Edgar Wallace - Os homens de borracha.doc

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EDGAR WALLACEOS HOMENS DE BORRACHATraduo de AGRIPPINO GRIECO

EDITORA CULTRIXSO PAULO

Ttulo do original em ingls: THE INDIA-RUBBER MEN MCMLXIX Direitos exclusivos para o Brasil adquiridos pela EDITORA CULTRIX LTDA. Praa Almeida Jr., 100, Fone 278-4811, So Paulo que se reserva a propriedade desta traduo Impresso no Brasil Printed in Brazil

Da capa do livro:Um ttulo excntrico? Talvez. Mas ele diz respeito a um bando de assassinos que usavam mscaras de borracha, luvas de borracha e sapatos de borracha para assaltar bancos e joalherias e para cometer os piores crimes, bem sob os olhos da polcia.

CAPTULO INa manh nevoenta o bote cortava as guas com rapidez. Dois pares de remos batiam na corrente com um s rudo compassado, manejados por marinheiros hbeis. Seguia ele ao longo do Surrey, procurando caminho no meio de uma barafunda perigosa de canoas, de lanchas e de chatas atracadas. Muito longe, o sol nascia, num cu ainda cheio de nuvens sombrias; pequenas luzes tremiam na margem e no rio. O mercado de Billingsgate apareceu numa grande mancha luminosa, e os arcos de lmpadas das embarcaes brilhavam como estrelas. O rio despertava: o arfar dos motores a leo, o ranger das polias, o estalar das madeiras e o rudo dbil de correntes arrastadas, tudo chegava ao bote numa sinfonia imprecisa. Passava ele agora por um grande amontoado de barcos de pesca, e ia tomar a direo norte quando uma forma escura se foi desempastando nas tintas confusas do rio. O remador da frente apurou o olhar e reconheceu as linhas de uma lancha; abandonando os remo. ele grunhiu para o companheiro: Wade! Mas na escurido veio um cumprimento amvel: Al, meus amigos! Temos novidades? A lancha da polcia, em manobra rpida, aproximou-se mais do bote. Algum completou abordagem puxando a canoa com um gancho. Sou eu, sou eu, Sr. Wade. amos num passeiozinho at Dorlin, disse um dos remadores, a voz alta, em falsete, pontuando as frases com involuntrias fungadelas. Sim, meu rapaz? A voz que vinha da lancha da polcia exprimia uma surpresa enorme: Sim, bom amigo? Mas que far por estas bandas o meu amiguinho Fungador a uma hora destas? A manh est nublada, e muito cedo ainda para que os jovens pssaros abandonem os ninhos. Mas quero ver o que h por a... Um poderoso jato de luz devassou o interior do bote, numa invaso implacvel. Os dois homens levaram logo as mos aos olhos. Uma pequena caixa, disse a voz spera do Inspetor John Wade. Parece uma caixa de usque... Aposto como no outra coisa! Estava boiando no rio, explicou, meio sem jeito, aquele que fora chamado de Fungador. Eu e o Harry s fizemos pesc-la... Ento tivemos pescaria hoje! Acredito, rapazes. Mas melhor que

venham saltando para a lancha para um ajuste de contas... Os dois "ratos" do rio nada disseram; saltaram para a lancha, que rumou para a estao de polcia da outra margem. Bem que nos poderia mandar embora, Inspetor Wade, no acha? Londres uma cidade que est cheia de ladres e de assassinos, e o senhor se preocupa em levar para a polcia dois pobres pescadores do rio! Veja aquela mulher assassinada nos jardins de Cranston... Veja os Homens de Borracha... Cale a boca! disse o companheiro, num grunhido. Continue, Fungador, disse Wade, gentil. Ainda no estou muito surdo, graas a Deus. Voc falou nos Homens de Borracha? Sim, censuravame... e tambm censurava as investigaes da Polcia Metropolitana... Est direito, Fungador. Jogue-me sempre esses desaforos... Cale a boca, Fungador! tornou o grunhir o segundo prisioneiro, e o Fungador achou bom no continuar a falar no caso. Agora, uma coisa, para onde levava voc esse usque? Interessava-me muito essa questo de usque, de caixas de usque roubadas... Tenho vocao manifesta para bootlegger. Diga-me a verdade, Fungador, que eu a ocultarei no fundo do meu corao!... Como resposta ouviu-se uma srie de fungadelas indignadas. Meu rapaz, diga ao papaizinho... Eles no podiam ver direito, na escurido, o homem que falava, mas adivinhavam a face desamvel de John Wade. Seria para alegrar os coraes tristes dos pobres marinheiros de "Meca"? O que seria, alis, um ato de grande caridade. Esses pobres rapazes que cortam os mares merecem algum conforto. Tambm podia ser para o pobre Golly, coitado... Houve uma exploso. Bem sabe que no adianta estar com insinuaes sobre isso, Inspetor Wade, o senhor bem o sabe... A lancha encostava a um pesado flutuante; atracou afinal. Algum, na treva do cais, fez uma pergunta. So dois jovens pescadores, sargento, disse Wade. Ponha-os no xadrez. Naquele dia Wade fez uma visita ao Clube Meca e sua diretora, Sra. Annabel Oaks. O Sra. Oaks, por uma interferncia policial, fora obrigada a registrar o clube como uma vulgar casa de penso, e entre as desvantagens desse registro estavam as visitas constantes da polcia. A qualquer hora do dia ou da noite um inspetor de polcia podia entrar para examinar os livros e os hspedes, e isso, em certas ocasies, talvez se tornasse inconveniente e

perigoso. Ela se queixava horrivelmente dos hspedes. Bela coisa, hein? Um clube para oficiais, e vai pela casa uma desordem dessas! verdade que essas queixas da Sra. Oaks podiam abater-lhe uma boa porcentagem na lista de hspedes. Mas o "Meca" era mais apropriado, de fato, para suboficiais da Marinha Mercante. Ali os homens estavam mais perto das docas, das oficinas e dos escritrios das companhias de navegao e o passadio, se no chegava a ser principesco, convinha aos marinheiros por uma srie de motivos especiais. "Mum" Oaks era pessoa de bom trato, especialmente se os hspedes fossem gentis. O Clube dos Oficiais de Marinha nem sempre fora um clube. O nome de "Meca", que lhe tinham dado os freqentadores, dentro de uma inspirao misteriosa, afigurara-se dona da casa, a princpio, um pouco forado. A casa nunca recebera hspedes negros, e "Meca" devia ser um lugar em que s vivessem negros. Mas a proprietria achava sempre jeito de responder aos perguntadores fazendo uma digresso sobre a f, a esperana e a caridade de "Meca", terra de peregrinaes, e no precisava ser insolente para com os hspedes. Golly parecia inteiramente incapaz de dar a algum uma resposta insolente. Era um homenzinho baixo, meigo, amvel. Um bigode arruivado caa-lhe at o queixo disforme. Fora uma vez taifeiro; nos momentos de entusiasmo alcolico excedia-se na narrativa dos tempos em que mandara num grande navio; ante a sua decadncia presente, poucos acreditavam nessas gabolices. Ele cantava baladas sentimentais numa voz de falsete, e encontrava por isso, em sua pessoa, semelhanas com alguns astros populares do cinema; e, diziam, nos momentos em que ningum o observava, ensaiava pequenos papis dramticos, seguindo as instrues do volume Em direo ao cinema, de uma conhecida atriz dos estdios de Hollywood que de to conhecida no se animava a por o nome na capa do volume. O Sr. Oaks tinha tambm aspiraes pera. Os hspedes do "Meca" muitas vezes se reuniam para comentar a voz de Golly, porque ele cantava pior quando rachava lenha, e parecia estar sempre rachando lenha... "Mum" era rudemente maternal, como o dizia seu prprio nome. Magra, para no dizer esqueltica, fazia ondas no cabelo castanho, o que de modo algum lhe melhorava a figura, porque a face que o cabelo emoldurava era rude, quase repelente. Alguns hspedes chamavam-na (pelas costas) de Mame Cara de Bronze, mas para uma centena de jovens que corriam os mares do mundo ela continuava a ser simplesmente "Mum". Os "aposentos" do "Meca" eram uns de madeira e outros de tijolo. Os de

tijolo haviam pertencido a uma antiga casa de bebidas, e seriam por isso mais confortveis. A histria da reunio dessa casa de bebidas a uma construo de madeira sobre um desembarcadouro abandonado era das mais pitorescas. O panorama, dali, atraa sempre: o rio largo, cheio de barcos e de lanchas. Por ali ficavam os cargueiros alemes. E as bandeiras dos navios de terras longnquas divertiam os hspedes e as crianas. Lila Smith costumava ficar, fascinada, grande janela da sala de jantar, observando o movimento sereno das embarcaes que subiam o rio. Conhecia como a palma da mo os navios de leo, os cargueiros espanhis que traziam laranjas do Sul, os rebocadores ingleses, com os seus nomes de rapazes e de casais, Tommy, Johnny, John and Mary. E reconhecia o vulto dos barcos mesmo noite. Os hspedes do clube que voltavam de longas viagens observavam que Lila no era mais uma criana. At ali, ela nunca despertara ateno; mas agora havia nela um encanto que ningum antes descobrira, e que seria difcil esquecer. Lila sempre fora assim, bonita, com o rostinho redondo e os olhos grandes. E essa beleza se definira, afinal. Muitas vezes ficava janela, a graciosa cabea emergindo do vestido preto, os ps metidos em sandlias rsticas, a fitar o movimento do rio: o som de uma sirena, o ofegar de uma lancha a leo, uma corrente arrastada, qualquer desses detalhes logo a trazia para ali. O novo hspede do 7 quer um pouco de ch, Lila. No fique a abobalhada como uma girafa. V atender ao rapaz. Era Mum, que chegara sala, e descobrira a rapariga em sua ocupao favorita. Sim, titia. Lila Smith correu para a cozinha. Aquela voz aterrorizava-a. Algumas vezes chegara a pensar numa outra espcie de vida; e tinha mesmo uma vaga idia do que pudesse ser essa vida nova. Sonhava com rvores e jardins bonitos no parque de Greenwich, e com gente mais delicada e risonha. E esses sonhos lhe vinham justamente quando ela observava as embarcaes que subiam e desciam o Tmisa. Sonhava tambm agora, preparando o ch ou mandando a criada lev-lo ao n.9 7, ao lado das fatias finas de po com manteiga. A pequena janela quadrada que ventilava a cozinha estava escancarada. Do lado de fora ela sentia a manh fria, em que o sol fraco ia espalhando tintas de ouro plido. De repente fixou o olhar. Um homem olhava para ela do cais, um homem alto, de rosto firme e atraente. Tirara o chapu, e mostrava assim os cabelos curtos em relativa desordem.

Bom dia, princesa! Ela sorriu, com o seu sorriso assustado um sorriso que se iluminava e morria logo, deixando as faces rosadas ainda mais srias. Bom dia, Sr. Wade! Assustara-se mesmo. Wade era o nico homem no mundo que produzia nela algum efeito. Mas no se assustava por isso. Mum sempre lhe dissera que os representantes da polcia devem ser mal recebidos pelos fora-da-lei. E o aviso spero sempre lhe bailava aos olhos. Wade significava muita coisa para ela, mas a razo dessa importncia fora at certo tempo muito obscura. Durante longos anos olhara para ele como para um velho, como para Golly; mas um dia, sentindo-se moa, comeou a consider-lo um contemporneo. Ele nunca a interrogava, nem nunca lhe pedia informaes sobre o que ocorria pela casa, e os exames de Mum nada descobriam de perigoso nas conversas entre o homem da lei e a rapariga inocente. Por que todos o chamam de "trabalhador", Sr. Wade? Perguntara aquilo num impulso de momento, para vencer o susto inicial. Porque trabalho, princesa, disse ele gravemente. Porque trabalho muito. Fez uma pausa e olhou para ela, firme. Lila nunca sabia ao certo quando ele falava srio ou quando brincava, ao usar aquele estranho tom de voz. E o que h de novo sobre a "aristocracia"? sugeriu ele. Lila se agitou por um instante. Gostaria de que o senhor se esquecesse daquilo, disse ela, com um olhar apreensivo para a porta. Uma brincadeira... Eu... eu no dizia a verdade, Sr. Wade. Queria somente impression-lo um pouco... Voc no pode mentir, interrompeu Wade, calmamente. Quer mentir agora, sim, e no consegue. Quando voc me disse que, s vezes, tambm conhece a "aristocracia", no estava mentindo. (Levantou a mo, num gesto nobre): Bom, no discutiremos mais isso. Como tem passado os ltimos dias? Ela, tambm, ouvira os passos pesados de Mum, e recuara um passo. Olhava com inquietude para Wade, certa de sua fidelidade, quando Mum entrou no aposento. Como vai, Sr. Wade!... Nada de novo por aqui? Veio somente cumprimentar Lila? Sua voz era marcada, vibrante, venenosa. De todas as criaturas que odiava, John Wade figurava seguramente nos primeiros nomes. Com um gesto ela mandou Lila embora, e fechou a porta. No venha para c interrogar as crianas. Seja um homem... Aparea pela porta da frente.

