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Editorial - musica.ufmg.brmusica.ufmg.br/permusi/permusi/port/numeros/01/num01_full.pdfEditorial O Programa de Pós-Graduação da Escola de Música da UFMG ([email protected])

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Editorial

O Programa de Pós-Graduação da Escola de Música da UFMG ([email protected]) apresentaPER MUSI - Revista de Performance Musical, aberta à diversidade de temas característicos daárea de performance musical. Além de tratar de assuntos específicos como técnicas e práticas deperformance, decisões de interpretação, re-criação musical, improvisação, gestual e interação com opúblico entre outros, PER MUSI também abrigará temas resultantes de interfaces da performancemusical com outras áreas (musicologia histórica, educação musical, composição, análise, tecnologia,medicina e filosofia).

A idéia de criação de PER MUSI, concretizada agora com a publicação de seu primeiro volume, surgiuem 1995 em João Pessoa, durante o VIII Encontro Anual da ANPPOM - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Música, motivada tanto pela necessidade de estimular a pesquisa emperfomance musical quanto pela ausência de um veículo de divulgação científica específico nessa área.

A inexistência de uma associação científica nacional de performance musical e a tradição dos intérpretesde se expressarem por meio do discurso sonoro em detrimento do texto, ainda se colocam comoobstáculos à consolidação da pesquisa nessa área e à socialização de seus resultados. Por outro lado,a área de performance musical, representada por instrumentistas, cantores e maestros, responde pelomaior número de pós-graduados em música no Brasil.1 Desta forma, PER MUSI se apresenta comoespaço ideal para divulgar trabalhos resultantes dessas pesquisas.

A diversidade proposta por PER MUSI se reflete nesse primeiro volume. Embora também pretenda,esporadicamente, publicar trabalhos em outras línguas, a Comissão Editorial optou por traduzir doisartigos inéditos, um em inglês e outro em alemão. André Cavazotti nos traz um inusitado estudo sobreArrigo Barnabé, abordando a introdução do serialismo e atonalismo na Música Popular Brasileira. SandraAbdo nos apresenta uma reflexão teórica sobre a execução/interpretação musical, tendo como pano defundo algumas hermenêuticas da filosofia contemporânea. O alemão Tobias Glöckler acompanha osdestinos de uma ária de Mozart até sua recente descoberta, ao lado do renascimento de práticas deperformance do classicismo vienense. Maurício Freire Garcia aborda aspectos técnico-musicais dagravação da flauta, em um texto bastante informativo também para os outros instrumentistas, cantorese profissionais de gravação. Cecília Cavalieri França discute a relação entre a compreensão musicale a técnica, e suas implicações para a performance na educação musical. O americano AnthonyScelba analisa a estrutura de uma obra de câmara serial para voz e contrabaixo em estilo renascentistado compositor canadense Paul McIntyre com texto de William Shakespeare. Agradecemos a PaulMcIntyre por permitir a publicação, em primeira mão, da partitura completa de de Viol Will. CláudioUrgel esclarece a notacão e a performance dos harmônicos naturais com a Técnica de Nodo Duplo novioloncelo, que também se aplica a outros instrumentos de cordas. Flávio Barbeitas focaliza aimportância da transcrição musical, fazendo um paralelo com a tradução na poesia.

A Comissão Editorial de PER MUSI espera receber, com esse volume, sugestões para o aprimoramentoda revista e uma participação crescente em nível nacional para os volumes seguintes.

Fausto BorémEditor-Chefe de PER MUSI ([email protected])

1 Uma avaliação da produção dos cursos de mestrado em música no país mostrou que, das 262 dissertações defendidasno país até dezembro de 1996, 127 foram na área de performance musical, além de 17 cujos títulos refletiam objetos deestudo situados em interfaces da performance com outras áreas. ULHÔA, Martha Tupinambá de (Ed.). Dissertações demestrado em música até 1996. Opus. v.4, n.4, agosto, 1997. p.80-94.

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PER MUSI - Revista de Performance Musical é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde adiversidade e a controvérsia são bem-vindas. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do ConselhoConsultivo.

Comissão EditorialProf. Dr. André Cavazotti (UFMG/FAPEMIG)

Prof. Dr. Cecília Cavalieri França (UFMG)Prof. Dr. Fausto Borém (UFMG)Prof. Dr. Lucas Bretas (UFMG)

Conselho Consultivo do Volume 1:Prof. Sérgio Freire (UFMG)

Profa. Salomea Gandelman (UNIRIO)Dra. Profa. Martha Ulhôa (UNIRIO)

Profa. Sandra Abdo (UFMG)Dra. Profa. Rosângela de Tugny (UFMG)

Prof. Flávio Barbeitas (UFMG)

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Prof. Dr. Francisco César de Sá Barreto

Vice-Reitora Profa. Dra. Ana Lúcia Almeida Gazzola

Pró-Reitoria de Pós-GraduaçãoProf. Dr. Ronaldo Antônio Neves Marques Barbosa

Pró-Reitoria de PesquisaProf. Dr. Paulo Sérgio Lacerda Beirão

Escola de Música da UFMGProf. Dr. Cláudio Urgel Pires Cardoso, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGProf. Dr. Lucas Bretas, Coordenador

Secretárias de Pós-GraduaçãoMestrado: Marli Silva Coura

Especialização: Edilene Oliveira

Projeto GráficoCapa e miolo: Jussara Ubirajara (CAV / CCS - UFMG)

Marca “Per Musi”Criação: Prof. Fausto Borém - Editoração: Magella Perpétuo (CAV / CCS - UFMG)

FotosConservatório: Foca Lisboa (CAV / CCS - UFMG)

Escola de Música: Prof. Fausto Borém

PER MUSI: Revista de Performance Musical - v.1, 2000 - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2000 –

v.: il.; 21,0cm X 29,7cm. Semestral ISSN: 1517-7599

Música - Periódicos. 2. Performance Musical - Periódicos. 3. Interpretação Musical - PeriódicosI. Escola de Música da UFMG

UF G

ISSN: 1517-7599

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SUMÁRIO

O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:as canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé ................................................................... 5Serialism and free atonalism land on Brazilian Popular Music:the songs of the LP Clara Crocodilo by Arrigo Barnabé André Cavazotti

Execução/interpretação musical: uma abordagem filosófica....................................................... 16Music Performance: a philosophical approach Sandra Abdo

Per questa bella mano KV 612 de Mozart: a redescoberta domanuscrito de uma ária de concerto para voz e contrabaixo obligato ea reabilitação de uma prática de performance “de afinação equivocada” ................................ 25Per questa bella mano KV 612 by Mozart: the rediscovery of a manuscript of an aria forsoprano and double bass obligato and the rehabilitation of a”wrong tuning” performance practice Tobias Glöckler

Gravando a flauta: aspectos técnicos e musicais ......................................................................... 40Recording the flute: technical and musical aspects Maurício Freire Garcia

Performance instrumental e educação musical:a relação entre a compreensão musical e a técnica ..................................................................... 52Instrumental performance and music education: the relationship between music understanding and skills Cecília Cavalieri França

Viol Will de Paul McIntyre: anatomia de um madrigal serialcanadense para voz e contrabaixo ................................................................................................. 63Viol Will by Paul McIntyre: anatomy of a Canadian serial madrigal for soprano and bass viol Anthony Scelba

Partitura completa de Viol Will ........................................................................................................ 71Complete score of Viol Will Paul McIntyre

Performance de harmônicos naturais com aTécnica de Nodo Duplo aplicada ao violoncelo ............................................................................ 77Cello natural harmonics performed with the Double-Node Technique Cláudio Urgel

Reflexões sobre a prática da transcrição:as suas relações com a interpretação na música e na poesia ..................................................... 89Reflections upon transcription connected with interpretation in music and poetry Flávio Barbeitas

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O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:as canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé

André Cavazotti

Resumo: Neste estudo, observa-se a relação da utilização dos processos seriais nas canções do LP Clara Crocodilode Arrigo Barnabé com o conteúdo sociológico das letras, onde a marginália da cidade de São Paulo na década de70 é retratada. Conclui-se também que os processos seriais são utilizados como afronta ao tonalismo, como umaconotação da distorção e da desintegração do centro tonal; paralelamente, no texto poético, o ser humano é retratadoem sua forma distorcida e desintegrada.Palavras-chave: serialismo, atonalismo, MPB, música popular brasileira, rock, Arrigo Barnabé, Clara Crocodilo

Serialism and free atonalism land on Brazilian Popular Music:the songs of the LP Clara Crocodilo by Arrigo Barnabé

Abstract: In this article, it is demonstrated that the use of serial procedures in the songs of the LP Clara Crocodilo byArrigo Barnabé is directly related to the sociological content of the lyrics, in which the underground of the city of SãoPaulo in the 1970’s is portrayed. This investigation also demonstrates that the serial procedures used in ClaraCrocodilo represent an affront to tonality, indicating the distortion and disintegration of the tonal center; in the sameway, the lyrics portray human beings in their distorted and disintegrated state.Keywords: serialism, atonalism, MPB, Brazilian Popular Music, rock, Arrigo Barnabé, Clara Crocodilo

O lançamento do primeiro LP de Arrigo Barnabé, Clara Crocodilo, em 1980, causou impacto nocenário da música popular urbana brasileira. Incensado tanto pela grande imprensa quanto pelamídia alternativa, Arrigo Barnabé foi apontado como o primeiro compositor popular a utilizarsistematicamente os procedimentos seriais em suas composições.

A partir do lançamento de Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé passou a ser considerado pelaimprensa como a maior novidade surgida na música brasileira desde a Tropicália, conformetestemunha SOUZA (1982, p.3) em uma nota jornalística: “(…) Arrigo Barnabé surgiu em 1979como o personagem mais polêmico da música brasileira desde a Tropicália, movimento lideradopor Caetano Veloso e Gilberto Gil (…)”.

O caráter inovador que a imprensa lhe atribuiu se deveu, precisamente, a um traço característicoda sua composição: a mistura de elementos da música erudita modernista, aliados a letras ferinassobre a vida nas metrópoles. Para compreender os motivos que teriam levado Arrigo Barnabé aoperar esta mistura de elementos de culturas díspares num mesmo LP, são imprescindíveis, já deinício, breves traços biográficos do compositor. Nascido em Londrina, Paraná, no dia 14 desetembro de 1951, Arrigo vem de uma família de classe média – seu pai era escrivão e sua mãe,dona-de-casa. De formação católica, freqüentou o Colégio dos Irmãos Maristas, e durante cincoanos foi aluno do Conservatório Musical Carlos Gomes, também em Londrina, onde cursou

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disciplinas teóricas e piano. Seu desejo sempre foi ser inventor, primeiramente na área da química,depois em arquitetura e, finalmente, em música.

Durante a adolescência, fez parte de um círculo de amigos onde eram discutidos os mais variadosassuntos, desde matemática até astrologia, ocultismo e música. Deste círculo faziam parte MárioLúcio Cortes, Robinson Borba, Paulo Barnabé – seu irmão caçula – e Antônio Carlos Tonelli,todos futuros colaboradores do LP Clara Crocodilo. Aos dezesseis anos, Arrigo mudou-se paraCuritiba onde fez o curso pré-vestibular. Nesta época, fascinou-se com as obras de Platão, Voltaire,Rousseau, Kafka, Freud e Marx, afastando-se definitivamente do catolicismo.

Nos freqüentes retornos a Londrina, conheceu, naquele mesmo círculo de amigos, obras deStravinsky, Bartók, Stockhausen e Luigi Nono. Neste contexto fez suas primeiras composiçõesexperimentais. Este círculo discutia com insistência um outro tema: os próximos passos da músicapopular brasileira. Era a época da Tropicália1 e da difusão do livro O Balanço da Bossa deAugusto de Campos. Sobre os novos caminhos da música popular brasileira Arrigo Barnabéteceu a seguinte consideração:

“A Tropicália é um negócio que mexe muito com a paródia, não é um movimento propriamentemusical. A loucura é a letra, toda fragmentada. (…) A gente achava, então, que o passoseguinte era mudar a própria música. (…) depois do tropicalismo, só a música atonal tinhafuturo” (ARANTES, 1981, p.17).

Depois de curta estada no Rio de Janeiro, Arrigo mudou-se para São Paulo em 1970, onde cursouum ano de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi neste período que ocompositor começou a se interessar por histórias em quadrinhos, quando visitou uma exposição noMuseu de Arte de São Paulo levado pelo cartunista Luiz Gê que, dez anos depois, faria a ilustraçãoda capa do LP Clara Crocodilo. As histórias em quadrinhos tornaram-se, para o compositor, pontode referência estética e fonte de inspiração de várias personagens de suas canções.

Em 1971, Arrigo participou do Festival de Inverno de Ouro Preto, onde teve aulas de composiçãocom Ernst Widmer. Nesta ocasião, fez parte da montagem da missa Orbis Factor, de AyltonEscobar, fato que o marcou consideravelmente. Em 1975, já tendo composto as canções ClaraCrocodilo e Sabor de Veneno, ingressou no curso de música do Departamento de Música daEscola de Comunicação e Artes da USP, onde estudou composição com Willy Correa de Oliveira,e piano com Caio Pagano. No ano seguinte, montou o conjunto Navalha, integrado por AntônioCarlos Tonelli (baixo-elétrico), Itamar Assumpção (voz e guitarra) e Paulo Barnabé (bateria),antecipando a formação do grupo do LP Clara Crocodilo. Em 1978, abandonou o curso de músicada ECA/USP, onde, segundo afirma, teria sido desestimulado a compor e tocar. Com vistas aoFestival Universitário da Canção da TV Cultura paulista - edição de 1979 -, Arrigo montou aBanda Sabor de Veneno. Interpretando a canção Diversões Eletrônicas, Arrigo e sua bandavenceram o Festival, em meio a vaias. A partir daí, seguiram-se diversas apresentações pelopaís, com o público invariavelmente dividido entre o aplauso e a vaia.

Com a Banda Sabor de Veneno e alguns músicos convidados, Arrigo gravou seu primeiro LP,Clara Crocodilo. A princípio, este LP seria lançado pela gravadora Polygram, dentro da série

1 1969 - o chamado Disco Branco de Caetano Veloso havia sido recém lançado, com as canções Objeto nãoIdentificado, Chuvas de Verão, Acrílico e Carolina, esta, de Chico Buarque.

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Música Popular Brasileira Contemporânea (dedicada à difusão de músicos pouco conhecidos),mas devido a atritos entre o compositor e a gravadora, sua efetivação se deu numa produçãoindependente. Clara Crocodilo foi gravado em dezeseis canais, durante os meses de julho, agostoe setembro de 1980, nos estúdios da gravadora Nosso Estúdio em São Paulo. Foi lançado em15 de novembro deste mesmo ano, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Entretanto,só foi liberado pela censura federal na última semana de dezembro deste mesmo ano.

Na esteira de Arrigo Barnabé, surgiram, em São Paulo, novos nomes na música popular os quaisforam logo agrupados e rotulados pela imprensa como Vanguarda Paulista. Dentre estes,destacam-se Tetê Espíndola, cantora pop-sertaneja, o cantor e instrumentista Itamar Assumpçãoe os grupos Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Rumo. Na época, a jornalista Marília(FIORILLO, 1981, pp. 46-47). assim caracterizou este movimento: “(…) um tanto insolente, poucoafeito à utilização da música como jingle ideológico ou sentimental, de compenetrada formaçãomusical e impecável senso do absurdo”

Em julho de 1981, no auge do sucesso, Arrigo desfez a Banda Sabor de Veneno e interrompeusua carreira para estudar e compor, enquanto continuava a ser sustentado por uma mesada deseu pai. Somente voltou a aparecer novamente em público no final de 1982, com um show quepermaneceu em cartaz por duas semanas no SESC - Pompéia em São Paulo. Este espetáculoserviu de preparação para sua apresentação no Festival de Berlim, onde obteve críticas favoráveis,como a de Tibor Kneif do Der Tages Spiegel: “Arrigo provou que o jazz pode receber grandesidéias da América Latina” (SOUZA, 1982, p.3).

Arrigo assinou com a gravadora Ariola, em 1983, um contrato que incluía o relançamento deClara Crocodilo em nível nacional e a produção de seu segundo LP, Tubarões Voadores. Emborao relançamento de Clara Crocodilo só tenha ocorrido em 1996 pela gravadora Polygram, emformato CD, seu segundo LP, Tubarões Voadores, foi lançado em 18 de maio de 1984, no TeatroSESC-Pompéia, em São Paulo. A temática que permeia o texto poético das dez faixas destenovo LP trata da mesma realidade abordada em Clara Crocodilo, ou seja, a desumanização doser humano nas metrópoles. Essa interpretação é referendada por CARVALHO (1984, p.8),segundo o qual:

“(…) o Kid Supérfluo ou o Office-Boy (esta faixa do disco anterior) são os seres comuns,representam a humanidade, os urbanóides de uma apocalíptica, fria e eletrônica paulicéiadesvairada, que os esmaga e deprime”

Ao contrário de Clara Crocodilo, Tubarões Voadores constituiu-se numa produção cara eesmerada. Foi gravado em 32 canais no estúdio Transamérica, um dos mais bem equipados daAmérica Latina. Arrigo saía, assim, do underground, lançando-se no concorrido mercadofonográfico nacional.

1987 foi o ano de lançamento, pela Polygram, de seu terceiro LP, Cidade Oculta, com a trilhasonora do filme homônimo, dirigido por Chico Botelho. Em 1988, seu quarto LP – Suspeito – eralançado pela gravadora 3M. A maior parte das faixas deste LP contém canções de amorinterpretadas pelo próprio compositor, que buscava, desta forma, atingir um público maior atravésde composições mais simples e acessíveis, sem abandonar, entretanto, a “estética submundana.”Neste sentido, o próprio compositor afirma literalmente que Suspeito é um “disco de mercado.”

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Em 1992 foi lançado Façanhas, seu quinto álbum, remasterizado nos Estados Unidos e lançadoem formato CD pela gravadora independente Camerati. Façanhas alterna composições inéditascom novas versões de canções dos LPs Clara Crocodilo e Suspeito. Em 1998, a gravadoraNúcleo Contemporâneo lançou, em formato CD, a gravação ao vivo da “pseudo-ópera”2 de Arrigo,Gigante Negão, realizada no Palace, em São Paulo, em 1990.

Além destes seis álbuns, Arrigo Barnabé compôs a trilha sonora dos seguintes filmes: O OlhoMágico do Amor (1981) e A Estrela Nua (1985), de José Antônio Garcia e Ícaro Martins; Janete(1983) e Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho; Tensão no Rio (1984), de Gustavo Dahl; NemTudo é Verdade (1985), de Rogério Sganzerla; Vera (1987), de Sérgio Toledo; Lua Cheia (1988)e Ed Mort (1997), de Alain Fresnot; e Oriundi (1999), de Ricardo Bravo. Maiores detalhes sobreos filmes lançados até 1988 para os quais Arrigo Barnabé compôs trilhas sonoras podem serencontrados em PAIVA (1989), e RAMOS (1990). Na área teatral, Barnabé fez a trilha sonora dediversas peças, incluindo Santa Joana, com Estér Góes e Cláudio Mamberti, tendo tambémcontracenado com Patrícia Pillar na peça O Máximo.

Feitas estas observações biográficas, retomamos o fio do presente estudo, que se concentraránas canções do LP Clara Crocodilo, considerado pelo próprio compositor como seu trabalhomais consistente do ponto de vista musical. Foi através desta obra que o atonalismo livre e ododecafonismo aportaram na música popular brasileira.

O LP Clara Crocodilo, que totaliza 42 minutos e 11 segundos de música, contém oito canções:Acapulco Drive-In (4’30’’), Orgasmo Total (4’37’’), Diversões Eletrônicas (7’49’’), Instante (3’30’’),Sabor de Veneno (2’31’’), Infortúnio (4’50’’), Office-Boy (6’59’’), e Clara Crocodilo (7’21’’). Nestas,exceto em Instante, o compositor discorre com crueza e realismo sobre a vida neurótica edesumanizante nas metrópoles contemporâneas brasileiras. O enfoque da contracultura marginalemerge em um texto poético assumidamente influenciado pelas histórias em quadrinhos. A esserespeito, destacamos a esclarecedora consideração de NAZÁRIO (1983, p.30):

“(…) a música de Arrigo apenas parece agressiva: de fato limita-se a tornar transparente aagressividade da realidade em forma – o processo de industrialização total por que passa aAmérica Latina: internacionalizada e urbanizada em seus pontos nevrálgicos, só pode mantero ritmo de crescimento sobre a ruína de suas (boas ou más) tradições. (…) As novas geraçõessão de mutantes, que se arrastam do centro para a margem, da cultura para a natureza.”

A inexistência de partituras das oito canções e a constatação da dificuldade de estabelecercorrelações atonais e dodecafônicas recorrendo apenas à audição do LP, impuseram-nos umaprimeira exigência: a confecção das partituras.

Para tal foram utilizadas três fontes primárias:1) fragmentos de partituras de cinco das oito canções (Diversões Eletrônicas, Sabor de Veneno,

Infortúnio, Office-Boy, e Clara Crocodilo), remanescentes da época da gravação, fornecidospelo compositor (Ex.1, que contém a indicação de uma ocorrência de uma série dodecafônica,seguida de sua versão retrógrada);

2) a partitura quase completa da canção Clara Crocodilo fornecida por Hyléa Ferraz, flautista ecantora, conterrânea do compositor (Ex.2);

2 Termo utilizado pelo compositor.

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3) o preenchimento, pelo compositor, das lacunas existentes nas partituras, efetuado emdois encontros que se realizaram em sua residência em São Paulo, em dois de fevereiro ecinco de março de 1993.

A análise do texto musical das oito canções do LP Clara Crocodilo evidenciou que todas sãocomposições seriais. Delas, as duas canções mais antigas, Clara Crocodilo (1972) e Sabor deVeneno (1973), são baseadas em séries de oito e seis alturas, respectivamente, indicando queo compositor utiliza a técnica dodecafônica apenas a partir de 1974. As demais (Acapulco Drive-In, Orgasmo Total, Instante, Infortúnio e Office-Boy) são dodecafônicas.

Os processos seriais empregados por Arrigo Barnabé nestas canções são aquelesuniversalmente reconhecidos: transposição, retrogradação, inversão, rotação, multiplicação,fragmentação, operação de derivação e operação de desmembramento (vide definições destestermos no glossário ao final; e vide também Ex. 01, que contém uma ocorrência de uma sériedodecafônica, seguida de sua versão retrógrada). Observou-se, também, indícios de tonalismoem três canções (Acapulco Drive-In, Instante e Infortúnio) e de atonalismo livre em seis seqüênciasde alturas de três canções (Orgasmo Total, Office-Boy e Infortúnio).

Através de uma narrativa semelhante àquela das histórias em quadrinhos, Arrigo Barnabé retrata,ao nível do texto poético, a marginália paulistana na década de 70, ressaltando a forma distorcidae desintegrada na qual vive o ser humano nas metrópoles contemporâneas. Para conjugar osentido do texto poético com o serialismo e a atonalismo livre, Arrigo Barnabé utilizou de distorçãoe desintegração do centro tonal, desnorteando os ouvintes tradicionais da música popular urbanatonal, aqueles a quem assumidamente se destina este LP.

Ex.1. Três fragmentos da canção Infortúnio de Arrigo Barnabé.

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Ex.2. Trecho do manuscrito da canção Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé, compassos 27-28.

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É possível traçar um paralelo entre as motivações que levaram Arnold Schoenberg, o sistematizadordo serialismo, e Arrigo Barnabé a incursionarem pela atonalidade. A partir de 1906, Schoenbergcompôs obras hibridamente tonais e atonais como a Sinfonia de câmara op.9 (1906), o SegundoQuarteto de Cordas op.10 (1908) e Três Peças para Piano op.11 (1909). Sua primeira obraatonal, onde as dissonâncias são finalmente emancipadas e as funções harmônicas dissolvidas,é o Livro dos Jardins Suspensos op.15 de 1908-9, uma coletânea de canções sobre textos deStefan George. É também de George a frase que abre o último movimento do Segundo Quartetode Cordas de Schoenberg: “Eu sinto o ar de outro planeta”. Sobre este movimento, dizSchoenberg:

“O quarto movimento, Enlevo, começa com a introdução que descreve a partida da Terra emdireção a outro planeta. Aqui o poeta visionário previu sensações, que em breve talvez sejamconfirmadas. Livrando-se da força de gravidade – atravessando nuvens em direção ao ar cadavez mais rarefeito, esquecendo todas as atribulações da vida terrena – isto é o que se tentailustrar nesta introdução. Quando a voz inicia ‘Eu sinto o ar de outro planeta’, o cenário musicalestá estabelecido neste clima e tudo o que se segue é suave e terno, mesmo quando conduzao clímax por meio de um movimento ascendente (…)” (RAUCHHAUPT, 1971, pp. 48-51).

Esta imagem pode ser comparada à segunda estrofe (versos 7 a 13) da canção Sabor de Veneno,de Arrigo Barnabé, composta em 1973, e que é uma de suas primeiras incursões pelo serialismo,ainda não dodecafônico:

7 Não sei se ela veio da luaOu se veio de Marte me capturarsó sei que quando ela me beija

10 eu sinto um gosto(uma coisa estranha, um negócio esquisito)meio amargo do futurosabor de veneno

Tanto no poema utilizado por Schoenberg, quanto nesta estrofe da canção de Barnabé, o objetoque desperta o desejo não pertence à dimensão terrestre. Porém, enquanto as imagens utilizadaspor Schoenberg descrevem a chegada a um outro planeta, na canção de Arrigo Barnabé a açãoé dominada pelo ser extra-terreno, que captura o narrador. Assim, se o narrador em Schoenberg/George se liberta do cotidiano, em Arrigo Barnabé, ao contrário, o narrador é escravizado poreste ser estranho, cujo beijo tem “um gosto (…) meio amargo do futuro”. Ou seja, em Barnabénão há a descoberta pessoal de um outro mundo de sensações suave e terno, como emSchoenberg, mas a descoberta, entre o fascínio e o desespero, de um futuro amargo, com saborde veneno.

Ao contrário de Schoenberg, que utiliza o atonalismo e o dodecafonismo com um sentido decontinuidade histórica, Arrigo Barnabé utiliza-os como um signo apocalíptico, uma afronta, umaruptura com o tonalismo. Daí ocorre que o atonalismo e o serialismo de Arrigo Barnabé se referemretrospectivamente ao tonalismo, justamente pela conotação de confronto, enquanto que oserialismo de Schoenberg tem uma conotação prospectiva de libertação.

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Arrigo Barnabé partiu de uma concepção particular da história da música popular brasileira ao“intuir,” em 1972, que o atonalismo e o serialismo seriam os passos seguintes após a Tropicália,dizendo a esse respeito:

“Eu e o Mário [Cortes] achávamos que depois do Tropicalismo o que tinha que acontecer é oatonalismo na música popular, que tinha que pintar uma coisa atonal. Isso porque os carastinham chegado num ponto, mas não tinham rompido com a linguagem tonal, não tinha umacoisa organizada” (DIAS, 1981, p.9).

Apesar da afirmação por ele feita em 1983, “eu já vejo tudo com o filtro histórico” (FALA, 1983,p.9), as duas décadas passadas desde o lançamento do LP Clara Crocodilo não permitem afirmarque sua intuição histórica tenha se confirmado. Efetivamente, há a evidência inicial de que ClaraCrocodilo não levou um número significativo de compositores populares a utilizarem o atonalismoe o serialismo em suas composições. Além disso, pelo menos dois outros motivos justificam anão confirmação da intuição histórica de Arrigo Barnabé:

1. ao afirmar que depois da Tropicália o passo seguinte na música popular seria a utilização doatonalismo e do serialismo, Arrigo Barnabé fez uma transferência direta à música popular brasileiraurbana dos acontecimentos de um outro tipo de música, pertencente a um outro universo cultural,determinado por outras formas de relações sociais;

2. o conceito de “necessidade histórica,” baseado na idéia de que a história é unidirecional, édatado e deixou de ter validade:

“(…) nossa enorme riqueza de informação sobre o passado, juntamente com a decepção coma idéia de processos históricos necessários, teleológicos, fazem com que o passado pareçatão complexo e desconcertante (senão tão incerto) quanto o presente” (MEYER, 1967, p.150).

De qualquer modo, a utilização do atonalismo e do serialismo como afronta ao tonalismo, nascanções do LP Clara Crocodilo, encontra motivação na idéia central do texto poético, que discorresobre a marginália de São Paulo na década de 70. O ser humano é retratado, no texto poético,em sua forma distorcida e desintegrada própria de uma sociedade em dissolução, de modoanálogo à utilização do atonalismo e do serialismo, se estes forem entendidos como uma distorçãoe desintegração do centro tonal, princípio agregador central do tonalismo.

