn determinadofeixe de probabilidades, excluindo outras. E 0 pintorse empenha numa intenc;:aodesse genero, mesmo quandodispae a mais casual de suas configurac;:oe.s,mesmoquando distribui seus sinais de modo quase estatistico.Creio que Dubuffet, oferecendo ao publico suas maisrecentes Materiologies, nas quais e bastante evidentea referencia a leitos de estradas ou a terrenos despoja-dos de quaisquer intenc;:oesde ordem - e que portantodesejam colocar 0 fruidor perante tbdas as sugestoesde uma materia informe e livre de assumir qualquerdeterminac;:ao - ficaria, contudo, perplexo se alguemreconhecesse em seu quadro 0 retrato de Henrique Vou de Joana :D'Arc e atribuiria essa improbabilissimaforma de relacionamento a estados de espirito que bei-ram 0 patologico.

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Herbert Read, num perplexo discurso sobre 0 ta-chisme intitulado Uma arte sismograjica 16, pergunta--se se 0 jogo de livres rea<;6es sentido diante da man-cha na parede ainda seria uma rea<;ao estetica. Umacoisa, diz ele, e um objeto imaginativo, e outra e umobjeto que evoca imagens; no segundo caso, 0 artistanao e mais 0 pintor e sim 0 espectador. Palti, por-tanto, numa mancha 0 elemento de controle, a formaintroduzida para guiar a visao. Desse modo, a artetachiste, 0 renunciando a forma-controle, renunciaria abeleza, enfatizando 0 valor vitalidade.

C~nfessemos que, se a di~ot?mia, a luta, fosse es-Itabeleclda entre 0 valor da vltahdade e 0 da belezalo problema poderia deixar-nos indiferentes: se no amf-bito de nossa civiliza<;ao 0 valor vitalidade, enquantonega<;ao da forma, se tornasse reahnente preferido (6,portanto, prefedvel segundo a necessidade irracional dasvicissitudes do gosto) em detrimento do valor da belez~,nada de mal haveria em renunciar a beleza.

Mas aqui 0 problema e diferente: esta em jogo apossibilidade da comunica<;ao de um ato de vitalida-de; a provoca<;ao intencional de certo jogo de livresrea<;6es. Vivemos numa civiliza<;ao que ainda nao es-colheu a vitalidade incondicionada do sabio Zen, quecontemplafeliz as livres possibilidades do mundo aoseu redor, 0 jogo das nuvens, os reflexos na agua, ossulcos nos campos, os reflexos do sol nas folhas mo-lhadas, colhendo neles a reconfirma<;ao do triunfo in-cessante e proteiforme do Todo. Vivemos numa civi-liza<;a,9para a qual 0 convite a liberdade das associa-<;6esvisuais e imaginativas ainda 6 provocado atravesda disposi<;ao artificial de um artefato que obedece adeterminadas inten<;6es sugestivas. E na qual se pedeao fruidor nao so que .persiga livremente as associa-<;6esque 0 conjunto de estimulos artificiais the sugere,como tambem que julgue, no proprio momenta em quedesfruta (e apos, refletindo sobre seu gozo e, em se-gunda instancia, comprovando-o) , 0 objeto manufa-turado que the provocou aquela dada experiencia frui-tiva. Em outros termos, estabelece-se mais uma dia-l6tica entre a obra proposta e a experiencia que delatenho, e se pede sempre, implicitamente, que se quali-

fique a obra com base em minha experiencia e que secontrole minha experiencia com base na obra. E, aolimite, que se encontrem as raz6es de minha experien~cia na maneira particular em que a obra foi feita: jul-gando-lhe 0 como, os meios usados, os resultados ob-tidos, as inten<;6es .adaptadas, as pretens6es nao rea-lizadas. E 0 Unico instrumento de que disponho parajulgar a obra 6 justamente a adequa<;ao entre minhaspossibilidades fruitivas e as inten<;6es implicitamentemanifestadas pelo autor, quando da sua forma<;ao.

Portanto, mesmo na afirma<;ao de uma arte da vi-talidade, da ariio, do gesto, da materia triunfante, dacompleta casualidade, estabelece-se uma diaIetica ine-litninavel entre obra e abertura de suas leituras. Umaobra e aberta enquanto permanece obra, a16m destelimite tem-se a abertura como ruido.

Nao cabe a estetica estabelecer qual seja 0 "limiar",mas sim ao ato critico realizado diante de cada quadro,o ato critieo que reconhece ate que ponto a aberturacompleta de varias possibilidades· fruitivas fica todaviaintencionalmente ligada a um campo que orienta a lei-tura e dirige as escolhas. Urn campo que torna comu-nicativa a rela<;ao e nao a dissolve no diaIogo absurdoentre um sinal, que nao e sinal mas ruido, e umarecep<;ao, que nao 6 recep<;ao mas devaneio solipsista 17.

Um dpico exemplo de tenta<;ao da vitalidade e en-contrado num ensaio dedicado por Andre Pieyre de

(17) 0 problema da dialetica entre obra e abertura pertence aquelaserie de questoos da teoria da arte que antecedem toda discussao cri-tica concreta. A poetica da obra aberta indica certa tendencia geral denossa cultura, e 0 que Riegl chamaria de Kunstwolen, que Pa-no/sky define melhor como "sentido ultimo e definitivo, encontravel emdiversos fenomenos artisticos, independentemente das proprias decisoesconscientes e atitudes psicologicas do autor". Nesse sentido, uma no~aodesse genero (por ex., justamente, a dialetica entre obra e abertura)e urn conceito que nao indica como os problemas artisticos sao resol-vidos, mas sim comO sao propostos. 0 que nao significa que tais con-ceitos sejam definidos a priori, mas que sao legltimados a priori, istoe, propostos como categorias explicativas de uma tendencia geral -categorias elaboradas apOs uma serie de levantamentos sobre as variasobras. Qual seja a soIu~1ioa ser dada em cada caso a uma dialeticaassim /ormulada, e tarefa do critico definir concretamente (veja-se ErwinPanofsky, "SuI rapporto tra Ia storia dell'arte e Ia teoria dell'arte",em La prospet/im come "forma slmbo/lca", Milano, Feltrinelli, 1961,pags. 178-214).

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Mandiargues a DubuffeF8: em Mirobolus, Macadam& C., diz ele, 0 pintor alcan<;ou seu ponto extremo.o que ele nos mostra SaDse<;oesde terreno no estadoelementar, vistas perpendicularmente; nao ha mais abs-tra<;ao alguma, s6 a presen<;a imediata da materia paraque possamos goza-la em toda a sua concre<;ao. Con-templamos aqui 0 infinito em estado de p6: "Poucoantes da exposi<;ao, Dubuffet escrevia-me que suas tex-turologies levam a arte a urn ponto perigoso, onde asdiferen<;as entre 0 objeto suscetivel de funcionar comomaquina para pensar, como ecran de medita<;oes e vi-dencias, e 0 objeto mais viI e desprovido de interessetornam-se extremamente sutis e incertas. E facil com-preender que as pessoas interessadas pela arte se alar-mem quando esta e levada a urn ponto tao extremoque a distin<;ao entre 0 que e arte e 0 que nao e maisnada corre 0 risco de tornar-se embarac;:osa".

Mas se 0 pintor individua a vertente de urn equili-brio precario, 0 fruidor ainda pode empenhar-se. noreconhecimento de uma mensagem intencional, ou en-tao abandonar-se ao fluxo vital e incontrolado de suasimponderaveis rea<;6es. E esta segunda estrada a es-colhida por Mandiargues quando coloca no mesmoplano as sensa<;oes que tern diante das texturologiese as que experimenta diante do correr lamacento eriquissimo do Nilo; e quando nos lembra 0 prazer con-creto de quem afunda as maos na areia de uma praiae deixa correr os olhos sobre 0 escorregar dos minuscu-los graos entre os dedos, as palmas acariciadas pela te-pidez da materia. Vma vez escolhido esse caminho,por que ainda olhar para 0 quadro, infinitamente maispobre de possibilidades do que a areia verdadeira, 0

infinito da materia natural ao nosso dispor? Evidente-mente, porque s6 0 quadro organiza a materia bruta,sublinhando-a como bruta mas delimitando-a comocampo de sugest6es possiveis; e 0 quadro que, antesde campo de escolhas a realizar, ja e urn campo deescolhas realizadas; ate que 0 critico, antes de come<;arseu hino a vitalidade, inicia urn discurso sabre 0 pin-tor, sabre 0 que este propos; e chega a incontroladaassociac;:ao samente depois que sua sensibilidade foidirigida, controlada, endere<;ada pela presen<;a de si-

(18) "Jean Dubuffet ou Ie point extreme", em Cahiers du Musee depoche, n .. 2, pag. 52.

nais que, par livres e casuais que sejam, SaD todaviafruto de uma inten<;ao, e portanto obra.

Portanto, mais afinada com uma consciencia oci-dental da comunica<;ao artistica parece-nos ser a ins-pec;:aocritica que visa a identificar, dentro do aciden-tal e do fortuito em que a obra se substancia, os ele-mentos de "exercicio" e "pratica" atraves dos quais 0artist a consegue desencadear as for<;as do casual nomomenta apropriado, fazendo de .sua obra uma chancedomestiquee, "uma especie de par motor cujos polosnao se esgotam ao entrar em contato, mas deixam sub-sistir intata a diferenc;:a de potencial" 19, Em Dubuf-fet poderao ser as aspira<;oes geometric as com as quaisintervem para cortar a texturologie a fim de impor-lheurn freio e uma dire<;ao; motivo por que sera sempreo pintor a "jouer sur Ie clavier des evocations et desreferences" 20. Podera ser a presen<;a do desenho deFautrier, que integra e corrige a liberdade da cor, numadialetica de limite e de nao-limite 21, em que "0 signacontem a dilata<;ao da materia".

E mesmo nas mais livres explosoes da action pain-ting, 0 pulular das formas que acomete 0 espectador,permitindo-lhe a maxima liberdade de reconhecimen-

(19) Veja-se Renato .Barilli, "La pittura di Dubuffet", em II Verri,outubro de 1959; onde sac citados tambem os textos de Dubuffet, Pros-pectu.\' aux amateurs de tout genre, Paris, 1946, e especialmente a se~aoNotes pour les fins-Ietres.

(20) Lembra ainda Barilli [art. citadol: "Os Tableaux d'assemblage[1957] exploram metodicamente, como ja dissemos, 0 choque entre aatividade da texturologie e a intervenc;aot como cesuras e esquemas linea-res, do faber; 0 resultado e urn produto que simultalleamente convergepara dois limites (em sentido matematico): de urn lado, 0 aflato cos-mico, 0 caos germinal pululante de presen~as; de outro, 0 rigido cer-ramenta nocional; a resultante e justamente, como dissemos em outrolugar, urn infinito por assim dizer descontfnuo, isto e, uma euforialucida e controlada, obtida atraves da intensa multiplica~ao dos elemen-tos, cada qual mantendo todavia uma nitida defini~ao formal".

(21) Veja-se a analise efetuada por Palma Bucarelli em Jean Fau-trier, Pittura e materia, Milano, II Saggiatore, 1960. Veja-se a pag.67 a analise da continua oposi~iio entre 0 fervilhar da' materia e 0

limite das silhuetas, e a diferen~a estabelecida entre a Iiberdade do infinitosugerida, e a angustia de urn nao-limite visto como possibilidade negativada obra. A pag. 97: "nestes Objetos 0 contOrno e independente docoagulo de tinta, que todavia constitui urn dado claro de existencia: ealgo que vai alem da materia, designa urn espa~o e urn tempo, isto e,enquadra a materia numa dimensao da consciencia". :Esses sac SOmenteexemplos de certas leituras criticas, das quais nao pretendemos extra-polar aparatos categoriais validos· para toda experimenta~ao informal.Todas as vezes em que essa dialetica entre desenho e cor deixar deexistir (pensamos em Matta, Imai ou Tobey), a busca devera desen-volver-se em outro sentido. No ultimo Dubuffet, as subdivis6es geome-tricas da texturologie nao mais subsistem e contudo ainda e possivelrealizar sobre sua tela uma busca de dire~6es sugeridas, de escolhasrealizadas.

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tos, nao e apenas 0 registro de urn evento tehlrico ca-sual: eo registro de urn gesto. E urn gesto e urn plano

\ com direc;ao espacial e temporal, de que 0 signa picto- (rico e 0 relat6rio. Podemds, reversivelmente, percor-rer 0 signa em todas as direc;6es, mas 0 signa e 0 campode dire<;Oesreversiveis que 0 gesto - irreversivel desdeque esb~ado - nos impos, atraves do qual 0 gestooriginal nos orienta na busca do gesto perdido, buscaque termina ao reencontrar-se 0 gesto, e, nele, a inten-c;ao comunicativa 22. <I Pintura que tern a liberdade danatureza, mas uma natureza em cujos sinais podemosreconhecer a mao do criador, uma natureza pict6ricaque, como a natureza do metafisico medieval, fala con-tinuamente do ato original. E portanto comunicac;aohumana, passagem de uma inteflfiio para uma recepriio;e mesnto que a recepc;ao seja aberta - pois aberta eraa intenc;ao, nao intenc;ao de comunicar um unicum esim uma pluralidade de conclusOes - ela e 0 terminalde uma relac;ao comunicativa que, com9 todo ato deinformac;ao, se baseia na disposic;ao, na organizac;ao deuma forma dada.o- Neste sentido, portanto, Informalquer dizer negac;ao das formas classicas em direc;aounivoca, nao abandono da forma como condic;ao basicapara a comunicac;ao. 0 exemplo do Informal, como 0

de toda obni aberta, nos levara portanto nao a decretara morte da forma, e sim uma mais articulada n~ao doconceito de forma, a forma como campo de possibili-dades.

Descobrimos aqui que esta arte da vitalidade e docasual ainda se submete as categorias basicas da co-municac;ao (instaurando sua informatividade na possibi-lidade de uma formatividade): alem disso, reencon-trando em si as conotac;6es da organizac;ao formal, nosdli as chaves para reencontrar a pr6pria possibilidade

(22) "Nesta pintura 0 gesto tern urn papel importante, mas du~dolOque ele na~a de improviso, sem controle ourefiexlio, sem que halanecessidade de rdaze-Io, aquele gesto, uma vez ap6s outra, at6 cdaruma forma que possua urn significado seu: Ao contrario 6 cren~a comumaue esta pintura seia 0 resultado de urn breW lDltritento de inspira~loe violencia. Mas em New York slo multo pauC(ls os que traba1hamdesse modo.... Urn exemplo desta confusio nos e dado pela pintura deJackson Pollock. Perguntamo-nos: como 6 posslvel qullO0 pintor fa~apingar gotas de tinta subre uma tela (posta no chlo) , desenhando ecompondo assim urn quadro? Mas 0 gesto desenhado nlo 6 meDOidell-herado e intencional, quer 0 pincel toque ou nlo a tela; dlgamos quePoll~k e>:e~utou0 gesto no ar, acima da tela, e que a tinta que pinpdo pmcel slga seu gesto" (David Lund, "Nuove correnti delia pitturaastratta", em Mondo Occidentale, setembro de 19S9).

de urn reconhecimento estetico. Olhemos urn quadrode Pollock: a desordem dos signos, a desintegrac;ao doscontornos, a explosao das configurac;6es nos convidaao jogo pessoal das relac;6es instauniveis; contudo, 0

gesto original, fixado no signo, nos orienta em dire-c;6es dadas, nos reconduz a intenc;ao do autor. Ora,isto acontece so e exclusivamente porque 0 gesto naopermanece como algo de estranho ao sinal, urn refe-rente ao qual 0 signa remeta por convenc;ao (nao eo hieroglifo da vitalidade que, frio e reproduzivel emserie, evoca convencionalmente a noc;ao de "livre ex-plosao da vitalidade"): gesto e signo encontraram aquiurn equilibrio peculiar, irreproduzivel, feito de umafeliz adesao dos materiais im6veis na energia forman-te, de urn relacionamento redproco dos signos, capazde nos levar a fixar a atem;ao sabre certas relac;oes.que sao relac;oes formais, de signas, mas aa mesmotempo relac;6es de gestos, relac;oes de intenc6es. Te-mos uma fusao de elementos - assim como· na pala-vea poetica do versificador tradicional se alcanc;a, emmomentos privilegiados, a fusao entre som e signifi-cado, entre valor convencional do som e emoc;ao, en-fase de pronunciac;ao. Este tipo particular de fusaoe 0 que a cultura' ocidental reconhece como a carac-teristicada arte, 0 resultado estetico. E 0 interpreteque, no pr6prio momenta em que se abandon a ao jogodas livres relac;oes sugeridas, volta cantmuamente aoobjeto para nele encontrar as razoes da sugestao, amestria da provocac;ao, a esta altura nao desfruta maisunicamente sua pr6pria aventurapessoal, mas desfru-ta a qualidade propria da obra, sua qualidade estetica.E 0 livre jogo das associac;.oes, uma vez que e reca-nhecido como originado pela disposic;ao dos signos,passa a participar dos conteudos que a obra apresentafundidos em sua unidade, fonte de tooos os dinamis-mos imaginativos conseqiientes. Desfruta-se entao (edescreve-se, pois outra coisa nao faz qualquer int6r-prete deuma obra informal) a qualidade de umaforma, de uma obra, que e aberta justamente porque6 ohra.

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Percebemos assim que se estabeleceu, na base deuma informac;ao quantitativa, urn tipo mais rico deinformac;ao, a informac;ao estetica 23.

A primeira informaC;ao consistia em extrair da to-talidade dos signos 0 maior numero dos impulsos imagi-nativos (de sugestoes) possiveis: a possibilidade de car-rear para 0 conjunto dos signos 0 maior numero das in-tegrac;oes pessoais compativeis com as intenc;oes do au-tor. E e este 0 valor visado intencionalmente pela obraaberta, ao passo que as formas classicas 0 implicamcomo condic;ao necessaria da interpretac;ao mas nao 0

consideram como preferivel, tendendo mesmo, proposi-tadamente, a reduzi-Io a limites determinados.

A segunda informac;ao consiste em relacionar os re-sultados da primeira informac;ao com as qualidadesorganic as reconhecidas como sua origem: e a encai-xar como aquisic;iio agradavel a consciencia de que es-tamos fruindo 0 resultado de uma organizac;ao cons-ciente, de uma intenc;ao formativa; da qual cada re-conhecimento e fonte de prazer e de surpresa, de co-nhecimento sempre mais rico do mundo pessoal ou dobackground cultural do autor, que seus m6Julos forma-tivos implicam e comportam.

Assim, na dialetica entre obra e abertura, 0 persis-tir da obra e garantia das possibilidades comunicativase ao mesmo tempo das possibilidades de fruiC;ao este-tica. Os dois valores estao implicitos urn no outro e

intimamente conexos ao passo que numa mensagclIIconvencional, num sinal rodovi:irio, 0 fato comunicati~vQ subsiste sem 0 fato estetico, de forma a consuIllir Ol

comunicac;ao na percepc;ao do referente, e nao SOIllOS

induzidos a retornar ao sinal para desfrutarmos no Neil)

da materia organizada a eficacia da comunicar;ao adquirida). A abertura, por seu lado, e garantia de IIIIItipo de fruiC;iio particularmente rico e surpreendcntl",que nossa civilizac;ao procura alcanc;ar como valor JON

mais preciosos, pois todos os dados de nOSS3 culturanos induzem a conceber, sentir, e portanto ver, 0 mun-do segundo a categoria da possibilidade.

(23) Um exemplo dessa rela~ao nos {>. dado, na arle figuraliva clas-~ica, pela rela~ao entre significado iconograjico e significado esteticototal. A conven~ao iconografica e um elemento de redundancia: umhOffil:ID barbudo que tern junto a si urn menina, e ao seu lado urnbode, e - na iconografia medieval - Aheaao. A conven~ao jn~iste nareafirma~ao do personagem e do carater. Tipico 0 exemplo oferecldo porPanofsky (ULa descrizione e l'interpretazione del contenuto", em Laprospettiva come "forma simbolica", obra cit.) a prop6sito de Juditee Holo/ernes de Maffei. A mulher da figura leva sobre uma bandejauma cabe~a decepada e uma espada. 0 primeiro elemento nos leva-ria a pensar em Salome, 0 segundo em Judite. Mas, pelas convenl;'oesiconognlficas barrocas, nunca se da 0 easo de uma Salome com a. espada,enquanlo que nao e raro que Judite seja vista levando a cabe~a deHolofernes numa bandeja. a reconhecimento, ademais, e favorecido poroutro elemenlo de redundyncia iconografica, a expressiio da cabe~a de-capitada (que faz pensar mais num perverso do que num santo). Destaforma, a redundancia de elementos esc1arece 0 significado da mensageme confere uma informa~ao quantitativa ainda que limitadissima. Masa informa~ao quantitativa intervem para favorecer a informa~iio. es~e-tica, 0 gozo do resultado organico total e 0 juizo sobre a reahza~aoartistica. Como observa Panofsky: quem conceber 0 quadro comosenda a representac;ao de uma jovem dada aDs prazeres, tendo nas maDSa cabe~a de urn santo, esteticamente tambem devera julgar de modomuito diverse de quem ve na jovem uma herofna protegida por Deus,tendo nas maDs a cabec;a de urn sacrilego'·.

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A experiencia da televisao sugeriu, desde 0 inicio,uma serie de reflex6es te6ricas, a ponto de induzir al-guns a falar, incautamente, como em geral acontecenesses casos, em estetica da televisiio.

No ambito da terminologia filos6fica italiana, en-tende-se por estetica a indaga~ao especulativa sobre 0

ten6meno arte em geral, sobre 0 ato humano que 0 pro-duz e sobre as caracteristicas generalizaveis do objetoproduzido. Toma-se portanto, se nao impr6prio, pelomenos inc6modo passar a urn uso mais desabusado

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do termo, falando, por exemplo, em "estetiea da pin-tura" ou "do cinema"; a nao ser que se deseje, comisso, indicar uma indaga~ao sobre problemas partieular-mente evidentes na experiencia pictorica ou cinemato-gnifiea, capazes porem de permitir uma reflexao emnivel mais elevado e aplica.vel a todas as artes; ou ca~pazes de esclarecer certas atitudes humanas que sejamobjeto de reflexao teoretica e contribuam para umacampreensao mais profunda no plano da antropologiafilosofica. Quando, porem, se indicam como "estetica"de qualquer arte discursos tecnicos ou perceptivos, ami-lises estiHsticas ou juizos criticos, entao poderemos ain-da falar em estetiea, mas somente se atribuirmos aotermo uma acep~ao mais ampla e uma especifica~aomais concreta - 0 que se da em outros paises. Que-rendo, porem, permanecer fieis a terminologia tradicio-nal italiana (por raz5es de compreensao, ao menos),sera mais uti! falar em poeticas,. ou analises tecnico--estilisticas, atribuindo a· tais exercicios a grande im-portfmcia que tern e reconhecendo que amiude sac maisperspicuos do que muitas "estetieas" filos6ficas, mesmono plano teoretieo.

Diante do fenomeno televisional e das estruturasoperativas que aciona, sera pois interessante examinar acontribui~ao que a experiencia de produ~ao televisio-nal pode proporcionar a reflexao estetiea, quer a titulode reafirma~ao de posi~oes ja consolidadas, quer. comoestimulo - perante um fato nao enquadravel em ca-tegorias dadas - ao alargamento e a reformula~ao dealgumas defini~5es teoreticas.

Tornar-se-a especialmente util, numa segunda eta-pa, verifiear qual seja a rela~ao intercorrente entre asestruturas comunicativas do discurso televisional e asestruturas "abmtas" que a arte contempodtnea nosvem propondo em outros campos.

tieo da televisaa, nao traz nenhuma contribui~ao estimu-lante a estetica. Por contribui~ao estimulante entende-mos "algo de novo", que rejeite as justifieativas ja exis-tentes e solicite a revisao das defini~oes abstratas quepretendem referir-se a ela.

Ora falou-se em "espa~o" televisional ,--- determi-nado peias dimensoes do video e pelo tipo caracteris-tico de profundidade proporcionado pelas ~b)~tlvas oascamaras de televisao; notaram-se as pecuhandad~s do"tempo" televisional - que, freqiientemente, se 1den-tifica com 0 tempo real (na transmissao dir~t~ de acon-tecimentos ou espetaculos), sempre ~sl?ec1ficado p~larela~ao com seu espa~o e com urn p~blico em pred!s-posi~ao psicologica caracteristic~; e. falou-se tam?e~da especialissima rela~ao CO~U?lCa~lVa~:r:tre tele.v1saoe publico, renovada pela propna dlsposl~ao a~?lentaldos receptores, agrupados em ent~dades numencas equalitativamente diferentes das entidades dos especta-dores de outros espetaculos (de forma que permtte aoindividuo a margem maxima de isolamento, e coloca emsegundo plano 0 fator "coletividade"). Todos estessao problemas que 0 roteirista, 0 diretor, o. produtor detelevisao enfrentam continuamente: e constituem pontosde interroga~ao e de programa para uma poetica datelevisa-o.

Todavia, 0 fato de cada meio de comunica~ao ar-tistica ter seu "espa~o", seu "tempo': ~ sua rela~ao .pe-culiar com 0 fruidor, no plano filosof1COtraduz-~e )US-

tamente na constata~ao e defini~ao do fato em Sl.Os problemas ligados a oper~c;:aoteleyisi~n.al nada

mais fazem que reconfirmar 0 discurso filosof1COqueatribui a todo "genero" de arte 0 diaIogo com ~!Da"materia" propria e a instaura~ao d~ uma gramaticae de um lexico proprios. Nesse sentido, essa proble-matica televisional nao oferece ao fi1osofo mais do queas outras artes ja the tenham proposto.

Essa conclusao poderia ser definida se, pel~ fatode falarmos em "estetica", tomassemos em COl1S1dera-wAoapenas 0 asp~cto cla~a~en~e "artistico" (no se~-tido mais convenclOnal e lllmtativo do termo) do ,m.elOde televisao, isto e, a produ~ao de dram~s~ comed1as,6peras Hricas, espetac~os e~. sentido trad1clOnal. Mas,dado que uma reflexao estetica am~la ~oma em ~on-lidera9ao todos os fenomenos comumcativo-produtivos,

1. Estabelecidas tais premissas, se formos exami-nar os discursos ate agoraconduzidos em torno do fatotelevisional, tornamo-nos conscientes de que deles e-mergiram alguns temas notaveis, mas que a discussaodesses temas,utiHssima para urn desenvolvimento artis-

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para descobrir-lhes a cota de artistico e deestetico, acontribui~ao mais interessante it nossa pesquisa nos vemjustamente daquele tipo todo especial de comunic~aoque e exclusivo do meio de televisao: a transmissiiodireta dos acontecimentos.

Algumas das caracteristicas da transmissao diretamais relevante para os nossos fins ja foram focaliza-das por diversas fontes. Antes de mais nada, captar epor no ar urn acontecimento no mesmo instante em queele acontece coloca-nos diante de uma montagem -falamos em montagem, pois, como e sabido, 0 aconte-cimento e captado por tres ou mais camaras para se porno ar, de cada vez, a imagem considerada mais idonea- uma montagem improvisada e simultanea ao fatocaptado e montado. Filmagem, montagem e proje~ao,tres fases que na produ~ao cinematografica sac bemdistintas, sendo cada uma delas dotada de fisionomiapropria, aqui se identificam. Disso deriva a ja citadaidentificac;:aode tempo real e tempo televisional semque nenhum expediente narrativo possa reduzira du-ra~ao temporal, que e a do acontecimento transmitido.

:E facil observar que de tais fatos ja surgem juntosproblemas artisticos, tecnicos, psicologicos, tanto doponto de vista da produc;:aoquanta da rece~ao; porexemplo, introduz-se no campo da produc;:ao artisticauma dinamica dos reflexos que parecia tipica de cer-tas modernas experiencias de locomo~ao e de outrasatividades industriais. Mas, quando se tenta uma apro-xima~ao ainda maior desta experiencia comunicativacom uma problematica artistica, introduz-se outro fato.

A transmissao direta nunca se apresenta como re-presenta~ao especular do acontecimento que se desen-volve, mas sempre - ainda que as vezes em medidainfinitesimal - como interpretac;:aodele. Para trans-mitir um acontecimento, 0 diretor de televisao colocaas tres ou mais camaras de modo que sua disposi~ao lheproporcione tres ou mais pontos de vista complementa-res, quer todas as camaras apontem para urn mesmocampo visual, quer (como pode acontecer numa corri-da de bicicletas) estejam deslocadas em tres pontos di-ferentes, para acompanharem 0 movimento de urn mo-vel qualquer. E verdade que a disposi~ao das camarasfica sempre condicionada as possibilidades tecnicas, mas

nao a ponto de impedir, ja nesta fase prelirninar, umamargem de escolha.

A partir do momenta em que 0 acontecimento terninfcio, 0 diretor recebe em tres vfdeos as imagens for-necidas pelas camaras, com as quais os operadores -a uma ordem do diretor - podem escolher determi-nados pIanos nos limites de seu campo visual, dispon-do de certo numero de objetivas que permitem restrin-gir ou alargar 0 campo e sublinhar determinados valo-res de profundidade. Nesse ponto, 0 diretor se defrontacom outra escolha, pois deve mandar definitivamentepara 0 ar uma das tres imagens e montar em sucessaoas imagens escolhidas. A escolha torna-se, assim, com-posi~ao, narrac;:ao,a unifica~ao discursiva de imagensanallticamente isoladas no contexto de uma serie maisampla de acontecim<mtosco-presentes e intersecantes.

:E: bem verdade que, atualmente, a maioria dastransmiss6es de televisao e feita sabre acontecimentosque oferecem uma margem muito escassa it iniciativainterpretativa: num jogo de futebol, 0 centro de interessee constitufdo pelos movimentos da bola, e nao e facilpermitir-se divaga~6es. Contudo, mesmo aqui, no usodas objetivas, na acentua~ao de valores de iniciativapessoal ou valores de equipe, nestes e em outroscasos intervem uma escolha, embora casual ou ca-nhestra. Por outro lado, ha exemplos de acontecimen-tos de que 0 espectador recebe uma interpreta~ao pro-priamente dita, uma indubitavel decantac;:aonarrativa.

Para citar exemplos quase historicos, em 1956, du-rante a transmissao de um debate entre dois econornis-tas, ouvia-se as vezes a voz de um dos interlocutores,que apresentava a pergunta com timbre seguro e agres-sivo, enquanto a telecamara dava a imagem do inter-rogado, nervoso e suado, amarfanhando um len~o en-tre as maos: era inevitavel, de um lado, certa enfati-za~ao dramatica do fato, aliasapropriada, e do Dutrouma tomada de posi~ao, mesmo que involuntaria: 0publico era distrafdo dos aspectos logicos do encon-tro e impressionado por seus aspectos emotivos, como que se falseava a verdadeira rela~ao de for~a, quedeveria ser constitufda pela qualidade dos argumentose nao pelo aspecto ffsico dos interlocutores. Se nessecaso 0 problema da interpretac;:ao foi mais esbo~dodo que resolvido, lembraremos ao inves a filmagem das

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cerimonias nupciais de Ranieri III de Monaco e GraceKelly. Aqui, os acontecimentos prestavam-~e realment,ea focaliza~oes diferentes. Ravia 0 aconteclmento poh-tico e diplomatico, a parada faustosa e vagamente ope-retistica, 0 romance sentimental divulgado pelas revis-tas etc. Ora, a filmagem televisional orientou-se quasesempre pata uma narrativa cor-de-rosa-sentimental,acentuando os valores "romanticos" do acontecimento,oferecendo urn relato colorido, desprovido de inten~oesmais rigorosas.

Durante urn desfile de bandas militares, enquantourn desta-camento americano, com evidentes fun¢esrepresentativas, executava urn trecho, as di~aras f~-calizaram 0 principe que, inclinado para sacudir a poel-ra das cal~s, sujadas quando se apoiava ao balaustredo terra<;o de onde presenciava a parada, soma diverti-do para a noiva. E razoavel pensar que qualquer dire-tor teria efetuado a mesma es-colha (em linguagem jor-naHstica, tratava-se de urn "flagrante"), todavia nao dei..;xou de ser uma escolha. E com ela se determinava atonalidade que dominaria toda a narra<;ao subseqiiente.Se naquele momenta tivesse sido mandada para 0 ara imagem da banda americana em uniforme de gala,tamb6m dois dias depois, na transmissao da cerimonianupcial da catedral, os espectadores estariam acompa-nhando os movimentos do alto prelado que celebravao ritual: ao contrario, as camaras permaneceram quasepermanentemente focalizadas no rosto da noiva, colo-cando em evidencia a emo~ao que deixava transparecer.Isso significa que, por coerencia narrativa, 0 diretorconservava no mesmo tom todos os capitulos de seurelato, e que as premiss as de dois dias atras con~nua-yam condicionando seu discurso. No £Undo, 0 duetorsatisfazia os gostos e as expectativas de urn publico,mas em outra medida os instituia.. Embora determilladopor fatores tecnicos e sociologicos, movia-se contudonuma dimensao de relativa autonomia, ruurando.

Vma narra~ao segundo urn principio embrional decoerencia, realizada e concebida simultaneamente: 0que poderfamos, portanto, chamar de relato de improm-ptu. Eis urn aspecto do fenomeno televisional que inte-ressa ao estudioso de estetica; problemas analogos saolevantados, por exemplo, pelos cantares dos aedos edos bardos e pela commedia del arte - onde encontra-

mas 0 mesmo princlplo de improvisa<;ao, mas, poroutro lado, maiores possibilidades de autonomia criati-va, menores imposi<;oes externas e de qualquer formanenhuma referencia a uma realidade em processo. Urnestimulo problematico mais acentuado e oferecido hojepela forma propria da composi<;ao jazz, a jam-session,onde as componentes de urn conjunto escolhem urntema e 0 desenvolvem livremente, improvisando e aomesmo tempo orientando essa improvisa<;ao dentro deuma linha de congenialidade que lhes permite umacria<;ao coletiva, simultanea, extemporanea e todavia(nos casas bem sucedidos, escolhidos atraves de fitamagnetic a) organica.

Esse fenomeno leva a rever e ampliar muitos con-ceitos esteticos, e, de qualquer maneira, a usa-Ios commaior tolerancia, mormente no que diz respeito ao pro-cesso de produc;ao e a personalidade do autor, a iden-tificac;ao de tentativa e resultado, de obra concluida eantecedentes - onde alias os antecedentes preexistemsob forma de habito do trabalho em conjunto e soba forma de recurs a a astucias tradicionais, como ariff! au certas soluC;5esmelodico-harmonicas de reper-torio, todos fatores que constituem, ao mesmo tempo,urn limite a felicidade inventiva. Par outro lado recon-firmam-se certas reflex5es teoricas acerca do podercondicionante, no crescimenta do organismo artistico,de certas premiss as estruturais; fatos melodicos que exi-gem um determinado desenvolvimento, a ponto de to-dos as executantes a preverem e executarem como quepar acordo, reconfirmam a tematica da forma forman-te - embora a relacionem com certas quest5es delinguagem e de retorica musical que a condicionamanteriormente, integrando a inven<;ao propriamentedita2•

Problemas identicos podem ser suscitados pelatransmissao televisional direta. Onde a) tentativa e re-

(1) "Termo de giria, provavelmentc cunhado pelos musicos. ne.g~osamericanos, para definir uma frase musical, geralmente br:v~ e InClSlva(original as vezes, Qutras... ja muito conhecida,. u~~ e~pecl..e ~e lugar--comum musical) executada quase sempre com Inslstencla ntmlca cres~cente e repetida mais vezes ("08tinato"), ou entao intercalada comofrase de passagem, para obter certa colarido. rr ..lsical e urn acentuadoefeito de tensao" (Enciclopedia del Jazz, Milano, 1953).

