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5/27/2018 EdgarMorineoPensamentoComplexo-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/edgar-morin-e-o-pensamento-complexo 1/52    E    M    A    I    S       O       N    -        L        I        N        E Edgard de Assis Carvalho  A revogação do antropocentrismo e a aquisição de saberes transversais James Alison: “O perdão antecede o pecado”. A superaçã de uma visão moralista e chantagista Mario Novello Um pensamento que não recebe ordens Jean Louis Le Moigne Um apelo ao eterno perguntar Pedro Trigo: Teólogos enclausurados na academia. Um desafo IHU Revista do Instuto Humanitas Unisinos Nº 402  - Ano XII - 10/09/2012- ISSN 1981-8769 Edgar Morin e o pensamento complexo

Edgar Morin e o Pensamento Complexo

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    Edgard de Assis Carvalho A revogao do antropocentrismo e a aquisio de saberes transversais

    James Alison:O perdo antecede o pecado. A superao de uma viso moralista e chantagista

    Mario Novello Um pensamento que no recebe ordens

    Jean Louis Le Moigne Um apelo ao eterno perguntar

    Pedro Trigo:Telogos enclausurados na academia. Um desafio

    IHURevista do Instituto Humanitas Unisinos

    N 4 0 2 - A n o X I I - 1 0 / 0 9 / 2 0 1 2 - I S S N 1 9 8 1 - 8 7 6 9

    Edgar Morin e o pensamento complexo

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    al Edgar Morin e opensamento complexo

    O pensamento complexo seguindo as rotas abertas por Edgar Morin o tema da revista IHU On-Line desta semana. Pesquisadores e pes-quisadoras de vrias reas do conhe-cimento contribuem no debate.

    A fragmentao dos saberes obs-taculiza a consolidao do humanis-mo, atesta Edgard de Assis Carvalho, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP. A cincia se tor-naria menos arrogante e prepotente caso assumisse a unidade indissolvel entre o sapiens e o demens dos seres humanos, assinala.

    Jean Louis Le Moigne, professor emrito da Universidade Aix-Marseille (Frana), analisa a importncia das obras de Morin em conexo com as cincias dos sistemas, a engenharia e a inteligncia artificial. Todos somos responsveis pela aventura do conhe-cimento humano e de suas socieda-des, avalia.

    Unir conhecimentos, cincias exa-tas e humanas o objetivo da trans-disciplinaridade hoje, afirma o fsico romeno Basarab Nicolescu. Saberes entrelaados so esperana de uma

    vida mais humana, alm de reencon-trarmos o sentido em nosso mundo.

    A autonomia dos saberes acon-tece na relao criativa com outras partes, e no atravs do isolamento, que atesta miopia e morte, assinala Larcio Pilz, professor na Unisinos. A abertura ao Outro e aos diferentes sa-beres o que alimenta o nosso viver e o desejo pelo saber.

    Gerson Egas Severo, professor da Universidade Federal da Frontei-ra Sul UFFS, examina o legado de Morin para compreendermos a mio-pia dos saberes que no dialogam, o delrio arrogante de tudo conhecer-mos, e a falta de sentido num ensino compartimentalizado.

    Pode parecer dramtico, mas realista: a necessidade da transdis-ciplinaridade aparece mesmo no in-terior de uma cincia como a Fsica, constata o fsico Mario Novello.

    Na viso de Angelita Maders, Defensora Pblica do Estado do Rio Grande do Sul, o pensamento aberto transdisciplinaridade e o pensamen-to complexo auxiliam a compreenso do sujeito e o dilogo com outros sa-beres para encontrar uma soluo,

    mesmo que provisria, aos problemas da humanidade.

    Um artigo e mais duas entrevis-tas completam a presente edio.

    Dnis de Moraes, professor do Departamento de Estudos Cultu-rais e Mdia da Universidade Federal Fluminense, recorda a trajetria e o testemunho de Valrio Brittos, re-centemente falecido, descrevendo-o como um missionrio da tica e da solidariedade.

    James Alison reflete sobre a doutrina do pecado original luz da Ressurreio de Jesus Cristo, seguin-do as trilhas de Paulo de Tarso e Ren Girard. O telogo ingls busca superar uma viso moralista e chantagista do pecado original.

    Apostando numa teologia capaz de ler os sinais dos tempos sendo proftica, o telogo jesuta venezue-lano Pedro Trigo, refletindo sobre a caminhada da reflexo teolgica latino-americana, aponta os riscos de telogos enclausurados na academia.

    A todas e a todos uma tima se-mana e uma excelente leitura!

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    IHUIHU On-Line a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos - IHU ISSN 1981-8769. IHU On-Line pode ser acessada s segundas-feiras, no stio www.ihu.unisinos.br. Sua verso impressa circula s teras-feiras, a partir das 8h, na Unisinos.Apoio: Comunidade dos Jesutas Residncia Conceio.

    REDAO

    Diretor de redao: Incio Neutzling ([email protected]). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 ([email protected]).Redao: Mrcia Junges MTB 9447 ([email protected]), Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]) e Thamiris Magalhes MTB 0669451 ([email protected]). Reviso: Isaque Correa ([email protected]).

    Colaborao: Csar Sanson, Andr Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto grfico: Agncia Experimental de Comunicao da Unisinos - Agexcom.Editorao: Rafael Tarcsio ForneckAtualizao diria do stio: Incio Neutzling, Patricia Fachin, Luana Nyland, Natlia Scholz, Wagner Altes e Mariana Staudt

    Instituto Humanitas

    Unisinos

    Endereo: Av. Unisinos, 950,

    So Leopoldo/RS.

    CEP.: 93022-000

    Telefone: 51 3591 1122 - ramal 4128.

    E-mail: [email protected].

    Diretor: Prof. Dr. Incio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto

    Schneider ([email protected]).

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    LEIA NESTA EDIOTEMA DE CAPA | Entrevistas

    5 Quem Edgar Morin?

    5 Ba da IHU On-Line

    6 Edgard de Assis Carvalho: A revogao do antropocentrismo e a aquisio de saberes transversais

    11 Jean Louis Le Moigne: Um apelo ao eterno perguntar

    17 Mario Novello: Um pensamento que no recebe ordens

    21 Angelita Maria Maders: Morin e a compreenso do Direito como um sistema

    25 Larcio Pilz: Complexidade e pensamento vivo

    29 Gerson Egas Severo: A professora imaginria e o descentramento da humanidade

    34 Basarab Nicolescu: A incompatibilidade entre transdisciplinaridade e pensamento nico

    DESTAQUES DA SEMANA36 LIVRO DA SEMANA: James Alison: O perdo antecede o pecado. A superao de

    uma viso moralista e chantagista

    40 TEOLOGIA PBLICA: Pedro Trigo: Telogos enclausurados na academia. Um desafio

    44 COLUNA DO CEPOS: Dnis de Moraes: Valrio Brittos, missionrio da tica e da solidariedade

    46 DESTAQUES ON-LINE

    IHU EM REVISTA48 Agenda da Semana

    50 IHU Reprter: Srgio Trombetta

    twitter.com/ihu

    bit.ly/ihufacebook

    www.ihu.unisinos.br

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    Quem Edgar Morin?Edgar Morin nasceu em Pa-

    ris, no dia 8 de julho de 1921. um

    antroplogo, socilogo e filsofo

    francs, judeu de origem sefardita.

    Pesquisador emrito do Centre Na-

    tional de la Recherche Scientifique.

    Formado em Direito, Histria e Geo-

    grafia, realizou estudos em filosofia,

    sociologia e epistemologia. autor

    de mais de trinta livros, entre eles: O

    mtodo (6 volumes), Introduo ao

    pensamento complexo, Cincia com

    conscincia e Os sete saberes neces-

    srios para a educao do futuro.

    Durante a Segunda Guerra Mundial,

    participou da Resistncia Francesa.

    considerado um dos principais pen-

    sadores contemporneos e um dos

    principais tericos da complexidade.

    Filho nico, seu pai, Vidal Nahoum,

    era um comerciante originrio de

    Salnica. Sua me, Luna Beressi, fa-

    leceu quando ele tinha 10 anos. Ateu

    declarado, descreve-se como um

    neomarrano.

    A principal obra de Edgar Morin

    a constituda por seis volumes, La

    mthode (em portugus, O Mto-

    do). Foi escrita durante trs dcadas

    e meia. Trata-se de uma das maiores

    obras de epistemologia disponvel.

    Morin inicia os primeiros escritos de

    da obra em 1973, com a publicao

    do livro O paradigma perdido: a na-

    tureza humana, uma transformao

    epistemolgica por questionar o fe-

    chamento ideolgico e paradigmtico

    das cincias, alm de apresentar uma

    alternativa concepo de paradig-

    ma encontrada em Thomas Kuhn.

    Seu primeiro livro traduzido para o

    portugus O cinema ou o homem

    imaginrio, em 1958.

    Morin afirma que diante dos

    problemas complexos que as socie-

    dades contemporneas hoje enfren-

    tam, apenas estudos de carter in-

    ter e politransdisciplinar poderiam

    resultar em anlises satisfatrias de

    tais complexidades. Afinal escreve

    , de que serviriam todos os sabe-

    res parciais seno para formar uma

    configurao que responda a nossas

    expectativas, nossos desejos, nossas

    interrogaes cognitivas?

    Disponvel em: http://migre.me/

    aBgaN.

    Ba da IHU On-LineConfira a edio da IHU On-Line que trata sobre tema congneres aos de Edgar Morin:

    O ser humano como sujeito social na Teoria dos sistemas, auto-organizao e caos. Edio 142, de 23-05-2005, dispo-nvel em http://bit.ly/jkjCb6

    O Mtodo em portugusO Mtodo 1 A Natureza da Natureza (Europa Amrica: Portugal 1987. Porto Alegre: Sulina, 2003) O Mtodo 2 A vida da vida (Europa Amrica, 1999. Sulina, 2001)O Mtodo 3 O Conhecimento do Conhecimento (Europa Amrica, 1996. Sulina, 2002)O Mtodo 4 As ideias: habitat, vida, costumes, organizao (Sulina, 2002. Europa Amrica, 2002) OMtodo5Ahumanidadedahumanidade:aidentidadehumana(Sulina, 2003. Europa Amrica, 2003)

    OMtodo6Atica (Europa Amrica, 2005. Sulina, 2005)

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    A revogao do antropocentrismo e a aquisio de saberes transversaisFragmentao dos saberes obstaculiza a consolidao do humanismo, frisa Edgard de Assis Carvalho. A cincia se tornaria menos arrogante e prepotente caso assumisse a unidade indissolvel entre o sapiens e o demens dos seres humanos

    Por Mrcia Junges

    O antropocentrismo colocou os humanos em nvel superior a todas as espcies vivas. Pulses incontidas o levam a destruir o que tem e v pela frente. De nada adiantou sabermos que a Terra no era o centro do universo, que a evo-luo um processo descontnuo, que somos irremediavelmente regidos pelo inconsciente. Achamos, tambm, que somos nicos seres de cultura. A ponderao de Edgard de As-sis Carvalho, em entrevista exclusiva concedi-da por e-mail IHU On-Line. Em seu ponto de vista, revogar o antropocentrismo crucial para a concretizao da poltica de civilizao proposta por Edgar Morin. E acrescenta: a aquisio de saberes transversais a base que deve reger a reforma do ensino e da educa-o. A religao, portanto, no soluo para nada, mas desafio constante a ser posto em prtica nas escolas do ensino fundamental, mdio e superior. A fragmentao que hoje domina os campos do saber impede a conso-lidao do humanismo.