A narrativa das oito canções do LP Clara Crocodilo, direcionada a todas as classes, objetivachocar o cidadão, confrontando-o com a marginalidade, conforme declaração do própriocompositor:

“A gente queria fazer uma música de que as pessoas não gostassem, mas que fosse bela. Aspessoas a que estou me referindo são a alta burguesia, o chefe de polícia, a dona-de-casacaretona” (ARANTES, 1981, p.17).

A idéia de que o atonalismo e o serialismo, nestas oito canções, foram utilizados com o objetivode provocar o ouvinte, mais especificamente o ouvinte de música popular acostumado aotonalismo, traz à tona a dificuldade intrínseca deste tipo de música à percepção e à cogniçãoauditiva, como observa MEYER (1967, p.278):

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“O aparecimento de eventos previsíveis e regulares gratifica o ouvinte, dando-lhe um senso decontrole e de segurança psíquica (…). É provável que a nova música irrite os ouvintes nãoporque ofenda sua sensibilidade estética mas porque sua segurança psíquica – seu senso decontrole – é seriamente ameaçado”3 .

Esta irritação, provocada pela dificuldade de previsão dos eventos, é um dos objetivos destascanções, confirmado pelo conteúdo do texto poético. A agudeza dessa irritação, no entanto, éamenizada pelo alto grau de redundância no texto musical, resultado de diversas repetições dedeterminadas seqüências de alturas e de padrões rítmicos. Do mesmo, recupera-se um mínimode “segurança psíquica” através de uma compreensão facilitada pela estrutura formal – simples eevidente – das canções.

As oito canções do LP Clara Crocodilo não alcançaram o sucesso radiofônico esperado pelocompositor: “A gente queria fazer música erudita contemporânea, mas que pudesse ser tocadano rádio, com guitarra elétrica” (ARANTES, 1981, p.17). Este sucesso é inversamente proporcionalà repercussão de Clara Crocodilo na imprensa, onde lhe foram dedicados importantes e generososespaços, como uma entrevista nas páginas amarelas da revista Veja.

O LP Clara Crocodilo ocupa lugar sui generis na música popular urbana brasileira. Ao discorrerno texto poético sobre uma realidade social específica e estranha aos temas da música popularde então (a marginália paulistana na década de 70) e ao utilizar no texto musical a técnicacomposicional serial, Arrigo Barnabé produziu uma obra complexa. Na sua unidade entre textopoético e musical e ao lançar mão de recursos composicionais fora do ordinário, o LP ClaraCrocodilo abre-se a perspectivas analíticas e assume conotações históricas que ultrapassam omero fruir do entretenimento e justificam as hipérboles que a imprensa tem dedicado ao compositor.

GLOSSÁRIOOperação de Derivação: processo no qual uma nova série é gerada a partir de segmentos relacionados por

transposição. Esta definição é parafraseada de WUORINEN (1988, p.112).

Operação de Desmembramento: processo de segmentação da série em seqüências de alturas originalmentenão adjacentes. Esta definição é, novamente, parafraseada de WUORINEN (1988, p.116).

Operação de Fragmentação: processo de segmentação de uma seqüência de alturas adjacentes (cf. WUORINEN,p.28, 1988).

Operação de Inversão: operação aritmética na qual alturas são substituídas por seus respectivoscomplementares, definidos pela diferença entre as alturas originais e o número inteiro 12 (cf. WUORINEN,p.89, 1988).

Operação de Multiplicação: operação aritmética na qual as alturas são multiplicadas por um número inteiro.Se o resultado for maior que 12, calcula-se o mod 12 desse número, ou seja, subtrai-se 12 do resultado atéque este seja menor que 12 (cf. WUORINEN, p.98, 1988).

3 Tradução do autor.

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Operação de Retrogradação: reversão da ordem das alturas de determinada seqüência de alturas(cf. WUORINEN, p.90, 1988).

Operação de Rotação: permutação cíclica na qual, através de sucessivos estágios de transformação, cadaelemento da série avança uma posição, de tal forma que o elemento que avança de uma extremidade dasérie é deslocado para a outra extremidade; trata-se de um processo circular onde o número de estágiospossíveis corresponde ao número de elementos a serem rotados (cf. WUORINEN, p.102, 1988).

Operação de Transposição: operação aritmética na qual um determinado número inteiro (representando ointervalo [mod 12] de transposição) é adicionado às alturas de uma seqüência de alturas (cf. WUORINEN,pp.86-87, 1988).

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André Cavazotti, natural de Londrina, Paraná, é Professor de Análise Musical e Violino na Escolade Música da UFMG, com bolsa recém-doutor pela FAPEMIG. Doutor em Música (1998, bolsado CNPq) pela Boston University, EUA, sua tese de doutorado consiste em um estudo estilísticosobre as Sonatas para violino e piano de M. Camargo Guarnieri. Mestre em Música pela UFRGS,estudou violino com o Prof. Marcello Guerchfeld e, sob orientacão do Dr. Celso Loureiro Chaves,defendeu sua dissertacão de mestrado, que é uma investigação sobre a utilização de processosseriais nas canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé.

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Execução/Interpretação musical: uma abordagem filosófica

Sandra Neves Abdo

Resumo:Este artigo discute o estatuto hermenêutico da execução/interpretação musical, tomando como ponto departida duas concepções opostas e bem conhecidas: 1) a que defende uma estrita fidelidade à intenção do compositor;2) a que concede total licença aos executantes. Contra ambas, a autora defende que o critério diretivo legítimo decada execução é a própria obra, não as intenções do compositor ou do intérprete. Para a demonstração, recorre àteoria da interpretação de Luigi Pareyson, coteja suas teses com as acima citadas e examina sua aplicação aoassunto.Palavras-chave: obra, execução/interpretação, fidelidade, licença interpretativa.

Music performance: a philosophical approachAbstract: This paper discusses the hermeneutic status of musical performance, starting from two opposite and wellknown conceptions: 1) one which sustains strict fidelity to the composer; 2) another confers total license to theperformers. In opposition to both, the author asserts that the guide to a genuine interpretation is the musical workitself, not the composer’s or the performer’s intentions. To support her assumptions, she brings up Luigi Pareyson’sinterpretation theory comparing his thesis with the above-mentioned conceptions and examines its application to thesubject.Key words: musical work, performance, fidelity, license.

Que tipo de atividade é a execução musical? Uma livre “tradução”, entregue à subjetividade decada executante? Ou, ao contrário, uma atividade cujo fim é a fiel “reevocação” da vontade docompositor?

Questões como estas compõem uma problemática complexa, polêmica e envolvente, sobre aqual debruçam-se as mais conceituadas correntes estéticas e hermenêuticas, desde o início doséculo XX, mas que, até hoje não recebeu adequada atenção por parte da comunidade acadêmicamusical. Dela ocupo-me no presente artigo, analisando suas divergências mais freqüentes everificando a legitimidade de seus pressupostos. As premissas estéticas de minha análiseinspiram-se na “estética da formatividade”, do filósofo italiano Luigi Pareyson1 , particularmenteem sua “teoria da interpretação”.

A exposição assim se divide: I. Fidelidade ao autor versus licença interpretativa: um dilema bemconhecido; II. O conceito pareysoniano de interpretação; III. Aplicações ao dilema entre fidelidadee licença interpretativa.

1Luigi Pareyson (1918-91) tem uma extensa obra filosófica, em grande parte desconhecida do leitor brasileiro.Contudo, seu pensamento estético encontra-se exposto em duas obras centrais, já traduzidas para o português:Estética; teoria da formatividade. Petrópolis: Vozes, 1993 e Os problemas da estética. 3ed. São Paulo: MartinsFontes, 1997.

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I. Fidelidade ao autor versus licença interpretativa: um dilema bem conhecidoFidelidade ao autor e licença interpretativa são os dois pólos de uma divergência bem conhecida,em torno da qual dividem-se interessados e estudiosos da estética e da hermenêutica da arte.Paradigmaticamente, refiro aqui o primeiro pólo à estética neo-idealista de Benedetto Croce, e osegundo, às teorias relativistas de Giovanni Gentile, H.-G. Gadamer, H.-J. Koellreutter, RolandBarthes, Jacques Derrida e Richard Rorty.

A tese da “reevocação” do significado autoral teve o seu auge durante a primeira metade doséculo XX, com a larga difusão do “espiritualismo estético” de Benedetto Croce, mas ainda temmuitos adeptos no campo da música erudita.

Como se sabe, Croce define a arte como “síntese de sentimento e imagem”, criação cuja essênciase esgota na interioridade do espírito e que, assim sendo, nada tem de corpóreo ou físico. Nãoque o conhecido filósofo ignore a necessidade de exteriorização em um corpo físico, mas considera-a como uma etapa secundária em relação ao momento produtivo, importante apenas para fixar ecomunicar o que, de outro modo, ficaria restrito à memória do autor. (CROCE, 1945, p.3-25).

Quanto à execução musical, afirma Croce que seu fim primeiro é “reevocar” fielmente o significadooriginal, recomendando-se, para tanto, uma execução tão impessoal e objetiva quanto possível,respaldada no exame da partitura e na investigação histórico-estilística. Como se sabe, aindahoje, é esse o ponto de vista vigente na maior parte das escolas de música, perpetuando-seacriticamente, geração após geração, a idéia de que o executante tem como dever “tocar comoo próprio compositor tocaria”. É, pois, mais que hora de refletir sobre os pressupostos filosóficosdesse parâmetro interpretativo. Faço-o mais adiante.

Contrapondo-se radicalmente ao ponto de vista acima delineado, a Filosofia dell’Arte, de GiovanniGentile defende um “atualismo” estético, cujo argumento central é o seguinte: a obra de arte sópode reviver mediante uma interpretação pessoal, que a reelabora indefinidamente, tendo comoúnico critério a subjetividade de quem interpreta. Desse modo, longe de ser uma fiel “reevocação”da intenção autoral, a execução/interpretação é, mais exatamente, uma livre “tradução”, umaoperação subjetiva, da qual resultam “criações” sempre novas e diversas. Com esse“contingentismo” estético, ganha força, no âmbito da cultura italiana, o trocadilho que fala dointérprete como “traduttore”, logo, ”traditore” da intenção original.

Mas a ênfase na subjetividade e historicidade dos atos humanos não fica restrita ao argumentogentileano, encontrando desenvolvimentos teóricos diversos como, por exemplo, o chamado“relativismo moderado”, de H. G. Gadamer. O significado original, diz Gadamer, está para sempreperdido no tempo. A compreensão ocorre do ponto de vista do presente e de nada adianta tentarresgatar o passado. Mais precisamente, a compreensão se efetiva como uma “fusão dehorizontes”, isto é, passado e presente (autor e intérprete), juntos, constroem, a cada vez, umnovo significado.

À tese da fidelidade ao compositor, Gadamer faz uma dura crítica: tomar como referênciaprivilegiada o significado dado pelo autor e seu tempo (como fazem, por exemplo, os que tocamcom instrumentos da época, acreditando, assim, estarem mais próximos da obra e serem mais

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verdadeiros), além de acarretar um esforço inútil (pois tal significado é inalcançável), implica umdesvio, um afastamento, pois significa relacionar-se com uma mediação e, por conseguinte,distanciar-se duplamente da obra e da sua verdade. O significado do autor e seu tempo é apenasum dentre os vários que a obra recebe ao longo de sua trajetória histórica, sendo todos igualmentelegítimos. (GADAMER, 1977, p.165).

Em certo sentido, também o relativismo de H. J. Koellreutter pode ser qualificado de “moderado”:o executante tem um papel eminentemente ativo e criador ⎯ a interpretação é “decodificaçãodos signos musicais”, logo operação que se define como “tradução subjetiva” (KOELLREUTTER,1985, p.78) ⎯, mas o processo interpretativo não fica inteiramente entregue à sua subjetividade;ele deve “perceber” as “relações sonoras” criadas pelo compositor. (KOELLREUTTER, 1990,p.27).

Já o filão relativista mais radical, dito “desconstrucionista” 2 , tem como tese central que o sentidode um texto está em sua “destinação”, não em sua origem, quer dizer, não é o autor, e sim o leitorque “cria” o sentido, a cada vez, de modo sempre diverso. Não há centro significante fixo eprivilegiado, nem tampouco “fusão de horizontes” ou algum outro tipo de conciliação.

Dois conceitos ⎯ o de “autor” e o de “obra” ⎯ são especialmente questionados, particularmentepor Roland Barthes e Jacques Derrida. O que tradicionalmente se chama de autor, de compositor,enfim, de sujeito do ato formativo, dizem os dois conhecidos “desconstrucionistas”, não passa deum mero intermediário de pontos de vista alheios. Resumindo, o autor é uma ficção, que deveser urgentemente abandonada. Por razões semelhantes, a noção tradicional de “obra” (entendidacomo uma unidade fechada, da qual emana um significado único) é substituída pela noção de“texto”, mais adequada para designar o que, com efeito, é um “espaço multidimensional”,“intertextual”, constituído pela absorção e transformação de vários outros textos. Todo “texto” éalgo fragmentário, inacabado e incoerente, um fluxo contínuo de valores, sem sentido próprio,receptivo a qualquer intervenção, em suma, um “palimpsesto” (escrito sob o qual se pode sempredescobrir escritos anteriores, nenhum deles original).

O “pragmatista” Richard Rorty3 enfatiza essa posição, preconizando que os textos (literários,musicais, pictóricos etc.) destinam-se a um simples “uso” por parte dos leitores/intérpretes,segundo a utilidade que possam ter, de acordo com os propósitos pessoais de cada um.

Naturalmente, existem outros desenvolvimentos e variações, tanto da tese da fidelidade ao autorquanto da preeminência do intérprete. Não cabe aqui mencioná-los exaustivamente, devido ànatureza e objetivos deste trabalho. Exponho, a seguir, os pontos principais da teoria dainterpretação artística, de Luigi Pareyson, à luz dos quais pretendo desenvolver minhaargumentação.

2 Para uma visão geral das teorias desconstrucionistas, em especial sobre a noção de “morte do autor”, vide WOLFF,1982, p.132-49.

3 A célebre conferência de Richard Rorty, intitulada “A trajetória do pragmatista”, encontra-se transcrita no livro ECO,1993, p.105-27.

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II. O conceito pareysoniano de interpretaçãoAntes de tratar do conceito de interpretação artística em Luigi Pareyson, é fundamental situar sua“estética da formatividade” em relação às concepções acima mencionadas.

De modo geral, Pareyson contrapõe-se às difundidas concepções neo-idealistas da arte como“forma de conhecimento” e “forma de expressão”. Longe de ser uma atividade puramente espiritual,uma “espiritualidade formada”, a arte é, pelo contrário, uma “fisicidade formada”, sendo-lhe,portanto, essencial o “processo de extrinsecação física”. Desse prisma, os conceitos de forma eformatividade aparecem como os mais adequados para definir a arte e a atividade artística: aarte é “forma”, sic et simpliciter, sem genitivo e sem complemento, puro “êxito” de um exercíciointencional e preponderante da “formatividade” (atividade humana, que alia, indivisivelmente,invenção e produção de formas).4

Não se trata, note-se bem, de uma concepção formalista. No ato da criação, o artista exercitapreponderantemente a sua intencionalidade formativa, ou seja, a sua “formatividade”, mas istonão ocorre de modo isolado. Ao contrário, toda a sua vida espiritual (que é indivisível) contribuipara o êxito dessa “formação”. Assim sendo, em seu “modo de formar”, ou seja, em seu “estilo”(que é, naturalmente, ao mesmo tempo pessoal e histórico), concretiza-se toda a sua vontadeexpressiva e comunicativa; e esta introduz-se na obra já sob a forma de arte, ou seja, comoestilo, valor de organicidade. Precisamente por isso, até o traço mais discreto, o detalhe maisdespretencioso, esta carregado de significado, embebido de seus sentimentos, aspirações econvicções, e portanto “... diz, significa, comunica alguma coisa” (PAREYSON, 1997, p.61).5

É fácil perceber que “forma” não é aqui nem um belo “rosto físico” de que se reveste determinadoconteúdo espiritual, nem tampouco um mero arcabouço, desenraizado e vazio de sentido, masum todo orgânico, internamente coerente, e que se exibe, ao mesmo tempo, como contraçãodialética de valores diversos (assuntos, temas, ideologias, técnicas, sentimentos, cores, timbres,harmonias, ritmos etc.). Logo, o seu “acabamento” não se apresenta como “perfeição estática”,mas como “perfeição dinâmica” e conflitual, que carrega em si a tensão permanente de seuselementos constitutivos.

No centro da argumentação pareysoniana, reside o princípio da coincidência de fisicidade eespiritualidade na arte, pelo qual, não há, na obra, sinal físico que não esteja carregado de

4 Na base dessa proposta está a idéia, herdada de Augusto Guzzo, de que toda a vida humana possui caráteressencialmente formativo, ou seja, de que toda ação humana gera formas que, tanto no campo moral como no dopensamento e da arte, são criações orgânicas e perfeitas, autônomas, dotadas de leis internas, de compreensibilidadee exemplaridade. A esse pressuposto básico, Pareyson integra duas outras idéias fundamentais, erigindo sobreelas a sua teoria: “a idéia do caráter ‘formativo’ de toda a operosidade humana e a idéia da arte como ‘especificação’dessa universal formatividade.” (PAREYSON, 1991, p.7).

5 Em termos semiológicos, é a isto que Umberto Eco se refere ao dizer que a mensagem estética é fundamentalmente“ambígua” e “autorreflexiva”, quer dizer, é uma mensagem que, no ato mesmo em que aponta para referentesexternos, atrai a atenção do destinatário para a sua própria forma, abrindo-se consequentemente, a inúmerasdecodificações (ECO, 1971, p.51-7).

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significado espiritual nem significado espiritual que não seja presença física. Contra as estéticasconteudistas e, em particular, contra a tese idealista de que a obra de arte é “espiritualidadeformada”, “representação sensível da Idéia”, propugna Pareyson que ela é “matéria formada”,portanto, coincidência perfeita de matéria, forma e conteúdo: a forma é matéria formada, a qualé, em si mesma, “conteúdo expresso”. Explica-se, assim a sua plurissemanticidade constitutivae inesgotável.

Executar, interpretar, compreender uma obra de arte ⎯ seja ela musical, pictórica, escultórica,poética, teatral, cinematográfica etc. ⎯ não significa, portanto, alcançar um significado quetranscende a sua fisicidade (como se esta fosse simples meio expressivo, representativo oucognoscitivo), mas fazer falar a sua própria realidade física com sentidos espirituais. A arte é,sim, expressiva e comunicativa, mas expressa e comunica, antes de tudo, a si própria, pois é deseu ser forma que se irradia, essencialmente, a sua plenitude revelativa e expressiva, e não deeventuais referentes externos. Dizer que a arte é forma significa dizer que ela é, ao mesmotempo e indivisivelmente, uma forma e um mundo: “... uma forma que não exige valer senãocomo pura forma e um mundo espiritual que é um modo pessoal de ver o universo. (PAREYSON,1997, p.44).

Ademais, se a forma artística não é uma “perfeição estática” e sim “dinâmica”, marcada pelatensão interna de seus componentes, o que se requer de seus intérpretes é uma consideraçãoigualmente “dinâmica”, “processual”, em outras palavras, uma percepção capaz de penetrar oseu movimento interno e com ele dialogar.

A lei única da interpretação é, como já se pode perceber, a própria obra. Seu único critério diretivo,a “congenialidade”, a sintonia que o intérprete deve ter com ela, para poder colhê-la não como“perfeição estática”, mas como organicidade viva e processual.

A personalidade do executante, longe de ser um dado negativo, uma “lente deformante”, é umadequado canal de diálogo, que, quando convenientemente explorado, revela-se extremamentepositivo e profícuo. Naturalmente, o intérprete pode falhar e deixar que suas reações e pontos devista assumam foros de parâmetro interpretativo, sobrepondo-se à obra. Mas, nesse caso, abem se ver, nem mesmo se trata de “interpretação”, pois o que ocorre é a própria falência desseato como tal. A menos que se trate de um outro tipo de atividade, intencionalmente“superinterpretativa”6 , como a “releitura”, o “arranjo”, por exemplo, cujo estatuto é diverso dainterpretação.

A obra e o intérprete são, pois, os dois pólos fundamentais da relação interpretativa. Apresentam-se eles intimamente unidos por um vínculo dialético essencial, em virtude do qual não se podefalar de nenhum dos dois fora dessa relação: a intencionalidade do intérprete, sendo ao mesmotempo ativa e receptiva, só se define como tal em contato com obra; a intencionalidade da obra,por sua vez, só se revela quando a intencionalidade do intérprete a capta como tal. Tratando-sede uma relação interativa, que tem a obra como ponto de referência, não se justifica qualquer

6 O conceito de “superinterpretação” é exaustivamente discutido em: ECO, 1993, p.53-77.

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pretensão de “neutralidade”, de “impessoalidade”, de “contemplação desinteressada”7 ; nemtampouco de liberdade arbitrária. Com tal proposição, concorda Umberto Eco: “Entre a intençãodo autor e o propósito do intérprete existe a intenção do texto” (ECO, 1993, capa); tal intenção “...não é revelada pela superfície textual [...] É preciso querer ‘vê-la’. Assim é possível falar da intençãodo texto apenas em decorrência de uma leitura por parte do leitor.” (ECO, 1993, p.74).

Especialmente no que se refere ao questionamento da hermenêutica historicista, é decisiva umaoutra tese pareysoniana, qual seja, a de que o fundamento da multiplicidade das interpretaçõesnão é somente quantitativo (quer dizer, não se trata de uma questão apenas numérica), mastambém qualitativo. Se as interpretações são múltiplas, explica Pareyson, não é simplesmenteporque são incontáveis os intérpretes ao longo da história, mas, fundamentalmente, porque osdois pólos da relação interpretativa, pessoa e obra, são inexauríveis, inesgotáveis em seusaspectos, perspectivas e possibilidades. O fundamento da infinidade da relação interpretativa é,então, a própria infinidade e dialeticidade dos dois termos que constituem essa relação: intérpretee a obra revelam-se em toda a sua inteireza em cada ato de interpretação, sem que se esgotemas infinitas possibilidades que ambos apresentam. Assim entendida, a multiplicidade dasexecuções/interpretações convive perfeitamente com a noção de “unidade da obra”, e mesmo aconfirma e consolida. Personalidade e multiplicidade das interpretações deixam de ser elementosnegativos, indicativos de insuficiência, arbitrariedade, subjetivismo, ausência de lei ou critériointerpretativo, para, ao contrário, revelarem-se como índice de riqueza.

Nesse sentido, conclui Pareyson: a interpretação da arte é uma “posse”, que, se por um lado nãoé definitiva, por outro, é plena e verdadeira. E se não é definitiva, não é porque seus termossejam “fragmentários”, “inacabados”, mas porque são “inexauríveis”.

III. Aplicações ao dilema entre fidelidade e licença interpretativa“Tocar como o próprio compositor tocaria”, diz o velho chavão, já mencionado na primeira partedeste escrito. Quero questioná-lo, mas não com base em argumentos relativistas, tais como ahistoricidade e subjetividade do processo, as mudanças contextuais, o diverso estágio tecnológicodos instrumentos, pois estes mantêm a discussão num plano de genericidade e superficialidade.Vou direto ao que penso serem aqui os pontos fundamentais.

Primeiramente, uma breve consideração sobre a natureza da historicidade da arte. Não há comodesconhecer que a obra nasce numa data precisa, sendo condicionada por sua época e pelapersonalidade de seu autor, mas é fundamental recordar que essa historicidade não é tal que acircunscreva dentro do seu tempo. A obra de arte nasce já especificada, o que significa que éenquanto arte que ela não só emerge da história, mas nela reentra, continuando a fazer história:contribuindo para configurar a fisionomia de sua época e vivendo além dela, através das infinitasleituras, interpretações e execuções a que se oferece ao longo dos tempos, e que são não a suasimples “reevocação”, mas a sua própria vida: “... o seu modo natural de viver e de existir”(PAREYSON, 1991, p. 238).

7 Trata-se aqui da célebre noção kantiana. (KANT, 1995, p.45-89)

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Quanto à tese croceana de que a reevocação fiel é condição para que a música continue a existirconcretamente, sem se perder no esquecimento da história, cabe interpelá-la com outro poderosoargumento de Pareyson: a execução não é um momento externo, secundário, cujo fim seja resgataro momento originário, com fins de comunicação e preservação, mas um momento essencial econgênito ao processo de criação. A obra musical nasce executada, ou seja, nasce já comorealidade sonora, portanto, já especificada como tal. Assim sendo, a execução não lhe acrescentanada que já não seja seu, que já não pertença à sua natureza.

Mas, há ainda outros aspectos que fragilizam a eleição do autor como cânone sagrado dasexecuções. Vale a pena discuti-los, pois são geralmente acolhidos e perpetuados de modointeiramente acrítico.

Em primeiro lugar, está implícito nesse tipo de concepção o raciocínio equivocado de que oponto de vista do autor seria como que algo fixo, imutável, passível de repetir-se em duas execuçõessucessivas, o que implica não só um desconhecimento da mutabilidade e irrepetibilidadeconstitutivas dos atos humanos, como também um empobrecimento da própria noção de obra dearte, na medida em que esta é tomada como mero veículo comunicativo de determinada intenção,portanto, como algo “estático”, fechado em torno de um significado que só pode ser unívoco.

Aos defensores da tese da “reevocação” fiel, talvez soe como heresia afirmar, por exemplo, que:“Temos de respeitar o texto, não o autor enquanto pessoa assim-e-assim” (ECO, 1993, p.76).Todavia, não se trata aqui de uma diminuição da figura do autor, mas, antes, de uma valorizaçãode seu potencial criativo: a preeminência concedida à obra atesta que ele, o autor, foi de fatocapaz de criar algo novo, algo que, embora seja como que a sua memória permanente, deleindepende para sempre, impondo-se como uma organicidade viva, reguladora de seu próprioprocesso interpretativo.

Sintonizar-se com essa presença do autor em sua obra é uma possibilidade permanente para ointérprete, que só precisa introduzir-se no próprio tecido composicional, ouvindo e interpretandoas solicitações e sugestões que a própria obra lhe faz. Por meio desse diálogo íntimo,fundamentalmente, e não através do recurso a dados externos, o intérprete pode colher a obraem sua verdade própria e, ao mesmo tempo, como memória viva e indelével de quem a fez. CitoPareyson:

“Aquilo que é profundo não é o que se encontra atrás, ou dentro, ou sobre, ou além doaspecto sensível da obra, mas é o seu próprio rosto físico, todo evidente na sua insondáveldimensão espiritual: geheimnisvoll offenbar, como diria Goethe, isto é, misterioso e patentea um só tempo.” (PAREYSON, 1997, p.157)

Ponto de escândalo entre os que defendem a “reevocação” da intenção autoral é o questionamentode Gadamer e Pareyson à execução com instrumentos antigos, ou melhor, da época em que aobra foi composta. Tal prática, concordam os dois filósofos, não é garantia nem condição deautenticidade interpretativa, mas, pelo contrário, fator de distanciamento, e mesmo de mistificação.O emprego de instrumentos e modos de execução antigos é uma opção sob certos aspectosinteressante, mas não se pode ignorar seus limites hermenêuticos. Sobretudo é preciso ver quenão se trata de um contato direto, natural, com a obra, mas, ao contrário, de um contato mediado,

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indireto, artificial, regido pelo parâmetro de uma outra execução/interpretação, que, além disso,não é, necessariamente, a mais verdadeira. Mesmo que os propósitos sejam honestos e queassim se busque uma execução mais autêntica, o que de fato se faz é uma simulação, um “faz deconta” que se está no passado e que se pode verdadeiramente interpretar por intermédio de umavisão de mundo e de uma sensibilidade alheias, emprestadas. Repito: é uma opção, mas não amais apta a colher a verdade da obra.

