Edgar Morin Ciencia´com Conciencia

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    O sculo 20 tem sido um sculo fecundopara a cincia, no qual desafios novos socolocados competncia explicativa das

    teorias, hipteses, premissas e leis fundadoras do pensamento cientfico moderno. A relatividade de Einstein, a microfsica, a termodinmica, a microbiologia tm ampliadoo universo das indagaes dos cientistas,que cada vez mais se vem confrontadoscom novas verdades e com incertezas sobrealgumas verdades h muito estabelecidas.Alm disso, novos campos de aplicao enovos usurios dos conhecimentos geradosnos laboratrios do to restrito universo daacademia suscitam, felizmente, uma necessria reflexo tica no meio acadmico e fora dele.

    Cincia com conscinciaenfrenta o duplo desafio: apontar problemas ticos e morais da cincia contempornea, cujos mltiplos e prodigiosos poderes de manipulao,nascidos das tecnocincias, tm imposto aocientista, ao cidado e humanidade inteirao problema do controle poltico das desco

    bertas cientficas, e a necessidade epistemolgica de um novo paradigma que rompa oslimites do determinismo e da simplificao,e incorpore o acaso, a probabilidade e a incerteza como parmetros necessrios compreenso da realidade.

    Retomando a discusso sobre a cinciamoderna, Edgar Morin critica o paradigmaclssico que se fundava na suposio de quea complexidade do mundo dos fenmenos

    podia e devia resolver-se a partir de princpios simples e leis gerais. Estes princpios,que se revelaram fecundos para o progressotanto da fsica newtoniana como da relatividade einsteiniana e da natureza fsico-qumica de todo organismo, no so mais suficientes para considerar a complexidade dapartcula subatmica, da realidade csmicae dos progressos da microbiologia. Assim,enquanto a cincia clssica dissolvia a complexidade aparente dos fenmenos para revelar a simplicidade oculta das leis imutveis da natureza, hoje a complexidade co

    mea a aparecer, no como inimigo a eliminar, mas como um desafio a ser superado.Para o autor, enfrentar a complexidade do

    real significa: confrontar-se com os paradoxos da ordem/desordem, da parte/todo, dosingular/geral; incorporar o acaso e o particular como componentes da anlise cientfica e colocar-se diante do tempo e do fenmeno, integrando a natureza singular e evolutiva do mundo sua natureza acidental efactual.

    Muitos desses problemas, tratados inicialmente na primeira edio de 1982, foramconsiderados impertinentes, sendo hoje admitidos pela maior parte da academia, comoa idia do caos organizador, o problema paradigmtico da ordem, da desordem e da organizao, da complexidade, da auto-orga-nizao. A contribuio de Morin tambmparticularmente importante para as cinciassociais, vistas por muito tempo como impossibilitadas de desembaraar-se da complexidade dos fenmenos humanos para elevar-se dignidade das cincias naturais, com suas

    leis e princpios concebidos na ordem do determinismo; o que era visto como resduosno-cientficos das cincias humanas: a incerteza, a desordem, a contradio, a pluralidade e a complicao fazem parte hoje deuma problemtica geral do conhecimento.

    Como resposta a todos esses desafios,Morin, objetivamente, nos oferece, em oposio ao paradigma clssico da simplificao, os fundamentos do novo paradigma

    complexo, capaz de ampliar os horizontesda explicao cientfica, tanto nas cinciasfsicas e biolgicas como nas sociais.Cincia com conscincia, portanto, uma referncia obrigatria para todos aqueles quetm se empenhado em participar da aventurada construo do novo esprito cientficoproposto por Bachelard, desde o incio dosculo.

    In Elias de Castro

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    Edgar Morin

    Cinciacom Conscincia

    Edio revista e modificada pelo Autor

    raduo

    Maria D. Alexandree

    Maria Alice Sampaio Dria

    82 EDIO

    BBERTRAND BRASIL

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    Copyright Librairie Arthme Fayard, 1982, para os captulos1.1,1.3,1.'1-5,1.7,1.8,1.9, II.2, II.4, ILS, Il., II.7, II.8, II.9,11.10,11.11.

    Copyright Editions du Seuil. 1990 , prefacio e captulos 1.2,1.6, II . 1 e I I.3 .

    T tu lo original: Science avec Conscience

    Capa: projeto grfico de Simone Villas Boas

    2005

    Impresso no Brasil

    Printed in Brazil

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Morin, Edgar, 1921-M8 5c Cincia com conscincia / Edgar Morin; traduo de Maria8'1 ed. D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dria. - Ed. revista e

    modificada pelo autor - 8" ed. - Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2005.

    350p.

    Traduo de: Science avec conscience

    Inclui bibliografia

    ISBN 85-286-0579-5

    1. Cincia- Filosofia. 2. Teoria do conhecimento. 3. Cincia.I. Ttulo.

    CD D - 50196-1238 CDU - 50:1

    Todos os direitos reservados pe la:

    EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 1 7 1 - 1 " andar - So Cristvo

    20921-380 - Rio de Janeiro - RJ

    T e L (0XX21 ) 258 5- 207 0 - Fax: (0XX21) 25 85 -2087

    No permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer

    meios, sem a prvia autorizao por escrito da Editora.

    Atendemos pelo Reembolso Postal.

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    Sumrio

    Prefcio 7

    PRIMEIRA PAET

    Cincia com Conscincia

    1. Para a cincia 15

    2. O conhecimento do conhecimento cientfico 37

    3. A idia de progresso do conhecimento 95

    4. Epistemologia da tecnologia 107

    5. A responsabidade do pesquisador perante a

    sociedade e o homem 117

    6. Teses sobre a cincia e a tica 125

    7. A antiga e a nova transdisciplinaridade 135

    8. O erro de subestimar o erro 1419. Para uma razo aberta 157

    SEGUNDA PARTE

    Para o Pensamento Complexo

    1. O desafio da complexidade 175

    2. Ordem, desordem, complexidade 195

    3. A inseparabilidade da ordem e da desordem 207

    4. O retorno do acontecimento 2335. O sistema: paradigma ou/e teoria? 257

    6. Pode-se conceber uma cincia da autonomia? 277

    7. A complexidade biolgica ou auto-organizao 291

    8. Si eautos 311

    9.Computo ergo sum(a noo de sujeito) 323

    10. Os mandamentos da complexidade 329

    11. Teoriae mtodo 335

    Referncias 343

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    Prefcio

    Para esta nova edio, o plano do livro foi modificado, pas

    sando a comportar duas partes, a primeira denominada

    Cincia com Conscincia, e a segunda, Para o Pensamento

    Complexo.Alguns textos foram suprimidos e substituidos poroutros, mais recentes, sobre os mesmos temas e dentro do

    mesmo esprito. Os textos novos so, na primeira parte, O

    conhecimento do conhecimento cientfico e Teses sobre a

    ciencia e a tica;na segunda parte, O desafio da complexi

    dadeeA inseparabilidade da ordem e da desordem.

    Suprimi o prefacio primeira edio, em que fiz questo de

    mostrar, com suporte de citaes, que j havia enunciado,

    entre 1958 e 1968, a maior parte de minhas idias sobre a

    cincia e a complexidade. Ser contestado, incompreendido,marginalizado causou-me mgoa profunda que, se no foi

    consolada, adormeceu com o tempo.

    Algumas idias lanadas neste livro, que foram consideradas

    impertinentes, so atualmente admitidas por um grande nme

    ro de cientistas, como a do caos organizador. Se a reforma do

    pensamento cientfico no chegou ainda ao ncleo paradigmti

    co em que Ordem, Desordem e Organizao constituem as

    noes diretrizes que deixam de se excluir e se tornam dialogi-

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    camente inseparveis (permanecendo, entretanto, antagnicas),

    se a noo de caos ainda no concebida como fonte indistinta

    de ordem, de desordem e de organizao, se a identidade com

    plexa de caos e cosmo, que indiquei no termocaosmo,ainda

    no foi concebida, s nos resta comear a nos engajar, aqui e

    ali, no caminho que conduz reforma do pensamento.

    Da mesma forma, o termo complexidade j no mais perse

    guido na conscincia cientfica. A cincia clssica dissolvia acomplexidade aparente dos fenmenos para revelar a simplici

    dade oculta das imutveis Leis da Natureza Atualmente, a com

    plexidade comea a aparecer no como inimigo a ser elirninado,

    mas como desafio a ser enfatizado. A complexidade permanece

    ainda, com certeza, uma noo ampla, leve, que guarda a incapa

    cidade de definir e de determinar. por isso que se trata agora

    de reconhecer os traos constitutivos do complexo, que no

    contm apenas diversidade, desordem, aleatoriedade, mas com

    porta, evidentemente tambm, suas leis, sua ordem, sua organizao. Trata-se, enfim e sobretudo, de transformar o conheci

    mento da complexidade em pensamento da complexidade.

    No entrarei aqui nesse difcil reconhecimento e definio

    da complexidade, a que se consagra a segunda parte deste

    livro. S quero indicar que, mesmo quando tinha por objetivo

    nico revelar as leis simples que governam o universo e a

    matria de que ele constitudo, a cincia apresentava consti

    tuio complexa. Ela s vivia em e por uma dialgica de com

    plementaridade e de antagonismo entre empirismo e raciona

    lismo, imaginao e verificao. Desenvolveu-se apenas em e

    pelo conflito das idias e das teorias no meio de uma comuni

    dade/sociedade (comunidade porque unida em seus ideais

    comuns e com a regra verificadora do jogo aceita por seus

    membros; sociedade porque dividida por antagonismos de

    todas as ordens, a compreendidas pessoas e vaidades).

    A cincia igualmente complexa porque inseparvel de

    seu contexto histrico e social. A cincia moderna s pde

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    emergir na efervescncia cultural da Renascena, na eferves

    cncia econmica, poltica e social do Ocidente europeu dos

    sculos 16 e 17. Desde ento, ela se associou progressivamen

    te tcnica, tornando-se tecnocincia, e progressivamente se

    introduziu no corao das universidades, das sociedades, das

    empresas, dos Estados, transformando-os e se deixando

    transformar, por sua vez, pelo que ela transformava. A cincia

    no cientfica Sua realidade multidimensional. Os efeitosda cincia no so simples nem para o melhor, nem para o

    pior. Eles so profundamente ambivalentes.