    Edgard de Assis Carvalho graduado em Cincias Sociais pela Universidade de So Paulo USP, doutor em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Rio Claro, ps-doutor pela Ecole des Hautes tudes e Sciences Sociales (EHESS), na Frana, e livre docente pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Unesp. professor titular de Antropologia na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP, coordenador do comit de tica em pesqui-sa e coordenador do Ncleo de Estudos da Complexidade Complexus da PUC-SP e representante brasileiro da Ctedra Itineran-te Unesco Edgar Morin Ciuem. um dos autores de Cultura e pensamento complexo (Natal: EDUFRN, 2009). De suas obras, des-tacamos: tica, solidariedadeecomplexida-de (So Paulo: Palas Athena, 1998) e Edgar Morin: em busca dos fundamentos perdidos. Textos sobre o marxismo (Porto Alegre: Edi-tora Sulina, 2002).

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line Qual a maior in-tuio de Edgar Morin em seu pen-samento? Em que as aspectos reside sua atualidade?

    Edgard de Assis Carvalho No se trata apenas de intuio, mas de um trabalho sistemtico de pesquisa, interpretao, criatividade. Com mais de 60 livros publicados, aos 91 anos, Edgar Morin hoje um dos maiores pensadores vivos. Judeu sefardita, membro da resistncia francesa, teve

    seu primeiro livro publicado em 1946. Em O ano zero da Alemanha1, sob os escombros do final da Segunda Guerra Mundial, ele imagina que a Alemanha poderia vir a ser um exemplo para o mundo. Dividida entre as potncias que saram vencedoras da Guerra, a Alemanha socialista poderia represen-

    1 LAn zro de lAllemagne (La Cit Universelle, Paris, 1946). (Nota da IHU On-Line)

    tar um avano nas conquistas sociais. O ano de 1989 que sinalizou para Eric Hobsbawm2 o final do sculo XX

    2 Eric Hobsbawm: historiador marxista do sculo XX. Autor de inmeros livros, entre os quais A era dos extremos (So Paulo: Companhia das Letras, 1995), A era do capital (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A era das revolues (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A era dos imprios (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988), Bandidos (Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1976) e sua autobiografia,

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    incumbiu-se de demonstrar que essa bipartio ficara invivel no contexto poltico-econmico da modernidade que varreu os socialismos da face da Terra. Importante frisar, porm, que a semente da complexidade j estava l, mesmo que ele fosse muito jovem e no tivesse ainda passado pelas trs reorganizaes gentico-cogni-tivas que iriam marcar sua trajetria acadmica.

    IHU On-Line Nesse contexto, qual a importncia dos seis volumes de O mtodo?

    Edgard de Assis Carvalho A im-portncia de Edgar Morin no pode ser resumida aos seis volumes de O mtodo, publicados de modo no se-quencial no perodo 1977-2004. Sua obra dividida em macrotemas: m-todo, pensamento complexo, trindade humana, tetralogia pedaggica, era planetria, tempo presente, pensa-mento poltico, caminho, voz, dirios, colquios. H tambm um site oficial do Centre Edgar Morin na internet: www.iiac.cnrs.fr, em que a bibliografia completa encontrada. Esses temas se entrecruzam a todo tempo. H, porm, algo que deve ser enfatizado. Sem a leitura dos seis volumes, qual-quer leitor no conseguir estabele-cer as conexes necessrias para a compreenso das bases, dos funda-mentos, das propostas que cercam o pensamento do autor. Se voc l, por exemplo, Meu caminho, livro de en-trevistas concedidas a Djnane Kareh Tager, o prprio Morin se incumbe de revelar que a totalidade da obra constitui um mosaico de interligaes e interconexes entre vrias reas do saber, e no apenas do ocidental. Da resultam as crticas, incompreenses e ressentimentos que os intelectuais e no s os brasileiros dirigem ao con-junto de suas ideias.

    IHU On-Line O que destacaria em cada um deles como fundamento para compreendermos sua obra?

    Edgard de Assis Carvalho A res-posta demandaria uma anlise mais aprofundada que excede os limites de uma entrevista. possvel, porm,

    Tempos Interessantes: uma vida no sculo XX (So Paulo: Companhia das Letras, 2002).(Nota da IHU On-Line)

    destacar algumas ideias nucleares dessa fascinante hexalogia. O volume um A natureza da natureza (Europa Amrica: Portugal 1987. Porto Alegre: Sulina, 2003) estabelece a dialogia entre ordem e desordem que marca a passagem das leis da natureza natu-reza das leis. A unidade complexa da natureza contm relaes entre todo e partes, emergncias e reorganizaes de padres organizatrios aleatrios. A natureza no regida unicamente por relaes de causa e efeito e, em si mesma, no portadora de uma fina-lidade estabelecida a priori.

    O volume dois A vida da vida (Europa Amrica, 1999. Sulina, 2001) penetra a fundo na ecologia, pelo simples fato de que os ecossistemas so sistemas vivos que, a todo tempo, integram a organizao biolgica na ordem csmica. O volume trs O Co-nhecimento do Conhecimento (Europa Amrica, 1996. Sulina, 2002) abran-ge o processo do conhecimento e a abertura bioantropossociolgica e o ponto de partida para a anlise do ina-cabamento humano. Conhecer com-putar, e essa computao tecida pelo entrelaamento dos itinerrios racio-nal-lgico-dedutivo e simblico-mti-co-imaginrio. O volume quatro As ideias: habitat, vida, costumes, organi-zao (Sulina, 2002. Europa Amrica, 2002) incursiona pelas noosferas e

    noologias, ou seja, esses circuitos de ideias que organizam as percepes do sujeito. Os sistemas de ideias que conformam as teorias e conceitos de-vem ser abertos, biodegradveis, ja-mais eternos e fixos. Funcionam como operadores de organizao do mundo da vida.

    O volume cinco A humanidade dahumanidade:aidentidadehumana(Sulina, 2003. Europa Amrica, 2003) estabelece uma relao crtica com o conceito de identidade e adverte con-tra os sentidos do relativismo que no consegue enxergar alm das fronteiras de raa, sexo, religio. A identidade nunca pura, pelo simples fato de que ordens individuais, sociais e csmicas esto em constante interao, e nem sempre de modo harmnico. Por ve-zes so antagnicas e contraditrias. Finalmente o volume seis A tica(Europa Amrica, 2005. Sulina, 2005) ilustra as contradies contempor-neas que cercam a tica individual e a tica da polis. preciso redefinir o pensamento da tica e a tica do pen-samento. Qualquer ato tico uma re-ligao com o mesmo e o outro, com a comunidade, a humanidade, o cosmo.

    IHU On-Line Para Edgar Morin, somos sapiens e demens concomitan-temente. Como conviver com esse lado oculto (e inegvel) da nossa exis-tncia como apontara Nietzsche ao formular o conceito de tragdia?

    Edgard de Assis Carvalho No considero uma concomitncia, mas uma convivncia. Como toda convi-vncia, a do sapiens e a do demens simultaneamente oposta e com-plementar. De um lado, temos o lado sistemtico das regulaes cotidianas e dos padres culturais que prescre-vem nossa vida cotidiana; de outro o descomedimento, a loucura, a hi-bris que costumam ser recalcados para os subterrneos da mente e do corpo. Assumir a dialogia necessria entre oposio e complementarida-de implica reconhecer que somos sempre seres da falta e que, por isso, aprendemos a priorizar um lado em detrimento do outro. Conviver simul-taneamente com essas duas facetas requer o abandono do antropocen-trismo e o reconhecimento de que somos, como afirmou Michel Cass, filhos do Cu, seres da impermann-

    A importncia de Edgar Morin

    no pode ser resumida aos seis volumes de O mtodo,

    publicados de modo no

    sequencialno perodo1977-2004

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    cia, insignificantes diante do mistrio e da incerteza da vida. Nietzsche um dos interlocutores de Edgar Morin e, certamente, O nascimento da trag-dia (So Paulo: Companhia das Letras, 1992), de 1872, mesmo que no o cite constantemente, faz parte de suas ba-ses interpretativas. Nesse ensaio per-turbador Nietzsche expe a relao entre o apolneo e o dionisaco. E no faz isso para ser aplicado ao teatro ou a msica, mas a todas as expresses do humano. O que ele mostra como duas noes aparentemente opostas podem ser complementares. A rigor, todos somos, ao mesmo tempo, apo-lneos e dionisacos. E aqui reside nos-sa tragdia contempornea. Sob a luz da razo, da tcnica, existem sombras que precisam ser identificadas.

    IHU On-Line Tomando em con-siderao o pensamento de Edgar Morin, como se manifestam o homo sapiens e o demens?

    Edgard de Assis Carvalho No se trata de uma manifestao, mas de uma condio imanente dos homens em geral. Est presente em humanos de todos os tempos e lugares. O sa-piens apolneo, o demens dionisaco. Nos tempos lquidos de hoje, o sapiens o legitimador da razo contempor-nea, comandada pelo quadrimotor cincia/tcnica/indstria/estado que conduz os processos da globaliza-o. Sabemos que, de um lado, eles pregam a uniformizao e, de outro, geram processos crescentes de exclu-so, intolerncias, racismos. O demens considera que a via racional no a nica forma de acesso realidade. Por vezes, a via imaginal acessa essa mesma realidade com certo despudor e liberdade. Por isso as artes em ge-ral so elementos fundamentais de compreenso do mundo. Para Edgar Morin, o cinema, a literatura, as artes so desdobramentos da representa-o e, como tal, devem ser necessa-riamente includas nas interpretaes que fazemos a nosso prprio respeito. A cincia ficaria menos arrogante e prepotente se admitisse esse fato e percebesse que o sapiens e o demens constituem uma unidade indissolvel.

    IHU On-Line A partir do cenrio de devastao da natureza, correto concluir que o ser humano tem para-

    sitado a Terra, em vez de viver sim-bioticamente com ela?

