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editorial - Memorial da América Latinamemorial.org.br/revistaNossaAmerica/34/revista34-port.pdf · HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD PRESIDENTE DA FAPESP CELSO LAFER ALMINO MONTEIRO

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GOVERNADORJOSÉ SERRA

VICE-GOVERNADORALBERTO GOLDMANSECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAISJOSÉ HENRIQUE REIS LOBO

FUNDAÇÃO MEMORIALDA AMÉRICA LATINA

CONSELHO CURADORPRESIDENTEJOSÉ HENRIQUE REIS LOBO

SECRETÁRIO DE CULTURAJOÃO SAYAD

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO GERALDO ALCKMIN

REITORA DA USPSUELY VILELA

REITOR DA UNICAMPFERNANDO FERREIRA COSTA

REITOR DA UNESPHERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD

PRESIDENTE DA FAPESPCELSO LAFER

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSOJURANDIR FERNANDES

DIRETORIA EXECUTIVA

DIRETOR PRESIDENTEFERNANDO LEÇA

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRODE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINAADOLPHO JOSÉ MELFI

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAISFERNANDO CALVOZO

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIROSÉRGIO JACOMINI

CHEFE DE GABINETEJOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO

DIRETOR PRESIDENTEHUBERT ALQUÉRES

DIRETOR INDUSTRIALTEIJI TOMIOKA

DIRETOR FINANCEIROCLODOALDO PELISSIONI

DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS

LUCIA MARIA DAL MEDICO

Número 34ISSN 0103-6777

REVISTA NOSSA AMÉRICA

DIRETORFERNANDO LEÇA

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTELEONOR AMARANTE

COLABORADORA DE EDIÇÃOANA CANDIDA VESPUCCI

TRADUÇÃO

CLAUDIA SCHILLING

PRODUÇÃOHENRIQUE DE ARAUJO

DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOSFELIPE DE OLIVEIRADOUGLAS MALUTALUANA DE ALMEIDA

COLABORARAM NESTE NÚMEROAdolfo Montejo Navas, André Sturm, Augusto de Campos, Bianca Galafassi, Carolina Mota Mourão, Celso Lafer, Demétrio Magnoli, Fernando Bellas, Fernando Castro Flórez, Javier Teniente, Reynaldo Da-mazio, Ricardo Medrano, Ricardo Markwald, Roberto Rodrigues, Rubens Barbosa, Sérgio Fausto, Silvia Prada Forero, Tino Viz, Tulo Vigevani.

CONSELHO EDITORIALAníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Ro-berto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbo-sa, Ulpiano Bezerra de Menezes.

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimes-tral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura An-drade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected]. Os textos são de inteira responsablidade dos autores, não refletindo o pensamen-to da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.

CAPAFoto: Tino Viz

EDITORIAL

AGENDA

LIVROS

POESIA

DESAFIO

ACERVO

ECONOMIA

POLÍTICA

CINEMA

ARTES VISUAIS

HOMENAGEM

OLHAR

LITERATURA

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FERNANDO LEÇA

REYNALDO DAMAZIO

FEDERICO G. LORCA

RUBENS BARBOSA

LEONOR AMARANTESILVIA PRADA

CAROLINA M. MOURÃOBIANCA GALAFASSI

ROBERTO RODRIGUES

FERNANDO C. FLÓREZ

RICARDO MEDRANO

ANDRÉ STURM

FERNANDO BELLASJAVIER TENIENTE

TINO VIZ

ADOLFO MONTEJO NAVAS

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Não é demais destacar novamen-te a feliz circunstância dos 20 anos do Memorial da América Latina, já lembra-da nas duas edições anteriores. Marcan-do a segunda metade deste 2009 come-morativo, novos e importantes eventos celebram a efeméride, começando com o 4° Festival de Cinema Latino-Ame-ricano. Vamos aos destaques deste nú-mero 34 da revista Nossa América.

Quem são os autores que se dis-tinguem por praticarem uma narrati-va oblíqua? E o que isso quer dizer? Adolfo Montejo Navas, poeta e crítico espanhol radicado no Brasil, explica e aponta os mestres de uma literatura fragmentária feita de jogos entre a lin-guagem e o mundo. Ainda na esfera literária, uma homenagem: é do arqui-teto e professor Ricardo Medrano ao argentino José Luis Romero, conside-rado um dos mais importantes histo-riadores do século XX e que em 2009 completaria 100 anos.

Nesta edição, Nossa América re-úne quatro fotógrafos que registraram delicadas imagens do cenário ao lon-go do caminho de Santiago de Com-postela e expuseram na Galeria Marta Traba do Memorial. Fernando Bellas, Javier Teniente, Delmi Álvarez e Tino Viz clicaram as paisagens envoltas em brumas e misticismo e que integram o ensaio. Ainda na esfera das artes plás-ticas, destaque para Roberto Matta, importante pintor chileno, cuja obra é saudada pelo crítico espanhol Fernan-do Castro Flórez.

Com público garantido, o Festival Latino-Americano de Cinema de São Paulo, instituído pelo Memorial, chega à sua quarta edição ainda melhor. Sua programação está repleta de grandes su-cessos e filmes premiados internacional-mente. André Sturm crítico de cinema comenta a importância de um evento desse nível para difundir a produção ci-nematográfica de países da região.

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Fernando Leça Presidente da Fundação

Memorial da América Latina.

Assunto atual, a questão da de-marcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol, ganha uma avaliação bas-tante objetiva do ponto de vista jurí-dico. Carolina Mota Mourão e Bianca Galafassi, advogadas com experiência em questões indígenas, acreditam que o impasse está superado, e de acordo com a lei. Outro tema igualmente importan-te diz respeito à questão da agroenergia em que o Brasil, particularmente, e a América Latina como um todo podem ser protagonistas. Roberto Rodrigues, engenheiro agrônomo e ex-ministro da Agricultura, tem certeza de que o futuro reserva grandes oportunidades para o Continente nessa área. Ainda com rela-ção à América Latina, o tema Mercosul ganha relevo, já que está completando 18 anos. O cientista político Rubens Barbosa, responde às indagações de ou-tros cinco especialistas no assunto inte-ressados em saber como o organismo chega à maioridade.

Uma das grandes bibliotecas do mundo está em Bogotá. Tem capa-cidade para dois milhões de leitores por ano e desfruta de prestígio junto ao público, que chega a formar lon-gas filas na porta. Leonor Amarante, editora de Nossa América, observou in loco essa face surpreendente da vida colombiana. De outro lado, Silvia Prada, gerente da rede de bibliotecas públicas de Bogotá, defende um am-plo projeto com o objetivo de levar o acesso à leitura também para outros pontos do país.

Encerra a edição um poema do espanhol Federico Garcia Lorca, nome consagrado mundialmente, com tra-dução de Augusto de Campos, outro peso-pesado da literatura.

Boa leitura!

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ESTIRPE LITERÁRIAATENTA À MISCELÂNIA

ADOLFO MONTEJO NAVAS

LITERATURA

Se pudesse utilizar o termo gráfico de uma narrativa oblíqua seria para tomar alguma distância daquela nar-rativa de maior linearidade textual, e cuja ausência de lateralidades de sen-tidos é mais evidente. Talvez a prática

de uma escrita breve e fragmentária, assim como, precisamente, certo senso de humor, e em alguns casos um jogo verbal e cultural explícito, coloca esta escrita em outro prazer do texto, na procura de ressonâncias diversas entre a linguagem e o mundo. E também em outro regime de leitura. Como se houvesse predisposição para uma me-ta-linguagem literária sem cair num conceitualis-mo narcisista ou hermético. Em outras palavras, poder olhar a linguagem,seu reverso narrativo:

o reVerSo NarratiVo da liNGUaGeM

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mas muito mais seu nascimento imagéti-co que a sua mera sucessão verbal.