    Assim, a cincia , intrnseca, histrica, sociolgica e etica

    mente, complexa essa complexidade especfica que preci

    so reconhecer. A cincia tem necessidade no apenas de um

    pensamento apto a considerar a complexidade do real, mas

    desse mesmo pensamento para considerar sua prpria comple

    xidade e a complexidade das questes que ela levanta para a

    humanidade. dessa complexidade que se afastam os cientistas no apenas burocratizados, mas formados segundo os

    modelos clssicos do pensamento. Fechados em e por sua dis

    ciplina, eles se trancafiam em seu saber parcial, sem duvidar de

    que s o podem justificar pela idia geral a mais abstrata, aque

    la de que preciso desconfiar das idias gerais! Eles no

    podem conceber que as disciplinas se possam coordenar em

    torno de uma concepo organizadora comum, como foi o

    caso das cincias da Terra, ou se associar numa disciplina glo

    balizante de um tipo novo, como o caso, h muito tempo, daecologia, ou ainda se entrefecundar numa questo ao mesmo

    tempo crucial e global, como a questo cosmolgica, em que as

    diversas cincias fsicas, utilizadas pela astronomia, concorrem

    para conceber a origem e a natureza de nosso universo.

    Esses mesmos espritos no querem se dar conta de que,

    contrariamente ao dogma clssico de separao entre cincia

    e filosofia as cincias avanadas deste sculo todas encontra

    ram e reacenderam as questes filosficas fundamentais (o

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    !

    i

    que o mundo? a natureza? a vida? o homem? a realidade?) e

    que os maiores cientistas desde Einstein, Bohr e Heisenberg

    transformaram-se em filsofos selvagens.

    de esperar que as transformaes que comearam a

    arruinar a concepo clssica de cincia vo continuar em

    verdadeira metamorfose. O conceito de cincia herdado do

    sculo passado no , como observou Bronowski, nem abso

    luto, nem eterno. Enquanto os fsicos acreditavam, em 1900,

    que sua cincia suprema estivesse quase completa, essa

    mesma fsica comeava uma nova aventura, arruinando seus

    dogmas. A pr-histria das cincias no terminou no sculo

    17. A idade pr-histrica da cincia ainda no est morta no

    fim do sculo 20. Mas em toda parte, cada vez mais, tende-se

    a ultrapassar, abrir, englobar as disciplinas, e elas aparecero,

    pela tica da cincia futura, como um momento de sua pr-

    histria Isso no significa que as distines, as especializaes, as competncias devam dissolver-se. Isso significa que

    um princpio federador e organizador do saber deve impor-se.

    No haver transformao sem reforma do pensamento, ou

    seja, revoluo nas estruturas do prprio pensamento. O pen

    samento deve tomar-se complexo.

    Cincia com conscincia A palavra conscincia tem aqui

    dois sentidos. O primeiro foi formulado por Rabelais em seu

    preceito: "Cincia sem conscincia apenas runa da alma." Aconscincia de que ele fala , com certeza, a conscincia

    moral. O preceito rabelaisiano pr-cientfico, uma vez que a

    cincia moderna s se pde desenvolver em se livrando de

    qualquer julgamento de valor, obedecendo a uma nica tica,

    a do conhecimento. Mas ele se torna pericientfico, no sentido

    de que mltiplos e prodigiosos poderes de manipulaes e

    destruies, originrios das tecnocincias contemporneas,

    levantam, apesar de tudo, para o cientista, o cidado e a

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    E.M.. janeiro de 1990

    humanidade inteira a questo do controle tico e poltico da

    atividade cientfica

    0 segundo sentido do palavra conscincia intelectual.

    Trata-se da aptido auto-reflexiva que a qualidade-chave da

    conscincia. O pensamento cientfico ainda incapaz de se

    pensar, de pensar sua prpria ambivalncia e sua prpria

    aventura. A cincia deve reatar com a reflexo filosfica,

    como a filosofia, cujos moinhos giram vazios por no moer os

    gros dos conhecimentos empricos, deve reatar com as cin

    cias. A cincia deve reatar com a conscincia poltica e tica

    O que um conhecimento que no se pode partilhar, que per

    manece esotrico e fragmentado, que no se sabe vulgarizar a

    no ser em se degradando, que comanda o futuro das socieda

    des sem se comandar, que condena os cidados crescente

    ignorncia dos problemas de seu destino? Como indiquei em

    meu prefcio de abril de 1982: "Uma cincia emprica privada

    de reflexo e uma filosofia puramente especulativa so insufi

    cientes, conscincia sem cincia e cincia sem conscincia

    so radicalmente mutiladas e mutilantes..."

    Atualmente, nos dois sentidos do termo conscincia, cin

    cia sem conscincia apenas a runa do homem. Os dois sen

    tidos da palavra conscincia devem entreassociar-se e se

    associar cincia, que os deveria englobar: da o sentido do

    ttulo Cincia com Conscincia.

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    Para a cincia

    I. A CINCIA-PROBLEMA

    H trs sculos, o conhecimento cientfico no faz mais do

    que provar suas virtudes de verificao e de descoberta em

    relao a todos os outros modos de conhecimento. o

    conhecimento vivo que conduz a grande aventura da desco

    berta do universo, da vida, do homem. Ele trouxe, e de forma

    singular neste sculo, fabuloso progresso ao nosso saber.

    Hoje, podemos medir, pesar, analisar o Sol, avaliar o nmero

    de partculas que constituem nosso universo, decifrar a linguagem gentica que informa e programa toda organizao

    viva. Esse conhecimento permite extrema preciso em todos

    os domnios da ao, incluindo a conduo de naves espa

    ciais fora da rbita terrestre.

    Correlativamente, evidente que o conhecimento cientfi

    co determinou progressos tcnicos inditos, tais como a

    domesticao da energia nuclear e os princpios da engenha

    ria gentica. A cincia , portanto, elucidativa (resolve enig

    mas, dissipa mistrios), enriquecedora (permite satisfazer

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    necessidades sociais e, assim, desabrochar a civilizao); ,

    de fato, e justamente, conquistadora, triunfante.

    E, no entanto, essa cincia elucidativa, enriquecedora, con

    quistadora e triunfante, apresenta-nos, cada vez mais, proble

    mas graves que se referem ao conhecimento que produz,

    ao que determina, sociedade que transforma. Essa cincia

    libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terrveis de

    subjugao. Esse conhecimento vivo o mesmo que produziua ameaa do aniquilamento da humanidade. Para conceber e

    compreender esse problema, h que acabar com a tola alter

    nativa da cincia "boa", que s traz benefcios, ou da cincia

    "m", que s traz prejuzos. Pelo contrrio, h que, desde a

    partida, dispor de pensamento capaz de conceber e de com

    preender a ambivalncia, isto , a complexidade intrnseca

    que se encontra no cerne da cincia.

    O lado mau

    O desenvolvimento cientfico comporta um certo nmero

    de traos "negativos" que so bem conhecidos, mas que, mui

    tas vezes, s aparecem como inconvenientes secundrios ou

    subprodutos menores.

    1) O desenvolvimento disciplinar das cincias no traz uni

    camente as vantagens da diviso do trabalho (isto , a contri

    buio das partes especializadas para a coerncia de um todo

    organizador), mas tambm os inconvenientes da superespe-

    cializao: enclausuramento ou fragmentao do saber.

    2) Constituiu-se grande desligamento das cincias da natu

    reza daquilo a que se chama prematuramente de cincias do

    homem. De fato, o ponto de vista das cincias da natureza

    exclui o esprito e a cultura que produzem essas mesmas

    cincias, e no chegamos a pensar o estatuto social e histri-

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    Cincia com Conscincia 17

    co das cincias naturais. Do ponto de vista das cincias do

    homem, somos incapazes de nos pensar, ns, seres humanos

    dotados de esprito e de conscincia, enquanto seres vivos

    biologicamente constitudos.

    3) As cincias antropossociais adquirem todos os vcios da

    especializao sem nenhuma de suas vantagens. Os conceitos

    molares de homem, de indivduo, de sociedade, que perpassam vrias disciplinas, so de fato triturados ou dilacerados

    entre elas, sem poder ser reconstitudos pelas tentativas inter

    disciplinares. Tambm alguns Diafoirus chegaram a acreditar

    que sua impotncia em dar algum sentido a esses conceitos

    provava que as idias de homem, de indivduo e de sociedade

    eram ingnuas, ilusrias ou mistificadoras.

    4)A tendncia para a fragmentao, para a disjuno, para

    a esoterizao do saber cientfico tem como conseqncia atendncia para o anonimato. Parece que nos aproximamos de

    uma temvel revoluo na histria do saber, em que ele, dei

    xando de ser pensado, meditado, refletido e discutido por

    seres humanos, integrado na investigao individual de

    conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser

    acumulado em bancos de dados, para ser, depois, computado

    por instncias manipuladoras, o Estado em primeiro lugar.

    No devemos eliminar a hiptese de um neo-obscurantismo

    generalizado, produzido pelo mesmo movimento das especiali

    zaes, no qual o prprio especialista torna-se ignorante de

    tudo aquilo que no concerne a sua disciplina e o no-especia-

    lista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir

    sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado

    aos cientistas, que no tm nem tempo, nem meios concei

    tuais para tanto. Situao paradoxal, em que o desenvolvimen

    to do conhecimento instaura a resignao ignorncia e o da

    cincia significa o crescimento da inconscincia

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    18 Cincia com Conscincia

    5) Enfim, sabemos cada vez mais que o progresso cientfico

    produz potencialidades tanto subjugadoras ou mortais quanto

    benficas. Desde a j longnqua Hiroxima, sabemos que a ener

    gia atmica significa potencialidade suicida para a humanida

    de; sabemos que, mesmo pacfica, ela comporta perigos no s

    biolgicos, mas, tambm e sobretudo, sociais e polticos. Pres

    sentimos que a engenharia gentica tanto pode industrializar a

    vida como biologizar a industria Adivinhamos que a elucidao dos processos bioqumicos do crebro permitir interven

    es em nossa afetividade, nossa inteligncia, nosso esprito.

    Mais ainda os poderes criados pela atividade cientfica esca

    pam totalmente aos prprios cientistas. Esse poder, em miga

    lhas no nvel da investigao, encontra-se reconcentrado no

    nvel dos poderes econmicos e polticos. De certo modo, os

    cientistas produzem um poder sobre o qual no tm poder, mas

    que enfatiza instncias j todo-poderosas, capazes de utilizar

    completamente as possibilidades de manipulao e de destruio provenientes do prprio desenvolvimento da cincia

    Assim, h:

    progresso indito dos conhecimentos cientficos, parale

    lo ao progresso mltiplo da ignorncia;

    progresso dos aspectos benficos da cincia, paralelo ao

    progresso de seus aspectos nocivos ou mortferos;

    progresso ampliado dos poderes da cincia, paralelo

    impotncia ampliada dos cientistas a respeito desses mesmos

    poderes.