    Edgard de Assis Carvalho A pre-servao e a sustentabilidade da Terra so metas prioritrias diante da idade de ferro planetria em que nos en-contramos. Sustentabilidade implica garantir para as geraes futuras uma destinao democrtica digna que acabe de vez com as desigualdades e isso contraditrio com polticas de-senvolvimentistas baseadas numa su-posta superioridade da tecnocincia. A perspectiva estadocntrica precisa ser reequacionada em prol de rela-es sociais equitativas e equnimes. A destruio sistemtica dos ecossis-temas tem a ver com a suposta supe-rioridade do homem que acredita na dominao da natureza como fonte de progresso. Desde Heidegger3, sabe-

    3 Martin Heidegger (1889-1976): filsofo alemo. Sua obra mxima O ser e o tempo (1927). A problemtica heideggeriana ampliada em Que metafsica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introduo metafsica (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line publicou na edio 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento jurdico-poltico de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinao por noes fundadoras do nazismo, disponvel para download em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger, confira as edies 185, de 19-06-2006, intitulada O sculo de Heidegger,

    mos que, em si mesma, a tcnica no boa nem m. Seus efeitos dependem de ecopolticas postas em prtica pelo conjunto da sociedade civil. A revoga-o do antropocentrismo , portanto, crucial para a concretizao da poltica de civilizao proposta por Edgar Mo-rin. Em Rumo ao abismo (Rio de Janei-ro: Bertrand Brasil, 2007), por exem-plo, publicado em 2007, encontramos explicitados os fundamentos da crise da mundializao. Se as mdias pro-duziram e difundiram produtos cultu-rais os mais diferenciados, o acesso cultura permanece elitizado. A cultura dita de massa no se democratizou. Pelo contrrio, criou iluses, fantas-mas, desejos mimticos que nunca se realizam. Seria preciso perceber que a humanidade , ao mesmo tempo, una e mltipla. Diversidades culturais deveriam dialogar entre si, pois todas elas se inserem na mesma identida-de terrena. A sociedade-mundo tem diante de si o desafio de enfrentar o terror-mundo que se dissemina por toda parte.

    IHU On-Line Podemos pensar esse comportamento antropocntri-co a partir da ecologia da ao? Como seria essa anlise?

    Edgard de Assis Carvalho A eco-logia da ao um dos deflagradores desse processo. Em primeiro lugar, seria necessrio desfazer a separao entre homem e natureza, introduzida no pensamento moderno, pelo menos desde Descartes4. O antropocentrismo

    disponvel para download em http://migre.me/uNtv, e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstruo da metafsica, que pode ser acessado em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda, o n 12 do Cadernos IHU Em Formao intitulado Martin Heidegger. A desconstruo da metafsica, que pode ser acessado em http://migre.me/uNtL. Confira, tambm, a entrevista concedida por Ernildo Stein edio 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponvel em http://migre.me/FC8R, intitulada O biologismo radical de Nietzsche no pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferncia A crtica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questo da biopoltica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferena - Pr-evento do XI Simpsio Internacional IHU: O (des)governo biopoltico da vida humana. (Nota da IHU On-Line)4 Ren Descartes (1596-1650): filsofo, fsico e matemtico francs. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho revolucionrio da Filosofia, tendo tambm sido famoso

    Nietzsche um dos interlocutores

    de Edgar Morin e, certamente, O nascimento

    da tragdia, de 1872, mesmo que no o cite

    constantemente, faz parte de suas bases

    interpretativas

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    colocou os humanos em nvel supe-rior a todas as espcies vivas. Pulses incontidas o levam a destruir o que tem e v pela frente. De nada adian-tou sabermos que a terra no era o centro do universo, que a evoluo um processo descontnuo, que so-mos irremediavelmente regidos pelo inconsciente. Achamos, tambm, que somos nicos seres de cultura. Morin refere-se vrias vezes ao conceito de cultura, considerando-o um conceito--armadilha. Contaminado pelo carte-sianismo, esfacelou-se em dualidades: cultura erudita/cultura popular, cultu-ra cientfica/cultura das humanidades, essas ltimas responsveis pela conso-lidao da fragmentao universitria. Patrimnio universal, a cultura tem padres, prescries, normas, mas tambm resistncias, zonas obscuras difceis de serem decifradas. A cultura no apenas uma fbrica da ordem. igualmente desordem, interao, re-organizao. A moderna etologia de-monstra que primatas no humanos conseguem estabelecer polticas do bem-viver baseadas em estratgias de paz e tica. A cultura no mais nos-so privilgio. Trata-se, talvez, de uma quarta ferida narcsica que seria acres-centada formulao de Freud5. Se

    por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do clculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e matemtica modernas, inspirou os seus contemporneos e geraes de filsofos. Na opinio de alguns comentadores, ele iniciou a formao daquilo a que hoje se chama de racionalismo continental (supostamente em oposio escola que predominava nas ilhas britnicas, o empirismo), posio filosfica dos sculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line)5 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e fundador da Psicanlise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mtodo a hipnose, estudava pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas pulses, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associao livre. Estes elementos tornaram-se bases da Psicanlise. Freud, alm de ter sido um grande cientista e escritor, realizou, assim como Darwin e Coprnico, uma revoluo no mbito humano: a idia de que somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes foram controversos na Viena do sculo XIX, e continuam muito debatidos hoje. A edio 179 da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o ttulo Sigmund Freud. Mestre da suspeita,

    admitssemos esse fato, nossa supos-ta arrogncia poderia ser minimizada. Passaramos a ser coparticipantes de nossa aventura hominescente.

    IHU On-Line Diz-se que no um-bral da academia de Plato6 havia um conselho de que s entrasse ali quem soubesse geometria. Esse conselho tem sua verso moderna na teoria geral dos sistemas de Bertalanffy7 e

    disponvel para consulta no link http://migre.me/s8jc. A edio 207, de 04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a religio, disponvel para download em http://migre.me/s8jF. A edio 16 dos Cadernos IHU em formao tem como ttulo Quer entender a modernidade? Freud explica, disponvel para download em http://migre.me/s8jU. (Nota da IHU On-Line)6 Plato (427-347 a. C.): filsofo ateniense. Criador de sistemas filosficos influentes at hoje, como a Teoria das Idias e a Dialtica. Discpulo de Scrates, Plato foi mestre de Aristteles. Entre suas obras, destacam-se A Repblica e o Fdon. Sobre Plato, confira e entrevista As implicaes ticas da cosmologia de Plato, concedida pelo filsofo Prof. Dr. Marcelo Perine edio 194 da revista IHU On-Line, de 04-09-2006,disponvel em http://migre.me/uNq3. Leia, tambm, a edio 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada Plato. A totalidade em movimento, disponvel em http://migre.me/uNqj. (Nota da IHU On-Line)7 Karl Ludwig von Bertalanffy (1901-1972): bilogo criador da Teoria geral dos sistemas. Cidado austraco, desenvolveu a maior parte do seu trabalho cientfico nos Estados Unidos da Amrica. autor de Teoria Geral dos Sistemas (Petrpolis: Vozes, 1968). (Nota da IHU On-Line)

    na teoria da complexidade de Morin. Acredita que a religao dos saberes pode tornar mais pacfica e ressignifi-car a existncia das pessoas?

    Edgard de Assis Carvalho A Teoria Geral dos Sistemas e o pen-samento complexo so complemen-tares. No podem ser igualados. A existncia humana pacfica, to pro-clamada desde Kant8 a respeito da paz perptua, requer um trabalho siste-mtico no nvel das ideias. As noosfe-ras e as noologias esto a para serem retrabalhadas a todo tempo. A religa-o dos saberes uma base cognitiva e afetiva a ser aplicada em todos os nveis da formao escolares. A aqui-sio de saberes transversais a base que deve reger a reforma do ensino e da educao. A religao, portanto, no soluo para nada, mas desafio constante a ser posto em prtica nas escolas do ensino fundamental, m-dio e superior. A fragmentao que hoje domina os campos do saber im-pede a consolidao do humanismo. uma reserva de poder de reas dis-ciplinares que se contentam com ava-liaes quantitativas e produtivismos classificatrios. A pergunta que deve-ria ser dirigida aos avaliadores nome-ados pelo aparato de Estado quem ir avali-los. Essas comisses consa-gram a fragmentao e, com isso, so empecilhos construo do conheci-

    8 Immanuel Kant (1724-1804): filsofo prussiano, considerado como o ltimo grande filsofo dos princpios da era moderna, representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes da Filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemo e nas filosofias idealistas do sculo XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distino entre os fenmenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto , entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si no poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento cientfico, como at ento pretendera a metafsica clssica. A cincia se restringiria, assim, ao mundo dos fenmenos, e seria constituda pelas formas a priori da sensibilidade (espao e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line nmero 93, de 22-03-2004, dedicou sua matria de capa vida e obra do pensador com o ttulo Kant: razo, liberdade e tica, disponvel para download em http://migre.me/uNrH. Tambm sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos IHU em formao nmero 2, intitulado Emmanuel Kant - Razo, liberdade, lgica e tica, que pode ser acessado em http://migre.me/uNrU. (Nota da IHU On-Line)

    A cincia ficaria menos arrogante e prepotente se admitisse esse

    fato e percebesse que o sapiens e o demens constituem

    uma unidade indissolvel

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    mento pertinente, alis um dos sabe-res propostos por Edgar Morin.

    IHU On-Line Como os sete sa-beres podem se fazer presentes para as pessoas nos dias de hoje? Qual a grande esperana que nasce a par-tir de uma nova concepo de vida e relacionalidade?

    Edgard de Assis Carvalho A proposta dos sete saberes as ce-gueiras do conhecimento: o erro e a iluso, o conhecimentopertinente, acondiohumana,aidentidadeterre-na,asincertezas,acompreenso,ti-ca do gnero humano tem a ver com algo mais profundo. Foi um desafio proposto a Edgar Morin pelo ministro da educao nacional da Frana, em 1999, no final segundo mandato de Franois Mitterand. A proposta visa-va prioritariamente o ensino mdio. Em sucessivas reunies preparatrias e entrevistas imprensa, Edgar Mo-rin sempre enfatizava que os saberes no deveriam ser concebidos como disciplinas. Eles so deflagradores de uma cosmoviso capaz de religar de-finitivamente a cultura cientfica e a cultura das humanidades. Essa neces-sidade j havia sido explicitada por Charles Snow9 em 1957. Em As duas culturas10, Snow enftico ao afir-mar que qualquer sistema social que pensasse a si mesmo com sabedoria deveria empenhar-se na busca dessa juno, no por justaposio, mas por transversalidade. Talvez por isso o projeto da reforma do ensino mdio no tenha dado certo. Foram grandes os protestos sindicais. Restou uma re-serva de memria para ser redefinida nas escolas empenhadas numa edu-cao planetria. No Brasil, em 2010, ocorreu em Fortaleza uma confern-cia internacional presidida por Morin. Os saberes foram reiterados como prioritrios e o congresso lanou um manifesto que foi institucionalmente divulgado. preciso, porm, ter em mente que reforma da educao s ocorrer a partir da reforma dos edu-cadores. Essa a formulao de Marx11

    9 Charles Percy Snow (1905-1980): fsico e romancista ingls. (Nota da IHU On-Line)10 The Two Cultures (London: Cambridge University Press, 1959). (Nota da IHU On-Line)11 Karl Heinrich Marx (1818-1883): filsofo, cientista social, economista,

    na IX tese sobre Feuerbach12, alis sempre referida por Morin, deve ser o fio condutor de qualquer iniciativa reformadora. O pensamento comple-xo no pensa contra Marx, mas com Marx. necessrio retomar os fun-damentos perdidos, saturar a noo de homem genrico com emoo e descomedimento.