Voc no tem porta de entrada, respondeu Wade em tom divertido. E por que se est zangando, minha menina? Vim interrogar Golly, num esprito de muita cordialidade at... Ele est no cais... e no me chame de "menina"! disse a mulher, selvagem. Wade, cuja fraqueza eram os eptetos enternecidos como esse, balanou os ombros. Vou at l, disse simplesmente. Vira Golly e tinha a certeza de que ele o vira. O homenzinho rachava lenha e, quando o detetive se aproximou, deps o machado e levantou-se com uma expresso desanimada, que se aprofundou quando o detetive lhe fez a primeira pergunta. Usque? Que tenho eu a ver com usque?... Sim, conheo o Fungador. Um barqueiro sem importncia, um desleixado, que nem por nada no mundo eu queria aqui no clube. Um homem baixo, com companheiros pssimos (falava muito rapidamente). O provrbio que diz a verdade: "Um pssaro conhece-se pelo canto; um homem pelos companheiros..." No acredito, objetou Wade. Tenho ouvido muita coisa, nos ltimos dias, a respeito dos Homens de Borracha. Oaks deixou cair os braos, num gesto de aborrecimento. No sei de nada a respeito desses homens de borracha... S sei o que dizem os jornais, o povo. Para isso existe a polcia, e para isso ns a mantemos e lhe fornecemos alimento, roupa, automveis, lanchas... E muito bom alimento, muito boas roupas, concordou Wade, piscando os olhos. Nunca vi um policial bem nutrido sem pensar em voc, Golly. Mas Golly no se deixava derrubar assim de supeto. Homens de Borracha! Salteadores, ladres de bancos! Que tenho eu com isso? Sou um banqueiro? Sou um cofre-forte? Por acaso vivo nadando em ouro? No posso responder, murmurou Wade. E voltou questo do usque roubado e, quando o Sr. Golly Oaks, enojado, fechou os olhos e recitou uma lengalenga sobre a probidade dos hspedes do Clube Meca, Wade contemplou-o em silncio, fitando o declamador com olhos de guia, se uma guia pudesse possuir aqueles dois olhos azuis e fagulhantes. Bonito! disse ele, quando Golly chegou ao fim da apologia dos hspedes. Voc devia estar no Parlamento, cara de anjo! Levantou a mo, olhou mais uma vez para o amontoado disforme do clube, e voltou para a lancha da polcia, que deixara oculta entre a barulheira dos barcos do cais.

CAPTULO IITrs noites mais tarde... O maquinista, tambm timoneiro da lancha da polcia, observava de modo vago que fazia muito frio, para aquele tempo do ano; e John Wade, acostumado queles resmungos constantes, respondia sardonicamente. Ele prprio se considerava um homem velho; tinha, de fato, trinta e cinco anos, o que no grande idade e, ao contrrio, juventude, para um inspetor da polcia do Tmisa. Muitas vezes penso, senhor... comeou o maquinista, sentimental, quando a lancha passou a ponte dos Beneditinos e comeou a correr ao longo do grande dique. Duvido, disse Wade. Duvido muito, sargento. Em todo caso, pode ser que quando esteja fora do servio... Muitas vezes penso, senhor, continuou, imperturbvel, o sargento, que a nossa vida mais ou menos como um rio... Est comunicativo, hoje, sargento, mas eu no o estou. Contenha-se um pouco. O senhor tambm ficar comunicativo, um dia... Quando encontrar uma dona para o seu corao. Os solteiros no compreendem esses sentimentos. Wade no escutava. A lancha corria rente ao dique que continha o rio. Na noite cheia de estrelas, no havia nem sinal do nevoeiro peneirado que cairia sobre Londres na noite seguinte. Durante toda a tarde John Wade inspecionara embarcaes de carga. Achara o corpo de um afogado, boiando no rio. Passara a manh no Tribunal de Polcia do Tmisa, depondo no processo de um marinheiro doido, que se metera na cabea afundar a barcaa do patro que o maltratava, e que no o conseguira por ter Wade chegado a tempo de evitar o desastre. Agora, pairando sobre essas pesquisas menores, uma instruo do chefe o tirara do caminho do leito aquecido, com ordens para aparecer em Scotland Yard; e tinha quase a certeza de que se tratava dos Homens de Borracha. Como leitor da seo policial dos jornais, interessava-se pelo caso desses Homens de Borracha, no qual no exercia ao direta; como oficial de polcia, conduzira somente algumas investigaes ligeiras em torno do caso dos misteriosos salteadores de bancos e, num raciocnio cerrado, compreendia que desde a semana passada os tais salteadores prejudicavam a vida de Londres. Ele chegara a formular uma teoria e agora ia sofrer por se haver intrometido nisso.

Chamavam a esses meliantes os Homens de Borracha, porque no encontravam nome mais apropriado. Havia em seus planos qualquer coisa de elstico e nos seus movimentos uma flexibilidade espantosa; e o nome dado no primeiro momento se foi apoiando em pontos sucessivos das proezas dos ladres de bancos; eles usavam mscaras e luvas de borracha, e sapatos de sola de borracha. Cada um dos ladres entrevistos em vrios assaltos levava uma pistola automtica no cinturo, e trs cilindros pendentes, que os peritos afirmavam serem bombas de gs. Talvez mesmo fossem estas ltimas o principal armamento do bando. Tinham sido vistos na noite em que esvaziaram o cofre de Colley & Moore, joalheiros em Bond Street; e naquele fim de semana abriam com a mesma calma a casa-forte do Banco do Norte e do Sul, deixando aps si um vigia agonizante, que morreu mesmo antes da chegada da polcia. A razo de sua morte era clarssima: na mo crispada havia uma tira de borracha da mscara contra o gs, que ele arrancara certamente de um dos salteadores; enxergara o rosto de um deles, e por isso fora sacrificado. No me surpreenderia, disse o sargento-maquinista, trazendo a lancha um pouco mais para perto da borda do dique, se o bando Wapping estivesse metido nesse caso da borracha... Wade, olhando para a frente, vira de maneira indistinta uma forma humana inclinar-se sobre o parapeito do dique. A lancha no caminhara ainda vinte jardas, e ele observou que a forma se inclinava mais e mais, desaparecendo num segundo. a grande massa branca de gua que se levantou veio mostrar que o corpo cara no rio. O maquinista tambm percebera tudo. Uma volta do leme levou a lancha para perto. sua direita, Inspetor. O senhor pode segur-la com as mos. Wade ajoelhara-se borda direita da lancha, e o timoneiro fazia fora do lado oposto, para equilibrar a embarcao. Por um segundo a forma humana desapareceu no seio do rio. Reapareceu logo depois debaixo da proa da lancha e John Wade, estendendo as mos, agarrou o corpo e logo o iou para o barco. Era uma mulher. A senhora acha de se suicidar exatamente quando vou para uma conferncia importante? perguntou ele, furioso. Um pouco de luz aqui, sargento! O motorista acendeu uma lanterna. Os dois olhos assustados da mulher desprendiam fascas. O senhor no a tirar de mim!... No o permitirei! rosnou ela. Apertava alguma coisa de encontro ao peito: um pedao de papelo meio amarrotado. No lhe quero tirar coisa nenhuma! disse Wade, caricioso.

O sargento sacou do bolso um frasco de brandy e obrigou a mulher a beber algumas gotas. Mas os dentes dela se cerraram, para resistir: No... no me d isso... Quero ir para junto de minha menina... O coronel disse... No me interessa o que tenha dito o coronel, resmungou o inspetor. Beba isso, que faz bem. Tirou um leno do bolso, para aparar as gotas de brandy que se perdiam. E quando fazia isso, reparou no objeto que a mulher apertava com fora. Era a fotografia de uma criana. Viu-a rapidamente, luz fraca da lanterna, mas nunca se esqueceria dela. At aquele momento pensara que todas as crianas se parecessem; mas vira ali um tipo novo, no comum, naquele retrato de uma criana de olhos redondos. Reconhecera o retrato e resmungou: Com todos os diabos! O que ser isso? A questo se esclarecia. Era o retrato de Lila Smith. Um retrato de menina e essa menina era Lila Smith. O que isso? repetiu ele. No lhe darei o retrato! Nunca, nunca! Maldito!... A voz se lhe foi tornando um murmrio inarticulado; os dedos, crispados, afrouxaram-se. Cuidado com ela, Toller. Vai desmaiar. Quando tentou tirar a fotografia daquela mo frouxa, s conseguiu trazer entre os dedos uns frangalhos do papelo. Alm do mais, no lhe interessava identificar a mulher desconhecida. Aqueles casos eram comuns. s vezes a lancha da polcia fluvial no dispunha de muito tempo, e por isso nem sempre examinavam o fundo do rio com longas cordas embebidas de leo e de graxa. Achavam-se coisas estranhas, no leito do velho Tmisa; uma vez tinham pescado o eixo de uma biga romana; de outra vez encontraram o que restava de um homem encadeado da cabea aos ps, a evidenciar um horrvel assassinato. Os que apanhavam vivos eram levados ao tribunal da polcia fluvial e dormiam uma ou duas noites nas lajes frias do xadrez. Os mortos enchiam sepulturas sem cruzes e sem nomes, e s tomavam meia hora do tempo de um comissrio muito ocupado. Lila Smith? bem que Wade tentou recompor a fotografia, dar--lhe a forma antiga. Mas os frangalhos se obstinavam em permanecer separados. A lancha deteve-se junto ao pilar da ponte; um guarda do Tmisa tomou da fotografia com ademanes cientficos; um outro guarda saiu pelo meio da noite e trouxe um pequeno veculo de duas rodas, destinado a levar a mulher ao hospital de Westminster. Wade, carrancudo ainda, entrou no gabinete do superintendente da Scotland Yard. Os quatro chefes principais j estavam em conferncia.