    Na maior parte das vezes, a conscincia dessa situao

    chega partida ao esprito do investigador cientfico que, ao

    mesmo tempo, reconhece essa situao e dela se protege, sob

    olhar trptico em que ficam afastadas as trs noes: 1) cin

    cia (pura, nobre, desinteressada); 2) tcnica (lngua de Esopo

    que serve para o melhor e para o pior); 3) poltica (m e noci-

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    va, pervertora do uso da cincia). Ora, o "lado mau" da cin

    cia no poderia ser pura e simplesmente despejado sobre os

    polticos, a sociedade, o capitalismo, a burguesia, o totalita

    rismo. Digamos at que a acusao do poltico pelo cientista

    vem a ser, para o investigador, a maneira de iludir a tomada

    de conscincia das inter-retroaes de cincia, sociedade, tc

    nica e poltica.

    Uma era histrica

    Vivemos uma era histrica em que os desenvolvimentos

    cientficos, tcnicos e sociolgicos esto cada vez mais em

    inter-retroaes estreitas e mltiplas.

    A experimentao cientfica constitui por si mesma uma tcni

    ca de manipulao ("uma manip") e o desenvolvimento das cin

    cias experimentais desenvolve os poderes manipuladores da

    cincia sobre as coisas fsicas e os seres vivos. Este favorece odesenvolvimento das tcnicas, que remete a novos modos de ex

    perimentao e de observao, como os aceleradores de partcu

    las e os radiotelescopios que permitem novos desenvolvimentos

    do conhecimento cientfico. Assim, a potencialidade de manipu

    lao no est fora da cincia, mas no carter, que se tornou inse

    parvel, do processo cientfico tcnico. O mtodo experimen

    tal um mtodo de manipulao, que necessita cada vez mais de

    tcnicas, que permitem cada vez mais manipulaes.

    Em funo desse processo, a situao e o papel da cinciana sociedade modificaram-se profundamente desde o sculo

    17. Na origem, os investigadores eram amadores no sentido

    primitivo do termo: eram ao mesmo tempo filsofos e cientis

    tas. A atividade cientfica era sociologicamente marginal,

    perifrica. Hoje, a cincia tornou-se poderosa e macia insti

    tuio no centro da sociedade, subvencionada, alimentada,

    controlada pelos poderes econmicos e estatais. Assim, esta

    mos num processo inter-retroativo.

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    cincia tcnica -* sociedade -Estado,t 1 1 I

    A tcnica produzida pelas cincias transforma a sociedade,

    mas tambm, retroativamente, a sociedade tecnologizada trans

    forma a prpria cincia Os interesses econmicos, capitalistas,

    o interesse do Estado desempenham seu papel ativo nesse cir

    cuito de acordo com suas finalidades, seus programas, suas

    subvenes. A instituio cientfica suporta as coaes tecno-

    burocrticas prprias dos grandes aparelhos econmicos ou estatais, mas nem o Estado, nem a indstria, nem o capital so

    guiados pelo esprito cientfico: utilizam os poderes que a inves

    tigao cientfica lhes d

    Uma dupla tarefa cega

    Essas indicaes muito breves so suficientes para o meu

    propsito: uma vez que, doravante, a cincia est no mago da

    sociedade e,embora bastante distinta dessa sociedade, inseparvel dela,isso significa que todasas cincias, incluindo as

    fsicas e biolgicas, so sociais. Mas no devemos esquecer que

    tudo aquilo que antropossocial tem uma origem, um enrai

    zamento e um componente biofsico.E aqui que se encontra a

    dupla tarefa cega a cincia natural no tem nenhum meio para

    concebeiHsecomo realidade social; a cincia antropossocial no

    tem nenhum meio paraconceber-se no seu enraizamentobiofsi

    co; a cincia no tem os meios para conceber seu papel social e

    sua natureza prpria na sociedade. Mais profundamente: a cincia no controla sua prpria estrutura de pensamento. O conhe

    cimento cientfico um conhecimento que no se conhece. Essa

    cincia, que desenvolveu metodologias to surpreendentes e

    hbeis para apreender todos os objetos a ela externos, no dis

    pe de nenhum mtodo para se conhecer e se pensar.

    Husserl, h quase cinqenta anos, tinha diagnosticado a tare

    fa cega a eliminao por princpio do sujeito observador, expe

    rimentador e concebedor da observao, da experimentao e

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    Cincia com Conscincia 21

    da concepo eliminou o ator real, o cientista, homem, intelec

    tual, universitrio, esprito includo numa cultura, numa socie

    dade, numa histria. Podemos dizer at que o retorno reflexivo

    do sujeito cientfico sobre si mesmo cientificamente impos

    svel, porque o mtodo cientfico se baseou na disjuno do

    sujeito e do objeto, e o sujeito foi remetido filosofia e moral.

    certo que existe sempre a possibilidade, para um cientista, de

    refletir sobre sua cincia, mas uma reflexo extra ou meta-

    cientfica que no dispe das virtudes verificadoras da cincia

    Assim, ningum est mais desarmado do que o cientista

    para pensar sua cincia. A questo "o que a cincia?" a

    nica que ainda no tem nenhuma resposta cientfica por

    isso que, mais do que nunca, se impe a necessidade do auto-

    conhecimento do conhecimento cientfico, que deve fazer

    parte de toda poltica da cincia, como da disciplina mental

    do cientista. O pensamento de Adorno e de Habermas

    recorda-nos incessantemente que a enorme massa do saber

    quantificvel e tecnicamente utilizvel no passa de veneno

    se for privado da fora libertadora da reflexo.

    II. A VERDADE DA CINCIA

    O esprito cientfico incapaz de se pensar de tanto crer que

    o conhecimento cientfico o reflexo do real. Esse conheci

    mento, afinal, no traz em si a prova emprica (dados verifica

    dos por diferentes obsercaes-experimentaes) e a provalgica (coerncia das teorias)? A partir da, a verdade objetiva

    da cincia escapa a todo olhar cientfico, visto que ela esse

    prprio olhar. O que elucidativo no precisa ser elucidado.

    Ora, os diversos trabalhos, em muitos pontos antagnicos,

    de Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, entre outros, tm

    como trao comum a demonstrao de que as teorias cientfi

    cas, como os icebergs,tm enorme parte imersa no cientfi

    ca, mas indispensvel ao desenvolvimento da cincia A se

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    22 Cincia com Conscincia

    situa a zona cega da cincia que acredita ser a teoria reflexo

    do real. No prprio da cientificidade refletir o real, mas

    traduzi-lo em teorias mutveis e refutveis.

    Com efeito, as teorias cientficas do forma, ordem e orga

    nizao aos dados verificados em que se baseiam e, por isso,

    so sistemas de idias, construes do esprito que se aplicam

    aos dados para lhes serem adequadas. Mas, incessantemente,

    meios de observao ou de experimentao novos, ou uma

    nova ateno, fazem surgir dados desconhecidos, invisveis.

    As teorias, ento, deixam de ser adequadas e, se no for pos

    svel ampli-las, necessrio inventar outras, novas. De fato, "a

    cincia mais mutvel do que a teologia", como observava

    Whitehead. Com efeito, a teologia tem grande estabilidade por

    que se baseia num mundo sobrenatural, inverificvel, enquanto

    o que se baseia no mundo natural sempre refutvel.

    A evoluo do conhecimento cientfico no unicamente

    de crescimento e de extenso do saber, mas tambm de trans

    formaes, de rupturas, de passagem de uma teoria paraoutra. As teorias cientficas so mortais e so mortais por

    serem cientficas.A viso que Popper registra com relao

    evoluo da cincia vem a ser a de uma seleo natural em

    que as teorias resistem durante algum tempo no por serem

    verdadeiras, mas por serem as mais bem adaptadas ao estado

    contemporneo dos conhecimentos.

    Kuhn traz outra idia, no menos importante: que se pro

    duzem transformaes revolucionrias na evoluo cientfica,

    em que um paradigma, princpio maior que controla as visesdo mundo, desaba para dar lugar a um novo paradigma.

    Julgava-se que o princpio de organizao das teorias cientfi

    cas era pura e simplesmente lgico. Deve ver-se, com Kuhn,

    que existem, no interior e acima das teorias, inconscientes e

    invisveis, alguns princpios fundamentais que controlam e

    comandam, de forma oculta, a organizao do conhecimento

    cientfico e a prpria utilizao da lgica

    A partir da, podemos compreender que a cincia seja "ver-

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    Cincia com Conscincia. 23

    dadeira" nos seus dados (verificados, verificveis), sem que

    por isso suas teorias sejam "verdadeiras". Ento, o que faz que

    uma teoria seja cientfica, se no for a sua "verdade"? Popper

    trouxe a idia capital que permite distinguir a teoria cientfica

    da doutrina (no cientfica): uma teoria cientfica quando

    aceita que sua falsidade possa ser eventualmente demonstrada

    Uma doutrina, um dogma encontram neles mesmos a autoveri-

    ficao incessante (referncia ao pensamento sacralizado dosfundadores, certeza de que a tese est definitivamente prova

    da). O dogma inatacvel pela experincia A teoria cientfica

    biodegradvel. O que Popper no viu que a mesma teoria

    tanto pode ser cientfica (aceitando o jogo da contestao e da

    refutao, isto , aceitando sua morte eventual), quanto doutri

    na auto-suficiente: o caso do marxismo e do freudismo.

    A partir da, o conhecimento progride, no plano emprico,

    por acrescentamento das "verdades" e, no plano terico, por

    eliminao dos erros. O jogo da cincia no o da posse e doalargamento da verdade, mas aquele em que o combate pela

    verdade se confunde com a luta contra o erro.

    A incerteza/certeza

    O conhecimento cientfico certo, na medida em que se

    baseia em dados verificados e est apto a fornecer previses

    concretas. O progresso das certezas cientficas, entretanto,

    no caminha na direo de uma grande certeza.

    certo que se julgou durante muito tempo que o universo

    fosse uma mquina determinista impecvel e totalmente

    conhecvel; alguns ainda crem que uma equao-chave reve

    laria seu segredo. De fato, o enriquecimento do nosso conheci

    mento sobre o universo desemboca no mistrio de sua origem,

    seu ser, seu futuro.Anatureza do tecido profundo da nossa

    realidade fsica esquiva-se no mesmo movimento em quea

    entrevemos. Nossa lgica agita-se ou desnorteia-se diante do

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    24 Cincia com Conscincia

    infinitamente pequeno e do irtfinitamente grande, do vazio fsi

    co e das energias muito altas. As extraordinrias descobertas

    da organizao simultaneamente molecular e informacional

    da mquina viva conduzem-nos no ao conhecimento final da

    vida, mas s portas do problema da auto-organizao.