    Somos seres dotados de razo, mas no podemos nos deixar domi-nar pelos atratores do racionalismo

    historiador e revolucionrio alemo, um dos pensadores que exerceram maior influncia sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no sculo XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estudos Repensando os Clssicos da Economia. A edio nmero 41 dos Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda Maria Paulani tem como ttulo A (anti)filosofia de Karl Marx, disponvel em http://migre.me/s7lq. Tambm sobre o autor, confira a edio nmero 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada A financeirizao do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponvel para download em http://migre.me/s7lF. Leia, igualmente, a entrevista Marx: os homens no so o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcntara Figueira edio 327 da revista IHU On-Line, de 03-05-2010, disponvel para download em http://migre.me/Dt7Q. (Nota da IHU On-Line)12 Ludwig Feuerbach (1804-1872): filsofo alemo, reconhecido pela influncia que seu pensamento exerce sobre Karl Marx. Abandona os estudos de Teologia para tornar-se aluno de Hegel, durante dois anos, em Berlim. De acordo com sua filosofia, a religio uma forma de alienao que projeta os conceitos do ideal humano em um ser supremo. autor de A essncia do cristianismo (2. ed. So Paulo: Papirus, 1997). (Nota da IHU On-Line)

    e da racionalizao. A desrazo est diante de ns e integr-la ao nvel dos saberes sistematizados algo priorit-rio e inadivel. Uma nova concepo de mundo exige que a esperana se converta em meta prioritria. Sem ela, instalam-se o conformismo e a ade-so s prticas convencionais. Com ela podem-se construir vias para o fu-turo da humanidade desencadeadas por amplas reformas do pensamento, da educao, da sociedade, da vida. Esse o propsito do ltimo livro de Edgar Morin A via para o futuro da humanidade.

    IHU On-Line Gostaria de acrescentar alguns aspectos no questionados?

    Edgard de Assis Carvalho Como explicitei anteriormente, a complexi-dade no deve ser vista como soluo para os males do mundo, mas como desafio constante a ser posto em prtica na vida social em seu conjun-to em prol de um mundo mais justo, equitativo e tico, e isso no nvel do indivduo, da sociedade e da espcie. Recentemente, Morin publicou um pequeno livro O Caminho da espe-rana (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012), escrito com Stphane Hessel13. nico representante vivo dentre os signatrios da Declarao Universal do Direitos do Homem, Hessel, hoje com 93 anos, notabilizou-se em 2011 pela publicao de um pequeno livro Indignai-vos no qual conclama as novas geraes a se revoltarem con-tra o desmando generalizado instala-do no mundo. Em O caminho da espe-rana, ambos reiteram que o objetivo que pregam implica a denncia do curso perverso da poltica insensata atual. Se ela permanecer intocada, que desastres irreversveis adviro. A salvao pblica de que necessita-mos requer revolta, esperana, de-terminao em prol de uma poltica de civilizao que abarque todos os domnios da vida.

    13 Stphane Frdric Hessel (1917): diplomata, embaixador, combatente da resistncia francesa e agente da Bureau Central de Renseignements et dAction (o servio de inteligncia da Frana). Nascido como alemo, Stphane obteve a nacionalidade francesa em 1937. Ele participou da elaborao da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. (Nota da IHU On-Line)

    A preservaoe a susten-

    tabilidade daTerra so metas

    prioritrias diante da idade de ferro

    planetria em que nos encontramos

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    Um apelo ao eterno perguntarJean Louis Le Moigne analisa a importncia das obras de Edgar Morin em conexo com as cincias dos sistemas, a engenharia e a inteligncia artificial. Todos somos responsveis pela aventura do conhecimento humano e de suas sociedades, avalia

    Por Mrcia Junges | Traduo: Vanise Dresch

    De acordo com o engenheiro francs Jean Louis Le Moigne, a complexi-dade est vinculada tanto ao global como ao local. No devemos reduzi-la glo-balidade. Na mecnica celeste, j se conside-ra o problema da gravitao atrativa de trs corpos (trs somente!) como muito comple-xo, no sentido de potencialmente imprevis-vel na prtica. Ele discute, tambm, a auto--organizao e a Teoria Geral dos Sistemas, de Bertallanfy: para adquirir autonomia e, portanto, auto-organizar-se, um sistema deve ser aberto, estar em interao efetiva com seus ambientes, que ele transforma e que o transformam. Analisando o legado de Morin, Le Moigne pontua que as disciplinas cientficas no podem mais definir-se por um nico objeto de conhecimento, estritamen-te delimitado e tido como um dado da Natu-reza: elas devem ser entendidas tambm e primeiramente por seu projeto de conheci-mento, conscientemente formulado pelo es-prito humano, atravs do qual interligam-se a experincia do corpo e a compreenso do mundo. E ressalta: a contribuio mais de-cisiva da obra de Edgar Morin nesse sentido foi o apelo permanente dirigido a todos os cientistas para que nunca deixassem de fazer essas perguntas e praticassem esse trabalho

    epistemolgico exigente. Fazendo isso, Morin esforou-se, junto com outros obviamente, para documentar, argumentar e ilustrar essas questes.

    Jean Louis Le Moigne nasceu em 1931, em Casablanca, formou-se em Engenharia na Universidade de Harvard (EUA), trabalhou entre 1956 e 1971, no grupo Shell francs e lecciona, desde 1971, na Universidade Aix--Marseille (Frana) onde atualmente pro-fessor emrito. presidente do Programa Europeu de Modelizao da Complexidade e vice-presidente da Associao Para o Pen-samento Complexo APC. Publicou mais de uma centena de artigos e cerca de duas de-zenas de livros, alguns dos quais, escritos em colaborao com autores to importantes como Edgar Morin ou Herbert Simon, entre os quais Lessystmesdinformationdanslesor-ganisations (1973), Les systmes de dcision dans les organisations, (1973) La thorie du systme gnral, thorie de la modlisation (1977); La modlisation des systmes com-plexes (1990), Sciences de lintelligence, scien-ces de lartificiel (1986) com Edgar Morin; Science et conscience de la complexit (1984); Lintelligence de la complexit (1999).

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line A partir da teoria da complexidade de Edgar Morin, qual o nexo que une as cincias dos sistemas, a engenharia e a intelign-cia artificial?

    Jean Louis Le Moigne Em pri-meiro lugar, precisamos estar atentos escolha das palavras: a complexi-dade no uma teoria no sentido da teoria da gravitao ou da evoluo.

    Edgar Morin fala mais precisamente do paradigma da complexidade: O paradigma no explica, ele permite a compreenso. Do mesmo modo, a expresso cincia de sistemas inadequada, no sentido de que todas as disciplinas cientficas podem tam-bm ser consideradas cincias dos sistemas, de modo que a expresso no designa nenhuma delas. Por cer-

    to, a expresso cincia dos sistemas complexos surge, em nossas univer-sidades, a partir de 1985, reunindo subdisciplinas da cincia da regula-o (ciberntica de primeira ordem), da informtica, da inteligncia arti-ficial e da matemtica dos sistemas dinmicos lineares e no lineares. porm, como cincia autnoma, ela se esqueceu de alicerar ou arrai-

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    gar seus prprios fundamentos... O trabalho preliminar ainda est por ser feito: conceber os objetos como sistemas.

    Foi a esta empreitada que se de-dicou Edgar Morin a partir de 1970, a partir de sua experincia como so-cilogo e antroplogo, mas principal-mente desde o seu encontro com a obra de H. Von Foerster1 e, em par-ticular, o artigo seminal deste autor, de 1959, intitulado Os sistemas au-to-organizadores e seu ambiente. Para adquirir autonomia e, portanto, auto-organizar-se, um sistema deve ser aberto, estar em interao efetiva com seus ambientes, que ele transfor-ma e que o transformam.

    A partir desse apelo a um pen-samento aberto (e no mais fechado, como implicavam os quatro preceitos fundadores do Discurso do mtodo, de Ren Descartes, 1637), Morin mo-biliza todos os recursos oferecidos pelas novas disciplinas que se desen-volveram desde a institucionalizao da ciberntica (cincia da regulao interativa e da comunicao entre or-dem desejada e desordem percebida), das cincias da informao, da com-putao, da cognio etc. O conceito rgido de estrutura no permitia con-siderar nem dar conta da mirade de interaes entre ordem e desordem que cada um de ns observa nas ati-vidades humanas. Fazia-se necessrio restaurar o conceito de organizao, entendendo-o em sua complexidade: Unitasmultiplex.

    Crtica epistemolgica internaA partir dessa base paradigmti-

    ca, a complexidade de base, o concei-to de sistema, ou unidade complexa organizada, surge como um conceito--piloto resultante das interaes entre um observador/conceptor e o univer-so fenomenal; ele permite represen-

    1 Heinz Von Foerster (1911-2002): bilogo austraco e um dos arquitetos da ciberntica, chamado por Edgar Morin como Scrates ciberntico, fundou a Biociberntica para estudar os fenmenos biolgicos a partir dessa nova matriz. Concebeu o processo de vida como sistema fechado para informao e aberto para a energia, destacando o papel da interao e da auto-organizao. Na esteira dos estudos de Von Foerster, surgiu a teoria de Maturana & Varela e o conceito de Autopoiesis. (Nota da IHU On-Line)

    tar e conceber unidades complexas, constitudas por inter-relaes orga-nizacionais entre elementos, aes ou outras unidades complexas. A cin-cia dos sistemas torna-se, por assim dizer, a cincia da modelizao e da concepo sistmica (como e por um sistema em geral). Antes organizado e fechado, o conceito de sistema passa ento a organizar e a organizar-se. Em vez de ser a palavra-mestra da totali-dade (holismo), ele se torna a raiz da complexidade.

    Assim sendo, as novas cincias da engenharia, cincias de concepo ou do artificial, como dir H. Simon (1969), podem ser entendidas como cincias fundamentais, e no mais como disciplinas de aplicao, servas das cincias de anlise, ditas exatas (reducionistas, causalistas, fecha-das em torno de um objeto passivo). Tornam-se tambm, sobretudo elas, responsveis por sua prpria crtica epistemolgica interna.

    A inteligncia artificial torna-se uma dessas novas cincias da enge-nharia, fontes de heursticas explo-ratrias nos campos das cincias da computao, que se revelaro muitas vezes poderosas para orientar infe-rncias nas cincias da cognio, da biologia computacional, da lingustica computacional, etc.

    IHU On-Line O desenvolvimen-to da inteligncia artificial foi not-vel nos ltimos anos. De que modo esta rea do conhecimento humano pode contribuir para o avano da compreenso interligada do conhe-cimento, da prpria vida e de suas possibilidades?