(2) Cabem aqui as varias quest6es sabre mecanica da. improvisa9ao(individual) em musica. Veja-se 0 estudo de W. Jankelewltch, La rhap-,I·odie. Paris, Flammarion, 1955.

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(3) Poetica, 1451a 15. As cita~oes sac extraidas da tradu~ao Valgi-migli (Bari, Laterza, 3~ ed .. 1946).

Mas e igualmente evidente que, ao considera.-los, sen-timos a necessidade de ver todos aqueles fatos sobuma luz unitaria: e, se for 0 caso, isolamos alguns delesque nOs parecem providos de nexos redprocos, dei-xando de lade os outros. Em outras palavras, agrupa-mos os fatos em formas. Em outros termos, unifica-mo-los em outras tantas "experiencias".

Empregamos 0 termo "experiencia" inspirando--nos na formula<;ao deweyana, que nos parece util afinalidade de nosso discurso: "temos uma experienciaquando 0 material experimentado p:ocede ruI?o aocampletamento. Entao e somente entao ela se tntegrae se distingue das outras experiencias na corrente geralda experiencia. .. Numa experiencia, correr significacorrer de algo para algo"4. Desse modo, sac "expe-riencias" um trabalho bem feito, um jogo determinado,uma a<;aolevada a cabo segundo 0 fim programado.

Assim como no balan<;o de nossa atividade diariaisolamos as experiencias completadas das experienciasesbo<;adas e dispersas - e podemos ate deixar de ladoexperiencias insofismavelmente completas so por naonos interessarem naquele momenta, ou por nao termospercebido conscientemente seu verificar-se - no am-bito de um campo de acontecimentos isolamos plexosde experiencias, segundo nossos interesses mais premen-tes e a atitude moral e emotiva que preside aquelanossa observa<;fi05•

.B claro que do conceita deweyalio de "experien-cia" nos interessa aqui, nao tanto 0 carater de partici-pa<;ao total num processo organico (que e sempre umaintera<;ao entre n6s e 0 ambiente), quanta seu aspectoformal. Interessa-nos 0 fato de que uma experienciaaparece comorealiz(lfiio, como completamento, comofulfillment. .

Enos interessa a atitude do observador que, malSdo que viver experiencias, procura adivinhar a recons-tru<;ao de experiencias alheias; a atitude do observadorque opera uma mimese de experiencias - e, nesse sen-

(4) Arte come esperienza, trad. Maltese, Firenze, La Nuova Italia,1951; cap. III, pags. 45-46.

(5) Tal como a definimos, a experiencia parece uma pred~c,,:~ao deforma, cujas razoes objetivas ultimas nao parec:m c1aras. 1umc.a o.!'-jetividade verificavel consiste, contudo, na re]a~ao que leva a. realIzaf~oda experiencia enquanto percebida. Neste ponto, por~m, 0 dlscur~o. maalem da pura constata~ao de uma atitude que, aqUl, nos e suflcleOtepor enquanto.

sultado identificam-se quase que completamente -todavia, embora simultaneamente e portanto com es-casso tempo para a escolha, as tres imagens constituema tentativa, e uma delas a resultado; b) obra e antece-dentes coincidem - mas as camaras sac dispostas pre-viamente; c) evidencia-se de maneira atenuada 0 pro-blema da forma formante; d) os limites da inven<;aonao saa impostos pelo repert6rio, e sim pela presen<;ade fatas exteriores. A esfera de autonomia apresenta--se, portanto, muito mais escassa, e menor a plenitudeartistica do fenomeno.

2. Essa seria a conclusao definitiva se reconhe-cessemos como limite 0 fato de a "natra<;ao" ser mo-delada sobre uma serie de eventos autonomos, eventos'que, de certo modo, sac escolhidos, mas que se ofere-cem a essa escolha, eles e nao outros, ja dotados deuma logica pr6pria, dificilmente superavel e redutivel.Contudo, essa condi~iio nos parece constituir a verda-deira possibilidade artistica da transmissao televisionaldireta. Examinemos a estrutura da "condi<;ao" para delapodermos deduzir algo sabre as possibilidades da narra-<;ao. Um procedimento desse tipo e encontrado emArist6teles.

Escrevendo sabre a unidade de ,um enredo, eleobserva que "muitas, alias intimeras coisas podem acon-tecer a uma pessoa, sem que, contudo, algumas delascheguem a constituir uma unidade: e mesmo as a<;6esda pessoa podem ser muitas, sem contudo delas resultaruma a<;ao{mica". 3 Ampliando 0 conceito, no contextode um determinado campo de acontecimentos entre-la<;am-se e justap6em-se eventos muitas vezes despro-vidos de nexos redprocos e desenvolvem-se situa<;6esdiversas em dire<;6es diversas. Um mesmo gropo defatos encontra, de um certo ponto de vista, seu com-pletamento em outro conjunto de fatos, enquanto que,focalizado sob outro prisma, prolonga-se em mais ou-tros fatos. Que de um ponto de vista factual todos oseventos daquele campo disp6em de uma justificativapr6pria, independentemente de qualquer nexo, e evi-dente: justificam-se pelo proprio fato de acontecerem.

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tido, vive certamente uma experiencia pr6pria de in-terpretal;ao e mimese.

o fate dessas mimeses de experiencia terem quali-dades esteticas pr6prias deve-se a serem elas fim deuma interpretG{:iio que e, ao mesmo tempo, prodw;iio,pois foi escolha e composiriio - ainda que de acon-tecimentos que estavam pedindo relevantemente paraserem escolhidos e compostos.

Aquela qualidade estetica sera tanto mais evidentequanta intencionalmente nos pusermos a identificar eescolher experiencias num mais amplo contexto deeventos, ..com a unica finalidade de reconhece-Ias ereproduzi-las, pelo menos mentalmente. Trata-se dabusca e da instituil;ao de uma coerencia e de uma uni-dade no variar, para nos contingentemente caotieo,doseventos; e a busca de urn todo completado em que aspartes componentes "devem ser coordenadas de tal modoque, deslocando ou suprimindo uma delas, fique des-locado e quebrado todo 0 conjunto". Com 0 que, no-vamente voltamos a Aristoteles6 e percebemos que essaatitude de individua~ao e reprodul;ao de experienciase para ele a poesia.

A historia nao nos apresenta urn fato unico "masurn periodo unieo de tempo, isto e, abarca e abran-ge todos' os fatos que aconteceram naquele periodo detempo em relac;ao a urn ou mais personagens; e cadaurn desses fatos se encontra numa relac;ao puramentecasual com os outros"7. A historia e para Arist6telescomo a fotografia panoramica daquele campo de even-tos a que antes fizemos menc;ao; a poesia copsiste emisolar nesse campo uma experiencia coerente, uma re-lac;ao genetiea de fatos, enfim, uma ordenac;ao dos fa-tos segundo uma perspectiva de valor8•

Todas essas observac;6es nos permitem voltar aonosso argumento original, reconhecendo na transmissaodireta televisional uma atitude artfstica e, ao limite, umapotencialidade estetiea, conexas a possibilidade de iso-lar "experiencias" do' modo mais satisfatorio. Em ou-tras palavras, de dar "forma" - facilmente perceptivele aprecillvel - a urn gropo de eventos.

Na transmissao ao vivo de urn acontecimento L

aha dramaticidade, urn incendi09, por exemplo, a con-gerie dos eventos que cabero no contexto "incendio noIugar X" e cindfvel em mais veios narrativos, que po-dem ir desde uma pasmada epopeia do fogo destruidorate' a apologia do bornbeiro, desde 0 drama dos salva-mentos ate a caracterizac;ao da ferpz ou compadecidacuriosidade do publico que assiste.

3. Esse reconhecimento de artistieidade nn ope-rac;;ao televisional e suas perspectivas conseqttentes japoderiam parecer ponto pacifico se a condic;ao de ex-temporaneidade propria da transmissao direta naoabrisse urn novo problema. A proposito da experien-cia logica - mas podemos estender 0 exemplo a todosos demais tipos de experiencia - Dewey observa que"na realidade, numa experiencia de pensamento, as pre-missas surgem somente quando se manifesta uma con-clusao"lO. Em outras palavras, 0 ate de predicac;aoformal nao e urn ate de deduC;;aoque se desenvolvesilogisticamente, mas uma tentativa constantemente rea-lizada sobre as solicitac;6es da experiencia, na qual 0

resultado final convalida e institui - efetivamente soentao - osmovimentos iniciaisl1; 0 antes e 0 depoisreais de uma experiencia se organizam ao termino deuma serie de tentativas exercidas sobre todos os dadosem nosso pader no ambito dos quais existiam antes edepois meramente cronologicos, misturados a muitosoutros, e so ao termino da predieac;ao essa mescla dedados se decanta e sobram os antes e os depois essen-ciais, os unicos que contam para os fins daquela expe-riencia.

Perceberemos, portanto, que 0 diretor de televisaose encontra na situac;ao embarac;osa de ser obrigado aidentificar as fases l6gicas de uma experiencia no pro-prio momenta em que ainda sac fases cronologicas.Ele pode isolar uma linha narrativa no contexto closeventos, mas diferentemente do mais "realista" dosartistas, nao tern nenhuma margem de reflexao a pos-

(6) Poetica, 1451a 30.(7) Poetica, 1459a 20.(8) Veja-.e L. Pareyson, II verosimile nella poetica di Aristotele.

Torino, 1950.

(9) Deixando de lado 0 exemplo do incendio, nos Estados Unidoshi se verificaram casas em que camaras de televisao acorreram ao localde acidentesnao previstos como acontecimentos em programa e con-ludo jornalisticamente interessantes.

(10) Ob. cit., pag. 48.( 11) Sobre essa dinihnica da tentativa, seja quanta a 16gica, seja

quanto a estetica, v. os capitulos II e V da Estetica de L. Pareyson, cit.

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teriori sobre esses eventos, e, por outro lado, falta-lhea possibilidade de determina-Ios a priori. Deve mantera unidade de seu enredo enquanto este se desenvolvefactualmente, e se desenvolve de mistura a outros enre-dos. Ao movimentar as camaras segundo urn interesse,de certo modo 0 diretor deve inventar 0 evento nomesmo momento em que ele de fato acontece, e deveinventa-Io de modo que seja identico aquilo que real-mente acontece; paradoxa a parte, deve intuir e preyero lugar e 0 instante da nova fase de seu enredo. Suaopera9ao artistica tern, portanto, urn limite desconcer-tante, mas ao mesmo tempo sua atitude produtiva, seeficaz, tern sem duvida uma qualidade nova; e podemosdefini-Ia como uma peculiadssima congenialidade comos eventos, uma forma de hipersensibilidade, de intuiti-vidade (mais vulgarmente, de "faro") que the permitacrescer com 0 evento, acontecer com 0 aconteclmento.Ou, pdo menos, saber individuar instantaneamente 0acontecimento logo que aconte9a e focaliza-Io antes queja esteja terminado12•o crescimento de sua narra9ao aparece portantometade como efeito da arte e metade como obra danatureza; seu produto sera uma estranha intera9ao deespontaneidade e artifIcio, onde 0 artificio define eescolhe aespontaneidade, mas a espontaneidade guiao artifIcio, em sua concep9ao e em sua realiza9ao. Artescomo a jardinagem ou a hidraulica ja oferecera~ exem-plo de urn artificio que determinava os movlment?Spresentese os resultados futuros das for9as naturals,envolvendo-os no jogo organico da obra; mas, no casoda transmissao dire.ta televisional, os eventos da natu-reza nao se inserem em quadros formals que os tives-sem previsto, mas pedem aos quadros que nas9am juntocom des, que os determinem no momento mesmo emque sac por eles determinados.

Mesmo no momenta em que sua obra se encontrano nivel artesanal minima, 0 diretor de televisao vive,

todavia, uma aventura formativa tao desconcertante queconstitui urn fenomeno artistico de extrema interesse,e a qualidade estetica de seu produto, par grosseira edebil que seja, continua sendo capaz de abrir perspec-tivas estimulantes a uma fenomenologia da improvisa-9ao.

(12) Gostariamos de evidenciar que tal atitude corresponde a umadisposi!;ao sucessiva de partes, guiada por um todo que ainda nao estapresente mas que orienta a opera!;ao. Esta wholeness que guia sua des-coberta no ambito de um campo circunscrito lembra-nos a concep!;aogestaltica. 0 evento a narrar preconfigura-se ditando leis a opera!;aoconfiguradora. Mas - como nos faria observar a psicologia Iransacio-nal - '0 configurador institui a wholeness com escolhas e Iimita!;oessucessivas, envolvendo no ate de configura!;ao sua personalidade no pr6-prio momento em que, intuindo 0 inteiro, a ele se adequa. De formaque a wholeness alcan!;ada aparece como a atua!;ao de um posslvel quenao era objetivo antes que um sujeito instituIsse sua objetividade.

1. Desenvolvida essa analise descritiva das estru-turas psicol6gicas e formais que se configuram no feno-meno da transmissao direta, antes de mais nada deve-damos perguntar-nos que futuro, que possibilidades ar-tisticas esse genero de "conto" televisional apresentafora da pratica normal. Uma segunda pergunta dizrespeito a indubitavel analogia entre esse tipo de ope-ra9ao formativa, que se serve das' contribui96es doacaso e das decis6es autonomas de urn "interprete" (dodiretor que "executa" com uma margem de liberdadeo tema "aquilo-que-acontece-aqui-agora"), e aquele fe-nomeno tipico da arte contemporanea que nos ensaiosprecedentes designamos como obra aberta.

Parece-nos que uma resposta a segunda questaoajudara a esclarecer a primeira. Na transmissiio direta,sem duvida alguma, configura-se uma rela9iio entre avida na amorfa abertura de suas mil possibilidades eo plot, 0 enredo que 0 diretor institui organizando,ainda que de impromptu, nexos univocos e unidirecio-nais entre os eventos escolhidos e montados em se-qUencia.

Ja se viu que a montagem narrativa e urn elementoimportante e decisive, a tal ponto que, para definir-mos a estrutura da transmissao direta, precisamosrecorrer aquela que e a poetica do enredo por excelen-cia, a poetica aristotelica - com base na qual epossivel descrever as estruturas tradicionais seja dodrama teatral seja do romance, pdo menos daqueleromance que, por conven9ao, chamamos de bem feitoI3•

Mas a n09ao de enredo e apenas urn elemento dapoetica aristotelica e a cdtica moderna deixou bem

(13) Para uma discussao sobre a no!;ao de "romance bem feito" eI16bre sua crise, recomendamos J. Warren Beach, Tecnica del RomanzoNov.centesco, Milano, Bompiani, 1948.

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claro que 0 enredo e somente a organiza~ao ::xteri~rdos fatos que serve para manifestar uma dm::gao ma~sprofunda do fate tragico (e narrat~v?):. a agao14• :f:?l-po que investiga as ca~as da pestilencl~ e, descobnn-do-se assassino do pal e esposo da mae, cega-se -este e 0 enredo. Mas a agao tragica se estabelece numnivel mais profundo, e nela se desenrola. a .comple~ahist6ria do fado e da culpa com suas leIs Imutavels,uma especie de sentimento dominante d~ existeneia _edo mundo. 0 enredo e absolutamente umvoco, a aga?pode colorir-se de mil ~mbigtiidades e abrir-se a mIlpossibilidades interpretatlVas: 0 e~ed~ de Hamlet podeser eontado ate mesmo por urn gmaslano e ter 0 con-sensa de todos; a a~ao de Hamlet fez e fara correr riosde tinta, pois e uma mas naoe u!:ivoca. .

Ora a narrativa contemporanea tem-se onentadocada vez mais rumo a uma dissolugao do enredo (enten-dido como estabelecimento de nexos univocos entreaqueles eventos que resultam essenciais ao desenlacefinal) para construir pseudo-hist6rias baseadas na ma-nifesta<;ao de fatos "estupidos" e inessenciais. Inessen-ciais e estupidos sac os fatos que acontecem a Leopo~dBloom, a Sra. Dalloway, as personagens de Robbe-Gnl-let. No entanto, sao todos altamente essenciais desdeque sejam julgados segundo outra n~gao da esc01!tanarrativa e todos eoncorrem para dehnear uma a<;ao,urn dese~volvimento psicol6gico, simb6lico ou aleg6ri-co, e comportam urn discurso implicito Sb?~e.0 mun-do. A natureza desse discurso, sua posslb111dade deser entendido de modos multiplices e de estimular so-lu~6es diferentes e comple~entares e 0 qu~ podemosdefinir como "abertura" de uma obra narratlva: na re-cusa do enredo realiza-se 0 reconhecimento do fate deque 0 mundo e urn n6 de possibilidades e de quea obra de arte deve reproduzir essa fisionomia.

Ora enquanto 0 romance e 0 teatro (Ionesco, Bec-kett, Ad~mov, obras como The Connection) envereda-yam decididamente por esse caminho, outra arte fun-damentada no enredo, 0 cinema, pareeia preferir dissoabster-se. Abstengao motivada por numerosos fatores,nao sendo seu destino social 0 menos importante de-

(14) Para uma discussao sobre enredo e a~ao recomendamos F. ,Fer-gusson, Idea di un teatro, Parma, Guanda, 1957,. e a H. Go'!hler, L o~u~vre theiltrale, Paris, Flammarion, 1958 (em especIal 0 III capItulo, ActIonet intrigue).

les, mesmo porque 0 cinema, enquanto as outras artesse enfurnavam no laborat6rio da experiencia sbbre es-truturas abertas, era no fundo obrigado a manter rela':gOes com 0 grande publico e a fornecer aquela eontri-bui<;ao de dramaturgia tradicional que constitui umaexigencia profunda e razoavel de nossa sociedade ecultura - e aqui gostariamos de insistir sbbre 0 fatode que nao se deve identificar uma poetica da obraaberta como a unica poetica eontemporanea possivel,mas como uma das manifesta~6es, talvez a mais inte-ressante, de uma cultura que, nao obstante, tern tam-bem outras exigencias a satisfazer e pode satisfaze-lasem altissimo nivel, empregando modernamente estru-turas operativas tradicionais: dai 0 motivo de urn fil-me fundamentalmente "aristotelico" como Stag~coach("No tempo das diligencias") constituir urn monumentoexemplar de "narrativa" contemporanea.

Repentinamente - e 0 caso de dize-Io - viram-~.lparecer nas telas cinematograficas obras que rompiamdecididamente com as estruturas tradicionais do enre-do para mostrarem-nos uma serie de eventos desprovi-dos de nexos dramaticos, entendidos convencionalmente,urn relata em que nao acontece nada, ou acontecem coi-sas que ja nao tern a aparencia de fato narrado, massim de fato acontecido por acaso. Pensamos nos doisexemplos mais ilustres dessa nova maneira, L'A vventu-ra e La Notte, de Antonioni (0 primeiro de modo maisradical, 0 segundo em medida mais indireta e commaior numero de liames com uma visao tradicional).

Nao se trata somente do fate de esses filmes teremaparecido por efeito da decisao experimental de urndiretor: 0 que vale e que foram aceitos pelo publico,criticados, vituperados, mas afinal 'aceitos, assimiladoscomo fate talvez discutivel mas possivel. Cabe pergun-tar se foi apenas por acaso que esse modo de narrarp6de ser proposto a uma audiencia cuja sensibilidadecomum ja se afizera, de alguns anos a esta parte, a16gica cfa transmissao televisional: quer dizer, a urntipo de relato que, por mais concatenado e conseqiienteque pare~a, sempre acaba por usar a sucessao brutados eventos naturais como materia-prima; relato que,embora tenha urn fio condutor, se perde continuamente.na anota~ao inessencial, e onde tambem e possivel nao

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acontecer nada por longo tempo, como quando a cama-ra espera a chegada de urn corredor que nao aparece,e se demora sobre 0 publico e sobre os predios vizinhos,sem outra razao a nao ser 0 fate de que as coisas saoassim e nao ha nada a fazer.

Diante de urn filme como L'A vventura, pergun-tamo-nos se em muitos momentos ele nao poderia tersido 0 resultado de uma transmissao direta. E 0 mes-mo nos ocorre no tocante a grande parte da festa no-turna de La Notte, ou ao passeio da protagonista entreos garotos que soltam fogos no terreno baldio.

Nasce entao 0 problema de saber se a transmissaodireta, como concausa ou simples fenomeno contempo-raneo, nao se inserira neste panorama de pesquisas eresultados aplicados a uma maior abertura das estrutu-ras narrativas e suas possibilidades de reproduzir avida na multiplicidade de suas direl.roes, sem impor-lhenexos prefixados.

2 . Mas aqui devemos tomar consclencia de urnequlvoco: a da vida em sua imediatez nao e abertura,e casualidade. Para fazer dessa casualidade urn n6de possibilidades reais e preciso introduzir nela urnm6dulo organizativo. Em suma, escolher os elementosde uma constelal.rao, entre os quais estabelecer nexos po-livalentes, mas unicamente ap6s a escolha.

A abertura de L'A vventura e efeito de uma mon-tagem que propositadamente excluiu a casualidade "ca-sual" para introduzir nela somente elementos de ca-sualidade "desejada". 0 conto, como enredo, nao exis-te, justamente porque ha no diretora vontade precon-cebida de comunicar urn sentido de suspensao e deindeterminal.rao, uma frustral.rao dos instintos "roma-nescos" do espectador a fim de forl.ra-lo a introduzir-seativamente no centro da ficl.rao (que ja e vida filtra-da) para orientar-se atraves de uma serie de jUlzos in-telectuais e morais. A abertura pressupoe, portanto, alonga e cuidadosa organizal.rao de urn campo de possi-bilidades.

Ora, nada impede que uma cuidada transmissaodireta saiba colher, entre os fatos, aque1es que se pres-tam a uma organizal.rao aberta desse tipo. Mas inter-vem aqui dois fatores vinculantes, que sao a natureza

do meio comunicativo e seu destino social - isto e,sua sintaxe peculiar e seu audit6rio.

Justamente por estar em contato imediato com avida como casualidade, a transmissao direta e induzi-da a domina-la recorrendo ao genero de organizal.raomais tradicionalmente espenivel, 0 de tipo aristotelico,regido por aquelas leis de casualidade e necessidadeque sao, afinal, as leis de verossimilhanl.ra.

Em L' A vventura, Antonioni, em dado momento,cria uma situal.rao de tensao: numa atmosfera abrasadapelo sol do meio-dia, urn homemderrama intencional-mente urn tinteiro sobre 0 desenho elaborado en pleinair por urn jovem arquiteto. A tensao requer uma so-IUl.rao,e num western tudo acabaria numa briga de efeitolibertador. A briga justificaria psicologicamente ofen-dido e ofensor, e os atos de ambos encontrariam umamotival.rao. No filme de Antonioni, ao inves, nao acon-tece nada disso: a briga parece estourar mas nao estou-ra, gestos e paixoes sao reabsorvidos no mormal.r0 fl-sica e psico16gico que domina toda a situal.rao. Ora,uma indeterminal.rao radical como essa e 0 resultadofinal duma longa decantal.rao do tema. A violal.rao detodas as expectativas que implicaria qualquer criteriode verossimilhanl.ra linear e tao desejada e intencionalque nao pode ser outra coisa senao 0 fruto de urn cal-culo exercido sobre 0 material imediato: de maneiraque os eventos parecem casuais justamente porque naosao casuais.

A transmissao de televisao que acompanha urnjogo de futebol, ao contrario, nao pode eximir-se deresolver todo 0 acumulo de tensoes e solul.rOesposter-gadas na >conclusao final do gol (ou, a falta do gol, noerro, no tento perdido que quebra a sequencia e faz ex-plodir 0 grito do publico). E admitamos tambem quetudo isso seja imposto pela especffica funl.rao jorna-Ustica da transmissao, que nao pode deixar de docu-mentar aquilo que 0 pr6prio mecanismo do jogo im-plica necessariamente. Mas, feito 0 gol, 0 diretorainda poderia escolher entre a imagem da multidao de-lirante - anticllmax apropriado, fundo congenial adistensao psiquica do espectador que descarregou suaem0l.rao - ou entao poderia mostrar de improviso,senial e polemicamente, urn trecho da rua vizinba (mu-lheres a janela ocupadas nos afazeres cotidianos, gatos

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'nroscados ao sol), ou enHio qualquer imagem. abso-~tamente estranha ao jogo, qualquer evento crrcuns-

ell'llante que se ligue a imagem precedente apenas porluzifUlanitida, violenta estranheza -. sublinhando assiI?,tal'lma interpreta<;:ao limitativa, morahsta. o~ documen~a-s~~I.i.ado jogo, ou ate a ausencia de ~o?a mterpreta<;:ao,U~l recusa de todo nexo e liame prevIslvel, co~o numafll flpatica manifesta<;:ao de niilismo que pode~ta ter, sea],f'onduzidacom mao de mestre, 0 mesmo efelto de cer-arras descri<;:6esabsolutamente objetivas do nouveau ro-c&Jr

irnan.USI • d" , de que, Isso 0 dlretor po ena: so no caso, porem,flit fl transmissao fosse direta apenas na ap~rencia, e', na

rerdade resultasse de uma longa elabora<;:ao,da aphca-a ',;ao de uma nova visao das coisas que se rebela con~ra'Sp mecanisme instintivo com que somos levados a m-~~:~erligaros eventos segundo a verossimil~a~<;:a. E le~-~[pramos que, para Aristoteles,. a .verosslmI1~a!l<;:~poe~tepca e determinada pela verosslmIlhan<;:aretonca, querb~pizerque e logico e natural que aco~te?a, num enredo~jaquilo que, de acordo com 0 ra~lOcmlO, cada ~mlde nos seria levado a esperar na Vida normal, aquilollque, quase por conven<;:ao,segundo os mesmos lugares-~!-comunsdo discurso, se pensa que deve aconte~er, esta-~belecidas determinadas premissas, Nesse sentIdo, por-'~tanto 0 que 0 diretor e levado a entrever como resul-t ' d" t' ,'tado fantasticamente apropriado do lscurso artls lca e~o que 0 publico e levado a esperar como r,~~ult,adoapre-e priado, a luz do born senso, de uma sequenCIa real de~eventos,

( 3 , Ora 0 desenvolvimento da transmissao diretae determinad~ pelas expectativas, pelas exigencias espe-dficas de seu publico; publico que, ..no mesmo mo-

I mento em que solicita uma noticia sobre 0 que acon-tece, imagina 0 que acontece em termos de romancehem feito - e reconhece a vida como real somentequando ela the aparece independente da casualidade,reunificada e escolhida como enredo 15. Isso porque 0

romance de enredo corresponde, em sua expressao tra-(JS) De fato, ~ naturaJ que a vida seja mais semeJhante ao Vliss".s

do que a as Tris Mosquelelros: todavia, qualquer urn de n6.s esta malsinclinado a pensar na vida em termos de as Trls Mosqu".tel1os ~o 2u

Jeaem termos de VI/sses: ou melhor, pode rememorar a Vida e lulg••-

sDmente repen.ando-a como romance bem feito.

dicional, ao modo habitual, mecanizado, geralmente ra-zoavel e funcional com que nos movemos por entre oseventos reais, conferindo significados univocos as coi-sas. Enquanto que somente no romance experimentalse encontra a decisao de dissociar os nexos habituais,com base nos quais se interpreta a vida, nao para en-contrar uma nao-vida, mas para experimentar a vidasob novas perspectivas, aquem das conven<;:6esesc1ero-sadas. Isso porem requer uma decisao cultural, ,urnestado de animo "fenomeno16gico", uma vontade de porentre parenteses as tendencias adquiridas, vontade quefalta ao espectador que olha para 0 video para receberuma noticia e para saber - com legitimidade - comovai acabar.

Nao e impossfvel que na vida, no mesmo momentoem que os jogadores das duas equipes em campo estaoconcluindo uma a<;:ao,no ponto mais alto de tensao,os espectadores nas arquibancadas percebam 0 sentidoda inutilidade do todo e se abandonem a gestos im-provaveis, uns deixando 0 estadio, outros adormecen-do ao sol, outros ainda entoando hinos religiosos. Seisso acontecesse, a transmissao direta que 0 mostrasseorganizaria uma admiravel nao-hist6ria, sem por issodizer nada de inverossfmil: a partir daqJle1e dia, talpossibilidade passaria a pertencer ao repert6ric do ve-rossfmil.

Mas, ate prova em contrario, essa solu<;:aoe, se-gundo a opiniao corrente, inverossfmil, e 0 espectadorde televisao espera como verossfmil seu oposto - 0 en-tusiasmo dos presentes - e e isso que a transmissaodireta devera proporcionar-lhe.

4 . Alem dessas coerc;6es devidas a relac;ao fun-cional entre televisao como instrumento de informaC;aoe urn publico que solicita urn produto de tipo determina-do, existe tambem, como ja vimos, uma coerc;1io detipo sintatico, determinada, por sua vez, pela naturezado processo de produc;ao e pelo sistema de reflexospsico16gicos do diretor.

A vida em sua casualidade ja e suficientemente dis-persiva para desconcertar 0 diretor que procura inte:-preta-Ia narrativamente. Ele se arrisca a perder contl-nuamente 0 fio da meada e reduzir-se a fot6grafo doirrelato e do indiferenciado, Nao do irrelato volun-

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tario - sob cuja comunica~ao se oculta uma definidainten~ao ideologica - mas do irrelato factual sofrido.Para fugir a essa dispersao, deve continuamente justa-por aos dados a esquema de uma organiza~ao possivel.E deve faze-Io de impromptu, isto e, em fra~6es de tempominimas.

Ora, nesse espa~o de tempo, 0 primeiro tipo denexo entre dois eventos que se apresenta como psicolo-gicamente mais facil e imediato, e 0 que se fundamentano habito, 0 habito do verossimil segundo a opiniaocorrente. Como ja dissemos, correlacionar dois even-tos segundo nexos inusitados requer decanta~ao, refle-xao critica, decisao cultural, escolha ideologica. Seria,portanto, preciso que interviesse aqui urn novo tipo dehabito, a de ver as coisas de modo inusitado, de ma-neira a tamar instintiva a estabelecimento do nao-nexo,o nexo excentrico, enfim - para usarmos termos musi-cais - urn nexo serial ao inves de tonal.

Esse habito formativo corresponde a uma verda-deira educa~ao da sensibilidade e sO pode ser adquiridoap6s uma assimila<;aomais profunda das novas tecnicasnarrativas. 0 diretor de tele-reportagens nao terntempo para desenvolve-Io nem a presente o:rganiza<;aocultural the solicita algo nesse sentido. 0 unico nexopossivel que sua educa~ao - como a de todo individuonormal que nao se deteve particularrnente no estudodas mais recentes tecnicas descritivas do cinema e doromance contemporaneo, adotando-Ihes as raz6es -lhe permite e aquele estabelecido pela conven~ao deverossimilhan~a, e, portanto, a unica solu<;ao sintaticapossivel e a correla~ao segundo a verossimilhan<;a tra-dicional (pais todos estaremos de acordo em admitirque nao existem leis das formas enquanto formas, masleis das formas enquanto interpretaveis pelo homem,pelo que as leis de uma forma sempre devem coincidircom os habitos de nossa imagina~ao).

Cabe ainda acrescentar que nao s6 0 diretor de te-levisao, mas qualquer pessoa, mesmo urn escritor fami-liarizado com as novas tecnicas, posto diante de umasitua~ao vital imediata, enfrenta-Ia-ia segundo os es-quemas de compreensibilidade fundados no habito ena no~ao comum de causalidade, justamente porqueesses nexos ainda sao, no atual estado de nossa cultu-ra ocidental, os mais comodos para nossa movimenta-

c;aodentro da vida cotidiana. No verao de 1961, AlainRobbe-Grillet sofreu urn desastre aereo, apos 0 qual,inc6lume, foi entrevistado pela imprensa: como ressal-tou L' Express num artigo muito sutH, a narra~ao quea romancista, emocionadissimo, fez do acidente, tinhatodas as aparencias da narra<;ao tradicional, era emsuma, aristotelica, balzaquiana, talvez carregada de sus-pense, de emo~ao, de participa~ao subjetiva, dotada deurn come<;o, de urn climax e de urn final apropriado.o reporter objetava que Robbe-Grillet deveria ter nar-rado 0 acidente no mesmo estilo impessoal, objetivo,desprovido de lances teatrais, enfim, nao narrativo, comque escreve seus romances; e propunha a deposi<;aodo escritor de seu trona de pontifice das novas tecnicasnarrativas. A argumenta<;ao era 6tima como boutade,mas quem a tivesse levado a serio, suspeitando de in-sinceridade a romancista (que num momenta crucialparecia ter abdicado de sua visao das coisas para as-sumir aquela contra a qual polemiza habitualmente),teria sido vftima de um grande equfvoco. De fato,ninguem pretenderia que um cientista adepto das geo-metrias nao-euclidianas, necessitando medir seu quartopara a constru~ao de um armario, usasse a geometriade Riemann; ou que urn fautor da teoria da relativi-dade, perguntando as horas a um motorista de passa-gem, enquanto esta parado na cal~ada, acertasse seurel6gio com base nas transforma<;6es de Lorentz. No-vos parametros para ver 0 Mundo sao assumidos paraoperar sobre realidades propostas experimentalmenteem laboratorio, atraves de abstrac;:oes imaginativas ouentao no ambito de uma realidade literaria, mas podemser inadequadas para nossa movimenta~ao entre ostatos comuns, nao por serem falsos perante des, masporque neste ambito ainda podem resultar mais uteis- pelo menos por enquanto - os parametros tradi-cionais usados por todos os outros seres com que man-temos relac;:6esdiarias.

A interpretac;:ao de urn fato que nos acontece e aoqual devemos responder imediatamente - ou que pre-cisamos imediatamente descrever, transmitindo-o com acAmara de televisao - e urn dos casos tfpicos em queI. convenc;:6esusuais ainda resultam as mais apropria-das.

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5 . Esta e a situa~ao da linguagem televisional emcerta fase de seu desenvolvimento, num dado periodocultural, numa situa~ao sociol6gica dada que confereao meio comunicativo uma dada fun~ao em rela~ao aum dado publico. Nada proibe imaginar a concorren-cia de diversas circunstancias historicas em que a trans-missao direta possa tornar-se um meio de educa~aopara exercicios mais livr:es da sensibilidade, para aven-turas associativas repletas de descobertas, e, portanto,para uma diferente dimensao psicol6gica e cultural.Mas uma descri~ao das estruturas esteticas da tele-re-portagem deve levar em considera~ao os dados reais ever 0 meio e suas leis em rela~ao a uma dada situa~ac·de frui~ao. Nesses limites, uma transmissao direta quelembrasse L'A vventura teria muitas possibilidades deser uma pessima transmissao direta, dominada por uma

.casualidade incontrolada. E entao a referencia cultu-ral poderia apresentar apenas um sabor ironico.

Num perfodo hist6rico em que se configuram aspoeticas da obra aberta, nem todos os tipos de comu-nica~ao artistica precis am visar propositadamente a esseobjetivo. A estrutura de enredo entendida aristotelica-mente permanece tipica de muitos produtos de amploconsumo, que apresentam uma fun~ao propria impor-tantissima e podem alcan~ar cumes muito altos (poiso valor estetico nao se identifica a todo custo com anovidade das tecnicas - ainda que 0 uso de tecnicasnovas possa ser um sintoma daquela originalidade te~-nica e imaginativa que e condi~ao importante para al-can~ar um valor estetico). A transmissao direta, quepermaneceu como um dos baluartes residuais daquelaprofunda exigencia de enredo que ha em cada um den6s ....:-e que qualquer forma de arte, qualquer generovelho ou novo sempre cuidara de satisfazer tambem emepocas futuras - devera ser julgada segundo as exi-gencias que satisfaz e segundo as estruturas com queas satisfaz.