Uma literatura assim, só pode ser de frestas, fendas, interstícios. E sabendo-se impotente ante qualquer signo de totalidade, se reconhece como parcial, nada logocêntrica ou teleológica. Quase portátil, pelo ta-manho, mas também pelo seu dom de ubiquidade, seus interesses poliglotas, trasmundanos e intertextuais.

Um inventário internacional de es-critores com estas preocupações ou ambições surpreenderia, mas sendo circunscrito a um território continental latino-americano, autores como Mace-dônio Fernández, Julio Cortázar, Juan José Arreola e Augusto Monterroso, pertenceriam a esta estirpe literária que está atenta a uma miscelânea de assun-

tos que faz que tudo acabe religando-se. Aliás, são precisamente os câmbios de registros semânticos uma outra caracte-rística que os vincula, pois nada assim parece banal, cotidianamente pobre ou reduzido em significação. E não falamos de literatura com anseios fantásticos ou de derivas mágico-maravilhosas.

Sem pretender casar os quatro exem-plos literários citados, deve se dizer que todos, sendo de gerações e geografias diversas, compartilham alguns fios terra semelhantes. E a pesar de suas caracte-rísticas diferentes podem-se reconhecer neste território desenhado que aposta por ser mais um continente verbal me-tonímico que metafórico. A fábula da es-crita, o assombro verbal, o exercício da imaginação e a atenção por universos di-versos, paralelos, transidos de passagens FO

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não cifrados ou codificados, é alimento para poéticas literárias sempre precisas, nada retóricas ou redundantes. Cultas e apropriacionistas, ao mesmo tempo que mundanas e subjetivizadoras. São, em suma, literaturas celebratórias que proclamam as núncias impossíveis mas sempre tentadoras do mundo e as pala-vras, sabendo de seus hiatos.

Por ordem de aparição histórica, Macedônio Fernández (Buenos Aires, 1874 –1952) já resultaria inevitável, mas sobretudo por colocar a sua bio-grafia literária num plano de obser-vação cotidiana e ao mesmo tempo, distanciadamente, como se o eu fosse outro que conhecemos em parte. Esse diálogo às vezes chega a pontos pa-radoxais, a perfilar-se como escritor com “certa dificuldade de escrever” mas capaz de não separar nada para a sua escrita heterodoxa. O que existe e o que não existe, mas que não dei-xa de confundir a sua frágil fronteira, e muitas outras observações diáfanas ou obscuras fazem parte de uma re-flexão sem limites, sem eixo fixo ou confortável (ideológico ou burguês).

Sem excessiva preocupação pela pu-blicação, a sua literatura era, sobretu-do, pensante, necessariamente antie-rudita, a favor da perplexidade e do assombro: um texto como Continuação da nada mostra até onde chegam os contornos (paradoxalmente ilimitados pelo realismo) de Macedônio, a sua contribuição para a perplexidade. É muito significativo que duas obras de Macedônio Fernández aportem mais dúvidas que certezas, numa arquitetu-ra sensível nada desprezível. Elas são os Papeles de recienvenido (1929) ou Mu-seu de la novela de la Eterna (1967), duas quimeras literárias.

Toda sua obra pode receber o quali-ficativo de miscelânea (algo que assina-riam também o Atlas literário de Borges, grande admirador e amigo seu, o polie-dro verbal de Cortázar, e, claro, a esponja literária de Ramón Gómez de la Serna, já quase como maestro unânime das coisas miúdas, dessa cosmologia ínfima que não entende de macropolíticas).

O grau de atenção e de reflexão, além de um profundo humor que circu-la como verdadeira alteridade, é eviden-te nas cartas ou fragmentos que fazem parte de sua obra literária, sem desme-recer nem se inferiorizar com outros re-gistros. Simples palavras de celebração, de brindes, de tertúlia do café da Balva-nera mostravam uma eloqüência sem li-berdade condicional, que reconhecia seu estatuto reflexivo rente à cotidianidade estranhada: “Há um mundo para todo nascer, e o não-nascer não tem nada de pessoal, é meramente não haver mundo. Nascer e não encontrá-lo é impossível: não se viu a nenhum eu que nascendo encontra-se sem mundo”.

Julio Cortázar (Bruxelas,1914 – Pa-ris, 1984), sem chegar aos extremos da parca eloquência e abstração de Mace-dônio, talvez tenha pluralizado ainda mais as dispersas inquietudes por quan-tidades de temas, campos semânticos

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que reuniam literatura, prosa sem clas-sificar, ensaios literários sobre arte, poe-sia, reflexões de índole vária e frequen-temente ínfima, microcelular, contra toda pompa, como a sua bem sucedida tipologia humanista dos cronópios, es-tabelecida, fundacionalmente, em livro assim intitulado, Histórias de cronópios e de famas (1962). Algo que também per-meia grande parte de sua obra narrativa, seja o romance de O jogo da amarelinha (1963), livros de relatos como Um Tal Lucas (1979), entre outros, ou obras mais abertas, Prosa do Observatório (1972) ou La casilla de los Morelli (1973) ou aque-les livros-álbum, A volta ao dia em oitenta mundos (1967), Último round (1969), por exemplo, tudo compondo uma geogra-fia de pontes literárias, outras perspec-

tivas de entendimento plural, que reu-niam universos diversos, contaminando até o pensamento mais sério ou rigoroso (veja-se a parte crítica estrita do escritor, em que a invenção pode aparecer mais soterradamente até ganhar presença e a prosa/ensaio/ficção que se articula nes-ta indefinição polisêmica).

A necessidade manifesta de contar com um leitor cúmplice, que acom-panhasse as insinuações e meandros desta escrita diz da proximidade des-ta literatura, de sua vocação trans-bordante por gerar novos territórios em que o outro não estivesse longe, ainda que como companheiro de via-gem, de liberdade, de diálogo.

A chegada de Juan José Arreo-la (Zapotlán el Grande (agora Ciudad

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Guzmán),1918 – Guadalajara, 2001), também representa toda uma literatu-ra, que pode ser tão ampla como um dicionário, outro jogo de significados atraente para todos estes escritores que precisam encontrar outra desig-nação diferente, uma tradução impar. No fundo, todos dionisíacos com a concepção da linguagem.

A sua obra, breve e complexa, se-dutora e diversificada inclui numerosas vozes, sempre com precisão e rara ele-gância de dicção: a fábula, a parábola, o diário fictício, o teatro, a anedota, até o ensino. Todo um sortilégio de formas regido pela “a liberdade de uma ilimita-da imaginação, regida por uma lúcida in-teligência” (na consideração de Borges, outro escritor próximo a esta literatura oblíqua) e também uma ironia entreli-nhas. Como Macedônio, ele também era escritor poroso, literatura andante, conversador inesgotável, sem a liber-dade condicional do verbo. Até já foi chamado de o verbocrata (por José de la Colina) e há vários livros significativos com registros orais a se juntar a sua obra estritamente escrita (o de Fernando del Paso é especialmente intenso).