    Jean Louis Le Moigne Talvez eu possa responder com uma observa-o de Paul Valry2 em seus Cahiers, a qual bem anterior ao surgimento da expresso inteligncia artificial (MIT, 1956): Ns compreendemos melhor os viventes medida que inventamos e construmos mquinas (Cahiers XIII, 617, 1929).

    Foi este argumento que H. Si-mon enfatizou, j em 1969, para de-

    2 Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valry (1871-1945): filsofo, escritor e poeta francs da escola simbolista cujos escritos incluem interesses em matemtica, filosofia e msica. (Nota da IHU On-Line)

    finir a inteligncia artificial, a qual ele preferia ter denominado simulao funcional dos processos cognitivos. Uma simulao computacional (por programao de heursticas que dis-pem de sistemas de memorizao) pode muitas vezes possibilitar uma interpretao plausvel de compor-tamentos observveis de um sujeito dotado de um projeto e exposto a variaes de seu ambiente externo. Nesse sentido, a inteligncia artifi-cial torna-se uma ferramenta de ex-plorao de situaes possveis e de elaboraes de estratgias de aes prximas concebveis, sem, contudo, impor a escolha da deciso certa. Os possveis nem sempre so os de-sejveis nas decises de comporta-mento humano, que, na prtica, so muitas vezes multicritrios, critrios raramente hierarquizados de manei-ra uniforme.

    Perspectiva transhumanistaEssas consideraes metodo-

    lgicas requerem, evidentemente, um exerccio permanente de crtica epistemolgica. Devemos nos inter-rogar aqui sobre a leviandade desses questionamentos tico-epistmicos quando se observam desvios cientifi-cistas tais como aqueles desenvolvi-dos na perspectiva transumanista (ou ps-humanista) de uma humanidade transformada pelas tcnicas compu-tacionais, que deveriam permitir me-lhorar as caractersticas fsicas e men-tais dos seres humanos (a partir de trabalhos contemporneos sobre as tcnicas informticas da vida artificial, da concepo artificial, da engenharia artificial, trabalhos raramente atentos s questes ideolgicas). Ser que po-demos estabelecer definitivamente os critrios de uma melhora certa e uni-versal da espcie humana?

    Inteligncia artificialResta que as tcnicas da inteli-

    gncia artificial so tcnicas de simu-lao informtica. Enquanto tais, elas levam ao exame fenomenolgico de comportamentos observveis, suge-rindo hipteses heursticas program-veis a fim de propor inferncias que autorizam compreenses funcionais plausveis dos fenmenos considera-dos. Se algumas dessas simulaes pa-

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    ramtricas levam a comportamentos tidos como desejveis em contextos predefinidos, elas permitiro ento a realizao efetiva de robs e prteses que podem cumprir essas mesmas funes no mesmo contexto, prestan-do ateno nos efeitos ditos pleiotr-picos. O processador concebido para cumprir essa funo pode revelar-se a posteriori capaz de exercer outras funes no antecipadas no caso de modificaes s vezes mnimas do contexto, sejam elas exgenas ou en-dgenas, provocadas por efeitos de autoaprendizagem.

    Lembremo-nos aqui do prin-cpio de Jean Piaget3: Um sistema inteligente pode e deve construir e memorizar os traos de seu prprio comportamento. Este princpio nos lembra que a inteligncia no pri-meiramente um processador, mas um processo que s pode ser com-preendido e desenvolvido em intera-es, que, por sua vez, so auto-eco--organizadoras. Podemos concluir com uma famosa expresso de desse pensador: A inteligncia no inicia nem pelo autoconhecimento, nem pelo conhecimento das coisas como tais, e sim pelo conhecimento de sua interao, e, orientando-se simul-taneamente para os dois polos des-sa interao, ela organiza o mundo organizando-se a si mesma (Piaget, 1937). Sem dar ateno a essa recur-sividade constitutiva da inteligncia, ser que podemos falar apropriada-mente de inteligncia artificial?

    IHU On-Line Nesse sentido, como o desenvolvimento transdis-ciplinar das cincias pode fornecer outra compreenso sobre a irreduti-bilidade dos modelos analticos, cau-salistas, deterministas e simples?

    Jean Louis Le Moigne A ques-to nos convida expressamente a vol-tar ao enunciado dos quatro preceitos

    3 Jean Piaget (1896-1980): psiclogo, epistemlogo e educador suo, professor de psicologia na Universidade de Genebra de 1929 a 1954, conhecido principalmente por organizar o desenvolvimento cognitivo em uma srie de estgios. Escreveu inmeras obras, das quais citamos Tratado de Psicologia Experimental: A inteligncia (Rio de Janeiro: Forense, v. 7, 1969) e A construo do real na criana (Rio de Janeiro: Zahar, 1970). (Nota da IHU On-Line)

    cartesianos do Discurso do mtodo (1637): independncia do objeto e do sujeito, fundamento do postulado fundador de objetividade dita cientfi-ca; modelizao analtica por reduo a elementos tidos como simples e evi-dentes; determinismo universal por cadeias causais lineares; fechamento absoluto dos modelos que implicam contagens exaustivas. Esses preceitos, essencialmente derivados dos trs axiomas formais do silogismo perfeito segundo Aristteles4, no apresentam um carter de evidncia universal.

    No surpreendente que eles no tenham sido considerados a ni-ca garantia de todas as verdades cien-tficas nos sculos anteriores. J em 1708, G. B. Vico5 publicou, na Univer-sidade de Npoles, um discurso expli-citamente alternativo, O discurso do mtodo dos estudos de nosso tempo, destacando as deficincias do reducio-nismo analtico e insistindo na riqueza dessa faculdade da mente humana de relacionar, sempre relacionar em vez de separar primeiro.

    4 Aristteles de Estagira (384 a.C. 322 a.C.): filsofo nascido na Calcdica, Estagira, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexes filosficas por um lado originais e por outro reformuladoras da tradio grega acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por sculos. Prestou inigualveis contribuies para o pensamento humano, destacando-se nos campos da tica, poltica, fsica, metafsica, lgica, psicologia, poesia, retrica, zoologia, biologia, histria natural e outras reas de conhecimento. considerado, por muitos, o filsofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)5 Giambattista Vico ou Giovanni Battista Vico (1668-1744): filsofo italiano. Discerniu a explosiva mistura da razo com a mecnica e ofereceu uma nova cincia que poderia trazer as mais altas percepes da Renascena para dentro da metodologia dos primeiros investigadores modernos. (Nota da IHU On-Line)

    Sem dvida, foi o desenvolvimen-to do positivismo segundo Auguste Comte6 que garantiu a longa sobrevi-vncia do paradigma da epistemolo-gia cartesiana que observamos ainda hoje. E. Morin (1991) o nomeia o grande paradigma do Ocidente ou o paradigma da cincia clssica. No en-tanto, devemos lembrar que, j em 1934, G. Bachelard7 conclui Le nouvel esprit scientifique8 com um apelo a uma epistemologia no cartesiana, que ia desenvolver-se e organizar-se nos desenvolvimentos das novas ci-ncias, dentro do paradigma da com-plexidade que E. Morin nos apresenta nos seis tomos de O mtodo.

    Pensamento abertoDoravante, o desafio deixa de

    ser defensivo, contra um pensamento fechado, o reducionismo e o determi-nismo integrista. Torna-se construtivo, a favor de um pensamento aberto: O pensamento complexo um pen-samento que interliga, escreveu E. Morin em 1976: O nico mtodo que adotei foi tentar captar as ligaes mveis. Interligar, sempre interligar, era um mtodo mais rico, mesmo no nvel terico, do que as teorias blin-dadas, sob invlucro epistemolgico e lgico, metodologicamente aptas a enfrentar tudo, exceto, claro, a com-plexidade do real.

    assumindo essa relao crti-ca fundadora da legitimao antro-poltica dos conhecimentos a serem ensinados e acionados, que renovam constantemente a cincia, sempre en-gajada na aventura do conhecimento humano, que uma efetiva inter e trans-disciplinaridade pode desenvolver-se. As disciplinas cientficas no podem mais definir-se por um nico objeto de conhecimento, estritamente delimita-

    6 Augusto Comte (1798-1857): filsofo e pensador social francs. Fundou a escola filosfica conhecida como positivismo e criou um conceito de cincia social a que deu o nome de sociologia. O positivismo comteano afirma que a verdade da cincia indiscutvel e demonstrvel universalmente. (Nota da IHU On-Line)7 Gaston Bachelard (1884-1962): filsofo e poeta francs que estudou sucessivamente as cincias e a filosofia. Seu pensamento est focado principalmente em questes referentes filosofia da cincia. (Nota da IHU On-Line)8 O novo esprito cientfico (Lisboa: Editora 70, 1996). (Nota da IHU On-Line)

    Vivemos hoje a crise dessa renovao de

    nossos paradigmas de referncia

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    do e tido como um dado da natureza: elas devem ser entendidas tambm e primeiramente por seu projeto de conhecimento, conscientemente for-mulado pelo esprito humano, atravs do qual interligam-se a experincia do corpo e a compreenso do mundo (cf. O paradigma corpo, esprito, mundo, dir P. Valry).

    Vivemos hoje a crise dessa reno-vao de nossos paradigmas de refe-rncia. Precisamos fazer do ideal de complexidade da cincia contempor-nea aquele da restaurao da solida-riedade entre todos os fenmenos, lembrou G. Bachelard. No mais sepa-rar o fazer e o compreender significa tambm entender que o cientista tor-na-se cego sem os culos do cidado. A aventura do conhecimento humano entrelaa-se constantemente com a aventura das sociedades humanas: todos ns somos responsveis por ela.

    IHU On-Line O que a auto--eco-organizao dos fenmenos complexos? Em que aspectos o co-nhecimento dessa complexidade re-sulta numa outra compreenso tanto da forma como do funcionamento dos sistemas?

    Jean Louis Le Moigne Acredito que a histria do conceito de auto--eco-organizao inicia em 1959 com a publicao do artigo de H. Von Foers-ter (que criou um laboratrio de bio-informtica) intitulado On self organi-zing systems and their environment. At ento, as cincias no conseguiam dar conta dos fenmenos imprevis-veis, de emergncia aparentemente endgena, que se observavam prin-cipalmente nos sistemas vivos. O de-terminismo implicado pela teoria da degenerescncia neguentrpica dos sistemas fsicos tidos como fechados no permitia compreender a gnese dessas emergncias que eram, no en-tanto, to comuns quanto um broto nascendo de um galho.

    Propondo simbolicamente a al-ternativa order from disorder para a tese order from order, de E. Schrdin-ger9 (What is life, 1944), e a argumen-tando tanto de maneira figurada como

    9 Erwin Rudolf Josef Alexander Schrdinger (1887-1961): fsico austraco, um dos pais da teoria quntica. (Nota da IHU On-Line)

    formalmente admissvel, H. von Foers-ter introduziu no pensamento cientfi-co uma ideia muito renovadora: para que um sistema possa evoluir aumen-tando sua riqueza organizacional (emergncia de novos comportamen-tos no pr-programados), ele preci-sa ser ativo em seu ambiente, rece-bendo no s os inputs programados ou ordenados, mas tambm o rudo, a priori aleatrio, no programado, desordenado, que seguidamente os acompanha. Potencialmente, em cer-tas condies plausveis (um mnimo de redundncias na organizao ini-cial), essa desordem imprevista pode, contudo, suscitar a emergncia inter-na de novos comportamentos, im-previstos, que se manifestaro na ati-vidade da organizao dentro de seu ambiente. Desenvolve-se assim uma recurso dita morfodinmica: agindo cinematicamente sobre seu ambiente que ento ela transforma, a organi-zao transformada ela mesma. A regulao ciberntica de primeira or-dem engendra uma recurso cibern-tica de segunda ordem.