Por outro lade, restar-Ihe-ao muitas outras possibi-lidades de discurso aberto e de explora~6es e declara-~6es sobre a indetermina~ao profunda dos. eventos co-tidianos: e sera entao que 0 registro do evento domi-nante, montado segundo regras de verossimilhan~a, seira enriquecer de nota~6es marginais, de rapidas ins-pec;6es sobre aspectos da realidade circunstante, ines-

senciais aos tins da a~ao primordial, mas alusivos por-que dissonantes, como outras tantas perspectivas sobrepossibilidades diferentes, sabre dire~6es divergentes, so-bre outra organiza~ao que se poderia impor aos eventos.

Entao, efeito pedagogico nao descudvel, 0 especta-dor poderia ter a sensa~ao, ainda que vaga, de que avida nao se esgota nos acontecimentos que ele acom-panha com avidez, e que portanto ele proprio nao seesgota naqueles acontecimentos. Entao a nota~ao di-versiva, capaz de subtrair 0 espectador a fascinac;aohipnotica a que 0 enredo 0 submete, agiria como motivode "estranhamento", ruptura abrupta de uma atenc;aopassiva, convite ao julgamento ou, de qualquer forma,estimulo de libertac;ao em rela~ao ao poder persuasivodo video.

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Este ensaio data de 1959, quando 0 zen comei;ava a des-pertar curiosidade na Italia 1. Estivemos em duvida quanto ainseri-Io ou nao nesta segunda edii;ao, por dois motivos:

1) A "vague" do zen acabou por nao deixar sinais dignosde nota na produi;ao artistica fora da America do Norte, e 0

discurso apresenta-se hoje muito menos urgente do que ha oitonnos atras.

2) Embora nosso ensaio circunscreva muito explicitamenten experiencia zen entre os fenomenos de "moda" cultural, pes-quisando mas nao pregando suas raz6es, houve leitores apres-

(l) Ainda que houvesse antes algum interesse esparso pelo assunto,\I Zen Budismo no Brasil foi introduzido pelo escritor Nelson Coelho,lambem por volta de 1959-1961. 0 primeiro livro aqui publicado sobre• materia foi IntrodufQo ao Zen Bud/smo, de D. T. Suzuki, em' 1961,pela Civiliza~iio Brasileira. (N. do T.)

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sados (ou de ma fe) que 0 denunciaram como manifesto,como desavisada tentativa de trans plante - coisa que aocontrario, e clara mente criticada no ultimo paragrafo' doensaio.

Seja como for, resolvemos conservar 0 capitulo porque:I) as fenomenos culturais que a moda zen simbolizava

permanecem validos nos Estados Unidos - e no mundo in-teiro. se estao estabelecendo formas de rea9ao a-ideoI6gica,mistlco-er6tica, a civiliza9ao industrial (mesmo que as vezesapelando para os alucin6genos).

2) Nao devemos, nunca, tolerar a chantagem da 'estupidezalheia.

Wo~dsworth, Tennyson, Shelley, Keats, ate os pre-ra-faehtas. Todavia 0 fenomeno existe, pessoas dignas damaxima c0t;lsiderac;:aose ocuparam dele, Inglaterra eEstados Umdos esta,o produzindo livros em massa so-bre ~ assunto, que van da simples divulgac;:aoao estudoerudlto, e, especial~ente na America do Norte, gruposde pessoas vao ouvlr as palavras dos mestres Zen emi-grados do Japao, principalmente do Dr. Daisetz TeitaroSuzuki, urn anciao que dedicou sua vida a divulgac;:aodessa doutrina no Ocidente, escrevendo uma serie devolumes e qualificando-se como a maxima autoridadeno assunto.

Sera port~nto 0 caso de perguntarmos quais pos-sam ser os motIvos do sucesso do Zen no Ocidente: porque 0 Zen e por que agora. Certos fenomenos naoac~ntecem por acaso. Nesta descoberta do Zen peloOcldente pode haver muita ingenuidade e bastante su-perficialidade na troca de ideias e sistemas: mas se 0fato aconteceu, e porque determinada conjuntura cul-tural e psicolagica favoreceu 0 cncontro. .

Nao e aqui que se devera dar uma justificativa in-terna do Zen: a esse respeito existe uma literatura bas-tante rica, mais ou menos especializada, a qual se poderecorrer para os necessarios aprofundamentos e verifica-!toes organic as do sistema 2. 0 que mais nos interessaaqui ever quais os elementos do Zen que puderamfascinar os ocidentais e encontra-Ios preparados pararecebe-Ios.

Ha no Zen uma atitude fundamentalmente antiinte-lectualista, de elementar e decidida aceitac;:aoda vida emsua imediac;:ao, sem tentar justapor-Ihe explicac;:6esquea tornariam rfgida e a matariam, impedindo-nos decolhe-Ia em seu livre fluir, em sua positiva desconti-nuidade. E talvez tenhamos dito a palavra exata. Adescontinuidadee, tanto nas ciencias quanto nas rela~QOescomuns, a categoria de nosso tempo: a culturaocidental moderna destruiu definitivamente os concei-tos classicos de continuidade, de lei universal, de re-

"Durante os Ultimos anos, nos Estados Unidos,uma pequena palavra japonesa, de som sibilante e pun-gente, comec;:ou a manifestar-se atraves de referenciascasuais ou exatas nos lugares mais diversos, nas conver-sas das senhoras, nas reuni6es academic as, nos coque-teis entre amigos. .. fusa pequena e cxcitante palavrae Zen!" Assim escrevia, ao fim da decada de cinqiien-ta, uma revista norte-americana de grande difusab, aofocalizar urn dos fenomenos culturais e de costumesmais curiosos dos ultimos tempos. Note-se bem: 0budismo Zen ultrapassa os limites do "fenomeno decostume", pois representa uma especificac;:aodo budis-mo que mergulha suas raizes nos seeulos e que influen-ciou profundamente as culturas chinesa e japonesa; bas-ta pensar que as tecnicas da esgrima, do tiro com 0arco, as artes do cha e do arranjo de flores, a arquite-tura, a pintura, a poesia niponica sofreram a influenciadessa doutrina, quando nao constituiram sua expressaodireta. Mas, para 0 mundo ocidental, 0 Zen tornou-sefenomeno de costume ha poucos anos e ha poucos anoso publico comec;:ou a perceber as referencias ao Zencontidas em discursos criticos aparentemente indepen-dentes: Zen e a beat generation, Zen e psicanaIise, Zene a musica de vanguarda nos Estados Unidos, Zen e apintura informal, e, finalmente, Zen e a filosofia deWittgenstein, Zen e Heidegger, Zen e Jung. .. As re-ferencias comec;:ama tornar-se suspeitas, 0 filalogo des-confia de urn embuste, 0 leitor comum desnorteia-se,qualquer pessoa seosata se revolta decididamente quan-do vem a saber que R. L. Blyth escreveu urn livrosabre Zen e a literatura inglesa, identificando situac;:6es"Zen" nos poetas ingleses, de Shakespeare e Milton a

(2) Citamos em especial: Heinrich Dumoulin, Zen' Geschichte und(1',ltllll, MUnchen, Franke Verlag, 1959; Christmas Humphreys, Zen'uddhism, London, Allen & Unwin, 1958; N. Senzaki e P. Reps. Zen""h, Zen Bones, T6quio, Tuttle, 1957; Chen-Chi-Chang, The Practice ofI,,,, N. Y:, Haper, 1959; D. T. Suzuki, Introduction to Zen Buddhism,LUllndOn, RIder, 1949; Robert Powel, Zen and Reality, London, Allen &

nwln, 1961; A. W. datts, La via dello Zen, Milano, Feltrinelli, 1960;jllra uma biblografia mais vasta, v. A. W. Watts, Lo Zen, MjJ.ano,Jlomplani, 1959.

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la<;aocausal, de previsibilidade dos fenomenos: em su-ma, renunciou a elabora<;ao de f6rmulas gerais que pre-tendem definir 0 conjunto do mundo em termos sim-ples e definitivos. Novas categorias ingressaram nalinguagem contemporanea: ambigliidade, inseguran<;a,possibilidade, probabilidade. E extremamente perigosomisturar as coisas e assimilar, como estamos fazendo,ideias provenientes dos mais diversos setores da cul-tura contemporanea com suas acep~6es precisas e dis-tintas, mas 0 pr6prio fato de urn discurso como esteser vagamente possivel e de alguem poder indulgente-mente aceita-lo como correto, significa que todos esseselementos da cultura contemporanea estao unificadospor urn estado de espirito fundamental: a conscienciade que 0 universo ordenado e imutavel de outrora, nomundo contemporaneo, representa, quando muito, umanostalgia: mas ja nao e nosso. Daqui - e sera pre-ciso dize-lo? - nasce a problematic a da crise, pois eprecise uma firme estrutura moral e muita fe nas pos-sibilidades do homem para aceitar despreocupadamen-te urn mundo no qual parece impossivel introduzir m6-dulos de ordem definitivos.

Repentinamente, alguem encontrou 0 Zen; avali-zada por sua veneravel idade; essa doutrina vinha ensi-nar-nos que 0 universo, 0 todo, e mutavel, indefinivel,fugaz, paradoxal; que a ordem dos eventos e uma ilu-sao de nossa inteligencia esclerosante, que toda tentativapara defini-la e fixa-la em leis esta condenada ao fra-casso. .. Mas que justamente na plena consciencia eaceita<;ao alegre dessa condi<;ao esta a extrema sabe-doria, a ilumina~ao definitiva; e que a crise eterna dohomem nao surge porque ele deve definir 0 mundo enao 0 consegue, mas porque quer defini-lo e nao deve.Derradeira prolifera<;ao do budismo mahayana, 0 Zensustenta que a divindade esta presente na viva multipli-cidade de todas as coisas, e que a beatitude nao con-siste em subtrair-se ao fluX:oda vida para desvanecerna inconsciencia do Nirvana 'como nada, mas sim noaceitar todas as coisas, no ver em cada uma delas aimensidade do todo, ser felizes da felicidade do mun-do que vive e ferve de eventos. 0 homem ocidentaldescobriu no Zen 0 convite a realizar· essa aceita~ao,renunciando aos mOdulos 16gicos e estabelecendo uni-camente contatos diretos com a vida.

. ~or isso, hoje, nos Estados Unidos, costuma-se dis-tmgUlr entre Beat Zen e Square Zen. Square Zen e 0

Zen "quadrado", regular, ortodoxo, para 0 qual sevoltam as pessoas que sentem confusamente ter en-contrado uma fe, uma disciplina, urn "caminho" de~alva~~o (e quantas nao existem nos Estados Unidoslffe~u~etas, ~onfusas, disponiveis, prontas a passar d~Chnst:an SCIence ao Exe~cito da Salva<;ao, e agora, porque .~ao, ao Zen), e gL!ladas pelos mestres japonesesp.artl~lparem de verdadelros cursos de exerckios espi-ntuals, aprendendo a tecnica do "sitting" 3, passam lon-gas horas de silenciosa medita<;ao controlando a res-pira<;ao para chegarem a subverter, segundo os ensina-mentos de alguns mestres, a posi<;ao cartesiana afir-m~~do "Respiro, logo existo". Beat Zen e, pel~ con-trano, 0 Zen adotado como bandeira pelos hypstersdo grupo de Sao Francisco, os Jack Kerouac os Fer-lin~etti, ?~Gin~~e:g~ e?,contrando nos preceitos e na16glCa.(ahas na ~logIca) Zen as indica<;6es para urncerto tlpo de poesla, alem de rn6dulos qualificados pa-r~ uma recusa do american way of life; a beat genera-tIOn ;evolta-se contra a ordem existente sern procurarmud a-la, rn~s .c?locando-se a sua margem e "pro-~u~ando ? slgmfIcado da vida numa experiencia sub-Je.tlvamalS do .que num resultado objetivo" 4. Os beat-~lk~ ~e al?rovelta~ do Zen como qualifica<;ao para seumdividuahsmo anarquico: e como ressaltou Harold EMcCarthy num estudo sobre 0 "natural" e 0 "inatu~ral" no pensamento de Suzuki 5, aceitarem sem muitasdiscrimina<;6es certas afirma~6es do mestre japones, se-gundo ~s q~ais ~s. ~r~ndpios e os modos da organiza-~ilo social sac artlficiais. Essa espontaneidade soou su-iestivament~ aos ouvidos de uma gera<;ao ja educadapor ~erto tlPO de naturalismo e nenhum dos hypstersrefletlU sobre 0 fato de que 0 Zen nao recusa a sociali-dade tout court, mas recusa uma socialidade conforma-da para procurar uma socialidade espontanea, cujas re-dl (3) Tecnica espe.c~l usada pelos orientais e especialmente pelos bu-D

,tRtS rdelallva a _pos~9ao em que 0 adepto deve sentar-se para oraror va as posl90es IOga. .(4). V. Alan W. Watts, "Beat Zen, Square Zen and Zen" em Chlca-'g ReVIew, Summer 1958 (numero unico subre 0 Zen). Sobre as rela-

',liD/entre Zen e beat generation, v. tambem R. M. Adams, Strains(/ scords, Ithaca, Cornell Un. Pr., 1958, pag. 188.•• ,,(5) Harold E. Mc~~rthy, "The Natural and Unnatural in Suzuki's.on , em ChIc. Rev., cltado.

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lac;6es se fun'damentam numa adesao livre e feliz, cadaqual reconhecendo 0 outro como parte de urn mesmocorpo universal. Sem perceberem que nada fizeramalem de adotar os modos exteriores de urn conformismooriental, os profetas da beat generation desfraldaram 0

Zen como justificativa para suas vagabundagens religio-sas noturnas e suas sagradas intemperanc;as. Com a·pa-lavra Jack Kerouac:

simo, e de que, quando Kerouac afirma "Nao sei. Naome interessa. Nao faz nenhuma diferenc;a", - nessadeclarac;ao nao haja tanto desapego quanto certa hosti-lidade, uma autodefesa raivosa, muito distante do se-reno e afetuoso desprendimento do verdadeiro ilumi-nado".

Em seus extases bucolicos Kerouac descobre que"qualquer coisa e boa para sempre, e, para sempre epara sempre"; e escreve I WAS FREE com letras maius-culas: mas essa e pura excitac;ao, e afinal !rata-se deuma tentativa de comunicar aos outros uma experien-cia que 0 Zen considera incomunic::ivel, e de comunica--la atraves de artificios emotivos, la onde 0 Zen ofe-rece ao neofito a longa, decenal meditac;ao sobre urnproblema paradoxal para depurar a mente sobrecarre-gada no xeque total da inteligencia. Nao sera entao 0

Beat Zen urn Zen facil demais, feito para indi'viduospropensos ao desprendimento, que 0 aceitariam comoas fanaticos de quarenta anos atnis elegiam 0 super--hornem nietzscheano como estandarte de sua intem-peranc;a? Onde foi parar a pura e silenciosa serenidadedo mestre Zen e a "mascula necessidade de cantar li-vremente" na imitac;ao catuliana de Allen Ginsberg(Malest Cornifici tuo Cattulo) que solicita compreensaopara a sua honesta propensao pelos adolescentes, e con-clui: "You're angry at me. For all my lovers? -It's hard to eat shit, without having vision - & whenthey have eyes for me it's Heaven"?

Ruth Fuller Sasaki, senhora norte-americana queem 1958 recebeu as ordens de sacerdote Zen (grandehonra para urn ocidental e, alem do mais, mulher),representante de urn Zen muito square, afirma: "NoOcidente 0 Zen parece estar atravessando uma fase cul-tual. 0 Zen nao e urn culto. 0 problema dos ociden-tais e querer acreditar em algo, e, simultaneamente,querer faze-lo da maneira mais facil. Zen e urn tra-balho de autodisciplina e estudo que dura toda a vida".Decerto, nao e este 0 caso da beat generation, masha quem se pergunte se mesmo a atitude dos jovensanarquicos individualistas nao representa urn aspectocomplementar de urn sistema de vida Zen; 0 mais com-preensivo e Alan Watts, que, no artigo citado, mencio-na urn ap610go indiano segundo 0 qual existcm dois"caminhos", 0 do gato e 0 do macaco; 0 gatinho nao

A nova poesia norte-americana, representada pela SanFrancisco Renaissance - quer dizer Ginsberg, eu, Rexroth,Ferlinghetti, McClure Corso, Gary Snyder, Phil Lamantia,Philip Whalen, pelo menos na minha opiniao - e urn generoda velha e nova loucura poetica Zen, escrever tudo aquilo quevem a cabeca da maneira como vem, poesia que volta asorigens. verdadeiramente ORAL, como diz Ferlinghetti, nao urnchato sofisma academico. .. Estes novos puros poetas se con-fessam pelo simples prazer da confissao. Sao CRIAN<;AS. " ~lesCANTAM, rendeni.-se ao ritmo. 0 que e diametralmente opostoa chutada de Eliot que nos recomenda suas regras lamen-taveis e desoladoras tais como 0 'correlativo' e assim pordiante, nada mais do que urn conjunto de prisao de ventre e,enfim, de castrai;ao da mascula necessidade de cantar 11'lre·mente. " Mas a San Francisco Renaissance e a poesitl delima nova Santa Loucura como a dos tempos antigos (Li Po.Hanshan, Tom 0 Bedlam, Kit Smart, Blake), e tambem euma disciplina mental tipificada no haiku, isto e, 0 metodode visar diretamente as coisas, puramente, concretamente, semabstrai;6es nem explicai;6es, wham wham the true blue songof man <1.

Assim Kerouac, em Dharma Bums, descreve suasvagabundagens pelos bosques, repletas de meditac;6ese aspirac;6es a uma completa liberdade; e a propria au-tobiografia de uma presumida iluminac;ao (de urn satori,diriam os mestres Zen) akanc;ada numa serie de ex-tases silvestres e solitarios: "... sob 0 luar eu vi averdade: aqui, isto 6 Isto ... 0 mundo como e 0 Nir-vana, estou procurando 0 Ceu alem enquanto que 0

Ceu esta aqui, oCeu nada mais e do que este pobretriste mundo. Ah, se eu pudesse compreender, se eupudesse esquecer-me de mim mesmo, e dedicar minhasmeditac;6es a libertac;ao, a consciencia e a beatitude detbdas as criaturas vivas, eu compreenderia que tudoquanto existe e extase". Mas surge a duvida de queesse seja exatamente 0 Beat Zen, urn Zen personalis-

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faz forc;a para viver, porque a mae 0 leva na boca; 0macaco segue 0 caminho .do esforc;o, porque se mantemagarrado as costas da mae, segurando-se a ela. Osbeatniks seguiriam 0 caminho do gatinho. E com mui-ta indulgencia Watts condui, em seu artigo sobre Beate Square Zen, que, se alguem quiser passar alguns anosnum mosteiro japones, nao ha razao para nao faze-lo;mas, se outros preferem roubar autom6veis e fica.r 0dia inteiro escutando discos de Charlie Parker, afmalos Estados Unidos sac urn pais livre.

pintura, ha uma prevalencia da man~ha sobre a linha;certa pintura japonesa contempOrdllea amplamente in-fluenciada peIo Zen e uma verdadeixa pintura tachiste,e nao e por acaso que nas atuais exposiC;Oesde pintu-ra informal os japoneses estao sempre bem represen-tados. Nos Estados Unidos, pintores como Tobey ouGraves sao exphcitamente considerados representantesde uma poetica abundantemente embebida de zenismo,e na critica corrente, a referencia a assimetria Zen paraqualificar as atuais tendencias da art brut liparece comcerta freqtiencia 8.

Por outro lado e evidente - e foi afirmado repeti-das vezes - que nas produc;Oes da "arte informal" Muma clara tendencia a abertura, uma exigencia de naoconcluir 0 fato pllistico numa estrutura definida, denao determinar 0 espectador a aceitar a comunicac;aode uma dada eonfiguraC;ao; e de deixa.-Io disponivel auma serie de fruic;Oeslivres, em que ele eseolhe os re-sultados formais que Ihe parecem congeniais. Numquadro de Pollock nao nos e apresentado urn univer-so figurativo aeabado; 0 ambiguo, 0 viscoso, 0 assime-trieo intervem nele justamente para permitir que 0 im-pulso pllistico-coloristico prolifere cont1nuamente numaineoatividade de formas possiveis. Nesse oferecimentode possibilidades, nesse pedido de liberdade fruitiva,esta uma aeeitac;ao do indeterniinado e uma recusa daeasualidade univoca. Nao poderiamos imaginar urn se-guidor da action painting procurando na filosofia aris-totelica da substancia a justifieativa de sua arte. Quan-do um critieo se refere a assimetria e a abertura Zen,podemos mesmo adiantar ressalvas filol6gicas; quandourn pintor exibe justificativas em termos Zen, podemosdeseonfiar da clareza critiea de sua atitude: mas naopodemos negar uma fundamental identidade de atmos-fera, uma referenda comum ao movimento como nao--definiC;ao de nossa posic;ao no mundo. Vma autori-:lac;aoda aventura na abertura.

Mas onde a influencia Zen se fez sentir de maneiramais senslvel e paradoxal foi na vanguarda musical

(8) Veja-se a nota de Gillo Dortles em II dlvenlre delle artl, To-rino Elnaudi 1959. pag. 81 (II tendere verso l'Aslmmetrlco). Mats tardeDorilcs reto~ou este tema num amplo cmato dedicado ao Zen, inicial-mlntc pUblicado na Rlvlsla dl Esletlca e depois cm Simbolo, Comunl-flU/one, Consumo, Torino, Einaudl, 1962.

Existern, porem, outras areaS da vanguarda ondepodemos encontrar influencias Zen mais interessalltes eexatas: mais interessantes porque aqui 0 Zen nao ser~ve tanto para justificar uma atitude etica quanto para.promover estrategias estiHsticas; e mais ~xatas, justa-mente, porque a referencia pode set control ada cembase nas peculiaridades formais da corrente ou do ar-tista. Uma caracteristica fundamental tanto da artequanta da nao-16gica Zen e a recusa cIa simetria. Arazao disso e intuitiva: afinal, a simetria representa umm6dulo de ordem, uma rede lanc;ada sabre a esponta-neidade, 0 efeito de Ulp calculo, e 0 Zen tende a dei-xar crescer as seres e os eventos sem preordenar osresultados. As artes da esgrima e da luta recomendamconstantemente uma atitude de flexive1 adaptabilidadeao tipo de ataque levado a efeito, uma r~nuncia a res-posta calculada, um convite a rea«ao como desenvol-vimento da aC;aodo adversario. E no teatro Kabuki,a disposiC;aoem piramide invertida, que caracteriza asre1ac;6es hierarquicas das persona gens no palco, sem-pre e parcialmente alterada e "desequilibrada", de mo-do que a ordem sugeroida tenha semvre algo de natu-ral, espontaneo, imprevist07• A pintura cliissica Zennao s6 aceita todos esses pressupostos, enfatizando aassimetria, mas valoriza tamhem 0 espa~o como enti-dade positiva em si, nao como receptaculo das coisasque nele sobressaem, mas como sua matriz: nesse tr~-tamento do espa~o M 'a presunc;ao da unidade do uni-verso, uma onivalorizaC;ao de todas as coisas: homens,animais e plantas sao tratados no estilo impressionista,confundindo-se com 0 fundo. Isso significa que, nessa

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narte-americana. Referimo-nos em especial a John Ca-ge, a figura mais discutida da musica norte-americana(sem duvida, a mais paradoxal de toda a musica con-temporanea), 0 musico com que muitos compositorespos-webernianos e eletronicos estao frequentemente empolemica, sem poder subtrair-se a sua fascina9iio e aoinevit<ivel magisterio de seu exemplo. Cage e 0 pro-feta da desorganiza9iio musical, 0 sumo-sacerdote doacaso: a desagrega9ao das estruturas tradicionais, quea nova musica serial procura com uma decisao quasecientifica, encontra em Cage urn eversor desprovido dequalquer iIiibi9ao. Sao conhecidos seus concertos emque dois executantes, alternando emiss6es de sons comlongos periodos de silencio, extraem do piano as so-noridades mais heterodoxas, dedilhando suas cordas,percutindo seus lados e, enfim, levantando-se e sinto-nizando urn radio num comprimento de nnda escolhi-do ao acaso, de maneira a poder inserir qualquer con-tribui9ao sonora (musica, palavras ou disturbio indis-tinto) no fato executivo. A quem 0 interpela a res-peito das finalidades de sua musica, Cage responde ci-tando Lao Tse e advertindo 0 publico de que so se cho-cando com a completa incompreensao e medindo apropria estultice ele podera colher 0 profundo sentidodo Tao. A quem the objeta que a sua musica nao emusica, Cage responde que, com efeito, nao pretendefazer musica; a quem prop6e quest6es· demasiado su-tis, a resposta e 0 pedido para repetir a pergunta: sea pergunta for repetida, pede que se repita mais umavez a questao; ao terceiro pedido de repeti9ao, 0 inter-locutor toma consciencia de que a expressao: "Porfavor, quer repetir a pergunta?" nao constitui urn pe-dido mas a propria resposta a pergunta. Na maioriadas vezes, Cage prepara, para seus contraditores, res-pastas pre-fabricadas, boas para qualquer pergunta, vis-to que querem ser desprovidas de sentido. 0 ouvintesuperficial se satisfaz ao pensar em Cage comb numblefador que nem mesmo e muito habil, mas suas con~.,tante.s referencias as doutrinas orientais deveriam aler:'tar-nos a seu respeito: antes de ser visto como musicode vanguarda, deve ser encarado como 0 mais inopi-nado dos mestres Zen, e a estrutura de seus contradi-tores e perfeitamente identica a dos mondo, as tipicasperguntas com respostas absolutamente casuais, com

que os mestres japoneses levam 0 disdpulo a ilumina-9ao. No plano musical pode-se discutir eficazmente arespeito do destino da nova musica, se reside no com-pleto abandono a felicidade do acaso ou na disposi-9ao de estruturas "abertas", todavia orientadas segun-do modulos de possibilidade formal9: mas no planofilosofico, Cage e intocavel, sua dialetica Zen perfeita-mente ortodoxa, sua fun~iio de pedra de esca.ndalo ede estimulador das inteligencias sopitadas, inigualavel.E e 0 caso de perguntar se ele esta contribuindo parao esoterismo Zen ou para 0 campo musical, procurandouma lavagem mental de habitos musicais adquiridos.o publico italiano teve oportunidade de conhecer JohnCage na qualidade de concorrente de "Lascia 0 Rad-doppia"10, empenhado em responder sobre cogumelos;e divertiu-se diante deste excentrico norte-americanoque organizava concertos para cafeteiras de pressao eliqiiidificadores, perante os olhos estarrecidos de MikeBongiorno 11,e provavelmente deve ter concluido que seencontrava . diante de urn palha90 capaz de explorara imbecilidade das massas e a condescendencia dos massmedia. .Mas, na realidade, Cage enfrentava essa expe-riencia com 0 mesmo humorismo desintere.ssado comque 0 seguidor Zen enfrenta qualquer evento da vida,com que os mestres Zen chamam-se uns aos outros"velho saco de arroz", com que 0 professor Suzuki,interrogado sbbre 0 significado de seu primeiro nome- Daisetz - que the foi dado por urn sacerdote Zen,responde que significa "grande estupidez" (enquantoque na realidade significa "grande simplicidade"). Cagedivertia-se em colocar Bongiorno e 0 publico peranteo nao-senso da existencia, assim como 0 mestre Zenobriga 0 disdpulo a refletir sobre 0 koan, 0 enigmasem solU9ao do qual devera surgir a derrota da inteli-gencia, e a ilumina9ao. Ha muitas duvidas quanta aMike Bongiorno ter ficado iluminado, mas Cage po-deria ter-lhe respondido como respondeu a uma velhasenhora que, depois de urn .seu concerto em Roma,

(9) Como exemplo de duas atitudes crfticas opostas, vejam-se non9 3 (agosto 1959) de Incontr; Musicali os ensaios de Pierre Boulez(A.lea) e Heinz-Klauss Metzger (I. Cage 0 delia Iiberazione).

(10) Programa da televisao italian a no estilo de "0 Ceu e 0 Limite"(N. do T.).

(11) Famoso apresentador do programa-concurso "Lascia 0Radoppia?" (Deixa ou Dobra?), compan'ivel ao nosso Silvio Santos.(N. do T.).

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levantou-se para dizer-Ihe que sua musica 'era escan-dalosa, repugnante e imoral: "Era uma vez, na China,uma senhora beHssima que fazia enlouquecer de amortodos os homens da cidade; uma vez caiu nas profun-dezas de urn lago e assustou os peixes". E afinal, alemdessas atitudes pniticas, a propria musica de Cage r~-vela - mesmo que seu autor nao falasse dela exph-citamente - muitas e exatas afinidades com a tecnicados No e das representa~5es do teatro Kabuki, aindaque somente nas longuissimas pausas alter~adas commomentos musicais absolutamente pontums. Quemteve oportunidade de acompanhar Cage na mon~agemda fita magnetica com ruidos concretos e sonondadeseletr6nicas, para seu Fontana Mix (para soprano efita magnetica), viu como ele atribuiu a varias fitasja gravadas uma linha de cor diferente; como, depoisdisso conduziu essas linhas sobre urn modulo gra-fico de forma que elas se entrela~assem ao acaso sO-bre uma folha de papel; e como, enfim, fixados ospontos intersecantes das linhas, escolheu e montou aspartes da fita que correspondiam aos pontos pre-es-colhidos pelo hasard, obtendo disso uma sequencia so-nora regida pela logica do imponderavel. Na conso-ladora unidade do Tao cada som vale todos os sons,cada encontro sonoro sera 0 mais feliz' e 0 mais ricode revela~5es: ao ouvinte restara somente abdicar desua pr6pria cultura e perder-se na pontualidade de urninfinito musical reencontrado.

Isso quanto a Cage; autorizados a recusa-Io ou acircunscreve-Io nos limites de urn neodadaismo de rup-tura; autorizados a pensar, e nao e impossivel, que seubudismo nada mais seja que uma escolha metodol6gicaque the permite qualificar sua aventura musical. Ei~,todavia, outro veio pelo qual 0 Zen pertence de dl-reito a cultura ocidental contemporanea.

Dissemos neo-Dada: e e mister perguntar se urndos motivos pelos quais 0 Zen teve penetra~ao noOcidente nao seria 0 fate de as estruturas imaginat~v?Sdo homem ocidental se terem tornado ageis gra~as aginastica surrealista e as celebra~5es do automatismo.Ha muita diferen~a entre este dialago: "0 que e Buda?Tres libras de linho", e este outro: "0 que e 0 roxo?Uma mosca dupla"? Formalmente nao. Os motivossac diferentes, mas e certo que vivemos num mundo dis-

posto a acertar com culta e maligna satisfa~ao os aren-tados a logica.

10nesco tera lido os dialogos da tradi~ao Zen? Naoconsta, mas. nao saberiamos dizer que diferen~a de es-trutura ha entre urn mondo e esta tirada do Salon del'Automobile: "Quanto custa este carro? Depende dopre~o". Ha aqui a mesma circularidade aporetica quese encontra nos koan, a resposta prop5e novamente apergunta e assim por diante ate 0 infinito, ate a ra-zao assinar urn ata de rendi~ao aceitando 0; absurdocomo textura do mundo. 0 mesmo absurdo de queestao impregnados os dialogos de Beckett. Com unladiferen~a, naturalmente: a zombaria de 10nesco e Bec-kett transpira angu.stia - e, portanto, nada tern avercom a serenidade do sabio Zen. Mas justamente aquiesta 0 sabor de novidade da mensagem oriental, a ra-zao indubitavel' de seu sucesso: ataca 0 mundo comos mesmos esquemas ilogicos aos quais esta sendo acos-tumado por uma literatura de crise, dando-Ihe a enten-der que justamente no fundo dos esquemas ilogicos, nasua completa assun~ao, e que esta a solu~ao da crise,a paz. Uma certa solu~ao, uma certa paz: nao a nos-sa, diria eu, nao a que nos procuramos, mas mesmoassim, para quem esta com os nervos esgotados, umasolu~ao e uma paz.

De qualquer forma, fossem mais ou menos autori-zados esses veios, 0 Zen, conquistando 0 Ocidente, con-vidou a reflexao mesmo os criticos mais acirrados. Apsicanalise nos Estados Unidos tem-se apossado demetodos Zen, a psicoterapia em geral encontrou urnauxilio especial em algumas de suas tecnicas 12. Junginteressou-se pelos estudos do Prof. Suzuki 13 e estaaceita~ao, com perfeita serenidade, do nao-sensodomundo, resolvendo-o numa contempla~ao do divino,pode parecer 0 caminho para uma sublima~ao da neu-rose de nosso tempo. Urn dos motivos a que maisrecorrem os mestres Zen quando acolhem os discipu-los, e 0 do esvaziamento da propria consciencia de

(12) Veja-se, por ex., Akihisa Kondo, "Zen in Psychoterapy: TheVirtue of Sitting", em Chicago Review, Summer 1958. Veja-se tambemE. Fromm, D. T. Suzuki, de Martino, Zen Buddhism and Psychoanalysis.N. Y., Harper & Bros., 1960.

(13) v. 0 prefacio de C. G. Jung a D. T. Suzuki, Introduction toZen Buddhism, London, Rider, 1949.

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tudo aquilo que pode perturbar a iniciaC;ao. Um dis-cipulo apresenta-se a um mestre Zen buscando a luz:o mestre convida-o a sentar e the oferece uma chave-na de cM, segundo 0 complexo ritual que determinaa cerim6nia. Pronta a infusao, ele a despeja na cha-vena do visitante, e continua a despeja-Ia mesmo quan-do 0 liquido comec;a a transbordar. Finalmente 0 dis-cipulo, alarmado, tenta faze-Io parar, avisando~o deque a chavena esta "cheia". Entao 0 mestre responde:"Como esta chavena, tu estas cheio de tuas opini5ese de teus raciocinios. Como posso mostrar-te 0 Zensem que tenhas antes esvaziado tua chavena?" No-temos que este nao e 0 convite de Bacon a livrar-sedos idola, ou 0 de Descartes a desembarac;ar-se dasideias confusas: e um convite a libertar-se de todas asperturbac;5es e de todos os complexos, ou melhor, dainteligencia silogizante como perturbac;ao e como com-plexo; tanto que 0 passo seguinte nao sera a experi-encia empfrica e a pesquisa de novas ideias, mas ameditac;ao sabre 0 koan, portanto uma ac;ao nitida-mente terapeutica. Nao e de estranhar que psiquiatrase psicanalistas tenham encontrado aqui indicac;5es fas-cinantes.

Mas tambem em outros setores foram encontradasas analogias. Quando, em 1957, saiu 0 Der Satz vomGrund de Heidegger, muitos notaram as implicac;6esorientais de sua filosofia e houve quem se referisseexpllcitamente ao Zen, observando que 0 ensaio do filo-sofo alemao fazia pensar num dialogo com urn mes-tre Zen de Kioto, Tsujimura 14.