A extrema brevidade de Arreola e seu enciclopedismo, o seu interesse pela criação humana, inventada e ma-quinada, pelo dom da palavra, se reflete em Varia invención (1949), Confabulário (1952), Inventário (1977), que já delatam

o grau de antologia/bazar de úteis, so-nhos, lembranças, artefatos e quimeras verbais que está contida neles. Não em vão, algum breviário alfabético já se fez de sua obra, pelo número possível de entradas, verbetes, chamadas que sua li-teratura permitia a seus visitantes.

Ao bestiário extraordinário que po-voa sua obra –outra sintonia com Mon-terroso–, deve-se acrescentar a imensa diversidade de pontos de arranque lite-rários de seus textos. Ainda assim, seu leque amplo de interesses de sua escri-ta sempre esteve longe do preciosismo com que a crítica mexicana quis enga-vetá-lo. De fato, “o sentimento frutal da vida” sempre o acompanhou, o colocou numa cultura mais vital que livresca.

Sendo autodidata, amante das le-tras e namorado das vozes populares, a fé em desenvolver o ser com a li-teratura é o verdadeiro leit motif deste escritor da região de Jalisco (a mesma que o muralista José Clemente Oro-zco): “Eu sou um autobiógrafo con-tínuo, ainda que este falando em certo momento de Babilônia!”.

Não por último menos significati-vo, Augusto Monterroso (Tegucigalpa, 1921 – México D.F., 2003) apresenta sintonias com Arreola, coincidindo no território da fábula, do texto breve que ironiza até de seu tamanho: “Hoje me sinto bem, um Balzac; estou comple-tando esta linha”, frente à literatura mo-numental, que vende a sua edificação sistêmica como salvação. Os esparsos volumes deste escritor, especialista nas pequenas dimensões abrange paródias, paradoxos, âmbages, alusões, sempre com humor e contenção como rigores abraçados a sua escrita. A sua justiça poética faz atender de forma equâni-me objetos e sujeitos, o pequeno e o grande, com certa vis cômica (muito cervantina). O encantamento literário corre paralelo sempre a certa releitura cultural e literária, alguma sorna sot-

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to você, cheia de punctum (diz Jorge Ruffinelli), que deixa-nos acordados a cada linha. Em suas páginas de formas breves há tanto de revelado como de escondido para continuar o jogo, so-bretudo a batalha contra o óbvio.

Obras completas y otros cuentos (1959), A ovelha negra e outras fábulas (1969, houve tradução de Millôr Fernandes), Movimiento perpetuo (1972) ou La letra e (1987) levantam uma prosa multi-forme, de uma capacidade proverbial de enunciação. Uma ars combinatória que pede também cumplicidade, como Cortázar, e de alguma outra forma Borges (adlatere desta narrativa oblí-qua), e que aponta para desmascarar a retórica literária.

“Deus ainda não criou o mundo; só está imaginando-o, como entre so-nhos. Por isso o mundo é perfeito, mas confuso“. Difícil foi sempre para seus leitores não esboçarem um sorriso, não verem além de suas palavras apu-radas. Como se houvesse uma placa na entrada de seus livros: abstenham-se sérios, caretas e poderosos.

A pesar de alguns reconhecimentos crescentes e a consideração de culto –excetuando o caso de Cortázar–, a li-teratura que comentamos endereça-se numa interpretação especial, aquela de escritores peculiares, raros, e que são exemplos paradigmáticos de contra-cânone. Mais que fundadores, seguem uma prática des-construtiva da litera-tura (assim como na poesia existem Oliverio Girondo, César Vallejo ou Nicanor Parra para funções que sa-boteiam qualquer ideário de pompa e circunstância da lírica). Todos são es-critores diluidores das prisões dos gê-neros e seus sacramentos. E talvez por essas razões ou por outras não menos esdrúxulas permanecem inéditos no Brasil, exceto sempre Julio Cortázar, e longe de qualquer boom literário ou marketing programado. As suas obras a-

sistêmicas são antídotos para possíveis perigos fundamentalistas, construções que relativizam o cansaço ideológico do mundo, a favor de outros horizon-tes mais amáveis, sem ser, de forma al-guma, literaturas naif ou escapistas. E sim, o contrário, adensamentos literá-rios no núcleo da chamada convencio-nalmente realidade.

Longe do mainstream da literatura mais formal, e dos escritores gentleman tão pródigos em nossos dias, aqueles que aspiram à separação radical entre autor e livro, estes autores recuperam um diapa-são verbal multifacetado –uma literatura inclassificável que homenageia a cultura por extenso de forma babélica–, e essa proximidade biográfica/subjetivizado-ra, junto com os valores enunciados por Ítalo Calvino, para este novo milênio: rapidez, brevidade, multiplicidade...

Adolfo Montejo Navas é poeta e crítico literário.

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FASCÍNIO PELACULTURA OCIDENTALRICARDO MEDRANO

HOMENAGEM

Há exatos cem anos nascia em Buenos Aires José Luis Ro-mero. Após a morte de seu pai, ainda na infância, Rome-ro esteve sob os cuidados de Francisco Romero, irmão mais

velho do lado paterno, um importante filóso-fo argentino, também militar e engenheiro. Isto lhe permitiu (apoiado também em outros mes-tres, como Pedro Henríquez Ureña), desde mui-to cedo encontrar lugar para suas inquietações e construir uma sólida trajetória, tendo se transfor-mado em um dos mais importantes historiado-res do século XX. Romero faleceu durante uma viagem ao Japão, em 1977, deixando-nos como legado uma valiosa coleção de idéias e trabalhos.

roMero MeStre de UM GraNde teMa

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Entre suas obras mais citadas estão Las ideas políticas en la Argenti-na (1946), La Revolución Burguesa en el mundo feudal (1967), Crisis y orden en el mundo feudoburgués (publicada pouco depois de sua morte) e Latinoamérica. Las ciudades y las ideas (1976. A edição brasileira é de 2004), da qual nos ocu-paremos mais adiante.

Como explica seu filho, Luis Al-berto Romero (também eminente histo-riador), antes dos trinta anos de idade, já havia definido seu projeto intelectual, ao qual dedicou uma vida de trabalho ri-goroso e persistente. Para definir a per-sonalidade do pai, Luis Alberto Romero cita o historiador italiano Ruggiero Ro-mano, que dizia que as pessoas comuns têm muitas ideias, mudando-as com facilidade; por isso, os “pequenos mes-tres” possuem cinco ou seis ideias em sua vida, e os grandes mestres apenas

uma. Romero se situa neste caso, fazen-do com que esta empresa o absorvesse completamente, muitas vezes deixando de seguir os padrões convencionais aca-dêmicos. Tudo o que recolhia em seus estudos direcionava para seu projeto que, estando já definido, apenas aguar-dava sua concretização.

Seu grande tema de estudo foi a cultura ocidental, explorando-a des-de a antiguidade greco-romana até os tempos contemporâneos. Nesse arco temporal ocupam também um espaço significativo a Idade Média e as trans-formações do século XVIII.

Muitos destacados humanistas se debruçaram sobre a obra de Romero, de sorte que hoje é possível contar com um rico repertório de análises e inter-pretações, entre outros: Túlio Halperin Donghi, Félix Luna, Adrián Gorelik, Jacques Le Goff, Noé Jitrik, Carlos Al-

José Luis Romero é autor de Latinoamérica. Las ciudades y las ideas, sua obra mais citada.