    Paradigma da complexidadeAssim, para que um sistema seja

    autnomo (auto) e, portanto, capaz de transformar-se ele mesmo, pre-ciso que seja dependente e solidrio (eco) de seu ambiente. Todo sis-tema ecossistema. O modelizador poder distingui-los, mas no poder mais mant-los separados. E. Morin e H. Atlan tomaram conscincia da importncia da mudana de olhar sobre os processos de dinmica orga-nizacional por volta de 1968-1970, ao mesmo tempo em que era publicada a obra de I. Prigogine10 intitulada In-troduo termodinmica11 dos pro-cessos irreversveis. A insistncia no carter irreversvel dos processos de evoluo organizacional corroborava aquela que H. von Foerster convida-va a reconhecer para os processos de

    10 Ilya Prigogine (1917-2003): cientista de origem russa, que recebeu o Prmio Nobel de Qumica em 1977. Na 62 edio, de 2 de junho de 2003, IHU On-Line dedicou-lhe a editoria Memria e, dele, publicou o artigo A dimenso narrativa do universo, na 64 edio, em 16 de junho de 2003. (Nota da IHU On-Line)11 Introduction to Thermodynamics of Irreversible Processes (2 ed. New York: Interscience, 1961). (Nota da IHU On-Line)

    emergncia autoeco-organizacional, o que levou E. Morin a desenvolver o paradigma da complexidade a partir do esquema de referncia de O mto-do, aquele da autoeco-reorganizao. Tornava-se assim possvel renovar a modelizao dos sistemas complexos passando da modelizao ciberntica e holstica inicial, fechada (autorre-gulao do processador caixa-preta), modelizao sistmica aberta (fun-cionamento e evoluo teleolgica e contextualizada).

    Caberia aqui completar a inter-pretao operatria do paradigma da autoeco-reorganizao pelos desen-volvimentos importantes introduzidos por Morin acerca da interao recur-siva dos processos organizacionais e dos processos informacionais que eles formam e que os transformam recur-sivamente. A concepo dos sistemas de informao encontra a um pla-no diretor que permite evitar que as restries prprias das tecnologias da informao e da comunicao prejudi-quem a qualidade potencial das inte-raes poiticas entre os dois proces-sos, organizacional e informacional.

    IHU On-Line Em que aspectos a obra de E. Morin pode ser considera-da como um contraponto clausura ideolgica e paradigmtica das cin-cias clssicas?

    Jean Louis Le Moigne Conside-rando as devidas nuanas, proponho dois comentrios para esclarecer sua pergunta. O primeiro provm da cr-tica epistemolgica, que deveria ser prpria de toda e qualquer atividade cientfica: um dos efeitos mais perver-sos da pregnncia das ideologias posi-tivistas h mais de um sculo tem sido a ausncia de reflexo epistemolgica livre do argumento do postulado dito da objetividade cientfica pura e rigo-rosa, objetividade que seria garantida pela estrita aplicao de mtodos de observao e de raciocnio indepen-dentes tanto do contexto como dos observadores-descritores. Esses lti-mos no teriam de criticar o valor e a pertinncia da verdade cientfica que produzem, uma vez que usam mtodos impessoais, cientificamente objetivos. Isso os autoriza a ignorar as perguntas banais que Piaget lembrou em 1968 ao definir a epistemologia

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    como o estudo da constituio dos conhecimentos vlidos, perguntas que muitas vezes no so feitas: o que o conhecimento (gnoseologia)? Qual o critrio de apreciao de seu valor (tica)? Como o conhecimento cons-titudo (metodologias)? Quem pode-r ento reconsiderar e argumentar as crticas que poderiam ser feitas s suas respostas a essas trs perguntas interdependentes?

    A contribuio mais decisiva da obra de Edgar Morin neste sentido foi o apelo permanente dirigido a todos os cientistas para que nunca deixas-sem de fazer essas perguntas e prati-cassem esse trabalho epistemolgico exigente. Fazendo isso, Morin esfor-ou-se, junto de outros obviamente, para documentar, argumentar e ilus-trar essas questes. Basta relermos, por exemplo, Os sete saberes e nos perguntarmos: ser que me fiz seria-mente essas sete perguntas antes? Ou ento a reflexo de Bachelard em Lenouvel esprit scientifique, que nos convida a substituir a objetividade do objeto pela projetividade (a intencio-nalidade explcita) do sujeito: A me-ditao do objeto pelo sujeito sempre toma a forma do projeto.

    Paradigma perdidoO segundo comentrio diz res-

    peito compreenso do paradigma da complexidade. Se a cincia clssi-ca ignorou ou rejeitou durante muito tempo a complexidade, isso ocorreu porque ela no conseguia abord-la a partir do pensamento fechado que a epistemologia cartesiana impunha, tida como a garantia do postulado de objetividade cientfica. Quando foi progressivamente restaurado nas culturas cientficas, a partir do Nou-vel esprit scientifique, de Bachelard (1934) e, posteriormente, a partir da emergncia das novas cincias em 1945-1950, o paradigma perdido (E. Morin, 1973) do pensamento aberto formulado e amplamente desenvol-vido e argumentado por Morin em O mtodo (que props ento chamar de pensamento complexo aquilo que se entendia antes por pensamento aber-to), os partidrios da cincia clssica esforaram-se para resgatar o con-ceito de sistema complexo. Pode-se datar simbolicamente a partir da cria-o do Instituto de Santa F (1985)

    essa empreitada que, na prtica, no visava seno a recuar um pouco as fronteiras do campo apreensvel pelo pensamento fechado, sem, contudo, abri-las e principalmente sem aban-donar a primazia da modelizao matemtica formal. Esses partidrios, ainda numerosos em 2012, preferem ignorar tambm a existncia de mo-delos formais que, embora rigorosos, no se assemelham aos modelos que usam a matemtica tradicional (de acordo com as palavras de H. Si-mon, em 1967, que j citava muitos exemplos).

    Para dar nfase a essa restrio sensvel do alcance epistemolgico e metodolgico do paradigma da com-plexidade que sua reduo ao sim-ples estudo dos sistemas complexos formalmente fechados implicaria, Ed-gard Morin props identificar essas cincias dos sistemas complexos formalizados ou programveis sob a denominao de complexidade restri-ta. Poder-se-ia ento considerar que o paradigma da complexidade geral in-tegra as contribuies metodolgicas da complexidade restrita. Uma am-pliao do modo de pensamento que passa da formalizao de programas automatizveis concepo de estra-tgias autnomas (cf. seu artigo tradu-

    zido em portugus na obra Intelign-cia da complexidade epistemolgica e sociedade (1999).

    IHU On-Line Sob que aspectos podemos compreender o mundo atu-al como globalmente complexo?

    Jean Louis Le Moigne Quan-to menor o gro da matria, mais o descobrimos complexo, escreveu Ba-chelard. A complexidade est vincu-lada tanto ao global quanto ao local. No devemos reduzi-la globalidade. Na mecnica celeste, j se conside-ra o problema da gravitao atrativa de trs corpos (trs somente!) como muito complexo, no sentido de po-tencialmente imprevisvel na prtica (extrema sensibilidade s condies iniciais).

    A complexidade no est a priori na natureza das coisas, e sim na mente dos homens. Associamos ao conceito de complexidade a ima-gem da imprevisibilidade possvel dos comportamentos dos fenmenos que consideramos, a partir do momen-to em que nos propomos a prestar ateno nas interaes internas e externas que relacionam os fenme-nos com os contextos em que eles se desenvolvem.

    Ento, para responder sua per-gunta, digo que sob todos esses as-pectos que podemos entender o mun-do atual em e por sua complexidade. Cada vez que tentamos simplific-lo sob a alegao da eficcia, acabamos em catstrofes humanas e muitas vezes planetrias. Reduzir a poltica internacional luta do eixo do bem contra o eixo do mal, como quis fazer G. W. Bush para conduzir a guerra do Iraque, o trgico exemplo dos efei-tos perversos dessas simplificaes mutiladoras.

    IHU On-Line Em que consiste uma epistemologia construtivista e quais so suas relaes com o para-digma da complexidade?

    Jean Louis Le Moigne Define-se a epistemologia como e pelo estudo da constituio dos conhecimentos vlidos (Piaget, 1967). Isso implica a conjuno explcita de trs grupos de hipteses gerais e genricas:

    A hiptese gnoseolgica versa sobre a gnese, a forma e a natu-

    A aventura do conhecimento

    humanoentrelaa-se

    constantemente com a aventura das sociedades humanas: todos

    ns somos responsveis

    por ela

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    reza do conhecimento; ela pode concernir:

    essncia atribuvel s coisas ou ao Nmeno (a hiptese ontolgi-ca, presumida independente do sujeito cognoscente que a des-creve); ou experincia gerada pela atividade de fenmenos (ou processos percebidos ou conce-bidos pelo sujeito cognoscente knowing system, como dir H. von Foerster).

    origem da determinao das relaes internas e exter-nas que relacionam nmenos e fenmenos; ela pode ser de tipo causal ou determinante, imposta pelas leis da nature-za, independente, portanto, do observador-descritor; ou de tipo teleolgico ou reflexivo, dependente, portanto, do pon-to de vista do observador-des-critor, privilegiando as relaes endgenas de tipo comporta-mento-finalidade, em detri-mento das relaes exgenas de tipo causa-efeito.

    A hiptese metodolgica versa so-bre os critrios atribudos razo humana para deduzir ou inferir conhecimentos a partir de conhe-cimentos de que se dispe ante-riormente: aqueles da racionali-dade silogstica, formal, fechada e dedutiva (substantive rationality, dir H. Simon), estabelecida sobre os trs axiomas da deduo per-feita de Aristteles; ou aqueles da racionalidade tpico-crtica, funcional e aberta (procedural rationality, dir H. Simon), esta-belecida com base nos princpios dialgico, recursivo, transdutivo e de irreversibilidade.

    As opes ticas (pelas quais so valorizados os conhecimentos produzidos) que podem ser tidas como consubstanciais escolha do mtodo, que, sendo postula-do perfeito, deve incorporar uma opo tica subjacente, uma ni-ca, sendo, portanto, fechado. o caso da opo cientificista: o conhecimento tido como cienti-ficamente verdadeiro ser tido como o nico moralmente bom, quaisquer que sejam as prefern-cias pessoais dos observadores

    (como o lema do positivismo se-gundo Auguste Comte: ordem e progresso). Ou as opes ticas podem ser consideradas como dependente da responsabilidade dos atores envolvidos (quer as elaborem, quer se refiram a elas para agir), que se obrigam ento a explicitar os critrios aos quais se referem (como o lema trplice da Repblica [francesa]: liberdade, igualdade, fraternidade). Opo que explicitamente aberta em seu contexto sociocultural.