Quanto a outras doutrinas filosoficas, 0 proprioWatts, na introduc;ao a seu livro, fala de conex6escom a semantica, a metalinguagem, 0 neopositivismoem geral15

• Atingindo as raizes, as referencias maisexpHcitas foram feitas a respeito da filosofia de Wit-tgenstein. Em seu ensaio Zen and the Work of Wit-tgenstein 1", Paul Wienpahl ohserva: "Wittgenstein al-

(14) Veja-se 0 artigo de Egon Vietta, "Heidegger e it maestro Zen",em Frankfurter Allgemeine Zeitung, 17 de abril de 1957. V. tambemNiels C. Nielsen Jr., Zen Buddhism and the Philosophy of M. Heidegger,Atos do XU Congresso Int. de Filosofia, vol. X, pag. 131.

(15) Citaremos tambem a discussao publicada na revista PhilosophyEast and West da Univ. de Honolulu: Van Meter Ames "Zen andAmerican Philosophy" (n. 5. 1955-56, pags. 305-320; D. T. S~zuki, "Zen:a Reply to V. M. Ames" (ib.); Cben Chi-Chang, "The Nature of ZenBuddhism" (n. 6, 1956-56, pag. 333).

(16) Chicago Review. Summer 1958.

canc;ou um estado espiritual semelhante aquele que osmestres Zen chamam de satori, e elaborou urn metodoeducativo que se assemelha ao metodo dos mondo edos koan". A primeira vista, este fate de encontrara mentalidade Zen na raiz do neopositivismo 16gicopode parecer pelo menos tao estapafurdio quanta se-ria 0 encontra-Ia em Shakespeare: mas convem lembrarque, pelo menos para encorajar tais analogias, ha emWittgenstein a renuncia a filosofia como explicac;ao to-tal do mundo. Ha uma prioridade conferida ao fatoatOmico (e portanto "pontual") enquanto nao relata,a recusa da filosofia como posic;ao de relac;6es geraisentre esses fatos e sua reduc;ao a pura metodologiade uma correta descric;ao deles. As proposic;6es lin-giHsticas nao interpretam 0 fato, nem tampoucoo ex-plicam: elas 0 "mostram", indicando e reproduzindofielmente suas conex5es, Uma proposic;ao reproduz arealidade como se fora uma das muitas projec;6es dela,mas nada pode ser dito acerca do acardo entre osdois pIanos: esse sOmente pode ser mostrado, Nem aproposic;ao, mesmo que esteja de acordo com a reali-dade, e passfvel de comunicac;ao: pois em tal caso naoteriamos mais uma afirmac;ao verificavel a respeito danatureza das coisas, mas a respeito do comportamentode quem fez a afirmac;ao (em suma, "hoje chove" naopode ser comunicada como "hoje chove", mas como"fulano disse que hoje chove").

E mesmo que quisessemos expressar a forma logi-ca da proposic;ao, tambem nao seria possivel:

As proposi<;6es podem representar a realidade total, masnao podem representar 0 que devem ter em comum com elapara poderem representli-la: a forma logica. Para podermos re-presentar a forma logica deverfamos ter a capacidade de noscolocarmos, juntamente com as proposi<;6es, fora da logica, istoe, fora do mundo. (4.12)

Essa recusa a sair do mundo e enrijece-Io em ex-plicac;6es justifica as referencias ao Zen. Watts dtao exemplo do monge que, ao disdpulo que 0 interro-gava sobre 0 significado das coisas, responde erguendoo cajado; 0 disdpulo explica com muita sutileza teo-16gica 0 significado do gesto, mas 0 monge contestaque a explicac;ao e demasiado complexa, 0 disdpulopergunta entao qual e a exata explicac;ao do gesto.

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a monge responde erguendo novamente 0 cajado. Leia-mos agora Wittgenstein: "0 que pode ser mostradonao pode ser dito". (4.1212.) A analogia ainda eexterior, mas fascinante; assim como e fascinante 0e~penhofundamental da filosofia wittgensteiniana, ouseJa, demonstrar que os problemas filos6ficos nao po"'dem set resolvidos pois SaD desprovidos de sentido;os mondo e os koan nao tern outro objetivo.

o Tractatus Logico-Philosophicus pode ser vistoc?mo um crescendo de afirmac;6es que chega a impres-SlOnar quem tiver familiaridade com a linguagem Zen:

-Omundo e tudo 0 que acontece [1]. As maiores pro-posi~6es e os maiores problemas dentre os que foram expostosem torno de argumentos filos6ficos nao SaD falsos mas SaDdesprovidos de sentido. Nao podemos, portanto, r~sponder aperguntas desse genero, mas unicamente afirmarmos sua fahad.e, sentido. A maioria das proposir;5es e dos problemas dosf!losofos resulta do fato de nao conhecermos a l6gica de nossal!nguagem. " E portanto nao nos surpreendamos se, na rea-IIdade, os problemas mais profundos nem sequer chegam aser problemas [4.003]. 0 mistico (das Mystiche) nao esta emcomoe 0 ~undo, mas n~ que If [6.44]. A solur;ao do pro-blema da v~da se entreve no desvanecer-se desse problema[6.521]. EXIste verdadeiramente 0 inexprimivel. Ele se mos-tra; e 0 mi~tico [6.522]. Minhas proposir;5es SaD explicativasdesta manelra: quem me compreende, afinal as reconhecedesprovidas ~e significado, quando subiu atraves delas, sabreelas, para a~em delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora aescada depOIs de ter subido por ela.) Deve passar acimadessas proposir;5es: entao vera 0 mundo do modo certo [6.54].

Nao hi! necessidade de muitos comentarios. Quan-to it ultima afirmac;ao, 1embra estranhamente, como janotamos, 0 fato de a filosofia chinesa usar a expressao"rede de palavras" para indicar 0 enrijecimento daexistencia nas estruturas da l6gica; e de os chineses di-zerem: "A rede serve para pegar peixes: fac;a comque se pegue 0 peixe e se esquec;a a rede". Jogar foraa rede, ou a escada, ever 0 mundo: colM-lo numatomada direta, na qual toda palavra seja urn empe-cilho: esse e 0 sa fori. Quem relaciona Wittgenstein aoZen pensa que existe unicamente a salvac;ao do satoripara quem tiver pronunciado no palco da filosofia oci-dental estas pala~ras terriveis: "Do que nao se podefalar, deve-se calar".

B born lembrar que, quando 0 discipulo comec;a asofismar com demasiada sutileza, os mestres Zen 0presenteiam com urn sonoro bofetao, nao para puni--10, mas porque 0 bofetao e tomada de contato coma vida, sobre a qual nao se pode raciocinar; sente-see e s6. Ora, Wittgenstein, ap6s ter exortado muitasvezes seus pr6prios discipulos a nao se ocuparem defilosofia, abandonou a atividade cientifica e 0 ensinouniversitario para entregar-se as atividades hospitalares,ao ensino humilde nas escolas prim arias das aldeiasaustriacas. Em suma, escolheu a vida, a experiencia,contra a ciencia.

Todavia, e faci! fazer ilac;6es e analogias a respeitode Wittgenstein e sair dos !imites da exegese correta.Wienpahl sustenta que 0 fi16sofo austriaco aproximou--se de urn estado de alma tao distanciado das teoriase dos conceitos que chegou ao ponto de crer que todosos problemas estivessem resolvidos porque dissolvidos.Mas 0 distanciamento de Wittgenstein sera em tudo igualao budista? Quando 0 filosofo escreve que a neces-sidade de uma coisa acontecer pelo fata de outra coisater acontecido, nao e uma necessidade, pois se trataunicamente de uma necessidade logica, Wienpahl in-terpreta isso facilmente:- a necessidade se deve as con-venc;6es da linguilgem, nao e real, 0 mundo real seresolve num mundo de conceitos e, portanto, num mun-do falso. Mas para Wittgenstein as proposic;6es 16gicasdescrevem a infra-estrutura do mundo (6.124 ) . Bverdade que SaD tautol6gicas e que nao dizem abso-lutamente nada a respeito do conhecimento efetivo domundo empirico, mas nao estao em contraste com 0mundo e nao negam os fatos: movem-se numa dimen-SaD que nao e ados fatos, mas permitem descreve--los 17. Em suma, 0 paradoxa de uma inteligencia ven-

'cida, a ser jogada fora ap6s 0 usa, a ser jogada foraquando se descobriu que nao serve, esta tao presenteem Wittgenstein quanta no Zen: mas para 0 filosofoocidental subsiste, apesar da aparente escolha do silen-cio, a necessidade de mesmo assim usar a inteligenciapara esclarecer pelo menos uma parte do mundo. Nao

(17) "Em oposi~iio a atitudes de moldes bergsonianos encontramosnele a mais alta valoriza~iioda pura estrutura 16gicada expressiio: com-preende-la. .. significa aIcan~ar uma compreensiio autentica da reali-dade'" (Francesco Barone, "II solipsismo linguistico di L. Wittgenstein",am Filosofia, outubro de 1951).

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devemos calar sobre tudo: somente sobre aquilo deque nao se pode falar, isto e, a fiIosofia. Mas per-manecem abertos os caminhos da cienl;ia natural. EmWi.ttgenstein a inteligencia e vencida por si mesma,pOlS nega-se no momenta mesmo em que tenta ofe-recer-nos urn metodo de verifica<;ao: mas 0 resultadofinal nao e 0 silencio completo, pelo menos nas in-ten<;oes.

Por outro lado, e verdade que as analogias se es-treitam cada vez mais - e 0 discurso de Wienpahlse torna mais persuasivo - com as PhilosophischeUntersuchungen. Cabe notar uma impressionante ana-logia entre uma afirma<;ao desta obra ("A clareza queestamos procurando e dareza completa. Mas isso sig-nifica simple.smente que os problemas filos6ficos de-vem desaparecer completamente" [133]) e 0 dialogoentre 0 mestre Yao-Shan e urn discipulo que the per-guntava 0 que e que estava fazendo de pernas cruza-zadas (resposta: "Pensava no que esta alem do pen-samento". Pergunta: "Mas como fazes para pensai noque esta alem do pensamento?" Resposta: "Nao pen-sando"). Certas frases das Indag(l{;oes Filos6ficas _aquela, por exemplo, de que a tarefa da filosofia seriaa de "ensinar a mosca ocaminho da garrafa" - saonovamente expressoes de uni mestre Zen. E nas Lec-ture Notes de Cambridge, Wittgenstein indicou 0 obje-tivo da filosofia como sendo uma "luta contra a fasci-na<;ao exercida pelas formas de representa<;ao", comourn tratamento psicanalitico para libertar "quem sofrerde certas diimbras mentais produzidas pela conscienciaincompleta das estruturas de sua pr6pria linguagem".E inutil lembrar 0 epis6dio do mestre que despeja 0cha. 0 positivismo de Wittgenstein foi definido como"positivismo terapeutico" e aparece como ensino que,ao inve.s de dar a verdade, poe no caminho de obte-Iapessoalmente.

Ao final das contas, nao podemos deixar de con-duir que efetivamente existe em Wittgenstein 0 esva'"ecer da fiIosofia no silencio, no momenta mesmo emque se verifica a instaura<;ao de urn rigoroso metodade verifica<;ao 16gica, de positiva tradi<;ao ocidental.Nao se dizem coisas novas. Wittgenstein tern essasduas faces, e a segunda e a que foi aceita pelo posi-tivismo 16gico. Dizer que a primeira, a do silencio,

e uma face Zen, na realidade significa fazer urn habiljogo de palavras para dizer que se trata de uma facemistica. E Wittgenstein' indubitavelmente faz parte dagrande tradi<;ao mistica alema, colocando-se ao ladedos celebradores do extase, do abismo e do silencio,de Eckhart a Suso e Ruysbroek. Ra quem - comoAnanda Coomaraswamy - tenha discorrido longamen-te sobre as analogias entre pensamento hindu e mis-tica alema, e Suzuki disse que no caso de Meister Eck:hart e preciso falar em verdadeiro satori18• Mas aqUlas equa<;oesse torn am fluidas e e 0 mesmo que dizer queo momenta mistico de abandono da inteligencia das-sificadora e urn momenta recorrente na hist6ria dohomem. E para 0 pensamento oriental e uma cons-tante. .

Dado Zen = misticismo, podemos estabelecer mui-tas compara<;oes. Parece-me que as pesquisas de Blythsobre 0 Zen na literatura anglo-saxonica sac desse tipo.Veja-se, por exemplo, a analise de uma poesia deDante Gabriele Rossetti, em que se descreve urn ho-mem tornado de angustia a procura de uma respostaqualquer ao misterio da existencia. Enquanto vagapelos campos na va procura de urn sinal ou de umavoz, a certo ponto, caindo de joelhos no chao, em pos-tma de ora<;ao, a cabe<;a dobrada contra as pernas,os olhos fixos a poucos centimetros das ervas, repen-tinamente entreve uma' euforbiacea silvestre (Euphor-bia amigdaloydes) de tipica florescencia triplice emforma de ta<;a: The woodspurge flowered, three cupsin one.

Diante dessa visao, 0 espirito abre-se de repente,como numa ilumina<;ao repentina, e 0 poeta compre-ende:

From perfect grief there need not beWisdom or even memoryOne thing then learnt remains to me,The woodspurge has a cup of three.

De todo 0 complicado problema que 0 vergavaresta agora uma l1nica verdade, simples, mas absoluta,inatacavel: a euforbiacea tem um calice triplo. E uma

(18) D. T. Suzuki, Mysticism Christian and Buddhist. London, Allen.II: Unwin, 1957. pag. 79. V. tambem Sohaku Ogata, Zen for the West,London, Rider & Co., 1959, pags. 17-20: onde e desenvolvida uma com-para~ao entre os textos Zen e paginas de Eckhart.

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proposl(tao atomica, e 0 resto e silencio. Nao ha du-vida. f: uma descoberta muito Zen, como a do poetaP'ang Yun, que canta: "Que maravilha sobrenatural- que milagre e este! - Tiro agua do po(to - ecarrego lenha!" Mas, assim como 0 pr6prio Blythadmite que esses momentos Zen SaDinvoluntarios, valedizer que nos momentos de comunhao panica com anatureza, 0 homem e levado a descobrir a absoluta epontual importancia de todas as coisas. Neste plano,poder-se-ia fazer uma analise de todo 0 pensamentoocidental, ate chegar, por exemplo, ao conceito decomplicatio em Nicolau de Cusa. Mas este seria outrodiscurso.

De todas essas "descobertas" e analogias, resta-noscontudo urn dado de sociologia cultural: 0 Zen fasci-nou alguns grupos de pessoas e ofereceu-Ihes uma f6r-mula para definir novamente os momentos mfsticos dacultura ocidental e de sua hist6ria psicol6gica indivi-dual.

Isso aconteceu tambem porque, sem duvida algu-ma, entre todos os matizes do pensamento oriental, fre-qtientemente tao estranho a nossa mentalidade, 0 Zene 0 que poderia tornar-se mais familiar ao Oddente,pelo fato de sua recusa do saber objetivo nao ser re-cusa da vida, mas alegre aceita(tao dela, urn convitea vive-Ia mais intensamente, uma nova avalia(tao dapr6pria atividade pratica enquanto condensa(tao, numgesto procurado com amor, de toda a verdade do uni-verso, vivida na facilidade e na simplicidade. Urn apeloa vida vivida, as pr6prias coisas: zu den Sachen selbst.

A referencia a uma expressao husserliana e instin-tiva diante de expressoes como a usada por Watts no ar-tigo citado: "... 0 Zen quer que voces tenham acoisa em si, the thing itself, sem comentarios". Cabelembrar que no aperfei(toamento de urn "ato", porexemplo, disparar setas com 0 arco, 0 disdpulo do Zenobtem 0 Ko-tsu, ou seja, certa facilidade de contatocom a coisa em si na espontaneidade do ato; 0 Ko-tsue interpretado como uma esp6cie de satori e 0 satorie visto em termos de "visao" do numeno (e poderfa-mos dizer visao das essencias); urn motivar, dirfamos,a tal ponto a coisa conhecida que nos tornamos uma

(mica coisa junto com ela 19. Quem tiver alguma fa-miliaridade com a filosofia de Husserl podera relevarcertas analogias inegaveis; e apesar de tudo na feno-menologia ha uma referencia a contempla(tao das coi-sas aquem dos enrijecimentos dos habitos perceptivose intelectuais; urn "por entre parenteses" a coisa talcomo nos habituamos a ve-la e interpreta-Ia comumen-te, para captar com absoluta e vital originalidade anovidade e a essencialidade de seu "perfil". Segundoa fenomenolagia husserliana, devemos voltar a eviden-cia indiscutfvel da experiencia atual, aceitar 0 fluxo davida e vive~lo antes de separa-Io e fixa-Io nas constru-(toes da inteligencia, aceitando-o naquela que e, comoja foi dito, "uma cumplicidade primordial com 0 obje-to". A filosofia como modo de sentir e como "cura".No fundo, curar-se desaprendendo, limpando 0 pens a-mento das preconstru(toes, reencontrando a intensidadeoriginal do mundo da vida (Lebenswelt). Sao palavrasde urn mestre Zen enquanto despeja 0 cha p;ua 0 dis-cfpulo? "Nossa rela~ao com 0 mundo como se mani-festa incansavelmente em n6s, nao e nada que umaanalise possa tamar mais claro: a filosofia nada podea nao ser recoloca-lo sob nossos olhos, oferece-lo anossa constata~ao. .. 0 unico Logos que preexiste eo pr6prio mundo ... " Sao palavras de Maurice Mer-leau-Ponty em sua Phenomenologie de la perception ...

Se para os textos husserlianos a referencia ao Zenpode ter 0 valor de referencia devida a certa agilidadede associa~6es, para outras manifesta~oes da fenome-nologia podemos basear-nos em cita~6es explicitas.Basta mencionar Enzo Paci, que em algumas ocasi6esfez referencia a certas posi~6es do taoismo e do zenis-mo para esclarecer algumas de suas atitudes 20. E quemfor ler ou reler os Ultimos dois capitulos de Do exis-tencialismo ao r,elacionismo encontrara uma atitude de.contato imediato com as coisas, urn sentir os objetosem sua epifanicidade imediata, que tern muito do "re-torno as coisas" dos poetas orientais, que sentem aprofunda verdade do gesto com que tiram agua do

(19) Veja-se, acerca da natureza do Ko-tsu, 0 artigo de Shiniki Hi-IImatsu, "Zen .and the Various Acts", em Chicago Review, Summer 1958.

(20) Veia-se Esistenzialismo e storicismo, Milano, Mondadori, 1950,P'a8. 273-280; e, roais explicitaniente, a conversa"ao radiofonica A criseII" Indagar;iio critica transmitida na serie "A crise dos valores no roun-do contemporaneo", em agoslo de 1957.

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poc,:o. E aqui tambem e interes.sante obser~ar ~omo asensibiIidade ocidental pode sentir nessas epifamas-con-tato da mistica Zen algo de muito semelhante a vis~odas arvores aparecida ao narrador da Recherche, atrasde· uma curva da estrada, a moc,:a-avede James Joyce,a falena enlouquecida dos Vecchi versi de Montale ...

Gostaria, contudo, de que 0 leitor pe~cebesse ex:-tamente que aqui se tenta sempre exphcar a razaopela qual 0 Zen fascinou 0 Ocidente. Quanto a falarde uma validade absoluta da mensagem Zen para 0homem ocidental, eu apresentaria min~as mais am-plas reservas. Mesmo diante ~e urn bUd~s~o qu~ cele-bra a aceitac,:ao positiva da vIda, 0 espmto oCldentalse destacara sempre dele, por uma inelimimivel neces-sidade de reconstruir essa vida aceita, segundo umadirec,:ao desejada pela inteligen~ia. 0 ~o~ento con-templativo nao podera ser senao urn estaglO de r~to-mada urn tocar a mae-terra para recuperar energms;o ho~em ocidental nunca aceitara 0 desmembramentona contemplac,:ao da multiplicidade, mas ira perder-sesempre na tentativa de domina-Ia e r~c~??~o-la. Se 0Zen the reafirmou, com sua voz antiqUlssIma, que aordem eterna do mundo consiste em sua fecunda de-sordem e que toda tentativa de entrosar a vida se-gundo leis unidirecionais e urn modo de. perder o. ~er-dadeiro sentido das coisas, 0 hornem oCldental cntica-mente aceitara reconhecer a relatividade das leis, masvoltara a introduzi-Ias na dialetica do conhecimento eda ac,:aosob forma de hipoteses de trabalho.

o hornem ocidental aprendeu da fisica modernaque 0 Acaso domina a vida do mundo subat6mico e queas leis e as previsoes pelas quais nos nos f~zemos. g~l1arpara compreendermos os fen6menos 4a VI?a.CobdIa?asao validas unicamente por expressarem medIas estatis-ticas aproximadas. A incerteza tornou-se urn criterioessencial para a compreensao do mundo: sabemos quenao podemos mais dizer "no instante X 0 eletron Ase encontrara no ponto B", mas "no instante X ha-vera uma certa probabilidade de que 0 eletron A seencontre no ponto B". Sabemos que qualquer descri-c,:ao nossa dos fenomenos at6micos e complementar,que uma descric,:aopode opor-se a outra, sem que umaseja verdadeira e a outra falsa.

Pluralidade e equivalencia das descric,:6esdo mun-do. E verdade, as leis causais cairam por terra, a pro-babilidade domina nossa interpreta<;ao das coisas: masa ciencia ocidental nao se deixou apanhar pelo terrorda desagregac,:ao. Nao podemos justificar 0 fato de queleis de probabilidade possam ter valor, mas podemosaceitar 0 fato de que elas funcionam, afirma Reichen-bach. A incerteza e a indeterminac,:ao sao uma pro-priedade objetiva do mundo fisico. Mas a descobertadesse comportamento do microcosmo e a uceita<;ao dasleis da probabilidade como tinieo meio apto de co-nhece-lo, devem ser entendidas como urn resultado dealtissima ordem 21.

Ha nessa aceitac,:aoa mesma alegria com que 0 Zenaceita 0 fato de que as coisas san elusivas e mutaveis:a essa aceitac,:ao0 taoismo chama Wu.

Numa cu1tura subterraneamente fecundada par essaforma mentis, 0 Zen encontrou ouvidos prontos a aco-lher sua mensagem como urn sucedaneo rnito16gico daconsciencia critica. Encontrou-se nele 0 convite a ga-zar 0 mutavel nurna serie de atos vitais, ao inves deadmiti-los unieamente como urn frio criterio metoda-16gieo. E tudo isso e positivo. Mas 0 Ocidente, mes~rno quando aceita com alegria 0 mutavel e recusa asleis causais que 0 imobilizarn, nao renuncia a rede-fini-Io atraves das leis provis6rias da prababilidade eda estatistica, pois - ainda que nessa nova e plasticaacepc,:ao - a ordem e a inteligencia que "distingue"san sua voca9ao.

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DO MODO DE FORMAR COMO COMPROMISSOCOM A REALIDADE

1 . Conhecida cronista, que sabe colher malicio-samente as osdla~6es dos titulos da balsa do In e doout, advertia recentemente em sua colutl.asocial - nemsempre tao descomprometida como pretenderia pare-cer - que dentro em breve, quando fornios tomacIas

! pelo desejo de pronunciar a palavra "alienac;ao", me-" Ihor sera taparmos a boca, pais isso pareceria terri-

yelmente fora de moda, vocabulo ao alcance de qual-quer consumidor do ultimo sucesso litenirio, id6ia re9ue,

I. fa superada, pe~a de repert6rio de qualquer Bouvard

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e Pecuchet 1 de nossos dias. E, posto que para u no-mem culto 0 fato de uma palavra estar ou nao na mod anao deveria influenciar 0 uso que dela se faz enquantocategoria cientlfica, a que deve realmente constituir-seem elemento de indaga"ao e preocupa"ao e a problemado motivo par que, numa determinada sociedade enuma determinada contingencia hist6rica, uma palavraganha as favores da moda; iSlOsim, e que se constituiem no"ao primaria de pesquisa e preocupa"ao. Per-guntamo-nos, entao, par que essa palavra e hoje de usatao corrente - note-se que isso muitos seculos ap6sua primei!"3 apari"ao - e se 0 abuso que dela se faztransformanda a paixiio de denuncia ern afetariio dedenuncia, nao constituiria talvez 0 exemplo mais cla-moroso e inadvertido de aliena"ao que a hist6ria regis-tra, evidente e ao mesmo tempo escondido como a cartaroubada colocada justamente onde ninguem iria procu-rar por ela. .'

Em primeiro lugar, e preciso reconduzlr a categonaas suas fontes e ao seu usa correto: com freqiienciao termo "aliena"ao" e empregado indiferentemente nosdais sentidos de alienariio-em-algo e de alienariio-de--algo: 0 primeiro e a da tradi"ao filos6fica (0 Entfrem-dung dos alemaes) e 0 segundo, 0 do estranhamento dascoisas (chamado pelos alemaes V erfremdung) que im-plica outra ordem de problemas. A lienar-se em algosignifica renunciar a si mesmo para entregar-se a urnpader estranho, tornar-se outro em fazendo algo, eportanto nao mais agir sabre alguma coisa, mas sim seragido por alguma coisa que nao e mais parte de nos.

Mas no abuso que se faz do termo esta presente,amiude, outra convic"ao: a de que este algo que nosage e do qual dependemos nos e completamenteestranho, urn poder inimigo que nada tern em comumcanosco, uma especie de poder malefico que nos sub-jugou a nossa revelia e que qualquer dia talvez possa-mas veneer; mas que tambem podemos nao levar emconta, recusando-o, pois nos somos nos e Ble e 0

Outro, feito de outra carne e de outra sangue.Nada nos impede de construir mitologias pessoais

nas quais a categoria de aliena"ao tome esse signifi-(I) Bouvard e Pecuchet: nomes dos protagonistas do romance h<;-'

monimo, inacabado, de Gustave Flaubert, em que 0 autor faz uma cr~-tica mordaz do diletantismo cultural da burguesia, satirizando 0 enCI-clopedismo e 0 positivismo. (N, do T,)

ca~e; contudo, na forma em que ela se definiu, pri-melTamente em Hegel e depois em Marx, "aliena~ao"tinha outro sentido: em termos mais simples (recusan-do uma linguagem que em Hegel esta demasiado com-prometida com toda uma sistematica; e aceitando 0pressuposto de que uma serie de defini,,6es conceituaisseja traduzlvel mesma fora do sistema), a homem,ao agir, aliena-se pelo fate de objetivar-se numa obraque ele realiza com seu proprio trabalho; quer dizer,aliena-se no mundo das coisas e das rela<;6es sociais;e aliena-se pelo fato de que, construindo coisas e re-la<;6es, a faz obedecendo a leis de subsistencia e de-senvolvimento que ele proprio deve respeitar, amol-dande-se a elas. Por seu lado, Marx censura a Hegelo nao ter feito distin<;ao entre objetiva<;ao (Entausse-~ung) e aliena<;ao (Entfremdung): no primeiro caso,Justamente, a homem torna-se coisa, expressando-se nanatureza atraves dotrabalho e dando lugar a urn mun-do no qual deve comprometer~se; mas quando 0 me-canismo desse mundo sobrepuja 0 homem, que se tor-na incapaz de reconhece-Io como obra sua, isto e, quan-do 0, homem nao consegue mais dominar as coisasque praduziu para que sirvam aos seus fins, acabandoper servir de proprio aos fins dessas coisas (que po-dem eventualmente identificar-se com os fins de outrashomens), entao acha-se alienado; e a sua propria obraque the dita as a<;6es, as emo<;6es, as ideias. Quantomais forte for essa aliena<;ao tanto mais a homem -apesar de agido - continuara acreditando ser 0 donadas proprias a<;6es, e aceitara a mundo em que vivecomo 0 melhor dos mundos possiveis.

Pertanto, enquanto para' Marx a objetiva<;ao eraurn processo substancialmente positivo e nao eliminavel,a aliena<;ao constituia nao uma situa<;ao de direito, masde fato: e 0 fato, que era historico, configurava-secomo algo superavel atraves de- uma solu<;ao historica,ou seja, 0 comunismo.

Em outros termos: 0 defeito de Hegel, para Marx,era ter reduzido 0 problema todo da aliena<;ao a urndesenvolvimento do Espfrito: a consciencia aliena-seno objeto e somente ao reconhecer-se nele encontra 0caminho da efetividade; mas nesse reconhecimento doobjeto,constitui-se como consciencia dele, e nessa to-mada de consciencia elimina a propria condic;ao de

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alienac;ao no objeto, negando-o. Polemizando com He-gel, escreve Marx: "a objetividade como tal representauma condicao de alie~ao d9 homem que nao cor-responde ao ser humane, a autoconsciencia. Portantoa reintegracao da essencia do hOn;lem, estranhada, ob-jetivada, gerada na condic;ao de alienaC;ao, significa naosomente eliminar a alienac;ao como tambem a objetivi-dade; em outras palavras, 0 homem representa umser espiritualista, nao objetivado ... 2. A reintegrac;aodo ser alienado e objetivado, au a eliminacao da ob-jetividade na condic;ao de alienac;ao... possui tam-bem, ou talvez sobretudo, para Hegel, o· significadode eliminar a objetividade, pois 0 que esbarra na ali-enac;ao nao e 0 caniter determinado do objeto, maso caniter objetivo que ele tem para a consciencia".Portanto, a consciencia, no seu constituir-se em auto-consciencia, nao somente teria a lucidez de eliminara condic;ao de alienac;ao ao objeto, mas, em turiosodesejo de absoluto, ate mataria 0 objeto e resolveriao problema refugiando-se em si propria. EntendendoHegel nesses termos, obviamente Marx teria que rea-gir: 0 objeto criado pela atividade humana, a realidadenaturill, a realidade da tecnica e das relac;6es sociais,existe; 0 merito de Hegel foi definir 0 alcance e afunC;aodo trabalho humano, e portanto 0 objeto cria-do pelo trabalho nao e renegado por nos, na medidaem que nos tornamos autoconscientes e conscios daliberdade que devemos adquirir em relac;ao a ele. As-sim, 0 trabalho nao deve ser encarado como uma ati-vidade do espirito (de modo que a oposic;ao entre aconsciencia e 0 objeto desse conhecimento poderia re-solver-:;;e em simples jogo ideal de negac;6es e afirma-C;Oes),e sim como urn produto do homem que exte-rioriza suas forc;as e que a essa altura deve acertar con-cretamente contas com aquilo que ele proprio eriou.Se entao 0 homem deve "retomar e.m si sua propriaessencia alienada", nao podeni suprimir (dentro deuma dialetica espiritual) 0 objeto, mas devera agir,na pnitica, de forma a suprimir a alienac;ao, isto e,a mudar as condic;6es dentro das quais se verificou,

(2) M4nuscritos economicos e filosOficos de 1844, Critica da diaUticahegeliana. Desse mesmo texto foram tiradas tambem as outras cita!iOesde Marx.

entre ele e 0 objeto por ele proprio criado, uma do-lorosa e escandalosa cisao.

Essa cisao e de natureza economica e social: aexistencia da propriedade privada faz com que 0 traba-Iho do homem se concretize num objeto independentede seu produtor,de maneira que 0 produtor se vai en-fraquecendo a medida que produz novos objetos. Edesnecessario repetir aqui como se configura essa situa-c;ao: 0 openirio depende das coisas que cria, cai sobo dominio do dinheiro em que elas se transformam,o trabalhador, quanta mais produz, mais passa a seruma ,mercadoria como as coisas que produziu: "aquiloque e produto de seu trabalho, nao e mais ele; e en-tao, quanta maior for esse produto, tanto menor seraele proprio".

Soluc;ao: um regime de produc;ao coletiva no qualo homem, trabalhando conscientemente nao mais paraos outros mas para si e para os seus semelhantes, sinta~omo obra propria aquilo que faz e se tome capaz demtegrar-se nela.

Mas por que Hegel confundira tao facilmente obje-tivac;ao e alienac;ao, como the censura Marx?

Hoje, esc!arecidos pelo desenvolvimento historicohavido, invadidos pela realidade industrial, que aostempos de Marx se encontrava em nivel bem diferente,tendo aprofundado as reflex6es sobre a propria noc;aode alienac;ao, eis-nos propensos a uma revisao de todoo problema.

Poder-se-ia talvez afirmar agora que Hegel naohavia feito distinc;ao entre as duas formas de alienac;ao,pois, de fato, tao logo 0 homem se objetiva no mundodas obras que criou, da natureza que rpodificou, ime-diatamente se cria uma especie de tensao nao elimi-navel, cujos polos sao, de um lado, 0 domlnio doobjeto e sobre 0 objeto, e do outro a perda total noobjeto, a rendiC;ao a ele, dentro de um equilibrio quepode ser somente dialetico, isto e, feito de uma lutacontinua, de negac;ao daquilo que se afirma e de afir-mac;ao daquilo que se nega. Delineiam-se assim asanalises da relaC;ao de alienac;ao, considerada comoconstitutiva de qualquer relaC;ao nossa com os outrose com as coisas, no amor, na convivencia social, na

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estrutura industrial ". E 0 problema da aliena~ao tor-nar-se-ia, se quisessemos aceitar uma linguagem demolde hegeliano (pelo menos a titulo de metafora), "0problema da autoconsciencia humana que, .incapaz depensar-se como 'cogito' separado, somente se encontrano mundo que constr6i, nos outros em que reconhece,e que as vezes desconhece. Mas esse modo de reen-contrar-se nos outros, essa objetiva~ao, constitui sem-pre, em maior ou menor medida, uma aliena~ao, umaperda de si e ao mesmo tempo um reencontrar-se" ·l.

Ora, nao ha quem nao perceba como neste caso ali~ao hegeliana e interpret ada em sentido bem maisconcreto do que aquele em que se apresentava paraMarx; interpretada agora por uma cultura que se tor-nou capaz de reler Hegel atraves de Marx.

A esta'altura, porem, seria urn engano, relido He-gel atraves de Marx, apearmos Marx num regressoa Hegel. Seria engano dizer: ja que a aliena~ao seapresenta como uma situa<;ao permanente, constitutivade minhas rela<;6es com os objetos e com a natureza,e imitil planejar sua elimina<;ao como e indiferente acei-tar-lhe ou nao 0 condicionamento. Isto porque a alie-na<;ao aparece como uma "situa<;ao existencial" (locu-<;aoque sabemos ser ambfgua, por carregar consigo he-ran<;as segundo as quais, se uma situa<;ao pertence a es-trutura da existencia, certo existencialismo negativo nosensina que e inutil procurar supera-la, pois cada ten-tativa nossa de elimina-Ia nos reenviaria a ela).

Pelo contrario, a argumenta<;ao deve ser feita emoutro sentido. 0 tipo de aliena<;ao de que fala Marxe, de urn lado, aquele de que se ocupa a economiapolitica, quer dizer~ aquele que e conseqtiencia da uti-liza<;ao que uma sociedade de propriedade privada fazdo objeto produzido peIo operario (atraves do qualo operario produz bens para outrem, e produzindo be-leza enfeia-se e produzindo maquinas, maquiniza-se);e do outro lade, e a aliena<;ao existente na pr6pria

(3) Desse tipo e 0 estudo de Andre Gorz, "Per una teoria deliaalienazione", La morale delia storia. MiHio, II Saggiatore, 1960.

(4) J. Hyppolyte, Etudes sur Marx et Hegel. Paris, Riviere, 1955.Como no estudo de Gorz, esse e urn tipico exemplo de ampliac;iio da areado conceito de "alienac;iio" (realizada grac;as a uma releitura hegelia-na), pelo qual a possibilidade de alienac;iio permanece como risco per-manente em qualquer tipo de sociedade, mesmo depois .de terem sidomodificadas algumas condic;oes objetivas que Marx havia identificadocomo causas de alienac;iio.

rela<;ao produtiva, que precede a utiliza<;ao do produto,que 0 operario sofre ao nao reconhecer nesse trabalhourn fim, mas urn simples meio a que e obrigado parasobreviver, agindo nde mortificado e sacrificado semnele reconhecer-se (pois nao somente 0 produto, maso proprio trabalho produtivo nao the pertence: e deoutros).