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tamirano e Afonso Carlos Marques dos Santos, além de Luis Alberto Romero.

Nestes processos de criação, construção e transformação, Romero dá um lugar especial às cidades, palco privilegiado onde encontra uma base sólida e segura para estudar as diferen-tes manifestações históricas. Seu inte-resse não era apenas “de escritório”, nesta empreitada visitou mais de cem cidades, guardando consigo um arqui-vo de imagens e planos.

Porém, imaginou que viveria al-guns anos mais, deixando assim, algu-mas obras inconclusas. Felizmente, parte desta obra tem vindo à luz. Destacamos, em particular, a recente publicação de La ciudad occidental (2009), uma coletânea desses textos que, como as peças de um meccano (jogo pelo qual tomou gos-to), permitiam que suas ideias fossem ganhando forma e sentido. Em notável prefácio, Adrian Gorelik destaca o im-pacto que a primeira visita às cidades européias lhe causaram, onde esse cedo despertar teve um papel decisivo em seu projeto de vida. Assinala Gorelik:

“A importância crescente que foi ga-nhando nele a cidade, menos como objeto material que lhe interessasse por si mes-mo, e mais como meio revelador de algo muito caro à própria forma como conce-bia a história: a condensação de processos de longo prazo da vida social e cultural, a síntese do conjunto das criações humanas representativas de uma época.”

Mas ladeando em importância La ciudad occidental, está o magnífico livro, fundamental e singular: Latinoamérica. Las ciudades y las ideas. Publicado origi-nalmente em 1976, teve que enfrentar o ambiente deflagrado pelo golpe mili-tar de 24 de março desse mesmo ano, que reprimiu duramente as manifesta-ções intelectuais, fechou a editora (Si-glo Veintiuno Argentina), e provocou a prisão e o desaparecimento de autores e editores. Seu formato, sem notas de

rodapé, fontes e discussão do “estado da questão” também provocou estra-nhamento. Aos poucos, entretanto, foi divulgado e valorizado, traduzido para outras línguas, construindo sua reputa-ção de obra excepcional.

Segundo Romero, o objetivo es-sencial deste livro é responder à pergun-ta: “qual o papel desempenhado pelas cidades no processo histórico latino-americano”. O livro foi dividido em ca-pítulos, cada um tratando de uma etapa da história da América Latina, recolhen-do um universo multifacetado que deriva do conceito por ele denominado “vida histórica”: formas de vida, política, men-talidades, economia, ideologias. Inicia-se com a expansão européia, passa pelo ci-clo das fundações, pelas cidades fidalgas, cidades criollas, cidades patrícias, cidades burguesas, e finaliza com as cidades mas-sificadas. Embora recolha contribuições de diferentes origens - Escola dos Anna-les, marxismo, sociologia estadunidense, entre outras – sua particular abordagem torna difícil qualquer filiação, como já foi apontado por Carlos Altamirano. Rome-ro era, como ele próprio se definia, um historiador cultural.

Há um aspecto fundamental desta obra que merece ser destacado: a cons-trução de uma visão de conjunto da América Latina. Fazendo parte de um reduzido universo de trabalhos com essa abrangência, e ainda mais reduzido se nos atermos às cidades e ocupação do terri-tório, podemos situá-la ao lado outros autores, como Ángel Rama (em particu-lar La ciudad letrada, de 1984), Jorge En-rique Hardoy, Ramón Gutiérrez, Richard Morse e Adrián Gorelik. Mas não é uma história endógena, pelo contrário, é uma construção que incorpora esta parte do mundo à história ocidental.

Fornece-nos ainda instrumentos para enfrentar este recorte tão difícil de definir, mas ao mesmo tempo comple-xo e fascinante que é a América Latina.

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Há certamente um fio condutor, afirma, mas é tarefa difícil encontrá-lo.

O livro começa com a chegada dos europeus, e a partir daí vai amarran-do, no tempo e no espaço, toda sorte de aspectos culturais, que habilmente trans-forma em uma explicação convincente para esse processo, incluindo aí um dos períodos mais áridos para os estudos ur-banos: a primeira parte do século XIX (ver, por exemplo, La ciudad regular, de Fernando Aliata).

O fio condutor, que alinhava esse período histórico, e que tem como su-porte a cidade – entendida como uma sociedade urbana e sua criação – começa com a implantação de uma Europa na América, fazendo tabula rasa do que aqui existia: um território vazio. Este sistema, controlado com mão firme desde a me-trópole no caso espanhol, mais frouxo no caso português, se no início permitiu a construção de algo que foi passível de controle, logo sucumbiu à tomada de consciência, por estas cidades, de que já possuíam uma história, e ao confronto da realidade com uma construção abstra-ta que vinha da Europa. Diante da ofen-siva mercantilista, nas últimas décadas do século XVIII, estas cidades sofrem nova inflexão, onde algumas se mantêm no esquema tradicional, estancando-se, e outras se transformam em ativas cidades mercantis, já decididamente burguesas e em busca de independência. A sociedade industrial provoca novo impacto nas últi-mas décadas do século XIX, período no qual passam a se inserir plenamente no sistema econômico capitalista mundial. Neste caso, as burguesias que já estavam constituídas buscam um desenvolvimen-to heterônomo, freando o desenvolvi-mento autônomo mediante o exercício de um poder forte. Isto não durou mais do que alguns decênios, quando diante de novos atores, mudanças políticas e do fenômeno da metropolização, é deflagra-do um novo ciclo, a cidade das massas.

Parafraseando Argan, esta é uma história da América Latina como histó-ria de suas cidades. Que é, para Romero, esse jogo constante de forças, entre de-senvolvimento heterônomo e autôno-mo, entre mundo rural e mundo urbano, entre ideologias e estruturas reais.

Isto nos fornece armas para en-frentar alguns dos problemas frequen-temente apontados na historiografia, como, por exemplo, o das histórias nacionais, que lidam com um limite arbitrário, as fronteiras nacionais, para explicar fenômenos cuja lógica obriga a transcendê-las. Isto fica ainda mais evidente ao tratar do território e das ci-dades. Outro problema refere-se à pos-sibilidade de uma explicação conjunta das colonizações espanhola e portugue-sa, ainda um obstáculo a ser transposto. Esta tensão não está ausente no livro: o protagonismo da cidade se vê surpre-endido por um Brasil onde no período colonial as atividades nas cidades eram quase sempre sazonais e a vida se passa-va nos engenhos. Somente já avançado o século XVIII os universos luso-ameri-cano e hispano-americano se encontram em um percurso comum. Sérgio Buar-que de Holanda, no célebre Raízes do Brasil, também percorreu a trilha destas cidades, mas em Romero elas recebem como incumbência o papel principal, e a América Latina é o princípio.

Que estas breves palavras sirvam de estímulo à leitura de um autor ainda pouco conhecido no Brasil. Romero en-controu um fio. Mas o labirinto ainda permanece à nossa espera.

Ricardo Medrano é doutor em Arquitetura e Ur-banismo pela Universidade de São Paulo e profes-sor da Universidade Mackenzie.