Lamento chegar atrasado, senhor, disse Wade. Uma mulher disposta a acabar com a vida jogou-se no rio frente da minha lancha, e foi isso o que me fez perder tempo. O chefe-geral recostou-se na poltrona bocejando. Trabalhava desde as seis da manh. Tirou depois da gaveta da mesa um papel e falou: Est aqui o seu relatrio. O senhor diz que h uma lancha de corridas que desce e sobe o rio mais ou menos nos momentos de grandes assaltos. Chegaram a observ-la distintamente? John Wade balanou a cabea. Ainda no, senhor... Ainda no foi vista com preciso, e somente a observaram distncia. Tenho a idia de que uma lancha pintada de preto; no leva lanternas ou faroletes, e no foi possvel det-lo ainda, pela velocidade em que sempre vai. O primeiro detalhe que nos chamou a ateno foi a queixa de um grupo de barqueiros contra o barulho que ela despertava, altas horas da noite. E os passageiros passam sempre encapuados, e s por isso no foram reconhecidos. A lancha no tem faroletes? No, senhor. At hoje somente dois homens a viram de perto. O primeiro um ladro do rio, chamado Donovan, que foi preso h uns dois meses, quando assaltava um cargueiro. Disse ele que, com um colega, estava noite numa pequena canoa, passeando pelo rio inocentemente, declarou ele, no que no acreditei quando a tal lancha surgiu da escurido e os dois tiveram que fazer uma manobra rpida para evitar o abalroamento. Se o barco no caminhasse com a velocidade regular, a estas horas o Sr. Donovan estaria reduzido a cinzas. A nica coisa que ele pde dizer a respeito da lancha que ela era muito pequena e no tinha forma alguma de uma lancha a motor. Procurei comparar as datas e verifiquei que as aparies da lancha fantasma coincidiam com os assaltos dos Homens de Borracha. Onde foi vista a lancha? indagou o Chefe-geral. (Esse Chefe-geral era um homem que, quando falava, dava sempre a impresso de estar meio adormecido. E, coisa curiosa, nunca o estava...) Ali pelo oeste, junto ponte de Chelsea, disse Wade. Foi ali vista pelo segundo homem, que tambm um ladro do rio, um pouco complicado. Ele tem uma espcie de pequeno armazm em Hammersmith, armazm que invadimos h algum tempo para buscas e seu nome Gridlesohn. Digo que meio complicado porque nos ltimos tempos tem estado muito prdigo em denncias, como quem sente que esses ladres de bancos o ameaam no rio, pondo em perigo os seus prprios "ratos". Nesse sentido, ele conta com a minha simpatia. Jennings, um dos chefes principais, jogou uma grossa fumaa de cachimbo em direo ao teto e abanou a cabea.

Por que os Homens de Borracha escolheriam o rio para fugir? Bem que gostaria de sab-lo. H vinte caminhos que permitem sair de Londres, e o rio o mais longo de todos. Pode-se sair de Scotland Yard para qualquer lado da cidade num txi, sem que um policial, entre mil outros, consiga notar coisa alguma. A minha opinio que esses Homens de Borracha esto em vspera de desferir um grande golpe; depois disso, cheios de dinheiro, levantaro o acampamento... por alguns anos, talvez. Um terceiro membro da conferncia, um tipo com cara de estudioso, de seus cinqenta anos, que controlava os negcios com o exterior, interrompeu-o. Tenho a certeza de que se trata de uma quadrilha internacional. A polcia de Nova Iorque teve tambm os seus homens de borracha; e, na Frana, o banco de Marselha foi depredado, mataram o caixa e um vigia, nas mesmas circunstncias em que esvaziaram o banco do Norte e do Sul. Quanto sua opinio de que eles esperam um grande golpe... A campainha do telefone tilintou. O Chefe-geral tomou do fone e ouviu. Quando? perguntou ele. Houve uma pausa e, ento: Vou j. Desligou e, levantando-se da cadeira, disse: O comissrio de servio comunica que esto apagadas as luzes do gabinete do gerente do banco Frisby. Pareceu-lhe tambm notar um homem dentro do gabinete. Comunicou-se com o inspetor da diviso... Tome nota do nome do comissrio, para a promoo, Lane. Dois dos quatro homens j saltavam para os automveis que Wade encontrou no ptio. Os detetives tambm se acomodavam. O banco Frisby ficava na extremidade da rua St. Giles: era um dos poucos bancos particulares que tinham sucursais em West End. Um edifcio pequeno, moderno, ligado por uma ponta que saltava sobre o ptio a uma casa mais velha; ficava numa esquina, e assim no escapava vigilncia de um guarda sempre destacado para a rua o guarda que dera o aviso. No momento em que a polcia chegava ao lugar, a rua j estava cheia de guardas, e um cordo de isolamento fora estendido em torno do banco. O gabinete do gerente dava para a outra rua, ao lado da sala de vigilncia geral do edifcio. Duas lmpadas estavam sempre acesas ali, dia e noite, e essa sala da vigilncia era visvel do ponto em que o guarda controlava o trfego. A histria do guarda foi rapidamente narrada. Achava-se ele no canto da rua, esperando por aquele que o viria substituir; o relgio da torre batera a ltima pancada da meia-noite; nesse instante ele vira as duas luzes apagarem-se. Saiu correndo pela rua, forou a porta e apertou o boto da entrada. Voltou ento para o gabinete do caixa; nada viu ali de anormal; subira pela escada de incndio, at o gabinete do gerente; e fora ento que, movendo o jato de luz da lanterna de mo, descobrira um homem que

deslizava suavemente na sombra da sala de segurana. A multido comeava a agitar-se contida pelo cordo de segurana que a atrara quela hora da noite; o trfego fora interrompido e as ruas, num crculo de cinqenta metros partindo do Banco, tinham sido batidas. No momento em que o guarda acabava a sua narrativa, chegou o gerente do banco com as chaves. Disse ele que devia haver um vigilante de guarda, e no compreendia que s repetidas pancadas porta ningum respondesse. Os detetives j tinham subido pelas escadas de incndio, e vigiavam o telhado. As construes eram uniformes; havia um ptio guardado por dois portes slidos, ao lado do edifcio, e esse ptio separava as construes novas de uma casa antiga, de propriedade do banco, onde se instalara a diretoria. O ltimo andar era ocupado pelo vigilante noturno, um vivo de cinqenta anos, que morava com a filha e fiscalizava pela madrugada a limpeza dos escritrios. A nica vantagem do ptio com os dois portes, explicou o gerente, consistia em que ali os diretores e os clientes mais ocupados podiam guardar os automveis. Todas essas explicaes foram dadas em grande balbrdia, e o gerente tremia ao tentar introduzir a chave na fechadura. Afinal, abriu-se a porta. melhor que voc ordene a busca, Wade... Dem uma arma ao Inspetor! Algum trouxe uma pistola para Wade, e ele penetrou na sala escura; a porta de entrada do gabinete do gerente estava fechada; tinham-na trancado por dentro, mas a patrulha volante trouxera os instrumentos necessrios; a porta foi arrombada e o gabinete do gerente apareceu afinal. Wade adiantou-se, com cuidado, a pistola numa das mos, a lanterna porttil na outra. O gabinete estava vazio, mas uma segunda porta, lateral, que ele empurrou, na direo do ptio, se achava entreaberta. Wade deu um passo, parou... Um estampido. A bala penetrou na parede e cobriu o rosto de Wade de gesso esfarinhado; ele empurrou a porta um pouco mais. O segundo tiro no demorou. Wade adiantou a mo pela porta e mandou para o ptio dez tiros. No ouviu resposta; s ento notou que o segundo tiro lhe dilacerara a manga do casaco. Num sussurro, pediu uma pistola ao detetive que se esgueirava para junto dele, passando-lhe a outra descarregada. Foi ento, nesse silncio pesado, que ouviu uns passos leves e um rangido de porta. De novo adiantou a mo e disparou dois tiros; no recebeu resposta, e quando acendeu a lanterna para provocar uma reao, nada mais ouviu. Podia ser uma emboscada, mas ele devia arriscar-se. Num momento

entrou no gabinete, examinando tudo com a lanterna. Era um gabinete pequeno, de fcil comunicao com o do gerente; prateleiras de ao com uma profuso de caixas. Num canto havia uma porta de ao; e atrs dessa porta ele pde ouvir o arranco de um motor de automvel. Forou a porta; houve pequena resistncia. Wade tinha a sensao definida de que do outro lado esperavam que ele abrisse para disparar. Com um puxo, abriu a porta, num relmpago. Teve a impresso de ver um carro que desaparecia num dos portes, e, ento: R-t-t-t-t... Era o estrpito compassado de uma metralhadora. Um grande carro negro voou pela rua, e do seu interior vinha a matraquear constante da arma automtica. A polcia, tomada de surpresa, abateu-se por terra; a multido agitou-se, ficou estatelada, e o carro, o longo carro negro, passou veloz, cuspindo um fogo venenoso da sua janela traseira. As balas iam encaixar-se nas paredes do edifcio; as vidraas se despedaavam; o povo corria para todos os cantos. Antes que algum pudesse dar conta do acontecido, o automvel desaparecia no parque de St. James.

CAPTULO IIIFoi somente na manh seguinte que Wade se lembrou da quase-suicida e da sua fotografia. Vrios negcios o tinham levado a Scotland Yard, e ele foi at o hospital, que ficava ali perto, saber notcias da mulher. Com grande espanto soube que ela j se tinha ido. Por um engano culpa talvez do sargento nada constava contra ela, e quando, inocente, perguntara se podia deixar o hospital, nenhum obstculo lhe opuseram. Uma criatura de espantosa vitalidade, dissera o mdico de servio. Quando deu entrada na sala de cirurgia, julguei-a morta; pois vinte e quatro horas depois deixava sozinha o hospital. Uma ligeira tentativa de suicdio... No tnhamos nenhuma observao sobre ela. O policial que a trouxe disseme que cara ao rio por um acidente. A propsito, s vivia falando num retrato que perdera. E por isso se mostrou to nervosa que quase no consenti que se fosse... Deu algum nome para o registro? O jovem mdico fez que sim com a cabea. Ana. No nos disse o sobrenome. Minha opinio que est atacada de demncia... No um caso perigoso, certamente, porque se o fosse facilmente o teramos notado. John Wade sentia-se ligeiramente confuso. No lhe interessava o caso e, se no fosse pela fotografia, no lhe teria dado ateno. As conferncias se multiplicaram, em Scotland Yard. Os Homens de Borracha eram o assunto principal na maioria dos jornais. Houve interpelaes inevitveis no Parlamento, e a no menos inevitvel sugesto a fim de que se criasse uma comisso especial para o caso, no Departamento de Investigao Criminal. A perda do banco no fora to grande como poderia ter sido, visto como os assaltantes haviam sido perturbados no melhor de sua atividade. Mas o roubo que se seguiu ao do banco Frisby deu dor de cabea a Scotland Yard. Numa pequena agncia, propriedade de um grupo de joalheiros, o cofreforte, embutido em slida parede de concreto, fora forado, e as jias, perfeitas, num valor de oitenta a cem mil libras, haviam desaparecido como por milagre. A primeira notcia que tivera a polcia fora uma comunicao telefnica, evidentemente de um dos membros da quadrilha, avisando que o vigilante noturno precisava de cuidados urgentes. Um carro da polcia voou para a agncia, e o homem foi descoberto, sem sentidos, emborcado no soalho. No soube dar detalhe algum do que acontecera; de nada se recordava; e a polcia

no apreendeu nenhum ponto de referncia, a no ser um pequeno escopro que os Homens de Borracha haviam abandonado, na retirada. John Wade leu a narrativa do novo crime como um curioso, file pertencia Fluvial, e s por um acaso se envolvera no caso de Frisby. O inqurito costumeiro foi estabelecido, mas a polcia do rio nada conseguiu informar. No obstante, chamavam-no para as interminveis conferncias dos Chefes, e assim podia satisfazer melhor a prpria curiosidade. Se a figura de Ana desaparecera rapidamente de seus pensamentos, a fotografia misteriosa voltava-lhe sempre memria. Foi somente uma semana depois do roubo de jias que ele pde fazer uma visita ao Clube "Meca". Mum no lhe apareceu logo, quando ele desembarcou no cais rumoroso, e caminhou para a janela escancarada da cozinha. Do telheiro dos fundos vinham os grunhidos de Golly, entoando uma cantiga melanclica, e o rumor das pancadas da machadinha. John Wade encontrou a sala de refeies vazia, e esperou com pacincia, preparado para ver aparecer a figura horrenda de Mum de um momento para outro. Viva, Lady Jane! Lila entrara na sala ao de leve, to sem rudo e to inesperadamente que ele tivera a impresso de que ela aparecera ali por encanto. A senhora Oaks no est. (Ela achou melhor adiantar a informao.) E no fique por aqui muito tempo, Sr. Wade. Titia no gosta de v-lo por estas bandas, e o senhor no tem sido muito amigo de Golly. Ele nunca pensou em vender objetos roubados... John Wade sorriu. "Se vier aquele inspetor, o Wade, voc trate de ir dizendo que o seu tio um cidado muito honesto" imitou ele, e pelo rosto corado da rapariga percebeu que dissera uma verdade. Ento, aproveitando-se daquele embarao, perguntou: Quem Ana? Ela voltou a cabea, fitando-o nos olhos. Ana? perguntou, demorando-se nas slabas. No conheo... Mas j lhe disse que no a conhecia h algum tempo atrs? No, no me disse nada. John Wade tinha excelente memria e tinha absoluta certeza de que o nome de Ana nunca lhe aparecera antes. A admirao embaraada que ele descobrira nas faces de Lila acentuavase agora; ela olhava, por trs dele, um rebocador que subia o rio. Ana, Ana... No, no conheo ningum com esse nome. No entanto, parece-me familiar. No curioso? (Os seus lbios finos floriram num sorriso fraco.) S se o ouvi em sonhos...