    Podemos at dizer que, de Galileu a Einstein, de Laplace a

    Hubble, de Newton a Bohr, perdemos o trono de segurana

    que colocava nosso esprito no centro do universo: aprende

    mos que somos, ns cidados do planeta Terra, os suburbanos

    de um Sol perifrico, ele prprio exilado no entorno de uma

    galxia tambm perifrica de um universo mil vezes mais mis

    terioso do que se teria podido imaginar h um sculo. O pro

    gresso das certezas cientficas produz, portanto, o progresso

    da incerteza, uma incerteza "boa", entretanto, que nos liberta

    de uma iluso ingnua e nos desperta de um sonho lendrio:

    uma ignorncia que se reconhece como ignorncia. E, assim,

    tanto as ignorncias como os conhecimentos provenientes do

    progresso cientfico trazem um esclarecimento insubstituvel

    aos problemas fundamentais ditos filosficos.

    A regra do jogo

    Assim, a cincia no somente a acumulao de verdades

    verdadeiras. Digamos mais, continuando a acompanhar

    Poppen um campo sempre aberto onde se combatem no s

    as teorias, mas tambm os princpios de explicao, isto , as

    vises do mundo e os postulados metafsicos. Mas esse comba

    te tem e mantm suas regras de jogo: o respeito aos dados, por

    um lado; a obedincia a critrios de coerncia, por outro. a

    obedincia a essa regra por parte de debatentes-combatentes

    que aceitam sem equvoco essa regra que constitui a superiori

    dade da cincia sobre qualquer outra forma de conhecimento.

    Quer dizer, ao mesmo tempo, que seria grosseiro sonhar com

    uma cincia purgada de toda a ideologia e onde no houvesse

    mais do que uma nica viso do mundo ou teoria "verdadeira".

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    Cincia com Conscincia 25

    De fato, o conflito das ideologias, dos pressupostos metafsicos

    (conscientes ou no) condiosine qua nonda vitalidade da

    cincia. Aqui se opera uma necessria desmitificao: o cientis

    ta no um homem superior, ou desinteressado em relao aos

    seus concidados; tem a mesma pequenez e a mesma propen

    so para o erro. O jogo a que se dedica, entretanto, o jogo cient

    fico da verdade e do erro, esse, sim, superior num universo

    ideolgico, religioso, poltico, onde esse jogo bloqueado oufalseado. O fsico no mais inteligente do que o socilogo, que

    ainda no consegue fazer da sociologia uma cincia. que, em

    sociologia, muito mais difcil estabelecer a regra do jogo: a

    verificao experimental quase impossvel, a subjetividade

    est sempre comprometida A idia de que a virtude capital da

    cincia reside nas regras prprias do seu jogo da verdade e do

    erro mostra-nos queaquilo que deve ser absolutamente salva

    guardado como condio fundamental da prpria vida da

    cincia a pluralidade conflitual no seio de um jogo que obedece a regras empricas lgicas.

    Assim, vemos que, correspondendo a dados de carter

    objetivo, o conhecimento cientfico no o reflexo das leis da

    natureza Traz com ele um universo de teorias, de idias, de

    paradigmas, o que nos remete, por um lado, s condies

    bioantropolgicas do conhecimento (porque no h esprito

    sem crebro) e, por outro lado, ao enraizamento cultural,

    social, histrico das teorias. As teorias cientficas surgem dos

    espritos humanos no seio de uma culturahic et nunc.

    O conhecimento cientfico no se poderia isolar de suas con

    dies de elaborao, mas tambm no poderia ser a elasredu

    zido. A cincia no poderia ser considerada pura e simples

    "ideologia" social, porque estabelece incessante dilogo no

    campo da verificao emprica com o mundo dos fenmenos.

    necessrio, portanto, que toda cincia se interrogue

    sobre suas estruturas ideolgicas e seu enraizamento socio-

    cultural. Aqui, damo-nos conta de que nos falta uma cincia

    capital, a cincia das coisas do esprito ou noologia, capaz de

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    26 Cincia com Conscincia

    conceber como e em que condies culturais as idias se

    agrupam, se encadeiam, se ajustam, constituem sistemas que

    se auto-regulam, se autodefendem, se automultiplicam, se

    autopropagam. Falta-nos uma sociologia do conhecimento

    cientfico que seja no s poderosa, mas tambm mais com

    plexa do que a cincia que examina

    Isso significa queestamos na aurora de um esforo de fle

    go eprofundo, que necessita de mltiplos desenvolvimentosnovos, afim de permitir que a atividade cientfica disponha

    dos meios da reflexidade, isto , da auto-interrogao.

    A necessidade de uma cincia da cincia j foi formulada mui

    tas vezes. Mas h que se dizer, de acordo com as demonstraes

    de Tarsky e Godel, que ela seria em relao cincia atual, uma

    "metacincia", dotada de um metaponto de vista mais rico, mais

    amplo, que considerasse cientificamente apropria cincia

    Essa metacincia no poderia ser a cincia definitiva.

    Abrir-se-ia para novos meta-horizontes. E isso que nos revela outro aspecto da "verdade" da cincia:A cincia , e conti

    nua a ser, uma aventura.A verdade da cincia no est uni

    camente na capitalizao das verdades adquiridas, na verifi

    cao das teorias conhecidas, mas no carter aberto da aven

    tura que permite, melhor dizendo, que hoje exige a contesta

    o das suas prprias estruturas de pensamento. Bronovski

    dizia que o conceito da cincia no nem absoluto, nem eter

    no. Talvez estejamos num momento crtico em que o prprio

    conceito de cincia se esteja modificando.

    III. VIVEMOS UMA REVOLUO CIENTFICA?

    O conhecimento cientfico est em renovao desde o come

    o deste sculo. Podemos at perguntar-nos se as grandes

    transformaes que afetaram as cincias fsicas da microf-

    sica astrofsica , as cincias biolgicas da gentica e da

    biologia molecular etologia , a antropologia (a perda do pri-

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    Cincia com Conscincia 27

    vilgio heliocntrico no qual a racionalidade ocidental se via

    como juiz e medida de toda a cultura e civilizao) no prepa

    ram uma transformao no prprio modo de pensar o real.

    Podemos perguntar, em suma, se em todos os horizontes cien

    tficos no se elabora, de modo ainda disperso, confuso, incoe

    rente, embrionrio, o que Kuhn denomina revoluo cientfica,

    a qual, quando exemplar e fundamental, arrasta uma mudan

    a de paradigmas (isto , dos princpios de associao/excluso fundamentais que comandam todo pensamento e toda teo

    ria) e, por isso, uma mudana na prpria viso do mundo.

    Tentemos indicar em que sentido cremos entrever a revolu

    o de pensamento que se esboa Os princpios de explicao

    "clssicos'' que dominavam antes de ser perturbados pelas trans

    formaes que evoquei postulavam que a aparente complexida

    de dos fenmenos podia explicar-se a partir de alguns princpios

    simples, que a espantosa diversidade dos seres e das coisas

    podia explicarse a partir de alguns elementos simples. A simplificao aplicava-se a esses fenmenos por separao e reduo.

    A primeira isola os objetos no s uns dos outros, mas tambm

    do seu ambiente e do seu observador. no mesmo movimento

    que o pensamento separatista isola as disciplinas umas das

    outras e insulariza a cincia na sociedade. A reduo unifica

    aquilo que diverso ou mltiplo, quer quilo que elementar,

    quer quilo que quantificvel. Assim, o pensamento redutor

    atribui a "verdadeira" realidade no s totalidades, mas aos ele

    mentos; no s qualidades, mas s medidas; no aos seres e aosentes, mas aos enunciados formalizveis e matematizveis.

    A alternativa mutilante

    Assim comandado por separao e reduo, o pensamento

    simplificador no pode escapar alternativa mutilante quan

    do considera a relao entre fsica e biologia, biologia e antro

    pologia: ou bem separa, e foi o caso do "vitalismo", que se

    recusava a considerar a organizao fsico-qumica do ser

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    28 Cincia com Comcincia

    vivo, como o caso do antropologismo, que se recusa a consi

    derar a natureza biolgica do homem; ou bem reduz a com

    plexidade viva simplicidade das interaes fsico-qumicas,

    como o caso das vises que fazem obedecer tudo quanto

    humano simples hereditariedade gentica ou assimilam as

    sociedades humanas a organismos vivos.

    O princpio de simplificao, que animou as cincias natu

    rais, conduziu s mais admirveis descobertas, mas so asmesmas descobertas que, finalmente, hoje arrunam nossa

    viso simplificadora. Com efeito, foi animada pela obsesso

    do elemento de base do universo que a investigao fsica

    descobriu a molcula, depois o tomo, depois a partcula. De

    igual modo, foi a obsesso molecular que suscitou as magnfi

    cas descobertas que esclareceram os funcionamentos e pro

    cessos da maquinaria viva. Mas as cincias fsicas, procuran

    do o elemento simples e a lei simples do universo, descobri

    ram a inaudita complexidade de um tecido microfsico ecomeam a entrever a fabulosa complexidade do cosmo.

    Elucidando a base molecular do cdigo gentico, a biologia

    comea a descobrir o problema terico complexo da auto-

    organizao viva, cujos princpios diferem dos das nossas

    mquinas artificiais mais aperfeioadas.

    A crise do princpio clssico de explicao

    O princpio de explicao da cincia clssica exclua aaleatoriedade (aparncia devida nossa ignorncia) para ape

    nas conceber um universo estrita e totalmente determinista

    Mas, a partir do sculo 19, a noo de calor introduz a desor

    dem e a disperso no mago da fsica, e a estatstica permite

    associar o acaso (no nvel dos indivduos) e a necessidade

    (no nvel das populaes). Hoje, em todas as frentes, as cin

    cias trabalham cada vez mais com a aleatoriedade, sobretudo

    para compreender tudo aquilo que evolutivo, e consideram

    um universo em que se combinam o acaso e a necessidade.

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    Cincia com Consncia 29

    O princpio de explicao da cincia clssica no concebia a

    organizao enquanto tal. Reconheciam-se organizaes (sistema

    solar, organismos vivos), mas no o problema da organizao.

    Hoje, o estruturalismo, a ciberntica, a teoria dos sistemas opera

    ram, cada um sua maneira, avanos para uma teoria da organi

    zao, e esta comea a permitir-nos entrever, mais alm, a teoria

    da auto-organizao, necessria para conceber os seres vivos.