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CENAS IMPREGNADASDE MISTICISMO

OLHAR

o que leva alguém a atravessar a pé a Espanha de leste a oeste? Um grupo de fotógrafos galegos se pôs a Caminho de Santiago, rota de peregrinação que se estende pela Península Ibérica até Santia-

go de Compostela, capital da Galícia. O resultado dessa viagem/aventura são 300 fotos que mostram a simbiose entre a paisagem e os tipos humanos e que foram expostas em maio deste ano no Memorial. Al-gumas imagens estão mais próximas das poéticas pic-tóricas, como as de Fernando Bellas, Javier Teniente e Delmi Alvarez e Tino Viz escolhidas para compor esse ensaio. O interesse arquitetônico, em todos tra-balhos, dilui-se diante da magia do clima local em que a neblina se transforma em elemento cênico.

a MaGia de UM PalCo NatUral

Fernando Bellas

Javier Teniente

Javier Teniente

Tino Viz

Fernando Bellas

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O PODERDE FIXAR VERTIGENS

FERNANDO CASTRO FLÓREZ

ARTES VISUAIS

Não nasci – indicou Roberto Mat-ta - como todo mundo, porque o Chile está em nenhuma parte”. Na verdade, este jovem arquiteto que chegou a trabalhar com Le Cor-busier elaborando os desenhos da

Cité Radieuse, começou a desenvolver sua imagi-nação em 1934, em Madri, onde conheceu Fede-rico García Lorca, Rafael Alberti, Maruja Mallo, Manuel Ángeles Ortiz e Pablo Neruda. Três anos depois foi contratado por Josep Lluis Sert como “pau para toda obra” no Pavilhão Espanhol da Exposição Universal de Paris, onde conheceu Al-berto Sánchez, que o estimulou a ver no real o fantástico. Também pôde ver algumas sessões de Picasso trabalhando em Guernica. E foi justamente

Mattao olHo de CoSÁrio eM

iNFiNito MoViMeNto

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lá, em Paris, que Matta descobriu sua con-dição de pintor. Seu passaporte para en-trar na Vanguardia era um exemplar com dedicatória de Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, que ele mostrou a Dalí, que por sua vez serviu para que Breton o recebes-se na Galería Gradiva, onde lhe comprou dois desenhos e o declarou instantanea-mente surrealista. De forma imediata, em 1938, foi incluído na Exposição Interna-cional de Surrealismo e integrado ao gru-po onde travou amizade com Duchamp, Magritte, Penrose, Tanguy e Miró. Já em 1939, Breton frisou que em Matta assisti-mos à necessidade de uma representação sugestiva do universo quadridimensional. Seus quadros são descritos como uma festa “onde são jogadas todas as possibi-lidades, uma pérola que se transforma em bola de neve à qual se incorporam todos os fulgores, tanto físicos quanto mentais”.

Marcel Duchamp, um antagonis-ta daquilo que chamava de “retiniano”, considerava que Matta era o pintor mais profundo de sua geração; o que lhe inte-ressava de sua obra era a forma em que tinha seguido os físicos modernos em busca de um novo espaço que não de-via ser confundido com uma ilusão tri-dimensional. Na verdade, a sua era uma visão deslumbrante do mundo em que, como afirmou Damián Bayón, partia da rejeição da figuração cotidiana. Quando contemplamos os quadros do denomi-nado “período cósmico”, encontramos uma espécie de simbologia hermética do primeiro dia da criação com uma atmos-fera que sugere a catástrofe. A matéria,

nessas obras sumamente enérgicas, sem-pre dá a impressão de ser fluída, instá-vel, larvária e eruptiva. É como se Mat-ta compusesse um planeta em gestação. No entanto, não se trata meramente de uma desordem expansiva, porque sempre há uma ordem arquitetônica, comparti-mentos e inclusive alusões a máquinas.

Os traços nervosos, quase his-téricos, de Roberto Matta, certamente estão relacionados à prática surrealista da escrita automática. Contudo, suas “morfologias psicológicas” escapam da “ortodoxia” da pintura visionária da época. Michaux falará de um uni-verso constituído por ondas, que se contrapõe a um universo sólido. Este é um modelo dinâmico cujo infinito não é um ponto-centro ou um zêni-te detido, mas um infinito em movi-mento, atravessando sem fim o finito. Vemos mutações, estados em tensão, desespero, angústia ou desejo. William Rubin destaca que os símbolos poéti-cos de Matta faziam parte de um sis-tema de formas novo e muito pessoal, “que parecia indagar mais profunda-mente que o imaginário surrealista nos subterrâneos do inconsciente e chegar mais longe às fontes da vida psíquica. Daí a possibilidade de considerá-las uma iconografia da consciência huma-na, como teria podido existir antes de conceber-se e encarnar-se nessas for-mas e componentes reconhecíveis de nossa experiência cotidiana”. Se, por um lado, nunca deixa de manifestar uma espécie de simbolismo sexual ci-frado ou, em outros termos, um ero-tismo sublimado, sua estética também poderia ser entendida como uma espé-cie de prefiguração da ficção científica.

Octavio Paz acertou na mosca quando disse que a pintura de Matta tem um pé na arquitetura e o outro no sonho.

É evidente que Roberto Mat-ta desenhava impressionantemente bem e que isso está presente em to-

Inscape (Psychological Morphology).

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dos seus momentos pictóricos. Seu procedimento básico de composição consistia em aplicar pigmento sobre a tela e depois trabalhá-lo até conse-guir uma mancha ou atmosfera que desencadeava a pulsão pelo desenho, executada diretamente com o tubo de tinta. Em suas imagens dinâmicas o lú-dico entra constantemente e inclusive adquire, em algumas ocasiões, a for-ma de histórias em quadrinhos, com

um mundo delirante de bonequinhos fruto de uma imaginação sem limites.

A primeira exposição individual foi realizada por Roberto Matta em Nova York, mais concretamente na galeria de Pierre Matisse, em 1942, com o título “A terra é um homem”. Reconhece-se a in-fluência de suas propostas sobre a pintura americana, especialmente a de William Baziotes, Germone Kramowski, Jack-son Pollock e Robert Motherwell. Com

Para Duchamp, Matta foi o pintor mais profundo de sua geração.

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Gorky estabeleceu um intenso diálogo. O que Matta “ensinou” a esses pintores foi a importância do automatismo e, sobre-tudo, um caminho para ir além tanto do cubismo quanto das propostas figurati-vas, em bastantes casos de signo pompier, que proliferavam no seio do surrealismo. A verdade do gesto, a ação em uma escala expansiva, a pulsão que deixa o incons-ciente livre, uma aposta na cor exaltada, foram acolhidas por artistas que neces-sitavam, por todos os meios possíveis, livrar-se da “angústia das influências”, para utilizar a famosa noção criada por Harold Bloom, diante da Europa e de sua memória cultural. Anos depois diria que sua famosa “influência” sobre os expres-sionistas abstratos era um mito e que na verdade tudo tinha sido um diálogo de surdos. No final dos anos 40, não vacilou em afirmar, quando o cenário de Nova Iorque lhe dava as costas e o suicídio de Gorky pesava como uma pedra sobre seu nome, que o mundo estava “californi-cando” e atacou furiosamente o Vampi-re State e os United Snakes of America.