Passando aos argumentos relativistas e “desconstrucionistas”, uma das lições de Pareyson éque, se a interpretação é continuamente aprofundável, não é porque seja incontornavelmentesubjetiva, “parcial”, “aproximativa”, mas porque o seu objeto, a obra, é inexaurível, recusando,portanto, qualquer tentativa de posse exclusiva. Se a obra de arte fosse substancialmente“inacabada”, como querem os “desconstrucionistas”, ela não solicitaria interpretação e simcomplementação; e o que solicita complementação não se oferece a uma infinitainterpretabilidade, mas a uma finalização, que só pode ser unívoca. Ademais, para que ela se“desintegrasse” ao ser diversamente interpretada, seria preciso que fosse uma totalidade“fechada”, dotada de significado unívoco. Mas a obra de arte, recorda Pareyson, é “perfeiçãodinâmica”, “processual”, plurissemanticidade constitutiva e inesgotável, que suscita e acolheinterpretações diversas, sem que isso acarrete “desintegração”.

O fundamento de sua infinita interpretabilidade, já foi dito, não é apenas a quantidade de intérpretesao longo da história, mas, mais propriamente, a constitutiva “infinidade” da pessoa e da forma.Longe de atestar uma insuficiência, uma impotência do seu modo de conhecimento, o caráternão definitivo da interpretação atesta a sua riqueza e plenitude. Afinal, “Que maior riqueza do quepossuir alguma coisa de inexaurível? [...] irremediável empobrecimento seria a presunção deuma posse exclusiva, que negaria a própria infinidade do seu objeto.” (PAREYSON, 1997, p.231).

Feitas essas considerações, o que enfim se deve esperar, filosoficamente falando, de qualquerexecução/interpretação musical?

Tratando-se de uma relação dialética, na base da qual estão pólos orgânicos, constitutivamentemultifacetados, plurissêmicos e inexauríveis, o que, em suma, se pode esperar desse tipo deatividade é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, a revelação da obra em uma de suaspossibilidades e a expressão da pessoa que interpreta, condensada em um de seus múltiplospontos de vista.

Nada mais falso e absurdo do que esperar coisa diversa, seja desconhecendo a natureza pessoaldo ato interpretativo e pregando uma “reevocação” fiel e impessoal, uma réplica, enfim, dosignificado concebido pelo compositor; seja ignorando a plurissemanticidade constitutiva da obrade arte e pretendendo uma única interpretação correta; seja pregando uma execução tão pessoale original que se sobreponha à obra, forçando-a a dizer o que ela não quer ou mais do que querdizer, como se fosse a pessoa do executante, o centro primeiro das atenções e a obra um meropretexto para a sua expressão.

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Referências bibliográficasCROCE, Benedetto. Estetica como scienza dell’espressione e linguistica generale. 8.ed. rev.,

Bari: Laterza, 1945.ECO, Umberto. A estrutura ausente; introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectiva,

1971. (Coleção Estudos).________. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método; fundamentos de una hermenéutica filosófica.

Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977.GENTILE, Giovanni. Filosofia dell’Arte. Florença: Sansoni, 1942.KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.KOELLREUTTER, H. J. Introdução à estética e à composição musical contemporânea. Porto

Alegre: Movimento, 1985.________. Terminologia de uma nova estética da música. Porto Alegre: Movimento, 1990.PAREYSON, Luigi. Estetica; teoria della formatività. 5.ed. Milão: Tascabili Bompiani, 1991.________. Os problemas da estética. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Sandra Neves Abdo é Professora do Departamento de Filosofia da FAFICH-UFMG, onde integraa Linha de Pesquisa “Estética e Filosofia da Arte”, da Pós-Graduação. É Bacharel em Violino(FUMA) e Bacharel-Licenciado em Filosofia (UFMG), possuindo também, em nível de Pós-Graduação, os títulos de “Especialista em Filosofia Contemporânea”, “Especialista em EducaçãoMusical” e “Mestre em Filosofia”, todos pela UFMG. Na área musical, atuou como solista, cameristae integrante das Orquestras da Escola de Música da UFMG, Sinfônica de Minas Gerais e outras.De 1974 a 1988, lecionou “Música de Câmara” e “Estética” (Professora Titular), na Escola deMúsica da FUMA (atual UEMG). Na USP, cursa atualmente, o Doutorado em Literatura Portuguesa,com Projeto de Tese sobre “O ceticismo na pluridiscursividade poética de Fernando Pessoa”.Tem artigos e traduções divulgados em âmbito nacional e internacional.

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Per questa bella mano KV 612 de Mozart:a redescoberta do manuscrito de uma ária de concerto para voz,contrabaixo obligato e orquestra e a reabilitação de uma práticade peformance “de afinação equivocada”1

Tobias Glöckler(Tradução de Fausto Borém e Larissa Cerqueira)

Resumo: Estudo histórico sobre a ária Per questa bella mano KV 612 de Wolfgang Amadeus Mozart desde suacomposição em 1791 até sua mais recente edição em 1996, passando pela redescoberta do original em 1979.Análise das práticas de notação e de peformance do contrabaixo no período clássico, com ênfase no ressurgimentoda afinação em terças e quarta justa do violone vienense. Apresentação de duas obras do repertório para voz,contrabaixo e orquestra: as primeiras edições das árias Selene, del tuo fuoco non mi parlar de Johannes Sperger eLied an den Contrabass de Adolph Müller. Inclui a tradução para o português, dos textos poéticos originais emalemão e italiano das três peças.Palavras-chave: W. A. Mozart, Per questa bella mano, contrabaixo, violone, Johannes Sperger, Adolph Müller,afinação vienense, práticas de performance.

Per questa bella mano KV 612 by Mozart: the rediscovery of amanuscript of an aria for soprano and double bass obligato andthe rehabilitation of a”wrong tuning” performance practice

Abstract: Historical survey of W. A. Mozart´s aria Per questa bella mano KV 612 from its composition in 1791through the rediscovery of its original in 1979 to its most recent edition in 1996 by Tobias Glöckler. Analysis of thedouble bass performance and notation practices in the classical period, focusing on the third-fourth tuning of theVienese violone. It also presents new additions to the voice and double bass repertory: the first editions of JohannesSperger´s Selene, del tuo fuoco non mi parlar and Adolph Müller´s Lied an den Kontrabass and the translations of theoriginal German and Italian lyrics of the three pieces into Portuguese.Keywords: W. A. Mozart, Per questa bella mano, double bass, violone, Johannes Sperger, Adolph Müller, vienesetuning, performance practice.

I - IntroduçãoPer questa bella mano, ária para voz baixo, contrabaixo obligato e orquestra composta por Mozartem 1791, ainda pode ser considerada a única composição de um grande mestre da Viena clássica

1 Artigo inédito em qualquer língua, Von verschollenen Autographen und “verstimmten” Kontrabässen: Konzert-Arienmit obligatem Kontrabass von Wolfgang Amadeus Mozart, Johannes Sperger und Adolphe Müller foi traduzidocomo parte do projeto de pesquisa Contrabaixo para Compositores, viabilizado com recursos do CNPq, FAPEMIGe Fundo Acadêmico UFMG/FUNDEP. Os exemplos musicais foram elaborados por Fausto Borém e Hudson Cunha.

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para solo de contrabaixo. Embora Franz Joseph Haydn tenha composto o Concerto paraContrabaixo [ou Concerto per il violone]2 em 1763, esta obra encontra-se desaparecida e nãohá pistas concretas sobre seu paradeiro (POHL, 1882, p.302).3 A ária de Mozart representa umatraente desafio musical para ambos solistas (voz e instrumento) e reveste-se de um significadoespecial dentro do pequeno repertório do período clássico que os contrabaixistas tem acesso. Arealização da parte obligato do contrabaixo nessa ária ainda apresenta algumas dificuldades derealização para o instrumentista de hoje. A afinação em terças menor/maior e quarta justa dosviolones clássicos, comum na Viena do final do século XVIII (PLANYAVSKY, 1984; Ex. 1), bemcomo a notação em clave de sol transposta uma oitava acima, não mais usada nas práticas deperformance modernas (Ex. 2), levantam questões a respeito da adequação à performance cominstrumentos modernos, como será abordado no decorrer do texto.

Ex.1- A afinação em terças menor/maior e quarta justa do violone vienense (a quinta corda era menos usada peloviolone solista) e a afinação em quartas justas do contrabaixo moderno

Ex.2- Per questa bella mano de Mozart: notação do contrabaixo obligato na clave de sol, uma oitava acima do quedeve ser tocado, característica do período clássico.

2 Nota dos Tradutores (N.T.): (1) O uso de colchetes reflete acréscimos dos tradutores ao texto original (2) O termocontrabaixo, aplicado aos instrumentos e repertório musical até o final do século XVIII, é ambíguo e pode significartanto o contrabaixo (de 3 ou 4 cordas) da família do violino, quanto o violone (de 4, 5 ou 6 cordas) da família dasviolas da gamba. Foi para o violone de cinco cordas (som real Fá –1 , Lá -1 , Ré 1 , Fá# 1 , Lá 1; considere o Dó centraldo piano como Dó3), que compositores como J. Haydn, Michel Haydn, Mozart, Pichl, Albrechtsberger, Sperger,Dittersdorf, Vanhal e outros mestres vienenses compuseram esse repertório solista no período clássico.

3 N.T.: Todos os indícios da existência deste concerto de J. Haydn se resumem aos poucos compassos queaparecem no seu catálogo temático (Hob VII, C1). Embora no original de Histoire des contrebasses à cordes(Paris: La Flute de Pan, 1982, p.117) Paul BRUN apresente uma transcrição “retrouvé” do Segundo MovimentoAdagio cantabile, o autor foi mais cauteloso na versão posterior em inglês (Paris: Edição do autor, 1989) e omitiu talinformação.

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II - O original e as ediçõesMozart compôs a ária Per questa bella mano cerca de nove meses antes de sua morte. Infelizmente,não se sabe com precisão a data em que foi escrita ou estreada. O registro da obra, declaradaem seu inventário, data de 8 de março de 1791 (MOZART, 1965). De acordo com esta fonteprimária, a ária foi dedicada ao cantor Franz Xaver Gerl e ao tocador de violone [ou contrabaixista,como será referido daqui por diante] Friedrich Pischelberger. Ambos foram colegas de Mozart noTheater im Freihaus em Viena, teatro que na época era dirigido pelo maestro, librestista,compositor e cantor Emanuel Schikaneder. Ainda em 1791, após a estréia de Per questa bellamano, houve a estréia de A Flauta Mágica, com Gerl no papel de Sarastro e Schikaneder, autorado libreto, no papel de Papageno. Pischelberger, por sua vez, era famoso como contrabaixista,tendo também inspirado os Concertos para Contrabaixo de Karl Ditters von Dittersdorf e Wenzel[ou Václav] Pichl.

A ária de Mozart foi muito interpretada na sua época a partir do manuscrito original. Mas a primeiraedição da partitura “secondo il manoscritto originale” parece ter surgido somente em 1822(MOZART, 1822?) e diverge um pouco do manuscrito autografado. As edições seguintes foramse distanciando progressivamente do original de Mozart. Naturalmente, devido às dificuldadestécnicas geradas pela transposição de tonalidade da parte obligato, a obra foi praticamentepredestinada a existir em diversos arranjos. Já na primeira edição da redução orquestral parapiano (MOZART, [s.d.]), foi apresentada uma alternativa para a realização da parte obligato. Emadição à parte do contrabaixo, incluiu-se uma parte de violoncelo, cuja razão pode ter sido nãoapenas a busca de uma vendagem maior, mas também resultado do ceticismo em relação aonível técnico-musical dos contrabaixistas daquela época. Além disso, circulavam especulaçõessegundo as quais um erro na designação do instrumento pode ter passado desapercebido [aocompositor] e a parte do violoncelo teria sido transferida erroneamente ao contrabaixo. Na históriadas performances da Ária KV 612 de Mozart, [importantes maestros do século XIX como] GustavMahler [1860-1911], Hans Richter [1843-1916], Ernst Schuch [1846-1914], Felix Mottl [1856-1911]e Arthur Nikisch [1855-1922] concordaram com este raciocínio que excluía o contrabaixo(DAUTHAGE, Der Kontrabass, v.1, 1929). Não é de se estranhar, portanto, que nos meios musicaisdo final do século XIX, praticamente não se referisse à obra como sendo destinada ao contrabaixoe que, em 1880, tenha sido publicada em Londres pela Augener & Company como ária comvioloncelo obligato.

Uma versão relativamente próxima ao original foi incluída na antiga edição completa das obrasde Mozart de 1881, mas a partir daí, as adaptações da ária apresentaram muitas divergências.Na edição Bote & Bock de 1920, foi transposta uma quinta justa acima. A esse respeito comentouum crítico da época: “Cada contrabaixista que executar essa versão, vai deparar-se com umenigma ainda maior do que a notação original de Mozart” (ALTMANN, 1929). Além disso, foiutilizado o registro do soprano na parte da voz nessa edição. Tendo em vista que Mozart usou umtexto em italiano que é uma declaração de amor de um homem para sua amada,4 fica claro oequívoco de designar esse papel a um soprano.

4 N.T. : Veja os textos em italiano e português de Per questa bella mano no Anexo II.

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Outra versão bastante inadequada apareceu em uma adaptação americana feita por G. F. Ghedinina década 50 (MOZART, 1952), na qual a parte obligato foi transformada em acompanhamentona parte do piano, descartando-se o contrabaixo solista imaginado por Mozart. As edições etranscrições da partitura mostraram-se particularmente imprecisas e problemáticas na últimadécada, pois o manuscrito original, que desapareceu ao final da II Guerra Mundial, deixou de sera fonte primária utilizada para novas edições da ária (KÖCHEL, 1964). Por isso, não foi possível,nem para a Neue Mozart-Ausgabe (MOZART, 1972), nem às outras edições, como as da Breitkopf& Härtel (1964) e Doblinger (1971), disponibilizar versões realmente confiáveis e fiéis ao original.

III - Os destinos dos manuscritos de MozartApós a Segunda Guerra Mundial, numerosos manuscritos da Biblioteca Prussiana de Berlim,entre eles a Ária KV 612 de Mozart, desapareceram5 . A recuperação desses documentos, tendocomo pano de fundo a Alemanha destruída pela guerra, mostrou-se muito complicada. Agravandoesse quadro, havia o fato de uma das margens dos rios Oder e Neisse estar submetida àadministração polonesa a partir de 1945, de acordo com o tratado de Potsdam. Mais tarde, coma divisão territorial da Alemanha e a Guerra Fria, esta importante herança cultural tornou-se umaquestão política.

LEWIS (1981) reconstruiu minuciosamente a trajetória dos manuscritos desaparecidos no iníciodos anos 80. As histórias sobre o paradeiro desses documentos, que mais tarde mostraram-severdadeiras, têm todos os ingredientes dos bons romances policiais. Sob segredo estrito, partedo acervo da Biblioteca Prussiana de Berlim foi retirada no outono de 1941, com a finalidade deprotegê-los contra os bombardeios dos aliados. Como refúgio, foi escolhido o castelo abandonadode Fürstenstein (ou Ksiazy, quando sob o domínio polonês) em Niederschlesien. Em 1944, quandoesse castelo foi transformado em um luxuoso hotel para usufruto de Hitler, os manuscritos tiveramque ser novamente deslocados. O mosteiro beneditino de Grüssau (ex-Krzeszów), tornou-se opróximo esconderijo. As caixas com as obras foram armazenadas nos porões da Igreja Beneditinade St. Marien e da Igreja de St. Joseph.

Na noite de 9 de maio de 1945, Grüssau foi tomada por tropas russas. Felizmente, não houvebatalhas nem destruições mas, nos meses seguintes, comissões polonesas retiveram osmanuscritos para inspeção, até serem levados, ao final de agosto de 1946, para um lugardesconhecido (KUNZE, 1984). Nessa época, várias tentativas foram feitas para se encontrar osmanuscritos na Alemanha Ocidental. Em 1964, os editores da Neue Mozart-Ausgabe publicaramem vários jornais internacionais uma lista dos manuscritos de Mozart perdidos desde o final daguerra (DIE MUSIKFORSCHUNG, 1964), dentre eles A Flauta Mágica, a Sinfonia Júpiter e aária Per questa bella mano. Infelizmente, essa busca não teve sucesso, o mesmo ocorrendocom as investigações em Breslau (ex-Wroclaw), lugar denominado erroneamente no índice determos musicais do Riemann Musiklexikon, em 1967, como o abrigo dos manuscritos (RIEMANNMUSIKLEXIKON, 1967, p. 102). Finalmente, ainda nesse mesmo ano, colaboradores da NeueMozart-Ausgabe descobriram o verdadeiro abrigo dos manuscritos: a tradicional BibliotecaJagiellonen em Krakau (ex-Kraków).

6 Junto com manuscritos de Mozart desapareceram também manuscritos autografados de Bach, Haydn, Beethovene Schubert, dentre outros.

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Imediatamente depois dessa revelação, autoridades alemãs tentaram, sem êxito, retomar a possedos documentos. Houve intervenção até de diplomatas austríacos com o objetivo de obter, pelomenos microfilmes do acervo de Krakau e garantir que os trabalhos da Neue Mozart-Ausgabenão fossem interrompidos. Todos esses esforços foram em vão. Apesar do crescente interessede estudiosos de diversas áreas em todo o mundo, a restituição dos manuscritos foi negadapersistentemente pelos poloneses. O caso, progredindo em crescente tensão, culminoutragicamente com o suicídio de Wladyslaw Hordynski, chefe da seção de música da bibliotecaJagiellonen, em 1968. Responsável pela guarda dos manuscritos, oficialmente declarados comoinexistentes, ele aparentemente não suportou o confronto entre suas declarações falsas e aacareação do processo investigatório.

IV - Uma questão políticaCom o tempo, a pressão política enfraqueceu a posição do governo polonês. Mas a culpabilidadealemã pela Segunda Guerra Mundial e os interesses conflitantes das duas Alemanhas impediramo rápido retorno dos manuscritos à Biblioteca Nacional Alemã em Berlim [oriental]. Embora asautoridades alemãs orientais soubessem da localização dos manuscritos, não fizeram nenhumareivindicação efetiva que envolvesse o “bloco socialista”6 . Na própria Alemanha Ocidental nãohouve um esforço significativo para tirar partido da crescente instabilidade política na Polônia. APolônia, por sua vez, também não mudou sua posição nem com a nova política oriental de WilliBrandt, nem com o acordo de 1970 entre a Alemanha Ocidental e a Polônia. Além disso, a possedos manuscritos parece ter alcançado o status de segredo de estado polonês. Ainda em janeirode 1976 em Warschau, o Ministério da Cultura anunciou que os manuscritos não se encontravamna Polônia.

Mas nos meses seguintes, as autoridades polonesas voltaram atrás. Decidiram, por assim dizer,“reencontrar oficialmente” os documentos. Em abril de 1977, a agência polonesa de notíciasPAP publicou um comunicado contendo pistas, que sugeriam que os manuscritos estavam naquelepaís. Como conseqüência, foi iniciada uma busca sistemática cujo esforço faria sentido, nãofosse essa notícia extraordinária ter precedido (ou ter sido estrategicamente calculada) um fatohistórico: apenas um mês mais tarde foi assinado um tratado de paz entre as duas Alemanhas.Tendo os manuscritos como pretexto, Gierek, presidente do Partido Comunista Polonês, preparouuma cerimônia cujo objetivo era mais causar impacto e promoção política do que contribuir paraa elucidação do problema, presenteando a Biblioteca Nacional Alemã de Berlim com algunsmanuscritos menos importantes da chamada Verlagerungsgut (acervo de posse da antigabiblioteca da Prússia) (KÖHLER, 1979). Porém, a maior parte dos manuscritos autografados,entre as quais a ária KV 612, permaneceram na Biblioteca Jagiellonen em Krakau. Somente em1979, e com bastante discrição, é que esses arquivos foram novamente disponibilizados aopúblico em geral (KUNZE, 1984). Nos anos anteriores, haviam sido publicadas diversas ediçõesfacsímile de alguns dos manuscritos históricos desaparecidos. Per questa bella mano, porém,

6 Numa investigação oficial em 1965/66, o SED (Partido da União Socialista) da Alemanha inquiriu o Partido ComunistaPolonês sobre o paradeiro dos manuscritos, o qual respondeu que os mesmos não se encontravam em territóriopolonês. (Cf. LEWIS, 1981).

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continuou negligenciada, não sendo incluída no organograma dos editores da Neue Mozart-Ausgabe uma reimpressão com as devidas correções e texto crítico. Como justificativa, os editoresafirmaram que instrumentistas e musicólogos interessados poderiam facilmente ir a Krakau,adquirir os microfilmes e, rapidamente, publicar uma edição revisada em outras editoras. Segundoeles, os manuscritos autografados reencontrados seriam tratados em um relatório crítico na ediçãoseguinte das obras completas de Mozart (KUNZE, 1984, p.30)

V - Uma nova edição para uma antiga prática de performanceMuito tempo se passou até que a música original de Per questa bella mano fosse novamentedisponibilizada, o que ocorreu com a edição que preparei, publicada em 1996 pela Hofmeister(MOZART, 1996).7 Anteriormente, Max DAUTHAGE (Der Kontrabass, v. 3, 1929) havia apresentadoos primeiros compassos da parte obligato da ária Per questa bella mano na afinação vienenseem terças e quartas, mas se enganou em relação à tonalidade. Como editor, procurei valorizar afidelidade ao original e às práticas de performance da época. Pela primeira vez, foi propostauma realização da parte do contrabaixo obligato que considera o renascimento da performancehistórica que, por meio de uma notação especial de intervalos, reabilita a afinação original doviolone vienense. Desta forma, os contrabaixistas dispõem novamente das vantagens técnicas etímbricas de uma afinação que esteve praticamente desaparecida por mais de dois séculos. Nanova edição, além da parte do contrabaixo com essa afinação do violone vienense, estão incluídaspartes separadas para o contrabaixo moderno com afinações tradicionais: orquestral [som realMi-1, Lá-1, Ré1 e Sol1] e de solista [Fá#-1, Si-1, Mi1 e Lá1]. Como acontece nos concertos paracontrabaixo da Viena clássica em geral, a parte obligato da ária de Mozart é designada a uminstrumento com afinação em terça menor [entre as cordas I-II], terças maiores [entre as cordas II-III e IV-V] e quarta justa [entre as cordas III-IV] (Ex.1). Os compositores clássicos utilizaram habilmenteas vantagens resultantes dessa afinação, como por exemplo, a possibilidade de realizar motivostriádicos com o uso de pestanas em arpejos e cordas duplas contendo, especialmente, o intervalode terça. Freqüentemente, o acorde de Ré Maior em cordas soltas, contido nesta afinação, eraum ponto de partida composicional. O exemplo mais conhecido desse procedimento são osprimeiros compassos da parte solista no Segundo Concerto para Contrabaixo de Dittersdorf, osquais podem ser tocados simplesmente com cordas soltas e harmônicos naturais (Ex.3).

Ex. 3: Cordas soltas e harmônicos naturais no início da parte solista do Segundo Concerto para Contrabaixo deDittersdorf, Mov. I.

7 N.T. : A edição crítica de Tobias Glöckler, descrita por MORTON (Bass World, 1996, p.52) como “definitiva”, foipublicada pela Hofmeister em duas versões: uma para voz, contrabaixo e piano (FH 2356) e outra para voz, contrabaixoe orquestra (Partitura # FH 8140; partes somente para aluguel).

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Mas por que, atualmente, pouquíssimos contrabaixistas solistas utilizam a afinação vienense,apesar de suas grandes vantagens? Uma razão é que, para se praticar com a afinação vienense,torna-se necessária a aprendizagem de uma nova técnica de leitura, que inclui a utilização dededilhados diferentes e pestanas pouco utilizadas. Outra razão é que essa mudança teria poucoespaço na “indústria de concertos” tradicional, cujo repertório subordina o contrabaixista à afinaçãoem quartas! Nesse conflito entre o desejável e o praticável situa-se esta nova edição da ária deMozart pela Hofmeister, que possibilita uma performance mais fácil da parte obligato com afinaçãovienense, sem a necessidade de uma re-aprendizagem extensa. Isto é possível por meio de umanotação extremamente simples das posições com pestanas, que não implica em transposiçãolida ou em muitas mudanças de posição.8 Desta forma, as notas podem ser lidas e dedilhadasno contrabaixo moderno previamente afinado em Lá-Ré-Fá#-Lá. Para facilitar o trabalho de leitura,as notas reais são notadas de maneira que o contrabaixista raciocine com a afinação moderna.Em outras palavras, algumas notas lidas no contrabaixo moderno são diferentes daquelas escritasno original, mas soam o mesmo. O resultado sonoro parece extraordinário e novo, mas na verdade,apenas recupera a antiga prática de performance do contrabaixo vienense (Ex.4).

Ex.4: Notação que permite utilizar a afinação em terças e quarta do violone vienense no contrabaixo moderno. Asnotas devem ser tocadas nas cordas indicadas. As notas na corda II soam um semitom abaixo (compare com anotação clássica na clave de sol no Ex.2. Veja também o Ex.6 à frente)

Diversas obras do compositor e contrabaixista virtuoso Johannes Sperger (1750-1812) sugeremuma ênfase nessa prática de performance histórica, na qual trechos em cantabile baseados emum só acorde podiam ser tocados em apenas uma posição. Isto era exatamente o resultadobuscado pelo compositor, tornando possível a vibração contínua característica dos acordestocados em cordas soltas e harmônicos (Ex.5).

Porém, passagens mais virtuosísticas, principalmente com mudanças de oitava, eram executadasem registros acima do registro inicial, acarretando mudanças de corda ou de posição entre asnotas dos arpejos.

As variações de dinâmica decorrentes dessa prática de performance histórica [N.T: a exemploda diferença de intensidade entre cordas soltas, cordas presas e harmônicos naturais] exigem

8 Esta escrita, que evita mudanças de posição, aparece freqüentemente na literatura de outros instrumentos decordas como, por exemplo, a Sonata dos Mistérios para Violino de H. Biber, a Suite N. 5 para Violoncelo Solo deJ. S. Bach e a Sonata para Violoncelo Solo de Kodály.

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grande domínio técnico. Um grau de dificuldade maior é exigido da mão direita devido aoscruzamentos de cordas com o arco, em comparação com a mão esquerda, que permanece maistempo na mesma posição ou registro. Em relação ao estilo, arcadas mais curtas, assim como ocontraste entre legato, staccato, e spiccato são comuns no repertório clássico do contrabaixo(FOCHT, 1999).

Ex. 5: Acorde arpejado escrito na afinação de orquestra, afinação solo e afinação vienense. O maior volume ereverberação do som na afinação em terça e quartas do violone vienense resulta da vibração contínua característicados acordes tocados em cordas distintas (cordas soltas ou harmônicos naturais; veja também o Ex. 2 acima).

VI - A afinação histórica e o contrabaixo modernoUma das questões que surgiram quando propus esta nova edição da ária Per questa bella manode Mozart é a adequação do instrumento moderno à afinação vienense. A reconstituição destaprática de performance certamente seria melhor emulada em um instrumento original, construídona Viena no século XVIII. Entretanto, são pequenas as mudanças técnicas quando se utiliza ocontrabaixo moderno. Algumas pestanas da prática usual de cordas duplas são satisfatoriamenteadaptáveis, sem maiores prejuízos ao texto musical. Por isso, as qualidades especiais dos violonesvienenses (Cf. MEIER, 1969; FOCHT, 1999) não precisam ser levadas em consideração, dado oimpacto pouco significativo na afinação em terças e quarta justa, que é a nossa questão central.

Assim, um instrumento original não é condição essencial para a performance da música clássicavienense, podendo os contrabaixos modernos também ser utilizados (PLANYAVSKY, 1973).Importante para uma performance clássica no contrabaixo moderno, entretanto, é a afinação

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Lá-Ré-Fá#-Lá. Quanto às cordas, as de tripa são uma alternativa que aproxima o contrabaixo doviolone, embora as cordas com núcleo e revestimento metálicos, mais comuns e mais baratas,possam ser usadas. O que sugiro é uma combinação de cordas fabricadas para a afinação deorquestra e a afinação solo, disponíveis separadamente em diversas marcas. As cordas paraafinação de orquestra Lá, Ré e Sol (III, II e I) são utilizadas como cordas IV, III e II na afinaçãovienense, sendo que a corda Sol é afinada meio tom abaixo para se conseguir o Fá#.9 A cordaLá (I) do jogo de cordas para solo é aproveitada como corda I na afinação vienense.

Uma primeira experiência com a afinação vienense surpreende pelo som livre e volumoso dascordas soltas afinadas como um acorde de Ré Maior [na segunda inversão]. Ao se tocar, percebe-se claramente a importância dessa técnica original de pestana. De fato, muitas passagens queexigem grande esforço para serem tocadas satisfatoriamente, tanto em afinação de orquestraquanto de solo, são facilmente resolvidas com a afinação vienense (Ex. 6). Mozart deve terimaginado as facilidades resultantes da afinação vienense, quando se decidiu pelo contrabaixoobligato na ária Per questa bella mano.