    O princpio de expcao da cincia clssica via no aparecimento de uma contradio o sinal de um erro de pensamen

    to e supunha que o universo obedecia lgica aristotlica. As

    cincias modernas reconhecem e enfrentam as contradies

    quando os dados apelam, de forma coerente e lgica, asso

    ciao de duas idias contrrias para conceber o mesmo

    fenmeno (a partcula que se manifesta quer como onda, quer

    como corpsculo, por exemplo).

    O princpio de explicao da cincia clssica eliminava o

    observador da observao. A microfsica, a teoria da informao, a teoria dos sistemas reintroduzem o observador na

    observao. A sociologia e a antropologia apelam necessi

    dade de se situarhic et nunc,isto , de tomar conscincia da

    determinao etnosociocntrica que hipoteca toda a concep

    o de sociedade, cultura, homem.

    O socilogo deve perguntar-se incessantemente como pode

    conceber uma sociedade de que faz parte. J o antroplogo

    contemporneo indaga a si prprio:Como que eu, portador

    inconsciente dos valores da minha cultura, posso julgar

    uma cultura dita primitiva ou arcaica? Que valem os nos

    sos critrios de racionalidade?A partir da, comea a neces

    sria auto-relativizao do observador, que pergunta "quem

    sou eu?", "onde estou eu?" O eu que surge aqui o eu modes

    to que descobre ser o seu ponto de vista, necessariamente,

    parcial e relativo. Assim, vemos que o prprio progresso do

    conhecimento cientfico exige que o observador se inclua em

    sua observao, o que concebe em sua concepo; em suma,

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    30 Cincia com Conscincia

    que o sujeito se reintroduza de forma autocrtica e auto-

    reflexiva em seu conhecimento dos objetos.

    Para um princpio de complexidade

    De toda parte surge a necessidade de um princpio de explicar

    o mais rico do que o princpio de simplificao (separao/ re

    duo), que podemos denominar princpio de complexidade.

    certo que ele se baseia na necessidade de distinguir e de analisar,

    como o precedente, mas, alm disso, procura estabelecer a co

    municao entre aquilo que distinguido: o objeto e o ambiente,

    a coisa observada e o seu observador. Esfora-se no por sacrifi

    car o todo parte, a parte ao todo, mas por conceber a difcil

    problemtica da organizao, em que, como dizia Pascal, " im

    possvel conhecer as partes sem conhecer o todo, como impos

    svel conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes".

    Ele se esfora por abrir e desenvolver amplamente o dilo

    go entre ordem, desordem e organizao, para conceber, na

    sua especificidade, em cada um dos seus nveis, os fenmenos

    fsicos, biolgicos e humanos. Esfora-se por obter a viso

    poliocular ou poliscpica, em que, por exemplo, as dimenses

    fsicas, biolgicas, espirituais, culturais, sociolgicas, histri

    cas daquilo que humano deixem de ser incomunicveis.

    O princpio de explicao da cincia clssica tendia a redu

    zir o conhecvel ao manipulvel. Hoje, h que insistir forte

    mente na utilidade de um conhecimento que possa servir

    reflexo, meditao, discusso, incorporao por todos, cada

    um no seu saber, na sua experincia, na sua vida...

    Os princpios ocultos da reduo-disjunco que esclareceram

    a investigao na cincia clssica so os mesmos que nos tor

    nam cegos para a natureza ao mesmo tempo social e poltica da

    cincia, para a natureza ao mesmo tempo fsica, biolgica, cul

    tural, social, histrica de tudo o que humano. Foram eles que

    estabeleceram e so eles que mantm a grande disjuno

    natureza-cultura, objeto-sujeito. So eles que, em toda parte,

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    Cincia com Conscincia 31

    no vem mais do que aparncias ingnuas na realidade com

    plexa dos nossos seres, das nossas vidas, do nosso universo.

    Trata-se, doravante, de procurar a comunicao entre a

    esfera dos objetos e a dos sujeitos que concebem esses obje

    tos. Trata-se de estabelecer a relao entre cincias naturais e

    cincias humanas, sem as reduzir umas s outras (pois nem o

    humano se reduz ao biofsico, nem a cincia biofsica se

    reduz s suas condies antropossociais de elaborao).

    A partir da, o problema de uma poltica da investigao no

    se pode reduzir ao crescimento dos meios postos disposio

    das cincias. Trata-se tambm e sublinho o tambmpara

    indicar que proponho no uma alternativa, mas um comple

    mento de que a poltica da investigao possa ajudar as cin

    cias a realizarem as transformaes-metamorfoses na estrutura

    de pensamento que seu prprio desenvolvimento demanda Um

    pensamento capaz de enfrentar a complexidade do real, permi

    tindo ao mesmo tempo cincia refletir sobre ela mesma

    IV. PROPOSTAS PARA A INVESTIGAO

    No temos aqui de voltar s grandes orientaes fixadas

    para a investigao, mas convm definir e reconhecer as

    seguintes orientaes complementares:

    1) que os caracteres institucionais (tecnoburocrticos) da

    cincia no sufoquem, mas estofem1os seus caracteres

    aventurosos;

    2) que os cientistas sejam capazes de auto-interrogao,

    isto , que a cincia seja capaz de auto-anlise;

    3) que sejam ajudados ou estimulados os processos que

    permitiriam revoluo cientfica em curso realizar a

    transformao das estruturas de pensamento.

    1No original, jogo de palavras:tovffer(sufocar);tojfer(estofar).(N. T.)

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    32 Cincia com Conscincia

    A primeira orientao mencionada impe-se com evidn

    cia, tendo sido sempre reconhecida; historicamente, na

    Frana, a poltica da investigao procedeu, quando a institui

    o preexistente se afigurava excessivamente pesada e petri

    ficada, por saltos institucionais que avanavam criando novas

    instituies mais flexveis e leves, que se petrificaram por sua

    vez, e assim por diante. Desse modo, foram criados o

    C.N.R.S., para constituir estrutura mais adaptada investigao do que a universidade, e, depois, a D.G.R.S.T., para permi

    tir inovaes e criaes que as estruturas, por se terem torna

    do pesadas, do C.N.R.S. j no autorizavam.

    Sem dvida, poder-se- sempre inovar, instituindo novas es

    truturas, mas h que perguntar se no se pode tentar um esforo

    no nvel das grandes instituies, em primeiro lugar o C.N.R.S.

    Aqui, h que refletir sobre o problema do investigador. Na

    palavra investigador h algo mais do que o sentido corporativo

    ou profissional, algo que concerne aventura do conhecimentoe a seus problemas fundamentais. Ora, o investigador repre

    sentado de fato, de um lado, por seu sindicalismo e, de outro,

    por seu mandarinato. 0 mandarinato defende a autonomia cor

    porativa da investigao relativa s presses externas. O sindi

    cato defende os interesses dos investigadores relativos no s

    administrao e ao Estado, mas tambm ao mandarinato.

    O mandarinato constitui a "elite" oficialmente reconhecida

    dos cientistas e ocupa freqentemente os altos postos dirigen

    tes da investigao. Os sindicatos defendem a "massa" dos

    investigadores e sua promoo coletiva. O mandarinato tende

    a selecionar indivduos de "elite", o sindicato, a proteger tudo

    o que no diz respeito ao elitismo mandarnico. Assim, os

    investigadores no dispem de mais nenhuma instncia para

    se exprimir enquanto investigadores, o que significa que,

    simultaneamente, mandarinato e sindicato tendem a ocul

    tar e a recalcar aquilo que a palavra investigao significa:

    eocplorao, questionamento, risco, aventura.

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    Cincia com Conscincia 33

    Se o corpo dos investigadores , assim, ao mesmo tempo

    exprimido por e laminado entre mandarinato e sindicato, tor

    na-se capital que, na ocasio inesperada do grande colquio,

    o investigador se exprima como investigador, pensando seus

    prprios problemas de cientista. Tambm desejvel que

    reflitamos no sentido de manter, no futuro, essa brecha entre

    mandarinato e sindicato.

    Um sistema no-otimizvel

    As comisses do C.N.R.S. so instncias em que as influn

    cias mandarnicas e sindicais se disputam ou/e se conjugam

    de formas muito diversificadas segundo os setores ou disci

    plinas. Digamos que, por princpio, a manuteno do dualis

    mo dessa ordem, ou seja, do antagonismo, saudvel.

    No setor de minha experincia, houve, primeiro, a era do

    feudalismo mandarnico, quando diversidades e oposies en

    tre mestres socilogos permitiam certa pluralidade neptica.

    Os jovens investigadores considerados "brilhantes'', segundo

    a escolha de um suserano, eram recrutados depois de nego

    ciaes discretas entre grandes mandarins. Tal sistema favo

    recia ora o recrutamento de espritos originais, ora o dos fiis.

    A preeminncia dos grandes mandarins-socilogos apagou-se

    ao longo dos anos 60 em proveito do recrutamento por con

    senso mdio e das promoes por antigidade. O consenso

    mdio sabota, decerto, a antiga arbitrariedade, mas em pro

    veito de um neofuncionarismo que, evidentemente, desfavore

    ce todo desvio e, por isso, a originalidade e a singularidade.

    Existe um sistema ideal? H que saber que em toda a pro

    blemtica organizacional complexa no existe, "a priori",

    urfi timodefinvel ou programvel. H que saber que a reu

    nio em comisso de espritos prestigiosos, cada um original

    e criativo no seu campo, mas cada um tambm animado por

    unia paixo ou obsesso diferente da dos outros, conduz em

    geral ao consenso sobre um mnimo comum desprovido de

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    34 Cincia com Conscincia

    originalidade e de inveno. A opinio mdia, sem expresso

    das variedades e desabrochamento das liberdades, significa

    menos democracia do que mediocracia.

    Sabemos que um esprito criativo, aberto, liberal pode, se

    for dotado de poderes, exercer um "despotismo esclarecido"

    que favorece a liberdade e a criao, mas sabemos tambm

    que no podemos institucionalizar o princpio do despotismo

    esclarecido: pelo contrrio, temos de instituir comisses para

    fazer face aos perigos mais graves do poder incontrolado.

    Proteger o desvio

    Por outro lado, o peso/inrcia institucional no tem s

    inconvenientes. nos erros da enorme mquina tecnoburo-

    crtica, nas falhas no seio das comisses, nas negligncias

    dos patres que existem no s recnditos de incria e de

    indolncia, mas tambm espaos de uberdade onde se pode

    infiltrar e desenvolver a novidade que, finalmente, brota para

    a glria da instituio.