Matta era um pintor com verdadei-ro talento literário, que procurava sem-pre uma mudança inesperada das coisas. Ilustrou, com Max Erns, Victor Brauer e Yves Tanguy a reedição dos Cantos de Maldoror, de Isidoro Ducasse, Conde de Lautréamont, editado pela Gallimard. Sabia de sobra que a imagem é o encon-tro do heterogêneo, a construção de uma metáfora sobre um plano de realidade que pode ser uma “mesa de dissecação”. Seu universo plástico era a materialização do encontro casual, da beleza convulsa como forma de escapar do fossilizado, daquilo que nos impede ver outra coisa. “Porque Matta – escreve Rafael Alberti na Arboleda perdida- é, acima de tudo, a surpresa. A surpresa na pintura e a sur-presa em tudo aquilo que faz, nas conver-sas, nas opiniões, na maneira de desenvol-ver suas opiniões. De repente surge como um meteoro, e depois quase não se con-

segue mais falar com ele. Alguém diz uma palavra e Matta rapidamente a transforma em cem coisas diferentes, muda umas por outras, cria e recria a qualquer momen-to, deixando no ar, depois de estar uma tarde com ele, a velocidade que nunca se detinha de suas improvisações”. Queria estabelecer pontes entre continentes, isto é, gerar uma cartografia que, na verda-de, era um autorretrato. O que chamou de Verbo América consistia em conjugar particípios passados com presentes con-dicionais, “é reorganizar todos os pre-téritos das contas e contos do índio do Mediterrâneo com os indígenas da Amé-rica e do Pacífico; é colocar bem os dedos naquilo que os une, em vez de se despre-zar com megatônicas megalomanias”.

De sua busca da transparência a partir do Grande Vidro de Duchamp res-tam formas ou aparições que nos fazem pensar em cristais ou telas, bem como no desejo de se abrir e conhecer o mundo. O caos e o magmático misturam-se com a busca da clareza. Após uma doença que o deixou cego durante nove meses, Rober-to Matta adquiriu L´objet invisible (1934) de Giacometti. Talvez esse artefato com tantas conotações psicanalíticas fosse o contrapeso de sua paixão pela magia e o tarot, na qual também detectamos a inspi-ração do Arcane 17 de Breton. O universo vertiginoso e energético de Matta tam-bém tem uma certa atmosfera de concen-tração, da mesma forma que sua figura-ção primitiva situa-se no seio de espaços hiper-tecnológicos. Neste caso, falar de “imagens incongruentes” ou de “estética do acidente” pode ser considerado elogio.

Com grande ironia respondeu brilhantemente à convencional per-gunta de um entrevistador: “É verda-de que se considera um surrealista?” “De forma alguma: não sou surrealista, sou um realista do sul”. A verdade é que, embora Matta tenha estabelecido, especialmente a partir do governo de Salvador Allende, um vínculo político-

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emocional com o Chile, não é, como pretende nos fazer pensar, um artista “enraizado” em sua terra de origem que, como ele mesmo declarou, é “ne-nhuma parte”. Matta traçou sua viagem estética principalmente no trânsito en-tre Paris e os Estados Unidos, em uma viajem de ida e volta que o transformou, como já foi indicado, em singular “em-baixador do automatismo” e mais tarde em influente colaborador de CoBRA, quando regressou ao velho continente.

Um criador tão talentoso para o manual foi capaz, pela sua curiosidade vi-tal, de trabalhar com o computador, reali-zando vídeos que apresentou na Bienal de Veneza de 1989. O que sempre o interes-sava era o modo de manifestar espaços. “A arte – afirmou Roberto Matta- serve para provocar a intuição da emoção latente em tudo o que nos rodeia e para mostrar a ar-quitetura emocional que as pessoas preci-sam para existir e viver juntos. Sei que um artista só será autêntico se sua obra se in-corporar a esse movimento de duas mãos que consiste em realizar, em receber de seu povo a consciência das necessidades que detectou em si mesmo e como artis-ta, em dotar essa consciência da intuição de uma emoção essencial que utiliza para ampliar a visão da realidade”. Matta con-sidera que estamos encurralados em Eu-clides e que o cubismo ainda é geometria clássica: “teríamos de desencantar a lógi-ca. Inventar novos espaços. Desintegrar o ‘portanto’. Criar metáforas proibidas”.

Matta queria uma morfologia que não se detivesse nas silhuetas, na pele dos seres e das coisas. Seu esforço estava di-recionado a um despertar da consciência, à geração daquilo que denominou inscape. O desafio era mostrar, apenas, “o fundo do ser”. Ele queria pintar o espaço do sentimento. Certamente, como indicou seu amigo Duchamp, Matta descobriu “regiões do espaço, desconhecidas até então no campo da arte”. Em um texto de 1944, Breton frisa que é Matta quem

sustenta a estrela mais firmemente acima do abismo presente que assimilou todas as características da vida que a pode tor-nar invalorável; a pintura e os desenhos, excitados e cheios de potência, falam, de forma múltipla, do amor humano, “e é provável que Matta esteja no caminho mais seguro para obter o segredo supre-mo: o domínio do fogo”. A pintura é tremor: tempo metamórfico. “Sou – es-creveu Matta em 1970 - um homem que testemunha morfologicamente o que vê”.

Tinha o olho corsário, explora-va outras geometrias para conquistar, pensava em uma terra que estava em “todas as partes”. A abordagem de um novo espaço o levou até uma tempora-da no inferno de Rimbaud. Sabia de so-bra que a tarefa da arte é fixar vertigens.

Composición Azul.

Fernando Castro Flórez é crítico de arte espanhol.

Dar a la vida una luz.

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EVENTO CHEGAÀ QUARTA EDIÇÃO

ANDRÉ STURM

CINEMA

repleto de atrações, entre elas produções premiadas, inéditas e clássicas, o Festival de Cinema Latino-Americano de São Pau-lo realiza sua quarta edição, ain-da mais prestigiado. Quando foi

idealizado, em 2006, seu projeto prendeu-se à ne-cessidade de difundir a produção cinematográfica do Continente, que dava mostras de uma crescen-te vitalidade, mas carecia de mecanismos de divul-gação. Realizadores consagrados precisavam de espaço, os cineastas estreantes de uma primeira vi-trina para poder deslanchar. O Memorial articulou o evento, a Secretaria de Estado da Cultura encam-pou, outras instituições aderiram e o Festival tor-nou-se verdadeiro sucesso no calendário cultural.

FeStiValde CiNeMa latiNo-aMeriCaNo

de São PaUlo

Cena do filme Tule Kuna: Cantamos para no Morir, do colombiano Gérman Enrique Piffano Mendoza.

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A quarta edição do Festival de Ci-nema Latino-Americano deixa claro que o evento “pegou”. Sessões disputadas têm sido comuns durante os dias do festival.

São Paulo oferece uma das progra-mações de cinema mais diversificadas do mundo. Pode parecer pretensioso, mas poucas têm tantas salas destinadas ao ci-nema “de arte” ou o não de Hollywood, e quantidade de títulos vindos de tan-tos locais diferentes. Qualquer filme que consiga um destaque num dos princi-pais festivais internacionais, como Can-nes ou Berlim, mesmo que demorando um pouco, às vezes, termina estreando nos cinemas da cidade.

De alguns anos para cá, o cine-ma argentino começou a aparecer mais, criando até uma legião de fãs. Além da qualidade dos filmes, ajudou a criação de um Programa da Ancine (Agência Na-cional de Cinema) que apoiava com um pequeno recurso os distribuidores inde-pendentes para o lançamento de filmes argentinos no Brasil. Simultaneamen-te o órgão argentino equivalente faria

o mesmo por lá. Foram três anos com esse apoio e a presença desse cinema passou de um filme por ano para uma média de cinco ou seis. Infelizmente lá na Argentina não aconteceu o mesmo, e o Programa não foi descontinuado, os filmes continuam estreando por aqui, com público e atenção da mídia.