Ex. 6: Per questa bella mano: passagem tecnicamente difícil, facilitada com a afinação vienense.

VII - A Parte do contrabaixo notada na clave de solMozart anotou a parte obligato do contrabaixo na região aguda da clave de sol, o que mais tardedeve ter levado a equívocos, devido ao desconhecimento do costume de notação da época.Além disso, o violone [como o contrabaixo] soa uma oitava mais grave do que a parte escrita,oitavação que é requerida na maioria das vezes sem indicação na parte ou, separado em umanota explicativa [do compositor ou editor]. Não há referências se Mozart pretendia que a partefosse lida uma oitava abaixo, mas isso parece óbvio, segundo os princípios básicos deinstrumentação. Em oposição a este ponto de vista, há a crença de que concertos para contrabaixodo mesmo período, como os concertos de [Karl Ditters von] Dittersdorf, [Johann Baptist] Vanhal,[Wenzel] Pichl e [Franz Anton] Hoffmeister, podiam ser [lidos e] tocados “como se apresentavam”,

9 Isto corresponde também à recomendação da Firma Pirazzi, segundo a qual uma corda Sol Forte Flexocor podeser empregada como corda Fá#.

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isto é, na mesma oitava. Desde então, a questão sobre o registro correto tem dividido as opiniões.Por isso, alguns detalhes e citações de documentos da época devem ser trazidos à tona, umavez que o problema das oitavas do contrabaixo tornou-se polêmico. Em um artigo publicado noOesterreichischen Musik-Zeitung [Jornal Austríaco de Música], Max Dauthage, confirmou a opiniãosobre o que seria “mexer em caixa de marimbondo” (DAUTHAGE, 1922). Membro da Filarmônicade Viena e professor de contrabaixo da Academia de Música de Viena, ele ainda lamentava,sete anos mais tarde, sobre a “incompreensão e equívoco dos colegas” por ter-se colocado afavor da opinião de que a parte obligato não deveria ser lida oitava abaixo: “Todas as performancesda ária até agora não corresponderam ao original e foram apresentadas de forma maissimplificada” (DAUTHAGE, Der Kontrabass, v.1, 1929). Discordando, o musicólogo WilhelmALTMANN (1929) afirmou que o violone “seguia a tradição da época”, e por isso, sua parte eranotada “uma oitava acima”. Embora Altmann estivesse correto [ou seja, o som real soa duasoitavas abaixo do que está escrito], mesmo tendo como referência a notação usual de outrosconcertos clássicos para contrabaixo, há uma outra explicação para a escrita de Mozart.

A conclusão de que a parte do contrabaixo deve ser tocada uma oitava abaixo do que estáescrito no original resulta do simples fato de que as claves utilizadas para o violino e o contrabaixoestavam não só relacionadas aos seus registros, mas também à função dos instrumentos nocontexto orquestral. Freqüentemente, a troca de claves dentro da mesma parte indicava apenasa transição entre tutti e solo, ou vindo antes do trecho em questão, acenava para esse fato, semimplicar numa mudança de registro das notas. Em outras palavras, as claves da época nãocorrespondem ao entendimento atual de registros de oitava, e por isso têm um valor diferente [eambíguo] em relação ao sistema de leitura atual (FOCHT, 1999). Por outro lado, a preferência deMozart pela clave de sol também pode ser uma questão de economia e clareza, pois a notaçãonuma outra clave implicaria na utilização de mais linhas suplementares, o que dificultariaconsideravelmente sua leitura pelo músico. Pode-se imaginar também que, na sua conhecidapraticidade, Mozart evitaria qualquer trabalho desnecessário.

VII- As árias de J. Sperger e A. Müller como complementos do repertório para voz econtrabaixo obligatoDas três árias para violone [ou contrabaixo] solista e voz escritas pelo compositor e contrabaixistaalemão Johannes Sperger10, a ária Selene, del tuo fuoco non mi parlar apresenta interessesemelhante à ária Per questa bella mano de Mozart. Tanto a linha da voz quanto a linha docontrabaixo apresentam partes importantes do ponto de vista da performance. Após um recitativoem Ré Menor (Ex. 7), o compositor faz grandes demandas ao contrabaixo, com uma introduçãoinstrumental comparável à exposição do solista em um concerto clássico (Ex.8).

10 Na literatura, Sperger raramente é citado com o nome duplo Johann Matthias Sperger, com o qual assinou apenas um tratado teórico aos 16 anos. Quanto às obras para violone, assinava sempre Giovanne (versão italiana de Johannes), sem sobrenomes (Cf. MEYER, 1969).

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Ex. 7: Parte do canto na ária Selene, del tuo fuoco non mi parlar para voz baixo com contrabaixo obligato de J.Sperger (veja os textos completos em italiano e português no Anexo III).

Ex. 8: Introdução instrumental do contrabaixo obligato em Selene, del tuo fuoco non mi parlar de J. Sperger.

Selene, del tuo fuoco non mi parlar [Selene, não me fale do seu fogo], concluída em 1801, foibaseada na ária de mesmo nome para soprano, composta dez anos antes. Não se sabe quecircunstâncias levaram Sperger a elaborar essa transcrição, procedimento atípico para essecompositor, especialmente se levarmos em consideração o período de tempo de uma décadaque separa o original da nova versão. Entretanto, pode-se supor que a necessidade do compositor-intérprete de complementar o programa de um concerto que incluísse Per questa bella mano deMozart, o tenha motivado a buscar a mesma formação desse escasso repertório para canto,contrabaixo e orquestra. O fato é que, nem a data de estréia de Selene, del tuo fuoco non miparlar, nem informações sobre outros programas de concertos que incluíssem essa obra puderamainda ser confirmadas ou, mesmo, pressupostas.

Independentemente das árias terem sido tocadas juntas por Sperger, essas duas obras juntaspermitem, ao mesmo tempo, unidade e variedade, quando incluídas no mesmo programa. Defato, a ária bufa de Mozart exibe um estilo mais moderno, contrastando com a grandiosidade daária séria de Sperger,11 que tem o brilho barroco dos tímpanos e trompetes. Mas ambas traduzemestilos comuns à escola vienense clássica de composição. Outro fato a ser considerado é que,com uma duração inferior a dez minutos, Per questa bella mano é muito curta, o que constitui umobstáculo na contratação de contrabaixistas solistas em séries de concertos regulares deorquestras sinfônicas. Finalmente, essas duas árias constituem um conjunto mais substancialpara divulgar esse importante repertório do contrabaixo solista.

O manuscrito original de Sperger, no qual foi baseada a primeira edição, atravessou quase doisséculos desapercebido e encontra-se hoje na Landesbibliothek Mecklenburg-Vorpommern emSchwerin, Alemanha.12 Como na obra de Mozart, Selene, del tuo fuoco non mi parlar foi escrita

11 N.T. : Veja os textos em italiano e português de Selene, del tuo fuoco no Anexo III.12 Sign. Mus. 5129b [número de catalogação 5129b].

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para o violone com afinação vienense. Esta edição que preparei para a Hofmeister (SPERGER,1996)13 , a primeira na história dessa obra, também contém três partes para o contrabaixo solista:uma para afinação solo, outra para afinação de orquestra e uma terceira com a notação especialpara a afinação vienense.

Pouco mais de três décadas após Sperger ter composto Selene, del tuo fuoco non mi parlar, oreconhecido compositor de canções austríaco Adolph Müller (1801-1886) lançava em Viena maisuma obra original para voz baixo, contrabaixo obligato e orquestra (GLÖCKLER, 1998, p.2). Liedan den Kontrabass [Ode ao Contrabaixo], de 1833, é parte de Der Carneval im Sommer - oder:Die bekehrten Verkehrten [Carnaval no verão - ou os “pervertidos” convertidos], obra cênicasemelhante ao posse (tipo de singspiel). Embora não apresente o grau de dificuldade das áriasde Mozart e Sperger, torna-se uma opção de repertório providencial, que atende um círculo maisamplo de cantores e contrabaixistas, além de constituir-se numa interessante homenagem aocontrabaixo (MÜLLER, 1997).14 Sob o ponto de vista pedagógico, a análise, aprendizagem eprática deste lied alegre e simples de Müller pode servir de preparação para um estudo posteriordas árias de Mozart e Sperger.

Quando Lied an den Kontrabass foi composta, a antiga afinação em terças e quarta doscontrabaixos vienenses já havia sido substituída pela afinação em quartas utilizadas atualmente.Apesar da parte obligato da ária poder ser tocada sem problemas na afinação moderna emquartas, algumas passagens sugerem que a obra, contrariando a tendência de extinção do violonena primeira metade do século XIX, ainda havia sido escrita para a “antiga” afinação vienense.Por isso, nesta primeira edição da obra, também encomendada pela editora Hofmeister, e aexemplo das edições das árias de Mozart e Sperger, decidi pela inclusão de três opções deafinação para o contrabaixo.15

Finalmente, é preciso ressaltar que programações que incluam concertos tradicionais e concertoscom práticas de performances históricas, como a afinação vienense do contrabaixo, por exemplo,não são incompatíveis. Diante dessa possibilidade é que gostaria de expressar minha preferênciapela afinação vienense na apresentação dessas árias. Hoje, com a disponibilização das novas ediçõesque incluem as notações de dedilhados, o receio em abordar a afinação vienense tende a diminuirbastante. Tanto o contrabaixista quanto o público merecem a reabilitação de uma prática deperformance segundo a qual Mozart, Sperger e, provavelmente Müller, ouviram suas próprias árias.

Referências bibliográficas:ALTMANN, Wolfgang. Mozarts Arie mit obligatem Kontrabass [Ária de Mozart com contrabaixo obligato]. Der

Kontrabass [O Contrabaixo], n.3, Leipzig, 1929.DAUTHAGE, Max. Zum Geleite [Prefácio], Mitteilungsblatt des Kontrabassisten-Bundes [Ata da União dos

contrabaixistas]. Der Kontrabass [O Contrabaixo], v.1, Leipzig, 1929.

13 Além da versão para contrabaixo e piano (FH 2400), estão também disponíveis a partitura (FH 8109) e partes de orquestra (para aluguel somente).

14 N.T.: Veja os textos em alemão e português da Ode ao contrabaixo no Anexo IV.15 Além da versão para contrabaixo e piano (FH 2530), estão também disponíveis a partitura (FH 8114) e partes de orquestra (para aluguel somente).

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______. Zum Geleite [Prefácio] (Suplemento do v.1). Der Kontrabass [O Contrabaixo],, v.3. Leipzig, 1929.______ Über die Spielbarkeit einer Komposition von Mozart [Sobre a performance de uma composição de Mozart]:

Oesterreichische Musiker-Zeitung [Jornal Austríaco de Música], n.6, 1922.FOCHT, Josef. Der Wiener Kontrabass: Spieltechnik und Aufführungspraxis [O Contrabaixo vienense: técnica e

práticas de performance]. Musik und Instrumente. Tutzing: Hans Schneider, 1999.GLÖCKLER, Tobias. Aria with obligato double bass by Mozart, Sperger and Müller. The Edinburgh International

Double Bass Festival´98. The University of Edinburgh, ago, 1998 (folheto). KÖCHEL. Ludwig Ritter von. Chronologisch-thematisches Verzeichnis sämtlicher Tonwerke W. A. Mozarts [Índice

temático-cronológico de todas as obras de W.A. Mozart]. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1964.KÖHLER, Karl-Heinz. Prefácio da edição facsímile de Zauberflöte [A Flauta Mágica]. Leipzig: Deutscher Verlag für

Musik, 1979.KUNZE, Stefan. Neue Mozart-Ausgabe: Bericht über Mitarbeitertagung in Kassel. 29-30 Mai 1981, Privatdruck (nicht

im Buch- und Musikalienhandel erschienen [Anais da convenção dos editores da NMA em Kassel, 29-30 demaio, 1981]. Kassel: 1984. (edição não comercial).

GESELLSCHAFT FÜR MUSIKFORSCHUNG. Die Musikforschung [A Pesquisa Musical]. v.2, abril/jun, 1964. p.152-155.

LEWIS, Nigel. Paperchase: Mozart, Beethoven , Bach. . . the search for their lost music. Londres: Hamish Hamilton,1981.

MEIER, Adolf. Konzertante Musik in der Wiener Klassik. Munique: Musikverlag Emil Katzbichler, 1969.MORTON; Mark. The Latest score. Per questa bella mano, KV612. Bass World, The Journal of the International

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York: International, 1952.______. Per questa bella mano. Partes de voz, contrabaixo e orquestra (FH 8140), ed. Tobias Glöckler. Leipzig: F.

Hofmeister, 1999.______. Per questa bella mano. Partes de voz, contrabaixo e piano (FH 2356), ed. Tobias Glöckler. Leipzig: F.

Hofmeister, 1996.______. Per questa bella mano K.612. In: Neue Mozart-Ausgabe. Ed. Stefan Kunze. Série II, Werkgruppe 7, v.4.

Kassel: NMA, 1972.______. Per questa bella mano K.612. Partitura (n.4350). Offenbach am Main, Alemanha: Johann André, 1822?.______. Per questa bella mano K.612. Partes de voz, contrabaixo ou violoncelo e piano (n.7196). Offenbach am

Main, Alemanha: Johann André, [s.d.].______. Verzeichnis aller meiner Werke [Índice de todas as minhas obras]. Viena: E.H. Mueller v. Asow , 1965.MÜLLER, Adolph. Lied an den Contrabass. Partes de voz, contrabaixo e piano (FH 2530), ed. Tobias Glöckler.

Leipzig: F. Hofmeister, 1997.______. Lied an den Contrabass. Partitura (FH 8114), ed. Tobias Glöckler. Leipzig: F. Hofmeister, 1997.PLANYAVSKY, Alfred. Geschichte des Kontrabasses [História do Contrabaixo]. Tutzing: Hans Schneider, 1984.______. Mozarts Arie mit obligatem Kontrabass [Ária de Mozart com contrabaixo obligato] In: Mozart-Jahrbuch

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Schott´s Svhne, 1967.SPERGER, Johannes. Selene, del tuo fuoco non mi parlar. Partes de voz, contrabaixo e piano (FH 2400), ed. Tobias

Glöckler. Leipzig: F. Hofmeister, 1996.______. Selene, del tuo fuoco non mi parlar. Partitura (FH 8109), ed. Tobias Glöckler. Leipzig: F. Hofmeister, 1996.

ANEXO I: Obras editadas por Tobias Glöckler pela Friedrich Hofmeister Music Publishers

Voz, contrabaixo obligato e acompanhamento:MOZART, Wolfgang Amadeus. Per questa bella mano (KV 612), Aria for Bass, Obligato Double Bass and Orchestra.Nova edição baseada no manuscrito autografado redescoberto. # FH 2356: Partes de piano, voz e contrabaixo (emafinações de orquestra, solo e afinação vienense). # FH 8140: Partitura. Partes de orquestra: somente para aluguel.

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SPERGER, Johannes. Selene, del tuo fuoco non mi parlar, Recitative and Aria for Bass, Obligato Double Bass andOrchestra. Primeira edição. # FH 2400: Partes de piano, voz e contrabaixo (em afinações de orquestra, solo eafinação vienense). # FH 8114: Partitura. Partes de orquestra: somente para aluguel.

MÜLLER, Adolph. Ode to the Double Bass for Bass, Obligato Double Bass and Orchestra. Primeira edição. # FH2530: Partes de piano, voz e contrabaixo (em afinações de orquestra, solo e afinação vienense). # FH 8114: Partitura.Partes de orquestra: somente para aluguel.

Contrabaixo sem acompanhamento:TELEMANN, Georg Philipp. Sonata. Edição baseada na Sonata para Viola da Gamba do“Getreue Music-Meister”. # FH 2141.

Contrabaixo e piano:DAUTHAGE, Max. Andante. # FH 2261: Parte de contrabaixo e duas partes de piano (para afinação solo e deorquestra do contrabaixo).

Quarteto de Contrabaixos:BACH, Johann Sebastian. A arte da fuga, Contrapunctus I, III and XII, Chorale “Quando estamos em grandenecessidade”. # FH 2587: Partitura e partes.

DAUTHAGE, Max. Andante. # FH 2260: Partitura e partes.

ANEXO II: Textos em italiano e português de Per questa bella mano de W. A. Mozart

Per questa bella mano

Per questa bella mano,Per questi vaghi rai, Giuro, mio ben,Che mai non amerò che te.L´aure, le piante, i sassi,Che i miei sospir ben sanno,A te qual sia diranno La mia costante fè.Volgi lieti, o fieri sguardi,Dimmi pur che m´odi o m´ami!Sempre acceso ai dolci dardi,Sempre tuo vo´cho mi chiami,Ne cangiar puo terra o cieloQua desio che vive in me.”

ANEXO III: Textos em italiano e português de Selene, del tuo fuoco non mi parlar deJ. Sperger

Selene, del tuo fuoco non mi parlar

(Recitativo)Selene, del tuo fuoco non mi parlarne degl’ affetti altruiNon piu amante qual fui gueriero io sono,Torno al costume anticoChi trattien le mie glorieE mio nemico.

Por sua adorável mão

Por sua adorável mão,Por seus lindos olhos, Juro, querida,Que nunca amarei outro alguém além de ti.A brisa, as plantas, as pedras,Que conhecem bem meus suspiros,Te dirão de minha lealdade constante.Volte a sorrir, oh sério semblante,E diga-me se me odeias ou se me amas!Seu terno olhar me conquistou,Quero que me chame seu para sempre,Nem a terra nem o céu poderia mudarEsse desejo que em mim habita.

Selene, não me fale do seu fogo

(Recitativo)Selene, não me fale do seu fogonem das paixões dos outrosNão sou mais amante do que fui soldadovolto-me ao antigo costumeQuem atravessar no caminho de minha glóriaSerá meu inimigo.

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(Aria)A trionfar mi chiama un bel desio d’onoree gia sopra il mio core comincio a trionfar.

Con generosa brama fra i rieschi e le ruinedi nuovi allori il crine io volo a circondar.

ANEXO IV: Textos em alemão e português de Lied an den Contrabass de Adolph Müller

Lied an den Contrabass

1. Schätzchen, ich umarme Dich,schmeichle Dir mit sanftem Strich,denn Du bist mein Zeitvertreib,brumme nur, mein trautes Weib.

Mag die Nachtigall verstummen,mich entzückt Dein süßes Brummen,darum liebes Weibchen, brumm, brumm, brumm ...

2. Du bist meine zarte Braut;wenn noch kaum der Morgen graut,fass’ am Schwanenhals ich Dich,Dein Gebrumm entzücket mich.

Böse Weiber soll’n verstummen,aber Du magst immer brummen,darum liebes Weibchen, brumm, brumm, brumm...

3. Steh ich so bei Dir allein,abends bei dem Mondenschein,bleiben, die vorübergehn,mit Entzücken horchend stehn.

Liebesseufzer selbst verstummen,fängst Du zärtlich an zu brummen,darum liebes Weibchen, brumm, brumm, brumm ...

Tobias Glöckler é contrabaixista solista da Filarmônica de Dresden. Tem apresentado trabalhosem diversos congressos mundiais da International Society of Bassists e congressos europeusde contrabaixo. Editor musical da Friedrich Hofmeister, publicou as obras listadas no Anexo I egravou o CD Arien mit obligaten Kontrabass (Dresden, Alemanha: White House Records, 1998)que inclui as árias de Mozart, Sperger e Müller abordadas nesse artigo.

Ode ao Contrabaixo

1. Querido, venha para meu abraço,é como acariciar um lindo rosto,pois longe de mim, o tempoé como seu murmúrio, amor divino.

Enquanto o rouxinol repousa,amo seu canto, que é mais doce,por isso, meu contrabaixo, tum, tum, tum ...

2. Contrabaixo, companheirodedilhando ao longo do seu braço,na amplidão de um final de tardeo grave som se transforma em canção.

Se as moças não mais cantassem,sua voz para sempre ressoaria,por isso, meu contrabaixo, tum, tum, tum ...

3. Quando estou só com você,tocando à noite, sob o luar,os passantes param, admirados,imersos em pensamentos, a sonhar.

Os suspiros de amor se calam,tão logo começo a te dedilharpor isso, meu contrabaixo, tum, tum, tum ...

(Ária)Ao triunfo me chama um desejo ardente de honrae me regozijo com a derrota do meu coração

Despreendido me apresso na minha ruínae com os louros da vitória me corôo.

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Gravando a flauta: aspectos técnicos e musicais

Maurício Freire Garcia

Resumo: Estudo sobre aspectos técnicos e musicais de gravações musicais, especialmente da flauta, e suasvariáveis como as características físico-acústicas do instrumento, equipamentos de som, tipos de microfones, ambienteacústico e concepções musicais do instrumentista e do técnico de gravação. Inclui figuras, gráficos e mapas degravação.Palavras-chave: gravação musical, flauta, microfone, acústica, performance, equipamentos de gravação

Recording the flute: technical and musical aspects

Abstract: Study on technical and musical aspects of music recording, especially flute recording, focusing on parameterssuch as the instrument´s physical traits and positioning, sound equipment, types of microphones, acoustic environmentand the musical conception of the performer and sound technician. It includes figures, graphics and microphones’spositioning sketches.Keywords: music recording, flute, microphone, acoustics, music performance, recording equipments

I - IntroduçãoVários fatores envolvidos no processo de gravação interferem na qualidade do trabalho final,como o equipamento e a sala de gravação, instrumentos e, acima de tudo, o músico e o engenheirode som. O desenvolvimento das técnicas de gravação desde os primeiros processos mecânico-acústicos até os equipamentos eletro-eletrônicos de alta fidelidade melhorou sobremaneira aqualidade das gravações. Os sistemas de gravação hoje são melhores, mais fáceis de operar emais baratos. Apesar de todo o aparato tecnológico, fatores subjetivos envolvidos nesse processoainda são determinantes no resultado: experiências e preferências pessoais com o equipamentode gravação, habilidades de performance e convicções estéticas.

Gravar a flauta é um processo especialmente complexo. As características acústicas únicas doinstrumento requerem técnicas específicas de gravação para a reprodução do timbre real doinstrumento. Isto é facilmente observável ao compararmos gravações de flauta em gravaçõescomerciais. Freqüentemente, o som de um flautista numa sala de concerto é geralmente percebidopelo ouvinte como completamente diferente do que ouvimos em seu CD. Algumas vezes, o mesmoinstrumentista não pode ser reconhecido em duas gravações diferentes. Boa parte dessasdisparidades são conseqüencias do desconhecimento ou má utilização dos microfones, queconsidero os equipamentos mais importantes envolvidos numa sessão de gravação. O presenteartigo estará centrado no uso dos equipamentos de gravação, especialmente dos microfones,mas abordará também as características acústicas da flauta e do papel do flautista e engenheirode som.

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II – Acústica da flautaAs freqüências fundamentais da flauta em Dó se extendem do Si2 (247 Hz) ao Dó6 (2.100 kHz),abrangendo pouco mais de quatro oitavas. A flauta em Sol soa uma quarta abaixo, a flauta baixosoa uma oitava abaixo e o flautim, uma oitava acima. Os harmônicos presentes no som da flauta,que podem atingir freqüências acima de 8.000 Hz, variam com a intensidade. Uma nota tocadaforte contém mais harmônicos do que a mesma nota tocada piano. Existem ainda os ruídos darespiração e da coluna de ar em atrito contra a parede do orifício do bocal, que também contêmaltas freqüências. Embora dados sobre estes ruídos na flauta não tenham sido encontrados nolevantamento bibliográfico para esse estudo, ruídos semelhantes como os do saxofone podematingir 12.000 Hz (HUBER, 1988, p.134). Outra característica muito importante da flauta é o modocomo seu som se propaga. Seu tubo é aberto dos dois lados (embocadura e orifícios no tubo) aocontrário dos demais instrumentos de sopro (madeiras e metais), que tem um lado do tubo fechadopela boquilha e palheta, como no caso da clarineta. Isto significa que o som produzido noinstrumento se irradia sempre em no mínimo duas direções: uma fixa, para a abertura do bocal; aoutra móvel, para os orifícios do tubo. Considerando apenas as freqüências fundamentais daflauta em Dó (do Si2 ao Dó#4), o ponto de propagação do som move-se na direção do pé doinstrumento à medida que a freqüência diminui, porque o comprimento do tubo utilizado aumentaa cada orifício fechado. Por outro lado, a irradiação do som de algumas notas agudas seguempadrões mais complexos, por causa do uso de dedilhados também mais complexos, conformeas Fig.1a e 1b.

Fig.1a e 1b - Dois padrões de irradiação de som diferentes (BARTLETT e BARTLETT, 1992).

Embora o bocal represente um ponto fixo de propagação desejável, ele também representa umaimportante fonte de ruídos, pois a coluna de ar produz altas freqüências indesejáveis quando sechoca contra o orifício do bocal ou são produzidos pela língua na articulação de ritmos. Estesruídos são ouvidos, entretanto, somente a uma curta distância devido à sua baixa intensidade.Outra fonte de ruídos considerável é o conjunto de chaves da flauta, que alguns compositores doséculo XX passaram a utilizar intencionalmente na produção de efeitos musicais. O engenheiro(ou técnico de som) deve estar alerta a estes fatores relacionados aos ruídos ao posicionar o(s)microfone(s) para a gravação da flauta. Ele deve também conhecer profundamente os diferentestipos de equipamentos e sua utilização, como será discutido a seguir.

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III – Equipamentos de somOs equipamentos de gravação tradicionais incluem uma enorme variedade de aparelhos, quesão projetados para captar e processar o sinal de áudio. Os aparelhos mais usados são asmesas de som, os processadores de sinais, os gravadores e os microfones. A mesa de gravaçãoé o equipamento que monitora e controla as entradas, saídas, mixagem e processamento dosinal de áudio. Ela apresenta um número variável de canais, entradas e saídas além de comandosde volume, efeitos e freqüência. Independente do número de canais, a função geral da mesa “éaceitar múltiplos sinais que serão processados, balanceados e combinados em um ou maiscanais de saída.” (WORAM, 1989, p.461) Isto significa que a mesa de som é o primeiroequipamento no caminho do sinal de áudio a partir da fonte sonora1 , interferindo no processocomo um todo.

Processador de sinais é um nome genérico para uma variada gama de equipamentos eletro-eletrônicos usados para modificar um sinal de áudio. Entre eles, os equalizadores e oscompressores são os mais conhecidos e utilizados. São responsáveis pelo equilíbrio dasdiferentes freqüências presentes na gravação. Em outras palavras, eles controlam o timbre dosom. Por outro lado, podem também alterar substancialmente os resultados de uma gravação,melhorando ou distorcendo o som recebido de uma fonte sonora.

Os gravadores constituem uma outra classe de equipamentos, disponíveis em grande número nomercado. O objetivo e a qualidade requerida na gravação é que vão determinar sua escolha. Osgravadores analógicos multi-pista ainda estão em uso e as tradicionais fitas cassetes ainda sãonecessárias em diversas situações como concursos e audições. Os equipamentos modernos,por outro lado, incluem diferentes sistemas digitais usando suportes diversos, como o DAT (DigitalAudio Tape), usado para gravações profissionais estereofônicas, os gravadores digitais multi-pista (Alesis, Tascan etc.), o gravador de CD (Compact Disc), que é o formato mais popular nomercado hoje e o gravador de MD (Minidisc), que é uma versão compacta do CD, disponíveltanto para aparelhos portáteis quanto profissionais.

Os microfones constituem o último grupo de equipamentos nesta lista e, provavelmente, são osmais importantes em todo o processo de gravação. O microfone é um transdutor, o que significaque ele pode “. . .converter energia acústica em sinais elétricos, tanto por contato como porcaptação das ondas sonoras irradiadas por uma fonte sonora” (ALKIN, 1981, p.30). O microfoneé o “ouvido” do equipamento de gravação. A performance da melhor mesa de som com osmelhores processadores não será muito boa se a qualidade dos microfones deixar a desejar. “Éo microfone que determina o nível de qualidade do resultado” (CLIFFORD, 1977, p.86). Por isso,os microfones serão abordados em maior profundidade nesse artigo.

IV – MicrofonesO microfone é provavelmente o mais antigo e mais desenvolvido equipamento de gravação aindaem uso. Sua história começa no século XIX com a invenção do telefone: “As exigências eram

1 Fonte sonora é definida como qualquer sinal de áudio proveniente de um microfone, instrumento acústico ou eletrônico (computadores e sintetizadores, por exemplo) ou gravação feita anteriormente.

