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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011 Ano 8 • Número 409 Reprodução Altamiro Borges Tucanos privatizam saúde Na véspera do Natal, a bancada governista da Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou o projeto de lei que permite às chamadas Organizações Sociais (OSs) a venda de 25% dos serviços do Sistema Único de Saúde. Pág. 3 Anita Leocadia Prestes Legado revolucionário Luiz Carlos Prestes nasceu em 3 de janeiro de 1898, em Porto Alegre, e faleceu em 7 de março de 1990, no Rio de Janeiro. Desde muito jovem, revelou indignação com as injustiças sociais e a miséria de nosso povo. Pág. 7 Leandro Konder A natureza humana Nas atuais condições, podemos – provocadoramente – dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam. Mas o jogo ainda não terminou para o time da Utopia Futebol Clube. Pág. 8 Nunca antes... Nunca antes na história do Brasil, um operário foi eleito à presidência da República e nenhum teve tanta popularidade. Mas nunca antes a esquerda foi tão desapontada nas suas expectativas de mudanças. Os oito anos de Lula rendem um rico debate, repleto de divergências, que pode ser conferido, a partir desta edição, no Brasil de Fato. Págs. 2, 4, 5 e 6 Entrevista Regular a mídia, desde abajo Pág. 10 Israel O estigma de ser mulher Pág. 11 Tucuruí Progresso seletivo Pág. 8 ISSN 1978-5134 Política Rumos da integração sul-americana Entrevista exclusiva com o jornalista Pablo Stefanoni Pág. 9

Edição 409 - de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011Ano 8 • Número 409

Reprodução

Altamiro Borges

Tucanos privatizam saúdeNa véspera do Natal, a bancada governista da Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou o projeto de lei que permite às chamadas Organizações Sociais (OSs) a venda de 25% dos serviços do Sistema Único de Saúde. Pág. 3

Anita Leocadia Prestes

Legado revolucionárioLuiz Carlos Prestes nasceu em 3 de janeiro de 1898, em Porto Alegre, e faleceu em 7 de março de 1990, no Rio de Janeiro. Desde muito jovem, revelou indignação com as injustiças sociais e a miséria de nosso povo. Pág. 7

Leandro Konder

A natureza humana Nas atuais condições, podemos – provocadoramente – dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam. Mas o jogo ainda não terminou para o time da Utopia Futebol Clube. Pág. 8

Nuncaantes...Nunca antes na história do Brasil, um operário foi eleito à presidência da República e nenhum teve tanta popularidade. Mas nunca antes a esquerda foi tão desapontada nas suas expectativas de mudanças. Os oito anos de Lula rendem um rico debate, repleto de divergências, que pode ser conferido, a partir desta edição, no Brasil de Fato. Págs. 2, 4, 5 e 6

Entrevista

Regular a mídia, desde abajoPág. 10

Israel

O estigma de ser mulherPág. 11

Tucuruí

Progresso seletivoPág. 8

ISSN 1978-5134

Política

Rumos da integração sul-americanaEntrevista exclusiva com o jornalista Pablo Stefanoni Pág. 9

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Nunca antes na história deste país

OS JORNAIS brasileiros divulgaram, no começo de dezembro, referências ao MST feitas em telegramas sigilosos enviados nos últimos anos por diplo-matas estadunidenses no Brasil aos seus superiores em Washington e re-velados pelo site Wikileaks. Algumas refl exões podem ser feitas a partir da leitura desse material.

1. A imprensa empresarial brasi-leira manteve nesse episódio sua ha-bitual postura de hostilidade sistemá-tica ao MST, apresentado sempre por um viés negativo e sem direito a apre-sentar o seu ponto de vista. Para os jornais das grandes famílias que con-trolam a informação no país, como os Marinho e os Frias, o acesso a vaza-mentos da correspondência diplomá-tica representou a chance de lançar um novo ataque à imagem do MST, sob o disfarce da objetividade jorna-lística. Afi nal, para todos os efeitos, não seriam eles, os jornalistas, os res-ponsáveis pelo conteúdo veiculado, e sim os autores dos telegramas.

Desrespeitou-se, assim, mais uma vez, um princípio elementar da ética jornalística, que obriga os veículos de comunicação a conceder espaço a to-das as partes envolvidas sempre que estão em jogo acusações ou temas controvertidos. Uma postura jorna-lística honesta, voltada para a bus-ca da verdade, exigiria que O Globo, a Folha e o Estadão mobilizassem seus repórteres para investigar as acusações que diplomatas dos EUA, no Brasil, transmitiram aos seus su-periores. Em certos casos, nem seria necessário deslocar um repórter até o local dos fatos. Nem mesmo dar um telefonema ou sequer pesquisar os arquivos. Qualquer jornalista mini-mamente informado sobre os confl i-tos agrários está careca de saber que os assentados no Pontal do Parana-panema, mencionados em um dos te-legramas, não possuem qualquer vín-culo com o MST. Ou seja, os jornais que escreveram sobre o assunto es-tão perfeitamente informados de que o grupo ao qual um diplomata esta-dunidense atribui o aluguel de lotes de assentamento para o agronegócio não é o MST. O diplomata está enga-nado ou agiu de má fé. E os jornais foram desonestos ao omitirem essa informação essencial.

Esse é apenas um exemplo, revela-dor da postura antiética da impren-sa em todo o episódio. Se os vaza-mentos do Wikileaks mencionassem algum grande empresário brasilei-ro, ele seria, evidentemente, consul-tado pela imprensa, antes da publi-cação, e sua versão ganharia grande destaque. Já com o MST, os jornais deixam de lado qualquer considera-ção ética.

2. A cobertura da mídia ignora o que os telegramas revelam de mais relevante: a preocupação das autori-dades estadunidenses com os movi-mentos sociais no Brasil (e, por ex-tensão, na América Latina como um todo). Os diplomatas gringos se com-portam, no Brasil do século 21, do mesmo modo que os agentes colo-niais do fi nado Império Britânico, sempre alertas perante o menor sinal de rebeldia dos “nativos” nos territó-rios sob o seu domínio. Nas referidas mensagens, os funcionários se mos-tram muitos incomodados com a for-ça dos movimentos sociais e tratam de avaliar seus avanços e recuos, ain-da que, muitas vezes, de forma equi-vocada. O “abril vermelho”, em es-pecial, provoca uma reação de medo entre os agentes de Washington. Tal-vez por causa da cor... A pergunta é: por que tanta preocupação do impé-rio estadunidense com questões que, supostamente, deveriam interessar apenas aos brasileiros?

3. O fato é que o imperialismo es-tadunidense é, sim, uma parte envol-vida nos confl itos agrários no Brasil. Essa constatação emerge, irrefutável, no telegrama que trata da ocupação

de uma fazenda registrada em nome de proprietários estadunidenses em Unaí, Minas Gerais, em 2005. Pouco importa o tamanho da propriedade (70 mil hectares, segundo o embai-xador, ou 44 mil, segundo o Incra). O fundamental é que está em curso uma ocupação silenciosa do território rural brasileiro por empresas estran-geiras. Milhões de hectares de terra fértil – segundo alguns cálculos, 3% do território nacional – já estão em mãos de estrangeiros. O empenho do embaixador John Danilovich no caso de Unaí sinaliza a importância des-se tema.

4. Em todas as referências a ato-res sociais brasileiros, os telegramas deixam muito claro o alinhamento dos EUA com os interesses mais con-servadores – os grandes fazendeiros, os grandes empresários dos municí-pios onde se instalam assentamen-tos, os juízes mais predispostos a as-sinarem as ordens de reintegração de posse.

5. Por fi m, o material veiculado pelo Wikileaks fornece pistas sobre o alcance da atuação da embaixada e dos órgãos consulares dos EUA como órgãos de coleta de informações polí-ticas. Evidentemente, essas informa-ções fazem parte do dia-a-dia da ati-vidade diplomática em qualquer lu-gar no mundo. Mas a história do sé-culo 20 mostra que, quando se trata dos EUA, a diplomacia muitas vezes funciona apenas como uma facha-da para a espionagem e a interferên-cia em assuntos internos de outros países. Aqui mesmo, no Brasil, fo-mos vítimas dessa postura com o en-volvimento de agentes dos EUA (in-clusive diplomatas) nos preparativos do golpe militar de 1964. À luz des-ses antecedentes, notícias como a de que o consulado estadunidense em São Paulo enviou um “assessor eco-nômico” ao interior paulista para in-vestigar a situação dos assentamen-tos de sem-terra constituem motivos de preocupação. Será essa a conduta correta de um diplomata estrangeiro em um país soberano?

Igor Fuser é professor da Faculdade Cásper Líbero, doutorando em Ciência Política na USP e membro do conselho

editorial do Brasil de Fato.

debate Igor Fuser

O Wikileaks, a mídia e o MST

crônica Marcelo Barros

NUNCA ANTES NA história des-te país, um presidente da Repúbli-ca terminou o seu mandato com ín-dices de 87% de popularidade e 80% de aprovação do seu governo, como alcançou o presidente Lula. Não há muito o que comemorar, se for ana-lisado que, desde a chegada da co-lonização europeia, em 1500, fo-ram poucos e curtos os períodos de governos democráticos em nosso país. Governos ditatoriais e a máxi-ma da República oligárquica (1889 -1930), “questão social é caso de polí-cia”, prevaleceu nos 510 anos de de-senvolvimento capitalista nas ter-ras brasileiras. Foram cinco séculos de políticas econômicas voltadas pa-ra atender os interesses do mercado externo, enriquecer uma peque-na minoria da população e relegar a maioria a viver na pobreza e exclu-ída das decisões políticas do país. Tornou-se indissociável, aqui, de-senvolvimento econômico com o au-mento da desigualdade social e a re-pressão popular.

Bastou ao governo Lula adotar uma política econômica que, mesmo timidamente, contemplasse os inte-resses da população e uma política externa que sinalizasse em direção da soberania nacional, juntamen-te com seu carisma pessoal, para ser aclamado como “o cara” pela opinião pública nacional e internacional.

De acordo com o Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de pessoas que viviam na extrema pobreza caiu de 30,4 mi-lhões (2003) para 17 milhões em 2009. Um feito reconhecidamente notável em tão curto espaço de tem-po. No entanto, ao considerar que essa multidão apenas deixou de es-tar na faixa das pessoas que ganham menos de um dólar diário – o que caracteriza a faixa da extrema po-breza – veremos o quão pouco fo-ram benefi ciados com a atual políti-ca econômica. Não há nada a come-morar, também, ao saber que 8,5% da população brasileira, cerca de 17 milhões de pessoas, sobrevivem com menos de um dólar diário.

Erradicar a pobreza exigirá do próximo governo políticas mais ou-sadas, que promovam reformas es-truturais que assegurem desenvol-vimento econômico e a distribui-ção da renda e da riqueza produzida no país. Ao ritmo do governo que encerrou o mandato em 2010, ire-mos demorar de 15 a 20 anos para o Brasil fi car no nível de desigualdade social de países como Turquia e Tu-nísia, com uma renda familiar per capita de 100 reais. Um ritmo ina-ceitavelmente lento para um país que pretende, na próxima década, estar entre as cinco maiores econo-mias mundiais.

Já há um acirrado debate se es-tá ocorrendo ou não um processo de desindustrialização do país. Há ar-gumentos tanto para os que defen-dem a existência desse fenômeno quanto para os que divergem dessa análise. No entanto, é inegável que há uma perda da participação da in-dústria na formação do PIB do país. Enquanto, em 1985, a produção da indústria de transformação respon-dia com 36% do PIB, em 2008 essa participação caiu para 16%. Certa-mente um dos motivos dessa queda se deve à adoção de políticas econô-

micas que priorizam a exportação de matérias primas ao invés de promo-ver o desenvolvimento das cadeias produtivas de maior valor agregado, que gerem empregos e promovam os desenvolvimentos regionais do país. Até quando a economia do país fi cará a reboque dos interesses do agronegócio, que benefi cia uma ín-fi ma minoria da população, que es-tá voltada para os interesses do mer-cado externo, provoca êxodo rural, emprega pouca pessoas no campo e promove verdadeiros desastres am-bientais?

Há pouco o que comemorar ao olharmos o baixo nível das campa-nhas eleitorais – a deste ano é exem-plar – e das atuações, depois de elei-tos, dos parlamentos e governos. Programas apresentados em perí-odos eleitorais (quando apresenta-dos!) são completamente ignora-dos pelos governantes eleitos, acen-tuando a prática dos embusteiros que ocupam cargos políticos. Ur-ge uma reforma política que vá além dos conchavos e acordos que aco-modam os interesses, às vezes escu-sos e muitas vezes espúrios, das si-glas partidárias. Uma reforma polí-tica que vise a criar condições para o povo fazer história no país e não res-tringir-se a ser um mero expectador dos acontecimentos políticos. Desa-fi o que exige promover, nas palavras

do presidente do Ipea, Márcio Poch-mann, uma profunda reforma agrá-ria, uma efetiva reforma tributária em que os ricos paguem mais im-postos e uma ampla reforma social que permita aos pobres serem be-nefi ciados, de fato, com a universa-lização com qualidade da educação, saúde habitação e transportes.