Sendo esses dois tipos de aliena<;ao conseqtienciada existencia de uma determinada sociedade, e licitosupar, na linha da pesquisa marxista, que uma modi-fica<;ao das rela<;6es sociais possa eliminar tais especiesde aliena<;ao (e que sua elimina~ao constitua a fina-lidade de uma concep<;ao politica revolucionaria riga-rosa).

Ora, se uma modifica<;ao das rela~6es sociais con-duz a uma liberta<;ao do homem desta especie de su-jei<;ao (devolvendo-lhe nao somente 0 objeto que pro-duz, mas 0 pr6prio trabalho produtivo, realizado parasi e para a coletividade portanto sentido como coisae fim proprios), subsiste - e justamente nesse aspectoe que a referencia a Hegel acresce algo ao nosso co-nhecimento, sem por isso eliminar conhecimentos sub-seqtientes - a contInua tensao peculiar a uma aliena-~ao no objeto, pelo fato de que eu 0 produzi e eleamea<;a constantemente agir-me. Esta especie de ali-ena<;ao.e que poderia ser indicada - se 0 termo naofosse ambiguo - como uma estrutura da existencia,ou, querendo, como 0 problema que se coloca ao su-jeito tao logo cria um objeto e se volta para de coma inten<;ao de usa-Io ou simplesmente de considenl-Io.:E justamente dessa especie de aliena<;ao - conseqiien-cia de todo ato de objetiva<;ao - que desejamos trataraqui, convencidos que estamos 'de que esse problemase diferencia em termos proprios e constitui 0 proble-ma da rela<;ao de todo ser humano com 0 mundo dascoisas que 0 cerca; apesar de estarmos autorizados acrer que, numa sociedade onde a aliena~ao tradicionaltenha side eliminada, esse problema podera ser en-frentado com maior liberdade e consciencia, mais isentode equivocos,podendo constituir a finalidade unica deurn empenho etico, nem por isso menos dramatico ecomprometedor 5.

(5) Marx parece-nos vislumbrar a possibilidade deste permanecer deuma dia16tica, urna vez eliminada a a1iena~ao Heconomica": para se

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Entretanto, assim entendida, a alienac;ao torna-sealgo que pode ser resolvido, atraves de uma tomadade consciencia e de uma ac;ao, mas nunca para sempre.Se uma relac;ao alienante e tambem a de duas pessoasque se amam, reduzindo-se cada uma delas a repre-sentac;ao que 0 Outro the der, sera impossivel preyeruma civilizac;ao em que a coletivizac;ao dos meios deproduc;ao elimine completamente da dialetica da vidae das relac;oes humanas 0 perigo da alienac;ao.

Claro que nesse ponto a categoria da a~ienac;aonao se limita mais a definir uma forma de relac;ao entreindividuos, baseada em determinada estrutura da so-ciedade, mas sim toda uma serie de relac;6es estabe-lecidas entre homem e homem, homem e objetos, ho-mem e instituiC;oes, homem e convenc;oes sociais, ho-mem e universo mitico, homem e linguagem. Emconclusao, ela servira para explicar nao somente umaforma de relac;ao objetiva com uma situac;ao exterior,que pade em seguida influir a tal ponto em nosso com-portamento que se tornara urn fenomeno psi,cologico,mas devera tambem ser encarada como urn forma decomportamento psicologico, freqiientemente fisiologico,que influencia nossa personalidade a ponto de trans-formar-se mais tarde em relac;ao objetiva externa, emrelac;ao social. A alienac;ao devera portanto ser enca-rada como urn fenomeno que por urn lado, e emdeterminadas circunstancias, vai da estrutura do grupohumano a que pertencemos ate 0 mais intimo e menosverificavel de nossos comportamentos psiquicos, e emoutras circunstancias vai do mais intimo e menos verifi-cavel de nossos comportamentos psiquicos ate a es-trutura do grupo humano a que pertencemos. Entaopor este motivo, nOs, pelo proprio fato de viver, tra-chegar ao socialismo como autoconsciencia positiva do homem e umavida real como realidade positiva. 0 comunismo necessitou interpor nestafase a aboli~ao da religiiio e da propriedade privada; mas juslamentepor constitulr uma nega~io da nega~ao traduziu-se em afirma~ao, pas-sando portanto a ser "0 momenta real, e necessario para 0 desenvol-vimento hist6rico subseqUente, da emancipa~ao e da reconquista do ho-memo 0 comunismo e a emutura necessaria e 0 principio propulsor dofuturo pr6ximo; mas, como tal, 0 comunismo nao e 0 alvo do de·senvolvimento hist6rico, aestrutura da sociedade humana". (Manuscri-tos econlimicos e filos6ficos. Propriedade privada e comunismo.) Parece--nos que estas paginas podem ser Iidas justamente na chave sugeridaacima:uma a~ao revolucionaria que, modificando as estruturas socials,elimine a aliena~ao econ6mica, e possrvel e a esta altura ter-se-ao co-locado as bases para um trabalho de Iiberta~ao que devera desenvolver--se tambem contra as demais formas continuas de aliena~ao ao objeto.

balhando, produzindo coisas e entrando em relac;aocomoutros, estamos na alienac;ao.

Irremediavelmente? Nao, simplesmente sem a pos-sibilidade de suprimirmos este polo negativo: lanc;adosao centro de uma tensao a resolver. Por isso, toda vezque procuramos descrever uma situac;ao alienante, nomomenta mesmo em que acreditamos te-Ia identifica-do, descobrimos que ignoramos a forma de sair dela,e cada soluc;ao nada mais consegue senao voltar apropor 0 problema, embora em nivel diferente. Essasituac;ao ~ que num momenta de pes.simismo pode-riamos definir como urn paradoxa irremediavel, incli-nando-nos assim a reconhecer urn certo "absurdo" fun-damental da vida - e na realidade simplesmente di(Qolhica: isto e, nao pode ser resolvida pela simples su-pressao de urn de seus extremos. E 0 absurdo nadamais e que a situac;ao dialetica vista por urn maso-quista 6.

Nos produzimos a maquina; a maquina nos opri-me com uma realidade inumana e pode tornar desagra-davel a relac;ao que temos com ela e a relac;ao como mundo atraves dela. 0 industrial design parece re~solver 0 problema: une a beleza a utilidade e nos de-volve uma maquina humanizada, na medida do homem.Urn liqiiidificador, uma faca, uma maquina de escre-

(6) Em suma, reapresentar 0 problema com boa vontade, para ten-tar esclarece-Io: esses os termos a que tentmi reduzi-Io GianniScalia no nY 4 de Menab6. em "DaUa natura aUa industria", ao per-guntar: "sera que nos damos conta de que uma interpreta~ao restritiva eanacr6nica do marxismo, com pressupostos de economicismo, de desva-loriza~ao determinista ou de supervaloriza~o 'humanista' das superes-Iruturas, de persistente pratica de uma historiografia dos 'fatores' (deascendencia ao mesmo tempo positivista e idealista), de delimita~ao ina-ceitiivel de uma teoria da aliena~ao em termos de aliena~io econ6micaetc., tem feito perder de vista 0 estender-se, 0 complicar-se, 0 'totalizar--se' da n~lio de industria como conjunto constitucionalmente estrutural eideol6gico, economico e existencial?" (pag. 96). Parece-me entrever, nodesenvolvimento do racioclnio de Scalia, uma convi~lio deste lIenero:que. para alem das contradi~Oes entre uma sociedade capitalista e umasociedade coletivista, apresenta-se hoje, emqualquer caso, a realidadede uma sociedade industrial, que coloca problemas novos (no planoda aliena~lio); seja qual for a estrutura econ6mica dessa sociedade, ela- tecnicamente - e industrial. Nlio devemos esconder de n6s mesmoso equlvoco a quI' poderia levar uma distin~lio dessa natureza. Soci610goscomo Raymond Aron a prop6em justamente para esvaziar de significado,na medida do posslvel, a oposi~lio entre capitalismo e coIetivismo; mase igualmente certo que a n~io de sociedade industrial e plenamente va-lida e deve ser levada em considera~ao mesmo .que se queira conservarCOmo atual e vigorante a distin~io classica entre os dois tipos de eco-nomia. Por isso mesmo, os exemplos de a1iena~iio que' examinarerncsnas paginas que seguem sao propositadamente relacionados com fen6-menos que ocorrem numa socledade industrial, e que terao Jugllf emqualquer tipo de sociedade industrial. .

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ver que exprimem suas possibilida~es de usa .atravesde uma serie de relagoes agradaVelS,que convldam amao a toca-Ios acaricia-Ios, usa-Ios: eis uma solugao.o hornem inteilfa-se harmoniosamente em ~ua fungaoe no instrumento que a possibilita. Mas, dIante dessasolugao otimista, levanta-se a consciencia ~reveni~a domoralista e do critico de costumes: a reahdade llldus-trial disfarga a opressao que exerce sobre nos e nosconvida a esquecer, camuflando nossas rendigoes a ma-quina que age sobre nos, fazendo-nos ~ar~ce~ agra-davel uma relagaoque na verdade nos dlmlllul e nosescraviza. Procuremos portanto uma solu~ao. Paralembrar aos meus semelhantes que manipulando a ma-quina de escrever realizam urn trabalho que nao lhe~pertencera, e que portanto os tornara escrav~s~ terelentao que construir maquinas incomodas e desaJeltadas,repulsivas, capazes de causar em quem a.s usa urn so-frimento salutar? A ideiae quase doentIa, e 0 sonhode urn louco, nao ha duvida.

Imaginemos que esses objetos sejam ?sa~os porpessoas que ja nao trabalham para uma po~encla estra-nha, mas para si mesmos e para 0 provelto comum.E razoavel nesse caso que os objetos expressem umaintegragao harmoniosa entre forma e fungao? Tambemnao. Nessa altura, essas pessoas seriam fatalmente le-vadas a trabalhar hipnoticamente, nao tanto visandoao lucro coletivo, quanta fascinadas pela. sedugao doobjeto, por aquele encanto que as ~on."ld.aa esque-cer-se ao exercerem a fun~ao, no proprIo lllstrumentoem q~e a fungao se integra tao facihnente. 0 au~o-movel ultimo tipo constitui hojeuma in.J.agemm~ticacapaz de desviar todas as nossas energIas moralS efazer com que nos percamos na satisfagao de umaposse que e -urn Ersatz; programemos porem uma so-ciedade coletivista e planejada, na qual se trabalhe paradotar cada urn dos cidadaos de urn carro ultimo tipo,e a solugao final sera a mesma, 0 conse~timento auma contemplagao-uso de uma forma que, llltegrandonossa experiencia de utilizagao, desvia e apazigua. ~o-das as nossas energias, de.saconselhando-nos amblclo-nar metas maisavangadas.

Note-se bem: isso tudo e aliena~ao, mas aliena~aoineliminavel. Sem duvida, 0 sonho de uma sociedademais humana e 0 sonho de uma sociedade na qual

todos trabalhem de comum acordo para que haja maismedicamentos, mais livros e mais carros ultimo tipo;mas que isso seja sentido como sempre e irremediavel-mente alienante em qualquer sociedade, comprovam-noas experiencias paralelas dos beatniks da west coaste dos poetas que protestam em termos individualistase crepusculares na pra~a Maiakovski.

Ora, muito embora 0 intelectual se sinta instintiva-mente sempre do lado de quem protesta sem restri-goes e sem compromissos, a suspeita mais razoavel eque os beatniks estejam errados, e talvez tambem osEvtuschenko - errados do ponto de vista juridico,mesmo se exercendo, historicamente, uma tipica fungaodialetica.

Com efeito, 0 protesto de muitos dentre eles reduza salvagao a uma esp6cie de contemplagao do propriovacuo, a qual, tambem entre nos, alguns ja nos con-vidaram, porque 0 proprio ato de buscar uma solugaoconstituiria uma manifestagao de cumplicidade com asitua~ao da qual jamais poderemos sair agindo. 0 que,pelo contrano, pode salvar-nos e uma insergao pra-tica e ativa na situagao: 0 homem trabalha, produzurn mundo de coisas, aliena-se fatalmente nelas; liber-ta-se da alieriagao aceitando as coisas, empenhando-senelas, negando-as no sentido da transformagao e naoda anulagao, consciente de que a cada transformagaovoltara a defrontar-se, em outros termos, com a mes-ma situagao dialetica a ser resolvida, com 0 mesmorisco de rendigao a uma nova e concreta realidade trans-formada. E possivel conceber uma perspectiva maishumana e positiva do que essa?

Parafraseando Hegel, 0 homem nao pode perma-necer fechado em si mesmo, no templo de sua pro-pria interioridade: ele deve exteriorizar-se_na .obra, e,ao faze-Io, aliena-se a ela. Mas, se 0 nao flZesse, eficasse a cultivar a· propria pureza e absoluta indepen-dencia espiritual, nao conseguiria salvar-se, anular-se-ia.Portanto, nao se vence a situa~ao alienante ao se re-cusar 0 compromisso na situagao objetiva configuradapela nossa obra, pois essa situagao e a unica condigaode nossa humanidade. Ha uma imagem da conscien-cia que se recusa a admitir isso: e a da Bela Alma(Schone See1e). Mas 0 que acontece a Bela Alma?

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"Levada a essa pureza, a consciencia e sua imagemmais pobre. .. Falta-Ihe a for~a da aliena9ao, a for~ade fazer-se coisa e de suportar a existencia. A cons-ciencia vive na angustia de manchar, com 0 agir ecom 0 existir, a gloria de seu interior; e para mantera pureza de seu cora~ao foge do contato com a efeti-vidade e obstina-se na pertinaz impotencia de renun-ciar ao proprio Eu, apurado ate a ultima abstra~ao, ede adquirir substancia, ou seja, mudar seu pensamentoem ser e confiar-se a diferen~a absoluta. 0 objetovazio que ela produz para si preenche-a com a cons-ciencia· de sua vacuidade. .. na lucida pureza de seusmomentos, uma infeliz bela alma, como costuma serchamada, queima, consumindo-se em si propria, e sedesvanece, inutil, no ar. .. A bela alma desprovidade efetividade, na contradi~ao da pureza de seu Eucom a necessidade que esse tern de alienar-se em Sere de transformar-se em efetividade, na instantaneidadedesta oposi~ao fixa. .. a bela alma, entao, como cons-ciencia desta contradi~iio em sua instantaneidade naocontrolada, e transformada ate a loucura e se consomeem tisicas nostalgias" 7.

2 . Observamos que a alternativa ,diaIetica para aBela Alma e justamente a perda total no objeto, e aalegria de perder-se nele. Existe alguma possibilidadede salva~ao entre essas duas formas de autodestrui~ao?

Se procurarmos, hoje, distinguir uma posi9ao cul-tural que torne a propor 0 impasse da bela alma, deve-riamos apontar a critica da sociedade <ias massas quenos prop6e Elemire Zolla: a critica, bem entendido,comO ele a faz, levada sem indulgencia as ultimas con-sequencias, ate negar, com a situa~ao, a propria buscade remedios - busca que por si so ja pareceria umcompromisso mistificador. Esse tipo de critica apre-senta-se verdadeiramente como recusa total da situa~aoobjetiva' (do conjunto civiliza~ao moderna - reali-dade industrial - cultura de massa - cultura de eliteque exprime a situa~ao do homem na sociedade indus-trial) e urn convite a subtrairmo-nos totalmente a e1a,pois oao permite qualquer forma de a~ao consciente

(7) G. W. Hegel, Feno~riologia dello spirito, VI, C, (Lo spiritocoscenzoso 0 coscen~ositiJ;l'anima bella, il male e il suo perdono), tfad.illiliana De Negri, La Nuova Italia, 2. ed., Firenze, 1960, pp. 182-93.

mas apenas 0 retraimento, na contempla~ao da tabularasa feita pelo critico, dilatando universalmente suarejei9ao.

Ha uma pagina em que Zolla diz que "0 pensa-mento nao deve fornecer receitas, deve entender comoestao as coisas" e "entender nao e aceitar" (nem, eaqui ele esta com a razao, apontar loge, e concreta-mente 0 meio para sair da situa9ao analisada): masquanta a natureza desse "entender" Zolla esta em equi-voco constante. Seu "entender" parece-se justamentecom 0 saber nulificante da Bela Alma, que para saber--se a si e nao confundir-se com 0 objeto, destroi esteultimo. Zolla julga ser necessario "entender" 0 objetopara nao comprometer-se com Ele, enquanto a verdadee que, para entender 0 objeto, e preciso antes cou:-prometer-se. Entao 0 objeto sera entendido nao mmscomo algo a ser absolutamente negado, mas como algoque ainda traz vestigios do fim humano para 0 qualnos 0 produzimos - e uma vez entendido nesses ter-mos, juntamente com os termos negativos t.ambem,Pre-sentes na situa~ao, entao poderemos sentlr-nos hvresem rela~ao a ele. Pelo menos a reflexao nos tera pro-porcionado as premissas de uma opera~ao livre e liber~tadora. Mas e absolutamente necessario que, de inkio,o objeto nao seja sentido como inimigo e estranho,porque 0 objeto somos nos, refletidos numa obra nossa,que leva a nossa marca, e conhece-lo perfeitamen!esignifiea conhecer 0 homem que somos: qual a razaopor que, desta opera~ao de compreensao, devem estarausentes, custeo que custar, a charitas e a esperaYlfa?

Vamos dar urn exemplo: numa das primeiras pagi-nas do romance Cecilia, ZolIa descreve a rela~ao fisiea,quase erotica, que a protagonista mantem com 0 propr~oautomovel,. sofrendo cada vibta~ao dele em seus pro-prios musculos, conhecendo-o como se conhece urnamante, participando com seu proprio corpo de suaelasticidade e do seu dinamismo. A inten~ao do autor- e a impressao que 0 leitor tira dessa pagina -e fomecer a imagem de uma situa~ao de total aliena9ao(alias Cecilia dirige descal~a, de maneira que seu casoindividual liga-se, no nivel sociologico, aos casos-limitedos pontifiees da juventudeperdida, tomando-se per-feitamente tipico): arrastados pelo arrazoado persuasivo

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de Zolla, somos levados justamente a condenar emCecilia a criatura humana possuida pelo objeto - ecomo conseqiiencia 0 objeto nos parece malefico (al-gumas paginas mais adiante, os automoveis sao definidos"baratas inchadas", "insetos desprovidos ate mesmo doffulebre encanto da coura~a hirta e rigida, apenas tris-tissimos e ridiculos"). Ora, Cecilia e, realmente, aamostra de uma humanidade alienada, mas em quemedida e alienante a rela~ao que Cecilia mantem como carro? .

. N~ re~lidade, uma rela<;ao desse genero e estabe-leclda mevltavelmente, ainda que em graus diferentes,por qualquer um de nos ao guiar um carro. Paradi:igir bem e .importante justamente que 0 pe naoseJa apenas 0 mstrumento agente com que comanda-mos 0 mecanismo, mas tambem 0 instrumen,to sen-sivel que nos possibilita umprolongamento no meca-nismo, sentindo-o como parte de nossocorpo: so-mente assim percebemos quando chegou a hora detrocar a marcha, de diminuir a velocidade, de daralento ao motor, sem necessidade da abstrata media-<;aodo velocimetro. Somente assim, prolongando nos-so corpo na maquina, dilatando, de certa forma 0raio de nossa sensibilidade, podemos 'usar a maqdinahumanamente, humanizar a maquina consentindo nanossa maquiniza<;ao.

Zolla observaria que esta e justamente a conclusaoa que pretendia chegar: ser uma forma de aliena<;aoja tao difundida que ninguem consegue escapar-Ihe,nem mesmo urn intelectual impregnado de cultura ede au'foconhecimento, e que portanto a situa<;ao naoe urn. epifenomeno que ocorre em algumas naturezast~ansvIadas, mas 0 depauperamento geral e irrecupe-ravel de nossa humanidade numa civiliza<;ao moder-na. Assim pensando, ele esquece que uma rela<;aodess~ g~nero (pr?longamento de nos no objeto, humamza<;~? do obJeto gra<;as a nossa objetiva<;ao) setern venflcado desde 0 alvorecer da historia, quandou,~ de nosso~ antepassados inventou a pedra amigda-100de e a lapldou de forma que com suas facetas elaaderisse a palma da mao, e the comunieasse - du-rante 0 uso - suas vibra<;6es, prolongando a sensi-bilidade da mao: tornando-se mao na medida em quea mao se tornava amigdala.

Ampliar a area da sua propria corporeidade (masassim fazendo, modificar-Ihe as dimens6es originais enaturais) tem sido, desde 0 alvorecer dos tempos, acondi<;ao do homo faber e portanto do Homem. Con-siderar tal situa<;ao como uma degrada~ao da nature-za humana subentende uma metafisica muito conheci-da, ou seja, que existe de urn lado a natureza e deoutro, 0 homem; e significa nao aceitar a ideia deque a uatureza vive enquanto trabalhada pelo homem,definida pelo homem, prolongada e modificada pelohomem - e que 0 homem existe enquanto maneiraespecial de a natureza emergir, forma de emergen-cia ativa e modificadora que, tao somente ao agir sobreo ambiente e ao defini-Io, dele se diferencia e adquireo direito de dizer "eu".

Entre Cecilia e 0 inventor da amigdala ha somenteuma diferen<;a de complexidade do ato, pois a estru-tura do comportamento de ambos e analoga. Ceciliacorresponde ao homem da idade da pedra que, empu-nhada a amigdala, seja tornado pelo frenesi do uso,e bata 0 instrumento sobre as nozes que colheu, sabrea terra onde esta ajoelhado, com urn prazer selvagem,entregando-se inteiramente a a<;ao de bater e esque-cendo 0 motivo pelo qual tomou 0 objeto na mao(assim como em algumas manifesta<;6es orgiacas naoe mais 0 musico que toea 0 tambor, mas sim 0 tam-bor que toea 0 musico).

Existe portanto urn limite ante quem, ate 0 qualdeixar~se possuir pelo automovel e indice de sanida-de, e 0 unico meio de realmente possuir 0 carro:nao perceber que esse limite existe ee possivel signi-fica nao compreender 0 objeto, e portanto destrui-Io.E 0 que faz a Bela Alma, mas nessa nega~ao dissolve--se. Alem, esta 0 limite post quem, onde tern inicio azona do morbido. Ha uma maneira de compreendero objeto, a experiencia que temos nele, 0 usa que fa-zemos dele, que em seu puro otimismo se arrisca anos fazer esquecer a presen<;a do limite, 0 constanteperigo da aliena<;ao. Caso devessemos indicar (toman-do como exemplo uma de suas manifesta~6es mais res-peitaveis) 0 polo oposto ao da rejei<;aopela bela alma,teriamos que eitar 0 nome de Dewey.

A filosofia de Dewey e uma filosofia de integra~aoentre 0 homem e a natureza, que coloca como alvo ma-

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ximo da vida a realiza<;ao de uma expenencia, umasitua<;ao em que 0 individuo, a a<;ao que exerce, 0

ambiente em que a exerce e 0 instrumento eventualatraves do qual a efetua, integram-se a tal ponto quetransmitem, .se a integra<;aofor sentida em toda a suaplenitude, uma sensa<;aode harmonia e de completa-mento. Semelhante forma de integrac;:aopossui todasas caracteristicas de situa<;aopositiva (e de fato podeser tomada como 0 tipico modelo de fruic;:aoestetica),mas pode tambem definir uma condi<;aode alienac;:aototal, aceita, e aceita ate com prazer, justamente porsuas caracteristica.s negativas. "Toda experiencia e 0

resultado da interac;:aoentre urn ser vivo e alguns as-pectos do mundo em que vive. Urn homem faz algu-ma coisa: digamos que levanta uma pedra. Em con-sequencia, ele se sujeita a algo, sente alguma coisa:o peso da pedra, 0 esforc;:odespendido, a e.strutura dasuperficie erguida. As propriedades assim experimen-tadas determinam uma ac;:aoulterior. A pedra e pesadademais ou angulosa demais, nao e bastante solida; ouentao as propriedades experimentadas demonstram queela serve para 0 usa ao qual queriamos destimi-Ia. 0processo continua ate manifestar-se uma adapta<;aomutua do individuo e do objeto, e aql.1elaexperienciaparticular chega a uma conclusao. .. A interac;:aoen-tre ambos constitui toda a nova experiencia e a con-clusao que a completa e 0 estabelecer-se de uma pro-funda harmonia" 8.

E facilimo perceber que (pe1o menos nos termosem que esta aqui formulada) a no<;aodeweyana de ex-periencia, valida para definir nossas relac;:6escom ascoisas, e, contudo, dominada por urn otimismo que naonos faz sequer suspeitar que 0 objeto deva ser negado erecusado, torna-se uma no<;aocapaz de definir em ter-mos. de positividade absoluta a tipica relac;:aode alie-nac;:ao,a de Cecilia com 0 automovel. Em outros ter-mos, nao havendo em Dewey a tragica suspeita deque a relac;:aocom 0 objeto possa ser falha justamen-te por dar certa demais, a experiencia, a seu ver, fra-cassa (permanece niio-experiertcia) somente quando en-tre mim e 0 objeto (ambiente, situac;:aoetc.) perma-nece uma polaridade nao resolvida em integrac;ao; ha-

vendo integrac;:ao,ha expenencia, e a experiencia sopode ser positiva. Assim, a relac;:aoentre Cecilia e 0carro seria "boa" pe10 simples fato de que, enquantorelac;:ao,chega a uma integrac;:aoabsoluta e e gozadape1a harmonia que manifesta e na qual se comp6emtodas as polaridades inidais.

Identificamos pois duas posic;6es,ambas extremas,diante da possibilidade, sempre presente e inelimina-vel, de alienac;:aoexistente em todas as nossas rela-c;:6escom as coisas e com os outros: a posic;:aopessi-mista que destroi 0 objeto (rejeitando-o como mau)por medo de comprometer-se, e a posi<;ao otimista~que considera a integrac;:aono objeto como 0 unicoresultado positivo da relac;:ao.

A disponibilidade ·para com 0 mundo, propria dasegunda posi<;ao, e fundamental para que possamosempenhar-nos no mundo e agir nele; 0 arrepio dedesconfianc;:aa cada exito. alcanc;:adoem nossas rela-<;6es com ele, a consciencia de que nossa adapta<;aopode traduzir~se em tragica derrota, sao igualmenteessenciais a saude da relac;:ao.

Zolla tern razao quando diz que nao cabe ao pen-samento propor as soluc;:oos,competindo-Ihe apena~.procurar entender a situac;:ao. Contanto, porem, res-pondemos nos, que a compreensao tenha a riqueza deuma defini<;aodialetica: porque e justamente ao ilumi-nar os polos opostos do problema que ela se torna ca-paz de fornecer urn subsidio de clareza para as decis6essubsequentes.

No caso de minha rela<;aocom 0 automovel, pode-ra ser suficiente que 0 volume de meus projetos ope-rativos seja tal e tao complexo que se sobreponha afascinac;:aoque pode exercer em minha sensibilidadea harmonia biologica da rela<;aode integra<;aono car-ro. Na medida em que "sei" 0 que YOU fazer com 0

carro, a razao pela qual procuro dirigi-Io bem e de-pressa, na medida em que me "interessa" 0 que YOU

fazer, estarei sempre livre para subtrair-me ao encan-tamento do carro, e 0 espa<;ode tempo em que ele"me guia" sera inserido em razoavel proporc;:aodentrD"do equilibrio do meu dia. Pois durante 0 periodo emque 0 automovel, ao qual me abandono integrado, meconduz, a rotina mecanica dos sinais luminosos e doscruzamentos nao me absorvera completamente mas cons-

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tituira uma especie de acompanhamento ritmico -como a respirac;ao e os movimentos refle~cosda pernaque caminha sozinha - ao desenvolvimento de minhasreflex6es e de meus prop6sitos (sem considerar aquique, tambem nesse caso, se introduziria uma situac;aodialetica: porque em certa medida minhaadesao me-canica ao autom6vel sugerira 0 desenvolvimento demeus pensamentos; mas tambem 0 curso de meus pen-samentos influenciara minha atitude para com 0 car-ro, traduzindo-se 0 impulso de uma intuic;ao. em im-pulso muscular, em variac;ao de pressao do pe sobre 0

acelerador, e portanto em variaC;ao do ritmo 'habituale hipn6tico que poderia tornar-se simples instrumentodo carro. Mas acerca da mutua influencia do psiqui-co sabre 0 fisiol6gico Joyce ja disse muita coisa, descre-vendo-nos a movimentac;ao das alternativas fisiopsico-16gicas de Bloom, sentado na privada de sua casa, en-quanta evacua e Ie 0 jornal ... )

E mais: no plano da aC;aopr:itica, uma vez cons-ciente da polaridade, poderei elaborar varios outrossubterfugios "asceticos" para garantir minha liberdade,mesmo que me comprometa com 0 objeto; um deles, eaparentemente 0 mais banal, poderia, ser, em certamedida, maltratar 0 carro, mante-Io sujo e descuidado,nao respeitar por inteiro as exigencias de seu motor,is~o, apenas para evitar que minha relaC;ao com elevenha a se integrar completamente. Isso seria evitara Entfremdung graC;as a Verfremdung, esquivar-se aalienac;ao atraves de uma tecnica de estranhamento,como Brecht, que, para subtrair 0 espectador a eventualhipnose dos acontecimentos representados, exige queas luzes do teatro permanec;am acesas e que 0 publicopossa fumar.

Esclarecidos tais pressupostos, muitas operac;6esmudam de sinal. Assim, os versos de Cendrars que pa-reciam a ZolIa um tragico exemplo de inclinac;ao ma-cabra:

Toutes les femmes que j'ai rencontrees se dressent aux[horizons

Avec les gestes piteux et les regards trites de semaphores sous[Ia pluie

poderao aparecer como aquilo que talvez .sejam: atentativa poetica de retomar, em termos humanos, urn

elemento da paisagem urbana que se estava tornandoestranho para n6s; 0 nao-reduzir 0 sinal luminoso aum simples mecanisme cotidiano que dirige nossospassos, sabendo, pelo contrario, olha-Io ate que assumauma impregnac;ilo simb6lica, e ainda, um aprender afalar do nosso mundo emocional nao 0 exprimindoatraves de imagens ja gastas pelo uso que tem feitodelas a "maneira" poetica, mas revestindo a emoc;aocom uma nova imagem, procurando educar a imagi-nac;ao para novos reflexos.

Em suma: uma tentativa de reconhecer 0 objeto,de compreende-Io, de ver qual 0 espac;o que poderaadquirir em nossa vida de homens, e uma vez com-preendido, uma capacidade de submete-Io a urn usonosso, 0 metaf6rico, em lugar de s6 nos subme-termos a ele. 0 macabro que impressionava ZolIanao esta na lembranc;a do .sinal luminoso, e sim nodesesperado sentimento que Cendrars tern de seus amo-res esvaidos, que parecem nada ter-Ihe deixado a niloser desolac;ao e saudade. Mas estes sao problemasdele. A poesia cumpriu sua operac;ao de reconquistae ofereceu-nos a possibilidade de uma paisagem nova.

Poderiamo.s agora nos perguntar: por que a situa~c;ao do automobilista e sentida como alienante e a doprimitivo que maneja a amigdala, nao? Por que pa-rece inumano 0 usa poetico do semMoro enquantoque nunca pareceu tal 0 usa poetico do escudo deAquiles (do qual ate se chegou a descrever, horror!,a processo "industrial" de produc;ao, com detalhes si-der6.rgicos que deviam ter escandalizado 0 intelectualdos tempos homericos)? Por que, afinal, e considera-da como alienante a relac;ao de simbiose com 0 auto-m6vel, e nao e suspeita de alienac;ao a simbiose docavaleiro co.m seu cavalo, simbiose que tem as mes-mas caracteristicas de integrac;ao complexa, de pro-longamento da corporalidade do homem na do ani-mal?

Evidentemente, porque, numa civilizac;ao tecnol6gi-ca, a supremacia e a complexidade do objeto - as suascapacidades de iniciativa autonoma, ate mesmo per~n-te 0 homem operador - ampliaram-se de tal formaque tornam evidente uma condic;ao endemica, que tor-nam perigo so 0 que antes era s6 perturbador; e mes-mo porque os objetos, sempre tomando formas me-

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nos antropomorficas, nos ajudam a percebe-Ios comoestranhos. Mas, evidentemente, ha mais: para 0 pri-mitivo que maneja a amigdala, 0 objeto se colocanuma rela~iio imediata, na qual 0 risco de integra~aoesta entre 0 manejador e 0 manejado. Com um auto-movel estabelece-se uma rela~iio mais complexa: 0 au-tomovel niio me aliena somente emsi mesmo, mas emtodo um conjunto de normas de circula~ao, numainevitavel competi~iio de prestigio (a vontade de pos-suir 0 nOvo modelo, 0 acessorio, 0 maior rendimentoetc.), aliena-me num mercado, aliena-me num mun-do de concorrencia onde devo perder-me para tor-nar-me capaz de adquirir 0 automovel. E evidente,portanto, que, se a a~ienac;:iio6 uma possibilidade r~-corrente da existencia humana em todos os seus lll-

veis, ela adquiriu uma importancia e uma configura-~iio toda especial na moderna sociedade industrial, con-forme havia entrevisto Marx, ao nivel das relac;:6eseconomicas.

De tudo quanta foi dito evidencia-se como igual-mente verdadeiro 0 fato de que esta condic;:ao da so-ciedade moderna constitui de fato a nova condi~iiona qual somos chamados a viver, seja qual for 0 tipode sociedade que conseguirmos forjar com nossa a~iiomodificadora. A alienac;:ao constitui, para 0 homemmoderno, uma condi~iio semelhante a falta de gravi-dade para 0 piloto espacial: uma condic;:iio na qualdeve aprender a mover-se e a identificar as novas pos-sibilidades de autonomia, as dire~6es de liberdade pos-sivel. Por outro lado, viver na aliena~iio nao quer di-zer viver aceitando a alienac;:iio, mas viver aceitandouma serie de rela~6es que, contudo, siio constantemen-te foca1izadas por uma intentio secunda que nos per-mite ve-las em transparencia, denunciando suas possi-bilidades de paralisa~iio; rela~6es sobre as quais agir,desmascarando-as conttnuamente, sem que desmascara--las signifique anula-Ias.

A constatac;:aoa que nao podemos fugir e a de quenao podemos viver - nem seria oportuno faze-Io -sem 0 pedal do acelerador, .e talvez nao fossemos ca-pazes de amar sem pensar nos sinais luminosos. Haquem ache que ainda se pode falar de amor fugindo aalusao aos semaforos: e autor das can~onetas melodi-cas de Claudio Villa. Esse senhor parece esquivar-se

a realidade inumana da maquina: seu univcrso c dcfi-nido pelos conceitos mais que humanos de "corac;:ao","amor" e "miie". Mas hoje 0 moralista prevenidosabe 0 que se esconde por tras desse flatus vocis: urnmundo de valores empedernidos, usados com a func;:iiode mistificar. 0 letrista, aceitando determinadas ex-press6es lingi.iisticas, aliena-se e aliena seu publico emalgo que se reflete nas form as gastas da linguagem9•

3. Com essa ultima ohserva~iio, nosso discurso seafastou do plano das rela~6es diretas, efetivas, comuma situac;:iio, transportando-se ao plano das formasatraves das quais organizamos nosso discurso sobre asitua~iio. Em que termos se prop6e uma problematic ada alienac;:iio,no plano das formas da arte ou da pseu-do-arte?