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basicamente aquelas relacionadas à inteligibilidade da fala. O microfone de carbono, desenvolvidonaquela época, ainda é usado em telefones até hoje” (HUBER, 1988). Este tipo de microfoneproduz muito ruído e distorções e apresenta uma limitada amplitude dinâmica. Isto não representanenhum problema para seu uso na telefonia. Entretanto, o desenvolvimento dos sistemas detransmissão e entretenimento musical tornaram necessário o desenvolvimento de melhoresequipamentos. Como resultado, os microfones de eletreto e de bobina móvel (moving coil) foraminventados e seu aprimoramento nos últimos 75 anos criaram a base da moderna tecnologia demicrofones. EARGLE (1992, p.66) comenta com surpresa, a demora desse desenvolvimento:

É impressionante que o microfone não se tornou parte da tecnologia de gravação até por voltade 50 anos de seu primeiro uso na telefonia. As gravações de áudio se mantiveram como umprocesso puramente acústico-mecânico desde de 1870, até a introdução, pela Western Electric,da gravação elétrica nos anos 20.

Os microfones mais usados atualmente em gravações se dividem em dois grupos básicos: osdinâmicos e os de condensadores. Os microfones dinâmicos operam por indução eletromagnéticapara gerar o sinal de áudio. Esses microfones não necessitam de fonte auxiliar de energia parafuncionar. Os tipos mais usados são o ribbon e o moving coil. Os microfones de condensador, aocontrário, são aparelhos estritamente elétricos e necessitam de uma fonte de energia externapara funcionar.

Independente do tipo de transdutor, a característica mais importante de um microfone é a suapolaridade. Os padrões de polaridade mais usados são o direcional e o omni-direcional. Osmicrofones omni-direcionais (Fig.2a), também chamados de microfones operados por pressão,“são igualmente sensíveis a sons chegando de todas as direções” (BARTLETT, 1991, p.5). Sãoindicados para a captação de som ambiente, de uma fonte distante e para gravações deinstrumentos com baixo nível ruído.

Já os microfones direcionais são mais sensíveis ao som vindo de direções específicas e podemser encontrados nos seguintes padrões polares básicos:

- Cardióide (Fig.2b): este padrão polar criado na década de 30, é conhecido também comouni-direcional, é sensível ao som que atinge os microfones pela frente e seletivo ao som quevem de trás. É largamente utilizado em estúdios de gravação, discursos e entrevistas(palestras, televisão etc.).

- Super-cardióide (Fig.2c): este padrão é similar ao cardióide, mas é mais focalizado nosom frontal. Esta característica permite gravações com o posicionamento do microfone maisdistante do que o cardióide por causa da forma mais elíptica de resposta na parte frontal.

- Hiper-cardióide (Fig.2d): esse tipo de microfone é o mais direcional dos três tipos demicrofones cardióides e apresenta a maior eficiência na captação do som frontal. Em umambiente reverberante, o hiper-cardióide apresenta a maior rejeição aos sons refletidos.

- Bidirecional (Fig.2e): a forma de resposta desse microfone se assemelha a um “8”. Aqueles deboa qualidade apresentam resposta simétrica na região frontal e posterior do microfone. Podem,por exemplo, ser usados para gravar duas pessoas sem captar sons laterais indesejáveis.

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Fig.2 - Microfones direcionais e omni-direcionais (BARTLETT e BARTLETT, 1992, p.111).

É mais fácil compreender a representação gráfica acima se mostrarmos (Fig.3) os padrões deirradiação de som superpostos à figura de cada microfone, que também mostra o axis (linhaimaginária perpendicular à face frontal do microfone).

Fig.3 - Representação espacial das repostas e axis de microfones omni-direcional e direcionais (ZAZA,1991, p.42-45).

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A amplitude de freqüência e a sensitividade dos microfones são outros aspectos importantesdestes aparelhos. HUBER (1988, p.285-288) define resposta de freqüência como a amplitudeentre os limites superior e inferior de um microfone para uma transmissão adequada; sensitividadeé definida como a voltagem de saída de um microfone, quando ele é exposto a um determinadonível de pressão sonora. Estes fatores mostram a eficiência de um microfone e variam de acordocom o modelo e a marca. Os melhores microfones apresentam uma resposta homogênea emtoda a amplitude de freqüência para a qual foi projetado e níveis de ruído muito baixos.

Marcas tradicionais como Neumann, AKG, Sennheiser, Beyer Dynamic, Sony, Audio-Technica eSure, entre outras, ainda fabricam os melhores equipamentos. Existe uma enorme variedade depadrões de captação, amplitude de freqüência e de microfones estéreo no mercado. Para escolhero microfone mais adequado para um instrumento, a melhor tática ainda é experimentar. Se istonão for possível, deve-se procurar, em suas especificações, se ele tem uma boa resposta emtoda a extensão do seu instrumento. No caso da flauta, é essencial que a região ótima do microfonecubra os registros médio e agudo. A Fig.4a mostra a representação gráfica da resposta versussensitividade de um bom microfone. É importante notar que estes valores só são válidos para osom que chega ao microfone em seu axis. Por isso, o posicionamento adequado de cada tipo demicrofone é tão importante. A Fig.4b apresenta a resposta da parte da frente e de trás de ummicrofone cardióide.

Fig.4a - Gráfico de resposta de um bom microfone (HUBER, 1988, p.272).

Fig.4b - Gráfico com a resposta da parte frontal e posterior de um microfone cardióide (CLIFFORD, 1979, p.121).

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V – Gravando a flautaA flauta é um instrumento muito difícil de gravar porque o som “real” do instrumento só aparece secaptado a uma distância mínima de 1,5 m (BARTLETT e BARTLETT, 1992, p.180; HUBER, 1988,p.132; BALLOU, 1987, p.400). Se uma distância menor for usada, todos os ruídos do bocal, quenão refletem o real som da flauta, serão captados na gravação. Outro problema a ser consideradoé que cada nota se propaga de uma parte diferente do instrumento. Como discutido anteriormente,isto decorre do fato do tubo da flauta ter duas aberturas e combinações complexas de dedilhados.

Para evitar estes problemas, o microfone (ou microfones) deve não apenas ser posicionadolonge o suficiente do instrumento, como também estar direcionado para a área compreendidaentre o orifício da embocadura e as chaves da flauta. Isto diminui os ruídos de alta freqüência dacoluna de ar que se propagam pela parte frontal do bocal.

O posicionamento do microfone depende também da acústica do local de gravação, que determinaa quantidade de som direto e refletido chegando até ele. Um ambiente com menos reverberação,ou mais “seco”, favorece o som direto. Um ambiente muito reverberante aumenta a presença desom refletido, resultando num som distante. A Fig.5 mostra duas técnicas de microfonagem numambiente com alta reverberação. Na primeira, o microfone mais próximo da fonte permite captarmais sons diretos. Na segunda, o microfone mais distante permite uma maior captação de sonsrefletidos.

Fig.5 - Dois posicionamentos de microfone num ambiente com alta reverberação, favorecendo o som direto ou o somrefletido (BARTLETT e BARTLETT, 1992, p.133-134).

Pode-se concluir que, para ambientes reverberantes, os microfones direcionais devem serpreferidos e sua distância da fonte sonora deve ser diminuída. Já em ambientes mais “secos”,pode-se utilizar microfones omni-direcionais, que ficam mais distantes da fonte sonora. (Fig.6)

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Fig.6 - Diretrizes básicas para escolha e posicionamento de microfones em gravações.

Acústica da Sala Pouca Reverberação Muita Reverberação

Tipo de microfone Omni-direcional Direcional

Posição do Microfone Próximo Distante

Tratando-se especificamente da captação da flauta, o posicionamento menos indicado domicrofone é aquele próximo ao bocal e apontado de baixo para cima em direção ao orifício daembocadura, como mostrado na Fig. 7.

Fig.7 - Posicionamento menos adequado do microfone para captação do som da flauta (CLIFFORD, 1979, p.147).

Sob condições acústicas extremas, como por exemplo, um ambiente reverberante repleto deruídos, onde é impossível evitar que o microfone fique próximo da flauta, a melhor posiçãositua-se “. . . a poucos centímetros da área entre o bocal e as chaves” (BARTLETT e BARTLETT,1992, p.180), como mostrado na Fig.8.

Fig.8 - Posicionamento alternativo para microfonagem próxima da flauta (BARTLETT e BARTLETT, 1992, p.180).

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Um par de microfones colocados a 1,5m do flautista constitui uma boa opção para uma sala comreverberação moderada e equilibrada nas diversas faixas de freqüência. Isto ajuda a prevenir asdistorções decorrentes de pequenas mudanças de posição do instrumentista durante aperformance. Outra possibilidade é a utilização de um par de microfones direcional eomni-direcional. O direcional deve ser colocado próximo para dar “presença” ao som, evitando osom distante, enquanto que o omni-direcional deve ser posicionado mais afastado para reproduzir asensação do ambiente. O técnico de gravação deve trabalhar cuidadosamente no equilíbrio dos doissinais, para reproduzir a qualidade do som natural da flauta. Muitas vezes, uma simples mudança daposição do microfone no ambiente de gravação pode resolver as demandas do instrumentista. AFig. 9 ilustra a diferença de resposta de um mesmo microfone causada apenas pela mudança deposição na sala.

Fig.9 - Diferença de captação causada pela mudança de posição do microfone (BENADE, 1980, p.77).

Os microfones estéreo também são uma ótima opção, em praticamente qualquer situação, poishoje estão disponíveis em modelos profissionais ou amadores de boa qualidade, projetadospara equipamentos maiores ou portáteis. As mesmas características discutidas para osmicrofones mono devem ser observadas como critérios para os estereofônicos. Vimos, então,que o tipo e posicionamento dos microfones são tão importantes quanto o modelo e o fabricantedos equipamentos.

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VI – O instrumentista e o técnico de gravaçãoEmbora a qualidade dos equipamentos de gravação contribua muito para a eficiência dasgravações, as pessoas envolvidas nesse processo são também muito importantes. Além do seunível técnico-musical, que é uma das matérias-primas da gravação, o músico deve saber comoagir dentro de um estúdio: movimentos em excesso, batidas dos dedilhados das chaves da flautae uma respiração ruidosa podem, inadvertidamente, alterar o produto final de maneiradeterminante. Por outro lado, o técnico de som também pode arruinar a mais perfeita interpretaçãomusical se usar o equipamento de forma equivocada.

Apesar do processo de gravação parecer um procedimento essencialmente técnico, existemaspectos subjetivos relacionados às convicções estéticas e crenças pessoais de ambos músicoe técnico de gravação. A concepção do som “ideal” por exemplo, pode variar enormemente deuma pessoa para outra. Alguns preferem equalizações com predominância das freqüências altas,enquanto outros optam pela valorização das baixas freqüências. Há ainda os que acham queruídos da performance, como a respiração e o bater de chaves da flauta, fazem parte do somglobal do instrumento. O equilíbrio entre os instrumentos ou linhas contrapontísticas da obra musicale o nível de reverberação da gravação também são pontos extremamente controversos. Há umatendência natural do solista de colocar em evidência o nível sonoro do seu instrumento emdetrimento dos demais. Se esse procedimento pode corrigir eventuais problemas acústicos oude instrumentação da partitura, pode também afastar o resultado final do que se ouve nas salasde concerto. Um técnico experiente procura sempre reproduzir o equilíbrio de uma performanceao vivo ao invés de criar um efeito musical artificial.

O flautista também pode estar certo de que o som que ele ouve não equivale ao som que seupúblico recebe, porque o som que chega aos ouvidos do primeiro vem de duas fontes diferentes:uma interna e outra externa. O som que o flautista produz se transmite através das cavidades deressonância do crânio e também chega ao ouvido pelo lado interno da cabeça. Apenas a pessoaque está emitindo este som pode ouvir esta qualidade sonora, que está repleta de ruídos dacoluna de ar passando pela garganta e batendo nos dentes, da língua quando articula e da própriasalivação. Externamente, o ouvido recebe uma mistura de sons diretos e refletidos do ambiente.O som direto que o flautista ouve também contem ruídos de baixa intensidade gerados no bocal,que também não estão presentes no espectro sonoro que chega à platéia. Esta é a razão pelaqual todos nós estranhamos nossa própria voz quando gravada. A consciência deste fato é muitoimportante quando se prepara uma gravação musical.

É necessário ainda ter em mente que o técnico de som também tem suas convicções estéticassobre o som do instrumento. Elas dependem muito de seu background e sua experiênciaprofissional. Normalmente, técnicos que trabalham com música popular se concentram mais notimbre tradicional do instrumento, enquanto os envolvidos com música erudita se atêm mais adetalhes do som e interpretação como dinâmica, equilíbrio, efeitos e mudanças de cor. A respeitodisso, BARTLETT e BARTLETT (1992, p.395-396) escrevem:

A música erudita e popular têm padrões diferentes do “bom som”. Um objetivo em músicaerudita (e freqüentemente em (...) jazz) é reproduzir com acuidade a performance ao vivo. (...)a música foi escrita e os instrumentos desenhados para soar melhor quando ouvidos ao vivo na

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sala de concerto. O engenheiro de gravação (...) deve sempre tentar traduzir aquele som paraa fita com a menor intervenção técnica possível. Ao contrário, a tradução acurada do som paraa fita não é sempre o objetivo numa gravação de música popular.

Em contrapartida, existem aspectos objetivos na gravação como as características acústicas dasala, do instrumento e dos equipamentos, que independem do instrumentista ou do técnico degravação. Um maior conhecimento destes aspectos melhora a qualidade do trabalho a ser feitoe evita conflitos desnecessários entre as pessoas durante a gravação.

VII – ConclusãoOs conceitos e aspectos técnicos discutidos neste artigo objetivam ajudar os flautistas, comotambém outros instrumentistas e técnicos, a fazerem melhores gravações. Não existem regrasimutáveis em relação a microfones e técnicas de gravação, mas sim diretrizes básicas que podemajudar na reflexão sobre os procedimentos a serem adotados em situações diversas. Algumasvezes o flautista vai encontrar equipamentos e condições ideais de gravação. Noutras tantas, vaiprecisar gravar a si próprio, sem contar com um técnico e sem poder escolher o ambiente. Ou vaicontar apenas com um equipamento portátil, cujas variáveis geralmente incluem apenas o controlede volume, as características dos microfones e seu posicionamento, sem a prerrogativa de qualquertipo de equalização.

Dispondo de tempo e recursos financeiros, por outro lado, deve-se planejar a gravação comantecedência, iniciando-se pela seleção do repertório, de um ambiente acústico adequado e demicrofones bons e apropriados a esse ambiente e à flauta. Em seguida, o flautista deve analisar ediscutir suas concepções musicais com o técnico de gravação profissional, considerando todos osaspectos objetivos e subjetivos. Em cooperação, eles poderão conseguir o melhor resultado possível.

Referências bibliográficasALKIN, Glyn. Sound recording and reproduction. London: Focal Press, 1981.BALLOU, Glen. Handbook for sound engineers: the new audio cyclopedia. Indianapolis:

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Reinhold, 1992.HUBER, David Miles. Microphone manual: design and application. Indianapolis: Howard W.

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Sugestões de leitura:BARTLETT, Bruce. Buyers guide: microphones and studio accessories. Db-The Sound

Engineering Magazine, v.22, n.5, September/October, 1988: p.49-63.BORROUGHS, Lou. Microphones: design and application. Plainview, New York: Sagmore

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(February, 1974), p.214-219.HALL, Donald E. Musical acoustics: an introduction. Belmont, California: Wadsworth Publishing

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Philadelphia: Saunders College, 1980.

Maurício Freire Garcia é professor de flauta da Escola de Música da UFMG, onde foi Diretor de1994 a 1998. Mestre em Flauta pelo New England Conservatory, EUA, atualmente cursa oDoutorado em flauta na mesma instituição.

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Performance instrumental e educação musical:a relação entre a compreensão musical e a técnica

Cecília Cavalieri França

Resumo: A observação da produção musical dos alunos através das modalidades de composição, apreciação eperformance permite clarear a natureza da relação entre a técnica e a compreensão musical. Sugere-se que amanifestação do nível ótimo de compreensão musical depende do refinamento técnico necessário para se realizardiferentes atividades. Os resultados confirmam esta hipótese, revelando que a performance instrumental pode ser oindicador menos apropriado da compreensão musical dos alunos devido à complexidade desta modalidade. Acontinuidade deste estudo está sendo conduzida tendo em vista as implicações da escolha do repertório para odesenvolvimento musical dos alunos.Palavras-chave: compreensão musical, técnica musical, performance musical, educação musical.

Instrumental performance and music education: the relationshipbetween music understanding and skillsAbstract:The observation of students’ music making through the modalities of composing, audience-listening andperformance, enables us to illuminate the nature of the relationship between musical understanding and skills. It issuggested that the manifestation of the optimal level of musical understanding depends on the refinement of the skillsto accomplish a particular task. The results confirm this hypothesis, revealing the extent to which instrumentalperformance may become less appropriate an indicator of students’ musical understanding due to the complexityinvolved in this modality. A follow-up study is being conducted focusing on the implications of the repertoire overmusical development.Keywords: musical understanding, musical skills, musical performance, music education.

I – IntroduçãoPodemos delinear tanto o fazer musical quanto o desenvolvimento musical, como ocorrendo emduas dimensões complementares: a compreensão musical e a técnica. Consideramos acompreensão como o entendimento do significado expressivo e estrutural do discurso musical,uma dimensão conceitual ampla que permeia e é revelada através do fazer musical. Asmodalidades centrais de comportamento musical - composição, apreciação e performance -são, portanto, indicadores relevantes da compreensão musical, as “janelas” através das quaisesta pode ser investigada. A técnica, por sua vez, refere-se à competência funcional para serealizar atividades musicais específicas, como desenvolver um motivo melódico na composição,produzir um crescendo na performance, ou identificar um contraponto de vozes na apreciação.Independentemente do grau de complexidade, à técnica chamamos toda uma gama de habilidadese procedimentos práticos através dos quais a concepção musical pode ser realizada,demonstrada e avaliada.

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Embora a compreensão e a técnica sejam aspectos interligados da experiência psicológica dofazer musical, é preciso desvencilhá-las conceitualmente no intuito de se clarear a natureza desua relação no desenvolvimento musical. Tal separação conceitual é válida pois é possível identificarníveis diferentes de desenvolvimento desses dois elementos em uma performance. É o caso, porexemplo, de um instrumentista de grande sensibilidade e musicalidade que apresenta umdesenvolvimento técnico elementar, ou de outro que demonstra grande habilidade técnica maslhe faltam aquela musicalidade e compreensão musical (SLOBODA, 1985, p.90).

Buscando suporte empírico para nosso argumento de que a compreensão é uma dimensãoconceitual que permeia todo fazer musical, sugerimos ser possível identificar um nível consistentede compreensão através das modalidades de composição, apreciação e performance (SILVA,1998; SWANWICK e CAVALIERI FRANÇA, 1999). A essa consistência chamamos simetria.Direcionamos, portanto, o foco desse estudo para investigar os níveis relativos de compreensãomusical demonstrados através das três modalidades, buscando responder a perguntas tais como:o nível de compreensão musical revelado em uma atividade pode ser um indicador do nível a seratingido em outra? Sob quais condições é provável que haja tal simetria na produção musicaldos alunos? Levantamos então a problemática central da pesquisa, incorporada na seguintehipótese: “a compreensão musical se manifestará de maneira simétrica (consistente) atravésdas três modalidades se a complexidade das atividades for controlada.”

O referencial teórico de desenvolvimento musical nesta pesquisa é o Modelo Espiral deDesenvolvimento Musical (originalmente em SWANWICK e TILLMAN, 1986, e ampliado emSWANWICK, 1994). O Modelo Espiral descreve o desenrolar da consciência em relação aoselementos do discurso musical: Materiais Sonoros, Caracterização Expressiva, Forma e Valor.A compreensão de cada um destes elementos revela uma polaridade entre tendênciasassimilativas e acomodativas1 (SWANWICK, 1994, p.86-7), identificando-se oito níveisqualitativamente diferentes, sequenciados hierárquica e cumulativamente: Sensorial eManipulativo (em relação aos Materiais Sonoros), Pessoal e Vernacular (CaracterizaçãoExpressiva), Especulativo e Idiomático (Forma), Simbólico e Sistemático (Valor), estes últimosrepresentando o ápice da compreensão da música como uma forma de discurso simbólico. DoModelo derivam critérios para avaliação do fazer musical, com versões adaptadas para cadauma das modalidades2 . Eles descrevem a essência da experiência musical, contemplando oque as três modalidades têm em comum: a articulação dos elementos do discurso musical

1 Conceitos piagetianos, assimilação e acomodação são processos cognitivos segundo os quais, respectivamente, apreendemos os estímulos sensoriais conforme nossos esquemas mentais, ou os modificamos quando estes são inadequados para interpretar os estímulos (PIAGET, 1974, p.69-82). Esquemas são estruturas cognitivas através das quais informações sensoriais são processadas e armazenadas (WADSWORTH, 1984, p.12).

2 Os critérios para avaliação da composição e da performance são dados em SWANWICK (1994, p.88-90; 108-9); os da apreciação aparecem inicialmente em SWANWICK (1988, p.153-4), e foram revisados pela autora para este estudo (SILVA, 1998, p.134-5).

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mencionados. Esses critérios se revelaram um instrumento tanto científica3 quanto musicalmenteválido para se avaliar a compreensão musical, seja qual for a modalidade. Desta forma, pudemosobservar a produção musical dos alunos através das três modalidades mantendo um elementode rigor científico.

II. Descrição do estudoA parte empírica da pesquisa foi realizada durante um período de cinco meses no Núcleo deEducação Musical de Belo Horizonte. Essa escola oferece uma educação musical com umaabrangência de experiência que nos permitiu investigar o desenvolvimento dos alunos atravésdas três modalidades. Os alunos têm, semanalmente, uma aula de instrumento (em duplas) euma de musicalização (em grupos), onde participam de atividades de composição e apreciação.

Devido à natureza dos dados necessários para o estudo, recorremos ao método de amostragemtípica (LAVILLE e DIONNE, 1997, p.170; ROBSON, 1993, p.141-2): foram selecionados 20 alunosque apresentaram uma produção musical diversificada o bastante para avaliarmos suacompreensão através das três modalidades. Eles tinham entre 11 e 13,5 anos, idades nas quaisjá teriam desenvolvido uma performance instrumental relativamente consistente. Também nestafaixa etária já teriam uma ampla vivência de criação musical e seriam capazes de articularverbalmente suas experiências de apreciação musical. Diferenças técnicas entre instrumentosforam controladas selecionando-se unicamente pianistas com um mínimo de três anos de estudonaquela escola. Um importante elemento de controle utilizado foi o método de observaçõesrepetidas, aumentando a validade interna do estudo (COOLICAN, 1994, p.52). Foram coletados180 “produtos” musicais, nove de cada aluno: três composições, três performances e relatos daapreciação de três peças, resultando em observações repetidas tanto dentro de cada modalidadequanto através das três modalidades.

A coleta de dados na modalidade apreciação aconteceu através de entrevista individual semi-estruturada. Os alunos ouviram três peças brasileiras instrumentais de aproximadamente doisminutos de duração: Dindi (JOBIM e OLIVEIRA, 1990), Canto da Suíte Quatro Momentos no. 3(AGUIAR, 1996) e Remechendo [sic] (GNATTALLI, 1997). As peças foram cuidadosamenteescolhidas para que a apreciação não fosse comprometida pelo nível técnico envolvido nasatividades; elas apresentavam articulação estrutural e caráter expressivo contrastantes ediversificados, sem serem, entretanto, demasiadamente complexas. Em seguida à audição, osalunos relataram o que haviam percebido.

Na modalidade performance, os alunos estudaram suas peças no decorrer do semestre conformeprocedimento normal do ensino instrumental. Estas foram escolhidas pelos respectivosprofessores de piano dentre obras como o Álbum para a Juventude Op.68 de Schumann, as24 Pequeñas Piezas Op.39 de Kabalevsky, o Livro de A. M. Bach e outras. As três performancesde cada aluno foram gravadas ao final do semestre.

3 A confiabilidade dos critérios para avaliação da composição e da performance foi estabelecida em estudos anteriores(SWANWICK, 1994 e STAVRIDES, 1995). A confiabilidade dos critérios para avaliação da apreciação foi estabelecidano presente estudo, com resultado do teste Kendall Coeficiente de Concordância ‘W’ = 0,9193, nível de significaçãop<0,0001. Este teste estatístico determina o grau de consenso entre jurados (SIEGEL, 1956, p.229). Nível designificação (p) representa o grau de confiabilidade do resultado de um teste estatístico; quanto menor o valornumérico de p, menor a probabilidade de erro dos resultados.

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Todas as composições foram produzidas individualmente nas últimas semanas do semestre. Otempo máximo permitido para realização de uma peça era de vinte minutos, período suficientepara que os alunos explorassem e organizassem idéias musicais em pequenas peças, sem queestas se tornassem complexas ou longas demais para serem memorizadas. Como há uma grandedefasagem entre a complexidade do que eles são capazes de criar e seu domínio da escritamusical, ainda elementar, optamos por gravar as composições e não pedir aos alunos que asanotassem. Os estímulos oferecidos para cada composição consistiam de materiais sonoros –tais como padrões rítmicos (síncope) ou melódicos (semitons) - ou elementos da técnica de piano- acordes, a técnica dos ‘chop sticks’ (tocar com os dois dedos indicadores alternadamente).Não foi oferecida nenhuma indicação de caráter expressivo ou de forma. A partir dos estímulos,todo o restante das composições era determinado pelos alunos, que poderiam até se distanciarda proposta inicial, se assim o desejassem. Desta forma, o nível de complexidade das peçasseria determinado por eles de acordo com suas possibilidades. Cada peça era gravadaimediatamente após concluída.

II.1. ResultadosTodos os 180 “produtos”, randomizados e anônimos, foram avaliados independentemente pordois grupos de quatro jurados, compostos por experientes professores de música, familiarizadoscom a Teoria Espiral. Eles identificaram o nível mais alto de compreensão musical revelado emcada um dos “produtos” conforme os critérios de avaliação do Modelo Espiral. O teste deconfiabilidade entre os jurados se revelou altamente significativo4 . De posse desses dados,procedemos ao teste para verificação da hipótese da simetria através das três modalidades. Osresultados revelaram claramente que a performance é a modalidade responsável pela não-simetriaentre as três modalidades5 . A diferença entre composição e apreciação não se revelouestatisticamente significativa, o que indica que os alunos atingiram resultados simétricos nessasduas modalidades.

Os julgamentos dos jurados foram transformados em resultados derivados para cada aluno emcada modalidade. A distribuição e extensão destes resultados derivados aparecem na Tabela 1e na Figura 1. Cada aluno aparece apenas uma vez em cada modalidade (composição, apreciaçãoe performance), no nível mais alto de compreensão revelado naquela modalidade. Os níveis doModelo Espiral contemplados foram desde o Vernacular até o Simbólico, distribuição compatívelcom estudos anteriores para esta faixa etária (STAVRIDES, 1995; HENTSCHKE, 1993)6 . Cabelembrar que os níveis do Modelo Espiral são ordenados hierárquica e cumulativamente, sendoum nível sempre mais complexo do que o anterior.

4 Primeiro grupo de jurados: Kendall Coeficiente de Concordância ‘W’: 0,7866, p<0,0001; Segundo grupo de jurados: Kendall Coeficiente de Concordância ‘W’: 0,6780, p<0,0001.5 Diferença entre cada par de variáveis determinada pelo Teste Friedman: Composição/Apreciação: Qui-quadrado: 0,4500; nível de significação p<1 (não significativo); Composição/Performance: Qui-quadrado: 8,4500; nível de significação p<0,01; Apreciação/Performance: Qui-quadrado: 9,8000; nível de significação p<0,001.6 Não foi encontrada correlação significativa entre os resultados e gênero ou idade dos alunos (p<1), o que legitimaa escolha da população como um grupo homogêneo para ambas as variáveis.

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Tabela 1: Distribuição dos 20 alunos por nível atingido em cada modalidade

Valor

Sistemático 0 0 0

Simbólico 1 0 1

Idiomático 15 14 2

Especulativo 4 6 10

Vernacular 0 0 7

Pessoal 0 0 0

Manipulativo 0 0 0

Sensorial 0 0 0

Total 20 20 20

NíveisComposição Apreciação Performance

Materiaissonoros

Caráterexpressivo

Forma

Modalidades

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Verificou-se que nas modalidades composição e apreciação os resultados se concentraram nosníveis Especulativo e Idiomático, enquanto que houve uma maior dispersão de níveis mais baixosna performance, com sete alunos atingindo o nível Vernacular. Isso quer dizer que a maioria dosalunos atingiu um nível de compreensão musical mais elevado e consistente na composição e naapreciação7 , enquanto que suas performances se revelaram bem menos desenvolvidas.