    As epistemologias construtivistas privilegiam as abordagens de cons-tituies dos conhecimentos vlidos pelo primado de que apresentam op-es ditas abertas, como acabamos de apresentar. Desde a origem, o pen-samento aberto a matriz do pensa-mento complexo segundo as apresen-taes que faz deste Morin. Pode-se ento considerar que o paradigma da complexidade tem seus enraizamen-tos epistemolgicos no terreno frtil das epistemologias construtivistas. Morin, que fala mais em paradigmato-logia do que em epistemologia pro-vavelmente, para fugir das querelas bizantinas de vocabulrio que os epis-temlogos de profisso apreciam , defende s vezes uma epistemologia construtivista.

    IHU On-Line Qual o nexo que une a transdisciplinaridade comple-xidade proposta por Morin e teoria geral dos sistemas, de Bertalanffy?

    Jean Louis Le Moigne J no primeiro captulo do Tomo 1 de O mtodo (1977), Edgar Morin assinala: Embora comporte aspectos radical-mente inovadores, a teoria geral dos sistemas nunca tentou a teoria geral do sistema; ela esqueceu de preparar seu prprio alicerce, de refletir sobre o conceito de sistema. Por isso o tra-balho preliminar do sistema ainda est por ser feito, interrogar a ideia de sis-tema. Por isso acrescenta Morin preciso abrir a problemtica sistmi-ca (Morin, La Mthode, t. 1, 1977, p. 101). Oponho ideia de teoria geral ou especfica dos sistemas a ideia de um paradigma sistmico (irredutvel viso muito simplificadora do Todo, do holismo) (ibid, cap. II-6).

    Na verdade, nunca demais assinalar que a teoria geral dos sis-temas, segundo Bertalanffy, uma teoria holstica formada certamente em reao s teorias reducionistas, as quais comprometiam (e continu-am comprometendo) a prpria ideia de uma organizao transdisciplinar da cincia. No entanto, a passagem do reducionismo ao holismo man-tm o fechamento no todo (a soma das partes), considerando as partes como fraes aritmticas do todo, partes que, por sua vez, so defini-das como objetos, e no como sis-temas (ou processos) sem dar maior ateno s interaes permanentes entre elas.

    Questo epistemolgicaO paradigma da complexidade,

    que se expressa aqui sob o modo pro-jetivo e reflexivo do paradigma da au-toecorreorganizao ativa em contex-tos que evoluem, permite desdobrar os conhecimentos entendidos como processos e de forma transversal. A questo novamente epistemolgi-ca: a passagem de uma concepo dos conhecimentos-resultados, que se acumulam sem se relacionarem, a uma concepo dos conhecimen-tos-processos, que se enrazam no terreno frtil das experincias hu-manas. Permitam-me concluir com duas citaes que esclarecem minha exposio.

    Considera-se cada vez mais atu-almente o conhecimento mais como um processo do que como um estado (Piaget, Psicologia e epistemologia [...], 1970).

    Todo conhecimento adquirido sobre o conhecimento torna-se um meio de conhecimento que esclarece o conhecimento que permitiu adquiri-lo. Podemos ento acrescentar uma via de retorno ao sentido nico episte-mologia-cincia e efetuar passagens de um nvel de conhecimento ao ou-tro e vice-versa. Podemos, ao mesmo tempo, conceber um desenvolvimen-to transformador em que o conheci-mento elaborador tente conhecer-se a partir do conhecimento que ele mes-mo elabora e que torna assim colabo-rador (Morim, La connaissance de la connaissance, 1986).

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    Um pensamento que no recebe ordensCompartimentalizao da Fsica em reas que no se comunicam uma realidade, contudo imprescindvel realizar encontros entre os saberes, adverte Mario Novello. No sistema capitalista de configurao global, a cincia se constri a reboque da tecnologia

    Por Mrcia Junges

    Produzir instabilidade no sistema de conhecimento: essa a fun-o fundamental do cientista. A soluo uma questo da tcnica, o que no significa que ela seja menor. somente dife-rente. No se trata de opor cincia e tecnolo-gia, mas sim exibir o diferente status que elas possuem na sociedade e nos diversos meios de comunicao e governamental na sua orga-nizao como principal financiadora dessas atividades. A ponderao do fsico Mario Novello, na entrevista concedida por e-mail IHU On-Line. Ele destaca que uma das maio-res revolues da Fsica do sculo XXI foi a abertura do pensamento para o no-linear, isto , a utilizao de mtodos e processos no--lineares na descrio de vrios fenmenos. Sobre o pensamento de Edgar Morin, o cien-tista aponta suas origens multifacetadas, cuja consequncia natural no receber ordens, mas investigar incessantemente, produzindo o mais das vezes, a crtica de sua atividade.

    Novello professor do Centro Brasileiro de Pesquisas Fsicas (CBPF), no Rio de Janeiro, onde coordenador do Laboratrio de Cos-mologia e Fsica Experimental de Altas Ener-gias. graduado em Fsica pela Universidade

    Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Uni-versidade de Braslia (UnB), mestre em Fsica pelo CBPF e doutor na mesma rea pela Uni-versit de Genve (Sua), com a tese Algebre de lespace-temps, ps-doutor pela University of Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pela Universidade de Lyon (Frana). Conquis-tou prmios internacionais, destacando-se a Meno Honrosa por Teses em Cosmologia e Teoria da Gravitao, concedida pela Gravity Research Foundation (USA). autor de mais de 150 artigos e de inmeros livros, dos quais destacamos: Cosmos e Contexto (Rio de Ja-neiro: Forense Universitria, 1989), O Crculo doTempo:Umolharcientficosobreviagensno-convencionais no tempo (Rio de Janeiro: Campus, 1997), Os jogos da natureza (Rio de Janeiro: Campus, 2004), Mquina do tempoUmOlhar Cientfico (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005) e Do Big Bang ao universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010). Foi o responsvel pela conduo da oficina A re-latividade,afsicadaspartculaseasorigensdo Universo, ministrada em 17-05-2006 no Simpsio Internacional Terra Habitvel: um desafio para a humanidade.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line Qual a impor-tncia do dilogo entre os saberes, chamada de transdisciplinaridade? Quais so os temas que tm sido tratados transdisciplinarmente pela Fsica e o que esse tipo de aborda-gem trouxe em termos de avano do conhecimento?

    Mario Novello Talvez devsse-mos fazer aqui uma distino para que fique claro por onde iremos penetrar nessa nossa conversa. Creio que no deveramos considerar a Fsica como um corpo s, nico e monoltico. A Fsica (assim como o modo conven-cional de organizar os saberes) se

    compartimentou, dividiu-se em vrias reas que, no mais das vezes, no se comunicam. Enquanto no comeo do sculo XX nas famosas Conferncias Solvay, podamos identificar um grupo de cientistas que representavam todo o conhecimento daquela poca reu-nidos em um grande anfiteatro, hoje

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    isso no de forma alguma possvel. Qualquer sub-rea da Fsica produz reunies cientficas que se estendem por vrios dias e envolvem centenas de participantes.

    Como consequncia, embora cla-ro est, existam aspectos em comum e algumas Leis fundamentais que so gerais, a linguagem de cada uma des-sas sub-sees que os fsicos organi-zam, tpica, singular e seu dialeto dificilmente utilizado por todos. Isso se refere desde aspectos observacio-nais at aspectos matemticos que exceto (repito) por algumas estrutu-ras fundamentais em comum se dis-tinguem de tal forma que se tornam (quase) incompreensvel para outras reas.

    Compartimentao do saberO que estou querendo dizer pode

    parecer dramtico, mas realista: a necessidade da transdisciplinaridade aparece mesmo no interior de uma cincia como a Fsica. Como isso no deve ser exclusivo dessa cincia, deve-mos ento nos preparar para repensar onde estamos indo nessa comparti-mentao do saber para evitar (ou pelo menos aliviar essa especializao atomizada) que cada rea, cada disci-plina, cada grupo de pesquisa ou at mesmo no limite idealizado, cada in-dividuo, possua seu prprio discurso, como se houvesse uma necessidade implcita a cada um levando a limitar seu conhecimento a um territrio to-pologicamente isolado dos demais. Isso dito, como prembulo, podemos ento procurar entender a questo que me foi colocada.

    Encontros de saberesComo exemplo da situao aci-

    ma, vamos tratar daquilo que conhe-cido pelos especialistas, como Buraco Negro no-gravitacional. Explico-me. Creio no ser exagero afirmar que a noo de Buraco Negro foi populari-zada por diversos meios de comuni-cao, desde revistas especializadas em divulgao at jornais cotidianos e entrevistas e programas de televiso. Sabemos assim que um Buraco Negro um estado especial da matria (asso-ciado possivelmente ao resultado do colapso de uma estrela) de processo

    gravitacional que capaz de atrair ine-xoravelmente tudo que est sua vol-ta. Isso envolve uma complicada anli-se que a partir da descrio da Teoria da Relatividade geral foi empreendida.

    Assim, seria estranho e quase incompreensvel imaginar que um tal Buraco Negro poderia ser constru-do sem a ao da fora gravitacional. Entretanto, foi o que alguns cientistas propuseram com sucesso. Estamos desenvolvendo o que chamaramos de Buraco Negro no-gravitacional, produzido por outros mecanismos em ao.

    O que est por trs disso? Nada mais do que a utilizao de uma prti-ca tpica de uma rea (gravitao) em outra (eletromagnetismo, no caso em questo). Para isso foi necessrio rea-lizar uma transposio de saberes ou uma ponte formal capaz de permitir a exibio de um conhecimento escon-dido em um territrio no qual, sem a ponte, se tornaria incomunicvel. Transportar para a cincia chamada Eletromagnetismo algumas caracte-rsticas de mtodos usados em outra cincia como a Gravitao resultou nessa produo fantstica de aproxi-mar propriedades incapazes de serem diretamente observadas por situa-

    es que podem ser controladas em laboratrio.

    Note que no se trata de uma analogia. Trata-se realmente de utili-zao de mtodos formais adquiridos em um territrio e um dicionrio ca-paz de transport-lo para outro. Ou seja, mais do que nunca, somos le-vados a desenvolver esses encontros entre saberes transportando prticas e modos de uns para outros que esto fora de suas rotinas.

    IHU On-Line Nessa perspec-tiva, como o estudo dos fractais, como aquele empreendido por Man-delbrot1, ajuda a compreendermos fenmenos da natureza e sistemas complexos? Quais so os grandes problemas ainda no resolvidos pela Fsica e que podem avanar a partir da perspectiva transdisciplinar e da complexidade, como proposto por Edgar Morin?