Como aquela "aristocracia"? perguntou Wade, e viu que a rapariga ficava consternada. No, essa "aristocracia" no foi um sonho, disse Lila, vivamente. Eu que no devia ter falado nela. Parecia que ela j falara daquilo uma poro de vezes ao inspetor. Na realidade, s fizera a Wade duas referncias aventura em que era figura de importncia. No sabia tambm que, primeira referncia, Wade pouco se importara com aquelas palavras, pensando mesmo que a menina exagerava um lance qualquer de um romance agitado. A segunda vez, chocara-o um tom diferente na sua voz, e a interrogara com fora. E quanto mais a menina se esquivava a narrar o que acontecera, tanto mais ele ardia pelos detalhes do caso. Wade tinha grande experincia de interrogatrios; assim, preferiu levar a conversa para outro lado. Lila, falando sobre a vida dos guardas da Fluvial, comentava: No acho que o senhor seja um trabalhador, como dizem por a. A sua vida parece-me muito indolente. Nada faz a no ser subir e descer o rio sempre o vejo assim. O que faz a polcia do Tmisa? Sobe e desce o rio, e leva uma vida regalada... Verdade? insistiu ela. Todos dizem que h ladres a, mas nunca cheguei a conhecer nenhum deles. Aqui mesmo no Meca nunca roubaram coisa alguma... Talvez porque aqui nada haja de valioso... Wade sorriu para a menina, e esse sorriso pareceu aos dois um estranho cumprimento. Para Lila, aquelas visitas de Wade se ensombravam com a perspectiva do aparecimento sbito de Mum; e, assim, ela costumava rezar intimamente para que ele se fosse to depressa quanto viera. E naquela ocasio, no havendo motivo para que o Inspetor se fosse com rapidez, ele partira inesperadamente. S dez minutos aps a partida de Wade, Lila ouvi a voz gosmenta de Mum! O Sra. Oaks estivera na City e voltara com um visitante o nico homem que Lila decididamente detestava. O Sr. Raggit Lane raramente aparecia pelo clube. Homem alto, parco de banhas, com um rosto fino de asceta, ele chegaria a ser simptico se no tivesse um canto dos lbios bizarramente retorcido, numa careta eterna. Vinha sempre bem vestido e cheio de cosmticos. No usava nenhuma das jias espalhafatosas dos outros habitues do clube: aneles de brilhantes duvidosos e pesados relgios de ouro. Lila no gostava de Lane por causa de certo perfume que ele usava. As mos do Sr. Lane estavam sempre muito limpas, as unhas polidas, e o cabelo negro reluzia de vaselina. Trazia somente um anel discreto na mo direita, e mais nenhuma outra jia.

Mum dizia ter idia muito vaga dos seus meios de vida; mas Lila imaginara que ele fosse um viajante, porque certa vez lhe trouxera de presente um xale bordado, de seda da China. Logo que Mum apareceu no cais, Lila correu para a sala de visitas. A sala de visitas do clube era um buraco obscuro, no qual s penetrava meia dzia de seres privilegiados. Um aposento comprido, com duas altas janelas opacas. Paredes pintadas e soalho encerado. Lila entrou, limpando as mos no avental, e sentiu-se logo examinada pelos olhos vtreos de Raggit Lane. Viva! Ele olhava para ela com uma admirao no disfarada. No vira a rapariga pelo espao de um ano, e nesse ano notveis mudanas se tinham dado naquele rostinho redondo. Bonitinha, hein, Oaks? Ele sempre chamava Mum de "Oaks", e ela nunca se sentira ofendida por isso. Deixe-me olh-la direito, menina? Puxou a rapariga pelos ombros, e voltou-lhe a face na direo da luz. Uma raiva sbita agitou Lila, e ela se desprendeu violentamente do bruto. No me toque! Como se atreve a fazer isso? Sua voz tremia. Mum olhava-a admirada. Por que, Lila?... indagou ela. A menina tem razo. Desculpe-me, Lila. Esquecia-me de que voc j uma moa. Mas Lila no parecia ouvi-lo. Voltou-se, e saiu rapidamente da sala. Era aquela a sua primeira manifestao de independncia que Mum testemunhava, e "Oaks" no tinha coragem para sair do seu espanto meio irritado. Que haver com essa garota? indagou ela, duramente. Nunca a vi assim, antes. Se comear a me tratar com esses ares, conhecer toda a verdade! Raggit Lane pigarreou alto, tirou um cigarro duma cigarreira dourada, riscou o fsforo. De fato, ela j no uma criana, e tudo voc no precisa armar barulho por causa disso. No acreditei em voc, quando me disse que Lila estava bonitinha. Mas voc tinha razo. Da ltima vez que esteve aqui, disse-lhe: Venha ver a menina! Voc no quis acreditar, acentuou Mum, satisfeita por sentir que reconheciam como certa uma profecia sua. Lane jogou uma nuvem de fumaa para o teto. Da ltima vez que estive em Londres certas razes me impediram de

vir at aqui, disse ele, pausadamente. Houve um silncio embaraante. Donde chegou, agora? indagou Mum. Do Mar Vermelho de Constantinopla. Lane parecia pensar em coisa muito diferente, e a resposta foi automtica. Como vai o velho? perguntou Mum, depois de um longo silncio. Hein? O velho? Oh, sim, vai muito bem. E depois, fitando Mum com ateno: No quero que ele saiba que estive hoje aqui. Mum sorriu. Compreendo, compreendo. Pode confiar em mim, Lane. Nunca palestro com ele, a no ser a respeito de Lila; e no o vejo mais que pelo espao de uma hora, em cada ano... Raggit Lane parecia pensar profundamente. Ele tem estado muito irascvel, muito difcil... Naturalmente eu poderia dizer-lhe que vim at aqui por acaso. Um clube de marinheiros... Mas s quero usar essa desculpa em ltima instncia. Onde est Golly? Mum apurou o ouvido. Rachando lenha, disse ela. Outro silncio embaraante. E ento: Quem essa menina Lila? A Sra. Oaks devia muitos favores quele visitante bem apessoado, mas ele lhe fizera agora uma pergunta a que ela no podia responder com facilidade. O que me preocupa no caso de Lila esse guarda da Fluvial, o Wade. Ele est sempre rondando o clube. No sei bem se por causa da garota, ou se por outra coisa. Nunca se sabe direito o que quer um policial... O Inspetor Wade? (Lane passou a mo pelo queixo, pensativo.) No um rapago alto, desempenado? Bonito mesmo? Mum sorriu, com um ar de zombaria. Todos eles, com uma farda alinhada, so bonites... Pelo que tenho ouvido, quase foi liquidado, outro dia, pelos Homens de Borracha. Uma pena que no o deixassem estirado!... Lane sorriu, satisfeito. Esses Homens de Borracha tm trabalhado com vontade, disse ele. Quem so? Mum balanceou a cabea. No sei de nada a respeito deles, disse ela, de um flego. S me preocupo com a minha vida e os meus negcios. bem difcil que uma pessoa se desobrigue direito dos seus negcios, se comea a se preocupar com os alheios. O que h a respeito, que muitas notcias dos jornais so

forjadas, files do tudo por um detalhe sensacional. E sobre o nosso negcio, Oaks? Mum levantou-se da cadeira cm que se sentara. Vou ver o que a rapariga est fazendo, disse, e saiu da sala. Voltou alguns minutos depois, fechou a porta a chave e caminhou at junto da lareira. Com um gancho deslocou uma seco irregular do soalho de tbuas. Sob a tbua retirada havia um tampo, de couro, que ela levantou, deixando mostra um alapo de ao trancado com uma fechadura de segredo. Com uma chave, Mum abriu a fechadura, e com alguma dificuldade levantou a pesada tampa de ao. O receptculo que apareceu era evidentemente bem maior do que a abertura que para ele dava entrada, porque Mum retirou para cima meia dzia de pequenos sacos de lona, que passou para Lane, um por um. Ele os foi alinhando numa mesa ao lado da vidraa opaca da janela, e por fim os foi abrindo com grande cuidado. Este um lote barato, disse Mum, ao ver Lane desamarrar um lao de cordas, e retirar uma variedade de objetos, brincos e anis de carregao, e broches muito coruscantes de joalheria ordinria. O saco que est amarrado com a fita vermelha que tem boas coisas. Lane foi desamarrando os sacos, um por um, at que chegou ao fechado com a fita vermelha. Havia ali diversas jias de preo: uma esmeralda de dez quilates, um anel com um diamante admirvel, um alfinete de gravata, um camafeu e cinco prolas de tamanho regular. Lane olhou curioso para as prolas. Com certeza arrebentaram o colar, com a precipitao... Mum respondeu, inocente: No fao perguntas aos rapazes. No me interessa saber como arranjam as jias. Se me oferecem um negcio, aceito-o silenciosa. Penso, alis com razo, que quem no faz perguntas no escuta mentiras. Lane examinava uma das prolas atravs de uma lente. Esta aqui melhor jog-la ao fogo, disse ele, passando a prola para Mum. Est marcada, e seria logo reconhecida. Obediente, Mum tomou da prola, que daria com facilidade seiscentas ou setecentas libras, e atirou-a ao fogo. Nunca discutia com Raggit Lane, tendo aprendido com o tempo a inutilidade de qualquer argumento. Lane fazia uma escolha cuidadosa; afinal ps os objetos selecionados no bolso e devolveu o resto mulher. O ouro est dando pouco... H muita desconfiana, disse ele. Eu jogaria toda essa quinquilharia no rio. Mum suspirou. Que pena! disse, lastimando-se. Mas o senhor deve ter razes... Ouviu-se uma pancada na vidraa opaca da janela. Mum assustou-se.