Há desafi os gigantescos para o próximo governo que se inicia em 2011. Maiores ainda são os desa-fi os das esquerdas e das forças po-pulares, engajadas nas transforma-ções políticas e econômicas e iden-tifi cadas com os ideais socialistas. Caberão a elas superar o divisionis-mo existente, se fazer entender pe-la população e apresentar propostas políticas que conciliem a necessida-de de obter vitórias imediatas com o processo de acúmulo de forças pa-ra as transformações revolucioná-rias. É tempo de organizar e elevar a consciência política da população brasileira. Caso contrário, continu-aremos, nos próximos quatro anos, assistindo a quem apresenta as pro-postas mais radicais, vendo o sur-gimento de novos líderes “sebas-tianistas-socialistas” nas próximas eleições e continuaremos nos sub-metendo aos caprichos da imprensa burguesa para ocupar espaços em seus jornais e fomentar divisões en-tre nós mesmos.

de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 20112editorial

Gama

O encanto e os riscos do Ano NovoEM TODAS AS CULTURAS e nas mais diversas religiões, as pes-soas sentem uma profunda e misteriosa atração pelas novidades. Tudo o que é novo suscita admiração e desperta interesse. Isso revela uma vocação para se renovar permanentemente e é carac-terística do ser humano.

Na natureza, há animais capazes de pressentir se vai chover ou estiar. Ao despontar da madrugada, o galo canta. Ao mudar das horas, o jumento relincha. No entanto, somente o ser huma-no é capaz de contar o tempo. Só a humanidade faz história e, as-sim, faz do futuro (aquilo que há de vir) possibilidade do novo. Há pessoas que pensam: “o tempo resolve”. Infelizmente, isso não é verdade. A passagem do tempo não acarreta por si mesma e mecanicamente uma evolução para melhor. A mera mudança de tempo traz envelhecimento e não novidade ou solução. O que faz o tempo ser fecundo de algo novo é o amor. Celebrar o Ano No-vo tem este signifi cado: colher as sementes de bondade espalha-das na terra durante o ano passado e garantir que sejam semea-dos novos brotos de paz e justiça.

Desde os tempos antigos, muitas comunidades costumam fes-tejar a mudança de ano com um banho regenerador que simboli-za renovação interior. Por isso, até hoje, multidões se aglomeram nas praias para saudar o novo ano. Em outras culturas, as pesso-as vestem roupas novas para simbolizar que assumem posturas novas de vida. Há também regiões do mundo nas quais o ano no-vo é celebrado com refeições cultuais. Existem alimentos especí-fi cos do ano novo, como, por exemplo, em alguns países da Euro-pa, saborear ostras. Estas vêm fechadas e se abrem, assim como o mistério do tempo que, na noite do 1º de janeiro, pode iniciar uma época nova para quem a acolhe.

Todos estes costumes e ritos são válidos, desde que não vivamos o Ano Novo apenas como um dia que o calendário traz e, assim co-mo chega, em breve, terá passado. As Igrejas cristãs costumam fa-lar em “ano da graça de 2011”. É um modo de dizer que o impor-tante do tempo não é a contagem quantitativa, mas a sua densida-de. A regra beneditina ensina aos monges que o tempo nos é dado como “um prazo a mais para a nossa conversão”. Paulo escreveu à comunidade cristã de Roma que “a escuridão da noite quase pas-sou e o dia está chegando. Devemos, então, ser como pessoas que despertam na madrugada e organizam suas vidas não como quem vive na escuridão da noite e sim à luz do dia (Rm 13, 13).

Viver à luz do sol é um modo de dizer que temos de ser lúcidos (o próprio termo lucidez vem de luz), aprimorar o espírito crítico e refi nar a consciência para saborear a vida como algo sempre no-vo e que nos leva à comunhão com os outros e com a natureza.

Neste primeiro dia do ano, o Brasil assistirá a posse da nova presidente da República e dos governos estaduais, renovados ou reeleitos. Difi cilmente o poder reforma profundamente a si pró-prio. Sem dúvida, as transformações sociais e políticas mais subs-tanciais virão não dos governos e sim da sociedade civil e dos mo-vimentos do povo organizado. Uma das promessas de campanha da presidente eleita é valorizar as organizações da sociedade ci-vil e aprimorar as regras para a participação de todos na políti-ca. Justamente, o que nos faz esperar um bom governo é este res-peito e mesmo apreço pela sociedade civil. Graças a Deus, nun-ca mais voltaremos aos governos que criminalizavam os movi-mentos populares, como aconteceu na época da ditadura militar e mesmo nos primeiros governos civis que vieram depois. A todos, feliz Ano Novo.

Marcelo Barros é monge beneditino e escritor. Tem 37 livros publicados, entre os quais O Amor fecunda o Universo (Ecologia e

Espiritualidade) com coautoria de Frei Betto. Ed Agir, 2009.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

É tempo de organizar e elevar a consciência política da população brasileira

O que faz o tempo ser fecundo de algo novo é o amor

O diplomata está enganado ou agiu de má fé. E os jornais foram desonestos ao omitirem essa informação essencial

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de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011

Esse processo acelerado de privatização, que agora será agravado com a venda de até 25% dos serviços do SUS, tem degradado o atendimento à população. Co-mo afi rma o deputado estadual Adriano Diogo (PT), integrante da Comissão de Higiene e Saúde da Assem-bleia Legislativa, “a nova lei das OS reduzirá mais o já precário atendimento hospitalar da população pobre. É a expansão da quarteirização dos serviços públicos de saúde no Estado de São Paulo”.

A mídia burguesa, a maior parte dela sediada na ca-pital paulista e que mama nas tetas dos governos tu-canos, que há mais de 16 anos mandam em São Paulo, deu pouco destaque a esse golpe de enorme gravida-de. O assunto não foi manchete nos jornalões e revis-tonas conservadores e nem mereceu comentários dos “colunistas” das TVs. Não é para menos que a mídia apoiou de forma escancarada o “vampiro” José Serra. Caso fosse eleito, ele poderia tentar implantar o pro-jeto de privatização da saúde em todo o Brasil – para alegria dos neoliberais.

Tucanos privatizam a saúde em São Paulo

NA VÉSPERA DO FERIADO de Natal – usando ve-lhos métodos do rolo-compressor – a bancada gover-nista da Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou, dia 21 de dezembro, por 55 votos a 18, o projeto de lei 45/10, que permite às chamadas Organizações Sociais (OS) a venda de 25% dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Incluíram até os leitos hospitalares, para os planos privados de saúde e os hospitais parti-culares. Votaram contra as bancadas do PT e do PsoL um deputado do PDT e outro do PR.

O projeto expressa os piores instintos privatistas dos neoliberais. Ele repassa os recursos públicos do SUS para os gulosos tubarões capitalistas da saúde. E representa mais um passo no rumo da privatiza-ção do setor. A invenção das tais OS, entidades de fa-chada que não têm nada de social, foi a primeira me-dida demotucana no rumo da mercantilização deste serviço essencial à sociedade. Atualmente, boa par-te dos hospitais públicos de São Paulo já está sob co-mando das OS.

Jadson Marques/Folhapress

instantâneo frases soltas

Altamiro Borges

panha pela eleição de Dilma. Afi nal, não poderia ver meu país (S)cerrado por mais privatizações.

O governo Lula tomou a postura corajosa de apoiar Manuel Zelaya, presidente de Honduras, durante o golpe de Estado. Estreitamos relações com nossos irmãos latinoamericanos. No entanto, acompanha-mos um retrocesso histórico: o envio de tropas mili-tares brasileiras ao Haiti. Vergonhoso!

Foi criado o Conselho Nacional de Combate à Dis-criminação, denominado Conselho Nacional LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Mas ainda não aprovamos o projeto de lei 122/06, que propõe a criminalização da homofobia.

Realizamos a I Conferência Nacional de Comuni-cação. Contudo, poucas famílias ainda detêm o mo-nopólio dos meios de comunicação, não há controle social e o movimento de rádios comunitárias é cada vez mais massacrado e criminalizado.

Crítica e autocrítica são fundamentais na constru-ção de um projeto de uma nação com soberania, jus-tiça e solidariedade.

Memórias póstumas de fi nal de ano

AVANÇAMOS. Definitivamente, avançamos. Em-bora distantes de uma reforma agrária, inúmeros projetos de agricultura familiar, bem como políti-cas direcionadas para o campo foram implementa-das. Fez-se a luz no campo, programas de educação foram regulamentados, a lei de assistência técnica gratuita foi efetivada. Mas ainda há difi culdades pa-ra crédito pelo Programa Nacional de Fortalecimen-to da Agricultura Familiar (Pronaf), além de falta de acesso à saúde, a transporte público e afi ns. Direitos básicos não reconhecidos. Trabalhadores rurais ain-da sofrem. São criminalizados pela mídia. São dis-criminados.

Elegemos a primeira mulher presidenta do país, diante de um cenário conservador imposto pela mí-dia. Aborto, distorção da luta contra a ditadura militar e até orientação sexual entraram no debate “político” (que de político não teve nada). Assistimos ao rebai-xamento claro da direita, sem agenda política e agindo com a conivência dos donos dos grandes veículos de comunicação. Eu, que não sou PT, fui às ruas, fi z cam-

Camila Marins

ATOLADO – Bombeiros do quartel de Campo Grande são acionados para resgatar um cavalo que caiu dentro de um córrego próximo à Estrada do Cabuçu (RJ)

comentários do leitor

“Obrigado, Lula”, de Frei Betto

As verdadeiras transformações sociais não vêm de um governante, qualquer que seja, vêm das bases, das pessoas. O má-ximo que um governo pode fazer é facili-tar, apoiar ou acompanhar esse movimen-to. Logo, devemos pensar: qual cenário po-lítico favorece a organização dos movimen-tos que produzem as verdadeiras conquis-tas sociais?

Sabemos que a condução do poder polí-tico no Brasil é um campo de disputa on-de, na correlação de forças, nós, movimen-tos sociais e pessoas engajadas em realmen-te mudar as coisas, temos uma força muito pequena se comparada ao capital fi nancei-ro, por exemplo. Se nos colocamos radical-mente contra o governo, deixamos o campo livre para aqueles que estão lá todos os dias, fazendo lobby, pressionando, subornando. Infelizmente temos que fazer o esforço de tentar enxergar aquilo que pelo menos pa-rece ser bom pra ver se tiramos mais dali.

Vejo que o Frei Betto mais do que enalte-cer “o governo” dá uma cutucada, até com uma certa ironia, elogiando para criticar, agradecendo para cobrar, como quem diz “e aí, companheiro, muito bem, e agora qual vai ser?”

Eduardo Simas, por correio eletrônico

ElogioParabéns a toda equipe do Brasil de Fa-

to pelo ótimo trabalho que vem desenvol-vendo.

Rene Vicente dos Santos, por correio eletrônico

Aumento dos deputadosEntra mandato sai mandato e nos depa-

ramos com esses absurdos de legislatura em causa própria, escândalos, enfi m. Aos companheiros do Psol, que nunca nos de-cepcionam, uma sugestão: depositar a dife-rença em um fundo partidário para que na próxima eleição possamos aparecer de for-ma mais “vendedora”, através de uma cam-panha publicitária vencedora e consigamos

aumentar a “bancada da moralidade”. Mais nada pode ser feito no momento além de fi scalizar, fi scalizar, fi scalizar...

Gustavo Bueno, por correio eletrônico

•Não me impressiona o fato de o Psol ter

votado contra o aumento, pois isso não adianta nada, o PT também, quando não estava no poder, tinha o mesmo discurso, no entanto, quando chegou no poder nunca fez nada nessa direção. O argumento de que o dinheiro é usado para campanhas e fun-do partidário, marketing etc., desse modo o partido entrou no mesmo jogo. Enfi m, nós brasileiros precisamos fazer alguma coi-sa, como uma grande passeata contra esses abusos. O resto é balela.