    Mario Novello Uma das maio-res revolues da Fsica do sculo XX foi a abertura do pensamento para o no-linear, isto , a utilizao de mto-dos e processos no-lineares na des-crio de vrios fenmenos. Isso foi possvel graas a uma srie de desco-bertas, mas talvez se tivssemos que escolher um nome para simbolizar esse movimento eu citaria o grande matemtico francs Henri Poincar2.

    1 Benot B. Mandelbrot (1924-2010): matemtico francs de origem judaico-polonesa, conhecido pela teoria dos fractais. Sobre seu legado, confira a entrevista realizada pela revista IHU On-Line 349, de 01-11-2010, com o fsico Paulo Mors, intitulada O Universo e seus fractais: a contribuio de Mandelbrot, disponvel em http://bit.ly/bmt6X3. (Nota da IHU On-Line)2 Jules Henri Poincar (1854-1912): matemtico, fsico e astrnomo francs, importante figura no campo da mecnica celeste. Estudioso da matemtica pura e aplicada, empregando os recursos da anlise ao estudo das equaes diferenciais, foi o criador de uma das mais importantes contribuies matemtica: as propriedades das funes automorfas (1880), uma generalizao das funes elpticas. Participou ativamente da polmica sobre a crise dos fundamentos da matemtica, surgida logo aps a formulao da teoria dos conjuntos de Georg Cantor (1845-1918), e afirmou a impossibilidade de reduzir a matemtica lgica, assim como a necessidade de um princpio no-formal para fundamentar a matemtica. (Nota da IHU On-Line)

    A Fsica (assim como o modo convencional de organizar

    os saberes) se compartimentou,

    dividiu-se em vrias reas que,

    no mais das vezes, no se comunicam

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    Foi ele que iniciou de modo sistem-tico o estudo daquilo que chamamos hoje de sistemas dinmicos, uma srie de equaes de natureza no-linear capazes de representar diferentes processos da natureza. Embora seu estudo tenha se iniciado na Mecnica de Fluidos, onde o aspecto no-linear dominante, cedo seu mtodo de investigao se espalhou para outras reas da Fsica e, em seguida, adquiriu universalidade de aplicao como na Qumica e at mesmo na descrio de processos envolvendo estruturas to amplas como fenmenos humanos de vrias espcies. A lista enorme. Filsofos como Gilles Deleuze3, qumi-cos como Ilya Prigogine, engenheiros, psiclogos, e uma extensa srie de pensadores tem usado esses mtodos que no so mais do territrio exclu-sivo da matemtica mas servem para diferentes anlises, estendendo cada vez mais o alcance de sua aplicao.

    Bifurcao e sistemaSomente para citar uma proprie-

    dade notvel dessa anlise eu gostaria de me referir a um dos fenmenos mais interessantes que o da bifurca-o. Talvez o territrio que vou esco-lher para exemplificar esse processo seja o menos esperado: a Cosmologia. Vejamos.

    A anlise de processos de bifur-cao provm do estudo de sistemas dinmicos descritos em uma superf-cie bi-dimensional. Esse o caso mais simples que posso pensar agora. As-sim, o sistema em questo se carac-teriza somente por duas variveis. A evoluo do sistema dada por uma curva nessa superfcie. Se necessrio, podemos imaginar que as duas vari-veis em questo so, por exemplo, a posio e a velocidade de um corpo material; mas essa especificao no necessria, pois podemos igualmente

    3 Gilles Deleuze (1925-1995): filsofo francs. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Brgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas intersees. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos, singularidades, conceitos que nos impelem a transformar a ns mesmos, incitando-nos a produzir espaos de criao e de produo de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)

    pensar a descrio de outros sistemas envolvendo, por exemplo, processos qumicos relacionados rapidez da reao entre diferentes substncias, processos psicolgicos ou at mes-mo uma questo de trfego em uma cidade.

    Pois bem, uma bifurcao nesse sistema bi-dimensional registra a exis-tncia de uma regio do sistema onde a previsibilidade deixa de ser parte formal de sua anlise. Dito de outro modo, uma curva nessa superfcie bi--dimensional caracteriza a evoluo de um processo. Cada ponto dessa curva pode servir como ponto de par-tida para uma determinao futura, ou seja, a caracterizao da evoluo est inscrita nessa curva. Diferentes curvas so diferentes histrias com condi-es iniciais distintas e, consequente-mente, evoluo distinta. Entretanto, dentro de cada curva podemos utilizar a noo associada ao determinismo desse processo, ou seja, o conheci-mento completo futuro de uma traje-tria se faz a partir do conhecimento inicial dessa curva. Exceto se o sistema tal que em um dado ponto da super-fcie um ponto de bifurcao ocorre. A partir desse ponto a trajetria do ca-minho para alm desse ponto deixa de ser previsvel: o sistema entra em uma

    regio onde a previsibilidade deixa de ser uma caracterstica do sistema.

    O Universo e a complexidadeAo examinarmos algumas parti-

    cularidades das equaes de Einstein4 da Relatividade Geral, mostrou-se que sob certas condies o Universo admi-te a presena de uma bifurcao. Isto , o sistema de equaes que descre-ve o Universo neste cenrio admite a descrio em termos de um sistema dinmico que possui bifurcao. Isso significa que no modelo de Universo controlado por aquelas equaes a descrio desse Cosmos imprevis-vel. Creio que todos ns estaramos de acordo em afirmar que uma tal propriedade possui consequncias extraordinrias e certamente conduz a uma viso do Universo distinta da convencional.

    O notvel que esse processo que descrevemos usando uma situa-o particular em nosso conhecimen-to da Cosmologia pode ocorrer em ou-tras reas. A utilizao desses sistemas ditos complexos, envolvendo sua des-crio por meio de funes no-linea-res transbordou para outros modos de investigar processos na natureza no--orgnica e orgnica tornando-se um poderoso mtodo de anlise desses sistemas complexos.

    IHU On-Line Em entrevista que o senhor nos concedeu em 2010, afir-

    4 Albert Einstein (1879-1955): fsico alemo naturalizado americano. Premiado com o Nobel de Fsica em 1921, famoso por ser autor das teorias especial e geral da relatividade e por suas ideias sobre a natureza corpuscular da luz. , provavelmente, o fsico mais conhecido do sculo XX. Sobre ele, confira a edio n 135 da revista IHU On-Line, sob o ttulo Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabilis, disponvel em http://migre.me/16Mto. A TV Unisinos produziu, a pedido do IHU, um vdeo de 15 minutos em funo do Simpsio Terra Habitvel, ocorrido de 16 a 19-05-2005, em homenagem ao cientista alemo, do qual o professor Carlos Alberto dos Santos participou, concedendo uma entrevista. Leia, ainda, a edio 130 da IHU On-Line, de 28-02-2005, intitulada Einstein: 100 anos depois do Annus Mirabilis. Joo Paulo II. Balano e perspectivas, disponvel em http://migre.me/16Mur e a edio 141, de 16-05-2005, chamada Terra habitvel: um desafio para a humanidade, disponvel em http://migre.me/16MuZ. (Nota da IHU On-Line)

    Mais do que nunca, somos

    levados a desenvolver

    esses encontros entre saberes transportando

    prticas e modos de uns para outros que esto fora de

    suas rotinas

  • SO LEOPOLDO, 10 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIO 402

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    mou que compartimentar os saberes se configura numa prtica de domi-nao poltica. Em que medida avan-a a tcnica e regride o saber a partir dessa concepo fragmentria?

    Mario Novello Em um dos pri-meiros nmeros da revista eletrnica Cosmos e Contexto (www.cosmose-contexto.org.br) em um artigo do pensador espanhol Ortega y Gasset5 ele comenta de uma forma brilhan-te e agradvel o mal que a especiali-zao produz sobre as atividades do saber. Todos ns reconhecemos que no sistema capitalista de configura-o global, a cincia se constri a re-boque da tecnologia. Parece que a sociedade moderna est derrubando todo vestgio de encantamento que a descoberta cientfica pode conceder reduzindo a atividade do cientista a uma busca pela tcnica, ou como se diz ultimamente, pela inovao. No sem consequncia que os rgos de financiamento da pesquisa fundamen-tal, como o CNPq e o Ministrio da Cincia e Tecnologia MCT em geral, estejam mais do que nunca utilizando o termo pesquisador ao que antes se conhecia pelo termo cientista. Essa mudana de terminologia no ocasional nem sem consequncias. Ela traz em si a ideia de que o pesquisador se lana em uma busca para resolver um problema conhecido. Ou seja, te-mos a priori um problema. Resta en-to encontrar sua soluo.

    A orientao do cientista distin-ta. Ele procura produzir um problema, mesmo ali onde o conhecimento pare-ce ser estvel e seguro. Produzir insta-bilidade no sistema de conhecimento: essa a funo fundamental do cien-tista. A soluo uma questo da tc-nica, o que no significa que ela seja menor. somente diferente. No se trata de opor cincia e tecnologia, mas sim exibir o diferente status que elas possuem na sociedade e nos diversos meios de comunicao e governamen-tal na sua organizao como principal

    5 Jos Ortega y Gasset (1883-1955): filsofo espanhol, que atuou tambm como ativista poltico e jornalista. Sobre o autor, confira a entrevista concedida por Jos Maurcio de Carvalho, Pampa. Um espao humano de promessas e realizaes, concedida IHU On-Line n 190, de 07-08-2006, disponvel em http://migre.me/16MA9. (Nota da IHU On-Line)

    financiadora dessas atividades. Ou seja, parece que estamos entrando em uma ordem econmica e social na qual o desenvolvimento brasileiro exi-ge o aparecimento de um contingente grande de tcnicos e cada vez menos de cientistas.

    Se voc conversar com os dirigen-tes, a maioria deles ainda se resguarda de explicitar qualquer forma de dico-tomia a nvel institucional, e argumen-tam que o conhecimento deve ser no enciclopdico, mas prtico. Leia-se: primado da tcnica. Se essa premissa for verdadeira, ento entendemos que a fragmentao a que estamos referin-do uma consequncia intrnseca de uma diretriz do Estado em detrimen-to do conhecimento que no possua uma forte componente tcnica.

    IHU On-Line Gostaria de acrescentar algum aspecto no questionado?

    Mario Novello Sim. Em seu belo livro Mes philosophes (Meaux: Germi-na, 2011), Edgar Morin termina sua in-troduo argumentando que ele havia escapado ditadura do pensamento convencional dominante, e em parti-cular quilo que estamos chamando de especializao, atravs de uma vertente autodidata e em particular graas multiplicidade de suas fon-tes que ele admite ser de diferentes e variadas orientaes, chamando de matres por exemplo Herclito6, Lao--Ts, Breton, Bataille7, Von Foerster , Spinoza8, Heidegger e outros.

    6 Herclito de feso (540 a. C. 470 a.C.): filsofo pr-socrtico, considerado o pai da dialtica. Problematiza a questo do devir (mudana). Recebeu a alcunha de Obscuro principalmente em razo da obra a ele atribuda por Digenes Larcio, Sobr