Nesse plano, 0 discurso - ja que ·decidimos ado-tar a noc;:iiode aliena~ao em seu significado mais amplo- pode ser conduzido ao longo de duas linhas diversas,mas convergentes.

Pode-se, primeiramente, falar de uma alienac;:iioin-terior nos proprios sistemas formais, que mais oportu-namente ate poder-se-ia definir como uma dialetica deinvenc;:iio e maneira, de liberdade e necessidade dasregras formativas. Vamos dar urn exemplo: a invenc;:iioda rima.

Com a invenc;:iioda rima, estabelecem-se modulose convenc;:6esestilisticas, niio por automortificac;:iio,masporque se reconhece que somente a disCiplina estimulaa criac;:iio,e porque se discerne uma forma de or\Yaniza-c;:aodos sons que parece mais agradavel ao ouvido. Apartir do momento em que a convenc;:iioe elaborada, 0

(9) Gostaria de antecipar a obje~lio dos fil6logos; e verdade, Clau-dia Villa escreveu uma can~ao intitulada Trilhos (em italiano: Binario).Mas a banalidade do produto (que contudo tenta novos empregos me-taf6ricos fora do repert6rio costumeiro) indica justamente quaD tacH epetrificar .ate mesmo as novas imagens e a consciencia da nova realida·de traduzida em imagens, tao logo sejam introduzidas num circuito deconsumo. A metatora do trem ja esta gasta ha mais de urn seculo.E afinal e sempre questao de genio, e natural: a Transiberiana deCendrars e algo mais do que 0 trHho da can~oneta, e Montale, ao es-crever 41Adeus, silvas no escuro, gestos, tassel' (em it.: "Addio, fischi1eI buio, cenni, tosse") nos devolve 0 tTem como situacao. poetica in ..contaminada. Quanta a canconeta 0 usa de palavras "gastas", a16m defatal, e intencional: e nao posso deixar de aconselhar ao leitor a ana~lise aguda que da can~ao como expressao de "ma consciencia" nos deram(num trabalho coletivo, que enfrenta 0 problema do ponto de vista musico-16gico, polftico, psicanalftico e hist6rico) Michele L. Straniero, SergioLiberovici, Emilio Jona e Giorgio De Maria (Le canzoni delia catlivacoscienza. Milano, Bompiani, 1964).

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poeta nao e mais prisioneiro de sua pr6pria extroversaoperigosa e de sua emotividade: as regras da rima, separ um lade 0 reprimem, per outro, libertam-no, talcomo uma atadura elastica no tornozelo livra 0 atletado perigo de uma luxa<;ao. Contudo, a partir do mo-mento em que e estabelecida, a conven<;ao nos alienanela: 0 verso seguinte nos e sugerido pela natureza doverso anterior, em conformidade com as leis da rima.Quanto mais a pratiea se vai afirmando, mais me pro-poe exemplo de elevada liberdade criadora, e mais mevai aprisionando; 0 habito da rima gera 0 primario, quecome<;a como repert6rio do rimavel para tornar-se aospoucos repert6rio do rimado. Ao fim de determinadoperiodo hist6rico, a rima revela-se-me cada vez maisalienante. Exemplo tipico de alinea<;ao formal e 0 doauter de letras para a can<;aode consumo, a respeito doqual se faz piada dizendo que, por reflexo condicionado,quando escreve "amor" tem que escrever logo depois"flor", ou, conforme 0 caso, "dor" 10. Nao e somente arima, como sistema fonetico das possiveis concordancias,que 0 aliena; e tamb6m a rima como habito de frui<;ao,e 0 que uma sociedade de consumidores espera da rima,e gosta de encontrar nela. Aliena-o 0 sistema lingtiis-tieo, de um lade, e de outro urn sistema de reflexos con-dicionados transformados em sensibilidade publica, alemde um sistema de rela<;6escomerciais (pois,nao se podevender senao aquilo que satisfaz a sensibilidade publica) .Mas tambem 0 grande poetae condicionado por essesistema: ainda que afirme prop6sitos de independenciaabsoluta em rela<;ao as expectativas do publico, as suaspossibilidades estatlstieas de encontrar uma nova rimapartindo da premiss a "amor" sac extremamente redu-zidas. Como conseqtiencia, ou reduzem-se suas possi-bilidades de fazer rima, ou reduz-se sua tematiea, desdeque e restrito 0 ambito de sUil linguagem. A palavra"amor" no final do verso the e praticamente proibida:o exito artistieo exige uma compenetra<;ao tao impreg-nada de som e de sentido que the basta usar um somque se arrisqu& a consumir-se como nao-som, junto a

(10) A can!<ao de con sumo - "canzonetta" - na Itlilia. a qualo autor faz referencia, pode ser comparada, quanta an nlvel, a produ-!<aoda chamada "Jovem Guarda" de Roberto Carlos e Cia., ficandomuito aquem da qualidade da musica popular brasileira do grupo deChico Buarque de Rolanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Van-dre etc., para a qual nao se encontram analogias na Itlilia. (N. do T.)

uma audiencia de sensibi1idade entorpecida, para quea forma por ele usada perea toda a eficacia comunicativa.Contudo, nesse momento, 0 poeta tem a possibilidade depesquisar uma linguagem incomum, uma rimabilidadeinesperada, e esse usa determinara sua tematica assimcomo a concatena<;ao de suas ideias. Mais uma vez elesera, de certo modo, agido pela situa<;ao, ponSm tornan-do-se consciente de sua aliena<;aoele podera usa-Ia comoum meio para libertar-se. Lembremos certas rimas ines~peradas de Montale: 0 que era aliena<;ao, por meio deuma tensao dialetica levada ao extremo, produziu umelevado exemplo de inven<;ao e; portanto, de liberdadepoetiea. Mas resolvendo a situa<;ao dessa maneira, 0

poeta criou condi<;oes para uma nova situa<;ao alie-nante: hoje os "montaleggianti" 11 nos aparecem taiscomo sao: imitadores de pouca imagina<;ao, justamen-te por serem alienados aum costume que os age semmais permitir-Ihes urn gesto sequer de originalidadee liberdade.

Mas esse exemplo e demasiado simples para seresdarecedor, pois aqui a dialetica de inven<;ao e imi-ta<;ao e colocada somente ao nivel de uma conven<;aoliteraria, que pode tornar-se marginal deixando deatingir todas as estruturas de uma linguagem. Volte-mos· nossa aten<;ao para urn problema mais importan-te p~ra a cultura contemporanea.

o sistema tonal regeu 0 desenvolvimento da musi-ca desde os fins da Idade Media ate nossos dias: en-quanta sistema, e sistema convencionado (ninguemmais acredita que a tonalidade seja urn fato "natural"),tem desempenhado para 0 musico a mesma fun<;ao daconven<;ao operativa "rima". 0 musieo tonal composobedecendo ao sistema e, ao mesmo tempo, comba-tendo-o. No momento em que a sinfonia se encerravatriunfalmente repetindo a tonica, 0 musico deixava queo sistema compusesse por sua conta, nao podia sub-trair-se a conven<;ao em que 0 sistema se baseava: nointerior da conven<;ao, se era urn grande musico, criavanovas formas de voltar a propor 0 sistema.

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Certo dia 0 musico sentiu a necessidade de sair dosistema - por exemplo, Debussy, quando aplica umaescala exatonal. Sai do sistema porque percybe quea gramatica tonal, sem que ele queira, obriga-o a di-zer coisas que nao quer dizer. Schoenberg rompe de-finitivamente com 0 sistema e cria urn novo. Stravins-ky, ate certo ponto, e num determinado momenta desua produ<;ao, aceita-o, mas da unica forma possivel,parodiando-o, pondo-o em duvida no momenta mesmoem que 0 glorifica.

A revolta contra 0 sistema tonal, porem, nao dizrespeito somente a uma dialetica de invengao e ma-neira; nao se sai do sistema s6 pelo fate de que oscostumes se enrijeceram, isto e, desde que esgotada agama das possibilidades de invengao (no sentido pu-ramente formal), nao se recusa 0 sistema pela sim-ples razao de se ter chegado, tambem na musica, aoponto em que a dupla "amor" e "dor" nao somentese tornou expressao necessaria mas ainda s6 pode serpronunciada de modo ironico, a tal ponto ficou este-reotipada e vazia de qualquer capacidade de sugestao.o musico recusa 0 sistema tonal porque, agora, essesistema transporta para 0 plano das relagoesestrutu-rais toda uma maneira de encarar 0 mundo e uma ma-neira de existir no mundo.

Conhecem-se as interpretagoes da musica tonal co-mo um sistema em que, estabelecida a tonalidade ini-cial, a composigao inteira se apresenta como urn sis-tema de dila90es e crises propositalmente ocasionadascom 0 fim unico de se poder restabelecer, gragas areafirmagao final da tonica, uma situagao de harmo-nia e paz, tanto mais apreciada quanta mais protrai-da e articulada foi a crise. E e sabido que, neste ha-bite formativo, reconheceu-se 0 produto tipico de umasociedade baseada no respeito a uma ordem imutaveldas coisas: portanto a pratica da musica tonal con-vergia na reafirmagao de uma convic9ao fundamental,para a qual tendia toda uma educagao, quer no planote6rico quer no plano das relagoes sociais12• Evidente-

(12) Uma defesa do sistema tonal que, contudo, se presta a forne-cer elementos para 0 discurso que vimos conduzindo e a de LeonardMeyer, Emotion and Meaning in Music. Chicago, 1959. Para uma in-terpreta!.'iio hist6rica do significado de tonalidade (no sentido por nosapresentado) veja~se, aD inves, 0 lucido ensaio de Henri Pousseur, "Lanuova sensibilita musicale", en lncontri Musicali, nt? 2; veja-se tambemNiccolo Castiglioni, II Iinguaggio musicale. Milano, Ricordi, 1959.

mente uma relagao de "espelhamento", colocada emtermos tao fechados, entre a estrutura 5>ociale a es-trutura da linguagem musical, pode parecer uma' ge-neraliza9ao fora do verificavel; mas tamb6m e verda-de que, nao por acaso, a musica tonal se afirma naepoca moderna como sendo a musica de uma comu-nidade ocasional, cimentada pelo ritual do concerto,que exercita sua sensibilidade estetica em horas pre-determinadas, com roupas apropriadas, e que paga en-trada para gozar crises e apaziguamento que a fagamsair do templo com 0 espirito catartizado e as tensoesresolvidas.

Quando 0 artista sente a crise do sistema tonal, 0que e que observa - mais ou menos lucidamente -atraves dela? Que as rela90es entre os sons se iden-tificaram durante tanto tempo com determinadas re-lagoes psicol6gicas, com determinadas maneiras de en-carar a realidade, que agora, no espirito do especta-dor, toda vez que se compoe urn determinado conjun-to de relagOessonoras, verifica-se instantaneamente urnretorno ao mundo moral, ideol6gico e social que essesistema de relagoes the vem reafirmando ha muitotempo. Quando 0 musico realiza uma operagao de"vanguarda" - isto e, institui uma nova linguagem,um novo sistema de relagOes - organiza uma formaque, por enquanto, poucos estao dispostos a aceitar co-mo tal, e se esta, por isso, consQgrando a incomunica-bilidade e, portanto, a uma especie de retiro aristocra-tico, Entretanto recusa urn sistema comunicativo quepode transmitir determinadas coisas, que pode fundaruma sociabilidade de audigao somente com a condigaode que 0 sistema de valores no qual se baseia perma-nega inalterado, 0 mesmo de ontem.

o musico nega-se a aceitar 0 sistema tonal nao so-mente porque com ele se sente alienado numa estrutu-ra convencional, como tambem em toda uma moral,uma etica social, uma visao te6rica da maneira expres-sa por aquele sistema. No momenta em que rompecom 0 sistema comunicativo, subtrai-se as condigoesnormais de comunicagao e parece agir em sentido anti--humane; mas somente agindo assim podera evitar pa-ra seu publico a mistificagao e 0 engano. Portanto 0musico, mais ou menos conscientemente, ao recusarum sistema de rela90es sonoras que nao aparece, de

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imediato, ligado a uma situa~ao concreta, esta na rea-lidade recusando uma situa~ao. Pode ate desconheceras implica<;6es de sua escolha puramente musical, maso fate e que tais implica<;6es.existem.

Ora, recusando, juntamente com um sistema musi-cal, um sistema de rela<;6es humanas, 0 que e que re-cusa e 0 que e que institui? 0 sistema musical querecusa e, aparentemente, comunicativo, mas na reali-dade esta esgotado: produz cliches, estimula modelosde rea<;ao estandardizados. A determinado circuito me-lodico nao pode mais corresponder uma rea<;ao emo-tiva espontanea e maravilhada, pois aquele tipo de co-munica<;ao musical ja deixou de pasmar quem querque seja: sabia-se de antemao 0 que iria suceder. Ve-jamos 0 que acontece na Ultima trincheira atual uatonalidade, a can~oneta a San Remo13: 0 ritmo naonos traz surpresas, trata-se das costumeiras tercinas;quando 0 verso terminar em "amor" nao ficaremosmais pasmos ao saber que esse amor alegrou-se comuma flor para depois converter-se em dor (e uma si-tua~ao tragica mas que nao perturba mais, e superco-nhecida, canonica, pertence a ordem preestabelecida,ja nao se presta aten~ao ao verdadeiro significado dafrase: saber que 0 amor se alimentou da flor e se pre-cipitou na dor e urn tipo de comunica<;ao que nos re-confirma a convic<;ao de que vivemos no melhor dosmundos posslveis); por outro lade, melodia e harmo-nia, seguindo os seguros trilhos da gramatica tonal,nao provocarao em nos nenhum choque. Aqui cabe apergunta: este universo de rela<;6es humanas· que 0universo tonal reafirma, este universe tranqtiilo e or-denado que estavamos acostumados a considerar, eainda 0 mesmo no qual vivemos? Nao, aquele emque vivemos e 0 herdeiro deste, e e um Universo emcrise. Esta em crise porque a ordem das palavras naocorresponde mais uma ordem das coisas (articulam--se ainda as palavras segundo a ordem tradicional, en-quanta que a ciencia nos incita a ver as coisas dispos-tas conforme outras ordens, ou ate mesmo segundo adesordem e a descontinuidade); esta em crise porquea defini~ao dos sentimentos nao correspondt: a suaefetiva realidade, seja nas express6es estereotipadas em

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que se esclerosou, seja em suas proprias formula<;6eseticas; porque a linguagem reproduz uma estrutura dosfenomenos que nao e mais aquela com que os feno-menos se apresentam nas descri<;6es operativas quefornecemos delas; porque as regras de convivencia so-cial sac regidas· por normas que nao retratam de modoalgum 0 real desequilfurio de tais rela<;6es.

Entao 0 niundo esta muito longe de ser como de-sejaria reproduzi-Io 0 sistema de linguagem que, jus-tamento, e recusado pelo artista de "vanguarda"; poisacha-se cindido e deslocado, desapossado das coor-denadas da velha ordem, tal como esta despojado dascoordenadas canonicas 0 sistema de linguagem que 0artista adota.

Nesse sentido, 0 artista que protesta quanta as for-mas realizou uma dupla opera<;ao: recusou um siste-ma de formas, sem contudo anula-Ionessa rejei<;ao,mas agiu no interior dele (inclusive acompanhandoalgumas tendencias a desagrega<;ao que ja se vinhammostrando inevitaveis), e portanto, para subtrair-se atal sistema e modifica-Io, teve de aceitar uma aliena-~ao parcial nele, uma concordfmcia com suas tenden-cias internas; por outro lado, adotando uma nova gra-matica feita menos de modulos de ordem que de umprojeto de desordem permanente, aceitou justamenteo mundo em que vive nos termos de crise em que seencontra. Portanto, mais uma vez, ele se comprome-teu com 0 mundo em que vive, ao usar uma lingua-gem que de proprio - artista - cre ter inventadomas que, na realidade, the foi sugerida pela situa<;aona qual se encontra; e contudo esta era a unica es-colha que the restava, pois uma das tendencias nega-tivas da situa<;ao em que se encontra e justamenteignorar que a crise existe e tentar continuamenteredefini-Ia conforme aqueles modulos deordem, decujo desgaste nasceu a crise. Se 0 artista procurassedominar a desordem da situa~ao presente, valendo-sedos modulos comprometidos com a situa<;ao que en-trou em crise, entao ele reglmente seria um mistifica-dor. Com efeito, no momenta em que falasse da si-tua~ao presente, permitiria a suposi<;ao de que, alemdesta, existe uma situa<;ao ideal, pela qual ele podejulgar a situa<;ao real; e entao endossaria a confian<;anum mundo de ordem expresso por uma linguagem

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ordenada. Assim, paradoxalmente, enquanto se acre-dita que a vanguarda artistic a nao esta re1acionadacom a comunidade dos ~emais homens, em cujo seiovive, e com a qual se julga estar relacionada a artetradicional, na realidade acontece, justamente 0 con-trario: entrincheirada no limite extremo da comunica-bilidade, a vanguarda artistic a e a unica a manter re-Ia<;:6esde real significado com 0 mundo em que vivei4•

(14) Vemos entao que 0 problema e muito mais complexo do queda a perceber a generaliza~ao aqui proposta - em linha te6rica _por motivos praticos e para isolar urn veio do discurso. 0 que defini-mos - e nao· e acidental a referencia a Schoenberg, isto e, a urn artis-ta que se encontra na origem de determinada evolu~ao, numa posi~ao--chave, e cujo valor e boa f6 estao fora de duvida - e 0 ato devanguarda C4modelo" por excelencia, a Ur-vanguarda (onde "Ur" indi-ca nao s6 uma ordem cronol6glca, mas tambem e sobretudo, uma ordem16gica). Em outras palavras, nosso discurso seria simples e incontesta-vel se tivesse havido, em determinado momenta do desenvolvimento dacultura, urn unico ato de vanguard a : na realidade, a cultura con tempo-fanea e UIDa "cultura de vanguardas". Como justificar UIDa situa9aodessas? J:i nao ha distin~ao entre tradi~ao recusada e vanguarda queestabelece uma ordem nova; de fato, toda vanguarda nega outra van-guarda, :.uja contemporaneidade a impede ?e constituir-se em tradi~ao,em rela~ao 11 vanguarda que a nega. Dal a suspeita de que urn atopositivo de Ur-vanguarda tenha gerado uma maneira de vanguada,e de que fazer vanguarda seja hoje 0 unico modo de reingressar na tra-di~ao. t! essa situa~ao que fontes diversas suspeitam ser (para sintetizarmosa situa~ao numa f6rmula brutal) uma especie de conversao neocapitalistadas rebeliiies artlsticas: 0 artista se revolta porque 0 mercado assimo exige, e sua rebeliao nao tern mais valor por realizar-se dentro deuma ordem convencional. Suspeita desse genero (com todas as cau-telas criticas do caso) e lan~ada, por exemplo, por dois ensaios sobrea musica contemporanea: a n,senha -musical de Paolo Castaldi, publicadano Almanacco Bompiani 1962, e a participa~ao de Luigi Rognohi noexemplar de La Biennale dedicado a musica eletronica. N a realidade.para essas interroga~iies existe uma res posta duplice (implicita alias,nos dais escritos citados): 0 que se denuncia e, antes de rnai~ nada,a dialetica natural entre inven~ao e maneira, que sempre existiu nahist6ria da arte, quando urn artista "inventa" uma nova possibilidadeformal que implica numa modifica~ao de sensibilidades e de visao domundo, e imediatamente, uma legiao de imitadores emprega e desen-volve essa forma tomando-a como forma vazia, sem colher suas implica-~iies. E justamente por ser este urn fenomeno comum, verificavel commuito mais freqiiencia numa civi1iza~ao como a nossa (onde as possi-bilidades de desgaste e exaustao sap naturalmente mais amplas e acele-radas), eis que urn gesto de inova~ao (vanguarda) queima tao rapida-mente suas possibilidades autenticas que se faz necessario, para queele nao degenere em maneira, recusa.-Io imediatamente atraves de outrainven~ao. Essa segunda diaIetica se mistura com a primeira, entrela-~ando-se assim as inova~iies aparentes, que nada mais sap que varia-c;6es maneirfsticas sobre 0 terna, corn as inovacoes -reais, que negamiustamente a varia~ao sobre 0 tema. Veremos, portanto,. que algumas for-mas .ia negadas sucessivamente por muitas vanguardas conservam uma for~aque falta as formas novas; mas isso se farmos capazes de "reler" essasformas negadas na chave em que foram inventadas, afastando-nos nesse.entido das vanguardas posteriores que as negam por terem, sob outrosaspectos, degenerado em maneira. Dito isto, faz-se necessario outroesclarecimento: tornar-se "vanguarda" e, decerto, 0 modo mais evi-dente para enfrentar uma situa~ao constituida a fim de derruba.-Ia <"desordena-Ia", mas nao e 0 unico modo de combater essa situa~ao.Existe outro, aparenternente "interno" a ordem que se nega, e e 0 doaproveitamento parodistico dessa ordem, de seu emprego ironico (valeaqui a contraposi~ao, ja leita, de Stravinsky a Schoenberg). Em outraspalavras podemos com bater urn lugar-comum expressivo, desgastado ealienante, dissociando as modalidades de comunica~ao em que se baseia;mas podemos tambem exorciza-Io empregando-o ironicamente. Deli-

4. Aqui chegados, poderia parecer clara a situa-gao da arte contempod.nea que realiza, ao nivel das es-truturas formais, uma continua remanipula<;:ao da lin-guagem estabilizada e adquirida, bem como dos mo-dulos de ordem consagrados pela tradigao. Se na pin-tura informal como na poesia, no cinema como noteatro observamos 0 afirmar-se de obras abertas, cujaestrutura e ambigua, submetida a certa indetermina<;:aode resultados, tal acontece porque as formas, destemodo, se adaptam a uma visao do universe flsico edas rela<;:6espsicologicas propos;tas pelas disciplinascientificas contemporaneas, e sentem a impossibilida-de de se falar deste mundo nos mesmos termos for-mais com que era possivel definir 0 Cosmo Ordenadoque ja nao e nosso. Aqui, 0 critico das poeticas con-temporaneas pode suspeitar que, assim procedendo,deslocando sua atengao para problemas de estrutu-ra, a arte contemporanea renuncia a fazer urn discur-so sabre 0 hornern, perdendo-se entao por tds deurn discurso abstrato ao nivel das formas. 0 equivo-co, facil de desmascarar, ja foi mencionado acima:o que poderia parecer-nos urn discurso sabre 0 homem,leveria hoje conformar-se com os rnodulos de ordem

formativa que serviam para falar de um homem deontem. Rompendo esses mOdulos de ordem, a artefala do homern de hoje, atraves da maneira pela qualse estrutura. Mas, ao afirmar-se isto, faz-se a afirma-<;:aode urn principio estetico do qual nao mais nos deve-remos afastar se quisermos prosseguir nessa linha depesquisa: 0 discurso primeiro da arte, ela 0 faz atra-yes do modo de formaT; a primeira afirmagao que aarte faz do mundo e do homem, aquela quepode fazer por direito e a unica de significado real,ela a faz dispondo suas formas de uma maneira deter-neia-se pois, aqui, uma teoria da par6dia e da ironia como opera~aoclandestina que se contrap5e ao fmpeto revolucionario, "de rua", davanguarda propriamente dita. Finalmente, terceira possibilidade peri-gosa mas consideravel - a ado~ao, seja como for, das modalidades deexpressao relacionadas com uma ordem, usando-as, porem, para comu-nicar algo que possa promover atos de consciencia capazes de, urn dia,por essa ordem em crise. Trata-se da possibilidade, condenada pormuitos, de utilizar em sentido crltico os mass media para estabelecer-seurn come~o de tomada de consciencia, aU onde 0 subversor ate de van-guard a se arriscaria a perrnanecer incomunicaveI, e, se repetido, ca-racterizaria uma provoca~i1o aristocratica. Mas, obviamente, 0 problemasupera os Iimites desse discurso e deve portanto constar aqui apenas flguisa de informa~i1o.

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minada, e nao pronunciando, atraves de1as, urn con-junto de juizos a respeito de determinado assunto. Fa-zer urn aparente discurso sobre 0 mundo, narrandourn "assunto" diretamente r~lacionado com nossa vidaconcreta, pode ser a maneira mais evidente e, contudo,imperceptivel, de fuga ao problema que interessa, ouseja: reconduzir certa problematica atual, reduzida aoambito de urn sistema comunicativo ligado a outra situa-«ao historica, para fora dos limites do nosso tempo eassim, na realidade, nada dizer sobre nos. Ha urnexemplo concreto: num livrinho ridfculo publicadoanos atras, tambem na Italia, urn critico ingles cha-mado Sidney Finkelstein propunha-se explicar "de quemodo a musica exprime as irleias": e com uma inge-nuidade que foi compartilhada por alguns de nos, argu-mentava como e por que Brahms foi urn musico "rea-cionario", pois se tinha voltado para 0 "setecentos",enquanto Tchaikowsky foi urn musico "progressista"por ter composto melodramas que debatiam problemaspopulares. Nao vale a pena por em movimento cate-gorias esteticas para discutir uma posi«ao dessas: bastapensar quao pouco modificaram 0 espirito das massasburguesas, freqiientadoras de teatros, os problemas po-pulares levantados por Tchaikowsky dentro de umaagradavel harmonia pacificadora, e que importanciateve 0 regresso de Brahms ao "setecentos", no impul-sionar a musica para novos caminhos. Mas, deixandoBrahms de lado, cada musico e progressista na medidaem que inicia, ao nivel das formas, uma nova maneirade ver 0 mundo; quem, pelo contrario, tal como aque1einfeliz Andre Chenier, constroi versos antigos sobrenovas ideias, fornece esquemas formais hem apropriadospara que a industria do Hi Fi possa comerciar pensamen-tos e formas obsoletas, habilitadas para 0 consumo, coma cumplicidade de Julie London, de luzes baixas e deurn copo de uisque ao alcance da mao. Se, ate certoponto, Schoenberg consegue, em face dos acontecimen-tos historicos, exprimir tooa a indigna«ao de uma epo-ca e de uma cultura em confronto com a barbarie na-zista, em seu Sobrevivente de Vars6via, ele 0 conse-

.gue porque ha muito tempo, sem saber como e porque falar dos problemas dos homens, iniciara, ao niveldas formas, uma revolu«ao das rela«6es e instituini urnnovo modo de ver musicalmente a realidade. Valendo-

-se do sistema tonal, ja comprometido com tooa umaciviliza«ao e tooa uma sensibilidade, Schoenberg nao nosteria dado 0 Sobrevivente de Vars6via, e sim 0 Concer-to de Vars6via, que representa exatamente 0 discurso,emchave tonal, sobre urn "tema" quase identico. Obvia-mente, Addinsel nao era Schoenberg e mesmo dispondode todas as series dodecafOnicas deste mundo, nao te-ria conseguido dar-nos nada de positivo: ha uma ma-neira de principiar que condiciona todo 0 resto do ca-minho, e 0 discurso tonal sobre os bombardeios deVarsovia teria caido fatalmente nos la«os de uma me-losa dramaticidade, de uma dramaticidade de ma-fel

como e de ma-fe a formula de c6rtesia e a pergunta"Senhorita, quer ser minha esposa?", que somente po-de ser dita ironicamente, pois jamais podera expressar,hoje, uma verdadeira paixao amorosa, desde que estairremedHtveImente comprometida com urn cerimoniale com uma concep<yaode reIa«6es afetivas estritamenteligados a sensibilidade romantica burguesa.

Com isso, chegamos mais perto do amago do pro-blema: nao se pade julgar ou descrever uma situa«aoqualquer, em termos de uma linguagem que nao sejaexpressao dessa mesma situa«ao, pois a linguagem re-flete urn conjunto de rela«6es e coloca urn sistema deimplica«6es sucessivas. Nao posso traduzir urn textofiIos6fico frances que, suponhamos, seja de carater po-sitivista, traduzindo a expressao "esprit" por "spirito",pois na situa«ao cultural italiana a palavra "spirito" estaa tal ponto comprometida com a sistematica idealistaque 0 sentido do texto seria inevitavelmente deforma-doI5•

Tudo 0 que dissemos para as palavras isoladas va-le tambem para as estruturas narrativas: come«ar umanarrativa descrevendo 0 meio geografico da a«ao (0lago de Como) e, em seguida, a aparencia exteriore 0 carater dos protagonistas, pressup6e que eu acre-dite numa determinada ordem dos acontecimentos: naobjetividade de urn ambiente natural em que os per-sonagens humanos se movem em paspectiva, na de-termina«ab dos dados de carater e na defini«ao que

(15) Pois "spirito" foi justamente a palavra usada nas tradu~Oesdos fil6sofos idealistas alemlies - mormente Hegel - assim como porB~nedetto Croce em seu trabalho filos6fico original. 0 mesmo nlio seda em nossa lingua, onde a palavra correspondente - espfrito - estaabsolutamente descompromissada em rela~lio a uma ou a outra escolafilos6fica. (N. do T.)

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deles e dada segundo certa psicologia e certa etica, e,por fim, na existencia de relagoes causais precis as queme permitem deduzir da natureza, do meio e do carater,assim como de uma serie de acontecimentos concomi-tantes, de facH individua~ao, a sequencia dos aconte-cimentos sucessivos, que devera ser descrita como umdecurso univoco de fatos. Aqui esta a maneira pelapela qual a aceitagao de determinada estrutura narrati-va pressup6e determinada concepgao da ordem do mun-do, refletida na linguagem que uso, nas modalidadessegundo as quais a coordeno,e nas pr6prias relagoes detempo expressas nela16•

No momenta em que 0 artista percebe que 0 sis-tema comunicativo e estranho a situagao hist6rica deque quer falar, deve compenetrar-se de que e impos-sivel expressar a situa~ao atraves da exemplificac;ao deum assunto hist6rico, e de que somente podera expres-sa-Ia atraves da adogao e invengao de estruturas formaiscapazes deestabelecer-se como modelo dessa situa~ao.

o verdadeiro conteudo da obra torna-se seu modode ver 0 mundo e de julga-Io, traduzido em modo deformar, pois e nesse nivel que devera ser conduzido 0discurso sobre as relagoes entre a arte e 0 mundo.

A arte conhece 0 mundo atraves das pr6prias es-truturas formativas dela (que partanto nao constituemseu momenta formalista, mas sim seu verdadeiro mo-mento de conteudo): a literatura organiza palavras quesignificam aspectos do mundo, mas a obra literaria

(16) Urn exemplo: ja tera provavelmente acontecido ao leitor en-contrar-se numa situa~lio das mais angustiantes, isto e, sozinho numa

.hora de cafard, talvez num lugar desconhecido, num pais estrangeiro,bebendo num bar para matar 0 tempo, numa espera inconsciente e meto-dicamente frustrada de que algo intervenha para quebrar 0 curso dasolidlio. Nlio creio que haja situa~lio menos suportavel, e todavia, quemnela se encontrou, conseguiu suporta-Ia, julgando-a, no· fundo, muito"liteniria". Por que? Porque toda uma literatura nos acostumou aconven~lio de que, quando urn sujeito se acha sozinho bebendo numbar, alguma coisa the acontece: no romance policial tratar-se-a da apari-~lio duma loira platinada, em Hemingway urn encontro menos berrante,urn dialogo, uma revela~ao do "nada". Portanto, certa ordem narrativapreve, quase institucionalmente, que, quando alguem bebe sozinho numbar, alguma coisa deve acontecer. Eis al como urn ato dos menossigni-ficativos, dos mais angustiantes, ato que deveria ser reconhecido comotal para que pudessemos compenetrar.,nos da angustia em que, ao menosnaquele momento, nos encontramos, ordena-se e torna-se aceitavel semrazlio alguma; faz-se significativo gra~as a mistifica\;lio efetuada pela apli-ca~ao de estruturas narrativas que continuam .exigindo a soluCiiode umapremissa, a conclusao ordenada, 0 fim de urn come~o, e nio permitemum come~o sem fim (como, ao contrario, certo tipo de narrativa e certotipo de cinema - lembremos Antonioni - resolveram finalmente fazer,pois e assim que realmente acontece, e portanto e justo que a arte 0evidencie sem nos consolar presenteando-nos com um final, com umregresso a tonica, para cada discurso a que demos inicio).

significa 0 mundo em si atraves da maneira comoessas palavras sac organizadas, ainda que, iomadasisoladamente, signifique coisas sem sentido, ou entaoacontecimentos, relagoes entre acontecimentos que pa-recem nada ter em comum com 0 mundo 17.

5. Aceitas tais premiss as, podemos agora iniciarum discurso sobre a situagao de uma literatura que de-seje corresponder a existencia de uma sociedade indus-trial, que se proponha a exprimir essa realidade, suaspossibilidades e seus bloqueios. 0 poeta que, entrevistacondi<;ao de aliena<;ao sofrida pelo homem numa socie-ciedade tecnol6gica, tenta um discurso para descrever edenunciar essa situa<;ao dentro das formas de uma lin-guagem "comum" ("comunicativa", compreensivel paratodos), pelas quais exp6e seu "assunto" (por exemplo:o mundo operario) peca par generosidade, mas cometede boa fe urn crime de mistificac;ao. Procuremos ana-lisar a ~itua<;aocomunicativa de urn poeta puramenteimaginario, no qual, obviamente, enfatizar-se-ao ate 0paroxismo defeitos e aporias. Esse homem pensa terfixado uma situagao concreta na qual se movem seussemelhantes e provavelmente, em parte, 0 conseguiu;mas ao mesmo tempo pensa pader d~screve-la e julga-laatraves de uma linguagem desligada dessa situagao. Ai,porem, ele ja incorreu num duplo equivoco: na medidaem que essa linguagem the permite apoderar-se da si-tua<;ao, ela pr6pria reflete a situagao, e portanto estaafetada pela mesma crise. Na medida em que essalinguagem permanece alheia a situac;ao, nao pode apo-derar-se dela.

Vejamos entaocomo age 0 especialista em descri-<;ao de situa<;oes, quer dizer, 0 soci610go ou, melhorainda, 0 antrop6logo. Se procura descrever e definiras rela<;oes eticas interpostas numa sociedade primi-tiva e 0 faz utilizando as categorias eticas das socie-dades ocidentais, perde imediatamente a possibilidadede compreender e de fazer com que os outros compre-endam a situa<;ao. Se define como "barbaro" urn ritual(tal como teriam feito os viajantes dos seculos passa-·dos) ja nao nos pade ajudar a compreender qual e 0modelo de cultura em que esse ritual encontra sua razao

(17) Para a noclio de modo de formar recomendo a EsMtica, deLuigi Pareyson.

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de ser.Mas se adota sem reservas a not;iio de "mode-10 de cultura" (se resolve interpretar a sociedade quedescreve como urn absoluto, niio relacionado com outrassituat;6es sociais), deveria entiio descrever 0 ritual nosmesmos termos em que e descrito pelos nativos; eassim procedendo niio conseguiria explica-lo para n6s.Deve portanto aceitar que, em tese, as nossas catego-rias siio inadequadas, mas mesmo assim traduzir ascategorias dos indigenas atraves de uma serie de me-diat;6es, usando categorias anaIogas as nossas, escla-recendo contmuamente que se trata de parMrases e niiode tradut;iio literal.