O mesmo não acontece com os filmes dos demais países da América La-tina. São raras as produções mexicanas, chilenas ou colombianas que estréiam em nossas salas. E essas são as cinematogra-fias mais expressivas em quantidade de títulos. Dos demais países então é quase impossível lembrar a última vez que es-treou um título da Bolívia, do Equador ou de outro dos países da região.

O Festival vem preencher essa lacuna. E formar público. Com certe-za o sucesso que alcança a cada ano pode vir a ajudar para que mais desses títulos estréiem no país.

Esse ano a programação enrique-ceu-se. As diversas sessões foram pro-gramadas para permitir o contato com

La Teta Asustada, da peruana Claudia Llosa, com as atrizes Susi Sánchez e Magali Solier, filme vencedor do último Festival de Berlim.

Gael Garcia Bernal em Rudo y Cursi, do mexicano Carlos Cuarón.

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Simonal dos brasileiros Claudio Manoel, Calvito Leal e Micael langer.

Ricardo Yuono em O Fim da Picada, de Christian Saghaard (Brasil).

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alguns dos melhores filmes recentes, e re-cuperar alguns títulos de anos anteriores.

Uma das mostras foi idealiza-da para focalizar o cinema dos anos 90. Essa década marcou uma mudan-ça importante na produção da região e alguns dos cineastas “jovens” mais importantes da atualidade começaram nesse período, como Beto Brant e Lu-crecia Martel, entre outros. Excelente chance de rever e, principalmente, co-nhecer esses filmes para quem, em al-guns casos, estava de “calças curtas” ou “Maria Chiquinha” nessa época. É in-teressante observar como esses filmes mantêm sua força, sem ter envelhecido, mostrando que a impressão que causa-ram à época não foi passageira.

Uma homenagem a Alex Viany significa outra atração de grande impor-tância. Cineasta, estudioso e mais que tudo crítico, é um dos nomes pilares da cultura cinematográfica brasileira junto a Paulo Emilio Salles Gomes. Sua obra marcou o pensar sobre cinema brasi-leiro e permanece instigante até hoje. Além de alguns de seus filmes, durante

o Festival será relançada sua principal obra Introdução ao Cinema Brasileiro.

Outra homenagem marca o mais importante cineasta brasileiro vivo, Nel-son Pereira dos Santos. Autor de obras primas, como Vidas Secas e Memórias do Cárcere, ele permanece ativo, tendo lan-çado seu último filme há pouco mais de dois anos. O Festival programou-se para exibir alguns de seus mais importantes trabalhos, oferecendo uma oportunida-de imperdível, a chance de assistir a es-ses filmes na tela grande do cinema.

Enfim, cada ano que passa, o Festival amplia um cardápio instigan-te e excitante para todos os gostos. Ao lado de seminários e debates coloca o cinema latino-americano nas telas pau-listanas com todo o cuidado e a quali-dade que ele merece.

André Sturm é roteirista, cineasta e produtor.

Quién Diablos es Juliette, do mexicano Carlos Marcovich, outro filme da mostra retrospectiva.

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Os Matadores, de Beto Brant (Brasil), com Maria Padilha, na mostra retrospectiva.

A idéia inicial mantém-se basica-mente a mesma desde o início: mostra retrospectiva, com os melhores mo-mentos do cinema latino-americano, e uma seleção de estreantes, além das ses-sões de debates. No entanto, o evento tem crescido em conteúdo, tanto pela diversidade, quanto pela profundidade. Por isso, vem conquistando público e importantes realizações.

Vale ressaltar a exibição do filme La Teta Assustada, da peruana Cláudia Llosa, vencedor do último Festival de Berlim. Assim como a presença da mais nova produção do mexicano Carlos Cuarón, o filme Rudo y Cursi, obra pré-selecionada para participar do Festival de Sudance, nos Estados Unidos, cujo elenco é encabeçado por Gael Garcia Bernal. Outro destaque internacional é Una Semana Solos, produção de Martin Scorsese, dirigida pela argentina Celi-na Murga, diretora do aclamado Ana y los Otros. Lançado no último Festival de Cannes, o média metragem 1989 é

do colombiano Camilo Matiz, estrela-do por Vicent Gallo, e narra uma his-tória em que a violência protagoniza. Do Brasil, entre outros, destaca-se o inédito no circuito comercial A Erva do Rato, de Júlio Bressane, selecionado para o Festival de Veneza.

Na mostra retrospectiva, um bom exemplo é Rodrigo D. en el Futuro, do co-lombiano Victor Gavíria, que depois fa-ria Vendedora de Rosas, filme que conquis-tou mais de 20 prêmios internacionais e que foi indicado para a Palma de Ouro em Cannes. Merece menção também a exibição de El Heróe, curta premiado em Cannes, do diretor mexicano Car-los Carrera, que dirigiu O Crime do Padre Amaro. Entre os brasileiros, o famoso Os Matadores, de Beto Brant.

O Festival de Cinema Latino-Americano contou com a co-realiza-ção da Cinemateca Brasileira, Museu da Imagem e do Som, Cineusp, Prefei-tura Municipal de São Bernardo e do Sesc São Paulo.

EVENTO CONQUISTA PÚBLICO E REALIZADORES

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EM CENÁRIODE GRANDES TENSÕES

CAROLINA MOTA MOURÃOE BIANCA GALAFASSI

POLÍTICA

Serra do Sol

O caso da demarcação da ter-ra indígena Raposa Serra do Sol – TI RSS, em Roraima, recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal, instância máxima do poder

judiciário brasileiro, revelou a complexidade do debate em torno da efetivação dos direitos indí-genas no Brasil. Esse processo demarcatório, que pode ser considerado um dos mais conflituo-sos da história do país, colocou em foco, duas décadas após a promulgação da Constituição Fe-deral de 1988, o desafio de concretizar as garan-tias constitucionais em um cenário de acentuadas tensões envolvendo os mais diversos setores da sociedade brasileira. Os impasses na demarcação

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da TI RSS decorreram principalmen-te das disputas entre defensores da confirmação da área demarcada em extensão contínua e aqueles que pre-tendiam a demarcação da área “em ilhas”, permitindo a permanência de não-índios ao redor das aldeias.

Com uma extensão territorial de 851.196.500 hectares, o Brasil apre-senta 110.218.920 hectares destinados aos povos indígenas, o que correspon-de a cerca de 13% de seu território. No total, há 430 terras indígenas no país, as quais se encontram em fases distin-tas do processo demarcatório. A maior parte das terras indígenas concentra-se na Amazônia Legal, onde vive 60% da população indígena brasileira. Esse é o caso da TI RSS, que está situada ao norte do Estado de Roraima, junto à fronteira do Brasil com a Venezue-la e a Guiana. Atualmente, essa terra indígena possui área contínua de 1,74 milhão de hectares e conta com apro-ximadamente 19 mil indígenas das etnias Taurepang, Macuxi, Wapixana, Ingarikó e Patamona.

No Brasil, o direito dos índios à pos-se das terras por eles ocupadas é reco-nhecido desde o período colonial, mas foi somente com a Constituição Federal de 1988 que se ofereceu aos povos indí-genas garantias mais efetivas. Atribuiu-se à União a condução do processo demar-catório, que deve ser orientado pelo re-conhecimento do direito originário dos índios sobre as “terras tradicionalmente ocupadas”, definidas pelo texto consti-tucional como sendo as terras “por eles habitadas em caráter permanente, as uti-lizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recur-sos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, cos-tumes e tradições” (art. 231, § 1º).