Maura Bohn Pires, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

3

Para mim, a grande diferença é que não há mais tiroteios. Nosso morro já era relativamente tranquilo. Só tinha tiroteio mesmo quando a polícia entrava para fazer operação. Na verdade, os bandidos não incomodavam muito a gente. Então, não sinto grande diferença. Além disso, ainda tem muitos usuários de crack que circulam por aqui

Moradora do Morro da Providência (RJ), que não quis se identifi car, em entrevista à Agência Brasil

Assim como outros países, como o Brasil, a Bolívia reconhece o Estado palestino, sua independência, sua soberania

Evo Morales, presidente da Bolívia, em coletivade imprensa na sede do governo

O erro será corrigido

Pedro Novais, deputado federal (PMDB-MA) e futuro ministro do Turismo no governo de Dilma Rousseff, ao justifi car a inclusão de uma nota fi scal R$ 2.156,00 do Motel Caribe na prestação de contas da verba indenizatória de junho

A repartição dos bens, sob tal premissa, deve acontecer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada um dos integrantes da dita sociedade

Vasco Della Giustina, desembargador que, ao analisar recursos no Rio Grande

do Sul, reconheceu que em uniões homoafetivas, os bens devem ser partilhados

conforme esforço de cada um

Podemos sim discutir questões do Ecad, mas não subordiná-lo ao governo

Ana de Hollanda, futura ministra da Cultura, ao comentar que não há possibilidade de submeter o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) ao Ministério

Entendo que as pessoas que estão lendo os documentos podem ter interpretações distintas, mas na ata já chamamos a atenção para os riscos que se apresentaram nos cenários prospectivos

Carlos Hamilton Araújo, diretor de Política Econômica do Banco Central, ao

comentar que os riscos de infl ação para 2011 aumentaram

Janine Moraes/Agência Câmara

O deputado Pedro Novais (PMDB-MA)

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brasilde 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 20116

Luta coletivaApós 20 anos de lutas, a comuni-

dade do quilombo de Cangume, no Vale do Ribeira (SP), conseguiu, dia 16 de dezembro, o reconhecimento ofi cial dos 725 hectares de terras trabalhados coletivamente pelos mo-radores, já que o quilombo, de 1970 a 1990, havia perdido as terras em lotes individuais e fi cado reduzido a 37 hectares. Agora o patrimônio está nas mãos da associação dos moradores.

Ação criminosaConhecida mundialmente por

produzir agrotóxicos cancerígenos, a Monsanto não apenas impõe o cul-tivo de suas sementes transgênicas e despeja toneladas de seu veneno quí-mico nas lavouras brasileiras, como está fazendo lobby junto ao Minis-tério da Saúde para que seja aumen-tada a quantidade legal de glifosato (agrotóxico) na água destinada ao consumo humano, de 500 para 900 microgramas por litro. Só falta agora comercializar o antídoto!

DisparidadeEm dezembro, a Câmara dos De-

putados aprovou, com o voto de 96% dos parlamentares, o aumento sala-rial dos próprios deputados e sena-dores (62%), dos ministros (149%) e do presidente da República (130%). Apenas 35 deputados – de diversos partidos – votaram contra o novo “trem da alegria”. Enquanto isso, as várias categorias de trabalhadores penam para conquistar reajustes salariais entre 5% e 10%. É outro mundo!

Direitos civisManifesto divulgado dia 21 de

dezembro, assinado por várias enti-dades de defesa dos direitos huma-nos do Rio de Janeiro, denuncia a violência policial-militar nas favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro, como os “casos concretos de tortura, ame-aça de morte, invasão de domicílio, injúria, corrupção, roubo, extorsão e humilhação.” Afi rma que não se sabe até hoje quantas pessoas foram mortas na operação de ocupação das favelas.

Defi cit comercialA se manter a atual política cam-

bial, com real valorizado e dólar des-valorizado, o que tem favorecido as importações e prejudicado as expor-tações, o Banco Central estima que o defi cit na balança comercial atinja 64 bilhões de dólares em 2011, ou 2,87% do PIB, um pouco superior ao rombo de 2010, que chegou a 2,4% do PIB nos últimos 12 meses. Esse é um dos pepinos deixados para o pró-ximo governo.

Empurra-empurraNa verdade, a lista de problemas

adiados ou empurrados com a bar-riga para o governo Dilma Rousseff aumenta a cada dia: além das refor-mas política, fi scal, agrária e traba-lhista, dá para elencar a jornada de 40 horas semanais, o fator previden-ciário, a regulação da comunicação social, a Comissão da Verdade para os crimes da ditadura militar, a des-criminalização das drogas e do abor-to etc. Que não fi quem para futuros governos!

Maior disputaComo de praxe, na montagem do

governo Dilma Rousseff partidos e correntes do PT disputaram acirra-damente os ministérios, secretarias e principais cargos de primeiro e segundo escalões. O que deu maior agitação na mídia e nos grupos de pressão foi o Ministério da Cultura, que era ocupado por Juca Ferreira, vinculado ao PV de Gilberto Gil, e foi entregue para Ana Buarque de Holanda, apoiada por correntes pe-tistas. Haverá mudanças?

Desatino ofi cialEm nota distribuída dia 21 de de-

zembro, o Movimento Xingu Vivo para Sempre chama o cronograma do PAC de “despautério”, na medida em que prevê o início das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, para 15 de janeiro. De acordo com a nota, os “atropelos sistemáticos dos preceitos constitucionais” colocam em risco “a soberania e a democracia do país”. O movimento promete re-sistir por “todos os meios possíveis”.

Jogada espetacularA Presidência da República sancio-

nou dia 21 de dezembro a Lei 12.350, que autoriza a isenção de impostos, a partir de 1° de janeiro de 2011, para a Federação Internacional de Fute-bol (Fifa), para organização da Copa das Confederações (2013) e para a Copa do Mundo de 2014. A entidade, que é privada e fatura uma fortuna com o futebol, deixará de recolher aos cofres públicos o imposto de im-portação, Cofi ns, PIS-Pasep e outros. Grande mamata!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Alexania Rossatode São Paulo (SP)

O AVANÇO do capitalismo sobre o terri-tório e os recursos naturais estratégicos, como forma de sair da crise econômica defl agrada em setembro de 2008, tem se materializado no Brasil também com o aumento da construção de usinas hi-drelétricas. As obras na Amazônia, consi-derada a nova fronteira energética, nun-ca foram tão disputadas e desejadas pe-los senhores da energia e questionadas pelo povo.

Na avaliação do Movimento dos Atin-gidos por Barragens (MAB), compara-do aos governos anteriores, o presiden-te Lula não promoveu mudanças estru-turais no modelo energético. “O proble-ma central é o atual modelo, que con-tinua gerando energia para servir a in-dústria eletrointensiva e busca garantir as mais altas taxas de lucro em todas as áreas que compreende o setor elétrico. Transforma a energia em vários negó-cios, controlados por corporações trans-nacionais. O Lula ou não quis, ou teve medo de romper com esse modelo”, diz Gilberto Cervinski, da coordenação na-cional do MAB.

A retomada do planejamento estatal do setor pelo governo Lula, depois de ter si-do abandonado por FHC, segue nesse ru-mo e aponta para a construção de mui-tas novas barragens. Aprovado no fi -nal de novembro de 2010 pelo Minis-tério de Minas e Energia, o Plano Dece-nal de Expansão de Energia 2019 exibe um aumento no consumo de energia que corresponde a uma taxa anual média de crescimento de 5,4%. A oferta de energia elétrica passará de 539,9 terawatt/hora em 2010 para aproximadamente 830 terawatt/hora em 2019, segundo infor-mações do próprio MME.

Esse montante desperta o interesse de empresas transnacionais do mundo to-do, já que o Brasil oferece fi nanciamen-to público através do BNDES, rios abun-dantes, mão de obra disponível e consu-mo garantido, seja pelos consumidores residenciais, seja pelo comércio ou pe-la indústria. “O setor elétrico brasilei-ro é uma galinha dos ovos de ouro, não há empresa que não queira vir explorar a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica no Brasil; as riquezas naturais e as garantias dadas pelo Esta-do são infi nitamente mais atraentes, se compararmos com outros países”, decla-ra Cervinski.

Segundo informações das próprias em-presas, os lucros apontados pelos balan-ços trimestrais estão batendo recordes:

a CPFL Energia ampliou seu lucro em 33,8%; a Light quase dobrou no trimes-tre; a Eletrobrás 76,2%, a Tractebel am-pliou em 13,4% e a Eletropaulo elevou seu lucro em 22,7%.

Esses valores podem ser ampliados no próximo período, pois cerca de 20% da geração, 74% da transmissão e 33% da distribuição têm seus contratos de con-cessão de energia elétrica vencendo a partir de 2012. Quase 100% dessas con-cessões hoje são estatais e as renovações envolvem valores equivalentes a R$ 30 bilhões ao ano. As empresas privadas do setor elétrico estão pressionando pa-ra que o governo leiloe as usinas e as li-nhas de transmissão, já os movimentos sociais estão propondo reverter para o controle estatal o que está sob controle privado, a renovação das concessões es-tatais com manutenção do seu controle acionário, além da criação de uma polí-tica de aplicação dos recursos para pro-gramas sociais.

Entraves na política socialDesde que a maior parte do setor elé-

trico foi privatizado no início dos anos 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a política de trata-mento social dos atingidos por barra-gens tornou-se mais restrita e violen-ta. A pressão por direitos por parte dos atingidos, que antes era dirigida às es-tatais do setor elétrico, passou a ser fei-ta às empresas transnacionais que, na maioria das vezes, negam as reivindi-cações, deslegitimam a organização e usam da força policial para desmobi-lização. Durante o governo Lula, esse quadro não se alterou, e muitos atingi-dos por barragens foram inclusive pre-sos, como aconteceu no Pará, em San-ta Catarina e em Rondônia, com a de-portação dos bolivianos que participa-vam dos protestos contra as usinas do rio Madeira.

Uma das críticas feita pelo MAB é com relação à atuação do MME no tratamen-to das questões sociais, e dos órgãos am-bientais, sobre os licenciamentos. Em todas as situações, o Ministério procu-rou combater as conquistas dos atingi-dos, tal como aconteceu com o Relatório da Comissão Especial sobre as violações dos direitos humanos em barragens. A mesma coisa pode ser vista nos órgãos ambientais, com um fracionamento que permitiu licenciamentos irregulares e com a aplicação de condicionantes que fi cam só no papel; como é o caso de Belo Monte, cujas condicionantes não estão sendo aplicadas e as licenças estão pres-tes a serem emitidas.

O relacionamento irregular com os atingidos por barragens nos oito anos de governo não propiciou avanços sig-nifi cativos, de mudanças estruturais na condição de vida dos mesmos. Segundo a avaliação do MAB, as políticas foram focalizadas, atendendo pontualmente as reivindicações. “Na nossa avaliação, a condução das políticas de Estado pa-ra os atingidos foi inexpressiva, pois não alterou as condições de vida para me-lhor, apenas tem concedido alguns pro-gramas, extremamente burocratizados na sua execução. A política de reassen-tamentos não avançou em praticamente nada e temos que brigar por mais cestas básicas por famílias ao ano, isso é uma

vergonha para quem sempre sobreviveu do plantio e da colheita. Enquanto isso, o BNDES fi nancia a construção de bar-ragens por todo o país, como aconteceu com a usina de Jirau [no rio Madeira], cujo fi nanciamento de R$ 7,2 bilhões foi a maior linha de fi nanciamento dada a uma empresa”, critica Cervinski.

AvançosMas nem tudo foram pedras nestes oi-

to anos. Pela primeira vez, o MAB foi re-cebido por um presidente da República. Desde que, em 2009, Lula manifestou a vontade de pagar a dívida histórica do Estado com os atingidos por barragens, ele já se reuniu duas vezes com o mo-vimento, em fevereiro e em outubro de 2010. No último encontro, Lula assinou o decreto que estabelece critérios de ca-dastro socioeconômico às pessoas atingi-das pelas barragens em todo o país, um instrumento de identifi cação e qualifi ca-ção das pessoas atingidas nas áreas das barragens. O decreto é um passo muito grande para que as famílias que são atin-gidas por barragens sejam identifi cadas, já que, até agora, não existia marco legal para isso e, segundo o MAB, é um dos motivos para que 70% das famílias não sejam reconhecidas.

Esse decreto é resultado da luta his-tórica dos atingidos e é parte das reco-mendações do relatório aprovado pe-lo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Cddph), no fi nal de novembro. Elaborado durante quatro anos pela comissão especial instituída pelo Cddph, o relatório concluiu “que o padrão vigente de implantação de bar-ragens tem propiciado, de maneira re-corrente, graves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, fami-liar e individual”.

A Comissão identifi cou, nos sete casos analisados, um conjunto de 16 direitos humanos sistematicamente violados, dentre os quais, merecem destaque o di-reito à informação e à participação; di-reito ao trabalho e a um padrão digno de vida; direito à moradia adequada; direi-to à melhoria contínua das condições de vida e direito à plena reparação das per-das. Entre os principais fatores, aponta-dos pelo relatório, que causam as viola-ções de direitos humanos na implanta-ção de barragens, estão a precariedade e insufi ciência dos estudos ambientais realizados pelos governos federal e es-taduais, e a defi nição restritiva e limita-da do conceito de atingido adotados pe-las empresas. A comissão recomendou a adoção de mais de 100 medidas para ga-rantir e preservar os direitos humanos dos atingidos por barragens e evitar no-vas violações.