    Evidentemente, no podemos contar apenas com os erros e

    as excees na enorme mquina tecnoburocrtica para favore

    cer a inovao. Tambm no podemos, como j dissemos,

    pensar que existe uma forma tima para favorecer a inveno.

    Em todo caso, se verdade que o surgimento e o desenvolvi

    mento de uma idia nova precisam de um campo intelectual

    aberto, onde se debatam e se combatam teorias e vises do

    mundo, se verdade que toda novidade se manifesta como des

    vio e aparece freqentemente ou como ameaa, ou como insa

    nidade aos defensores das doutrinas e disciplinas estabelecidas,

    ento o desenvolvimento cientfico, no sentido de que esse

    termo comporte necessariamente inveno e descoberta, neces

    sita fundamentalmente de duas condies: 1) manuteno e

    desenvolvimento do pluralismo terico (ideolgico, filosfico)

    em todas as instituies e comisses cientficas: 2) proteo do

    desvio, ou seja, tolerar/favorecer os desvios no seio dos progra-

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    Cincia com Conscincia 35

    mas e instituies, apesar do risco de que o original seja apenas

    extravagante, de que o espantoso no passe de absurdo.

    Mais ainda, a inovao deve beneficiar-se, no seu estado

    inicial, de medidas de exceo que protejam sua autonomia.

    Supondo que no se pode provara prioria justeza das inicia

    tivas que comportam probabilidades, porque, por isso

    mesmo, comportam riscos, h que correr o risco/probabilida

    de de confiar a responsabilidade a um pequenssimo grupo de

    pessoas que, embora com opinies diferentes, tenham todas a

    mesma paixo pela nova inteno.

    As solues para os problemas suscitados pelo peso exces

    sivo das determinaes tecnoburocrticas no seio da institui

    o cientfica podem ser institucionais (como a descentraliza

    o), mas s podem ser institucionais. So precisos estmulos

    no s do alto da instituio (das instncias superiores ou

    centrais), mas tambm do cerne da instituio, dos prprios

    investigadores; voltamos, ento, a este problema-chave: preciso que os investigadores despertem e se exprimam enquan

    to investigadores.

    A necessidade, para a cincia, de se auto-estudar supe que

    os cientistas queiram auto-interrogar-se, o que supe que eles

    se ponham em crise, ou seja, que descubram as contradies

    fundamentais em que desembocam as atividades cientficas

    modernas e, nomeadamente, as injunes contraditrias a

    que est submetido todo cientista que confronte sua tica do

    conhecimento com sua tica cvica e humana.A crise intelectual que concerne s idias simplrias, abstra

    tas, dogmticas, a crise espiritual e moral de cada um diante de

    sua responsabilidade, no seu prprio trabalho, so as condies

    sine qua non do progresso da conscincia. As autoglorifica-

    es, felicitaes, exaltaes abafam a tomada de conscincia

    da ambivalncia fundamental, ou seja, da complexidade do pro

    blema da cincia, e so to nocivas quanto denegrimentos e vi

    tuprios.

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    36 Cincia com Conscincia

    Dissemos justamente que j no se tratava tanto, hoje, de

    dominar a natureza quanto de dominar o domnio. Efetiva

    mente, o domnio do domnio da natureza que hoje causa

    problemas. Simultaneamente, esse domnio , por um lado,

    incontrolado, louco e pode conduzir-nos ao aniquilamento;

    por outro lado, demasiado controlado pelos poderes domin

    antes. Esses dois caracteres contraditrios explicam-se por

    que nenhuma instncia superior controla os poderes domin

    antes, ou seja, os Estados-naes.

    O problema do controle da atividade cientfica tornou-se

    crucial e supe o controle dos cidados sobre o Estado que

    os controla, bem como a recuperao do controle pelos cien

    tistas, o que exige a tomada de conscincia de que falei ao

    longo destas pginas.

    A recuperao do controle intelectual das cincias peloscientistas necessita da reforma do modo de pensar, que, por sua

    vez, depende de outras reformas, havendo, naturalmente, inter

    dependncia geral dos problemas; essa interdependncia, entre

    tanto, no deve permitir o esquecimento da reforma-chave.

    Todo cientista serve, pelo menos, a dois deuses que, ao lon

    go da histria da cincia e at hoje, lhe pareceram absoluta

    mente complementares. Hoje, devemos saber que eles no

    so apenas complementares, mas tambm antagnicos. O pri

    meiro o da tica do conhecimento, que exige que tudo sejasacrificado sede de conhecer. O segundo o da tica cvica

    e humana.

    O limite da tica do conhecimento era invisvela priori, e

    ns o transpusemos sem saber; a fronteira alm da qual o

    conhecimento traz em si a morte generalizada: hoje, a rvore

    do conhecimento cientfico corre o risco de cair sob o peso

    dos seus frutos, esmagando Ado, Eva e a infeliz serpente.

    Os dois deuses

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    2

    O conhecimento do conhecimento cientfico

    Minha exposio ser incompleta e fragmentada. Em pri

    meiro lugar, no vou repetir o que j publiquei sobre o problema do conhecimento cientfico. Vou experimentar partir des

    ses problemas e tentar montar um tipo de balano da grande

    aventura epistemolgica vivida no mundo germnico e anglo-

    saxo (da qual a Frana se manteve afastada).

    Que aventura essa? Ela comeou no famoso Crculo de

    Viena, nesse grupo de cientistas, lgicos e matemticos que

    tinham em comum a total ojeriza pelo arbitrrio da filosofia e

    da metafsica. Em suma, eles queriam que a filosofia, o pensa

    mento, refletisse a imagem da cincia, isto , que houvesseenunciados dotados de sentido, e que fossem baseados no que

    observvel e verificvel. Eles achavam ser possvel encontrar

    enunciados chamados de "atmicos", fundamentados num

    dado emprico formalmente definido, e que a partir desses

    enunciados atmicos seria praticvel construir proposies e

    teorias, havendo, ento, a possibilidade de ter um tipo de pen

    samento verdadeiro, seguro, cientfico. Para eles, a cincia era

    o modelo e levantaram o seguinte problema: "O que a cin-

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    38 Cincia com Conscincia

    cia?" Quiseram estudar o modelo e o estudo desse modelo

    levou a uma srie de desventuras e decepes: eles acredita

    ram ter encontrado um fundamento e este fracassou.

    Um desses malogros aconteceu, por exemplo, no plano da

    lgica (ou da lgica matemtica) com o teorema da indecidibili-

    dade de Gdel. Outro malogro foi a renncia e a desiluso de

    Wittgenstein. Porm, um outro cientista e filsofo, Whitehead,

    colaborador de Russell, j havia feito a observao de que a cin

    cia ainda mais mutvel do que a teologia estes so os seus

    conceitos. Nenhum sbio, dizia ele, poderia endossar sem reser

    vas as crenas de Galileu, ou as de Newton e nem mesmo todas

    as suas prprias crenas cientficas de dez anos atrs. Ele punha

    em evidncia o fato surpreendente de que, ao contrrio do que se

    pensava, a cientificidade no se define pela certeza, e sim pela

    incerteza E a se situa a contribuio decisiva de Karl Popper.

    Karl Popper combinava com os positivistas lgicos do

    Crculo de Viena por sua vontade de criar, de encontrar uma

    demarcao entre cincia e pseudocincia Porm, ele se dife

    renciou ao introduzir na cincia a idia de "falibilismo". Ele

    disse o seguinte: "O que prova que uma teoria cientfica o

    fato de ela ser falvel e aceitar ser refutada.''

    Aqui entra a famosa palavra "falsificao", sobre a qual

    muito j se escreveu. Sem razo; o que significa essa palavra

    falsificao/falseabilidade empregada por Popper num sentido

    no previsto no lxico ingls? Ele quis encontrar uma palavra

    forte que pudesse fazer oposio a "verificabilidade". Ele

    disse: "No basta que uma teoria seja verificvel, preciso queela possa ser falsificada", isto , que, eventualmente, se possa

    provar que ela falsa isso o que ele quis dizer e por isso

    que os tradutores franceses de Popper fizeram uma traduo

    correta ao usar a palavra falseabilidade. Eles no eram igno

    rantes que no consultaram o dicionrio e sim quiseram resga

    tar essa oposio, forte em Popper, entre a verificao e a fal

    sificao. E, por que a oposio to importante em Popper?

    Bom, ela est ligada a uma crtica da induo.

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    Cincia com Conscincia 39

    Popper d um exemplo: ns constatamos, ns vemos os

    cisnes e percebemos que todos os cisnes so brancos. Ento,

    pensamos ter verificado a lei segundo a qual todos os cisnes

    so brancos. Mas, basta que aparea um s cisne negro para

    que essa lei seja considerada falsa. Isso quer dizer duas coi

    sas. Primeiro, que a induo, partindo de fatos da observao

    incessantemente verificados, no leva certeza verdadeira; a

    certeza terica s pode se basear na deduo. E, segundo,que o problema da induo est ligado ao da verificao: no

    suficiente que uma tese seja verificada para ser provada

    como lei universal; tambm preciso considerar o caso no

    qual ela no verificada, preciso que possamos test-la e

    que, efetivamente, possamos refut-la. Sobre isso, Popper nos

    diz: nenhuma teoria cientfica pode ser provada para sempre

    ou resistir para sempre falseabilidade. Ele desenvolveu um

    tipo de teoria de seleo das teorias cientficas, digamos, an

    logas teoria darwiniana da seleo: existem teorias que sub

    sistem, mas, posteriormente, so substitudas por outras que

    resistem melhor falseabilidade. Pela mesma razo Popper

    troca a certeza pelo falibismo, porm, no abandona a racio

    nalidade. Ao contrrio, ele diz que o que racional na cincia

    que ela aceita ser testada e aceita criar situaes nas quais

    uma teoria questionada, ou seja, aceita a si mesma como

    "biodegradvel". E a opinio de Popper sobre o freudismo e o

    marxismo, por exemplo, de que no so teorias cientficas

    porque nunca poderemos provar que so falsas, isto , os

    adeptos sempre podem dizer que so os opositores, seja na

    iluso libidinal e que, por razes psicanalticas, recalcam a

    psicanlise, ou na iluso de classe que os faz desconhecer o

    verdadeiro motor da histria.

    Depois de Popper, houve uma grande reviravolta epistemo

    lgica na qual, de alguma forma, surgiram todos os problemas

    que o positivismo lgico pensava ter resolvido. Qual o fun

    damento da cincia? Muitos no o encontraram; temos posi-

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    40 Cincia com Conscincia

    es extremas como as de Feyerabend que diz: "No preci

    so procurar a racionalidade, tudo igual, e no devemos pro

    curar mais..." Entramos numa poca em que, finalmente, o

    fracasso do ambicioso empreendimento de fundamentar a

    verdade da cincia, a certeza da cincia e a do pensamento

    fizeram surgir um certo nmero de perguntas essenciais.