Sua at;iiodescritiva, portanto, faz-se continuamenteacompanhar da criat;iio de uma especie de metalingua-gem, no uso da qual arrisca-se constantemente a cairem dois erros antogonicos: de urn lado, julgar a si-tua~iio em termos ocidentais e, do outro, alienar-secompletamellte na mentalidade indigena, invalidalldo,assim, 0 pr6prio trabalho de esclarecimento. Portan-to, temos de urn lado a posi~iio aristocratica do via-jante no velho estilo, que passa entre os povos "sel-vagens" sem entende-los e, consequentemente, tentan-do "civiliza-los" na pior das formas, isto e, "colonizan-do-os"; do outro, temos 0 ceticismo relativista de certaantropologia - que atualmente esta revendo a suapr6pria metodologia - para a qual, aceito cada mo-delo de cultura como entidade que se auto-explica e seautojustifica, passa ele a fornecer uma cole~iio de me-dalh6es descritivos, baseado nos quais 0 homem com-prometido coma realiza~iio de rela~6es concretas ja-mais podera resolver 0 problema dos "contatos das cul-turas". 0 ponto de equilbirio acha-se naturalmentecom 0 antrop6logo de sensibilidade que, no momentade elaborar sua linguagem descritiva, percebe, contl-nuamente, tratar-se de uma situa~iio dialetica e,. aomesmo tempo em que se arma de instrumentos paracompreender e aceitar a situa~iio que descreve, procurapossibilitar urn discurso nosso sobre ela.

Voltemos. agora ao nosso "modelo" de poeta. Nomomenta em que ele resolve niio agir como antrop6-logo e soci6logo, mas sim como poeta, relluncia aelabora~iio de uma linguagem tecnica especial, apro-priada ao caso, e tenta tornar "poetico" 0 discursosobre a situa~iio industrial, voltando-se para uma tra-

dit;iio de discurso poetico, como, por exemplo, a dointimismo crepuscular e da confissiio subjetiva, do relatode "mem6ria": seu discurso, na melhor das hip6teses,expressara apenas a rea~iio de sua sensibilidade subje-tiva ante 0 horror de uma situat;iio dramatica que niioconsegue captar.Mas a situat;iioescapa-lhe, visto que alinguagem que emprega esta ligada a tradi~iio da con-fissiio interior, impedindo-o de apoderar-se de urn con-junto de rela~6es concrestas e objetivas; contudo, na rea-lidade, tamb6m sua linguagem provem dessa situat;iio,e alinguagem de uma situat;iio que, ao tentar eludir seusproblemas, estimulou 0 refugio na confissiio interior ena busca da mem6ria, transpondo para 0 plano da mo-difica~iiointerior 0 projeto de uma modifica~iiovindo doexterior.

Suponhamos entiio que certo romancista procurereproduzir a situat;iio a ser descrita apelando para umalinguagem aparentemente ligada a essa situa~iio: ter··minologia tecnica, express6es usadas em politica, gfriadifundida no ambito da situa~iio a ser descrita. Sefosse urn antrop6logo, come~aria por enumerar todosos usos comunicativos, e s6 posteriormente pesquisa-ria neles os modos pelos quais se relacionam entre sie se submetem as regras de uso. Mas se quiser dara situat;iio, expressa atraves de sua linguagem tipica,uma forma literaria, sera obrigado a unir esses ele-mentos de linguagem segundo uma ordem, uma se-quencia narrativa, que e a da narrativa tradicional.Escolhido, entiio, certo tipo de linguagem, que the pa-rece tfpico de uma situat;iio na qual as rela~6es hu-manas estejam destorcidas, postas em crise, traidas, elecoordena essa linguagem obedecendo as conven~6esnarrativas, segundo a diret;iio de uma ordem que, ime-diatamente, disfar~a esses fragmentos de dissocia~iiosob uma patina de sociabilidade, e ao transmitir a ima-gem de uma situa~ao de desordem e perturbat;iio elenos comunica uma impressiio de ordem. Ordem que,obviamente e fictfcia, e a ordem das estruturas narra-tivas que ~xprimiam urn universo ordenado, constituiuma forma de julgamento colocado em termos de umalinguagem estranha a situa~iio. Aparentemente 0 nar-rador empenhou-se em compreender uma situat;ao emque prepondera uma especie de aliena~iio, sem alienar--se nela: mas a compreensiio the escapou por usar es-

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.truturas narrativas que the dao a impressao de fugirao seu objeto18• A estrutura da narrativa tradicional e- em seu limite - a estrutura "tonal" do romance po-licial: existe uma ordem preestabelecida, uma serie derela<;oes eticas paradigmaticas, e· uma potencia, a Lei,que as administra segundo a razao; surge urn aconte-cimento. que altera essa ordem, 0 crime; dispara a molado inquerito, que e conduzido por urn cerebro, 0 de-tetive, que nao esta comprometido com a desordem de

. onde nasceu 0 crime, pois se inspira na ordem paradig-matica. 0 detetive reconhece entre os comportamentosdos indiciados quais sao baseados no paradigma e quaisdele se afastam; separa os afastamentos aparentes dosreais, isto e, liquida os falsos indicios, cuja unica fun<;aoe manter viva a aten<;ao do leitor; isola as causas ver-dadeiras que, de ac()rdo com as leis da ordem (as leisde uma psicologia e as leis do cui prodest), provoca-ram 0 ato criminoso; individua quem, caracterol6gicae situacion~lmente, estava submetido a a<;aode tais cau-sas: e descobre 0 culpado, que tera seu castigo. A or-dem volta a reinar.

Suponhamos agora que 0 narrador do romance po-licial (e um narrador confiante nas estruturas tradicio-nais, que no romance policial encontram sua expressaomais elementar, mas que sao as mesmas estruturas quefuncionam, digamos, em Balzac) queira descrever a si-tua<;ao de um individuo que atua no ambiente da Bolsa.Os gestos desse individuo nao sao, de modo algum,inspirados por uma unica ordem de parametros:. asvezes ele se inspira nos parametros eticos da socieda-de em que vive; as vezes nos parametros muito nu-merosos de uma economia de mercado livre; e enfim- com maior freqiiencia - nao age baseado em pa-rametros, mas impelido pelos movimentos irracionaisdo mercado, que podem depender de uma situa<;ao in-dustrial efetiva ou proceder de oscila<;oes de caraterexclusivamente financeiro, cuja dinamica nao mais estasubordinada a decisOes individuais, pois as determina

(18) Parece-me que Vittorini individuou muito bem tudo 0 que es-tamos procurando analisar agora, ao lembrar no Menabo anterior que"a n'.'rrativa que concentra no plano da Iinguagem 0 peso integral daspr6pnas. respo'!sabilidades para com as coisas revela-se hoje, por suavez, malS pr6xlma de assumir uma significal.'iiohistoricamente ativa doque qualquer Iiteratura que examine as coisas na generalidade de urnpressuposto contel1do pre-Iingtiistico que elas teriam, manuseando-as naqualidade de temas, disputas etc." (p. 18).

e supera, alienando - realmente alienando - quemesta aprisionado pelo andamento autonomo de um con-junto de fatores interagentes. A linguagem desse indi-viduo, seu modo de avalia<;ao das coisas, nao podeser r~conduzida a uma ordem, nem mesmo a uma psi-cologIa; em dadas fases de suas rela<;6es, de ira proce-der, segundo os fatores de certa psicologia (se tiver umcomplexo de Edipo, tera determinado comportamentopara com as ID()<;as),mas em outras fases sera movidopela configura<;ao objetiva da situa<;ao financeira, queo leva a tomar decisOes, nas quais ele e agido, e quenao tern nenhuma especie de rela<;ao causa-efeito comsuas perturba<;6es inconscientes. Aqui 0 narrador ver--se-a descrevendo urn aspecto tipico da dissocia<;ao donosso tempo, dissocia<;ao que abrange os sentimentos, alinguagem em que se expressam, as a<;6es. Ele sabe queuma decisao desse persona gem podera nao trazer 0 re-sultado previsto pelas regras tradicionais de causalida-de, pois a situa<;ao em que e tomada podera atribuir aesse gesto urn valor totalmente diverso. Portanto, seintroduzir esse material na seqiiencia de uma narrativaque respeita as rela<;6es causais tradicionais, 0 perso-nagem escapar-Ihe-a. Se tentar descreve-Io com rela-<;ao a toda a situa<;ao, considerada em suas implica-<;6essociol6gicase economicas, estara fazendo 0 papeldo antrop610go: tera que amontoar descri<;6es, fichasdescritivas, deixando, entretanto, a interpreta<;ao finalpara uma fase bem mais avan<;ada da pesquisa, e por-tanto devera fornecer contribui<;Oesdescritivas ao "mo-delo" a configurar, mas nao podera configurar urn mo-delo completo, tal como e ambi<;ao do narrador, quevisa a encerrar, dentro do circulo de organiza<;ao for-mal fruivel, determinada convic<;ao acerca da realidade.

o narrador tera, nesse caso, uma unica solu<;ao:expor seu personagem assim como ele se manifestana situa<;ao, narra-Io nas formas sugeridas pela situa-<;ao, descrever a complexidade e imprecisao de suasrela<;6es, a inexistencia de seus parametros de compor-tamento provocando, para isso, a crise dos parametrosnarrativos.

o que faz Joy'ce.quando nos. quer falar do jornalis-mo contemporaneo? Nao pode julgar a situa<;ao "mo-derna comunica<;ao jornalistica" do alto de uma lin-

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guagem incontaminada que nao sofra essa situa~ao.Organiza, portanto, urn capitulo inteiro do Ulisses, de-nominado Eolo, escolhendo como "assunto" narrativonao uma situa~ao "tipiea" do jornalismo moderno, masuma de suas manifestac;:oes,absolutamente secundaria:as conversas quase casuais. e perfeitamente insignifi-cantes de um grupo de jornalistas numa reda~ao. Mastais conversas estao unifieadas em varias tabelas pe-quenas, cada uma com um titulo, segundo 0 usa jor-nalistico e numa progressao estiHstiea tal que, inicial-mente, nos oferece as manchetes vitorianas, para che-gar, aos poucos, ao titulo sensacionalista, sintaticamenteincorreto, lingtiistieamente reduzido a pura giria do es-candaloso jornal popu1ar; e faz com que, nas diversasconversas dos que hi estao, se apresentem quase tOdasas figuras retoricas em uso. Por meio desse artificioJoyce desenvolve um discurso sobre os mass media, eum jUlzo implicito de vacuidade. Mas nao pode pro-nunciar esse jUlzo colocando-se fora da situa~ao: por-tanto dispoe a situac;:aode tal forma que a reduz a umaestrutura formal, de maneira que esta se manifeste porsi mesma. Aliena-se na situac;:ao,absorvendo-Ihe osmodos, mas ao evidenciar tais modos, ao tomar cons-ciencia deles como modos formativos, liberta-se da si-tuac;:aoe domina-a. Liberta-se da aliena~ao estranhan-do na estrutura narrativa a situa~ao em que se haviaalienado. Se, em face deste exemplo chissico, quiser-mos encontrar um exemplo muito recente, procuremosnao mais no romance e sim no cinema, e pensemosem 0 Eclipse de Antonioni. Antonioni, aparentemente,nao tece nenhum comentmo sabre 0 nosso mundo eseus problemas, sabre aquela realidade social que po-deria interessar a urn diretor desejoso de julgar a rea-lidade da industria atraves da arte. Narra a historia deUrncasal que se separa sem motivos, apenas por aridezsentimental: a historia dela, que encontra outro, e deseu amor sem paixao, dominado tambem por uma totalaridez, ou, seja como for, por uma imprecisao afetiva,por uma ausencia de motivos e estimulos; acerca da re-la~ao, acerca de ambas as relac;:oes,preponderam as coi-sas, olhadas ate a exaspera~ao, duras, presentes, objeti-vas, inumanas. No centro do enredo, a atividade caoticada Bolsa, onde se joga com os destinos individuaismas sem que se saiba por que uma sorte e marcada

ou por que aquilo tudo e feito (aonde vao parar osbilhoes hoje perdidos, pergunta a m~a ao jovem cor-retor da Balsa, e ele responde que nao sabe: e1e agecomo se fosse dono da situac;:ao,mas na verdade eagido, e um modelo de aliena~ao dos mais perfeitos).Nenhum parametro psicologico serve para explicar asituac;:ao:ela e assim justamente porque nao ha pos-sibilidade de se conseguir 0 funcionamento de para-metros unitarios, cada personagem e despedac;:adoporforc;:asexteriores que 0 agem. Tudo isso nao podeser expresso pelo artista sob a forma de um juizo, poisseriam necessarios ao jufzo, alem de um parametroetico, uma sintaxe, e uma gramatica em que se ex-primir segundo modulos racionais; e essa gramatica se-ria a do filme tradicional dirigido por relac;:6escausaisque refletem a convicc;:aoda existencia de rela~Qesra-cionalizaveis entre os acontecimentos. Entao 0 dire-tor torna patente essa situac;:aode indete~minac;:aomo-ral e psicologica atraves de uma indeterminac;:aodemontagem; uma cena segue a outra sem razao de ser,o olhar cai num objeto sem que causa alguma 0 de-termine e sem uma finalidade para justificar esse olhar.Antonioni aceita nas formas a mesma situac;:aode alie-na~ao de que quer falar: mas, ao torna-Ia manifestaatraves da estrutura de seu discurso, domina-a e tornao espectador consciente dela. Este fHme, que fala deum amor improvavel e inutil entre personagens inu-teis e improvaveis, e capaz, em seu todo, de nos dizermais coisas sobre 0 homem e sobre 0 mundo em quevive, do que urn grande painel de estrutura melodra-matiea, no qualtrabalhadores de macacao se defron-tam num jago de sentimentos que sedesenvolve con-forme as regras do drama de 1800, e se resolvem, detal forma que levam a crer que, acima dessas contra-di~oes, existe uma ordem que os julga 19. Ora, a uniea

<,19) Compreende-se agora de que natureza era a ambigilidade pri-mordial de Rocco. e i suoi fratel~i (Rocco e seus irmiios), filme que,por outro lado, tinha mUltos mentos: urn problema atual1ssimo apre-s'.'nt~do.do ,centro.de suas contradi90es (a penetra9ao dos meridionais naclvlliza9ao mdustnal do Norte; a adapta9ao de seus esquemas eticosaos de uma civiliza9ao industrial urbana ... ) foi praticamente exorcizadopelo tratamento "melodramatico", que reconduzia toda a tematica dof~lme ao esquema de uma narrativa de 1800. Infcio, crise e perip6cias,fmal com catarse: 0 espectador deixa 0 cinema pacificado e feliz. Masn.a verd,,:de, havia alguma. razao para que 0 diretor Ihe pedisse par~flcar feliz? Acho que nao. Portanto a estrutura narrativa se haviaapo,!lerad,?do ~utor levando-o a fazer urn filine de consumo e de pacifi-ca9ao pSlcol6glca, dlsfar9ado de filme compromissado. Vejamos agoraurn exemplo oposto: Salvatore Giuliano de Francesco Rosi. Aparente-

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mente, trata-se de urn exemplo da boa escola realista, mas 0 espectadorpercebe logo que nessa seqUencia de "totos" da realidade ha alguma coisaque 0 incomoda, e trata-se do uso continuo do flash-black; em certomomento, nao se sabe mais em que fase do assunto estamos, tendo-se as"nsa~ao de que, para entender bem 0 filme, seria necessario conhecerdesde ja todos os fatos, e com mais detalhes. A verdade, porem, 6 que,sObre a hist6ria de. Giuliano, sabre a verdadeira natureza de suas rela-~5es com a Mafia ou com a poHcia, ou da poHcia com os carabinieri,ou de Giuliano com Pisciotta, e assim por diante, os fatos nio sioconhecidos exatamente por ninguem. Percebemos, entio, a interven~aode uma tecnica narrativa especial, que constitui 0 verdadeiro "conteudo"do filme, tornando-se sua afirma~io mais importante: ao espectador, econtada uma hist6ria obscura por urn autor que e vftima da mesrnaobscuridade e que nao quer enganar 0 espectador esclar.ecendo-Ihe acon-tecimentos que nao sao c1aros, mas pretende deixar cada uma de suasduvidas intactas. 0 diretor parece, portanto, deixar que seu filme sejaconstruldo pela. situar;ao, ao inves de construlr a situar;ao atraves dofilme. Realiza em profundidade 0 que ja havia' sido feito, de maneiraexperimental, por Godard em A bout de souffle (A cassada), fUme emque a montagem parecia feita pelo protagonista, pois caracterizava-se pelamesma dissocia~ao pSlquica, pela mesma gratuidade de gestos, pela mesmaloucura estranha. Falamos desse filme porque e aquele que, ate hoje,soube dar-nos os exemplos mais c1aros e f1agrantes dessa uti1iza~iiL.expres-siva da estrutura tecnica. Mas, para voltarmos a narrativa, considere-seurn romance como Congetture su Jacob de Johnson, oI\de a cisao interiordo autor, que por si s6 exprime a cisiio moral, territorial e politica dasduas Alemanhas, traduz-se na pr6pria t6cnica narrattva.

uma ordem univoca estritamente hgada a uma concep-\(ao historicamente determinada, mas sim elaborar mo-delos operativos multicomplementares, a semelhan\(a doque ja conseguiu a ciencia ao propor modelos que, porsi sos, parecem permitir-nos certo dominio sabre arealidade tal como nos tern sido configurada pela nos~sa cultura. Neste sentido, algumas opera\(oes da arte,que parecem estar muito distantes de nosso mundoconcreto, na realidade, trabalham para fornecer-noscategorias de imagina\(ao com que possamos nos orien-tar nesse mundo.

Mas, nesse caso, esta opera\(ao, cujo primeiro mo-mento e a concordancia com a situa\(ao existente, 0penetrar nela para faze-Ia sua, nao tera como resul-tado final a capitula\(ao objetiva dessa situa\(ao, a ade-sao passiva ao "fluxo ininterrupto do que existe"? Che-g~mos ao problema levantado, tempos atras, por. Cal-VlOO, ao denunciar a presen\(a, submersa e inquietan'-te, de urn mar da objetividade; e sem duvida, sobcerto aspecto,a denu.ncia de Calvino era justa e indi-cava 0 lado negativo de uma situa\(ao. Toda uma Ii-teratura poderia acabar sendo apenas 0 registro donao-gesto, a fotografia da rela~ao dissociada, uma es-pecie de visao beatifica (em termos Zen) do que acon-tece, sem se preocupar em saber se 0 que aconteceainda esta na medida do homem, sem alias pergun-tar-se qual seria a medida humana.

Mas ja observamos que nao e possivel erguermo--nos a frente do fluxo do que existe opondo-lhe umamedida humana ideal. 0 que existe nao' e um dadometafisico que se apresenta diante de nos obtuso e ir-racional: e 0 mundo da natureza modificada, das obrasconstruidas, das rela~oes que haviamos assentado e quereencontramos agora fora de nos - que freqiiente-mente tomaram outros caminhos, e1aborando leis pro-prias de desenvolvimento, como um cerebro eletroni-co de uma novela de fic~ao cientffica que continua adesenvolver sozinho uma serie de equa\(Oescujos termose conseqiiencias escapam ao nosso entendimento. Ora,esse mundo que criamos contem em si, alem do riscode reduzir-nos a seus Ihstrumer.tos, os elementos combase nos quais e possivel estabelecer os parametros deuma nova medida humana. 0 fluxo do que existe per-maneceria inalterado e hostil a nos, na medida em

ordem que 0 homem pode impor a qualquer situa\(aoem que se encontre, e justamente a ordem de umaorganiza\(ao estrutural que, por sua desordem, possi-bilita uma tomada de consciencia da situa\(ao. A estaaltura, esta claro que 0 artista nao indica solu~oes.Mas aqui Zolla esta com a razaO: 0 pensamento devecompreender nao propor solufoes; pelo menos, naopor enquanto.

E entao que assume significado definitivo a fun\(aode uma "vanguarda", e suas possibilidades ante umasitua\(ao a ser descrita. E a arte que, para dominaro mundo, nele penetra a fim de absorver, em seu inte-rior, as condi\(oes de crise, usando para descreve-Io amesma linguagem alienada com que esse mundo se ex-prime: levando-o porem a uma condi\(ao de clareza,ostentando-o como forma de discurso, ela 0 despojade sua qualidade de condi\(ao alienante, e nos tornacapazes de desmistifica-Io. Daqui pode ter inicio umaopera\(ao subseqiiente.

6 . Outra fun\(ao pedag6gica dessas poeticas po-dera ser a seguinte: a opera\(ao pratica que teni origemno ato de consciencia impulsionado pela arte, estimu-lada pela arte a procurar uma nova forma de sentiras coisas e de coordena-Ias em rela\(oes, tera adquiri-do, quase como reflexo condicionado, a ideia de quepor ordem numa situa\(ao nao significa sobrepor-Ihe

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que vivessemos nele sem talarmos dele. No momen-to em que falamos dele, ainda que 0 fa~amos apenaspara assinalar suas conexoes destorcidas, n6s 0 julga-mos, processamos urn estranhamento dele talvez paratomar a possui-Io. Portanto, falar em termos aparen-temente objetivos do mar da objetividade significa re-duzir "a objetividade" a um universo humano. AquiCalvino parece aceitar como boa uma ideia que nosfoi apresentada pelo pr6prio Robbe-Grillet ao ·filoso-far sobre si mesmo. £ em seus ensaios de poetica,que ele, movendo-se num clima ambfguamente fenome-nol6gico (diria eu: falsamente fenomenoI6gico), indicaquerer alcan~ar, atraves da tecnica narrativa, uma visaodescomprometida das coisas, uma aceita~ao delas co-mo sao, fora de n6s e sem n6s: "0 mundo nao esignificativo nem absurdo. Ele simplesmente e. .. Aonosso redor, desafiando todos os nossos adjetivos ani-mistas ou classificadores, as coisas at estiio. Suas su-perficies saopolidas e nitidas, intatas, mas sem brilhosou transparencias ambiguas. Toda a nossa literaturaainda nao conseguiu suavizar-Ihes a menor aresta, mo-dificar-Ihes a minima curva. .. Convem que tais ob-jetos e gestos se imponham em primeiro lugar pOI' suapresen~a, e que em seguida essa presen~a continue adominaI', acima de qualquer teoria explicativa que ten-te encemi-Ios em algum sistema de referencia senti-mental, sociol6gico, freudiano, metafisico, ou outro" 20.

Sao essas e outras paginas da poetica de Robbe--Grillet que justificam brados de alarma como 0 deCalvino. Mas uma poetica serve para entendermoso que um artista pretendia fazeI', e nao necessaria-mente 0 que ele fez; quer dizer <J..ue,alem da pohwaexpUcita pela qual 0 artista nos comunica como gosta-ria de construir sua obra, existe uma poetica impUcita,que se manifesta atraves do modo como aobra foi efe-tivamente construida; e talvez esse modo possa serdefinido em termos que nao coincidam de todo comos apresentados pelo autor. Uma obra de arte, to-mada como exemplo bem sucedido de uma maneira deformaI', pode remeter-nos a algum,as tendencias for-mativas presentes em toda uma cultura e um periodo,tendencias que refletem dir~oes operativas analogas,

presentes na ciencia, na filosofia, no pr6prio costume.E esta a id6ia de urn Kunstwollen que nos parece es-pecialmente apropriada para orientaI' um discurso so-bre 0 modemo significado cultural das tendencias for-mativas. Ora, eis que a luz destas decisoes metodol6-gicas, 0 comportamento operativo de Robbe-Grillet,pelo menos em alguns de seus momentos, parece re-velar uma tendencia completamente diferente: 0 nar-rador nao define as coisas como entidades metaflsicasestranhas, desprovidas de rela~Oesconosco; define mes-mo urn tipo peculiar de rela~ao entre 0 homem e ascoisas, urn nosso modo de "intencionar': as coisas, eao inves de separar-se das coisas eleva-as ao ambitode uma opera~ao formativa que e urn julgamento de-las, redu~ao delas a um' mundo humano, discussao so-bre' elas e sobre 0 homem que as ve e nao conseguemais estabelecer com elas as- rela~Oesde outrora, masvislumbra, talvez, 0 caminho para uma nova rela~ao.A situa~ao de Dans Ie labyrinthe, em que parece dis-scilver-se0 pr6prio princIpio de individualidade do per~sonagem - e 0 pr6prio principio de individualidadedas coisas - na realidade, nos apresenta simplesmen-te uma imagem das reIa~Oes temporais que encontrasua defini~ao nas hip6teses operacionais de certa ter-minologia cientifica; introduz portanto uma nova vi-SaDdo tempo e da reversibilidade. Como tivemosopor-tunidade de notaI', a estrutura temporal do Labirintoja se encontra configurada em Reichenbach 21. Ora,acontece que - ainda que na ordem das rela~oesmacrosc6picas a visao do tempo aproveitavel continuesendo a mesma da fisica classica, refletida pelas es-truturas narrativas tradicionais, baseada na aceita~aode rela~oes univocas e irreversiveis de causa e efeito- certo dia 0 artista, completando uma opera~ao quenao possui valor algum no plano cientifico, mas quee tipica das maneiras pelas quais uma· cultura reageem seu todo a so1icita~oesespecIficas, enxerga a pos-sibilidade de que uma dada no~ao operativa e hipo-t6tica das rela~Oes temporais nao permane~a. limitadaao papel .de instrumento que usamos para descreveracontecimentos, mantendo-nos estranhos a ele, mas pos-sa tomar-se urn jogo que nos prende e nos encerra

(21) Veja-se 0 nosso "I! tempo di 'Sylvie' ", em Poena e Cr!tlca,nQ 2.

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em seu interior; em outros termos, que 0 instrumentopasse a agir sobre nos determinando todo 0 nosso viver.

E apenas uma chave de leitura; mas a parabo-la do labirinto poderia ate tornar-se a metafora da si-tua~ao "Bolsa" vista por Antonioni, 0 lugar onde cadaurn se torna continuamente outro que nao ele mesmoe nao e mais possivel acompanhar 0 percurso do di-nheiro que nela entra, nao e mais possive! interpretaros acontecimentos de acordo com uma cadeia unidi-recional de causas e efeitos.

Note-se bern, ninguem esta dizendo que Robbe--Grillet pensava tudo isso. Ele apresentou uma situa~aoestrutural, e admite que possamos le-la em chaves di-ferentes, mas deixa bem claro que quaisquer que sejamas leituras pessoais, a situa~ao sempre conserva intatatoda a ambigiiidade inicial: "Quanto aos personagensdo romance, eles tambem poderao ser ricos de inter-preta~6es muItiplas, poderao, consoante as interpreta-~6es de cada urn, dar lugar a todo tipo de comenta-rios: psicologicos, psiquiatricos, religiosos ou politicos.Cedo nos aperceberemos de sua indiferen~a em rela-~ao a essas pretensas riquezas. .. 0 heroi futuro ...ficad all. Mas os comentarios, esses ficarao alhures;face it sua presen~a irrefutavel, pareceriio inuteis, su-perfluos, ate desonestos". Robbe-Grillet esta certoao pensar que a estrutura narrativa deve ficar debaixodas diversas interpreta~6es que dela seriio dadas, masengana-se ao crer que essa estrutura a elas escape porser-lhes estranha. Ela nao e estranha, e a fun~iioproposicional de uma serie de situa~6es nossas, que pre-enchemos diferentemente, conforme 0 angulo visualque usamos para enxerga-la, mas que se presta a serpreenchida porque e 0 campo de possibilidades de umaserie de rela~6es que realmente san colocaveis, assimcomo a constela~ao de sons que substitui uma serie mu-sical e 0 campo das possibilidades de uma serie de rela-~6es que podemos estabelecer entre tais sons. E a estru-tura narrativa torna-se campo de possibilidades justa-mente porque, no momento em que penetramos umasitua~ao contraditoria para entende-la, as tendenciasdessa situa~ao, atualmente, nao podem mais adotar umalinha unica de desenvolvimento determinavel a priori,mas todas elas se oferecern como possiveis, ur:nasposi-

tivas e outras negativas, algumas, linhas de liberdade,outras de aliena~ao na propria crise.

A obra prop6e-se como estrutura aberta, que re-produz a ambigliidade do nosso proprio ser-no-mun-do: pelo menos, tal como no-lo descrevem a ciencia,a filosofia, a psicologia, a sociologia; assim como eambigua, dilacerada em oposi~6es, nossa rela~ao como automove!, tensao dialetica de dominio e aliena~ao,centro de possibilidades complementares.

o discurso supera, obviamente, 0 caso Robbe--Grillet, que vale como abertura e nao como exemplifi-ca~ao exaustiva do problema. Mas 0 caso Robbe-Grillet(que e urn caso-limite, podendo ser julgado como equi-voco) ajuda-nos a compreender a razao pela qual osromancistas do nouveau roman se colocavam ao lado deSartre na assinatura de manifestos de compromisso poli-tico - fato que deixava Sartre perplexo, levando-o aafirmar que nao entendia a razao de literatos que sedesinteressavam - ao escrever - de problemas dahist6ria, se juntarem a ele num compromisso pessoalcom a hist6ria. A resposta esta no fato de que (algunsmais e outros menos, uns de boa, outros de ma fe, maspelo menos, todos em linha te6rica) esses romancis-tas sentiam que seu jogo com as estruturas narrativasconstituia a unica forma de que dispunham para falardo mundo, e que os problemas que no plano da psi-cologia individual e da biografia podem ser problemasde consciencia, no plano da literatura poderiam tornar--se apenas problemas de estruturas narrativas tomadascomo reflexo de uma situa~ao, ou como campo dereflexos de varias situa~6es em nfveis diferentes.

Subtraindo-se, na arte, ao discurso sobre 0 projeto,e refugiando-se no olbar dirigido para os objetos, desfaziam do olhar um projeto. Essa decisao pode parecerpouco "1l.umana",mas talvez seja essa a forma que nos-so humanismo devera comel;ar a adotar.

o humanismo de que falava Merleau-Ponty: "S'ily a un humanisme aujourd'hui, il se defait de l'illusionque Valery a bien designe en parlant de 'ce petit hom-me qui est dans l'homme et que nous supposons tou-jours' ... Le 'petit homme qui est dans l'homme', cen'est que Ie phantome de nos operations expressivesreussies, et l'homme qui est admirable, ce n'est pas

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7. [nstalados nurna linguagem que ja fa/au tanto:eis 0 problema. 0 artista compreende que a lingua-gem, a for<;a de tanto falar, alienou-se na situa<;ao daqual nasceu para servir-Ihe como meio de expressao;compreende que, se aceitar essa linguagem, alienar-se-aa si proprio na situa<;ao; entao tenta romper e deslocartal linguagem, colocando-se para isso em seu interior,a fim de que POSS3. subtrair-se a situa<;ao e assim julga--la; mas as linhas ao lunge das quais a linguagem serompe e desloca sao, no fundo, sugeridas por umadialetiea de desenvolvimento que pertence a propriaevolu<;ao da linguagem, de maneira que a linguagemdesagregad~' passa a refletir imediatamente a mesmasitua<;ao historica, tambem gerada pela crise da shua-<;300anterior. Dissocio a linguagem por recusar-me aexpressar com ela uma integridade falsa, que nao emais nossa, mas ao mesmo tempo arrisco-me a expres-sar e aceitar a desagrega<;ao efetiva nascida dessa cri-se de }ntegridade, da qual eu procurara falar para do-mina-la.E nao ha solu<;ao possivel fora dessa diale-tiea; repetimos que a uniea saida esta em esclarecer aaliena<;ao estranhando-a, objetivando-a numa forma quea reproduza.

E a posl<;ao esbo<;ada por Sanguineti no ensaioPozsia informale: sim, determinada poesia pode parecerpoesia de esgotamento nervoso, mas esse esgotamentonervoso e, antes de mais nada, urn esgotamento his-torieo; trata-se de assumir uma lingl.\agem comprome-tida para poder coloca-Ia diante de nos e tornarmo--nos assim conscientes dela; trata-se de exasperar ascontradi<;oes da vanguard a contemporanea, pois somentede dentro de urn decu{so cultural podem ser encon-trados os caminhos de liberta<;ao; trata-se justamen-te de sofrer em doses maci<;as a crise que se desejaresolver; atravessar toda a Palus Putredinis; e isso por-que "nao e possivel existirem inocentes" e a "formanao se apresenta em caso algum, senao a partir, paranos, do informe, e neste informe horlzonte que e 0nosso, quer gostemos dele quer nao" 23.

Mas e evidente que essa posi<;aopodera facilmenteenglobar todos os riscos possiveis; e a ultima cita<;aolembra aposi<;ao tomada por alguns gnostieos, porexemplo, Carpocrates, que afirmavam que, para liber-tarmo-nos da tirania dos anjos, senhores do Cosmo,precisamos passar totalmente pela experiencia do mal,conhecer todas as baixezas, e isso para finalmente sair-mos purifieados. As conseqtiencias historicas de taiscren<;as foram os ritos secretos dos templarios, as per-versoes elevadas ao nivel liturgieo pelas igrejas sub-terraneas, que contam Gilles de Rais entre seus santos.

De fate, e suficiente que, em antagonismo com 0

artista que inventa este modo de aproximar-se da r~a-lidade atraves da ado<;ao de uma linguagem em cnse,surja urn so seguidor de modas que aceite 0 metodosem ser capaz de ver-lhe atraves, e a opera<;ao de van-guarda se torna moda, exercicio complacente, umadas muitas formas de alienar-se na situa<;ao existente.

ce phantome, c'est lui qui, tnstalle dans son corps fra-gile, dans un langage que a deja tant parle, dans unehistoire titubante, se ressemble et se met a voir, a com-prendre, a signifier. L'humanisme d'aujourd'hui n'aplus rien de decoratif ni de bienseant. II n'aime plusl'homme contre son corps, l'esprit contre son langage,les valeurs contre les faits. II ne parle plus de l'hom-me et de l'esprit que sobrement, avec pudeur; l'espritet l'homme ne sont jamais, ils transparaissent dans Iemouvement par lequel Ie corps se fait geste, Ie langageoeuvre, la coexistence verite" 22.

(22) Signes, Gallinmard, Paris, 1960. "Se hoje ha um humanismoele se desvincula da iluslio para a qual apontava Valery, ao falar dest~'homenzinho que esta dentro do homem e que estamos sempresupondo' . .. 0 'homenzinho que esta dentro do homem' nada mais eque 0 fantasma de nossas opera~i5es importantes realizadas com exito eo homem que e admiravel, nlio e esse fantasma, e "Ie que, instaladoem seu corpo fragil, numa linguagem que ja falou tanto numa hi.t6riatitubeante, se identifica e come~a a ver, a compreender e a significar.o humanismo de hoje nada mais tern de decorativo ou de circunspecto.Nlio aceita mais 0 homem contra seu corpo, 0 esplrito contra sua lin-gua1!em, os valores contra os fatos. Nlio fala mais do homem e doespfrito a DaD ser sobriamente, com pudor; 0 esprrito e 0 homem DaDSaD jamais, eles transparecem no movimento em que 0 corpo se fazgesto, a linguagem obra, a coexistencia verdade."