Estado retoma setor energético,mas modelo continua o mesmoLULA OITO ANOS Depois da era das privatizações, governo assume planejamento do setor elétrico; porém produção tem como foco as grandes indústrias eletrointensivas

“O setor elétrico brasileiro é uma galinha dos ovos de ouro, não há empresa que não queira vir explorar a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica no Brasil”

O relacionamento irregular com os atingidos por barragens nos oito anos de governo não propiciou avanços signifi cativos, de mudanças estruturais na condição de vida dos mesmos

MAB

Homem rema em rua de cidade atingida pela barragem de Acauã na Paraíba

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brasil 7de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011

Anita Leocadia Prestes

LUIZ CARLOS PRESTES nasceu em 3 de janeiro de 1898, em Porto Alegre (RS), e faleceu em 7 de março de 1990, no Rio de Janeiro, aos 92 anos de idade. Desde mui-to jovem, Prestes revelou indignação com as injustiças sociais e a miséria de nos-so povo, mostrando-se preocupado com a busca de soluções efetivas para a situa-ção deplorável em que se encontrava a po-pulação brasileira, principalmente os tra-balhadores do campo, com os quais tive-ra contato durante a Marcha da Coluna (1924-27), que fi caria conhecida como a Coluna Prestes.

Muito antes de tornar-se comunista, Prestes já era um revolucionário. Sua adesão aos ideais comunistas e ao mo-vimento comunista apenas veio compro-var e confi rmar sua vocação revolucioná-ria, seu compromisso defi nitivo com a lu-ta pela emancipação econômica, social e política do povo brasileiro. Como revo-lucionário, Prestes foi um patriota – um homem que dedicou sua vida à luta por um Brasil melhor, por um Brasil onde não mais existissem a fome, a miséria, o analfabetismo, as doenças, a mortalida-de infantil e as demais chagas que conti-nuam a infelicitar nosso país.

Comunista convictoA descoberta da teoria marxista e a

adesão ao comunismo representaram, para Prestes, o encontro com uma pers-pectiva, que lhe pareceu factível, de re-alização dos anseios revolucionários por ele até então alimentados, principalmen-te durante a Marcha da Coluna. A luta à qual resolvera dedicar sua vida encon-trava, dessa forma, um embasamento teórico e um instrumento para ser leva-da adiante – o Partido Comunista. O Ca-valeiro da Esperança, uma vez convenci-do da justeza dos novos ideais que abra-çara, tornava-se também um comunis-

Luiz Carlos Prestes, legado revolucionário!

ta convicto e disposto a enfrentar toda sorte de sacrifícios na luta pelos objeti-vos traçados.

No processo de aproximação ao PCB, Prestes rompeu publicamente com seus antigos companheiros – os jovens milita-res rebeldes conhecidos como os “tenen-tes” –, posicionando-se abertamente a fa-vor do programa da “revolução agrária e antiimperialista” defendido pelos comu-nistas brasileiros. Seu Manifesto de Maio de 1930 consagra o início de uma nova fa-se na vida do Cavaleiro da Esperança. A partir daquele momento, Prestes deixava defi nitivamente para trás os antigos com-promissos com o liberalismo dos “tenen-tes” e enveredava pela via da luta pelos ideais comunistas que passariam a norte-ar toda sua vida.

Pela primeira vez na história do Bra-sil, uma liderança de grande projeção na-cional, a personalidade de maior desta-que no movimento tenentista – na qual apostavam suas cartas as elites oligárqui-cas oposicionistas, na expectativa de que o Cavaleiro da Esperança pusesse seu ca-bedal político a serviço dos seus objetivos, aceitando participar do poder para me-lhor servi-las – recusa tal poder, rompen-do com os políticos das classes dominan-tes para juntar-se aos explorados e opri-midos, para colocar-se do lado oposto da grande trincheira aberta pelo confl ito en-tre as classes dominantes e as dominadas, entre exploradores e explorados. Prestes tomava o partido dos oprimidos, abando-nando as hostes das elites comprometidas com os donos do poder, não vacilando ja-mais diante dos grandes sacrifícios que tal opção lhe acarretaria.

Caminho da lutaTratava-se de um fato inédito, jamais

visto no Brasil. Luiz Carlos Prestes, ca-pitão do Exército, que se tornara gene-ral da Coluna Invicta, que fora reconhe-cido como liderança máxima das forças oposicionistas ao esquema de poder vi-

gente no Brasil até 1930, talhado, portan-to, para transformar-se no líder da “revo-lução” das elites oligárquicas, numa lide-rança política confi ável dessas elites, usa-va seu prestígio para indicar ao povo bra-sileiro um outro caminho – o caminho da luta pela reforma agrária radical e pela emancipação nacional do domínio impe-rialista, o caminho da revolução social e da luta pelo socialismo.

Como foi sempre coerente consigo mes-mo e com os ideais revolucionários a que dedicou sua vida, sem jamais se dobrar diante de interesses menores ou de cará-ter pessoal, Prestes despertou o ódio dos donos do poder, que se esforçariam por criar uma História Ofi cial deturpadora tanto de sua trajetória política quanto da história brasileira contemporânea.

Exemplo para os jovensMesmo após seu falecimento, Prestes

continua a incomodar os donos do po-der, o que se verifi ca pelo fato de sua vi-da e suas atitudes não deixarem de se-rem atacadas e/ou deturpadas, com in-sistência aparentemente surpreendente, uma vez que se trata de uma liderança do passado, que não mais está disputan-do qualquer espaço político. Num país em que praticamente inexiste uma me-mória histórica, em que os donos do po-der sempre tiveram força sufi ciente para

impedir que essa memória histórica fos-se cultivada, presenciamos um esforçosutil, mas constante, desenvolvido atra-vés de modernos e possantes meios decomunicação, de difi cultar às novas ge-rações o conhecimento da vida e da lu-ta de homens como Luiz Carlos Prestes, cujo passado pode servir de exemplo pa-ra os jovens de hoje.

Luiz Carlos Prestes dedicou 70 anos desua vida à luta por um futuro de justiçasocial e liberdade para o povo brasileiro.Luiz Carlos Prestes foi um revolucioná-rio, um comunista e um internacionalis-ta, que jamais vacilou na luta pelos ide-ais socialistas e pela vitória da revoluçãosocialista no Brasil e em nosso continen-te latino-americano. Prestes foi um de-fensor consequente dos países socialis-tas, tendo à frente a URSS. Esteve sem-pre solidário com as Revoluções Cubanae Nicaraguense. O legado revolucionáriode Luiz Carlos Prestes deve ser preserva-do e desenvolvido pelas novas geraçõesde brasileiros e latino-americanos. Esteé o objetivo principal do Instituto LuizCarlos Prestes (www.ilcp.org.br) recen-temente criado no Rio de Janeiro.

Anita Leocádia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em

História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.

MEMÓRIA Em seu 113º aniversário de nascimento, preservemos seu legado revolucionário!

Reprodução

O líder comunista Luiz Carlos Prestes

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de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 20118 brasil

O QUE É DE FATO a natureza hu-mana? Afi nal, ela existe ou não exis-te? Em que medida ela pode ser mo-difi cada?

Se fosse feita uma pesquisa capaz de observar, empiricamente, mi-lhões de pessoas, os pesquisadores achariam alguma coisa em comum presente em todos os indivíduos, os que ainda existem e os que já exis-tiram?

Assim como os homens têm dois olhos, dois braços, duas pernas, nem por isso podemos dizer que, se uma infeliz intervenção cirúrgica am-putar uma de suas mãos, o indiví-duo poderá até ter se transformado no Capitão Gancho, inimigo mortal de Peter Pan, mas não terá perdido aquilo que se convencionou chamar de “natureza humana”.

Por outro lado, é evidente que se um ser tiver somente uma perna, nem por isso terá deixado de perten-cer à natureza humana.

No plano psicológico, o problema se complica ainda mais. Quando a alma interfere no corpo, esse poder de interferência é que a torna com-pletamente real.

Ao serem descobertos pelos nave-gadores europeus, estes se pergun-tavam qual poderia ter sido a ori-gem dos povos nativos; e acredita-vam que eles vinham da Índia (por isso foram chamados índios). Os eu-ropeus sabiam que deviam dispor de uma escala de valores para se orien-tar. Mas o impacto da conquista cau-sou estragos consideráveis tanto no espírito dos índios como no espírito dos colonizadores.

Os valores não são, em geral, cria-dos pelos indivíduos: são inventados pela comunidade. Mas a conquista e a colonização foram feitas por gente que destruía as comunidades indíge-nas. Ao longo de várias gerações, os espanhóis e os portugueses explora-ram e oprimiram os índios e os ne-gros. Assumiam, com desenvoltura, o racismo que lhes convinha.

Pouco a pouco, foram se sofi sti-cando, fi zeram um aprendizado de hipocrisia. Aprenderam com seus correligionários ingleses e france-ses a fazer concessões à retórica libe-ral. Condenaram (da boca para fora) procedimentos sórdidos, aos quais recorriam na prática.

Nossos antepassados insistiram há mais de um século na afi rmação de que a sociedade brasileira não precisava fazer mudanças, porque já as havia feito. Não carecia de re-formas, porque já era uma repúbli-ca que estava sendo reformada pe-lo progresso.

República, como o nome indica, era a res publica, a coisa pública. Nossos teóricos inventaram coisa melhor: quando a “coisa pública” dava lucros imponentes, era tra-tada como “coisa privada” e seus proventos eram desviados para o bolso dos muito ricos, sob a alega-ção de que, já tendo roubado mui-to, eles roubariam menos do que os outros.

O maior orgulho dos donos do país é a sinceridade com que eles ar-gumentam: “Somos muito francos. Sabemos que o mito de um regime democrático-igualitário tem feito muito mal à humanidade”. E acres-centam: “Os homens são por natu-reza desiguais. Então a distribuição da riqueza só pode, sensatamen-te, respeitar e consagrar a desigual-dade”. O fi lósofo Antonio Gramsci,

italiano, dizia que, para entender o pensamento político de uma criatu-ra, o que se pode fazer de mais ra-zoável é perguntar a ela se acredita que em algum tempo, no futuro, va-mos edifi car uma sociedade na qual não existirão nem mandantes, nem mandados. Se, porém, a criatura for pessimista e declarar que “vai ser sempre assim”, e insistir em acei-tar resignadamente o privilégio dos que exercem o poder, então ela es-tará contribuindo para que o privi-légio se perpetue.

Hoje, o privilégio não só perdu-ra como pisa com fi rmeza sobre um terreno sólido e amplo, que nós, de-mocratas, socialistas, infelizmen-te conhecemos mal. Lembro que Marx, no século 19, escreveu: “Os fi lósofos se limitaram a interpretar o mundo; trata-se, porém, de trans-formá-lo”.

Nas atuais condições, podemos – provocadoramente – dizer que os re-volucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, co-mo pretendiam.

Mas o jogo ainda não terminou pa-ra o time da Utopia Futebol Clube.

A natureza humana e os privilégios Leandro Konder

Márcio Zontade Tucuruí (PA)

NO DIA 30 de novembro, o presiden-te Lula esteve no município de Tucuruí (PA), para inaugurar as duas eclusas da usina hidrelétrica de Tucuruí no rio To-cantins. Na cerimônia festiva, membros da Eletronorte e da Eletrobrás revelaram as cifras do investimento, R$ 1,66 bilhão. Também apontaram os benefícios das eclusas feitas para corrigir um desnível causado pela construção da própria usi-na. Com a recuperação da navegabilida-de entre os rios Tocantins e Araguaia, a via fl uvial ligará, agora, o porto de Belém à região do Alto Araguaia em Mato Gros-so, numa extensão de aproximadamen-te dois mil quilômetros. Será possível o transporte, em larga escala, de recursos minerais e agropecuários entre as regiões Centro-oeste e Norte do Brasil. Segundo a Eletronorte e a Eletrobrás, as eclusas de Tucuruí têm capacidade para dar passa-gem a 40 milhões de toneladas de cargas por ano, a maior entre todas as eclusas existentes no mundo. A possibilidade da chegada das embarcações ao porto da Vi-la do Conde, na capital paraense, foi co-memorada entre os presentes na inaugu-ração, por ser uma localização estratégi-ca de exportação para os mercados esta-dunidense, europeu e também para o ex-tremo oriente.