III. DiscussãoPrimeiramente, os resultados simétricos entre a composição e a apreciação demonstram que acompreensão musical é uma dimensão conceitual ampla que opera através de mais de umamodalidade. Segundo, a não-simetria encontrada na performance confirma a nossa hipótese,indicando que a manifestação da compreensão musical pode ser comprometida se as atividadesnão forem apropriadas e acessíveis aos alunos. Dois aspectos se entrelaçam na análise dessequadro apresentado na performance: o nível de articulação técnica envolvido nas atividades e anatureza desta modalidade, conforme será discutido a seguir.

III.1. A questão da técnicaO problema da técnica parece ter causado um impacto importante na performance, o que ficabastante evidente ao compararmos a produção musical dos alunos entre esta modalidade e acomposição. Enquanto que a performance se revelou como o indicador menos adequado dacompreensão musical dos alunos, apresentando uma distribuição maior de níveis mais baixos, acomposição apresentou um quadro oposto: os mesmos alunos foram capazes de demonstrarníveis bem mais elevados de compreensão musical através de suas criações. Isso torna-se maismarcante considerando-se que as composições foram produzidas dentro de vinte minutos,enquanto que as performances foram ensaiadas durante um semestre letivo.

Nas atividades de composição, os limites técnicos dentro dos quais as peças seriam concebidaseram determinados pelas possibilidades dos alunos naquele momento, pois os estímulosoferecidos como ponto de partida não impunham nenhuma limitação técnica – nem do ponto devista composicional, nem em relação à técnica instrumental. Conseqüentemente, à semelhançado que aconteceu na apreciação, sua compreensão musical pôde se expandir até o nível ótimode desenvolvimento determinado pela sua maturidade - ou bastante próximo a ele. Se acomplexidade técnica das atividades não tivesse sido controlada, provavelmente teríamosverificado resultados mais baixos nessas modalidades ou, pelo menos, mais heterogêneos.

A análise da produção das crianças mostra casos em que todo o refinamento, o toque cuidadoso,o fraseado expressivo, a articulação estrutural, os gestos cadenciais, muitas vezes revelados emsuas composições, desapareciam por completo nas suas performances. Em alguns casos, alunosque não eram capazes de realizar uma frase de maneira expressiva ao tocar uma peça do seurepertório, produziam frases musicalmente consistentes ao executar suas composições. Essaobservação demonstra a realização musical da técnica, com o propósito imediato de expressar

7 A homogeneidade dos resultados na apreciação pode ser parcialmente explicada pelo fato de que nesta modalidadeas variáveis musicais foram controladas, pois todos os alunos estavam respondendo às mesmas peças.

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uma idéia ou efeito desejado. Muitas vezes um aluno era levado a tocar uma peça do seu repertórioem andamento bem mais lento do que o desejável devido à dificuldade técnica da peça, o quecertamente afetava o sentido musical e estilístico da obra. Não obstante, em todas as composições,a escolha do andamento demonstrava grande sensibilidade, sendo este parâmetro extremamenteapropriado para valorizar a expressividade da composição e permitir a fluência do discursomusical.

Observamos também muitos casos de alunos que tocavam um repertório bastante tradicional,escolhido quase sempre de acordo com seu nível de leitura, mas que produziram composiçõesinteressantes, ousadas e estilisticamente consistentes. Eles produziram uma enorme variedadede caráter, forma, tessitura e idioma, utilizando uma gama de possibilidades de colorido harmônico,de melodia, fraseado, textura, experimentados nas atividades de apreciação e composiçõescoletivas, permitindo o florescimento de uma riqueza e diversidade musicais intrigantes. Se aquelesalunos estivessem sendo avaliados somente através de sua performance instrumental, a extensãode sua compreensão - sua qualidade de pensamento musical - estaria sendo seriamentesubestimada.

III.2. A natureza psicológica das modalidadesOs resultados encontrados na performance chamam a atenção para a natureza psicológica dasmodalidades, sugerida por SWANWICK (1983, p.17-25). Além de envolver diferentes níveis deengajamento cognitivo e afetivo, a natureza peculiar de cada modalidade impõe diferentes níveisde liberdade e de decisão em relação ao discurso musical. A performance instrumentalnormalmente requer um grande esforço de acomodação: ao tocar uma peça composta por umaoutra pessoa em outro tempo e lugar, o indivíduo tem que se ajustar a uma série de elementos, odomínio de elementos técnicos tornando-se, freqüentemente, um desafio, desde a leitura (se foro caso) até uma caracterização estilística específica. Ao contrário, a composição (sem restriçõestécnicas) envolve mais nitidamente o jogo imaginativo, permitindo maior liberdade criativa,revelando uma tendência para a assimilação: ao compor, os alunos praticam, reorganizam erefinam seus esquemas musicais, de acordo com seu desejo e a motivação interna. ComoVYGOTSKY (1978, p.102-3) sugeriu, no jogo imaginativo as crianças podem superar o nívelesperado para sua faixa etária, o que reforça o potencial da composição no sentido de possibilitarum nível de pensamento musical mais sofisticado. Nesse sentido, este estudo traz algum suportecientífico para o longo comprometimento de alguns estudiosos, especialmente PAYNTER e ASTON(1970), PAYNTER (1977, 1982, 1992), em relação à relevância da composição na educaçãomusical.

A questão assimilação/acomodação também envolve fatores como preferência pessoal emrelação a caráter expressivo e estilo. A empatia com estilos preferidos pode permitir umenvolvimento maior dos componentes intuitivos e assimilativos na performance. Não ésurpreendente que, em vários casos, os alunos tenham tocado suas composições de uma maneiramais sensível e musicalmente consistente do que as peças de seu repertório tradicional de piano.Ao executar suas próprias composições, eles estão tocando algo tecnicamente apropriado paraseus dedos e expressando seu próprio pensamento musical, com suas formas, expressividade esignificado: eles têm a oportunidade de ‘falar’ por eles mesmos.

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IV. A performance em perspectivaA performance instrumental carrega uma pesada tradição: o concertista virtuose aparenta ser oparadigma do músico e do fazer musical (SLOBODA e DAVIDSON, 1996, p.171; REIMER, 1989,p.208; HARGREAVES, 1996, p.148). Isto pode contribuir para perpetuar uma concepção de ensinotradicional que tende a enfatizar o desenvolvimento técnico instrumental e a tradição musicalescrita (COPE e SMITH, 1997, p.285) em detrimento de um fazer musical mais expressivo,consistente e musicalmente significativo. As demandas do repertório instrumental freqüentementepressionam os alunos além do limite técnico que eles dominam. Nessas circunstâncias, o ensinopode resultar em um mero treinamento, que não oferece oportunidade para decisão criativa eexploração musical expressiva. Todo o prazer e a realização estética da experiência musicalpodem ser facilmente substituídos por uma performance mecânica, comprometendo odesenvolvimento musical dos alunos. Não raro, sua performance resulta sem um sentido musical,sem caracterização estilística, sem refinamento expressivo e/ou coerência. Só é possível a umindivíduo tomar decisões expressivas dentro de uma gama de exigências técnicas que ele possacontrolar. Como é possível, por exemplo, produzir um rallentando expressivo se não se conseguetocar a tempo? Certamente o repertório deve oferecer desafios para que os alunos se desenvolvamtecnicamente. Mas é preciso que, paralelamente, haja oportunidades para tocarem peças maisacessíveis, que possam realizar mais confortavelmente, com expressão, toques imaginativos ecom um senso de estilo, tomando decisões expressivas sobre um material que podem controlar.É essencial encontrarmos um equilíbrio entre o desenvolvimento da compreensão musical e datécnica, pois somente quando um indivíduo toca aquilo que pode realizar confortavelmente é quepodemos avaliar mais efetivamente a extensão de sua compreensão musical.

Observamos também que existe um certo fascínio envolvendo a notação musical, e que a iniciaçãoà escrita representa uma grande aquisição para os alunos. O poder da notação musical é tal queesta logo passa a dominar o processo de ensino instrumental. O prazer de improvisar de formalúdica, tocar de ouvido ou por imitação, é substituído pela “seriedade” de se “ler” uma partitura.Embora a leitura musical seja um aspecto imprescindível do aprendizado musical, levará anosaté que os alunos sejam capazes de ler e tocar música de forma tão rica e interessante rítmica emelodicamente, com tão ampla tessitura e textura, quanto tudo aquilo que ele pode realizar tocandode ouvido, por imitação e, principalmente, improvisando. É preciso que nós professores osajudemos a conservar aquele senso de espontaneidade e imaginação nas suas performances, arestaurar e renovar o componente de assimilação necessário para se realizar uma interpretaçãoexpressiva e imaginativa, contrabalançando assim o grande esforço de acomodação exigido naperformance.

V. Estudo em andamentoA continuidade desta pesquisa está sendo conduzida em nível de graduação, tendo em vista asimplicações da escolha do repertório para o desenvolvimento musical do aluno. Trata-se de umestudo longitudinal durante três semestres letivos envolvendo alunos do Curso de Bachareladoem Instrumento da Escola da Música da UFMG. A escolha do repertório dos alunos de piano seráacompanhada, assim como o desenvolvimento destes no decorrer dos três semestres. Pelo menosuma peça do repertório escolhido deverá ser acessível ao aluno naquele momento, isto é, nãoexigir um domínio técnico além do que ele possui no início do semestre em questão. A coleta

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principal de dados se dará em três momentos, ao final de cada semestre. Parte do repertório decada aluno será gravado e catalogado para análise. Outras variáveis serão consideradas, taiscomo horas semanais de estudo, metodologia de estudo, histórico familiar e idade dos alunos.Estes dados serão coletados em entrevista e através de observação não participante. Umaamostragem das performances gravadas será submetida a um painel independente de três jurados,professores de piano, que avaliarão cada uma delas de acordo com o Modelo Espiral deDesenvolvimento Musical. Uma vez confirmada a validade do critério, o julgamento do restantedas performances será realizado pela própria pesquisadora.

O estudo pretende identificar: a) o nível ótimo de desenvolvimento musical dos alunos através desuas performances; b) diferenças de nível de compreensão musical entre as performances de umaluno em um mesmo semestre de acordo com o Critério Espiral; c) possível desenvolvimento dacompreensão musical dos alunos no decorrer dos três semestres. Alguns casos serãoselecionados, de acordo com sua tipicidade, para serem estudados com mais profundidade,enfocando-se a relação do desenvolvimento dos alunos com o repertório estudado.

VI. ConclusãoOs resultados do estudo realizado apontam para a necessidade de nos empenharmos em umareflexão mais profunda e sistemática a respeito do que realmente importa quando um aluno fazmúsica, e como a natureza desse fazer musical afeta seu desenvolvimento musical. Primeiramente,os resultados oferecem suporte empírico à idéia de que a educação musical deve propiciar umavariada gama de experiências musicais, ao invés de se concentrar exclusivamente na performance.A produção musical do grupo de alunos deste estudo revela que as três modalidades vinhamnutrindo sua experiência musical por diferentes ângulos. Observa-se que a experiência integradanas três modalidades pode intensificar o processo de desenvolvimento musical dos alunos.A apreciação enriquece o repertório de possibilidades expressivas sobre as quais, através dacomposição, os alunos podem agir criativamente, transformando, reconstruindo e reintegrandoidéias em novas formas e com novos significados. Ficou evidente que as diferentes modalidadespodem ser melhores ou piores indicadores do nível ótimo de compreensão dos alunos, de acordocom a natureza da atividade e a complexidade técnica envolvida. É fato também que diferentesalunos podem demonstrar maior interesse ou habilidade por uma ou outra modalidade decomportamento musical.

Segundo, é imprescindível desvencilharmos o nível técnico envolvido em uma atividade e o nívelde compreensão musical que é promovido através da mesma. Uma atividade tecnicamentecomplexa pode não envolver (e desenvolver) um nível elevado de compreensão musical, e vice-versa. Decorre daí a implicação mais relevante deste estudo: a relação entre manifestar acompreensão e desenvolver a compreensão. Níveis mais sofisticados de “funcionamento”cognitivo não são atingidos se o indivíduo não tem a oportunidade de praticar tais qualidades depensamento. Portanto. é preciso que o aluno tenha a oportunidade de realizar peças maisacessíveis para que possa ‘funcionar’ no seu nível musical ótimo (ou o mais próximo possíveldeste), para que desenvolva essa qualidade de pensamento musical mais refinada. Se ele já sedesenvolveu musicalmente a ponto de se expressar musicalmente em um nível mais elevado,mas é levado a tocar peças que tecnicamente estão além da sua capacidade, tal refinamento

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não poderá ser consolidado ou manifestado no seu nível ótimo. Na realidade, seu desenvolvimentomusical estaria sendo comprometido.

É importante considerar as possibilidades de generalização deste estudo. Apesar do pequenonúmero de casos envolvidos, estes foram estudados com um nível de detalhe que nos permitiuabordar a relação entre a compreensão e a técnica através das três modalidades, bem comoverificar a importância relativa de cada modalidade para o desenvolvimento musical. Namodalidade em que as atividades se revelaram menos acessíveis (performance), a manifestaçãoda compreensão musical dos alunos foi comprometida. O mesmo poderia ter acontecido nasoutras modalidades se as atividades propostas tivessem sido mais complexas. Desta forma,podemos generalizar as conclusões: seja qual for o nível dentro do qual se está operando, se ademanda técnica é maior do que o indivíduo domina, este pode não ser capaz de demonstrar aextensão da sua compreensão musical.

O ponto crucial parece ser, portanto, a escolha do repertório (problema que será abordado nacontinuidade desta pesquisa), para que este permita aos alunos revelarem a sofisticação de seupensamento musical de forma adequada e confortável. Certamente, é necessário escolher peçasou exercícios cuja finalidade seja desenvolver questões técnicas específicas. Isso se tornaproblemático, no entanto, se acontece de tal forma que os alunos sejam obrigados a enfrentarseguidos desafios técnicos sem que haja oportunidade para utilizarem tais recursos técnicoscom expressividade e sentido musical. Pois, se o aluno não realiza música em um nível dentro doqual ele possa tomar decisões expressivas, como ele pode se desenvolver musicalmente? Seele não tem a oportunidade de ‘funcionar’ em níveis mais elevados de compreensão musical,como estes poderiam ser atingidos? Como ele pode ter uma experiência estética gratificanteenquanto ainda está preocupado com a “terceira ou quarta posição”? Como ele pode se engajarno fazer musical como uma forma de discurso simbólico se não tem oportunidade de produziruma frase musicalmente significativa? Precisamos encontrar um equilíbrio entre o desenvolvimentoda técnica e da compreensão, se pretendemos estar comprometidos com o potencial daexperiência musical para desenvolver a mente, abrir novos horizontes e aprofundar a vida intelectuale afetiva dos alunos.

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Cecília Cavalieri França é professora adjunto da Escola de Música da UFMG, onde coordenaas áreas de musicalização e teclado do Centro de Musicalização Infantil (CMI). Doutora emEducação Musical (1998) e Mestre em Educação Musical (1996) pelo Institute of Education daUniversity of London, Inglaterra, onde defendeu a tese Composing, performing andaudience-listening as symmetrical indicators of musical understanding sob orientação do Prof.Dr. Keith Swanwick. É também Especialista em Educação Musical (1994) e Bacharel em Piano(1993) pela UFMG.

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Viol Will de Paul McIntyre: anatomia de um madrigal serialcanadense para voz e contrabaixo 1

Anthony Scelba(Tradução de Fausto Borém)

Resumo: Apresentação da peça dodecafônica Viol Will, a Madrigal for Soprano and Bass Viol para soprano econtrabaixo composta pelo compositor canadense Paul McIntyre, a partir de excertos de Shakespeare que mencionama palavra viol. Inclui uma análise da forma, utilização da série e das relações texto-música, a tradução do textooriginal para o português e a partitura completa.Palavras-chave: Paul McIntyre, Viol Will, composição, contrabaixo, soprano, voz, Shakespeare, música de câmara

Viol Will by Paul McIntyre: anatomy of a canadian serial madrigalfor soprano and bass viol

Abstract: Introduction of Viol Will, a Madrigal for Soprano and Bass Viol for soprano e double bass by the Canadiancomposer Paul McIntyre, a dodecaphonic work based on Shakespeare´s excerpts which mention the word “viol”. Itincludes the complete score and an analysis of the formal structures, usage of the series, text painting, translation ofthe original text into Portuguese and the complete score.Keywords: Paul McIntyre, Viol Will, composition, double bass, soprano, voice, Shakespeare, chamber music

Há alguns anos, um jovem contrabaixista profissional de nome Steve McIntyre veio estudar comigo.Em aula, sugeri que ele motivasse o pai, o compositor canadense Paul McIntyre, recentementeaposentado na Escola de Música da Windsor University em Windsor, Ontário, a escrever umaobra de concerto para o contrabaixo. Um dia, Steve trouxe a notícia que seu pai havia se deparadocom alguns textos particularmente interessantes de Shakespeare que lhe inspiraram a comporuma obra para soprano e contrabaixo. Pouco tempo depois, Dr. McIntyre me enviou Viol Will: AMadrigal for Soprano and Bass Viol, dedicada a Katherine Harris, professora e colega na KeanUniversity, e a mim.

A peça é baseada em trechos de duas obras de Shakespeare: Pericles (Ato I, Cena i, linhas81-85) e Richard The Second (Ato I, Cena iii, linhas 161-165). Segundo McIntyre, esses são dois

1 Artigo inédito em qualquer idioma, Viol Will, a Madrigal for Soprano and Bass Viol: anatomy of a chamber work byPaul McIntyre foi livremente traduzido como parte do projeto de pesquisa Contrabaixo para Compositores, viabilizadocom recursos do CNPq, FAPEMIG e Fundo Acadêmico UFMG/FUNDEP. Os exemplos musicais foram elaboradospor Fausto Borém e Hudson Cunha. No título da obra Viol Will, o compositor McIntyre traduz o desejo de se tocaro instrumento musical, ao mesmo tempo em que faz referência ao apelido de William Shakespeare.

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dos três únicos excertos em toda a obra do grande mestre inglês que contêm a palavra viol.2

O compositor justapôs estas passagens, resultando no espirituoso texto de sua canção:

You are a fair viol and your sense the stringsThe strings, who,fingered to make man his lawful music,Would draw heaven down and all the gods to hearken

But being play´d upon before your time,Hell only danceth at so harsh a chime.

And now my tongue´s use to meno more than an unstringed viol or a harp,or like some cunning instrument cased up,or, being open, put into his handsthat knows no touch to tune the harmony

A peça começa com o contrabaixo tocando uma longa melodia lírica, que estende-se da cordasolta Mi1 no extremo grave ao Lá4na parte mais aguda do espelho3 (Ex.1). A série aproxima-seda típica linguagem idiomática do contrabaixo por incluir a predominância de intervalos melódicospequenos (segundas e terças), cordas soltas (Mi1 logo no c.1) e a possibilidade de harmônicosnaturais para facilitar mudanças de posição (Lá3 e Ré4 no c.7, Sol3 no c.8).

Ex.1 - Solo de contrabaixo no início de Viol Will contendo as formas da série utilizadas (Po, RIo, P6 e Ri6)

Tú, doce viola da gamba, tem nas cordas seu sentidoCordas que, dedilhadas,Tornam o homem tua música mais legítimaTrariam à terra o Céu e fariam todos os deuses escutar

Mas, tocadas fora de seu tempo,Só o Inferno dançaria ao som de tão áspero tilintar

E agora, minha língua não vale maisQue um violone ou harpa sem cordasTal como um hábil instrumento fechado em seu estojoOu, fora dele, em mãos que desconhecemO toque para afinar esta harmonia

2 Nota do Tradutor (N.T.): O termo inglês Viol se refere aos instrumentos da família da viola da gamba ou viola dabraccio, populares na música de câmara européia desde a Renascença, especialmente na Inglaterra. Nesse artigo,viol foi traduzido como (1) viola da gamba, para evitar o ambíguo termo viola (caipira, de doze cordas etc.) emportuguês e como (2) violone (o mais grave dos membros da família das violas da gamba), para fazer referência aocontrabaixo, instrumento ao qual a peça se destina.

3 As notas escritas na parte do contrabaixo soam uma oitava abaixo, pois é um instrumento transpositor.

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Somente ao chegar à passagem do c.80 - uma retrogradação que completa o arco da melodiainicial do contrabaixo (Ex.2), é que parei para contar as primeiras doze notas da obra e perceberque Viol Will era uma composição serial. Sob o ponto de vista da técnica do contrabaixo, autilização de um retrógrado economiza o tempo de estudo, uma vez que envolve as mesmasnotas, só que no caminho inverso, equivalendo à técnica comumente utilizada por instrumentistasde cordas para corrigir a afinação em mudanças de posição.

Ex.2 - Retrógrado do início de Viol Will no contrabaixo

A série dodecafônica de Viol Will apresenta características tonais e motívicas tão evidentes quechegam a mascarar a organização formal das alturas empregadas. De fato, McIntyre descreveuos passos através dos quais derivou a série dodecafônica a partir de três palavras essenciais àobra: “Viol”, “Will[iam]” e “Shakespeare” (Ex.3):

1- Após eliminar as letras que se repetem nestas palavras, chega-se à seqüência de doze letrasVIOLSHAKEPRW.

2- A estas doze letras dá-se os números de 0 a 11 de acordo com sua ordem alfabética (i.e., A=0,H=2, I=3, K=4 etc.). Cada número representa o número de semitons acima de A=0.

3- Para se obter a série, atribui-se a nota Dó natural à letra A e, de acordo com o número dasoutras letras (ou semitons), nomeia-se as demais notas da escala cromática (i.e., A=Dó,H=Dó#, I=Ré, K=Ré# etc.). Assim, Si bemol (V=10) seria a primeira nota da série (Ex.3)

4- Para se obter a Série Original (Po ou Prime), a série foi transposta para iniciar-se com oMi natural, que é a nota mais grave do contrabaixo de quatro cordas (Ex.1 acima).

Ex.3 - Processo de obtenção da série de Viol Will a partir das palavras “viol”, “Shakespeare” e “Will”

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A superposição das duas notas finais e iniciais de duas séries adjacentes, permitindo um ciclocompleto com a utilização de apenas quatro formas da série (Ex.4), é uma característica marcanteda série utilizada por McIntyre, oferecendo grande unidade à estrutura formal de Viol Will. Naspalavras do próprio McIntyre: “A série original Po combinada com sua forma RIo chega a P6. Quandoeste processo é repetido chegamos de novo ao início, ou seja, Mi-Lá”.

Ex.4 - Superposição das formas Po, RIo, P6, Ri6 e (novamente) Po da série no processo cíclico de composição de Viol Will

A maneira como McIntyre utiliza a série não apenas enfatiza o intervalo de quarta justa (associadoà afinação do contrabaixo), mas evidencia também tríades que, além de refletir o texto, ironicamentesugerem a dualidade maior-menor em uma obra dodecafônica. Em uma correspondência a mimenviada, o compositor relata que buscou inspiração na música do início da Renascença italianapara a composição de Viol Will: “Na época estava pensando, pelo menos parte do meu tempo,sobre os madrigais italianos do século XIV, especialmente alguns de Jacopo de Bologna, comseus textos enigmáticos e polifonia idiossincrásica.”

Embora conhecesse Non al suo amante (DAVISON, 1950), Fenice fù (PALISCA, 1996) e algunsoutros dos trinta e quatro madrigais de Jacopo de Bologna, eu não teria adivinhado que McIintyreteria se inspirado em uma peça do Trecento. Depois de alguma reflexão, compreendi que aquelasconsonâncias em Viol Will, características na série escolhida pelo compositor, nunca resultariamem tonalidade não apenas por fazerem parte de uma estrutura dodecafônica, mas também porserem reminiscentes do elegante e sofistricado coontraponto modal de Jacopo (Ex.5).

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Ex.5 - Reminiscências estilísticas de Jacopo de Bologna em Viol Will

A estrutura formal de Viol Will é um rondó A B A´ C A´´, cujas seções, sempre introduzidas pelocontrabaixo sozinho e claramente delimitadas por barras duplas, são baseadas em contraste deandamento, dinâmica, tessitura, articulação e timbre, sugeridos pelo conteúdo do texto. Os trêsrefrões, em Andante tranquillo e piano (ou pianissimo), são caracterizados por melodias líricascom tessituras e intervalos mais amplos (seqüências de quartas, saltos de oitavas diminutas,sextas aumentadas etc.), sempre em legato no contrabaixo com arco e no soprano. O procedimentode repetir partes do texto, além de enfatizar seu conteúdo, serve ao propósito de completar aapresentação das notas de cada forma da série dodecafônica nos Refrões A, A’e A’’:

Refrão A (c.1-49):“Tú, bela viola da gamba, tem nas cordas sua essênciaTú, bela viola da gamba, tem nas cordas sua essênciaCordas que, dedilhadas, tornam o homem tua música mais legítimaTrariam à terra o Céu e fariam todos os deuses escutar”

Refrão A´ (c.80-98)“Tú, bela viola da gamba,Tú, bela viola da gamba,

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bela violabela violabela viola”

Refrão A´´ (c.160-170)“Tú, bela viola da gamba,Tú, bela viola da gamba,bela violabela violaviolaviolaviola»

Os refrões se alternam com duas digressões de caráter mais eloqüente (em dinâmica forte) e emandamento mais rápido: Allegro (seção B) e Piu animato (Seção C). Na primeira digressão(Allegro, c.50-79, Ex.6), as violentas e anacrústicas interferências do contrabaixo em cordas duplasstacatto al tallone [onde os intervalos da série são apresentados livremente como bicordes desegundas maiores e menores, terça menor e quartas justas e aumentadas] preparam a entradado soprano, que fixa-se no Sib3 em caráter declamatório para dizer:

“Mas, tocadas fora de seu tempo [as cordas da viola], Só o Inferno dançaria ao som de tãoáspero tilintar.”

Ex.6 - Trecho da primeira digressão (seção B) da estrutura de rondó ABA´CA´´ de Viol Will

Na segunda digressão (Piu animato, c. 99-158, Ex.7), o contrabaixo traz de volta a linhaapresentada no início da peça, indo do registro grave ao super-agudo (Mi-1 ao Lá4), mas agoracom um caráter de acompanhamento, sempre em colcheias pizzicato. O resultado sonoro abafadodos pizzicatos pouco ressonantes no final do espelho do contrabaixo reforçam o tom indignadodo texto, que também explora a região mais aguda da voz (c.112):

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E agora, minha língua não vale mais,E agora, minha língua não vale mais,Que um violone ou harpa sem cordas

Ex.7 - Trecho da segunda digressão (seção C) da estrutura de rondó ABA´CA´´ de Viol Will

A última parte da segunda digressão (c.134) é marcada por um retorno à dinâmica piano, adescida do soprano ao seu registro mais grave e uma diminuição da atividade rítmica até suatotal dispersão. Aqui também, os recursos composicionais de McIntyre refletem a relação texto-música, buscando expressar uma atmosfera mais reflexiva, conclusiva:

Tal como um hábil instrumento fechado em seu estojo,Ou, fora dele, em mãos que desconhecem o toque,O toque, o toque para afinar esta harmonia.

Na conclusão de Viol WillI, o último refrão do rondó concentra diversas referências tonais. Primeiro,independentemente e em caráter imitativo, as linhas do contrabaixo e do soprano esboçam atonalidade de Mi bemol maior (c.160 e c.162), que é seguida pelo acorde de Mi maior (c.160-161e c.164-165; referência à sexta napolitana?). Depois, um dó natural transforma a tríade de Lámaior em Lá menor, numa irremediável referência ao jogo maior-menor do tonalismo (c.163-164). Finalmente, enquanto o contrabaixo fixa-se na nota Ré, distribuída em quatro oitavas, osoprano oscila entre as notas Sol bemol (ou Fá sustenido) e Fá natural, sintetizando o conflitomaior-menor inerente à série, como num adeus à sua bela viola da gamba (Ex.8).

Não obstante a linguagem serial-contrapontística da obra, a primeira audição de Viol Will foirecebida com entusiasmo. O lirismo e a sutil utilização do texto fazem desta peça uma importantecontribuição ao pouco explorado repertório camerístico da voz e contrabaixo.