Quem ? perguntou depois, asperamente. Preciso dizer-lhe duas palavras, Sra. Oaks. Era a voz de John Wade. Mas nem um msculo se alterou na face de Mum. Qual o seu nome no meio dos homens? indagou ela. Inspetor Wade. Um momento. Com rapidez ela juntou todos os pacotes, jogou-os para o alapo aberto, empurrou a tampa, deu uma volta fechadura, reajustou a, tbua do soalho e estendeu o tapete por cima. Enquanto isso, Lane abria o enorme guardaroupa do outro extremo da sala, entrava nele e fechava as portas. Mum lanou um olhar para a lareira, esmagou com a tenaz a bola chamejante que fora uma prola valiosa, e abriu a porta. Entre, Wade, disse depois, friamente. John Wade apareceu porta, e entrou, desconfiado, olhando para os cantos. Desculpe-me por vir interromper a sua piedosa orao, disse ele. Quer saber de alguma coisa? Eu estava mudando as meias... No me interesso, perante senhoras, por assuntos to inconvenientes, Lady Godiva. E teve uma fungadela. Tirando uma fumacinha tranqila, hein? Muito bem, muito bem! Na sua idade, sempre bom um viciozinho pacato... Mum quase estremeceu, ao ouvir falar em fumaa. O que quer o senhor? indagou ela. Mas John Wade parecia admirar o aposento com grande curiosidade. Que bela sala! disse. O seu boudoir, certamente!... E anda fumando cigarros egpcios, tambm... Sabe que fazem um mal enorme ao corao? Que quer o senhor? repetiu Mum. Os olhos de Wade se tinham fixado no guarda-roupa. Vim fazer-lhe uma pergunta, mas parece que cheguei num momento imprprio. Uma perguntinha sem importncia... Nada que se prenda aos meus deveres profissionais... Mas no quero esperar. Foi at a porta da sala e voltou-se com um daqueles seus sorrisos indecifrveis. Tenho medo de que o seu amante escondido no guarda--roupa morra asfixiado, o infeliz! E, saindo, fechou a porta. Mum voou atrs dele, e seguiu-o at a fachada do Meca. Aquele insulto salvara-lhe a situao. Sentindo-a atrs de si, Wade acrescentou: Sossegue, que no direi nada a Golly! E antes que ela comeasse a desfiar um rosrio de imprecaes, Wade

desaparecia. Mum voltou sala e trancou a porta. Saia, Sr. Lane, disse ento, a voz trmula de raiva. Era aquele diabo da Fluvial. Raggit Lane pulou do guarda-roupa um pouco desalinhado. Endireitou o cabelo, e viu-se logo que se sentia mais desconcertado que mesmo enraivecido. Ele sabia que eu estava aqui. Saber quem sou eu? Deus sabe o que ele sabe! grunhiu a mulher. Uma dessas madrugadas nevoentas aquele intrometido ainda aparece a no Tmisa, boiando, com o ventre cheio d'gua e os olhos empapuados. E nesse dia, garanto-lhe, irei igreja pela primeira vez em minha vida! Wade! o diabo! Lane acariciava o queixo. Comeou ento a esvaziar os bolsos. Guarde isso de novo. Voltarei um dia destes. No h dvida, concordou Mum. Lane sorriu. Eu no me arrisco. Mande um rapaz lev-las... Voc sabe para onde... Se eu as levasse agora seria perigoso. Abotoou o colete, tirou o chapu e a bengala do guarda-roupa. Mum escovou-lhe o casaco, e ele voltou para a rua, onde o esperava um txi. Desconfiado, olhou em redor, mas no descobriu ningum a espi-lo. E mesmo quando o txi entrava na City, no achou prova alguma para o sentimento estranho de que estava sendo seguido. Aquela mesma tarde Wade foi pessoalmente a Scotland Yard informarse. Conhecem aqui um cavalheiro de bom aspecto, que cheira como uma loja de flores e se veste como um duque? perguntou Wade ao inspetor Elk, autoridade em cidados de outras terras. Difcil, disse Elk, pensativo. Entretanto, parece-me que j ouvi alguma referncia... Wade cortou-lhe o fio das lembranas. Puxou do bolso uma folha de papel. Tinha alguma vocao para o desenho, e traou um esboo da figura interessante de Raggit Lane. Elk estudou o esboo, cocou a orelha, passou a mo pelos cabelos. Talvez seja novo... No o conheo. Sabe o nome dele? Talvez mais tarde o saiba... Por enquanto no tenho dado algum. O pessoal do clube no o conhece um de meus homens indagou de tudo. Eu mesmo nunca o vira antes. Vi-o hoje por um acaso. Lembrei-me de um inqurito sobre um roubo de usque, e fui at o Tribunal saber como ia o assunto. Foi ento que vi o tal sujeito tomar um txi com a mulher, a dona d clube. Desconfiei daquela amizade, e achei bom dar um pulo at o

"Meca". Elk suspirou e fechou os olhos. Voc no pode duvidar dele, por ser amigo de Mum Oaks, disse. Isso no uma culpa... Ter por acaso um charuto a no bolso, Wade? Certamente que no. Vocs oficiais novos gostam de cigarros... Mas, espere, tenho um cunhado, j meio maduro, que anda como esse sujeito... Estou certo de que no ele, disse Wade, e deu o fora. O resto do dia pertencia-lhe, e ele o empregou de um modo caracterstico. Na realidade, John Wade no tinha muito tempo para diverses. Amando a sua profisso, vivia para ela e no se preocupava com coisa alguma que no dissesse respeito, ainda que de longe, aos negcios da polcia. Sua ocupao principal era vagar pelas ruas tumultuosas, pelas esquinas do West End, observando os transeuntes. O estudo dos seres humanos era-lhe tarefa absorvente: os gestos, as expresses das faces, as preocupaes aparentes. Colecionava-os como outros colecionam selos. Sabia, assim, como ningum, qual o gesto que sublinha uma mentira, qual o olhar de uma mulher vaidosa. Mas aquela tarde a chuva comeou a cair: uma chuvinha mida, impertinente; e Wade caminhou at um pequeno restaurante de Soho, no qual j pensara pela manh. Costumava ficar ali sentado, depois do jantar, ruminando o que lhe acontecera durante o dia, e matutando no que lhe iria ainda acontecer durante a noite. quela hora o restaurante estava deserto, e ele podia refletir sossegadamente. s oito horas, por fim, saiu para as ruas nevoentas. A chuva cessara, mas o nevoeiro era espesso. Ele foi vagando para a avenida Shaftesbury, com inteno de ficar em sua pequena casa de Wapping, ali perto. Atravessou a avenida Shaftesbury e, cruzando a praa Leicester, meteu-se por uma das ruas que vo desembocar no Strand. Havia ali um restaurante novo, de luxo um lugar discreto que o epicurista logo descobrira. Em Londres a reputao dos restaurantes cresce e morre de modo inexplicvel. Wade caminhava ao longo das caladas midas quando uma grande limousine veio, silenciosa, do outro extremo da rua, e se deteve diante do restaurante. John Wade cessou de andar. No sentia a curiosidade dos trs sujeitos parados no meio da calada para ver quem saa do automvel; seu desejo no era nem sequer olhar para quem saltasse da limousine luxuosa. O homem que saltou do carro era alto e slidamente construdo; completamente calvo, tinha o rosto sulcado por mil rugas. Venha, querida, disse ele, impaciente. Tinha uma voz profunda e sonora que interessou ao detetive. O velho levantou o brao e ajudou a companheira a saltar na calada. Ela

vestia de branco, trazia um abrigo de tecido prateado com uma gola de arminho. Uma figura esguia e radiante de juventude; dos cabelos louros, armados em elegante penteado, at os sapatos brancos, desprendia-se uma nica impresso de graa e beleza. Por um momento John Wade no lhe viu o rosto; mas quando a moa, chegando ao abrigo da marquise iluminada, levantou a cabea, John Wade pde contempl-la direito. Quase soltou um grito! Era Lila Smith! Os dois desapareciam no restaurante antes que John sasse de seu assombro. O pensamento de ir para a casa de Wapping se desvanecera. Ele esperou que o porteiro agaloado voltasse para seu posto, entrada, e ento abordou-o. Esse senhor que entrou o Coronel Martin? perguntou Wade. O porteiro olhou-o com suspeitas. No era a primeira vez que um estranho tentava estabelecer a identidade das senhoras e dos cavalheiros que jantavam no restaurante. No, no , disse logo. Sei... Pensei por um momento que fosse ele, disse Wade, e quis entrar. Mas o porteiro deteve-o. No este o caminho para o restaurante, senhor. Aqui ficam os aposentos reservados e os sales para banquetes. O restaurante fica na outra rua. John Wade viu por uma porta envidraada que o homem e Lila desapareciam num lance de escada. Bom. Vou dizer-lhe mais claramente o que desejo. (A voz se lhe fizera autoritria.) Meu nome Wade; sou inspetor de polcia. Sem tem dvidas o guarda que est naquela esquina poder identificar-me. No preciso, Sr. Wade. (O porteiro parecia defender-se.) Agora o reconheo... Vi seu retrato nos jornais... O senhor h de compreender que no posso estar respondendo a qualquer um... Compreendo sim, disse Wade, amvel. Quem o homem que acaba de entrar? O porteiro emendou logo: No tenho a menor idia de quem possa ser ele, senhor. S vm aqui para jantar, ele e a senhora, uma nica vez por ano. E nada mais. Da ltima vez que estiveram aqui, a senhora ainda era uma menina. Acho que deve ser seu pai, o velho. Um dos criados disse que o velho oficial do Exrcito da ndia, e s costuma vir a Londres uma vez por ano. E sempre a tem trazido aqui, no? Pode ser que v a outras casas, mas sempre os vejo aqui, juntos. E a senhora vem sempre bem vestida? Mas sim, senhor, disse o porteiro, surpreso. uma senhora de

distino. Est num colgio de aristocracia... John Wade considerou rapidamente a situao. Que aposento tomaram? O nmero 18. (O porteiro lembrou-se de uma coisa): Posso dizer o nome do homem, senhor. Ele deve estar no nosso registro. E desapareceu pela porta, voltando logo depois. Brown... O Sr. Brown. Um homem rico, segundo informa o garon que o serve. H alguma coisa contra ele? (A pergunta foi ansiosa.) No sei bem ainda, disse o detetive, rspido. Seria fcil observ-los nesse aposento reservado? Mas com grande cautela, j se v. O porteiro refletiu um momento. O nmero 19 est desocupado. O senhor pode subir at l, Inspetor Wade. Direi ao chefe que o senhor quer escrever uma carta, em sossego. Mas compreender: no o conheo, de modo algum. Poderia perder o emprego... John Wade garantiu-lhe tudo; apareceu ento em cena algum que John Wade tornaria a encontrar em circunstncias menos agradveis. O encontro foi casual. Wade acautelou-se para no ser visto. Um homem sentenciou: Estou dizendo... Uma bonitona! Uma beleza de rapariga! Wade, a um canto obscuro, observou o cidado meio bbedo que afirmava isso: era um rapaz muito sangneo e com um bigodinho arruivado. Os olhos de azul-plido ainda queriam descobrir uma silhueta na escadaria de mrmore. Quem , Bennet? No conheo, meu senhor. A bebedeira atordoava o jovem de mos grosseiras, de traos empastados. John Wade tornou a olh-lo, antes de seguir para o restaurante, e poucos minutos depois subia suavemente os degraus atapetados. Um garon entrava no aposento n. 18, quando Wade apareceu no corredor, mas no distinguiu o inspetor de polcia. Wade abriu a porta do n. 19 e entrou, trancando-se por dentro. Procurou o interruptor da luz, e logo o encontrou. Na parede esquerda do gabinete, revestida de incrustaes de madeira rsea, havia uma porta, perto da janela, que devia evidentemente levar ao nmero 18. Wade caminhou para ela. No ouviu vozes e, fazendo girar a maaneta com grande suavidade, empurrou um pouquinho a porta, que no estava trancada. E achou uma segunda porta. Agora ouvia vozes muito abafadas; as palavras profundas e sonoras do velho, e a voz suave de Lila. Era aquilo a "aristocracia"! Todos os anos, como uma Cinderela moderna, ela abandonava as roupas velhas e deselegantes, e se vestia pelas ltimas modas, para jantar cem aquele velho!