A construção agradou ao representante da Federação Nacional das Empresas de Navegação Marítima, Fluvial, Lacustre e de Tráfego Portuário (Fenavega), o em-presário Eduardo Carvalho, que esteve presente na cerimônia, entre tantos ou-tros interessados no empreendimento. “A demanda de transporte atual, de cinco milhões de toneladas, deve subir para 50 milhões nos próximos cinco anos”, cele-brou. Em seu discurso, o presidente Lu-la tentou conter a euforia empresarial e democratizar os benefícios da obra: “es-sa eclusa só terá sentido se ela signifi car a melhoria da qualidade de vida de mulhe-res e homens que moram neste país, nes-te estado e nesta região”.

Outro ladoMas, a julgar pela ação que o Minis-

tério Público Federal de Marabá iniciou contra a Eletronorte, em novembro, as palavras do presidente e a eclusa per-dem o sentido democrático. Isso porque

o MPF alega que a empresa não tomou nenhuma providência para compen-sar e mitigar os danos causados ao po-vo indígena assuriní pela construção da usina encerrada em 1984. Segundo nota do MPF, divulgada dois dias após o lan-çamento das eclusas, “a terra indígena Trocará, dos assuriní, vem sofrendo des-de então [a construção da hidrelétrica de Tucuruí] inúmeras invasões e outros im-pactos diretamente relacionados com a usina e com o aumento populacional de-corrente do empreendimento”.

Um estudo realizado pela própria Ele-tronorte, em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai), revela quais são os principais impactos sobre a etnia. “A saúde, a segurança alimentar e a in-tegridade do povo assuriní entraram em colapso com a redução de peixes e caça, a multiplicação de doenças sexualmente transmissíveis, casos de alcoolismo, ta-bagismo, a substituição da língua nativa pelo português, constantes investidas de invasores e degradação ambiental de di-versas ordens”, elenca.

Para o procurador da República, Tiago Modesto Rabelo, que subscreve a ação, “não se tem nenhuma dúvida de que a construção da usina hidrelétrica de Tu-curuí foi o empreendimento de maior

impacto na vida dos assuriní após o con-tato ocorrido em 1950”.

As desculpas informadas pela empresa para a justiça, sobre o não cumprimento das ações mitigadoras e por não partici-par de novas reuniões com membros do MPF e os assuriní, foram, segundo Rabe-lo, “de ordem burocráticas”. “De quantos anos mais e quantas eleições por vir pre-cisará a Eletronorte para se valer de pre-textos e impor, continuamente, os ma-les causados por suas ações à comuni-dade indígena assuriní?”, indaga o pro-curador.

AnáliseDiante do imbróglio gerado com o

MPF ante a contenta do governo e dos setores empresariais interessados na usina hidrelétrica de Tucuruí, sobretu-do das eclusas inauguradas recentemen-te, o professor de ciências sociais da Uni-versidade Federal do Pará (UFPA), Clo-ves Barbosa, analisa vários aspectos. “De cara se vê que é um empreendimento go-vernamental que favorece um setor da burguesia nacional, além de ser um estí-mulo para o agronegócio, tendo uma na-tureza concentradora de terra”, dispara.

Segundo o professor, a inauguração das eclusas partiu do empenho de parte do empresariado brasileiro e de algumas transnacionais para elevar o escoamento do minério, dos grãos e da carne.“Já faz tempo que esses setores têm um grande interesse em aumentar suas exportações, faz tempo que eles pressionam o gover-no para isso”.

Para Barbosa, outra situação fi ca evi-denciada, nessa forma de exportação, de matéria prima, para os países centrais, possibilitada por essa nova via fl uvial: “O

capitalismo precisa de periferia, de pro-duzir desigualdades sociais e espaciais, pois os Estados Unidos e a Europa são as regiões onde moram os donos do ca-pital e essa periferia é colocada a serviço dessa região central, isso é o refi namen-to do colonialismo, o que chamamos ho-je de imperialismo”.

Por isso, para ele, a ação judicial do Ministério Público Federal contra a Ele-tronorte e suas ações, que prejudicam o povo assuriní, é de extrema impor-tância, pois “a burguesia que coman-da pouco se importa com outros seto-res sociais, podem ser índios, quilombo-las, camponeses, esses viram os desloca-dos do progresso. O progresso capitalis-ta sempre proporcionou o deslocamentode pessoas e na Amazônia não está sen-do diferente”.

Progresso econômico emTucuruí ignora indígenasENERGIA Comemoradas pelos setores empresariais e governamentais, as eclusas não sanarão os problemas do povo assuriní gerados pela usina

<PARA ENTENDER>Eclusa – Trata-se de um sistema de elevação de comboios hidroviários que elimina os desníveis e possibilita a navegação entre rios com alturas de-siguais. As de Tucuruí têm 210 metros de largura e 33 metros de comprimento cada e são ligadas por um canal intermediário de 5,5 km.

“A demanda de transporte atual, de cinco milhões de toneladas, deve subir para 50 milhões nos próximos cinco anos”

“A saúde, a segurança alimentar e a integridade do povo assuriní entraram em colapso”

“O progresso capitalista sempre proporcionou o deslocamento de pessoas e na Amazônia não está sendo diferente”

Nas atuais condições, podemos, provocadoramente, dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam.Mas o jogo ainda não terminou para o time da Utopia Futebol Clube

As duas eclusas da usina hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, tiveram investimento de R$ 1,66 bilhão

Arquivo Eletrobras Eletronorte

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de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011 9américa latina

Elena Apilánez eVinicius Mansur de La Paz (Bolívia)

PASSADOS MAIS de dez anos da ascen-são de presidentes de esquerda na Amé-rica do Sul, o economista Pablo Stefa-noni, diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, é cético com re-lação às transformações trazidas por eles ao continente e relativiza a existência de governos de esquerda “radicais” e “mo-derados”.

Traçando um panorama da conjuntu-ra política do continente, o ex-assessor de comunicação do governo Evo Morales prevê sérias limitações para o crescimen-to da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e muitas possibilidades pa-ra a Unasul (União das Nações Sul-Ame-ricanas). Na entrevista a seguir, Stefa-noni analisa, ainda, a política na Argen-tina pós-Kirchner, destaca o surgimen-to de uma direita reciclada na Colôm-bia e no Chile e debate o papel do Bra-sil na região.

Brasil de Fato – Como você avalia a categorização dos governos sul-americanos entre esquerda radical, com Bolívia, Venezuela e Equador, e esquerda moderada, liderados por Brasil e Argentina?Pablo Stefanoni – Esse esquema tem aspectos reais, mas há que relativizá-los. Primeiro, a radicalidade assumida, mui-tas vezes, não se dá porque os movimen-tos sejam particularmente mais radicais, e sim porque a trajetória institucional e política foi diferente. Os três países con-siderados de esquerda radical tiveram a implosão do sistema partidário com for-te mobilização popular, e era normal que houvesse uma grande demanda por re-fundação do país, do sistema político. No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização. Além disso, há conti-nuidade institucional e o sistema de par-tidos continua o mesmo. Em segundo lu-gar, essa esquerda radical necessita da outra esquerda. Nos momentos-chave, Lula apoiou a Venezuela, como na greve petroleira, na crise da Bolívia houve um apoio importante da Unasul etc. Por is-so se valorizava a vitória de Dilma Rous-seff [nos países da América Latina gover-nados pela esquerda], mais do que qual-quer debate interno, com a ideia de man-ter a correlação de forças. Em terceiro lugar, esse esquema supõe que uma es-querda é socialista e outra não, mas ven-do as políticas públicas concretas, ne-nhuma é socialista. Nem Venezuela nem Bolívia estão avançando rumo a um pro-jeto pós-capitalista. Claro, há diferenças no trato com os EUA, no papel que joga o Estado, mas, vendo o que de fato mudou, o socialismo ainda é bastante retórico. E há muitas coincidências, por exemplo: a legitimidade do Evo não é tão distinta da do Lula. Uma mescla de autoidentifi ca-ção popular com um líder que surgiu de baixo e políticas sociais. Inclusive, o Bol-sa Família é mais radical, por sua abran-gência, do que a política de bolsas da Bo-lívia, que é mais fragmentada.

O senhor não acha que a Venezuela, por exemplo, se diferencia dos outros com suas nacionalizações e políticas públicas que caminham para a transição ao socialismo?

Há tentativas, testes, mas com muitos problemas de efi cácia. Promove-se co-operativas, conselhos comunais. Clara-mente, há um nível de participação po-pular maior do que havia antes de Chá-vez. Entretanto os balanços sobre a ge-ração de uma participação de baixo são complexos. Os conselhos comunais se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta de Estado nos bair-ros. Começaram a falar menos de políti-ca nacional e aceitar os antichavistas nos conselhos, sempre e quando houver um pacto de não falar muito de política. Há também os conselhos em bairros de clas-se média alta de Caracas, que são anti-chavistas, mas que usaram essa fórmu-la. Quanto à economia, os números mos-

tram que a privada não diminui em re-lação à estatal. E ainda há difi culdades enormes, para além da vontade do go-verno, de se pensar uma agenda pós-pe-troleira. Nisso, coincidem todos. O ren-tismo [referência à dependência da eco-nomia venezuelana da renda do petró-leo que exporta] não distribui exatamen-te a riqueza, porque capta uma renda do mercado internacional e gera uma cultu-ra não do trabalho, mas de como agarra-rem-se essas fatias. É bom que se demo-cratize [a renda], mas, depois, o proble-ma sério é pensar um modelo produti-vo. O problema venezuelano, hoje, talvez não seja tanto como transitar ao socia-lismo, mas a essa agenda, ainda que se-ja a médio prazo, porque não é fácil. Não é que o Chávez não tem vontade: inclusi-ve, ele levou o Instituto de Tecnologia In-dustrial da Argentina para o país.

O senhor vê uma disputa pela liderança do continente?

Houve uma luta entre Brasil e Argen-tina, mas a Argentina perdeu. A Vene-zuela não tem condições, porque o Bra-sil já não joga em nível sul-americano, mas mundial, inclusive associado ao Bric [Brasil, Rússia, Índia e China]. Ninguém está pensando em competir com o Bra-sil, que aposta num rumo claro e comple-xo. O Brasil mescla um “imperialismo” com o papel de motor imprescindível para a integração regional. O Lula viaja com 200 empresários e, quando conce-de algum crédito, este país tem que con-tratar uma empresa brasileira. O Brasil é como um monstro ao lado de um monte de economias pequenas, que não têm vi-são muito clara sobre o que fazer com o Brasil. Há uma atitude de denunciar, co-mo fi zeram na Bolívia com a Petrobras, com a Odebrecht no Equador, ou a rela-ção complicada com Itaipu, no Paraguai, mas, depois, chega o Marco Aurélio Gar-cia [assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais na gestão Lula] e tudo se ajeita.

Qual futuro o senhor vê para a Unasul e a Alba?

A Alba não avançou, porque uma inte-gração ideológica é mais complexa, de-pende de que os governos continuem. A Unasul não depende tanto dos gover-nos coincidirem em tudo. A Bolívia não tem muitas relações com a Nicarágua ou Honduras. Ou seja, não está muito cla-ro qual é o papel da Alba além do alinha-mento político. É interessante que esses países possam jogar um certo papel jun-tos, mas a Alba não deve ser uma alter-nativa para outras vias de integração. A Unasul avançou bem mais rápido e exis-te essa coisa de que onde entra o Bra-sil se avança em nível diplomático, não? Quando o Brasil disse não à Alca, acabou a Alca.

Qual o impacto da morte de Néstor Kirchner para a política argentina?

A oposição fazia mais oposição ao Kir-chner, que era uma espécie de copresi-

dente, do que à própria Cristina. Kirch-ner era o grande disciplinador do pero-nismo e isso era muito necessário às ve-zes. Cristina era a presidente da nação, e ele do peronismo. Então, temos que ver como ela vai operar isso. Pelas caracte-rísticas meio necrófi las, a morte dele for-taleceu Cristina, pois recuperaram toda a fi gura de Kirchner, com a tentativa de torná-lo um mito, alguém que morreu em combate contra um monte de ini-migos, corporações... o velório foi bem político. Ele recuperou todo um discur-so e mística dos anos 1970, aproveitan-do que foi militante da juventude pero-nista, reativou uma parte de sua biogra-fi a muito distante. Porque, na verdade, Kirchner, nos anos 1990, apoiou basi-camente o programa neoliberal. Na di-tadura, ele era advogado que comprava casas de arremate, aproveitando uma lei de indexação feita pelo governo militar, e é nessa época que aconteceu sua acu-mulação. Ele tinha um patrimônio de-clarado de 14 milhões de dólares. Mor-reu à frente nas pesquisas para as pró-ximas eleições para presidente, com boa possibilidade de ganhar no primei-ro turno. Kirchner não pensava a polí-tica como utopias, pensava o poder em seu sentido duro, construir dependên-cias, interesses, redes. Então, há que se ver se Cristina consegue manter es-se efeito gerado pela morte do marido. Tampouco há bons candidatos da opo-sição, além de haver uma parte dos vo-tantes que se tornam “antiantikirchne-ristas”, ou seja, um rechaço à oposição sem ser kirchneristas. É o que aconte-ce com tantos governos populares, cujas oposições são inapresentáveis. E isso dá vida a Cristina.