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Ex.8 - Refrão final A´´contendo referências tonais na conclusão de Viol Will

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Anthony Scelba foi o primeiro contrabaixista a receber o Doctor of Musical Arts na JuilliardSchool, EUA. Vencedor do Fulbright Performing-Artist Award de Seul, Coréia, em 1983-1984,apresenta-se regularmente na região de New York como recitalista e membro do Yardarm Trio.Foi o primeiro contrabaixista da New Jersey Symphony por dez anos e, atualmente, é professorda Kean University, New Jersey, onde ensina contrabaixo, história da música e análise.

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Performance de harmônicos naturais com a técnica de nododuplo aplicada ao violoncelo

Cláudio Urgel Pires Cardoso

Resumo: O artigo é um estudo sobre a técnica de performance dos harmônicos naturais do violoncelo, na qual doisnodos adjacentes, de um mesmo modo de vibração e em uma mesma corda são tocados simultaneamente. Atécnica tem três utilidades principais: primeiro, ela aumenta o número de nodos disponíveis para a performance dealguns harmônicos naturais; segundo, ela facilita a performance de passagens musicais que envolvem sons harmônicos;terceiro, ela reforça e assegura a performance de qualquer harmônico natural. São apresentados três exemplos daaplicação da Técnica de Nodo Duplo a passagens musicais do repertório do violoncelo.Palavras-chave: Performance Musical, Violoncelo, Sons Harmônicos

Cello Natural Harmonics Performed with the Double-NodeTechniqueAbstract: The article is a study on a performance technique of the cello natural harmonics in which two adjacentnodes, of the same mode of vibration and on the same string are touched simultaneously. The technique has threespecial utilities: first, it increases the number of nodes for the performance of some natural harmonics; second, itmakes easier to perform musical passages in which harmonic tones are involved; third, it reinforces and assures theperformance of any natural harmonic. Three examples of the application of the double-node technique to musicalpassages of the cello repertoire are presented.Key-words: Musical Performance, cello, Harmonic Tones

I - INTRODUÇÃODe acordo com a ciência acústica, sons produzidos por instrumentos musicais são compostosde outros sons chamados harmônicos1 ou parciais. A fim de evitar, neste texto, o uso excessivoda palavra harmônico ao nos referirmos aos sons que compõem outro som e à performancedesses mesmos sons, usaremos o termo parcial para os componentes de um som e somharmônico para o efeito especial em discussão.

Quando a corda de um instrumento vibra, ela produz diferentes modos de vibração, os quaisvibram ao mesmo tempo gerando os parciais. Estes parciais compõem o som produzido poraquela corda (som percebido). Os modos de vibração de uma corda são divididos por nodos,sem precisar apertar a corda contra o espelho. Diferentemente da técnica de performance regular,

1 Os principais termos técnicos usados neste artigo estão definidos no Glossário e sua primeira ocorrência no textoé indicada com o estilo de fonte negrito. As definições têm apenas o objetivo de esclarecer o seu uso neste texto.

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corda presa, para tocarmos os sons harmônicos, usamos um leve toque de um dos dedos damão esquerda sobre os nodos. Com esse leve toque sobre os nodos, eliminamos alguns dosmodos de vibração (parciais) que compõem um som, dando aos sons harmônicos o seu timbrecaracterístico. Como exemplo, se estamos tocando o sexto harmônico natural, eliminamos todosos parciais que não sejam múltiplos inteiros de seis, ou seja, somente estarão compondo o somouvido o sexto parcial, o décimo segundo, o décimo oitavo e assim por diante. Chamaremosesta técnica de Técnica de Um Nodo para diferencia-la da que iremos discutir neste texto. AEx.1 ilustra alguns dos conceitos apresentados acima.

Ex.1 - Os primeiros quatro modos de vibração de uma corda. Para todos os modos de vibração (1ª coluna) sãomostrados seus parciais correspondentes e os sons harmônicos que poderão ser produzidos a partir deles(3ª coluna), assim como os nodos de cada modo (2a coluna), indicados com frações do comprimento da corda, e onodo de som real.

Pestana Cavalete

1º Modode

Vibração

2º Modode

Vibração

3º Modode

Vibração

4º Modode

Vibração

1º Parcial(Som Fundamental)

2º Parcial(2º Harmônico

Natural)

3º Parcial(3º Harmônico

Natural)

4º Parcial(4º Harmônico

Natural)

nodo de som real

nodo de som real

nodo de som real

nodo

nodo nodo

1/2

1/3 2/3

1/4 2/4 3/4

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Os modos de vibração têm nodos comuns chamados nodos coincidentes. Os nodos coincidentessão pontos na corda em que encontramos mais de um nodo de diferentes modos de vibração. Acoincidência de nodos é melhor entendida com as frações que indicam a localização desses pontos.Nos nodos em que há a equivalência de frações, acontecem os nodos coincidentes, i.e., o ponto 1/2equivale ao 2/4, ao 3/6, ao 4/8 e assim por diante. Essa característica de vibração das cordas cria umproblema para a performance dos sons harmônicos. Em um ponto da corda onde acontece acoincidência de nodos, o modo de vibração mais baixo (numericamente inferior) será semprepreponderante sobre os outros modos e o som harmônico produzido (som ouvido) será sempre o domodo de vibração mais baixo. Outros sons harmônicos, numericamente superiores, produzidos apartir de modos de vibração que tenham nodos naquele mesmo local, não poderão ser tocados apartir destes nodos coincidentes. Como exemplo, no sexto modo de vibração, a partir do qual étocado o sexto harmônico natural, existem teoricamente cinco nodos (no sexto modo de vibração, acorda está dividida em seis partes iguais com cinco nodos), contudo somente dois podem ser usados,os não coincidentes localizados nos pontos 1/6 e 5/6. Os outros três são coincidentes com nodos demodos de vibração mais baixos: o nodo 2/6 é coincidente com o nodo 1/3 do terceiro modo devibração (produz o terceiro harmônico natural); o 3/6 é coincidente com o 1/2 do segundo modo devibração (produz o segundo harmônico natural); e o 4/6 é coincidente com o 2/3 do terceiro modo(produz o terceiro harmônico natural). Em resumo, podemos dizer que, quando a técnica de um nodo éusada, o som harmônico produzido (som ouvido) é sempre aquele do modo de vibração mais baixo quetenha um nodo naquele local específico. Os demais sons harmônicos, os quais têm nodos naquele localda corda, não podem ser tocados a partir daquele nodo. A Ex.2 ilustra as idéias apresentadas acima.

Ex.2 - A coincidência de nodos do sexto modo de vibração (2/6, 3/6, 4/6) com nodos do terceiro modo (1/3 e 2/3) e dosegundo modo (1/2). Além dos modos de vibração, são apresentados (1a coluna) os sons harmônicos que podem serproduzidos a partir destes modos. Os nodos de cada modo são indicados com frações do comprimento da corda (2a coluna).

Um bom experimento para verificar esta teoria, no caso de violoncelistas, é tocar o sexto harmôniconatural na corda Dó, a partir do nodo 1/6 (Mib1) ou 5/6 (Sol3) e olhar para a corda na direção dosoutros nodos, localizados nos pontos 2/6 (Sol1) 3/6 (Dó2), 4/6 (Sol2). É possível visualizar os nodos(pontos que não vibram), contudo, o sexto harmônico natural não pode ser tocado a partir daquelesnodos com a técnica regular, técnica de um nodo (Ex.3).

6º Modo de Vibração

(6º Harm. Natural)

3º Modo de Vibração

(3º Harm. Natural)

2º Modo de Vibração

(2º Harm. Natural)

1/6 2/6 3/6 4/6 5/6coinc coinc. coinc.

1/3 2/3

1/2

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Ex.3 - Nodos do sexto harmônico natural na corda Dó do violoncelo.O Sol3 (sexto parcial) é o som produzido, o qualpode ser tocado a partir dos nodos localizados sobre a nota Mib1 e Sol3 na corda Dó (1/6 e 5/6). Os outros nodos(nodos coincidentes) localizados sobre o Sol1 (2/6), Dó2 (3/6) e Sol2 (4/6) podem ser visualizados na corda quando osom harmônico é tocado, mas não é possível produzir o sexto harmônico natural a partir deles.

II - A TÉCNICA DE NODO DUPLOÉ devido ao problema apresentado acima que a Técnica de Nodo Duplo tem a sua maior utilidade.A técnica tem um princípio muito simples, i.e., dois nodos adjacentes do mesmo modo de vibração ena mesma corda devem ser tocados ou pressionados levemente e simultaneamente. Com esse toqueduplo em nodos adjacentes de um mesmo modo de vibração, fazemos com que este modo de vibraçãoseja preponderante sobre os outros e produza o som harmônico desejado, não importando acoincidência ou não de nodos.

WOODRICH (1980) fez um estudo sobre o toque de mais de nodo ao mesmo tempo, contudo suaabordagem foi diferente da que estamos propondo neste artigo. Neste trabalho, a Técnica de NodoDuplo como uma maneira de recuperar nodos coincidentes como nodos de performance e umatécnica de reforço do modo de vibração, para ter certeza que o som desejado será o produzido. Otoque de mais de nodo ao mesmo tempo tem mais utilidades para contrabaixistas, uma vez que maisharmônicos naturais podem ser usados no contrabaixo. As razões para essas limitações no violoncelo,quando comparado ao contrabaixo, estão relacionadas aos mesmos problemas da técnica de umnodo, i.e., a dificuldade de localizar e isolar nodos, assim como ao menor espaço para a colocaçãodo arco nas cordas (ponto de contato). No caso do violino e da viola, a técnica pode também seraplicada, contudo com maiores limitações que no violoncelo, uma vez que violino e viola têm cordasmais curtas e uma dificuldade maior de localizar e isolar os nodos, quando comparados com o violonceloou o contrabaixo.

O exemplo mais antigo que encontrei do uso da Técnica de Nodo Duplo está no tratado de ALEXANIAN(1922), Ex.4. Alexanian apresenta essa técnica de toque duplo de nodos como uma maneira dereforçar a produção de sons harmônicos mais difíceis, especialmente o oitavo harmônico natural, elenão considera a coincidência ou não de nodos e outras utilidades que o toque duplo pode trazer.

Ex.4 – Técnica de Nodo Duplo de Alexanian (ALEXANIAN, 1922, p. 106). As notas do pentagrama superior representamos sons que serão produzidos. As notas do pentagrama inferior representam a localização dos nodos na corda lá, osquais devem ser tocados ao mesmo tempo para produzir o som harmônico indicado no pentagrama superior.

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A Técnica de Nodo Duplo pode ser usada para tocar qualquer som harmônico, não importando aexistência de nodos coincidentes. Essa técnica de toque duplo reforça o modo de vibração eassegura a produção de qualquer som harmônico. Ela aumenta o número de nodos para aperformance de alguns dos harmônicos naturais. O Ex.5 mostra o quarto, sexto e oitavo harmônicosnaturais do violoncelo. Entre os oito primeiros harmônicos naturais, que são os mais usados novioloncelo, somente o quarto, sexto e oitavo harmônicos naturais perdem nodos de performancedevido à coincidência de nodos. Por esta razão somente eles foram incluídos na tabela do Ex.5.Para melhor entender esta tabela de sons harmônicos, as frações indicam a localização dosnodos e quais deles são coincidentes. As frações para a indicação de nodos foram colocadasapenas na corda Dó para se evitar o excesso de símbolos na tabela. Dos três harmônicos naturaisem questão, é o sexto que mais se beneficia da Técnica de Nodo Duplo. Com a Técnica de UmNodo, o sexto harmônico natural pode ser tocado somente em dois de seus cinco nodos, comopôde ser visto anteriormente no Ex.3. Utilizando a Técnica de Nodo Duplo aumentamos aspossibilidades de performance do sexto harmônico natural de duas para seis, sendo quatro como toque duplo (Ex.5: sistema inferior, Corda Dó, segundo pentagrama). Se observarmos todas ascombinações de nodos, veremos que somente no sexto harmônico natural encontramoscombinações em que os dois nodos adjacentes são coincidentes, o que faz com estascombinações sejam as de maior importância para a recuperação de nodos de performance (Ex.5,sistema inferior, Corda Dó, segundo pentagrama, compassos três e quatro).

III - A APLICAÇÃO DA TÉCNICA DE NODO DUPLOOs três exemplos apresentados a seguir ilustram como a Técnica de Nodo Duplo pode ser aplicadaem importantes passagens do repertório do violoncelo. Antes de apresentar os exemplos, algumasobservações sobre a notação de sons harmônicos precisam ser feitas. Uma das maneirais maisusadas para indicar sons harmônicos é a indicação de um pequeno círculo sobre ou abaixo da cabeçada nota. Neste caso, cabe ao instrumentista de corda encontrar a melhor opção para tocar o somharmônico. Para este tipo de notação, o compositor precisa saber apenas os limites de altura, parasons harmônicos, de cada instrumento (Ex.6a). Se o compositor quer indicar como um determinadosom harmônico deve ser tocado, outras anotações devem ser feitas. A indicação do número da cordajunto com o pequeno círculo indica que o som harmônico deve ser tocado em seu nodo de som real,aquele em que a nota escrita e o som real têm a mesma altura (Ex.6b). Para indicar o local de outrosnodos, a cabeça da nota deve estar em forma de losango, com o som real indicado acima (Ex.6c). Anotação de sons harmônicos deve distinguir entre a indicação da Técnica de Nodo Duplo (dois nodosna mesma corda) e a notação para harmônico natural duplo (dois nodos em cordas diferentes).Portanto, esta distinção é feita através da indicação da corda ou das cordas a serem tocadas (Ex.6de Ex.6e). No caso de harmônico artificial, a nota mais grave das duas escritas indica a pestanaartificial (Ex.6f). As cordas do violoncelo são indicadas com algarismos romanos: I (Lá), II (Ré), III (Sol) eIV (Dó) (Ex.6b). Os dedos da mão esquerda são indicados com algarismos arábicos, 1 indicador, 2médio, 3 anular e 4 mínimo. O polegar da mão esquerda, também chamado de capotasto, é indicadopor um pequeno círculo com um traço para baixo (Ex.6e). É importante observar que em todos os casosem que o nodo não é o de som real, a altura correta é indicada acima da nota que representa o nodo.

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Ex.5 - Técnica de Nodo Duplo aplicada ao quarto, sexto e oitavo harmônico naturais nas cordas Do, Sol, Ré e Lá dovioloncelo. Cada sistema representa uma corda, onde podem ser vistos os nodos para a performance do quarto,sexto e oitavo harmônicos naturais. Somente no sistema da corda Dó os nodos são indicados com frações docomprimento da corda. A abreviação coinc. indica os nodos coincidentes com modos de vibração mais baixos.

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O Ex. 7 mostra uma passagem da Sonata in C major for Cello and Piano, PROKOFIEV (1958). Apassagem apresenta três notas que devem ser tocadas como sons harmônicos, o Ré3, Sol2 e Ré4. Anotação original indica a performance dos sons harmônicos em seus nodos de som real, sendo poristo a que apresenta o mais alto nível de dificuldade técnica. No Ex. 7 estão sendo sugeridas trêsopções diferentes para a performance desta passagem com a utilização da Técnica de Nodo Duplo.

Ex.6 – Notação dos sons harmônicos no violoncelo

a Sons harmônicos

b Harmônico Natural noNodo de Som Real

c Harmônico Naturalem outros Nodos

d Harmônico Naturaltocado com aTécnica de Nodo Duplo

e Harmônico Natural Duplo

f Harmônico Artificial

g Indicação de Dedilhado

Notação Exemplo

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As opções apresentadas diferem em dificuldades de performance assim como em qualidade desom. A número 3 é, na minha opinião, a melhor, por apresentar um equilíbrio entre a dificuldade técnicae qualidade do som. Na opção 3 é utilizada a Técnica de Nodo Duplo para o último som harmônico,sobre os nodos 2/6 e 3/6 do sexto harmônico natural da corda Sol. O sexto harmônico natural tocadocom a Técnica de Nodo Duplo (2/6 e 3/6), em substituição ao quarto harmônico natural no nodo desom real, facilita a performance e também apresenta uma qualidade sonora que se ajusta a passagem,que é um fim de frase com a dinâmica piano e caráter delicado (o Ré4, tocado como sexto harmôniconatural na corda Sol, tem um nível de dinâmica menor que quando tocado na corda Ré como quartoharmônico natural).

Ex.7 - Sonata in C major for Cello and Piano (PROKOFIEV, Op. 119, 1958)

O Quatuor pour la fin du temps de MESSIAEN (1957), oferece outro bom exemplo de como aTécnica de Nodo Duplo pode ser usada. O Ex. 8 apresenta em seu primeiro pentagrama (som real)as cinco notas que são empregadas na parte do violoncelo, em todo o primeiro movimento, comritmos variados e devem ser tocadas como sons harmônicos. No segundo pentagrama, parte original,os sons harmônicos são dedilhados para serem tocadas com o harmônico artificial de quarta. Noterceiro pentagrama apresento a opção de tocar o Mi5 como o sexto harmônico natural com a Técnicade Nodo Duplo nodos 2/6 e 3/6, ao invés do harmônico artificial de quarta indicado no original. Asoutras notas mantém o mesmo dedilhado do original. Diferentemente das outras notas, asocorrências do Mi5 (mais de 20 vezes) têm sempre a duração de uma semínima pontuada, dandomais tempo para a preparação do uso desta técnica. A maior dificuldade desta passagem, se fortoda tocada com um harmônico artificial, está em manter o polegar pressionando a corda por umperíodo muito longo de tempo, o que pode provocar câimbra no polegar. A mudança de harmônicoartificial de quarta para o sexto harmônico natural com a Técnica de Nodo Duplo não precisa serusada todas as vezes que o Mi5 ocorre. Contudo, tocá-lo algumas vezes como sexto harmôniconatural usando a Técnica de Nodo Duplo, será uma maneira de descansar o polegar.

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Ex.8 - Quatuor pour la fin du temps (MESSIAEN, 1957). Na partitura original, as notas musicais acima são apresentadassempre nesta seqüência, mas com ritmos variados.

A obra Dialoghi per Violoncello e Orchestra, DALLAPICOLA (1960), apresenta muitas passagenscom sons harmônicos. O Ex. 9 mostra uma das passagens em que o sexto harmônico natural podeser tocado com a Técnica de Nodo duplo. Na opção 1, o mesmo dedilhado e cordas da versãooriginal são usados. Contudo, para o último som harmônico, o harmônico artificial de quarta é substituídopelo sexto harmônico natural, tocado com a Técnica de Nodo Duplo nos nodos 2/6 e 3/6. Esta mudançafacilita a performance dessa passagem e melhora a qualidade sonora, uma vez que mantêm as duasnotas como harmônico natural. No opção 2 os dois últimos sons harmônicos são modificados. O Si3é tocado como quinto harmônico natural no nodo 3/5, ao invés do 2/5, e para o Ré4 é usado o sextoharmônico natural com a Técnica de Nodo Duplo nos nodos 3/6 e 4/6. A opção 2 apresenta a mesmaqualidade sonora da opção 1 mas oferece maior dificuldade técnica.

Ex.9 - Dialoghi per Violoncello e Orchestra (DALLAPICOLA, primeiro movimento, 1960).

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IV - CONCLUSÃOSons harmônicos têm sido usados nos instrumentos de corda desde os primórdios de sua história,quando somente cordas soltas em forma de longos pedais e sons harmônicos eram utilizados.Os sons harmônicos oferecem muitas possibilidades. Podem ser tocados como naturais (decorda solta), artificiais (de pestana artificial), em combinação com outros efeitos especiais, taiscomo o pizzicato ou o glissando e outras possibilidades. Eles são também um grande recurso devariação timbrística.

A performance de sons harmônicos não oferece grande dificuldade técnica e é, até certo ponto,de extrema simplicidade. Apesar disto, um grande número de instrumentistas de corda ecompositores têm dificuldade em utilizar os sons harmônicos. Em minha experiência profissional,sempre encontro instrumentistas e maestros que, diante de uma passagem musical que contenhauma indicação de som harmônico, ficam sem saber como tocar ou qual é exatamente o som aser ouvido.

Acredito que este trabalho, além de introduzir uma técnica de performance de sons harmônicospraticamente desconhecida, faz com que músicos pensem e entendam outras questõesrelacionadas aos sons harmônicos, como por exemplo a sua correta notação. Outros estudosprecisam ser realizados e publicados para que todos os músicos e estudiosos de música possamentender e usar os sons harmônicos em todas as suas possibilidades.

Os exemplos de aplicação da Técnica de Nodo Duplo apresentados neste artigo são apenastrês de muitos outros que podem ser encontrados. Como pode ser visto no artigo, a Técnica deNodo Duplo tem três valores principais: primeiro, ela aumenta o número de nodos para aperformance de alguns harmônicos naturais; segundo, ela facilita a performance de passagensmusicais que envolvem sons harmônicos; e terceiro, ela reforça a execução de qualquer somharmônico.

V - GLOSSÁRIOCavalete - Parte dos instrumentos de corda que fixa (a corda é presa ou amarrada no estandarte)

a corda e ao mesmo tempo transmite a sua vibração para que seja amplificada pelo corpodo instrumento.

Corda Presa - Técnica de performance dos instrumentos de corda em que a corda é presa coma pressão dos dedos da mão esquerda contra o espelho (em oposição à corda solta)variando o seu comprimento e produzindo sons de diferentes alturas.

Corda Solta - As cordas dos instrumentos quando não estão presas pelos dedos da mãoesquerda.

Espelho - Peça de madeira dos instrumentos de corda colada no braço do instrumento e contraa qual as cordas são pressionadas com os dedos da mão esquerda para serem presas eproduzirem sons de diferentes alturas.

Estandarte - Peça de madeira que fica na parte inferior (abaixo do cavalete no caso do violoncelo econtrabaixo) dos instrumentos e em que são presas ou amarradas as cordas.

Frações - Partes de um todo. Neste texto as frações do comprimento da corda indicam os nodosdos diversos modos de vibração. As Frações equivalentes são aquelas em que a relação

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entre numerador e denominador é a mesma e são usadas para indicar a coincidência denodos, i.e., 1/2 = 2/4 = 3/6 = 4/8, etc.

Fundamental - Primeiro (mais grave) dos membros de uma série harmônica, ou dos componentesde um som. A freqüência da qual todos os outros componentes são múltiplos inteiros.

Harmônicos - Harmônicos são componentes de um som, os quais são membros de uma sérieem que a relação entre eles é harmônica, i.e., os membros são múltiplos inteiros de umafreqüência ou som fundamental (série harmônica). Harmônicos podem também serchamados de parciais. Deve ser feita uma distinção entre harmônico enquanto componentede um som e som harmônico. Um harmônico é apenas uma freqüência, enquanto que umsom harmônico, o efeito especial usado nos instrumentos de corda tem outras freqüênciascomponentes.

Harmônico Artificial - Som harmônico produzido a partir de uma corda presa, com pestanaartificial. Os harmônicos artificiais são classificados pelo intervalo musical entre a pestanaartificial e a nota sobre a qual o dedo toca o nodo, i.e., harmônico artificial de oitava,harmônico artificial de quinta, harmônico artificial de quarta, e assim por diante.

Harmônico Natural Duplo - Efeito especial em que dois sons harmônicos de cordas diferentessão produzidos ao mesmo tempo.

Harmônico Natural - Som harmônico produzido a partir de uma corda solta. Os harmônicosnaturais são classificados pela ordem em que os parciais aparecem na série harmônica,i.e., segundo harmônico natural, terceiro harmônico natural, quarto harmônico natural, eassim por diante.

Modos de Vibração - São os diferentes modos em que uma corda vibra simultaneamente paraproduzir os parciais que compõem o som.

Nodo - Pontos de repouso no movimento vibratório de uma corda. Estes pontos são utilizadospara tocar os sons harmônicos.

Nodo Coincidente - São pontos na corda onde encontramos mais de um nodo de modos de vibraçãodiferentes.

Nodos de Performance - São os nodos de um modo de vibração que podem ser usados para aperformance de um som harmônico, i.e., no quinto modo de vibração a corda está dividida emcinco partes iguais com quatro nodos de performance (não considerando a pestana e ocavalete, no caso de harmônico natural).

Nodos de Som Real - São os nodos de cada modo de vibração (1/2, 2/3, 3/4, 4/5, 5/6, etc.) emque o som real e a nota escrita para indicar o nodo têm a mesma altura.

Parciais - Parciais são as freqüências componentes de um som, as quais não precisam estarexatamente dentro das relações da série harmônica, ou serem múltiplos exatos de umafreqüência fundamental. O termo parcial é mais abrangente que harmônico. Portanto,harmônicos podem ser chamados de parciais, mas nem todos os parciais podem serchamados de harmônicos.

Pestana - Parte superior dos instrumentos que fixa a corda (a corda é presa pela cravelha queestá acima da pestana no caso de violoncelo e contrabaixo).

Pestana Artificial - Pestana criada artificialmente por um dos dedos da mão esquerda para aprodução de harmônicos artificiais.

Ponto de Contato - Local na corda onde o arco é posicionado para, com o uso da fricção, fazera corda vibrar.

Série Harmônica - Uma série de freqüências em que os membros que a compõem estão em

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uma relação harmônica, i.e., os componentes são múltiplos inteiros da freqüênciafundamental.

Som Harmônico - Som harmônico é um efeito especial produzido nos instrumentos musicaisem que, através de técnicas especiais, alguns parciais são eliminados de um som. Quandopressionados levemente os locais onde existem os nodos, forçamos a exclusão de algunsmodos de vibração e fortalecemos outros, produzindo os sons harmônicos.

Técnica de Nodo Duplo - Técnica de performance dos sons harmônicos nos instrumentos decorda em que dois dedos da mão esquerda tocam simultaneamente dois nodos adjacentesde um mesmo modo de vibração e em uma mesma corda.

Técnica de Um Nodo - Técnica de performance dos sons harmônicos nos instrumentos decorda em que somente um dedo da mão esquerda toca levemente um nodo de um dosmodo de vibração.

VI - BIBLIOGRAFIAALEXANIAN, Diran. Theoretical and Practical Treatise of the Cello, trad. por Frederick Fairbanks. Paris: Éditions

Salabert, 1922. (Edição em francês e inglês)CARDOSO, Cláudio Urgel Pires. The Performance of Violoncello Harmonics. The University of Iowa, 1994. 209p.

(Tese, Doutorado em Música)CAMPBELL, Murray e GREATED, Clive. The Musician’s Guide to Acoustics. London: J. M. Dent & Sons Ltd., 1987.DALLAPICCOLA, Luigi. Dialoghi per Violoncello e Orchestra, Red. Franco Donatoni. Milano: Edizioni Suvini Zerboni,

1960.RANDEL, Don Michael (Ed.). The New Harvard Dictionary of Music. Cambridge: Belknap Press, 1986.MESSIAEN, Olivier. Quatuor pour la fin du temps. Paris: Editions Durant & Cie, 1957.PROKOFIEV, Sergei. Sonata in C major for Cello and Piano, opus 119, ed. por Mstislav Rostropovich. New York:

International Music Company, 1958.WOODRICH, Dennis Lane. Multi-Nodal Performance Technique for Contrabass Harmonics. University of California,

1980. 33p. (Dissertação de Mestrado em Música)

Cláudio Urgel Pires Cardoso ([email protected]) é Doutor e Mestre em Música/Violoncelo pela University of Iowa - EUA, sob a orientação do Prof. Charles Wendt. Cláudio Urgelteve a sua formação básica e de graduação na Escola de Música da UFMG com o Prof. WatsonClis. Atualmente é Professor da Escola de Música da UFMG, onde exerceu a função de Chefe doDepartamento de Instrumentos e Canto e exerce a de Diretor desde outubro de 1998. Atualmentecoordena um grupo de pesquisa que está desenvolvendo um guia analítico de estudos para violinoe viola. Atuou junto à Orquestra Sinfônica de Campinas, Orquestra Sinfônica de Minas Gerais,Grupo Experimental de Câmara da Fundação de Educação Artística, além de diversasapresentações em grupos de câmara, grupos de música contemporânea e apresentações comosolista junto à Orquestra Sinfônica da EMUFMG.

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Reflexões sobre a prática da transcrição: as suas relações com ainterpretação na música e na poesia

Flavio T. Barbeitas

Resumo: Partindo da constatação de que as práticas de transcrição em música e em literatura (particularmente empoesia) guardam uma série de aspectos e características comuns, o texto vai buscar na teoria da tradução (tradutologia)elementos que possam revigorar a análise crítica da transcrição musical. São discutidos alguns conceitos fundamentaispara o entendimento do fenômeno da transcrição, como obra, originalidade, interpretação e autoria. É ressaltada aíntima relação que a transcrição mantém com a interpretação, atuando de forma decisiva no processo de compreensãoda obra.Palavras-chave: transcrição, tradução, arranjo musical, interpretação, obra.