Wade colou o ouvido porta. Nada. Tentou espiar pela fechadura, sem conseguir observar coisa alguma. Experimentou torcer a maaneta, mas a porta estava trancada. Foi ao interruptor de luz, deu-lhe uma volta, e voltando atrs, nas pontas dos ps, na escurido, deitou-se ao soalho, com o ouvido alerta. Havia um pequenino espao entre a porta e o tapete, e ele pde apanhar alguns pedaos da conversa: "...no, Sr. Brown, ela muito boa para mim"... Ouviu o homem dizer qualquer coisa sobre a educao em Frana; e houve depois outras conversas pequenas, muito curiosas. De vez em quando a porta se abria e o garon entrava com petiscos novos. Uma vez ouviu o homem falar em Constantinopla. Parecia descrever a cidade moa. Se alguma coisa foi dita que pudesse esclarecer qualquer coisa das relaes entre os dois, John Wade no conseguiu ouvi-la. Sempre a jovem chamava o velho de "Sr. Brown". Nada levava a crer que fossem pai e filha. Afinal Wade ouviu o homem pedir a conta e, levantando-se e limpando os joelhos, saiu do quarto, e j se aboletara num txi quando a grande limousine se aproximou da porta do Lydbrake, para conduzir a moa e seu estranho companheiro. O "Sr. Brown" s se deteve para dar uma gorjeta uma nota do Tesouro ao porteiro, e depois o carro partiu. Wade escolhera bem o txi e o motorista; e o pequeno automvel seguia perfeitamente a limousine, em grande velocidade, atravs das ruas da City. Passaram Aldgate, devoraram a estrada de Mile End e estavam prximos do Wapping, quando a limousine entrou numa rua transversal e se deteve. Por felicidade, Wade trazia sempre o txi um pouco distanciado; o Inspetor saltou logo para a estrada e chegou esquina da rua transversal no momento em que Lila penetrava numa casa. Quase imediatamente o carro se ps em movimento, desaparecendo numa segunda esquina, e Wade caminhou para a casa. Era uma vila muito simples, de janelas escuras. Wade resolveu esperar um pouco; um segundo txi veio pela estrada, dobrou a esquina e foi parar porta da vila. O detetive abrigou-se ao porto de uma grande vila da estrada, de onde poderia ver o que se seguisse. Cinco minutos mais tarde a porta da habitao se abriu e Lila e uma mulher surgiram na obscuridade. Lila trazia um casaco desbotado, e Wade compreendeu que voltara por fim s roupas antigas. No teve dificuldade em reconhecer Mum na mulher que acompanhava Lila. Esperando que as duas se fossem, no txi que trouxera Mum, Wade atravessou outra vez a estrada, e, abrindo o pequeno porto de ao, passou por um caminho ajardinado e foi ter porta da casa. Com a sua pequena lanterna eltrica, descobriu uma campainha e apertou-lhe o boto. Ouviu o

rudo, mas no lhe veio a resposta. Tornou a apertar o boto. A porta mostrava uma fechadura Yale. Wade foi at janela ao lado, mas notou que tambm estava bem fechada. Ao lado da casa corria um estreito caminho, que levava ao quintalejo. Havia nos fundos uma pequena porta, cuja fechadura foi facilmente forada com um canivete. Wade achava agora a porta da cozinha, igualmente trancada; mas a janela, que estava somente encostada, abriu-se com um ligeiro empurro. Ainda assim, se houvesse algum na casa, Wade teria sido percebido. Quando o Inspetor saltou a janela e se encontrou na obscuridade da cozinha, no se ouvia o menor rudo. Ningum sabia melhor que o prprio John Wade que ele satisfazia uma simples curiosidade, s expensas da lei, que vergonhosamente infringia; mas esse pensamento no lhe causava o menor obstculo, mesmo naquele instante, em que a polcia gozava de geral impopularidade. A cozinha no tinha mveis; o fogo, agarrado parede, estava coberto de poeira. entrada da porta no havia nem sequer um pedao de linleo. Wade abriu a porta e adiantou o p. Evidentemente, a casa era habitada, porque o Inspetor encontrou um pequeno tapete sob seus ps, apesar de ter sentido que uma nuvem de poeira dele se elevara, ao ser pisado. Quadros pelas paredes: gravuras baratas, quase invisveis sob a poeira dos vidros. Wade abriu a porta de um outro quarto. Havia ali um leito, igualmente coberto de p, e os demais mveis baratos do quarto se encontravam no mesmo estado de abandono. As persianas da janela tinham sido descidas. Via-se que no habitavam o quarto havia um bom par de anos. Subindo os degraus atapetados, Wade chegou a um corredor, em que havia trs portas fechadas. Uma delas dava para um banheiro; via-se que tinham usado recentemente o quarto de banhos, porque dele chegava um perfume muito suave de sabonete de preo. Os ladrilhos do cho estavam limpos; num cabide ainda havia toalhas midas. O grande espelho tambm fora polido de fresco, e numa mesinha ao lado da banheira havia uma esponja, uma saboneteira. Wade achou ainda um saquinho de papel com sais de banho. Fora ali que Cinderela preparara a sua toilette. Wade passou para o outro quarto. Estava escrupulosamente limpo; viu, abandonado sobre o leito, o vestido que Lila usara pela noite; tambm encontrou ali os sapatos prateados; no achou meias: a rapariga devia t-las levado consigo, caladas. Fez uma busca ainda mais minuciosa no aposento. As janelas estavam tapadas com um couro muito fino, de modo que era impossvel ver-se luz do lado de fora. No havia instalao eltrica na casa; a luz devia evidentemente ser substituda por um lampio de mesa que, depois de fechada a porta, foi

aceso por Wade, para melhor conduzir as pesquisas. Perto do leito, embutido na parede, havia um grande armrio. Tentou abri-lo, mas as portas resistiram; a fechadura era slida, e as portas de robusta construo. Uma mesa, duas cadeiras uma delas muito confortvel um longo espelho apoiado parede, e nada mais havia no quarto. Wade apagou a luz e foi examinar o terceiro quarto. Evidentemente no era ele habitado, porque apresentava a mesma aparncia dos outros aposentos. Tinha um leito sem lenis, cheio de poeira. Desceu os degraus atapetados, vagarosamente, pensativo. Aquela casa o desconcertava. Brown, Mum, ou o diabo que fosse, conservariam aquela vila vazia o ano inteiro, unicamente para que Lila ali se embonecasse? E se fosse mesmo verdade... Descia ele o ltimo degrau quando ouviu o som de uma chave que girava na fechadura da porta de entrada. Rapidamente se foi abrigar na cozinha, e esperou. Abrira a porta da frente. Um homem murmurou qualquer coisa. Fecharam ento novamente a porta. Caminhavam em direo cozinha. Por alguma razo metafsica um calafrio desceu pela espinha de John Wade. Ele no era um homem nervoso, a aventura o empolgava e ele precisava resolver o problema daquelas sadas furtivas de Lila Smith. Um dos homens se deteve porta do quarto, abriu-a e entrou. No traziam luz alguma, mas depois de um certo momento Wade notou uma restiazinha amarelada debaixo da porta. Tinha o ouvido apurado e, ainda que o concilibulo no quarto fosse muito balbuciado, descobriu ao fim de algum tempo que um dos homens que l estavam era chins. Nunca deixando de ouvir o que se dizia no quarto, Wade percebeu que subiam os degraus de pedra da entrada, e s teve o tempo preciso para voltar cozinha; logo apareceu outro homem, desta vez um europeu, que trazia um casaco negro levantado at as orelhas. O recm-vindo tambm entrou para o quarto onde j estavam os outros dois. A porta foi empurrada e depois trancada. Sim, o homem que acabara de chegar era um europeu a sua prpria envergadura o denunciava. Wade adiantou-se e foi ouvir porta. Duas vozes pareciam falar com grande vivacidade; a terceira no se manifestou uma nica vez. Houve uma terrvel ameaa na voz profunda do recm-vindo, uma espcie de reforo s palavras do nico chins que falava. Um dos trs chegou at a porta e tentou abri-la, esquecendo-se de que ela estava trancada. John Wade fugiu at a cozinha. Deram uma volta chave, giraram a maaneta, a porta abriu-se, e os trs homens apareceram. Saram pela porta da frente, que foi fechada pelo ltimo que passou. Mal estavam na rua, e Wade j se achava atrs deles. Caminharam pela

rua obscura, desembocaram na estrada e tornaram a entrar numa rua estreita, com o detetive a segui-los. Caminhavam j agora por uma das ruas prximas ao rio, num stio de trapiches, cheio de pequenas vielas que davam para desembarcadouros de degraus de madeira, no rio. Pararam um momento, falando entre si, e um deles ento sentou-se no cho, encostado parede. Na luz incerta dos trapiches era difcil ver qual fora, dos trs, o que se sentara; e o mais interessante foi que os dois outros se afastaram, deixando o terceiro ali, sentado e apoiado parede. John Wade estava num dilema. Suspeitavam os dois homens da sua perseguio? Aquele homem no teria ficado ali para verificar se ele os seguia? Era um dos chineses, bem o via o Inspetor. A calada em que ele se sentara fora lavada naquela mesma noite, mas parecia suja, porque trs pequeninos fios de sangue corriam para a sarjeta. O apito vibrante de John Wade encheu de ecos as ruas vazias. Ele voava, ao tomar a direo em que os dois outros homens tinham desaparecido. Um guarda veio at ele, correndo. No vira ningum. Em poucos minutos doze guardas batiam os arredores. Mas no encontraram vestgio algum do europeu e do outro chim.

CAPTULO IVTarde, naquela mesma noite, John Wade relatou tudo ao Chefe. Achamos na blusa do morto cerca de seis onas de platina pronta para ser manufaturada; pelo jeito, acho que devem pertencer a alguma das joalherias ultimamente roubadas, disse o Inspetor. O que h de curioso acerca desse indivduo que ele era mudo. Afinal, o que diz o mdico-legista. No se pde identificar o chim. Tomamos-lhe as impresses digitais, e chamei mesmo um perito da colnia chinesa, que nada conseguiu fazer. Ningum conhece o homem. Devia ser muito depois da meia-noite quando John Wade chegou ao Meca, e desta vez no vinha sozinho. Golly, em mangas de camisa, tirava vastas baforadas do cachimbo de cerejeira na sala de refeies do clube. Mum est dormindo, no est? perguntou Wade. Ela saiu, esta noite! Bem sei que ela esteve fora, esta noite, disse Wade, rspido. E mesmo por isso que quero v-la agora. Golly levantou-se da cadeira, teve um olhar sinistro para os dois detetives que o fitavam, e desapareceu. Quando voltou, trazendo consigo a respeitvel proprietria do estabelecimento. Que negcio esse? indagou ela, de sada. No momento, disse John, o negcio de um assassinato, e um mau negcio, Lady Godiva. Wade sentiu que Mum empalidecia. Assassinato? perguntou ela ento, incrdula. Um chim foi assassinado esta noite por um dos dois homens que, antes do crime, tinham estado numa pequena casa da estrada de Langras, onde voc tambm esteve, mais cedo, com Lila. Mum no disfarava: a sua surpresa foi formidvel. Mas por um momento somente; quase logo achou uma desculpa: Sei, sei; estive na estrada de Langras, em casa de uma cunhada minha; h vrios anos que estamos tentando alugar essa casa... Voc levou a Lila para l? Eu por acaso disse que no? perguntou Mum, azeda. Levei-a l para mudar de roupa. A menina tinha que se encontrar... (aqui houve uma pausa) com o pai. O senhor queria saber quem era o homem, Sr. Trabalhador, mas ficou certamente desapontado. John Wade sorriu. Seja mais delicada, Sra. Oaks, e a nossa visita lhe ser mais

agradvel. Se voc quer ficar por sua prpria vontade metida nesse assassinato, a culpa no minha. No a estou ameaando, apenas digo-lhe a verdade. Se no puder ter aqui todas as informaes, terei que lev-la presena do comissrio, que nunca a viu com bons olhos. No acha? Mum parecia querer fuzilar o atrevido. Sinto muito, Sr. Wade, mas estou um pouco perturbada. Onde mataram o homem? Dentro da casa? Voc sabia que a casa era freqentada por chins? indagou John. Mum levantou a cabea, enftica: Nunca procurei saber de coisas que no fossem de minha conta, disse. Vou l de vez em quando, para fins de limpeza eu e a Lila. Quem o pai de Lila? Mas a mulher no parecia muito disposta a responder. No posso estar a armar escndalos na sociedade, o senhor compreende o que quero dizer. Aquele cavalheiro tem outra famlia... Lila sabe disso? Mum hesitou. No, no sabe. Pensa que ele um amigo do pai, que se interessa por ela. Ele paga a penso de Lila e, quando est na Inglaterra, manda-me dinheiro para vesti-la bem e lev-la a jantar em sua companhia. Ele ingls? Americano. A resposta pareceu vir um pouco intempestiva. Mora em Long Island, ou Nova Iorque, por a assim. Um cavalheiro americano; mas nunca vi chim algum naquela casa, Sr. Wade, posso garantir-lhe. Alm disso, tenho muito medo dos chins. O senhor no h de querer que eu acorde a menina para interrog-la? Quantas chaves tem a casa da estrada de Langras? Mum pensou um momento. S sei de uma chave... Fica sempre com voc? Ela concordou. Conhece algum que possa ter outra? Ela afirmou que no, com grande nfase. Wade convenceu-se de que a mulher falava a verdade; alm do mais, no tentara ocultar o que acontecera pela noitinha. Contra os deveres da profisso, ele sentia agora pena de Lila; a explicao daquela "aristocracia" fora-lhe dolorosa. Da menina nada se poderia esperar. E a prpria Mum Oaks parecia querer explicar tudo sozinha. O "Sr. Brown" tambm possui uma chave da casa? Mum assustou-se ao ouvir aquele nome, pelo qual tambm conhecia o