E quanto aos países que estão à direita?

[Os presidentes] Juan Manuel San-tos, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile, surpreenderam um pouco, porque se mantiveram olhando para a América Latina mais do que se esperava. Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos con-servadora em uma série de temas, in-clusive morais. Uma direita parecida à nova direita europeia de [Nicolas] Sa-rkozi [presidente da França]. Não que-ro dizer que os conservadores não estão com Piñera, mas ele é liberal, não é pi-nochetista. Quando seu embaixador, na Argentina, defendeu Pinochet, ele o re-tirou 24 horas depois. Santos surpreen-deu, porque se esperava que fosse uma mera continuidade de Álvaro Uribe [presidente que o antecedeu], mas ele mostrou mais fl exibilidade, com a Vene-zuela, por exemplo. Há razões econômi-cas também, porque a Venezuela come-

çou a importar alimentos da Argentina e do Brasil. Mas ele ainda prometeu re-forma agrária, devolvendo as terras que os paramilitares tomaram de campone-ses. Não sei se o fará e não é que ele seja menos de direita, mas se adaptou mais acertas coisas.

E com relação às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia?

Existe uma possibilidade de que a Una-sul contribua. De fato, as Farc pediram a Dilma que participe como mediadora, apelando um pouco para o seu passa-do guerrilheiro. O Brasil pode jogar um papel importante nisso, algo que era im-pensável há dez anos. Mas as Farc são o grande obstáculo para que a esquerda possa disputar algo na Colômbia.

E o Peru?Aí não se sabe, porque [o presidente]

Alan García está de saída e todos creem que o Apra [Alianza Popular Revolucio-naria Americana, seu partido] também. Mas o Peru é um pouco surpreenden-te, porque há alguns dias a relação com a Bolívia era malíssima e, agora, o Peru está deportando os prófugos da Justiça boliviana. Aceitaram também fazer um acordo sobre o mar. E a esquerda ganhou as eleições da capital Lima, apesar de pa-recer um pouco desarticulada para desa-fi os mais sólidos. Para as próximas elei-ções, há cinco candidatos que estão com aproximadamente 20% dos votos cada um e dizem que o Apra não ganharia um segundo turno. E olha que a economia do Peru está crescendo 10%.

“O Brasil é ao mesmo tempo imperialismoe motor imprescindível para a integração” ENTREVISTA O economista e diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, Pablo Stefanoni, faz um balanço da política sul-americana

QUEM ÉPablo Stefanoni é economista e jornalista argentino radicado em La Paz desde 2003. Foi assessor de comunicação do governo Evo Morales. Atualmente, é diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique e faz doutorado sobre a história das ideias do indigenismo.

“No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização”

“Os conselhos comunais [na Venezuela] se ocupam de questões bastante locais e

vinculadas à falta do Estado nos bairros”

“Há uma atitude de denunciar, como fi zeram na Bolívia com a Petrobras, (...) mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia e tudo se ajeita”

“[Santos e Piñera] Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma série de temas, inclusive morais”

Chefes de Estado e de governo participantes da 4ª Cúpula da Unasul em Georgetown, Guiana

Ricardo Stuckert/PR

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américa latinade 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 201110

Eduardo Sales de Limade Quito (Equador)

O ESPECTRO de radiodifusão pertence a todos e o setor privado não é proprie-tário desse espaço comum; utiliza-o ape-nas por meio de concessão pública. Sem-pre foi assim.

A questão é que, na América Latina, a população foi ensinada que as gran-des tevês e rádios foram, desde seu iní-cio, grandes empresas com vocação pa-ra lucro sem obrigações legais junto ao cidadão. Pelo mundo afora, entretanto, os meios de comunicação precisam obe-decer a leis rígidas, que impedem o mo-nopólio comercial e ideológico desde há muitas décadas.

A Ley de Medios da Argentina, apro-vada em outubro de 2009, vem impul-sionando ainda mais o debate. Na Vene-zuela, há um processo para a regulamen-tação da mídia no país, inclusive a inter-net e, no Uruguai, estão ocorrendo dis-cussões para regulamentar o setor em 2011. O Brasil tem ampliado a discussão por meio de Conferência Nacional de Co-municação (Confecom). O ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Mar-tins, preparou um anteprojeto que visa a regular o setor e pretende entregá-lo ao Legislativo.

Para falar sobre essa nova onda latino-americana, Aram Aharonian, fundador e principal idealizador conceitual da TV Telesur, destaca ao Brasil de Fato a ne-cessidade do enfrentamento e da união entre os “de baixo”, pois é daí que sur-girá, na visão dele, o balizamento para uma verdadeira democracia comunica-cional; nunca a partir de cima. Ele par-ticipou do encontro entre jornalistas lati-no-americanos “Construindo uma agen-da democrática em comunicação”, reali-zado na sede da Flacso (Faculdade Lati-no-Americana de Ciências Sociais), em Quito, Equador, entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2010.

Brasil de Fato – Você acredita que se aproxima um novo período de grandes transformações relacionadas ao processo de democratização dos meios de comunicações na América Latina?Aram Aharonian – Estão dadas to-das as condições. Nosso período de resis-tência social vai terminando e ainda não estamos preparados psicologicamente; não assumimos que estamos numa eta-pa de construção em que é preciso mu-dar os paradigmas. Temos que acompa-nhar essa ação de construção de um no-vo paradigma no setor de comunicações com uma teoria sobre essa construção. Temos que criar uma base conceitual so-bre a conjuntura atual das comunicações na América Latina. Estamos buscando-a. E creio que, na América, Latina se vive al-go que o resto do mundo não vive. É uma etapa de conscientização da cidadania e do retorno do pensamento crítico para criar soluções próprias a problemas pró-prios e comuns, e cada país sozinho não pode fazer nada.

Um fato muito singular que se dá nos últimos oito anos é que o Brasil deixou de estar separado da América Latina. O Bra-sil se sente parte. É verdade, no entan-to, que com alguns vestígios de “irmão maior” ou de subimperialismo, mas com uma vocação de integração latino-ameri-cana, de necessidade de conhecer quem são seus vizinhos, de sentir-se parte do continente.

Qual é o efeito prático dessa regulação do setor de comunicações na América Latina?

Democratização é a palavra principal, mas é a palavra que se amplia em dire-ção a muitos outros temas. Creio que o principal é reivindicar o papel do Estado como o território de todas as atividades que dizem respeito à nação e, em segun-do lugar, é preciso limitar as ações dos monopólios, impedir suas ações, e de-

mocratizar a palavra; garantir que a pa-lavra e a imagem se volte e chegue a to-dos cidadãos. Uma Ley de Medios é o iní-cio de um caminho, não é o fi nal. É o fi -nal, sim, de uma resistência, e o início de uma construção de uma nova forma de comunicação. Uma comunicação demo-crática resultará numa democracia par-ticipativa.

Aprendemos no Brasil que a radiodifusão é antes de tudo um negócio. Sentimos desde sempre a força do poder privado e da desregulação nessa área. Em entrevista ao Brasil de Fato, dois dos principais comunicólogos brasileiros, Laurindo Leal Filho e Venício Artur Lima, contaram que em alguns países da Europa o processo de regulação do setor, sobretudo a partir dos anos 1930, levou mais em conta o caráter público dos meios de comunicação.

Primeiro, deve-se ter a dimensão de que os meios de comunicação são um serviço público. A globalização neolibe-ral, que está em crise, obviamente utiliza os meios de comunicação para fazer ne-gócios. Entendo que o conceito de renta-bilidade dentro desse âmbito de servi-ço social encontra certos problemas. Há problemas no Brasil, Argentina, México, em vários países em que há monopólios e oligopólios que controlam a palavra, criam um imaginário coletivo e condicio-nam as ações dos governos. Esses grupos não são eleitos por ninguém. São grupos econômicos, às vezes nacionais, às vezes internacionais, que temos que controlar. Cuidado. Não se trata somente de inte-resses comerciais. Há também interes-ses religiosos. E são também tão danosos quando tomam o monopólio da palavra para criar um imaginário coletivo que re-almente atentam contra os interesses da grande maioria.

Existe uma raiz histórica comum a todos os países da América Latina quando falamos em monopólio dos grandes meios de comunicação?

Nos países grandes, há grandes mono-pólios, oligopólios; Clarín, na Argentina, a Televisa, no México, a Globo no Brasil. Mas a Globo tem a contraparte evangéli-ca, que não é tão poderosa, mas também tem o seu poder. Temos ainda vários gru-pos de investimentos espanhóis. Na Co-lômbia e na Bolívia, há o grupo Planeta, o grupo Prisa; ou seja, são grupos espa-nhóis que também jogam para atender aos interesses de suas empresas. E são empresas que os governos neoliberais privatizaram para prestar serviço e que defendem esse Estado mínimo para que garantam seu lucro.

Você acredita que, no Brasil, haverá um processo de enfrentamento da sociedade organizada e da parte progressista do governo Dilma à grande mídia, como ocorreu e está ocorrendo na Argentina?

Não há outra forma. Jamais o grande capital concedeu algo. A única forma é a decisão política do governo de apoiar es-se abajo que se move, apoiar a cidadania do povo e os movimentos sociais, que es-tão declarando um novo elo informativo entre eles e uma nova forma de democra-tizar a informação.

Creio que o que falta é a decisão políti-ca dos governos de garantir as coisas, pe-sando suas forças. Creio que é uma bata-lha que se mostra e que o Brasil está pre-parado por baixo, com a enorme quanti-dade de assembleias realizadas por todos os cantos do país, apoiando a democra-tização da comunicação e com algumas declarações que são muito alentadoras de Franklin Martins, inclusive de Lula. Creio que é um momento de democracia. A democracia não pode vir de cima, de cima não se constrói nada. A única coi-sa que se constrói é um poço. Nós temos que construí-la a partir de baixo para que esse poço acabe, sendo uma decisão polí-tica de quem está prejudicado.

Paralelamente a todo esse movimento, a grande mídia latino-americana acusa os governos de esquerda e centro-esquerda de atacarem a liberdade de expressão.

Essa frase se repete por todos os la-dos. Estão querendo confundir a liber-dade de empresa com a liberdade de im-prensa. Em nossos países, há muitos ca-sos de libertinagem de imprensa, em que os grandes meios fazem campanhas con-tra os governos e contra a estabilidade do país. Que sigam dizendo o que querem, que o povo sabe do que se trata.

Criticam também o excesso de ideologia.

Se temos uma problema de ideologia, então não temos problema nenhum. Ou tudo será problema de ideologia. Esta-mos debatendo as ideias numa batalha permanente. O problema é ocultar es-sas ideias numa redoma de neutralida-de e imparcialidade que não existe. Isso é falso. São falsos paradigmas que nos en-sinaram. Não existe imparcialidade nos meios de comunicação. É um proble-ma ideológico. Cada meio tem a sua li-nha editorial, marcada por seus interes-ses políticos, econômicos, comerciais, re-ligiosos, que sejam.

Devemos nos inspirar em modelos já existentes de regulação de meios de comunicação, como os que existem em alguns países da

Europa, como no Reino Unido, Espanha e Sérvia?

Temos que olhar para nós mesmos. Faz 500 anos que copiamos modelos. E esses modelos são estrangeiros, e talvez, sejam muito bons. Mas é algo que tem a ver com a gente. Por exemplo, a Ley de Medios na Argentina tomou elementos dos Estados Unidos no que diz respeito à questão dos monopólios. É muito simi-lar. Então, não se pode acusá-los de co-munistas.

Dentro dos limites capitalistas.Os limites da democracia burguesa

formal. Estamos num sistema capitalis-ta e nossos países estão formados, ainda, por governos burgueses. Não há gover-nos revolucionários. Assim que puder-mos avançar a outras etapas, avançare-mos na comunicação. Cada etapa tem o seu tempo. O grande problema é que du-rante 500 anos tínhamos uma cultura de colonização cultural.

Essa colonização cultural era a situação mais grave?

Era o mais grave. Seguíamos pensan-do como os estrangeiros. Agora, estamos mudando isso, olhando com nossos pró-prios olhos e mostrando o que somos. Essa mescla cultural, étnica, essa colo-quialidade... Essa discussão permanen-te de como temos que viver em nossos países é a construção de uma nova de-mocracia. Não se pode ter uma nova de-mocracia sem uma comunicação demo-crática. Há uma relação direta da demo-cratização da comunicação com a cons-trução da nova democracia. O futuro da nova democracia em nosso continen-te tem a ver, basicamente, com esse pa-pel de poder de uma comunicação mas-siva. Se não democratizarmos a comuni-cação, não teremos essa democracia real em nossos países.

