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República ParadisoCrimes e Segredos
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PrólogoOuro Preto, 13 de outubro de 1974Nuvens cor de chumbo pairavam sobre a cidade na manhã
seguinte à Festa do Doze. Por amor e devoção à Nossa Senho-ra do Rosário, Benedita Amaro subira a ladeira desde Padre Faria até o Alto da Cruz. Parou ofegante diante do portão de ferro e estranhou a grossa corrente dependurada, o cadeado aberto.
Foi a primeira a chegar à Igreja de Santa Efigênia. Como de costume, pretendia cumprir a honorável missão que a Ir-mandade dos Pretos de Antônio Dias havia lhe confiado. Quem sabe, pela última vez. Aos sessenta e tantos anos, a zeladora decidira passar a outro o bastão. A perda progressiva da audição e a artrose, esta em especial, passaram a lhe inco-modar. Coisa de velha, conformou-se.
Santa Efigênia fora poupada até então, mas a negra teria motivos de sobra para se preocupar. Erguida entre pedras, silêncio e sombra, Ouro Preto havia testemunhado conspira-ções e traições, a par de manifestações artísticas inigualáveis no período colonial. Nos últimos meses, não por acaso, a an-tiga capital de Minas Gerais tornara-se o alvo preferencial de catadores, ladrões profissionais atraídos pelo alto valor de ob-jetos litúrgicos e imagens barrocas no mercado internacional.
Um frio súbito percorreu-lhe a espinha. Benedita suspirou ao mirar a igreja no topo da escadaria. Galgar seus degraus naquela circunstância pareceu-lhe especialmente doloroso. Não apenas pela incerteza do que teria de fato acontecido, mas por sua própria condição.
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Com esforço, alcançou a porta do templo. E foi então que o ar lhe pareceu pesar como cimento, implacável, enterrando--lhe os pulmões. No chão, o retrato de uma tragédia maior: envolto na cintura por uma toalha branca, o corpo ensan-guentado de uma criança. Dez ou onze anos, o rosto pintado de preto.
Um odor nauseabundo exalava do linho tinto e a zeladora, desnorteada, vagou em círculos. Coração disparado, a boca seca, Benedita Amaro contemplou o rosto sereno do garoto. A cena não lhe parecia estranha.
Num lampejo, lembrou-se do que ouvira da avó materna, que costumava lhe contar histórias de negros na antiga Vila Rica. Pois algo muito parecido havia acontecido nos tempos de Chico Rei, o lendário monarca: meninos brancos, rostos pintados de preto, emasculados em frente à Casa de Deus. Magia negra? Vingança? Dois séculos e meio depois, Benedi-ta não saberia dizer.
Pensou em pedir ajuda e olhou para a rua. Desolada, perce-beu que levaria tempo demais para descer a escadaria. E se es-tivesse vivo? Suspirou longamente, sabendo que precisava agir.
Num esforço supremo, ajoelhou-se ao lado do garoto e em vão tentou-lhe ouvir as batidas do peito. Sem pulso, os dedi-nhos gelados, estava morto. Quando finalmente tomou cora-gem, afastou a mortalha improvisada, e não conteve o grito.
— Valha-me, Cristo! — suplicou.Como imaginara, a genitália fora decepada.Benedita gemeu baixinho. Lentamente, acomodou o pano
em torno do menino e elevou os olhos negros e desconsolados em direção ao céu. Junto ao corpo inerte, exausta, ocorreu-lhe apenas fazer o sinal da cruz.
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14 de outubro de 1974Na cadeia, por volta das onze da noite, padre Anselmo
Grimaldi fazia anotações no diário e rezava. Incomodado com o rumo dos acontecimentos, aguardava pacientemente a presença de um advogado.
No fim da tarde, cônego Farina visitara-o na cela. A pedi-do da Arquidiocese, o velho amigo tentava a sua transferência imediata para Belo Horizonte. Pelos cálculos do cônego, An-selmo deveria deixar a delegacia nas próximas horas; na pior das hipóteses, passaria a madrugada naquele lugar.