velho. Nunca o vi com chave da casa, e no vejo razo para que possusse alguma. John Wade pensou um momento. D-me a a que tem, disse ele. Mum remexeu numa bolsa colocada sobre a mesa, retirando afinal uma chave amarrada ponta de um cordel. John Wade encarou-a de modo firme. E ela tambm abre o armrio! Por um segundo Wade viu um relmpago de susto nos olhos de Mum. Armrio! Que armrio? H um armrio no quarto em que Lila muda de roupa... Mum balanou a cabea. No sei de nada. S tenho esta chave que lhe dei. O detetive sorriu. Pesa-me ser obrigado a arrebentar a porta do armrio, disse, escarninho. Mum j voltara sua segurana nas respostas. pena, disse friamente. Que quer que eu faa? John voltou a cabea. Lila aparecera na porta, envolta num velho quimono desbotado. A elegncia do seu cabelo penteado e brancura das mos tratadas pela manicura pareciam inverossmeis naquele antro srdido. Ela olhava com surpresa para Mum e para John Wade. Pensei que me tivesse chamado... Pode subir de novo, disse Mum, secamente. E depois, para Wade: O senhor acha que foi ela quem matou o tal chim? Muito boa! Essa menina tem mesmo cara de assassina! Ah! ah! ah! Wade nada ouviu. Quero o nome e o endereo do pai de Lila ou do homem que jantou com ela esta noite. No posso dar o que me pede, disse a mulher, porque no sei de nada. O sr. j sabe quem ele ... chama-se Brown. Onde mora, no o sei. Sempre recebo um telegrama quando ele chega. E ele no conhece a casa de Langras Road? indagou Wade, martelando as palavras. Como ento poderia ir apanhar l a menina? Por um momento, Mum perdeu a calma. Um carro de aluguel vem busc-la, e eu a levo ento at a igreja de So Paulo, e s; a que ele a vem encontrar. E depois vai levar a menina a Langras Road, insistiu Wade. Voc est armando uma complicao perigosa, Mum. Mas a companheira de Golly firmava o p num detalhe: o misterioso "Sr.

Brown" nunca estivera na vila de Langras Road. John Wade voltou casa do mistrio, usando a chave que lhe dera Mum e no havendo mais necessidade de pesquisas secretas, deu uma busca completa na vila. Teve uma surpresa: encontrou o armrio aberto e vazio. Algum estivera ali depois dele. As roupas de Lila jaziam por terra, evidentemente para dar espao, no leito, ao contedo do guarda--roupa. O quarto em que tinham conferenciado os dois chins e o europeu apresentava outro detalhe curioso. Havia uma certa umidade no aposento; Wade achou marcas de lama no soalho e uma das cadeiras ainda estava molhada. Chovera muito na regio de Wapping, uma pesada pancada desabara logo depois da descoberta do crime, e at o cadver tivera as roupas ensopadas de gua. Havia uma razo pela qual o europeu deveria estar abrigado: ele trazia um comprido capote. Mas o segundo chim... Usava somente uma blusa, apesar de no ter deixado vestgio algum de sua presena. Como teriam vindo at a vila? A p? Ningum os vira, nem mesmo o motorista que Wade deixara no extremo da rua e ainda esperava pelo passageiro que o abandonara, deixando correr imprudentemente o taxmetro do automvel... Na blusa do morto fora encontrado um papelucho com qualquer coisa escrita em chins. No momento em que Wade estivera na estao policial o papel no tinha sido ainda decifrado. O que poderia ter sido feito antes, e s no o fora porque o encarregado de casos da colnia chinesa chegara muito tarde para examinar o corpo. O sargento, sorridente, mostrara a traduo dos garranchos: Por aqui nada se faz, Inspetor. o endereo exato da nossa estao de polcia. John leu e refletiu. Ele estaria vindo para c e os outros o seguraram ento... E Wade foi para o seu gabinete. Sobre a mesa tinham deixado as quinquilharias tiradas da blusa do chim. Muitas delas eram engastes de que tinham sido arrancadas as gemas e, a no ser um nico objeto, todas as peas eram de platina. A exceo era um anel dourado de sinete, de homem, muito gasto. Havia, no sinete meio destrudo pelo uso, um templo frente do qual estava uma figura de vestes clssicas. Mas estava to consumido o sinete que era quase impossvel restaurar as linhas do desenho. Na face interior havia as palavras: "Lil ao Larry". O gabinete que John Wade ocupava na estao era um pequeno aposento que ficava ao lado do xadrez e por detrs do gabinete do sargento. Havia ali uma janela, de slidas barras de ferro, e uma segunda porta que dava para um pequeno ptio. A sua escrivaninha ficava debaixo das grades da janela.

Os dois homens examinavam os engastes e o anel de sinete quando Wade sentiu uma corrente de ar frio passar-lhe pelas pernas. O gabinete era frio de natureza, mas aquela corrente era para Wade desconhecida, e ele percorreu o aposento com calma, para descobrir donde vinha ela. E ento ouviu alguma coisa que o fez voltar-se, com um estremecimento... Que nenhum dos dois se mexa! disse uma voz meio resmungada, atrs da mscara de borracha. Se esboarem uma palavra sequer, iro termin-la no inferno! Dois homens estavam no gabinete; um deles com um p no degrau e o outro na soleira da porta, e o segundo entre a porta e a escrivaninha. Traziam ambos grosseiros sobretudos negros; as faces estavam ocultas por trs de mscaras contra gases asfixiantes, e as mos, envoltas em luvas de borracha vermelha, apontavam para os policiais duas respeitveis pistolas automticas. Encostem-se quela parede, disse o homem que se achava na porta, entrando para o gabinete, e John Wade e o sargento obedeceram. Levantem as mos, por obsquio. Ser muito mais fcil de evitar qualquer travessura, bem sabem disso! O que estava perto da escrivaninha deu dois passos frente, remexeu nas quinquilharias, escolheu algumas delas e recuou para a porta. John Wade no era um louco. Estava desarmado; a pistola mais prxima se encontrava na gaveta da escrivaninha, e ele tinha a certeza de que, se tentasse apanh-la, sacrificaria a prpria vida e assinaria a sentena de morte do sargento. As duas figuras se moviam com uma calma incrvel. John, olhando para o cho, percebeu que os ps dos assaltantes estavam metidos em galochas de feltro com solas de borracha. Os dois saram do aposento, e a porta foi empurrada e trancada, tudo em menos de trs segundos. John deu um salto para a mesa, puxou a gaveta e arma em punho, correu para o aposento do lado, quase derrubando o guarda de sentinela porta. Notou duas figuras que corriam ao longo da rua, mas s viu um automvel veloz quando este corria a umas doze jardas da estao. Os dois homens saltaram para ele, o carro tomou acelerao rumorosa e saiu com tremendos estouros pelo cais deserto. No havia possibilidade de apanh-los. Wade voltou estao e encontrou todas as reservas mobilizadas pelo sargento. No os apanharemos, disse ele, incisivo. Telefone para as outras estaes, o melhor. E voltou para o seu gabinete. Viu num relance que o anel de sinete desaparecera. Podia agora reconstituir a histria do chim assassinado. Esse homem queria trair os chefes e trouxera aquele anel como uma prova. Era

mudo, e incapaz de se fazer entender por algum, tendo trazido por isso o anel para provar a identidade de algum dos membros da quadrilha; ou ento o roubara num mpeto de vingana. A ltima hiptese pareceu mais acertada. Os Homens de Borracha no se teriam abalanado a recuperar o anel com tanto perigo, se o objeto no tivesse de fato grande importncia. O caso agora se aclarava. O crime podia ser, sem dvida alguma, imputado quadrilha da Borracha. Na manh seguinte a polcia fez uma pesquisa cerrada. Todos os chins suspeitos foram interrogados. As hospedarias da beira do rio, as penses chinesas, os congregaes orientais tudo foi revirado pela polcia. E a dificuldade crescia pelo fato de haver no porto doze navios em que os chins eram incontveis, cozinheiros, taifeiros e at mesmo maquinistas; mas por esse lado a polcia nada conseguiu saber. Mum Oaks fizera duas visitas a Scotland Yard e fora interrogada sem nada acrescentar para a soluo do mistrio. E o caso piorou quando a Secretaria de Estado baixou uma ordem limitando os poderes dos interrogatrios policiais; o que no caso de Mum Oaks pouco adiantou, porque Wade tinha a certeza de que nem os terrores da inquisio espanhola a teriam feito falar. Na sua segunda e ltima visita, Wade acompanhou-a na descida dos degraus de pedra de Scotland Yard. Meu anjo, disse ele, voc est procedendo muito mal. Por que diabo no nos quer dizer tudo o que sabe? A fria de Mum aquecia-lhe o crebro. Como os dias se passavam sem que se realizassem os seus temores, e como tambm tivesse sabido a limitao das atividades policiais, a sua atitude seca se acentuara e a insolncia crescera assustadoramente. tudo o que quer de mim? perguntou ela. Golly, que esperava pela esposa do lado de fora, veio tmido ao seu encontro, com uma face pattica. Pobre de minha esposa perseguida... comeou ele. Pare com isso! No tem outra coisa para dizer? perguntou Mum. Eu nada mais tenho, menina, disse Wade, seco. A no ser que quando tiver nas mos os Homens de Borracha.... Os Homens de Borracha! resmungou ela. Boa coisa h de arranjar com eles! Chegaram at a roubar um anel na estao de polcia... Ela falara demais. Os lbios se trancaram como a tampa de um alapo. Mas era tarde. Como soube disso, Sra. Oaks? (A voz de Wade tremia.) Quem lhe contou essa histria do anel? No houve resposta.

S quatro pessoas sabem do caso... uma delas sou eu prprio; o sargento Crewe a outra; as duas restantes so os cavalheiros que assaltaram a estao... E esperou uma explicao. Ora, est na boca da cidade, disse Mum por fim. O senhor no iria supor que os prprios assaltantes fossem espalhar a notcia pelo mundo inteiro!... Ela esperava que Wade a detivesse para novo interrogatrio. Com grande surpresa, entretanto, o Inspetor levantou a mo para o arco de entrada de Scotland Yard: Rua! disse Wade, a voz brincalhona. E depois, com ainda maior ironia: Recomende-me ao seu amante do guarda-roupa. Quando fez uma inclinao, Mum Oaks de boa vontade o teria assassinado. Por uma interessante combinao de circunstncias, o Inspetor Wade encontraria o "amante" de Mum vinte e quatro horas depois. O que a polcia chamou de incidente de Haymarket ocorreu cerca das dez horas da noite. essa a hora em que mais se acentua a solido de West End; os teatros esto cheios, os carros dos espectadores se alinharam beira das caladas e o trfego em Picadilly Circus to reduzido que quase no h necessidade de vigilncia. Mais tarde ainda, quando os teatros se esvaziam, ser o caos completo, mas mesmo s dez horas aquelas ruas so o paraso do motorista tmido. Dois homens desciam Haymarket vagarosamente e tomavam a direo da praa de St. James. Vinham conversando despreocupados, e certamente no haviam notado a mulher que os esperava a um canto da praa. Um policial que caminhava na mesma direo viu a mulher subitamente saltar para um dos homens e agarr-lo pelo casaco. Mal viu o assalto, correu, e ouviu a voz spera, zangada, da mulher que assaltara o homem e, correndo mais, chegou a tempo de separar os dois. Nesse momento dois outros policiais vieram correndo para o grupo, e logo uma multido, surgindo do nada, se reuniu em bbada. Mas eu no conheo esta mulher! dizia o homem mais alto. Ela saltou sobre mim por acaso. Deixem-na ir embora. Deve estar bbada. No estou bbada. Voc sabe que no, Starey. Diga que no se chama Starey! E comeou a puxar com violncia pelo capote dos policiais. Creio que tenha de process-la, senhor, disse o policial, que presenciara o assalto. O homem que fora atacado gostaria mais de ter fugido; mas agora era impossvel.