“É preciso limitar as ações dos monopólios e democratizar a palavra”ENTREVISTA Segundo fundador da TV Telesur, nova etapa da democracia latino-americana não pode vir sem a democratização da comunicação

“Temos que acompanhar essa ação de construção de um novo paradigma no setor de comunicações com uma teoria sobre essa construção”

QUEM ÉO uruguaio-venezuelano Aram Aharonian é jornalista, professor de pós-graduação, fundador da Telesur diretor da revista Questão e do Observatório Latino-Americano de Comunicação e Democracia (Olac).

“Uma Ley de Medios é (…) o fi nal de uma resistência e o início de uma construção de uma nova forma de comunicação”

“Há problemas (...) em vários países em que há monopólios e oligopólios que controlam a palavra, criam um imaginário coletivo e condicionam as ações dos governos”

“O problema é ocultar essas ideias numa redoma de neutralidade e imparcialidade que não existe. Isso é falso”

Equipe de reportagem da TV Telesur entrevista o presidente equatoriano Rafael Correa

Presidencia de la República del Ecuador

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internacional 11de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011

Carmen Rengelde Jerusalém (Israel)

“ÉS BENIGNO, Senhor eterno. Deus nosso. Rei do Mundo que não me fez mulher”.

A cada manhã, numerosos judeus pra-ticantes agradecem à Deus em sua re-za de Adom Olam por haver-lhes salva-do da escravidão, evitado que caíssem na idolatria e tê-los afastado do estigma de ser mulher, esses seres submetidos, cuja única função sobre a terra é engendrar novos fi lhos do povo escolhido.

Nem todos os judeus recitam essa la-dainha, nem todos creem de pés juntos que ser mulher é uma desonra. Não. Mas o certo é que, em Israel, a religião se mes-cla tanto com a vida que acaba por tor-nar-se lei. Ainda que formalmente não se tenha declarado um “Estado judeu”, Is-rael o é na prática, e são as mulheres as que mais sofrem essa realidade.

Esse desenho da mulher israelense for-te, fi rme, empreendedora, capaz de pilo-tar um caça, se esvai com outras quali-fi cações, menos visíveis, mas igualmen-te reais: as da mulher insultada, aprisio-nada pela religião, minimizada por uma sociedade masculina. As frágeis mulhe-res fortes de Israel.

Machismo e matrimônioAs mulheres, que são 51% da popula-

ção do país (pouco mais de 3,5 milhões de pessoas), veem seus direitos vulnera-dos especialmente no campo da família. Arrastam a obrigação geral de se casa-rem por meio de um rito religioso, já que o matrimônio civil não é contemplado e, além disso, só se pode levar a cabo com o consentimento do rabino.

Os problemas aumentam caso o casal queira separar-se. Gila Adahan, advoga-da de Jerusalém especializada em divór-cios, explica que as separações se regem pelas leis do Talmud, dos séculos 4 e 5. “Só o homem pode conceder o divórcio, e tem que entregá-lo por escrito pessoal-mente à mulher”. Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divór-cio se o marido não quiser ou, inclusive, se ele estiver fi sicamente impedido e não puder assiná-lo com seu punho e letra.

A solução, explica a especialista, passa por uma longa espera, já que a média pa-ra conseguir o divórcio em Israel é de dez anos, segundo ONGs, e de dois, segundo o governo. Existem mulheres que bus-cam outra solução: pagam a seus esposos para que as deixem separar. “Não é inco-mum que renunciem à moradia ou à ma-nutenção dos fi lhos para tal. Chegam a um verdadeiro desespero”, completa.

Critérios bizarrosKaveh Shafran, porta-voz da associa-

ção Rabinos pelos Direitos Humanos, explica que as sinagogas tentam ajudar essas mulheres, convencendo os mari-dos a dar o braço a torcer. Os ameaçam com o “repúdio” da comunidade, com o impedimento de estudar o Torá, com o rebaixamento no organograma da sina-goga e até com denúncias às autorida-des penais – em 2007, 80 homens cum-priam prisão depois de serem aponta-dos por seus rabinos, informa a agên-cia Efe.

Às vezes, até pagam um detetive pri-vado para ir atrás do marido fugido. Os rabinos se envolvem sempre que há uma “causa justifi cada” para o divórcio, mas aí reside outro dos inconvenientes: a extravagância desses critérios.

Shafran explica que o Talmud não considera como “causa sufi cientemente argumentada” a infi delidade, a violên-cia ou a ausência prolongada do lar. Por isso, se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas não tem que conceder divórcio. Aceita-se co-mo causa justifi cada o fato de o marido ter mau hálito ou não cumprir com su-as obrigações na cama. “Um homem po-de repudiar sua mulher se ela não cozi-nha bem, se encontra outra que o satis-faça mais ou se eles não têm fi lhos”, diz o rabino.

A solteirice “é o maior mal para a mu-lher israelense”, afi rma um dos rabinos mais conservadores do país, Ovadia Yo-sef, e nem de longe é uma solução: as solteiras estão condenadas ao ostracis-mo em sua comunidade. É preciso se ca-sar, e logo (24,5 anos as judias, 20,5 as árabes) e ter muitas crias (três em mé-dia). Aqui não fi ca nem o consolo da Espanha antiga de tornar-se freira. Ao contrário: a mulher participa em pou-quíssimos atos das cerimônias litúrgicas e apenas em um punhado de sinagogas mais abertas.

Heranças da religiãoSigal Ronen-Katz, assessora legal da

Israel Women’s Network (IWN, uma das principais organizações feministas do país), sustenta que a religião marca uma sociedade patriarcal que acaba por gerar maus-tratos. Sempre se difundiu a ideia da israelense valente, pioneira, comba-tente, criadora do Estado, pilar-mãe da sociedade, “mas, por trás disso, há pres-sões psicológicas e físicas muito fortes, especialmente no entorno religioso”.

Segundo seus dados, 42% das mu-lheres ultraortodoxas apanham de seus maridos e 24% sofre violência sexual. Nos últimos 20 anos, 378 mulheres fo-ram assassinadas por seus parceiros. A metade era formada por judias e árabes de idade madura que residiam em zonas radicalizadas.

Quase 36% delas eram estrangeiras, sendo que o número total desse seg-mento não supera um sexto da popu-lação total do país. 2010 foi o pior ano desde 2004, com 18 mortas, o dobro de 2009. O primeiro-ministro Benja-min Netanyahu informou, no Dia Mun-dial contra a Violência contra a Mulher (25 de novembro), que 200 mil israelen-ses e 600 mil crianças são vítimas de vio-lência física ou emocional e, quando de-nunciam, levam em média cinco anos de calvário.

Ele disse isso abaixando a cabeça diante das mulheres que reprovaram sua debilidade em relação aos agressores: há um ano, ele prometeu cinco milhões de shekel [moeda isaraelense] em ajudas e investimento em refúgios, mas ainda não liberou nada. As ligações para o serviço de assessoramento da IWN cresceram entre 30 e 50% no último ano.

Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretu-do, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição. A Divisão para o Adianta-mento da Mulher (DAW) sustenta que cerca de três mil mulheres estão subme-tidas à exploração sexual, apesar de que a religião deveria ser um freio para a maio-ria dos israelenses.

Não é assim. “A prostituição é uma forma moderna de escravidão, inclusi-ve neste país que nasceu fazendo iguais a homens e mulheres e já distante de co-

lonialismos e opressões. Em 15 anos, fo-ram deportadas cinco mil mulheres”, afi rma Ronen-Katz. A ONU calcula que cada trafi cante ganha por ano mais de 60 mil dólares por garota, cada uma com-prada dee 7 e 25 mil dólares. Um bordel pequeno, com dez mulheres, pode gerar 250 mil dólares mensais. 70% das jovens são viciadas em drogas.

Trabalho“As israelenses se movem em uma rea-

lidade masculina sob a falsa aparência de serem iguais”, escreveu, já em 1978, a fe-minista Lesley Hazleton. A situação não mudou muito, como revela a cada ano a comissão criada no parlamento israelen-se sobre a mulher.

Ruhama Avraham Balila, deputada pelo Kadima e ex-ministra do Turismo, repassa os dados desolada. É uma das 23 mulheres de uma câmara com 120 parlamentares, que sempre oscila entre 7 e 10% de representação feminina, ha-bitualmente de partidos de centro ou es-querda. Entre os dados que aponta, en-contra-se o de as mulheres terem me-lhor formação que os homens, com dois pontos percentuais mais de tituladas em educação formal (22%) e nove pon-tos mais no ensino médio. 55,9% dos es-tudantes de formação superior são mu-lheres (a sétima melhor cifra do mun-do), mas, apesar disso, o desemprego feminino é dois pontos superior ao mas-culino (de 6,1 a 8,3%). “É desesperador: somos um quarto do professorado uni-versitário e a pressão familiar e religio-sa afasta as meninas das carreiras técni-cas. Por fi m, somos maioria no de sem-pre: educação, trabalho social, enferma-gem, secretariado… Onde estamos em economia ou defesa? Em nenhum lugar, não nos promovem, não nos veem como igual”, diz uma senhora que teve mais espaço na imprensa por ter sido eleita uma das políticas mais bonitas do mun-do do que por seu trabalho.

Nunca foi bem visto que mulheres te-nham autonomia em seu emprego; as-sim, 91,4% das empregadas exercem fun-ções de subordinação, contra 80% dos homens. Não chegam a 4,5% as que têm cargos executivos (sete pontos menos do que os homens) e, na política, passam de um terço apenas em prefeituras potentes como a da capital Tel Aviv.

“Só houve nove prefeitas em nosso país”, denuncia Avraham. Na Corte Su-prema, em 62 anos de Estado, só houve três mulheres. Nos últimos dias, a bri-

ga no Parlamento se centrou em fazer cumprir a lei de igualdade de salários, que chegam a diferenças de até 38%, e a abertura a todos os empregos, pois mui-tos estão vetados “por ser perniciosos pa-ra a saúde da mulher”, como os trabalhos noturnos.

“Não nos deixam ser as judias fortes do Holocausto, ou as que saíram no fi lme Êxodo. Nos suavizaram no mau sentido. Temos pequenas coisas: um ano de licen-ça maternidade, uma lei contra o assédio sexual muito potente, ajudas de escolari-zação… E, entretanto, ser mulher aqui é muito difícil”.

Minoria esquecidaA discriminação geral da mulher israe-

lense se soma, no caso das árabes, ao fa-to de pertencerem a uma minoria esque-cida. Fadwa Lemsine, 36 anos, empresá-ria, se vê como uma vítima tripla, “por ser árabe em um Estado judeu, por suportar uma sociedade patriarcal que exala ma-chismo e por não poder receber a qualifi -cação necessária para escalar neste mun-do de economia liberal”. Ela é uma exce-ção, parte desses escassos 3% de autôno-mas, sobrevivendo em sua loja de design de interiores. Segundo o Escritório Cen-tral de Estatística de Israel, só 18,6% das árabes trabalham, diante de 56% entre as judias.

As mulheres árabes limpam Israel, ba-sicamente. Ou dão aulas em colégios desua mesma minoria. Ou cozinham. Tra-balham por 47% menos do salário deuma israelense. Casam-se antes, têmmais fi lhos e, ainda que a palestina se-ja uma das comunidades mais progres-sistas do Oriente Médio, também carre-gam o rigor do Islã. “Eu estudei em umcentro árabe, não tive subvenção algu-ma para abrir minha empresa, recebi pressões municipais para contratar ju-deus… Ainda assim, sou a primeira em-presária da minha família, estou orgu-lhosa”, defende.

Ela colabora em uma associação de mulheres e afi rma que um quinto das mulheres de Israel vivem na pobreza e quase um terço não come todos os dias para que nada falte a sua família. “Essa é a tragédia, não temos poder, mas pobre-za, e esse círculo vicioso não acaba”, la-menta. A crescente radicalização religio-sa do país só complica as coisas. “Maus tempos, é sempre ruim nascer mulher nesta terra”. (Periodismo Humano)

Tradução: Vinicius Mansur

As frágeis mulheres fortes de IsraelORIENTE MÉDIO Submissão religiosa, maus-tratos e desigualdades laborais complicam a existência de metade da população israelense

379mulheres foram assassinadas em

Israel nos últimos 20 anos

Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divórcio se o marido não quiser

Se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas

não tem que conceder divórcio

Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretudo, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição

As mulheres árabes limpam Israel, basicamente. Ou dão aulas em colégios de sua mesma minoria. Ou cozinham. Trabalham por 47% menos do salário de uma israelense

Reprodução

Em Jerusalem, mulheres rezam na parte reservadas a elas no Muro Ocidental

Page 12: Edição 409 - de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011

áfricade 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 201112

Charles Mpkade Blantyre (Maláui)

HERMES CHIMOMBO, um soldador de 50 anos, é venerado no empobrecido dis-trito de Naotcha, no Maláui, país do su-deste africano. Armado com rudimen-tares ferramentas e paixão por aliviar o sofrimento humano, ele aproveitou um manancial de uma montanha para pro-ver de água 25 mil pessoas.