Reflections upon transcription practice and its relationships tointerpretation in music and in poetry

Abstract: Based on the evidence that the process of transcription in music and literature (particularly in poetry) hasa lot common aspects and characteristics, the text searches in the theory of translation for elements which maystrengthen the critical analysis of musical transcription. Some concepts, such as work, originality, interpretation andauthorship are discussed as fundamental in the understanding of the phenomenum of transcription. The close relationbetween transcription and interpretation is especially pointed out, since it has decisive influence on the comprehensionof the musical piece.Keywords: transcription, translation, arrangement, interpretation, work.

Inúmeras foram, ao longo da história da música no Ocidente, as finalidades da prática datranscrição musical1 . Dentre estas, podemos citar o início da constituição do repertório de músicainstrumental no Renascimento – todo ele centrado em transcrições de obras vocais – ou, noRomantismo, a por assim dizer “mercadológica” função de divulgadora de obras. No século XX,a prática transcritiva entrou em notório declínio, sobrevivendo, de forma um tanto marginal,basicamente como procedimento para ampliação de repertório de alguns instrumentos.

Da celebração romântica à condenação contemporânea da transcrição, ou melhor ainda, daespontaneidade das transcrições renascentistas à sacralização moderna dos originais, estende-se um longo caminho no qual concretizou-se uma transformação radical da maneira ocidental derelacionamento com a música e – por que não? – do próprio entendimento no Ocidente do que é

1 Esclareça-se que o termo transcrição musical, no decorrer deste trabalho, é entendido como o processo que mudao meio fônico originalmente estabelecido para uma dada composição. Ou seja, não estamos considerando outrasacepções da palavra transcrição que, em música, indicam desde a passagem para a notação moderna de obrasescritas em notações antigas, até o registro, no papel, de músicas ouvidas em discos ou em apresentações ao vivo.

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música. As vicissitudes da transcrição musical ao longo deste caminho, por conseguinte,autorizam-na a colocar-se como uma testemunha privilegiada desta transformação, de tal formaque uma investigação profunda a respeito do seu papel no fazer musical do Ocidente poderiaresultar numa interessante abordagem desse próprio fazer.

Não é esta, porém, a nossa intenção nos limites deste artigo. Nossos objetivos, certamente, sãomuito mais modestos. Interessa-nos, sobretudo, retirar a transcrição de um certo ostracismo emque foi colocada, por meio de uma reflexão que permita enxergar o valor artístico que toda equalquer transcrição pode alcançar. Para tanto é preciso superar as discussões que, ao longo dotempo, estabeleceram-se sobre o tema, marcadas muito mais por idiossincrasias e preconceitosdo que exatamente pela reflexão cuidada, pelo olhar atento, pela busca de uma teoria2 .

Pensar a transcrição musical traz como conseqüência o questionamento de alguns conceitosfundamentais como, por exemplo, o conceito de obra, o conceito de autoria e também o conceitode interpretação. Embora exerçam um papel central para a compreensão musical, tais conceitoscostumam passar incólumes durante a formação dos músicos, isto é, não são problematizados,não suscitam discussões. Pode-se afirmar, sem medo do exagero, que são esquecidos nasacademias que se propõem exatamente a formar intérpretes e compositores.

Nas linhas que se seguem, a partir de uma comparação da transcrição musical com a transcrição(tradução) poética, campo onde a reflexão encontra-se muito mais amadurecida e onde éabsolutamente pertinente uma aproximação com a música, estes conceitos ganham vida e, nesta“ressurreição”, viram problemas a serem observados, manipulados e discutidos.

A primeira questão que se apresenta diante de nós não poderia ser outra: afinal de contas, o queentendemos por transcrição? Poderíamos dar a esta indagação uma resposta simples e direta,nos moldes de uma definição, situando portanto o termo dentro de limites claros e precisos. Anossa disposição, no entanto, é outra. Mais do que, apressadamente, querer vencer esta etapada discussão, iludindo-nos exatamente com a clareza e a precisão, desejamos nos empenharnela mais profundamente, demorando-nos aqui um pouco mais, de modo a não desperdiçarmosas possibilidades de interpretação advindas da investigação acerca da origem da palavratranscrição e do desenvolvimento dos seus significados. Sabe-se que transcrição origina-se doverbo latino transcribere, composto de trans (de uma parte a outra; para além de) e scribere(escrever), significando, portanto, “escrever para além de”, ou ainda “escrever algo, partindo deum lugar e chegando a outro”. Estes significados aproximam bastante os conceitos de transcrição

2 Teoria é aqui entendida no vigor de seu sentido originário capturado pela investigação etimológica da palavra grega θεωρειν (theorein), a qual reúne dois conceitos: o primeiro diz: o aspecto sob o qual algo se apresenta; o segundo significa: olhar qualquer coisa, o saber pela luz dos olhos, o considerar. Outras aproximações, ainda no idioma grego, relacionam teoria à deusa, no sentido de desvelamento que, para os gregos, era o processo constituidor da dinâmica da verdade. Teoria, portanto, em seu sentido originário, significa considerar o aspecto sob o qual uma coisa se apresenta, ou ainda, visão e guardiã da verdade, do processo de des-velamento.

Para maiores esclarecimentos acerca da etimologia e do conceito de teoria, bem como para uma análise da relação entre teoria e música, veja-se Antônio Jardim, “Sobre teoria”, Revista Brasileira de Música, n. 20, p. 49-53.

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e tradução, uma vez que esta última palavra, originada do também latino transducere(trans + ducere), significa “levar, transferir, conduzir para além de”. Na realidade, do ponto devista etimológico, percebe-se que “transcrição” e “tradução” podem ser considerados conceitospraticamente sinônimos, ambos referindo-se à idéia do processo de levar de uma parte a outra,de mudança, apenas o acento de “transcrição” recaindo mais sobre o ato específico de escrever.

Mas este “levar”, este “de uma parte a outra”, acabam por impor outras indagações: de onde?Para onde? Mediante o quê? As respostas podem nos remeter a uma expansão consideráveldaquilo que comumente se entende por transcrição ou tradução. No verbete arrangement3 doThe New Grove Dictionary of Music and Musicians encontra-se uma passagem que ilustra bemesta possibilidade:

Numa acepção, a mais ampla possível, a palavra arrangement pode ser aplicada a toda amúsica ocidental, de Huchbald a Hindemith, uma vez que cada composição envolve areorganização (rearrangement) dos mesmos componentes harmônicos e melódicos da música,entendidos como pertencentes à série harmônica ou à escala cromática. (V.1, p.627)

Vale a pena cotejar o que diz o dicionário com a opinião de Paul Valéry, grande poeta francês daprimeira metade deste século, na introdução às suas traduções das Bucólicas de Virgílio:

Escrever o que quer que seja, desde o momento em que o ato de escrever exige reflexão, enão é a inscrição maquinal e sem detenças de uma palavra interior toda espontânea, é umtrabalho de tradução exatamente comparável àquele que opera a transmutação de um textode uma língua em outra. (Valéry, citado por CAMPOS, 1996, p.201)

As duas passagens situam a transcrição (musical ou literária) não apenas num plano menosespecífico do que, em geral, acredita-se que esteja, mas, fundamentalmente, num momentoprimeiro da criação artística. Transcrição musical, por conseguinte, não indicaria meramente oarranjo de uma peça para um instrumentarium diferente daquele para o qual ela foi originalmentepensada. Tampouco a tradução poética significaria apenas a operação interlingual que substituios signos de uma língua por signos de outra língua. Ambas, de acordo com as concepções citadasacima, seriam arrastadas para um momento muito anterior, para o instante mesmo da gênese daobra, na medida em que a colocação, pelo autor, de suas idéias no papel, não seria nada mais,nada menos, do que uma operação de transcrição ou tradução. Uma apreensão radical, portanto,do sentido de transcrição/tradução permitiria asseverar tanto que escrever (poesia) é traduzir,quanto que compor (música) é transcrever.

A persistência na trilha aberta pela radicalidade conduz-nos diretamente à morada de uma questãoabsolutamente fundamental não só em música, mas nas artes em geral, pelo menos no Ocidente.Trata-se da problemática em torno do conceito de obra. Evidentemente não é o caso deabordarmos o problema em toda a sua complexidade. Interessa-nos, aqui, apenas o aspecto da

3 O dicionário em questão reserva para a palavra arrangement (arranjo), e não para transcription, exatamente o significado de transcrição que estamos examinando neste artigo, qual seja o da mudança de meio fônico original de uma obra, incluídas nesta operação todas as eventuais modificações na própria obra que por ventura se fizerem necessárias.

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originalidade que acompanha a noção de obra, principalmente na oposição que comumente seestabelece quando do surgimento de uma eventual transcrição.

Aqueles que costumam negar valor artístico às transcrições (musicais ou poéticas) listam umasérie de características com o objetivo de valorizar a obra original, sendo que podemos citarduas que são constantemente evocadas: a singularidade e a imperfectibilidade. No caso de umpoema, por exemplo, argumentam que o original é singular, é único, em oposição à multiplicidadede traduções possíveis. Vêem na pluralidade das traduções um fator negativo: “O poema é solitário[...]: um poema só é efetivamente poema na medida em que é absolutamente singular” (PhilippeLacoue-Labarthe, citado por LARANJEIRA, 1993, p.38). Há, aqui, uma clara manipulação doselementos produzindo uma conclusão inegavelmente distorcida, pois a existência de váriastraduções de uma mesma obra não caracteriza, absolutamente, a perda da singularidade decada uma delas nem determina, necessariamente, a sua maior ou menor qualidade. O ponto éflagrado e bem analisado por Mário Laranjeira:

[...] o fato de existirem dezenas, centenas de traduções de um mesmo poema não implicade per si, detrimento qualitativo. Cada um dos poemas-tradução pode ser tão bom ou tão mauquanto qualquer outra produção do mesmo sujeito. Cada tradução é tão única quanto o poemaoriginal. Além disso a unicidade do poema só existe enquanto tal poema constitui objetoúnico, singular, produzido por determinado poeta em determinado tempo e lugar, com suasmarcas específicas e sua historicidade. Mas, assim como pode haver várias traduções de ummesmo original – pelo mesmo ou por vários tradutores –, também pode haver váriasformulações, várias realizações (originais?) de um mesmo tema poético, e algumas épocasexcelem nesta prática, como é o caso da Renascença. (LARANJEIRA, 1993, p.39)

Além da singularidade, os autores contrários à prática da transcrição poética ou musical apontama imperfectibilidade do original como uma característica que tornaria sempre qualitativamenteinferior a obra transcrita. A visão da obra como algo acabado, perfeito e definitivo é um dosgrandes mitos que se criaram tanto em música quanto em poesia. Em grande medida, talconcepção provém de uma certa primazia que a escrita adquiriu em nossa cultura, fato verificávelna aura de santidade que reveste tudo o que está impresso e que impõe ao leitor, uma espéciede submissão servil às informações contidas no papel, retirando-lhe, inclusive, muito da suacontribuição como intérprete. Mas será que temos sempre de nos render assim tão docilmente àgrafia? Não haverá possibilidade de existir um outro acomodamento da nossa relação com otexto, com a obra impressa? O empenho em responder a estas questões poderia abrir umparêntese tão longo neste trabalho que acabaria por comprometer-lhe irremediavelmente acoerência. Procuremos, então, abordar o problema de maneira ainda mais direta. Afinal, quandouma obra adquire o seu caráter de imperfectibilidade, de definição, de acabamento?

É difícil saber. Freqüentemente superpõem-se dois conceitos interferentes: o perfeito eventuale o perfeito de fato. Uma vez redigido um texto, ele é, em princípio, acabado, perfeito. Issonão impede que o autor volte à carga, retoque, remaneje, reforce o seu texto... e aqueleprimeiro texto “perfeito eventual” cede a outro texto, também “eventualmente perfeito”, demodo que a versão “definitiva” só o será realmente com o desaparecimento do autor. Daí sededuz que o texto não é “definitivo”, “imperfectível” por natureza, mas por mera circunstância:a imperfectibilidade é histórica. Nenhum texto é uno e imperfectível por natureza . pelo contrário,todo texto tende para a pluralidade e para a perfectibilidade, estas sim, qualidades positivase que não são o apanágio da tradução. (LARANJEIRA, 1993, p.40)

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Comentando, em recente programa de televisão, sobre o seu processo de criação, o sambista ecompositor Paulinho da Viola revelou que a única forma que encontra de realmente dar porterminada uma composição é gravá-la, pois, de outra maneira, resta sempre a possibilidade demodificar a obra em alguns de seus componentes. Ora, a gravação no caso de Paulinho da Viola– bem como a escrita em outras situações – tem exatamente a finalidade de “fotografar” a realidadeem determinado momento, “parando”, em benefício de um registro para a memória, um processoradicalmente dinâmico que é a própria criação artística.

Em geral, os que defendem a imperfectibilidade da obra lidam com o conceito de formademasiadamente idealizada, esquecendo-se dos inúmeros fatores ligados ao próprio modo deproduzir arte que interferem a todo momento na criação. Assim, pressões de fontes diversas, deeditoras, de gravadoras, entre outras, acabam impondo a “finalização” do processo criativo que,de outra forma, poderia ter um desfecho bastante diferente. É o que se depreende das seguintespalavras de Paul Valéry a respeito de seu principal poema, o Cimetière marin, publicado pelaprimeira vez na Nouvelle Revue Française, em 1920:

[o editor] não sossegou [...] enquanto não o arrebatou [...]. De resto, não posso em geralvoltar sobre o que quer que eu tenha escrito que não pense que faria outra coisa se algumaintervenção estranha ou alguma circunstância qualquer não tivesse rompido o encantamentode não terminar. (Valéry, citado por LARANJEIRA, 1993, p.40)

Considerando-se que os exemplos de Valéry e de Paulinho da Viola são, sem sombra de dúvida,a regra e não a exceção, fica evidenciado o caráter acidental que na verdade possui a versão“definitiva e acabada” de uma obra. Pode-se perguntar: apesar de a obra apresentar-se, então,muitas vezes como um “acidente” no percurso da criação, não é, afinal, com ela, entendida comoum documento ou objeto que se apresenta aos nossos sentidos, que devemos nos relacionar?Sem dúvida que sim, visto que é somente por meio dela que se acede ao trabalho artístico que aproduziu. No entanto, o que não se deve esquecer é que o estancamento da criação, cristalizadona obra, afeta-a somente do ponto de vista do autor, pressupondo-se que ele não mais a altere. Acontribuição do autor cessa com o nascimento da obra. Permanece, porém, a flexibilidade e amultiplicidade desta, em razão da infinidade das leituras e interpretações que será sempre capazde despertar. É o intérprete, o leitor, que dará seqüência ao processo de criação, que prosseguirátodo o trabalho de reflexão iniciado pelo autor. A obra, enfim, pode muito bem ser compreendidacomo um acontecimento capaz de provocar a mudança do agente da criação: sai de cena oautor, entra o intérprete. Se isto é uma realidade em todas as artes, o que dizer do caso damúsica, onde o aspecto visual (gráfico) não significa a realização propriamente dita do fenômenoartístico? Muito pelo contrário, a representação do som sob a forma de notação musical é, emlinhas gerais, um instrumento para a memória, um guia que garante a sobrevivência da obramusical para além do instante em que ela nasce, mas que não pode ser confundida com a músicaem si. Todavia, ao longo da história da música ocidental, cada vez mais foi se afirmando o caráterdeterminatório da escrita, fenômeno paralelo a um empobrecimento generalizado da interpretação,condenada a ser nada muito além de uma repetição, vazia de questionamentos, daquilo que opapel apresenta como verdade.

Em literatura, especialmente em poesia, esta mesma ideologia que mitifica a obra, atribuindo-lhe os predicados da perfeição e irretocabilidade, coloca o autor numa relação de extrema

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superioridade em relação ao tradutor, este sendo considerado um elemento secundário, um malnecessário ou mesmo um traditore4 . A superação dessa concepção, contudo, vem se consolidandorapidamente, sobretudo graças a estudiosos como Roland Barthes que apresenta a seguinteanálise do que é um texto:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentidoúnico, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaçode dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quaisnenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura [...] Naescritura múltipla [...] tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a escriturapode ser seguida, “desfiada” (como se diz da malha de uma meia que escapa) em todas assuas retomadas. (BARTHES, 1988, p.68-69)

Ora, o tradutor, considerando-se, então, o texto, como um fazer-se permanente e infinitamentemúltiplo, não pode mais ser tomado como um traditore ou, numa ilustração, “como o profetaprostrado ao pé do monte – a obra – a aguardar humilde e humilhado, que o Deus-autor se dignea outorgar-lhe as luzes que lhe dêem acesso às tábuas da lei e da verdade” (LARANJEIRA,1993, p.35). O tradutor passa a ser, isto sim, um copartícipe do texto, numa visão que consideratoda tradução, a rigor, como uma interpretação do original, ou melhor ainda, como a escritura deuma determinada leitura/interpretação da obra.

Imaginamos que a nossa intenção, ao chegarmos a este ponto, tenha se tornado suficientementeclara: reivindicar para a transcrição musical o mesmo status que a tradução vem alcançando, aolongo dos últimos anos, no campo literário. A analogia se funda, a nosso ver, em bases sólidasuma vez que as reflexões, esboçadas acima, a respeito de obra, autoria e interpretação, valemigualmente para as duas áreas. Poder-se-ia perguntar, todavia: não desempenhará a traduçãoem relação ao literário um papel muito mais central do que a transcrição em relação ao musical?Afinal de contas, o acesso a uma obra escrita em língua estrangeira somente é possível pela viada tradução, ao passo que a obra musical permanece acessível aos ouvidos dispostos acompreendê-la, independentemente dos instrumentos usados na sua veiculação. Não haveria aí,então, uma diferença crucial que faria com que, diante da necessidade ou da utilidade da traduçãoliterária, a transcrição musical parecesse algo menor ou pouco importante?

De certa maneira, esta questão já foi respondida acima. Na medida em que identifica-se natradução muito mais que aquilo que o senso comum é capaz de enxergar, ou seja, muito mais queuma mera restituição de sentido de algo já de antemão fornecido; na medida em que liberta-se atradução desta concepção que a restringe a um status meramente derivativo e, portanto, inferior;enfim, ao examinarmos o problema a partir desta ótica, já deixamos de nos preocupar com aidéia da utilidade, já não nos atemos somente ao aspecto do estabelecimento básico dacomunicação. A tradução passa a representar, sobretudo, um exercício crítico, sendo, como dizHaroldo de Campos, “através dela que se poderão conduzir outros poetas, amadores e estudantesda literatura à penetração no âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagensmais íntimos” (CAMPOS, 1996b, p.34).

4 Remete-se aqui ao bastante conhecido trocadilho italiano (traduttore, traditore) que embute a idéia de que toda tradução implica, necessariamente e em alguma medida, uma traição ao original.

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Ora, da mesma forma que a tradução pode desempenhar esta função no campo literário, nãovemos porque a transcrição musical não possa cumprir o mesmo papel. Se, como dissemosacima, a transcrição é a escritura de uma dada interpretação da obra, ela coloca em especialrelevo a figura do intérprete, inclusive como sujeito da criação. Assim, afora os benefícios notóriospara o músico transcritor, do ponto de vista de sua formação – como o conhecimento de repertório,o estudo da escrita dos diversos compositores, etc. – afora isto, a transcrição musical impõepara a interpretação uma postura radicalmente diferente e muito mais profunda do que a comumsubserviência calada frente à partitura. Transcrever requer, minimamente, uma reflexão não apenasem relação aos problemas idiomáticos que a operação de mudança de instrumentos produz,mas também quanto à possibilidade de se preservar, num outro meio, a coerência e a propostade organização contidas no original.

Logicamente não nos é possível, devido às reduzidas dimensões deste texto, oferecer umademonstração ampla de como se dá, em música e em poesia, a manutenção, na transcrição, daproposta da obra original paralelamente às adaptações exigidas pela mudança idiomática(lingüística ou instrumental). Ainda assim, parece-nos interessante apresentar aqui a análise etradução de um breve poema do francês Jacques Prévert feitas por Mário Laranjeira, numacomparação com outra tradução de Silviano Santiago (LARANJEIRA, 1993, p.106-108):

Mea Culpa

C’est ma fauteC’est ma fauteC’est ma très grande faute d’orthographeVoilà comment j’ecrisGirraffe(original)

Podemos resumir da seguinte maneira duas das principais críticas de Laranjeira à tradução deSantiago:

1. O título Mea culpa remete ao confiteor, oração da cultura cristã que, em cada língua, possuiuma formulação tradicional, canônica, inserida no ordinário da missa. O poema de Prévertreproduz parte do texto francês do confiteor (C’est ma faute/C’est ma faute/C’est ma trèsgrande faute d’orthographe) cuja versão tradicional em português é: Minha culpa/ Minha culpa/Minha máxima culpa. Silviano Santiago ignora este dado e, com isso, compromete a grandeproblemática proposta pelo poema, exatamente a correlação entre o pecado cristão e o erroescolar.

2. A escolha de girrafa para a tradução de girraffe constitui um equívoco, na medida em quePrévert teria escolhido girraffe apenas em razão do jogo sonoro que se estabelece a partir darecorrência fônica com a palavra orthographe. Pouco interessa, portanto, o conteúdo semânticoda palavra girafa. Deveria ter prevalecido na tradução o mesmo critério usado pelo autor, ouseja, a utilização de uma palavra que rimasse com ortografia e que contivesse um erro deescrita o qual não interferisse na pronúncia.

Neste pequeno exemplo, em que pese a limitação da análise aqui apresentada, comparecem

Mea Culpa

Minha culpaMinha culpaMinha máxima culpa em ortografiaVejam como escreviBassia(trad. Mário Laranjeira)

Mea Culpa

ErreiErreiQue enorme erro de ortografiaEis como escreviGirrafa(trad. Silviano Santiago)

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dois elementos que, ao nosso ver, deveriam compor todo e qualquer processo de interpretaçãode uma obra: desconstrução e recriação. De um lado, a investigação que foi buscar as origens eo sentido da proposta original; de outro, a criatividade na reorganização dessa proposta emoutra língua, com outros significantes. Será que a interpretação musical, incluída aí a transcrição,não requer do músico esta mesma disposição e este mesmo empenho? É claro que sim.Precisamente advém daí a nossa insistência em comparar música e poesia sob o aspectointerpretativo e, também, a partir da realização de processos transcritivos.

No campo musical, como dizíamos no início deste texto, a discussão sobre todas as questõesque foram aqui sugeridas parece sempre esbarrar em preconceitos e idiossincrasias, e, sobretudo,patina em meio a muita irreflexão. Podemos colher uma amostra disto nos escritos, por exemplo,de Nikolaus Harnoncourt. Sem desconsiderar todo o seu grande valor como músico e o imensotrabalho de pesquisa histórico-musical que fundamenta as suas interpretações, notadamenteaquelas de obras do período barroco, pudemos constatar um conjunto nada desprezível deconfusões e contradições a permear suas opiniões a respeito de muitas coisas, inclusive emrelação a alguns dos conceitos analisados acima. Comentando, por exemplo, as óperas deMonteverdi, diz o regente europeu:

No meu entender, é preciso excluir todo o tipo de ‘atualização’ musical ou cultural; istosignificaria, em termos práticos, a criação de uma nova obra, inspirada no original de Monteverdi.Pelo contrário, como todas as obras-primas, as óperas de Monteverdi são autônomas eperfeitas enquanto obras de arte; nelas nada há que necessite ser melhorado ou adaptado.(HARNONCOURT, 1993, p.43)

Sabe-se que esta posição de Harnoncourt é, na realidade, um ataque aos procedimentos comunsno século XIX e no início do século XX de adaptações para orquestras românticas e modernasde obras barrocas e clássicas. Todavia, talvez na ânsia de combater o que considerava um exageroinaceitável, acabou o autor cometendo outro de dimensões possivelmente ainda maiores. Afinal,“excluir todo o tipo de atualização musical ou cultural” significa o mesmo que parar de executar eescutar essa música, a menos que se encontre um jeito de ressuscitar os músicos contemporâneosde Monteverdi para ouvi-los tocar... Além disso, ao repisar o velho mito da “obra-prima autônomae perfeita”, o discurso de Harnoncourt acaba padecendo do mesmo antigo vício recorrente entreos músicos eruditos, qual seja o de encontrar uma interpretação correta e definitiva das obras,de modo a restabelecer uma pretensa verdade musical, como se a obra fosse uma autênticaesfinge que guardasse um enigma a ser decifrado pelo intérprete-herói.Não espanta que, em meio a análises tão descuidadas e crenças tão imobilizadoras, ainterpretação musical venha sendo despida do vigor crítico que lhe é congenial e desencorajadaquanto ao seu aspecto criativo através do desestímulo às práticas de transcrição e arranjo. Aopropormos a discussão da transcrição musical numa analogia com a tradução poética e fundadana discussão de conceitos importantes para a compreensão da música, fazemos uma aposta nareversão desse quadro. Há um longo caminho a percorrer e uma série de obstáculos a seremsuperados. Se, de um lado, a prática da transcrição musical de repertórios antigos foi atacadapelo movimento historicista na música, em prol de uma pretensa fidelidade às intenções docompositor (posição análoga ao mito da tradução literal de um texto), de outro, a produção musical“contemporânea”, ao tornar o timbre um elemento fundamental na organização do pensamentomusical, colocou em pauta uma série de entraves aos transcritores. Estes entraves podem muitobem ser tomados como desafios estimulantes pelos entusiastas da transcrição musical ou, pelos

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seus detratores, como argumentos irrefutáveis da impossibilidade ou da inutilidade desta prática.Preferimos nos enquadrar no primeiro grupo. Mesmo em relação à problemática do timbre,acreditamos que exatamente por ter se consolidado como um elemento de organização musical,ele pode, talvez dentro de certos limites, orientar o transcritor a buscar, numa outra formaçãoinstrumental, os mesmos princípios que nortearam o compositor na obra original. Preferimos,enfim, partilhar da opinião de Haroldo de Campos que, diante de um texto tido como “intraduzível”,sente-se mais seduzido exatamente pelas maiores possibilidades de recriação que ele oferece:

Quanto mais ‘intraduzível’ [um texto], mais [ele é] ‘transcriável’ poeticamente. Assim, o limiteda tradução criativa é um deslimite: a última hybris [excesso] do tradutor, sua meta e miragemutópica, é fazer do original, ainda que por um átimo, a tradução de sua tradução... (CAMPOS,1996b, p.33)

Referências bibliográficasBARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.CAMPOS, Haroldo de. “Paul Valéry e a poética da tradução”. IN: Limites da traduzibilidade, p.201-216, Salvador :

Edufba, 1996a._________. “Das ‘estruturas dissipatórias’ à constelação: a transcriação do Lance de Dados de Mallarmé”. IN:Limites da traduzibilidade, p.29-39, Salvador : Edufba, 1996b.HARNONCOURT, Nikolaus. O diálogo musical: Monteverdi, Bach e Mozart. Trad. Luiz Paulo Sampaio. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1993.JARDIM, Antônio. “Sobre teoria”. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, n.20, p.49-53, 1992-93.LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: Edusp, 1993 (Coleção Criação e

Crítica, v.12).SADIE, Stanley (Ed.). The new Grove dictionary of music and musicians London: Macmillan, 1980.

Bibliografia adicionalCAMPOS, Haroldo de. Qohélet = O-que-sabe: Eclesiastes: poema sapiencial. São Paulo: Perspectiva, 1991

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Marcelo Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.UNES, Wolney Entre músicos e tradutores: a figura do intérprete. Goiânia: Editora da UFG, 1998 (Coleção

Quíron, Série Ars n.1)VIEIRA, Else Ribeiro Pires. Por uma teoria pós-moderna da tradução. Belo Horizonte, UFMG, FALE, 1992. Tese

de doutorado em Letras/Literatura comparada.

Flavio Terrigno Barbeitas é professor assistente da Escola de Música da UFMG. Violonista,graduou-se na Escola de Música da UFRJ onde também obteve o grau de Mestre com adissertação Circularidade Cultural e Nacionalismo nas Doze Valsas para violão de FranciscoMignone.

Page 98: Editorial - musica.ufmg.brmusica.ufmg.br/permusi/permusi/port/numeros/01/num01_full.pdfEditorial O Programa de Pós-Graduação da Escola de Música da UFMG (mestrado@musica.ufmg.br)