(23) "Poesia Informale", em 1 Novissimi, Milano, ,1961. EnquantoSan~uineti .travessa um pantano da cullura adotando todas as palavra~e frases fatalmente comprometidas com tradi~6es e civiliza~6es. N amiBalestrini demonstra passar atraves do pantano quotidiano dos jomaise dos aniincios publicitarios, assim como dos trechos de conversa comum.Acredito aue se possa dizer que quem ve nosexerci'cios de Balestrini umamanifesta~ao de dadaismo (trata-se aqui das poesias escritas a .milo enao das eletr6nicas, para as quais 0 problema .torna-se outro), nao levaem considera~lio que 0 dada, quando decompoe as palavras e as colaem QualQuer lugar, 0 faz para provocar 0 leitor, alterando a orde~ de~.eus -raciocinios concretos e e('"~imuJando-o atraves de uma desordem Ines-perada e fecUlida. Balestri"!, ainda que afirrne 0 desejo de esti11';ularurn con junto de interpreta~ao livres e desarticuladas, C('lnserva todavJa aconscie.lcia basica de Que a desordem nlio foi criada por ;,Ie ao abalar aordem. mas foi por ele descoberta em lugar da ordem.

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desviando-se 0 anseio de rebelHlo ou 0 rigor da critieano exerdcio formal de uma revolugao manejada aonlvel das estruturas.

Tanto isso e verdade que esta arte pode imediata-mente tornar-se objeto de comercio lucrativo para aque-la mesma sociedade que se propunha colocar em crise;e certo publico visita as galerias com 0 mesmo estadode espirito das senhoras da alta sociedade que vaoaas restaurantes de Trastevere onde urn taberneiro grm;cseiro e descarado as tratani a noite inteira como pros-titutas, impondo os pratos e apresentando no fim umaconta de night-club.

Mas chegados aqui, se podemos afirmar que s6 epassivel discorrer sobre uma situagao penetrando nelae adotando seus instrumentos de expressao - estabe-lecendo assim a legitimidade de uma dialetica - naopodemos, contudo, definir os limites nos quais a opera-gao deve ser conduzida, e os termos de comparagaoque estabelegam realmente ate que ponto 0 artista fezde sua excursao uma exploragao reveladora ou ate queponto a transformou em temporada passiva e agradavel.Estabelecer tais limites e a fungao de urn discurso cri-tieo orientado para cada obra isoladamente, e nao deurn estudo ao nlvel das categorias filos6ficas, que pre-tende apenas estabelecer as condig6es de possibilidadede determinada atitude das poeticas contemporaneas.Poderemos no maximo, no plano estetieo, aventurar umahip6tese: cada vez que essa operagao da origem a umaabra organiea, apta para expressar-se a si mesma emtodas as suas conex6es estruturais, essa condigao deperspieuidade s6 podeni ser uma condigao de autoconoiencia, seja para quem a realizou, seja para quem afruiu. A maneira pela qual ela se formou nao podedeixar de remeter-nos ao mundo cultural que nela trans-parece, exemplificado na medida mais completa e or-ganica posslvel. Onde quer que se realize uma forma,temos uma operagao consciente sabre material amarforeduzido ao dominio humano. Para dominar essa ma-teria foi preciso que 0 artista a "compreendesse": com-preendendo-a, nao pode ter-se deixado aprisionar porela, qualquerque seja 0 juizo sobre ela expresso. Mes-mo. que a tenha aceito sem reservas, fe-lo depois dete-la visto em toda a riqueza de suas implicag6es, de

modo a distinguir as direc;oes que nos podem parecer.negativas , mesmo sem condemi-las. E a situagao queMarx e Engels reconheciam ter atuado sobre Balzac,legitimista e reaciomirio, que soube esbogar e organizarcom tanto profundidade de visiio a rica materia domundo sobre 0 qualdiscorria, que sua obra (a obrade urn Balzac, desinteressado de certos problemas, efundamentalmente consciente com 0 mundo em quevivia - nao a obra de urn Sue ou de outros que ha-viam procurado comprometer-se num juizo pohtico dafinalidade progressista sobre os aC'ontecimentos) cons-tituiu para ele 0 documento de maior valia para a cOJU-preensao e 0 julgamento da sociedade liurguesa, e maisainda, 0 documento no qual essa sociedade, cxplica-da, era por isso mesmo julgada. Em outras palavras,Balzac havia aceito a situagao em que vivia, mas tor-nando-Ihe tao lucidamente manifestas as conex6es aponto de nao ficar prisioneiro dela, pelo menos emsua obra.

Baizac conduziu sua analise atraves do modo peloqual dispunha urn assunto (isto e, narrando uma ocor-rencia de acontecimentos e personagens, na qual seesclarecia 0 conteudo de sua pesquisa); a literaturacontempocanea parece ter condig6es para analisar 0mundo, nao mais dessa maneira, mas atraves da dispo-sigao de uma certa articullJfi10 estrutural do assunto- erigindo a articulagao em assunto e nela resolvendoo verdadeiro conteudo da obra.

Por este caminho a literatura - assim como anova musica, a pintura, 0 cinema - pode expressar 0

mal-estar de uma situagao humana; nem sempre, porem,podemos pedir-lhe isso, nem seJl1pre devera ela ser li-teratura social. Podeni ser ocasionalmente uma litera-tura que realiza, atraves de suas estruturas, uma imagemdo cosmo tal como 0 sugere a ciencia, a Ultima barreirade urn anseio metafisieo que, nao mais conseguindoconferir uma forma unitaria ao mundo no ambito doscanceitos, tenta elaborar urn seu Ersatz na forma es-tetiea; Finnegans Wake seria talvez urn exemplo dessasegunda vocagao da literatura.

Mas tambem neste caso seria muito perigosoacre-ditar. como fazem alguns, que interessar-se pelas re-lagoes c6smicas signifique ignorar as relagoes na es~

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cala humana e eludir urn problema. Vma literaturaque expressa em suas formas abertas e indetermina-das os universos vertiginosos e hipoteticos aventadospela imagina<;ao cientifica, luta ainda em terreno hu-mano, pois esta sempre definindo urn universo que ado-tou essa nova configura<;ao, justamente em virtude deuma opera<;ao humana - entendendo-se por opera-<;ao a aplica<;ao de urn modelo descritivo com baseno qual trabalhar sobre a realidade. Mais uma vez aliteratura estaria exprimindo nossa rela<;ao com 0 ob-jeto de nosso conhecimento, nossa inquietude dianteda forma que demos ao mundo, ou da forma que naopodemos dar-Ihe; e estaria trabalhando para fornecera nossa imagina<;ao esquemas sem cuja media<;aotalvez nos escapasse toda uma zona da atividade tec-nica ecientffica, tornando-<se entao realmente algodiferente de nos, pelo qual, no maximo, nos poderia-mos deixar conduzir24•

De qualql\er forma, contudo, a opera<;ao da arteque procura conferir uma forma aquilo que pode pare-cer desordem, amorfia, dissocia<;ao, ausencia de qual-quer rela<;ao, e ainda 0 exercicio de uma razao quetenta reduzir as coisas a clareza discursiva; e quandoseu discurso parece obscuro, e porque as proprias coi-sas, e nossas rela<;oes com elas, sao ainda muito obs-curas. De modo que seria arriscada demais a preten-

(24) Caberia aqui perguntar : por que razao uma Iiteratura que falade nOssa situa9aa social nao pode deixar de ser negativa, isto e, de adotaruma Iinguagem em crise para colher atraves dela a crise de determinadasrela~oes; enquanto que todas as vezes que essa mesma linguagem, apresen-tada com a m~smaindetermina9ao e ambiguidade de estruturas, e vista comoa imagem de uma situa9ao epistemol6gica (imagem posslvel de urn universoposslvel, ou de uma nossa posslvel posi9aOno universo) eis que sua conota-9ao Se torna positiva (de tal forma que pareceria urn escandalo nao poderfalar do homem a nao ser em termos dramliticos, e do universo em termosquase otimistas).· No. verdade, acontece justamente que a dire9ao em cujorumo a cultura contemporanea trabalha mais positivamente e a do.defini9aocient/fica do mundo em que vivemos; a indetermina9ao que nos pregam asmetodologias cient/ficas, embora coloque uma metaflsica em crise, nao nospoe em crise enquanto homens operadores do mundo, precisamente porquenos permite operar sobre 0 mundo e no mundo. Quando a arte exprimeessa situa9ao, exprime, no fundo, urn momenta positivo de nossa cultura.Conceitos como indetermina9ao, probabilidade, complementaridade, quepermitem operar no mundo nuclear, nos possibilitam a realiza9ao dealgumas opera90es, como, por exemplo, a fusao do atomo que por si s6srepresentarn urn sucesso. 0 insucesso, 0 xeque, a hesita~ao, surgemquando tentamos aproveitar a fissao nuclear no nlvel dos fatos morais epollticos. Aqui, nossos objetivos sao indefinidos, aqui as ideias ultrapas-sadas de potencia e Realpolitik chocam-se com novas perspectivas deconvivencia entre os pavos: aqui existe realmente alga que nao funciona,aqui se volta a falar de aliena9ao; e que 0 fa9amos com razao ou nao,nao deixa de ficar patente urn mal-estar, do qual a Iinguagem que usamosdeve tornar-se 0 espelho estranhante.

s~~ -de defini-Ias do alto da impoluta tribuna da ora-ton~: 0 que se tornaria uma maneira de eludir areahdade, para deixa-Ia tal como se encontra. Naoseria essa a derradeira e mais perfeita figura da aIie-na<;oo?

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P - Nos seus livros se fala frequentemente deuma dialetica entre vanguarda e cultura de massa. Co-mo se apresenta, em sfntese, essa dialetica?

R - Simplificando ao maximo 0 problema, eu 0

apresentaria como uma oposi<;:aoentre discurso "aber-to" e discurso "persuasivo".

P - 0 que significa discurso aberto?R - 0 discurso aberto, que e tfpico da arte, e

da arte de vanguarda em particular, tem duas carac-• Esta entrevista, pubJicada originalmente 110 Suplemento Literario

de 0 Estado de Sao Paulo de 17 de setembro de 1966, foi concedida porUmberto Eco ao poeta Augusto de Campos, quando da estada de Ecoem Sao Paulo, em agosto daquele ano.

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teristicas. Acima de tudo e ambiguo: nao tende a nosdefinir a realidade de modo univoco, definitivo,· ja con-feccionado. Como ,diziam os formalistas da decada de20 (com os quais a moderna teoria da comu~icac;aoesta aprendendo muitas coisas), 0 discurso artIstlco n~scoloca numa condic;ao de "estranhamento", de "despal-samento"; apresenta-nos as coisas de urn modo novo,para alem dos habitos conquistados, infringindo as nor-mas da linguagem, as quais haviamos sido habituados.As coisas de que nos fala nos aparecem sob uma luzestranha como se as vissemos agora pela primeira vez;precisa~os fazer urn esforc;o para. compreende-Ias,para torna-Ias familiares, precisamos mtervlr com atosde escolha construir-nos a realidade sob 0 impulso damensa gem ' estetica, sem que esta n?s obrig~e a ve-Iade urn modo predeterminado. Asslm, a mmha com-preensao difere da sua, e 0 discurso. aberto se tornaa possibilidade de discursos diversos, epara cada urnde nos e uma continua descoberta do mundo. A se-gunda caracteristica do discurso aberto eque ele mereenvia antes de tudo nao as coisas de que ele fala,mas ao modo pelo qual ele as diz. 0 discurso abertotern como primeiro significado a pl10pria estrutura.Assim, a mensagem nao se consuma jamais, permanecesempre como fonte de informac;oes possiveis e respon-de de modo diverse a diversos tipos de sensibilidade ede cultura. a discurso aberto e urn ape10 a responsabi-lidade, a escolha individual, urn desafio e urn estimulopara 0 gosto, para a imaginac;ao, para a inteligencia.Por isso a grande arte e sempre dificil e sempre impre-vista, nao quer agr~dar e consolar, quer colocar pro-blemas, renovar a nossa percepc;ao e 0 nosso modo decompreender as coisas.

P - E 0 discurso persuasivo?R - 0 discurso persuasivo, ao contrario, quer

levar-nos a conclusoes definitivas; prescreve-nos 0 quedevemos desejar, compreender, temer, querer e naoquerer. Para dar urn exemplo, se 0 discurso abertoquer-nos apresentar de urn modo novo 0 problema dador; 0 discurso persuasivo tende a nos fazer chorar, aestimular as nossas lagrimas, como pode acontecer comuma fotonovela.

P - Seria entao 0 discurso persuasivo manifesta-~ao tipica das comunicac;oes de massa?

R - Sim, mas nao somente destas. Persuasivossac 0 discurso judiciario, o· discurso politico e 0 discur-so da propaganda. 0 primeiro grande te6rico do dis-curso persuasivo foi Aristoteles na sua Ret6rica. Eleexaminou os modos do discurso deliberativo (politico),judiciario e epiditico (i. e., 0 discurso em louvor ou emreprovac;ao de qualquer coisa: diriamos hoje, "0 dis-curso publicitario"); e prescreveu as regras de urn dis-curso que, partindo de "opinioes comuns", leve oouvin-te a assentir, a concordar com aquele que fala. Nessesentido, 0 discurso persuasivo quer convencer 0 ouvin-te com base naquilo que ele ja sabe, ja deseja, quer outeme. a discurso persuasivo tende a confirmar 0 ou-vinte nas suas opinioes e convenc;oes. Nao the propoenada de novo, nao 0 provoca, mas 0 consola; assim,hoje a publicidade me induz a comprar aquilo que euja desejo, e a desejar aquilo que nao desejo, mas res-ponde as minhas tendencias secretas; fotonovelas e his-torias em quadrinhos me fazem rir, chorar ou estreme-cer com os problemas de sempre; os sinais de trcifegome levam a parar ou a passar, referindo-se a necessi-dades elementares de seguranc;a, ao medo do acidente,ao temor de uma multa ...

P - 0 discurso persuasivo sera, portanto, sem-pre discurso de dominio, de coerc;ao, uma especie deengodo?

R - Nem sempre e nao necessariamente. Urnditador, urn tirano nao tern necessidade de discursospara me persuadir. Basta-Ihes urn bastao ou urn chi-cote. Nao foi por acaso que a tecnica do discursopersuasivo nasceu numa sociedade democratica, comoa grega. Tenho necessidade de discursos persuasivossomente quando preciso convencer pessoas a quem pec;oo livre consentimento. A maior parte dos discursosque fazemos nas relac;oes com os nossos semelhantessaa discursos de persuasao. Temos necessidade depersuadir e de ser persuadidos. 0 discurso persuasivo,em si mesmo, nao e urn mal; so 0 e quando se torna 0

unico tramite da cultura, quando prevarica, quandose torna 0 unico discurso possivel, quando nao e inte-grado por discursos abertos e criativos.

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P - 0 estudo das comunica<;oes de massa naocorreria 0 risco de tornar-se apenas uma contribuic;aotecnica para uma politica da persuasao? Nao se li~i-taria, em outras palavras, a prover os autores de dlS-cursos persuasivos de conhecimentos para tornar osseus discursos sempre mais eficazes?

R - Nao. A grandeza da civiliza<;aogrega con-sistia nisto: reconhecia a necessidade da persuasao, mastornava publicas as suas tecnicas. A Ret6rica deArist6teles consistia em duas coisas: num manual dapersuasao e na denlincia cientifica e pUbl~ca d~s tec-nicas de persuasao; e normal que 0 cldadao se]a. per-suadido, mas deve saber de que modo 0 persuadlmos.S6 assim ele se torna mais livre em rela<;ao as tecnicasde persuasao. 0 homem contemporaneo ?a? podefugir aos discursos convincentes e paternahsttcos dacomunica<;ao de massa. Direi ate que em certos casostern necessidade dela, como eu tenho necessidade algu-mas vezes de experimentar como<;oes, calafrios, hilari-dade e you ver urn filme divertido para me distrairdepois de uma longa tensao, ou leio urn romance poli-cial para dormir a noite. 0 importante e que eu 0saiba, que todos possivelmente saibam como agem essesmecanismos. 0 estudo das comunica<;6es de massa eda sua tecnica, levado ao conhecimento de muitos, po-de-se tornar uma educa<;ao para a liberdade, uma entreas mais realistas possiveis.

P - Qual e, a seu ver, a fun<;ao da literaturade vanguarda em nosso tempo?

R - As mensagens de massa sac mensagens ins-piradas numa ampla redundancia: repetem para 0 pu-blico aquilo que de jl:l sabe e aquilo que deseja saber.Mesmoquando utiliza solu<;6es estiHsticas difundidaspela vanguarda, a cultura de massa. o. faz quando estesmodos comunicativos ja foram asslmtlados pelo gran-de publico. Dai que ela di~nde, p~r assim diz:er, so-bre 0 universe uma confortavel cortma de obvledade.A tarefa da literatura de vanguarda e precisamente ade romper essa barreira de obviedade. Diante do jaconhecido ("noto") a vanguarda propoe 0 desconheci-do ("l'ignoto"). Neste sentido se enquadra no dis-curso informativo e aberto. Ja se disse que a tarefada literatura e a de manter eficiente a linguagem. Se

por "manter eficiente a linguagem" se entende "reno-var continuamente as modalidades de usa do c6digolingliistico comum", esse e exatamente 0 objetivo da'1anguarda. Com uma particularidade ~ desde que urnmodo de falar reflete urn modo de ver a realidade e deafrontar 0 mundo, renovar a linguagem significa renovar a nossa rela<;ao com 0 mundo.

p ~ Que possibilidades ve na chamada literaturaparticipante ou "engagee"?

R - 0 final da resposta precedente respondetambem a esta indaga<;ao. A tarefa da vanguarda eintnnsecamente revolucionaria. Ha urn modo de con-ceber 0 engajamento que consiste em falar de proble-mas sociais ou politicos usando os termos do discursopersuasivo e pacificador da pior cultura de massa. Nes-te sentido, tres quartos da chamada literatura "en-gagee" nao passam de bem comportados exerdcios sen-timentais de uma mentalidade pequeno-burguesa que,sob farmas consolat6rias e pacificantes, introduziu te-mas dramaticos no mercado miudo dos bons sentimen-tos. Esta literatura "engagee" - que fique bem claro- esta "a direita".

P - 0 estudo da comunica<;ao de massa e dateoria da informa<;ao preocupa uma serie de criticosem todo 0 mundo. Ao mesmo tempo, Barthes e Molesna Fran<;a; Bense na Alemanha; McLuhan no Canadae nos EE. UU. - sem falar de urn pioneiro comoJakobson - Interessam-se profundamente pelas obrasde vanguarda. Bense, por exemplo, e urn propugnadorda poesia concreta. McLuhan considera 0 FinnegansWake a obra maxima de nossa epoca (em The Gut-tenberg Galaxy). Que rela<;ao ha entre esses criticose 0 seu trabalho pessoal? Poder-se-ia dizer que essetipo de critica, com os seus novos instrumentos, setiatambem uma critica "aberta", no sentido de ser maisapta a compreender as manifesta<;6es, as mais ousadas,da vanguard a artistica do nosso tempo?

R - Se entre os nomes dos criticos citados eudevesse indicar quais os que mais contribuiram para aminha forrn~ao, eu mencionaria Moles, Jakobson e

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Barthes. De1es tomei emprestados muitos instrumen-tos que me permitiram compreender os problemas daarte contemporanea; estou, portanto, de acordo com asua definiC;aode critica "aberta"; basta ler 0 ultimoe bellssimo Hvro de Barthes, Critique et verite, * paraencontrar uma teorizaC;aodessa atitude. Os estudio-sos acima mencionados foram os primeiros a compreen-der que uma obra e uma mensagem plurivalente, quea Hist6ria preenche de diversos significados possiveis; "e foram os primeiros a produzir instrumentos concei-tuais aptos a explicar tal fenomeno. A esse respeito,eu nao falaria propriamente de uma critica de vanguar-da, mas de uma vanguarda critica.

1.A Personagem de Fi~iio, Antonio Candido e outros.2.lnfoT'mafiio, Linguagem, Comunicafiio, D6cio Pignatari.3. Bakznfo da Bossa e Outras Bossas, Augusto de Campos.4. Obra Aberta, Umberto Eco.5. Sexo e Temperamento, Margaret Mead.6. Fim do Povo Judeu?, Georges Friedmann.7. Texto/Contexto, Anatol Rosenfeld.8. 0 Sentido e a Mascara, Gerd A. Bornheim.9. Problemas da Ffsica Moderna, W. Heisenberg e outros.

10. DistUrbios Emocionais e Anti-Semitismo, N. W. AckennanneM.laboda.

11. Barroco MineirQ,Lourival Gomes Machado.12. Kafka: Pro e Contra, Gunther Anders.13. Nova Historia e Novo Mundo, Fr6d6ric Mauro.14. As Estruturas Narrativas, Tzvetan Todorov.15. Sociologin do Esporte, Georges Magnane.16. A Arte no Horizonte do Provavel, Haroldo de Campos.17.0 Dorso do Tigre, Benedito Nunes.18. Quadro da Arquitetura no Brasil, Nestor G. Reis Filho.

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19. Apocalfpticos e Integrados, Umt>erto Eco.20. Babel & Antibabel, Paulo R6nai.21. Planej{l11tentono Brasil, Betty Mindlin Lafer.22. Lingiif!tica. Poetica. Cinema, Roman Jakobson.23. LSD, John Cashman.24. Critica e Verdade, Roland Barthes.25. Rafa e Ci~ncia I, Juan Comas e outros.26. ShazarrU,Alvaro de Moya.27. Artes pMsticas na Semana de 22, Aracy Amaral.28. Hist6ria e Ideologia, Francisco Iglesias.29. Peru: Ja Oligarquia Econ6mica a Militar, A. Pedroso d'Horta.30. PequefUl EsMtica, Max Bense.31. 0 Soicialismo Ut6pico, Martim Buber.32. A TragediaGrega, Albin Lesky.33. FilosOjia em Nova Chave, Susanne K. Langer.34. Tradif{io, Ciencia do Povo, LUISda Camara Cascudo. ,35. 0 Ludico e as Projefoes do Mundo Barroco, Affonso Avila.36. Sartre, Gerd A. Bornheim.37. Planejpmento Urbano, Le Corbusier.38. A Religiiio e 0 Surgimento do Capitalismo, R. H. Tawney.39. A Poetica de MaiakOvski, Boris Schnaiderman.40.0 Vis£vele o Invis£vel, Maurice Marleau-Ponty.41. A Multidt10Solitaria, David Riesman.42. MaiakcJvskie 0 Teatro de Vanguarda, A. M. Ripellino.43. A Grat/de Esperanfa do Seculo XX, J. Fourastie.44. Contracomunicaft10, Decio Pignatari.45. Unisse;to, Charles F. Winick.46. A Arte de Agora, Agora, Herbert Read.47. Bauha/ls: Novarquitetura, Walter Gropius.48. Signos em Rotaft10, Octavio Paz.49. A Escr;tura e a Diferenfa, Jacques Derrida.50. Linguagem e Mito, Ernst Cassirer.51. As Formas do Falso, Walnice Nogueira Galviio.52. Mito e Pealidade, Mircea Eliade.53. 0 TralJalho em Migalhas, Georges Friedmann.54. A SignijiCaft10no Cinema, Christian Metz.55. A Musica Hoje, Pierre Boulez.56. Rafa e Ciencia II, L. C. Dunn e outros.57. Figur~, Gerard Genette.58. Rumos de uma Cultura Tecnol6gica, Abraham Moles.59. A Ling/lagem do Espafo e do Tempo, Hugh M. Lacey.60. Fonnalismo e Futurismo, Krystyna Pomorska.61.0 Crisp.ntemo e a Espada, Ruth Benedict.62. Esteticll e HistOria, Bernard Berenson.63. Moradll Paulista, LUISSaia. .64. Entre d Passado e 0 Futuro, Hanriah Arendt.65. PoUticil Cient£fica, Heitor G. de Souza e outros.66. A Noiti da Madrinha, Sergio Miceli.67. 1822: Oimensoes, Carlos Guilherme Mota e outros.68. 0 Kitsch, Abraham Moles.69. EsMticll e Filosofia, Mikel Dufrenne.70.0 Sistema dos Objetos, Jean Baudrillard.71. A Arte .naEra da Maquina, Maxwell Fry.72. Teoria e Realidade, Mano Bunge.73. A Nova Arte, Gregory Battcock.74. Cartazi Abraham Moles.

75.A Prova de Godel, Ernest Nagel e James R. Newman.76. Psiqlfiatria e Antipsiquiatria, David Cooper.77. A Caminho da.Cidade, Eunice Ribeiro Durhan.78.0 EscorpiiioEncalacrado, Davi Arrigucci Junior.79. 0 Caminho Critico, Northrop Frye. .80. Economia Colonial; J. R. Amaral Lapa.81.FaLenciada Critica, Leyla Perrone Moises.82. Lazer e Cultura Popular, Joffre Dumazedier.83. Os Signos e Critica, Cesare Segre.84. Introduft10 a Semanalise, Julia Kristeva.85. Crises da Republica, Hannah Arendt.86. F6rmula e Fabula, Willi Bolle.87. Sa£da, Voz e Lealdade, Albert Hirschman.88. Repensando a Antropologia, E. R. Leach.89. Fenomenologia e EstrutUralismo, Andrea Bonomi.90. Limites do Crescimento, Donella H. Meadows e outros.91.Manic6mios, Prisoes e Corzventos, Erving Goffman.92. Maneirismo: 0 Mundo como Labirinto, Gustav R. Hocke.93. Semi6tica e Literatura, Decio Pignatari.94; Cozinhas, etc., Carlos A. C. Lemos.95. As Religioes dos Oprimidos, Vittorio Lanternari.96. Os Tres Estabelecimentos Humanos, Le Corbusier.97. As Palavras sob as Palavras, Jean Starobinski.98. Introduft10 a Liieratura Fa1J!4stica,Tzvetan Todorov.99. Significado nas Artes Visuais, Erwin Panofsky.

100. Vila Rica, Sylvio de Vasconcellos.101. Tributaft10Indireta nas Economias em Desenvolvimento, J. F. Due.102. Metafora e Montagem, Modesto Carone.103. RepertOrio, Michel Butor.104. Valise de Cron6pio, Julio Cortazar.105. A Metafora Critica, Joiio Alexandre Barbosa.106. Mundo, Homem, Arte em Crise, Mario Pedrosa.107. Ensaios Cr£ticose Filos6ficos, Ram6n Xirau.108. Do Brasil a America, Frederic Mauro.109. 0 Jazz, do Rag ao Rock, Joachim E. Berendt.110. Etc ..., Etc ... (Um Livro 100% Brasileiro), Blaise Cendrars.Ill. Territ6rio da Arquitetura, Vittorio Gregotti.112. A Crise Mundial da Educaft1o, Philip H. Eoombs.113. Teoria e Projeto na Primeira Era da Maquina, Reyner Banham.114. 0 Substantivo eo Adjetivo, Jorge Wilheim.115. A Estrutura das RevolufOes Cientificas, Thomas S. Kuhn.116. A Bela Epoca do Cinema Brasileiro, Vicente de Paula Araujo.117. Crise Regional e Planejamento, Amelia Cohn.118. Q Sistema PoUtico Brasileiro, Celso Lafer.119. Exrase Relgioso; loan M. Lewis.120. Purezae Perigo, Mary Douglas.121. Hist6ria, Corpo do Tempo, Jose Hon6rio Rodrigues.122. Escrito sabre um Corpo, Severo Sarduy.123. Linguagem e Cinema, Christian Metz.124.0 Discurso Engenhoso, Antonio Jose Saraiva.125. Psicanalisar, Serge Leclaire.126. Magistrados e Feiticeiros na Franfa do Seculo XVII, R. Mandrou.127.0 Teatro e sua Realidade, Bernard Dort.128. A Cabala e seu Simbolismo, Gershom G. Scholem.

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129. Sintaxe e Semantica na Granuitica Transfonnacional, A. Bonomi e G.Usberti.

130. Conjum;oes e DisjuTlfoes, Octavio Paz.131. Escritos sobre a Hist6ria, Fernand Braudel.132. Escritos, Jacques Lacan.133. De Anita ao Museu, Paulo Mendes de Almeida.134. A Operariio do Texto, Haroldo de Campos. .135. Arquitetura, Industrializariio e Desenvolvimento, Paulo J. V. Bruna.136. Poesia-Experiencia, Mario Faustino.137. Os Novos Realistas, Pierre Restany.138. Semiologia do Teatro, Org. J. Guinsburg e J. Teixeira Coelho Netto.139. Arte-Educariio no Brasil, Ana Mae T. B. Barbosa.140. Borges: Uma Poetica da Leitura, Emir Rodriguez Monegal.141. 0 Fimde uma Tradiriio, Robert W. Shirley.142. Shima Arte: Um Culto Moderno, Ismail Xavier.143. A Estetica do Objetivo, Aldo Tagliaferri.144. A Construrilo do Sentido na Arquitetura, J. Teixeira Coelho Netto.145. A Granuitica do Decameron, Tzvetan Todorov.146. Escravidiio, Refonna e Imperialismo, Richard Graham.147. Hist6ria do Surrealismo, Maurice Nadeau.148. Poder e Legitimidade, Jose Eduardo Faria.149. Praxis do Cinema, Noel Burch.150. As Estruturas eo Tempo, Cesare Segre.151. A Pohica do Silencio, Modesto Carone.152. Planejamento e Bem-Estar Social, Henrique Rattner.153. Teatro Moderno, Anatol Rosenfeld.154. Desenvolvimento e Construriio Nacional, S. N. Eisenstadt.155. Uma Literatura nos Tr6picos, Silviano Santiago.156. Cobra de Vidro, Sergio Buarque de Holanda.157. Testando 0 Leviathal1, Antonia Fernanda Pacca de Almeida Wright.158. Do Ditilogo e do Dialogico,.Martin Buber.159. Ensaios Lingiifsticos, Louis Hjelmslev.160.0 Realismo Maravilhoso, Irlemar Chiampi.161. Tentativas de Mitologia, Sergio Buarque de Holanda.162. Semi6tica Russa, Boris Schnaiderman.163. Saloes, Circos e Cinemas de Siio Paulo, Vicente de Paula Araujo.164. Sociologia Empfrica do Lazer, Joffre Dumazedier.165. Ffsica e Filosofia, Mario Bunge.166.0 Teatro Ontem e Hoje, Celia Berrettini.167.0 Futurismo Italiano, Org. Aurora Fornoni Bernardini.168. Semi6tica, Infonnariio e Comunicariio, J. Teixeira Coelho Netto.169. Lacan: Operadores da Leitura, Americo Vallejo e Ugia C. Maga-

lhaes.170. Dos Murais de Portinari aos Esparos de Brasilia, Mario Pedrosa.171. 0 Urico e 0 Tragico em Leopardi, Helena Parente Cunha.172. A Crianra e a FEBEM, Marlene quira~o.. ..173. Arquitetura Italiana em Siio Paulo, Amta Salmom e E. Debenedettl.174. Feitura das Artes, Jose Neistein.175.0ficina: Do Teatro ao Te-Ato, Armando Sergio da Silva.. .176. Conversas com Igor Stravinski, Robert Craft e Igor Stravmski.177. Arte como Medida, Sheila Leimer.178. Nzinga - Resistencia Africana a Investida do Colonialismo Portugues

em Angola, 1582-1663, Roy Glasgow.179.0 Mito e 0 Her6i no Moderno Teatro Brasileiro, Anatol Rosenfeld.

180. A Industrializariio do Algodao na Cidade de Sao Paulo,Maria Regina de M. Ciparrone Mello.

181. Poesia com Coisas, Marta Peixoto.182. Hierarquia e Riqueza na Sociedade Burguesa, Adeline Daumard.183. Natureza e Sentido da Improvisarao Teatral, Sandra Chacra.184.0 Pensamento Psicol6gico, Anatol Rosenfeld.185. Mouros, Franceses e Judeus, LUISda Camara Cascudo.186. Tecnologia, Planejamento e DesenvolvimentoAutonomo,

Francisco Sagasti.187. Mario Zanini e seu Tempo, Alice Brill.188.0 Brasil e a Crise Mundial, Celso Lafer.189. Jogos Teatrais, Ingrid Dormien Koudela.190. A Cidade e 0 Arquiteto, Leonardo Benevolo.191. Visiio Filos6fica do Mundo, Max Scheler.192. Stanislavski e 0 Teatro de Arte de Moscou, J. Guinsburg.193.0 Teatro Epico, Anatol Rosenfeld.194.0 Socialismo Religioso dos Essenios: A Comunidade de

Qumran, W. J. Tyloch.195. Poesia e Musica, Org. Carlos Daghlian.196. A Narrativa de Hugo de Carvalho Ramos, Albertina Vicentini.197. Vida e Hist6ria, Jose Hon6rio Rodrigues.198. As llusoes da Modernidade, Joao Alexandre Barbosa.199. Exerdcio Findo, D6cio de Almeida Prado.200. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido, Pierre Cabanne.201. Uma Consciencia Feminista: Rosario Castellanos, Beth Miller.202. Neolftico: Arte Moderna, Ana Claudia de Oliveira.203. Sobre C<Jmunidade,Martin Buber.204.0 Heterotexto Pessoano, Jose Augusto Seabra.205.0 Que e uma Universidade?, Luiz Jean Lauand.206. A Arte da Perfonnance, Jorge Glusberg.207.0 Menino na Literatura Brasileira, Vania Maria Resende.208. Do Anti-Sionismo ao Anti-Semitismo, Leon Poliakov.209. Da Arte e da Linguagem, Alice Brill.210. A Linguagem da SedUrClO,Org. Ciro Marcondes Filho.211.0 Teatro Brasileiro Moderno: 1930-1980, Decio de Almeida Prado.212. Qorpo-Santo: Surrealismo ou'Absurdo?, Eudinyr Fraga.213. Conhecimento, Linguagem, Ideologia, Org. Marcelo Dascal.214. A Voragem do Olhar, Regina Lucia Pontieri.215. Notas para uma Definiriio de Cultura, T. S. Eliot.216. Guimariies Rosa: As Paragens Magicas, Irene J. G. Simoes.217. Musica lfoje 2, Pierre Boulez.218. Borges & Guimariies, Vera Mascarenhas de Campos.219. Perfonnance como Linguagem, Renato Cohen.220. Walter Benjamin: A Hist6ria de umaAmizade, Gershom G. Scholem.221. A Linguagem Liberada, Kathrin Holzermayr Rosenfield.222. CoLOmbiaEspelho America, Edvaldo Pereira Lima.223. Tutameia: Engenho e Arte, Vera Novis.224.Por que Arte?, Gregory Battcock.225. Escritura Urbana, Eduardo de Oliveira Elias.226. Analogia do Dissimilar, Irene A. Machado.227. Jazz ao Vivo, Carlos Calado. ,228. 0 Poetico :Magia e lluminarao, Alvaro Cardoso Gomes.229. Dewey: Filosofia e Experiencia Democratica, Maria Nazare de Ca-

margo Pacheco Amaral.

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230. Grupo Macunafnul: Carnavalizar;iio e Mito, David George.231. 0 Bom Fim do Shtetl: Moacyr Scliar, Gilda Salem Szklo.232. Aldo Bonadei: 0 Percurso de Um Pintor, Lisbeth Rebollo Gon«alves.233. o Bildungsroman Feminino: Quatro Exemplos Brasileiros, Cristina

Ferreira Pinto.234. Romantismo e Messianismo, Michel Lowy.235. Do Simb6lico ao Virtual, Jorge Lucio de Campos.236.0 Jazz como Espetaculo, Carlos Calado.237. A Arte e seu Tempo, Sheila Leirner.238.0 Super-Homem de Massa, Umberto Eco.239. Artigos Musicais, Livio Tragtenberg.240. Borges e a Cabala, Saul SosnowskI.241. Bunraku: Um Teatro de Bonecos, Sakae M. Giroux e Tae Suzuki.242.De Berlim a Jerusalem, Gershom Scholem.243.Arquivos lmperfeitos, Fausto Colombo.

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