O mundo não há de acabar, imaginou o jovem padre, pon-derando que o seu aguerrido parceiro de batina, Jean Baptiste, havia passado momentos bem piores nos porões do DOI-CO-DI, órgão de inteligência e repressão do regime militar. Mas o frio começava a incomodar. Pela minúscula abertura na parede de pedras, ouvia-se perfeitamente o tumulto do lado de fora.
— Assassino! — vociferavam. — Monstro!A turba ensandecida poderia invadir o prédio a qualquer
instante e os poucos policiais da delegacia, era certo, não con-seguiriam controlar a situação.
Anselmo interrompeu seus registros, deixando de lado as páginas do diário. Precisava esticar as pernas. Pôs-se de pé e caminhou mansamente de um canto ao outro do cubícu-lo, buscando a inspiração divina. Sentou-se na cama estreita, pousando as costas contra a parede. O que fazia ali, afinal? De onde vinha a fúria incontrolável daquela gente?
Bernardino, seu companheiro de cárcere, trazia o medo estampado na face.
— Não tema, amigo. Lembre que o bom Deus escreve
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certo por linhas tortuosas — assegurou o padre, tentando acalmá-lo.
Anselmo decidiu prosseguir com suas anotações e manter a sanidade. Precisava entender a extensão e o sentido de sua provação.
De repente, o estilhaçar de vidros. A confusão de vozes vinha agora da recepção. Na iminência de um massacre, o atônito delegado Silva chegou como um raio, afogueado, com um molho de chaves na cintura:
— Depressa, padre! O senhor não pode ficar aqui! — dis-parou, trêmulo, abrindo a porta da cela.
Ocorreu a Anselmo Grimaldi naquele instante salvar a própria pele. E poupar a sua vida naquela circunstância sig-nificava simplesmente revelar o que ouvira em confissão havia pouco; noutras palavras, sujeitar-se ao martírio da excomu-nhão! Num segundo, lembrou-se do que escrevera no diário; um registro doloroso e preciso de tudo o que lhe ocorrera na-quele dia insólito.
(...) Mais cedo, desci angustiado o Vira-Saia. Quanto des-propósito, Senhor! O enterro do menino emocionou todos no Alto da Cruz. A gente simples do povo, centenas de curiosos queriam ver de perto a tragédia que se abateu no seio da Ir-mandade.
Ecoam ainda em minha mente as palavras de desalento da amiga Benedita diante do caixão: “Valha-me, Cristo!”. Em meus dez anos de sacerdócio, em Diamantina ou Mariana, jamais tive notícia de crime semelhante.
Próximo à Igreja de São Francisco, preocupado já com o horário da missa, notei uma movimentação incomum no
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Largo do Coimbra. Terminada a Festa do Doze, boa par-te dos turistas havia deixado a cidade; Ouro Preto deveria retornar à normalidade. No entanto, nessa manhã, comer-ciantes e populares discutiam na praça de forma acalorada, agitados, reunidos em pequenos grupos. Intrigado, imagi-nava sobre o que conversavam. A caminho da igreja, algu-mas pessoas me apontavam na praça, outras cochichavam.
A missa começaria em dez minutos. Junto à entrada late-ral, Irmã Celina mostrou-me o que havia arrancado do poste; aconselhou-me a entrar e me informar. Mãos vacilantes, a ze-ladora entregou-me duas folhas amassadas de papel mimeo-grafado, que passei a ler ali mesmo, de pé.
Assinava o panfleto um tal F. Messias. Entre outras in-confidências, revelava escândalos sexuais na Igreja de Minas; casos requentados, boa parte deles havia estampado a capa dos jornais sensacionalistas na última década. A seção final do folhetim, segunda página, me afetava particularmente; de forma leviana, lembrava aos quatro ventos o lamentável epi-sódio ocorrido em 1966, quando eu lecionava no Seminário Menor de Mariana.