    Agora vou abordar o problema da objetividade.A objetividade parece ser uma condiosine qua non,evi

    dente e absoluta, de todo o conhecimento cientfico. Os

    dadosnos quais se baseiam as teorias cientficas so objeti

    vos, objetivos pelas verificaes, pelas falsificaes, e isso

    absolutamente incontestvel. O que se pode contestar, com

    razo, que uma teoriaseja objetiva No, uma teoria no

    objetiva; uma teoria no o reflexo da realidade; uma teoria

    uma construo da mente, uma construo lgico-mate

    mtica que permite responder a certas perguntas que fazemosao mundo, realidade. Uma teoria se fundamenta em dados

    objetivos, mas uma teoria no objetiva em si mesma

    A objetividade uma coisa absolutamente certa. Ela

    determinada por observaes e verificaes concordantes.

    Para serem estabelecidas, essas observaes e essas verifica

    es precisam de comunicaes intersubjetivas. Mas eviden

    te que essas comunicaes so feitas num meio, no centro do

    que se pode chamar de comunidade cientfica A, tambm,

    existe uma idia de Popper muito interessante. Ele diz mais ou

    menos o seguinte: "A cincia no um privilgio de uma teoria

    ou de uma mente, a cincia a aceitao pelos cientistas de

    uma regra do jogo absolutamente imperativa." No entanto,

    para obedecer a regra do jogo da verificao e da experimen

    tao, preciso que haja uma grande atividade de crtica

    mtua Para que haja uma grande atividade de crtica mtua,

    preciso que as teorias se confrontem, que existam pontos de

    vista diferentes, at mesmo idias "bizarras", idias metafsi-

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    Cincia com Conscincia 41

    cas. Portanto, no podem existir s fatores comunitrios mas,

    tambm, devem existir fatores de rivalidade e fatores confli

    tantes; por conseguinte, um verdadeiro meio social onde

    existem antagonismos. Mas, para que essa sociedade, essa

    comunidade funcione, preciso isso tambm foi dito por

    Popper que ela esteja enraizada numa tradio histricae

    no seio de uma cultura: a tradio crtica, nascida da filosofia,

    em Atenas, cinco sculos antes da nossa era, interrompidacinco sculos depois na nossa era, foi reconstituda com o

    Renascimento; foi o primeiro caldo de cultura da cincia que

    se destacou como um ramo da filosofia mas que, mesmo as

    sim, obedece a essa tradio crtica que marcou a histria oci

    dental e que hoje em dia se universaliza atravs da (lifuso da

    cincia no mundo. Desde o sculo XIX, o desenvolvimento da

    cincia est ligado ao desenvolvimento de uma nova camada

    social, aintelligentsiacientfica dos sbios e pesquisadores.

    Tudo isso nos leva de volta aos fenmenos da cultura, dasociedade e da histria Todos sabem que existe esse interes

    sante processo que, uma vez estabelecida a objetividade, faz o

    cientista apagar todo essehinterland,toda essa enorme infra-

    estrutura que permite a objetividade. Seria mesmo preciso

    apag-la? Acho que no, porque preciso refletir sobre o

    seguinte: logicamente a objetividade (as observaes astron

    micas, por exemplo) estabelecida independentemente dos

    observadores, porm, podemos muito bem supor que tal obje

    tividade para ser operacional na atividade cientfica pre

    cisa ser sempre verificada ou reverificvel pelos cientistas.

    todo um enorme processo sociolgico, cultural, histricoe

    intelectual que produz a objetividade. E, eis que a objetivida

    de, produto dessa atividade, transcende a si prpria e volta

    para fundamentar de novo e relanar a tradio crtica, a

    comunidade cientfica, as atividades de verificao etc. Isso

    quer dizer que, de fato, o problema da demarcao entre o

    cientfico e o no-cientfico um problema que no pode ser

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    42 Cincia com Conscincia

    resolvido por um princpio claro ou fcil: a demarcao o

    resultado de uma grande atividade que a comunidade cientfi

    ca mantm ao menos no C.N.R.S (Comit Nacional para

    Pesquisas Cientficas) e nas universidades e que continua a

    viver atravs de intercmbios, congressos, palestras, artigos

    de revistas etc. Melhor dizendo, a prpria objetividade dos

    dados cientficos mantida por um processo regenerador

    ininterrupto que questiona as mentes, os indivduos, os grupos sociais etc.

    Portanto, eis a minha idia: a objetividade o resultado de

    um processo crtico desenvolvido por uma comunidade/socie

    dade cientfica num jogo em que ela assume plenamente as

    regras. Ela produzida por um consenso, porque qualquer um

    que reflita sobre a objetividade pode dizer: "O que nos faz ver

    que alguma coisa objetiva?" Bom! Na verdade, um consen

    so de pesquisadores. Temos confiana nesse consenso de pes

    quisadores e, como diz Popper, a objetividade dos enunciadoscientficos reside no fato de eles poderem ser intersubjetiva-

    mente submetidos a testes. S que, a tambm, vocs perce

    bem que isso constitui um crculo. Porque uma vez que esses

    testes comeam a ser feitos, eles fundamentam novamente a

    objetividade real do fenmeno estudado. Chamo a ateno

    para um problema muito interessante: que, assjm, descobri

    mos que existe uma ligao inaudita entre a intersubjetivida-

    de e a objetividade; acreditamos poder eliminar o problema

    dos assuntos humanos, mas, na realidade, isso no possvel.

    Se a objetividade se baseia numa dinmica complexa, ento,

    efetivamente, vocs podem compreender uma coisa muito

    importante, na qual Popper insistiu muito: se a objetividade

    cientfica fosse fundamentada na imparcialidade ou na objeti

    vidade do sbio individualmente, ento deveramos desistir

    dela. A objetividade no uma qualidade prpria das mentes

    cientficas superiores. Alm disso, vocs sabem muito bem

    que fora dos seus laboratrios as grandes cabeas, os pr-

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    Cincia com Conscincia 43

    mios Nobel, os sbios eminentes se comportam como seres

    passionais, pulsionais, ao emitirem suas opinies sobre a

    sociedade e sobre a poltica, opinies to lastimveis quanto

    as de qualquer outro cidado e mais deplorveis ainda por

    causa do prestgio de que gozam e dos erros que propagam.

    Logo, vocs compreendem que a objetividade no uma

    qualidade prpria do esprito do sbio. No laboratrio, o cien

    tista, submetido regra do jogo, sofre uma coao que oempurra para o rigor e para a objetividade. E, s vezes,

    mesmo no laboratrio, vocs sabem que existem estranhas

    excees.

    Em contrapartida, um outro ponto bem "desentulhado" por

    diversos debates foi que, evidentemente, no existe um fato

    "puro". Os fatos so impuros. por isso, finalmente, que a ati

    vidade do cientista consiste numa operao de seleo dos

    fatos; de eliminao dos fatos que no so pertinentes, inte

    ressantes, quantificveis e julgados contingentes. O dispositivo experimental, em ltima instncia, a seleo de um certo

    nmero de dados; um transplante no meio artificial, que o

    laboratrio, e permite agir nas variaes desejadas. Dito de

    outro modo, fazemos recortes na realidade e por isso que se

    diz que no existe um fato puro, um fato sem teoria. Ser que

    isso quer dizer que no existe fato objetivo? No! preciso

    dizer que graas s idias bizarras, graas s hipteses, graas

    aos pontos de vista tericos que, efetivamente, consegui

    mos selecionar e determinar os fatos nos quais podemos trabalhar e fazer operaes de verificao e falsificao. E esta

    outra idia muito importante: o conhecimento no uma

    coisa pura, independente de seus instrumentos e no s de

    suas ferramentas materiais, mas tambm de seus instrumen

    tos mentais que so os conceitos; a teoria cientfica uma ati

    vidade organizadora da mente, que implanta as observaes e

    que implanta, tambm, o dilogo com o mundo dos fenme

    nos. Isso quer dizer que preciso conceber uma teoria cient-

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    44 Cincia com, Conscincia

    fica como uma construo. Mas, ento, quais so os ingre

    dientes dessa construo? A que as coisas comeam a ficar

    interessantes.

    Popper disse e viu muito bem que na elaborao das teo

    rias cientficas entram em jogo pressupostos, postulados

    metafsicos. Outros autores, como Holton, perceberam que os

    cientistas sempre tm idias bizarras. E, ns tambm sabe

    mos, quando examinamos a histria das cincias, que os grandes fundadores da cincia moderna eram impelidos por idias

    msticas: os pioneiros da nova cosmologia, desde Kepler at

    Newton, fundamentaram suas exploraes da natureza na

    convico mstica de que existiam leis por trs das confuses

    dos fenmenos e que o mundo era uma criao racional, har

    moniosa. Isso um postulado. Podemos nos perguntar ser

    que Newton foi fecundo, apesar de ser alquimista, mstico e

    desta? Ou porque era alquimista, mstico e desta. Vocs

    viram que as polmicas entre Bohr e Einstein ocultam oposies de postulados, idias inverificveis sobre a prpria natu

    reza do real. Portanto, existem crenas no experimentais e

    no testveis por trs das teorias, isto , na mente dos sbios

    e dos pesquisadores. Existem impurezas no s metafsicas

    mas, sem dvida, tambm sociolgicas e culturais. Foi aqui

    que Holton, que fez estudos notveis sobre o tema da imagi

    nao cientfica, props a noo dethemata.

    Themata, o que ? Um thema (thema, singular/ themata,

    plural) uma preconcepo fundamental, estvel, largamentedifundida e que no se pode reduzir diretamente observao

    ou ao clculo analtico do qual no deriva Isso significa que os

    themata tm uma caraterstica obsessiva, pulsional que esti

    mula a curiosidade e a investigao do pesquisador. Tomemos

    Einstein como exemplo: Max Born diz que Einstein acreditava

    no poder da razo de captar, por intuio, as leis pelas quais

    Deus criou o mundo, isto quer dizer que, na mente de Einstein,

    Deus no totalmente metafrico. Thema einsteiniano (a

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    Cincia com Conscincia 45

    frase de Einstein): "A nica fonte autntica da verdade est

    na simplicidade da matemtica" claro que no verificvel,

    mas fecundo. Pode-se at dizer que existem tipos de explica

    es bizarras que entram nos grandes esquemas. Nesse

    campo, o livro de Schlanger interessante: ele diz que existem

    explicaes platnicas (procuram a explicao descobrindo

    as essncias escondidas por trs dos fenmenos aparentes);

    explicaes aristotlicas (procuram mais as causalidades, osjogos de causa e efeito no mundo dos fenmenos); explica

    es esticas (procuram a satisfao na finalidade e na funcio

    nalidade). Os que so impulsionados porthematasentem um

    tipo de gozo eu diria quase um coito psicolgico quando

    acham que o universo responde inteno que os incita.