Mas no quero processar ningum. Veja o meu carto... Veja que no me chamo Starey. Nunca vi essa mulher na minha vida. Falava com grande interesse, para o guarda. Este, porm, desculpou-se: Impossvel, senhor. Foi ento que apareceu outra figura no pequenino drama. Um homem robusto, sangneo, abriu caminho no meio da multido. Vinha ligeiramente embriagado, e evidentemente o guarda o conhecia, porque levou a mo ao capacete. Boa noite, milord. O que h por aqui, hein? Algum aborrecimento para vocs? Quase isso, Lorde Siniford, um pequeno caso. Se fosse o senhor no esperaria aqui, no meio da rua... A mulher, que era contida por dois guardas, subitamente desprendeu-se dos que a seguravam e saltou para a frente, perto do recm-vindo: Tommy! gritou ela. Voc se lembra de Ana, Tommy?... Eu costumava dar-lhe confeitos, Tommy. No se lembra de Ana? O recm-vindo olhou-a. Meu Deus! rosnou ele. Por que voc, Ana...? E ento, com um mpeto inesperado, ela segurou o homem pelos ombros e comeou a falar-lhe em voz baixa e rpida. Hein! Mas o que isto? (A voz de Lorde Siniford se firmou.) Mas o que isto? O guarda segurou de novo a mulher e comeou a conduzi-la pelo meio da turba curiosa. Lorde Siniford ficou ali estatelado, vendo-a afastar-se, sem notar os olhares curiosos que o fixavam. Ento, soltando uma praga, seguiu os policiais e a mulher. Empalidecera um pouco; a respirao se lhe fizera difcil, e ele estava bem mais sisudo que quando aparecera em cena, movido pela curiosidade que aglomerara a turba em torno de ligeiro conflito.

CAPTULO VO Inspetor Wade possua uma pequena vila no Wapping. A casa ficava no extremo de uma rua sossegada e tinha aspectos rurais no jardim, onde o Inspetor cultivava com grande carinho algumas limeiras. Os maldizentes de Wapping, sempre a duvidar da probidade dos oficiais da polcia, costumavam espalhar que o Inspetor morava ali por condescendncia de alguns amigos poderosos e interessados em manter boas relaes com a polcia. Mas o fato era que a vivenda fora recebida como herana, por morte do pai do Inspetor, que ali passara toda a sua vida de modo que o cdigo de perversidades dos habitantes de Wapping no poderia, em verdade, achar transaes ilcitas que justificassem a posse da vila. Wade tinha em casa, como criado e zelador, um antigo oficial de polcia, e a escolha fora boa, porque a impopularidade do Inspetor poderia ter produzido resultados desagradveis. At ento duas tentativas de entrada suspeita na habitao haviam sido realizadas. Uma vez tinham ateado fogo nos fundos da casa, e, de outra feita, quando o Inspetor levava Liddy Coles ao cadafalso, tinham-lhe arrebentado a janela e ele chegara a achar uma bala de revlver encravada na parede da sala de visitas. Wade j roncava no seu primeiro sono quando a campainha do telefone tilintou, e ele ouviu, do outro lado, a voz melanclica do Inspetor Elk. Lembra-se daquela mulher que voc pescou no rio... Aquela mulher da fotografia... Ana? perguntou John Wade, sonolento. (No momento ele no se interessava por tentativas de suicdio.) Isso mesmo. Esta noite ela tentou assaltar o Capito Aikness. (E esclareceu mais): Do navio o "Troiano". E um caso sensacional, Inspetor, disse John, sarcstico. Mas no devia tirar-me dos cobertores por causa disso... Sei, sei, disse Elk. Lorde Siniford prestou fiana pela mulher (pronunciou com dificuldade o nome de Siniford). Esse Siniford um bbado que apareceu no momento do barulho, na rua de St. James. Isso lhe interessa? Mas, Inspetor... Um momentinho, continuou a voz queixosa de Elk. Aquele anel dourado de sinete foi achado na mo da mulher, quando a trouxeram. Ela nada pde explicar, porque teve uma crise nervosa, e fomos at obrigados a chamar o mdico do distrito. Quando abriram a mo da mulher, acharam o anel...

John Wade despertara de fato, agora. Refletiu rapidamente. Lorde Siniford prestou fiana por ela? Sim, ouvi falar desse camarada... Ele a conhece? Pelas aparncias, acho que sim. Ela o conhece chama--lhe Tommy, ou coisa parecida. Se no fosse pelo anel, eu no o teria incomodado. Apareo a daqui a pouco, disse Wade. Vestiu-se num instante, aprontou a motocicleta e furou o nevoeiro em direo a Scotland Yard. Que Elk estivesse em Scotland Yard s duas da madrugada, no havia nisso nada de notvel. Ele raras vezes saa de l antes disso. O que fazia por l, poucos sabiam. Os que diziam mal dele afirmavam que o Inspetor no tinha casa. E era verdade. O anel fora mandado a Scotland Yard e estava sobre um pedao de papel branco, na mesa de Elk, quando o detetive chegou. Por que a deixaram ir, sob fiana? S identificaram o anel depois que ela se foi. Aconteceu que o sargento aparecesse e soubesse do caso. Naturalmente, o inspetor do distrito foi procurar Lorde Siniford, para prender de novo a mulher, mas no encontrou ningum. Wade conhecia a reputao de Lorde Siniford. Ele vivia num apartamento luxuoso da rua de St. James, sendo membro de um dos clubes de antecedentes clebres. Siniford era o representante de um pariato decadente. No tinha terras, nem dinheiro em banco; o casamento americano que fizera no alcanara sucesso e fora dissolvido em pouco tempo. Tinha o nome nos documentos de vrias companhias falidas e comparecia com tamanha constncia ao Tribunal do Condado que j chegara a ser um tipo popular. Chegara mesmo a dormir nos barcos do cais. Fora ento que, inesperadamente, o dinheiro lhe viera, nunca ningum soubera como. As dvidas foram pagas, e todos comearam a crer que, ainda mesmo que os seus capitais no fossem muito grandes, a renda era ao menos respeitvel. A ltima mulher se atribura, a princpio, aquela munificncia; mas a criana desapareceu no dia em que o ex-sogro processou Siniford pelo dinheiro excessivo que gastara da fortuna da mulher, durante o curto matrimnio. Era um freqentador de botequins e tambm amante de corridas; possura um par de cavalos, que retirara do Turf quando nele se procedeu a um inqurito em torno da provenincia dos cavalos inscritos. Na polcia conheciam-no como um tipo de natureza bem humorada, mas essa opinio se foi modificando aos poucos com o tempero de certas aventuras que no devem ser detalhadas numa narrativa que pode cair em mos de jovens.

Ainda no voltara quando Wade chegou ao apartamento, e o criado nada pde adiantar de interessante. Sua Senhoria aparece por aqui quando quer, disse o criado. O senhor da Polcia? J estiveram aqui outros guardas. Sua Senhoria afianou uma mulher, mas ainda no voltou aqui. Ele no tem um automvel? perguntou Wade. Sim; tem um automvel numa garage... No me lembro onde. Acho melhor que se lembre! ameaou o detetive. A memria do criado logo se aclarou, e John foi parar numa garage da rua Dean, para saber que o carro fora retirado pouco antes da meia-noite. Acabara esses interrogatrios, e sara para a rua, quando viu um pequeno automvel dobrar a esquina e se aproximar da garage. Um homem saltou do carro, e Wade reconheceu em Lorde Siniford o homem que vira entrada do restaurante na noite em que Lila Smith e o seu misterioso companheiro tinham jantado tte--tte. No perdeu tempo com prembulos. Sou um oficial da Polcia, Lorde Siniford. Meu nome Wade. O homem olhou para ele, de perto. Oh! J o conheo! Foi mesmo o senhor que vi aquela noite. O porteiro disse-me o seu nome. Mas o que deseja? Quero ver a mulher por quem o senhor prestou fiana, na polcia. O homem no parecia bbado: talvez o choque da pergunta o fizesse ficar ainda mais lcido. Ora, meu amigo, o senhor que deve procur-la... O Lorde parecia divertir-se. Acho que ela o chamava de Tommy. O senhor a conhece? No me venha com essas perguntas, rapaz... O senhor a conhece? Nunca a tinha visto... Quer ento explicar-me por que prestou fiana por ela, e por que disse ao sargento da polcia que a conhecia h muitos anos? A interrogao teve o seu efeito. Bem, conheo-a, sim. uma antiga criada da minha famlia... Ana Smith. Diga isso a outro, respondeu Wade, rspido. Esperava que Lorde se desmentisse, mas isso no se deu. Para onde a levou? Ela me pediu que a deixasse perto de casa, em Camberwell, foi a resposta. A respirao do Lorde era ofegante. Recuso-me a fazer outras declaraes. Levei-a simplesmente para

casa, em Camberwell... Wade interrompeu-o: Ela disse na estao de polcia morar em Holloway, que me parece ficar bem longe de Camberwell. Lorde Siniford, acho melhor que me conte tudo o que sabe sobre essa mulher. Tenho uma razo profunda para o interrogar. Um anel foi achado em sua mo, e esse mesmo anel foi roubado h dias, violentamente, de uma estao de polcia. Preciso v-la para interrog-la nesse sentido. Um anel? (Siniford estava evidentemente atrapalhado.) No sei de nada a respeito de anis. Ela nada me disse. (E ento, aprumando-se): No sei de mais nada sobre essa mulher. J lhe disse tudo. Mora em Camberwell, porque foi l que eu a deixei. John Wade sorriu, na treva. Suponhamos que o senhor a tenha levado para algum stio em que no possamos v-la e interrog-la? Lorde Siniford agitou-se. Mas o senhor sabe ser impertinente! Eu no fiz mais do que um ato bom... hum!... um ato cristo, socorrendo uma velha criada da famlia... Um cavalheiro qualquer faria o que fiz... E agora o senhor vem me dizer que estou metido num... hum!... num roubo, numa complicao de anis! um desaforo, Inspetor. Vou me queixar ao Chefe de Polcia... Amanh mesmo. Fale com ele esta noite, disse Wade. Se quiser, dou-lhe o nmero do telefone. No havia nada a fazer com aquele tipo. A nica coisa que ocorria era esperar que a mulher comparecesse ao Tribunal, quando fosse citada pelos jornais. Mas a tal senhora no apareceu; um solicitador, evidentemente contratado por Lorde Siniford, levantou-se e disse que no conseguira avistar-se com a mulher, para que ela comparecesse sesso. Certamente foi levada para qualquer canto da provncia, disse Wade ao inspetor local. O senhor sabe alguma coisa a respeito de Siniford? O oficial disse: No, a no ser que um esbanjador de dinheiro. No ter ele uma casa de campo? O Inspetor sorriu. No, no tem. Mas tenho ainda alguns detalhes, disse, sorrindo. Antigamente Lorde Siniford costumava alugar casas de campo, e abandonlas sem se lembrar de pagar os aluguis. Com certeza alugou uma vivenda qualquer