Perguntava-me a quem interessaria a divulgação daqueles fatos supostamente mortos e enterrados, quando um sujeito alto e gordo aproximou-se. Educadamente, o delegado Teo-baldo Silva cumprimentou-me e apresentou-se como o chefe da Polícia Civil de Ouro Preto.
Ao seu lado, uma mulher caucasiana, vinte e poucos anos, tinha o cenho franzido.
— Foi ele mesmo, doutor! — disse.Aos gritos, garantiu que eu abusara de seus meninos. In-
sistiu, descontrolada, que eu teria levado os dois a uma pes-
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caria, e que “o safado” — no caso, eu — havia pagado cinco cruzeiros a cada um!
Surpreendeu-me aquela farsa burlesca. Não reagi. Silva disse-lhe que estava tudo bem e que ela poderia ir; a polícia cuidaria do caso. A moça afastou-se chorando copiosamente.
Constrangido, o delegado pediu-me que o acompanhasse. Tempo apenas para subir ao consistório, pegar os documen-tos, a bolsa e as anotações. Irmã Celina prometeu-me avisar aos fiéis: a missa seria cancelada.
A caminho da delegacia, neguei com veemência a acusa-ção e exigi, claro, uma acareação. Deus! Há tempos não pesco nada além de almas. Garanti a Silva que a história era absur-da, carecia de fundamento. Ademais, o Senhor me conhece, seria incapaz de cometer uma indignidade dessas!
Sem provas ou flagrante, de todo modo, acredito que o caso Bentinho tenha influenciado a decisão do delegado de deter--me provisoriamente.
“Ordens superiores”, alegou.Coincidência? Como escrevi há pouco, antes da chegada de
Bernardino, recebi a tal visita inesperada; conheci em confissão os responsáveis por todo o meu sofrimento. O cerco começa a se fechar, as peças parecem se encaixar.
Sim! Primeiro, o artigo apócrifo espalhado pelos postes da cidade. O panfleto descreve o motivo de minha saída de Mariana, o meu suposto “envolvimento” com um seminaris-ta. Ora, um bilhete anônimo! Levaram o caso ao arcebispo, chamaram-me a dar explicações. Obviamente, nada ficou provado. Acabei transferido para nossa pequena paróquia em Antônio Pereira, sem apelação.
Depois disso, a encenação bufa de uma moça que jamais
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vi na vida, acusando-me de pedófilo. E, agora, a confissão. Nosso direito canônico é claro e categórico: “Seja deposto o padre que ousar tornar público os pecados de seu penitente.”.
Céus! Não sei o que fazer. O Altíssimo haverá de perdoar, compreender tamanho desatino; minha vida, contudo, corre perigo.
Na solidão da alma, diante de tal segredo, entrego-Vos, Se-nhor, a dura decisão. Não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo! Resignado, aguar-do o destino que me confiardes.
Ferve o clima na delegacia. Outra vez, gritaram meu nome: “Anselmo, padre assassino!”. Um homicida, eu? As palavras ferem. Motivos há, e muitos, para eu me acautelar.
O delegado...
Um odor insalubre de fumaça e enxofre impregnou o ar. O inferno de Dante, lembrou Anselmo, ante a possibilidade concreta de um incêndio na cadeia. Essa gente não está aqui a passeio, concluiu. Ponderou uma última vez se devia aceitar a fuga tresloucada proposta pelo delegado, ou simplesmente con-tar-lhe a história toda, a trama sórdida em que se metera.
Silva insistiu:— Tempo esgotado, padre! Por aqui...Anselmo obedeceu, convencido, afinal, da decisão que to-
mara. Não quebraria os votos. Definitivamente, não se atre-veria a afrontar a Madre Igreja e revelar um segredo ouvido em confissão.
— E eu, doutor? — indagou Bernardino, em vívido de-sespero.
Silva bateu a porta com violência:
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— Eles não querem você, me espere até eu voltar — de-cretou.