    Todos somos assim, seno seramos somente burocratas,

    somente funcionrios da pesquisa. A seu modo, Piaget tam

    bm viu que existiam certos modelos profundos, como o

    modelo reducionista e o modelo construtivista, que diferenciavam os tipos de mente e os tipos de explicaes. Nesse aspec

    to Thomas Kuhn (autor de La Structure des revolutions

    scientifiques/A estrutura das revolues cientficas) trouxe

    uma coisa muito importante que ele chama de paradigma

    O paradigma tambm alguma coisa que no resulta das

    observaes. De alguma forma, o paradigma aquilo que

    est no princpio da construo das teorias, o ncleo obs

    curo que orienta os discursos tericos neste ou naquele sen

    tido. Para Kuhn, existem paradigmas que dominam o conhecimento cientfico numa certa poca e as grandes mudanas

    de uma revoluo cientfica acontecem quando um paradig

    ma cede seu lugar a um novo paradigma, isto , h uma rup

    tura das concepes do mundo de uma teoria para outra s

    vezes, basta uma simples mudana, uma simples troca, como

    a troca entre o Sol e a Terra, para derrubar toda a concepo

    do mundo. Kuhn (e outros autores como Feyerabend) inferi

    ram a incomensurabidade das teorias cientficas: eles afir-

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    46 Cincia com Conscincia

    maram que no se pode dizer que as teorias cientficas se

    acumulam umas sobre as outras, sendo a nova maior, mais

    extensa e absorvendo a precedente. Afirmaram que h saltos

    ontolgicos de um universo para outro. Mudamos de univer

    so quando passamos do universo newtoniano para o univer

    so einsteiniano. Mudamos de universo quando passamos do

    universo einsteiniano para o universo da fsica quntica,

    sobretudo como ele aparece depois das experincias deAspect. Ento, em vez de vermos um tipo de racionalidade

    progressiva e ascensional em marcha na histria, percebe

    mos que a histria das cincias, como a histria das socieda

    des, conhece e passa por revolues. A, tambm, existem

    muitas polmicas e grosso modo (voltarei a esse assunto)

    preciso ter uma viso multidimensional da evoluo cientfi

    ca. Porm, quero insistir no fato de que muitos autores for

    mularam as idias dethemata,de paradigmas, de postulados

    metafsicos, de imagens do conhecimento (Elkana); outroautor (Mayurama) falou demindscape(de paisagem mental)

    e a idia de "programas de pesquisa", tambm interessante e

    muito popularizada desde ento, foi uma idia de Lakatos,

    enunciada no seu famoso artigo da coletnea Criticism and

    Development of Knowledge.

    O que um programa de pesquisa? Lakatos acha que exis

    tem grupos de teorias ligadas, umas s outras, por princpios

    e postulados comuns. isso o que ele chama de programa de

    pesquisa. Nesses grupos de teorias, nesses programas, existeum ncleo duro, o ncleo de postulados fundamentais que

    incentivam a pesquisa, e existe o que ele chama de cinto de

    segurana que o dispositivo experimental, observacional,

    que pode se modificar. Porm, o ncleo duro aquilo que

    resiste por mais tempo. A idia de ncleo duro de Lakatos

    est muito prxima da idia de paradigma de Kuhn, ou seja,

    que no ncleo da atividade cientfica existe alguma coisa que

    no cientfica mas, da qual, paradoxalmente, depende o

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    Cincia com Conscincia 47

    desenvolvimento cientfico. Ento, teoria, themata,programa

    de pesquisa, paradigma etc. so noes que introduzem na

    cientificidade os elementos aparentemente impuros mas,

    repito, necessrios ao seu funcionamento.

    Talvez vocs conheam um ponto de vista que vou assina

    lar de passagem. o ponto de vista de Habermas sobre o que

    ele chama de os interesses. Ele diz o seguinte: existem tipos

    diferentes de conhecimento cientfico; diferentes porque so

    impulsionados por interesses diferentes. Por exemplo, h o

    interesse tcnico que o interesse de domnio da natureza

    que marca profundamente as cincias emprico-formais; h o

    interesse prtico, quer dizer, o controle (especialmente o

    controle da sociedade) que, segundo Habermas, a caracte

    rstica principal das cincias histrico-hermenuticas; e h o

    interesse reflexivo: "Quem somos ns, o que fazemos?" que

    impulsiona o que ele chama de cincia crtica. Para ele, esse

    o bom interesse porque a cincia crtica, motivada pelareflexividade, tem por interesse a emancipao dos homens,

    enquanto os outros interesses conduzem dominao e

    sujeio. Citei esse ponto de vista que alis vocs j

    conhecem porm, no creio que possamos fazer distin

    es to ntidas como faz Habermas. Acho que interesses

    diferentes se misturam na mente dos pesquisadores de modo

    completamente diverso e que, justamente, essa mistura o

    problema.

    Habermas diz o seguinte: na medida em que a cincia precisa, em primeiro lugar, conquistar a objetividade, ela dissimula

    os interesses fundamentais aos quais ela deve no s os

    impulsos que a estimulam, mas tambm as condies de toda

    objetividade possvel. Ele prope um tipo de psicanlise cien

    tfica ao dizer: conscientizem-se dos interesses que os ani

    mam, dos quais vocs no tm conscincia.

    Em contrapartida, quando vocs levam em considerao

    teorias como a das, construes, percebem que no se trata,

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    48 Cincia com Conscincia

    simplesmente, de um jogo de montar, de ummeccano,1 que

    ligam as noes por operaes lgicas, e que no s a inte

    grao coerente de dados verificados e testados que importa;

    existem muitas outras atividades e, entre elas, a atividade

    individual criadora. A, existe um tipo de esquizofrenia no uni

    verso cientfico. De um lado, existem livros e monumentos

    consagrados glria dos grandes gnios, como Newton,

    Einstein etc. e, do outro lado, quando vemos os tratados e os

    manuais, esses grandes gnios famosos desapareceram por

    completo, isto , vemos que a atividade da mente humana que

    inventou a teoria foi completamente esvaziada. O curioso

    que o aspecto criativo individual um aspecto ao mesmo

    tempo conhecido e totalmente recalcado, totalmente imerso!

    O que quer dizer idia genial? muito complicado, no pode

    mos racionaliz-la e no podemos dar uma equao genial do

    tipo E = mc2, no ? (se bem que foi um gnio que encontrou

    essa equao). o famoso problema de o ato da descoberta

    escapar anlise lgica, como dizia Reichenbach que, no

    entanto, era pioneiro da Escola de Viena, do positivismo lgi

    co. Portanto, existe o problema da imaginao cientfica que

    eliminamos porque no saberamos explic-lo cientificamen

    te, mas que est na origem das explicaes cientficas.

    Hanson, um autor que tambm refletiu sobre esse ponto

    (inicialmente, muitos desses autores so fsicos, cientistas que

    refletem sobre a cincia porque os filsofos no fazem mais

    esse trabalho) tentou compreender o elo entre a viso original,apercepo original ea descoberta, destacando o que ele

    chama de "retxoduo". Ele diz: "Qualquer ato especfico de

    descoberta traz consigoacapacidade de considerar o mundo

    da realidade sob uma nova luz. A observao emprica no

    um simples fato fsico e no uma operao terica neutra."

    Evidentemente, a temos perplexidade e surpresa! Einstein

    Jogo de construo metlica(N.T.)

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    dizia de si mesmo: "Eu era uma criana retardada O tempo

    sempre me deixava estupefato, enquanto os outros achavam o

    tempo muito normal." Positivamente, um problema de ques

    tionamento do real e o prprio questionamento do real um

    fenmeno muito particular, muito singular. Foi Pierce quem

    usou a palavra abduo para caracterizar a inveno das hip

    teses explicativas; ele achava que induo e deduo eram ter

    mos insuficientes e que a abduo era uma noo indispens

    vel para compreender o desenvolvimento do pensamento.

    Vocs tm problemas de estratgia na pesquisa e na descober

    ta que apelam aos recursos organizadores da mente, e um dos

    problemas que o inventor imprevisvel e relativamente

    autnomo em relao ao prprio meio cientfico. Isso foi ver

    dade no passado e continuar sendo verdade no futuro; no dia

    em que a inveno for programada, no haver mais inveno.

    Por exemplo, preciso ver que os anos admirveis de

    Newton, de Newton jovem, correspondem aos da peste quelevou a Universidade de Cambridge a fechar suas portas.

    Durante dois anos, Newton ficou sozinho, devaneando, olhan

    do para as macieiras e, de alguma forma, podemos dizer que se

    a universidade tivesse permanecido aberta e ele tivesse conti

    nuado a assistir as aulas, talvez no descobrisse a gravidade.

    Quem sabe deveramos desejar o fechamento do C.N.R.S

    durante dois anos para que as pesquisas fossem estimuladas...

    Munford disse uma coisa muito interessante sobre Darwin:

    "Darwin escapou dessa especializao profissional unila

    teral que fatal a uma plena compreenso dos fenmenos

    orgnicos. Para esse novo papel, o amadorismo da prepa

    rao de Darwin revelou-se admirvel. Embora estivesse

    a bordo doBeaglena qualidade de naturalista, ele no ti

    nha nenhuma formao universitria especializada Mes

    mo como bilogo, ele no tinha nenhuma instruo ante

    rior a no ser como apaixonado pesquisador de animais e

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    colecionador de colepteros. Diante da ausncia de fixa

    o e da inibio de escola, nada impedia o despertar de

    Darwin para as manifestaes do meio ambiente vivo."

    No plano da Universidade, encontramos a um fenmeno

    que a etologia (estudo do comportamento animal) revelou,

    que o imprinting. Trata-se da famosa histria dos passari

    nhos de Konrad Lorenz: o passarinho sai do ovo, sua me

    passa ao lado do ovo e ele a segue. Para o passarinho, o pri

    meiro ser que passa perto do ovo de onde ele saiu a sua

    me. Como foi o gordo Konrad Lorenz quem passou ao lado

    do ovo, o passarinho tomou-o por sua me e temos toda uma

    ninhada de passarinhos correndo atrs de Konrad, persuadi

    dos de que ele a me. Isso o imprinting,marca original

    irreversvel que impressa no crebro. N