Voltemos para 1998. Numa noite qual-quer, grupos de mulheres abrem passo com cautela ao longo de uma trilha sob a montanha Soche. Saem na escuridão para evitar as fi las durante o dia. Levam baldes de água sobre suas cabeças e têm medo de ser atacadas por delinquentes ou hienas que perambulam pelas frontei-ras do distrito rural de Chikwawa.

“Esse era nosso pesadelo”, conta Sphiwe Adams, moradora do distrito de Naotcha há mais de 20 anos. A úni-ca fonte segura de água para beber, co-zinhar e para uso doméstico era um ma-nancial localizado no alto de uma encos-ta da montanha Soche, a 600 metros de onde a divisa do distrito se encontra com a fl oresta.

A proprietária de imóveis Eluby Mkwanda recorda o que ocorria com aqueles que se mudavam para casas lo-calizadas perto da divisa. “No primeiro dia das mulheres na montanha, podia-se ver a ira em seus rostos. Não falavam com ninguém e gritavam com seus mari-dos por lhes terem levado para lá. Por is-so, muitas dessas casas permanecem va-zias”, diz.

Crescimento populacionalNaotcha se encontra a cerca de 20 qui-

lômetros do reservatório mais próxi-mo da empresa estatal Junta de Água de Blantyre. O tanque foi construído em 1964 para servir aos assentamentos pla-nejados que circundam Kanjedza e Zin-gwangwa.

Mas a população da cidade de Blan-tyre cresceu de 113 mil habitantes em 1966 para 502 mil em 1998 – atual-mente, estima-se que está em 670 mil. A crescente migração urbana, que co-meçou a princípios de 1990, é a culpada

pelo rápido crescimento das favelas. Em 40 anos, a Junta não fez nenhum gran-de investimento para expandir sua rede e assegurar um abastecimento continu-ado de água à população, disse seu por-ta-voz à IPS.

Chimombo era o chefe do Comitê de Desenvolvimento da comunidade em 1998. O problema da água se converteu rapidamente em sua maior preocupação. Em 1999, ele buscou apoio do Malawi Social Action Fund (Masaf), um progra-ma fi nanciado pelo Banco Mundial, cujos responsáveis responderam que conside-rariam sua proposta, mas apenas para a seguinte rodada de projetos, dali a se-te anos.

“Senti a responsabilidade de salvar a situação”, diz Chibombo. “Eu havia leva-do as pessoas a acreditar que podíamos

ter água. Não queria continuar vendo-os sofrer por outros sete anos”.

Na mesma semana, usando dinheiro de seu pequeno negócio de soldadura, comprou uma tubulação vertical, uma caixa d’água com capacidade para 100 litros, cimento e condutores elétricos de uso doméstico. Em apenas um dia de tra-balho, colocou a caixa d’água na monta-nha e fez nela uma abertura para captar a água do manancial. Depois, soldou 20 metros da tubulação no extremo infe-rior do recipiente e estendeu tubulações de 700 metros até uma clareira na divi-sa do distrito.

E a água fl uiu. “Esse dia foi uma ce-lebração. Aconteceu um milagre. Não acreditávamos nele, depois da recusa do Masaf, mas Chimombo seguiu adian-te com os garotos de seu negócio”, recor-da Eluby. Mas esse ponto de água ainda estava longe para muitos habitantes do

O milagroso homem da águaMALÁUI Soldador de 50 anos trabalhou sozinho para fornecer o recurso a 25 mil pessoas de sua região

distrito. Chimombo estendeu a linha de distribuição principal em outro 1,5 quilô-metro, até um segundo quiosque de du-as torneiras.

Ele estava abastecendo o distrito de água de forma gratuita. Mas seu negó-cio sofreu devido ao fato de que ele con-tinuava a pôr dinheiro na execução do projeto. Em 2000, os moradores decidi-ram começar a pagar “como uma forma de agradecer a ele”. Hoje, eles compram águam por quatro centavos de dólar por 20 litros, um centavo a mais do que nos quiosques da Junta.

Apropriação socialO sistema de Chimombo expandiu-se a

20 quiosques alimentados por três fon-tes da montanha. Eles fornecem água du-rante as 24 horas do dia. Seus três “re-servatórios”, agora substituídos por cis-ternas de concreto, são limpos por den-tro uma vez por mês, momento em que a água também é tratada com cloro for-necido pela Câmara Municipal de Blan-tyre. Como se negou a se apossar do pro-jeto, Chimombo entregou a gestão de 16 quiosques a outras pessoas.

Elas mantêm a rede e fi scalizam a ven-da de água em suas regiões. O dinheiro é delas. Dos quatro quiosques a seu cargo, Chimombo coleta cerca de 14 dólares di-ários de cada um. Uma ONG local, a Sus-tainable Rural Growth and Development Initiative, vinculou o grupo à Câmara Municipal para se capacitar em admi-nistração. Além disso, a entidade apoia a restauração da fl oresta, que foi objeto de degradação, e a expansão da rede a lo-calidades próximas com baixa densidade de população.

O diretor-executivo da ONG, Maynard Nyirenda, disse que a invenção de Chi-mombo ilustra como o Maláui pode ex-plorar seus vastos recursos hídricos pa-ra eliminar os problemas de fornecimen-to. Ironicamente, sua inovação não al-cança sua própria casa. Sua esposa cami-nha por cerca de 20 minutos até um dos quiosques de água. Ocasionalmente, eles conseguem pegar água da torneira da Junta de Água no seu pátio.

Mas esses dias são muito raros, diz Chibombo. “Estou satisfeito porque isso que começou como algo pequeno benefi -ciou milhares de pessoas. Ainda existem moradores que pegam água de córregos poluídos, mas acho que isso mudará à medida em que o projeto cresça”.

Para Sphiwe Adams, os moradores do distrito de Naotcha nunca poderão agra-decer a Chimombo o sufi ciente. “Só Deus sabe como agradecer a ele”, diz, enquan-to levanta seu balde em um dos quios-ques. (IPS)

Tradução: Igor Ojeda

Hedelberto López Blanch

O BANCO MUNDIAL (BM), que se ca-racterizou, juntamente com o Fundo Monetário Internacional (FMI), por im-por às nações subdesenvolvidas políticas neoliberais leoninas, leva a cabo há anos um dissimulado programa para adquirir, mediante compras, grandes extensões de terras no continente africano.

Como se não tivesse nada a ver com es-se negócio, o BM informou recentemen-te que a compra de terrenos agrícolas no Sul em desenvolvimento, por parte de governos ricos e companhias estrangei-ras, é um fenômeno que se intensifi cará nos anos que virão.

O organismo explicou, em um docu-mento, que em 2009 foram fi rmados acordos para a compra de 45 milhões de hectares e que em 2010 a cifra se amplia-ria, pois companhias transnacionais e nações desenvolvidas buscam se estabe-lecer em outras regiões do planeta diante do temor de os preços dos produtos ali-mentícios e das matérias-primas conti-nuarem aumentando e de a água se es-cassear. Dessa forma, poderão abastecer seus países de origem, e, ao mesmo tem-po, obter abundantes lucros.

Um estudo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimenta-ção (FAO) e do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) asse-gura que as compras de terras para pro-

duções agrícolas na África Sub-Saaria-na, por parte de investidores estrangei-ros, tem aumentado consideravelmente. A investigação abarcou apenas as com-pras que passavam dos mil hectares em cada transação, efetuadas em cinco paí-ses desse continente. O resultado foi que a propriedade de 2,5 milhões de hecta-res havia sido passada desses Estados a outros governos estrangeiros que efron-tam em seus países problemas de super-população e escassez de terra para a agri-cultura.

Discurso falsoEmbora estes cheguem com um dis-

curso enaltecedor sobre os benefícios que seus projetos levarão para a popu-lação local – como a construção de es-tradas, sistemas de irrigação, criação de postos de trabalho – e digam que uma parte dos alimentos produzidos se des-tinará ao mercado africano, a realidade é outra.

Em primeiro lugar, os maiores afeta-dos são os pequenos agricultores que sustentam suas famílias com o monocul-tivo, que devem se mudar para outros lo-cais (isso se conseguem encontrá-los ou se lhes permitem fazê-lo) ou migrar pa-ra as cidades, onde aceitam qualquer tipo de trabalho para tentar sobreviver nessas péssimas condições.

Essa prática não é nova, pois foi uti-lizada há décadas em outros continen-tes. Por exemplo, depois da midiatiza-da “independência” de muitos países da América, o governo estadunidense e suas companhias se apossaram de ex-tensos terrenos.

A United Fruit Company, transnacio-nal estadunidense fundada em Boston em 1899, se apossou de milhões de hec-tares de terra de vários países da Amé-rica Latina, como Honduras, Colômbia, Costa Rica, Equador, Cuba etc.

Mudou de nome em 1970, para Uni-ted Brands, e, em 1990, para Chiqui-tica Brands, mas continuou estreita-mente relacionada com a exploração indiscriminada dos trabalhadores, re-pressões contra qualquer demanda operária, golpes de Estado contra go-vernos progressistas e saque das rique-zas nacionais.

Um de seus primeiros presidentes, Sam Zemurray, disse, a princípios do século 20, uma frase que refl ete a ver-dadeira imagem da companhia: “em Honduras, é mais barato comprar um deputado do que uma mula”.

Em Cuba, a United Fruit foi naciona-lizada depois do triunfo da Revolução de 1959, e esse é um dos aspectos que custou à ilha padecer de um bloqueio econômico por mais de 50 anos por parte dos EUA.

Papel do Banco MundialNa África, as independências dos paí-

ses começaram no fi nal da década de 1950 e início da de 1960, muito mais tarde do que na América. O fato de ser um continente distante e possuir um alto grau de subdesenvolvimento, dei-xado pelas antigas metrópoles, desa-lentaram, inicialmente, o investimen-to das transnacionais e países desen-volvidos. Estes, há alguns anos, diante

das riquezas dos subsolo africano (pe-tróleo, diamantes, urânio etc.) e do au-mento dos preços dos produtos alimen-tícios, entre outros fatores, estão se re-assentando no continente.

Nessa prática, o Banco Mundial de-sempenha um papel especial, como de-nunciou o Instituto Oakland, que apon-tou que esse organismo favorece a com-pra de terras africanas por companhias estrangeiras para a produção de alimen-tos e a fabricação de biocombustíveis.

Esse centro de investigação estadu-nidense informou que as transações se efetuam por meio da Sociedade Finan-ceira Internacional (SFI), fi lial do BM que impõe as políticas neoliberais do or-ganismo para a monopolização das me-lhores terras de cultivo africano por par-te de grupos estrangeiros.

A SFI pressiona os Estados africanospara que modifi quem suas legislações de maneira a permitir a entrada de in-vestimento estrangeiro sem restrições, ea lhes facilitar que façam o que deseja-rem nos terrenos adquiridos, assim co-mo com as produções e os lucros obti-dos. O Instituto Oakland expõe os casos de Serra Leoa e Libéria, que realizaram, em 2009, mais de vinte reformas legais a respeito.

Há dois anos, outro informe da FAOadvertia sobre o risco de um maior em-pobrecimento dos países africanos devi-do à compra de terra por empresas es-trangeiras, prática que dissimulada-mente o Banco Mundial impulsiona.

Com muita razão, o presidente daFAO, o senegalês Jacques Diouf, catalo-gou essas ações como “um novo colonia-lismo”. (Portal Ajintem)

Hedelberto López Blanch é jornalista cubano

Tradução: Igor Ojeda

AGRICULTURA

O Banco Mundial vestido de ovelhaANÁLISE O organismo fi nanceiro leva a cabo há anos um dissimulado programa para a aquisição, mediante compras, de grandes extensões de terras no continente africano

Esse organismo favorece a compra de terras africanas por companhias

estrangeiras para a produção de alimentos e a fabricação de

biocombustíveis

“Eu havia levado as pessoas a acreditar que podíamos ter água. Não queria continuar vendo-os sofrer por outros sete anos”

20 kmé a distância que separa o distrito

de Naotcha do reservatório de água estatal mais próximo

O sistema de Chimombo expandiu-se a 20 quiosques alimentados por três fontes da montanha. Eles fornecem água durante as 24 horas do dia

Mulheres e crianças enchem baldes com água em um dos quiosques de Blantyre

Charles Mpaka/IPS