Tremendo dos pés à raiz dos cabelos, gotejando por todos os poros, padre Anselmo seguiu o delegado pelos corredores, deixando tudo para trás.
Cruzando o beco por uma saída lateral, Teobaldo Silva revelou a Anselmo sua intenção de chegar à Capela de Nos-sa Senhora das Dores, entre a Barra e Antônio Dias. Queria ganhar tempo, escondê-lo na sacristia até que os ânimos se-renassem.
— Mais rápido, padre! Deus haverá de provê-lo — mur-murou o policial, suando em bicas.
Vestido de preto, na primeira esquina, um grupo de se-nhoras deu o alerta. Num piscar de olhos, dezenas de homens e umas poucas mulheres encurralaram os “fugitivos”, empu-nhando tochas e terços:
— Padre do diabo! Belzebu!A reação de Silva foi proteger Anselmo com o corpo e sacar
a pistola, ameaçando os que vinham à frente. A turba decidi-da não se intimidou. Entre os mais exaltados, padre Anselmo reconheceu um senhor branco, calvo, sotaque lusitano: o pai do menino emasculado. Sem saída, restou ao delegado vol-tar correndo; quem sabe buscar reforços no meio da noite. O padre se viu só, à própria sorte.
Com a barba por fazer, as vestes amarfanhadas, Anselmo havia se conformado. Nada que dissesse ou fizesse teria aco-lhida no coração ferido daquela gente aflita e transtornada. Arrastado pela multidão, mãos atadas... Só um milagre po-deria salvá-lo.
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Em minutos, a procissão chegou aos pés do Morro da For-ca; pouco mais de cem degraus até o topo. De madrugada, quem estivesse na praça da Estação, no Pilar ou na Igreja do Carmo, veria a nuvem de luz bruxuleante que vinha dos ar-chotes.
Sob a velha figueira, um caixote de feira lhe serviria de cadafalso. Senhor, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem! Uns instantes a mais de agonia — uma eternidade — até que, en-fim, subisse aos Céus. Ou ao Inferno, como disseram alguns.
Feito o abraço da serpente, a constrição do pescoço pela cor-da longa e improvisada haveria de asfixiá-lo; a queda do cor-po, pelo rompimento das vértebras cervicais, implicaria uma parada abrupta da função respiratória, decretando-lhe a morte imediata. Padre Anselmo rezou o Pai Nosso e registrou a che-gada de Teobaldo Silva, acompanhado de policiais. Invadiu-lhe a alma uma lufada de esperança.
— Para trás! — ordenou o delegado, ao longe. O som che-gou abafado.
Anselmo Grimaldi sentiu um vulto se aproximar, rápido como a sombra. O vento frio e úmido fustigou-lhe a face. Um anjo, Senhor!, concluiu apressado. Silva replicou:
— Nãããão!!!Tarde demais. Deslocaram o cadafalso.
A continuação você encontranas melhores livrarias.
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1a edição: setembro de 2014Impressão: Grupo Gráfico Stamppa
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“Ouro Preto, 13 de outubro de 1974
Nuvens cor de chumbo pairavam sobre a cidade na manhã se-guinte à Festa do Doze. Por amor e devoção à Nossa Senhora do Rosário, Benedita Amaro subira a ladeira desde Padre Faria até o Alto da Cruz. Parou ofegante diante do portão de ferro e estranhou a grossa corrente dependurada, o cadeado aberto.
(...)
Um frio súbito percorreu-lhe a espinha. Benedita suspirou ao mirar a igreja no topo da escadaria. Galgar seus degraus na-quela circunstância pareceu-lhe especialmente doloroso. Não apenas pela incerteza do que teria de fato acontecido, mas por sua própria condição. Com esforço, alcançou a porta do templo. E foi então que o ar lhe pareceu pesar como cimento, implacável, enterrando-lhe os pulmões. No chão, o retrato de uma tragédia maior: envolto na cintura por uma toalha bran-ca, o corpo ensanguentado de uma criança. Dez ou onze anos, o rosto pintado de preto.”Rep
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