No caso da TI RSS, há pesquisas etnográficas, relatos de cronistas da

região e documentos oficiais do go-verno que comprovam a existência de diversas etnias indígenas em áreas lo-calizadas dentro dos limites do Estado de Roraima desde os tempos do Brasil Colônia. A presença desses povos na-quela região foi especialmente impor-tante para a demarcação das fronteiras, pelos portugueses, frente às tentativas de ocupação espanhola. Apesar dos séculos de interferência por ocupações não-indígenas, as distintas etnias que hoje habitam o território de Roraima, em particular a TI RSS, apresentam um vínculo histórico com a região. A pre-servação da identidade, a coesão cul-tural e a estrutura social desses povos indígenas dependem, portanto, da per-manência em suas terras de origem.

Nesse contexto histórico, deu-se início ao processo de reconhecimento da posse originária visando à demarca-ção oficial da TI RSS para uso exclusi-vo dos indígenas. Iniciado formalmen-te em 1977 e concluído somente em 2005, o processo demarcatório dessa área, conduzido pela Fundação Nacio-nal do Índio – FUNAI e homologado pelo Presidente da República – enfren-tou uma série de dificuldades de natu-reza político-institucionais e ensejou numerosos questionamentos jurídicos.

No que se refere ao plano polí-tico-institucional, o processo demar-catório da TI RSS prolongou-se em razão das sucessivas mudanças dos dirigentes de órgãos responsáveis pelo processo demarcatório no âm-bito do poder executivo federal. No período entre a identificação da área pela FUNAI, em 1993, e a sua efe-tiva homologação, em 2005, o país contou com treze Ministros da Jus-tiça – autoridade que declara a posse permanente das comunidades indíge-nas sobre as terras identificadas pela FUNAI – ao longo dos governos dos Presidentes Itamar Franco, Fernando

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Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda que essa dinâmica harmonize-se com a necessidade de aperfeiçoamento das instituições de-mocráticas no país, gera também ins-tabilidade e demora na concretização das ações necessárias à garantia dos direitos dos povos indígenas.

Outro aspecto que teve impacto no processo foi a edição do decreto presidencial, em 1996, que alterou as

regras do procedimento demarcatório e abriu novo prazo para que todos os possíveis interessados – inclusive Es-tados e Municípios – apresentassem contestações em relação a todas as demarcações de terras indígenas em curso no país, independentemente da fase do processo administrativo de-marcatório. Tal iniciativa foi objeto de críticas especialmente porque, segun-

do a regra constitucional, a condução desse processo cabe apenas à União, com a participação das comunidades indígenas envolvidas.

O caso também trouxe à tona ques-tões relativas à coincidência da área da TI RSS com áreas destinadas a outros fins. De fato, uma das principais dis-cussões centrou-se na sobreposição entre a terra indígena demarcada e a faixa de fronteira, o que supostamente

significaria a impossibilidade de aces-so de militares à região e representaria ameaça à soberania nacional. Ainda nesse sentido discutiu-se a sobrepo-sição da área destinada às comunida-des indígenas e o Parque Nacional do Monte Roraima, criado em 1989 com vistas a assegurar a preservação am-biental. Além disso, para tornar viável a permanência de não-índios na TI

Parte da área da Raposa Serra do Sol.

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RSS foram feitas instalações de infra-estrutura, como a construção de es-tradas e a instalação de equipamentos públicos (como, por exemplo, linhas de transmissão de energia). A demar-cação enfrentou, ainda, impasses de natureza federativa, em razão da cria-ção de municípios dentro da área iden-tificada (notadamente os Municípios de Normandia em 1982 e de Uiramutã e Pacaraima em 1995) e das crescentes pressões exercidas pelos poderes lo-cais e regionais em face da União.

Somaram-se a essas questões a disputa pela terra. De modo geral, a pecuária, o garimpo e agricultura – notadamente a monocultura de arroz – tornaram-se ameaças constantes à proteção dos povos indígenas que ha-bitam essa região do Estado de Rorai-ma. Em estudo realizado pelo Institu-to Nacional de Pesquisas da Amazônia para monitorar a presença de monocul-turas na área, sua evolução no tempo e impactos ambientais, identificou-se a presença de extensas áreas de mo-nocultura de arroz dentro dos limites da TI RSS. Com base em imagens de satélites realizadas nos anos de 1992, 1997, 1998, 2001 e 2005, verificou-se que tais plantações correspondiam a ocupações de má-fé, tendo em vista que cresceram em período posterior ao da definição, pelo poder executivo federal, dos limites daquela terra indí-gena. Isso explica porque o processo de demarcação da TI RSS culminou em um cenário de intolerância e vio-lência: protestos de rizicultores e não-índios contrários à demarcação, inva-sões a sedes locais de órgãos federais, bloqueios de rodovias e outras vias públicas e, até mesmo, agressões entre os grupos envolvidos no conflito.

No plano jurídico, a demarcação da TI RSS, nos moldes definidos pela União, foi contestada, direta e indire-tamente, em inúmeras ações judiciais

no âmbito da justiça estadual, da jus-tiça federal e dos tribunais superiores. Em 2005, a questão chegou ao STF por meio de ação popular em que se contestava, essencialmente, o mode-lo contínuo de demarcação da terra indígena e pedia-se a nulidade dos atos do executivo que determinaram os seus limites. Em março de 2009, o STF decidiu pela constitucionalidade do processo demarcatório, não sem estabelecer certas condições – mais especificamente 18 condições – à ocu-pação das terras pelos índios.

Os Ministros declararam a validade da demarcação contínua e a necessidade de desocupação da TI RSS por parte dos não-índios que se encontravam na região, consagrando o entendimento de que as terras cuja posse é atribuída aos índios pela Constituição Federal não se limitam ao espaço das aldeias, mas compreendem toda a área necessária à reprodução física e cultural das comunidades indígenas, não devendo ser reduzida em função da pre-sença de ocupações de não-indígenas.

Quanto a um dos pontos mais po-lêmicos do caso – o suposto risco à so-berania nacional – o STF decidiu não se opor à inclusão de faixa de fronteira na área da TI RSS, considerando não haver impedimento à atuação do po-der público na região para a defesa do território brasileiro, mediante interven-ção das Forças Armadas ou da Polícia Federal. Entendeu-se que o país dis-põe de normas capazes de autorizar a proteção do nosso território, sem que a terra indígena represente um empe-cilho. Afastou-se, no entanto, a neces-sidade de consulta, nessas situações, às comunidades indígenas envolvidas e à Funai, o que representa riscos de abusos, justificados pelo histórico de violências cometidas por autoridades armadas em terras de índios.

É relevante mencionar que a deci-são assegurou a participação dos entes

A monocultura do arroz tornou-se ameaça constante à proteção dospovos indígenas do Estado de Roraima.

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federados – Estados e Municípios – no processo administrativo de demarcação das terras indígenas em seus territórios, realizado pela União. Quanto a isso, deve-se considerar que se por um lado a manifestação dos entes federados tende a aproximar o cidadão do núcleo de decisão, descentralizando o poder e ampliando as esferas de controle so-bre o próprio processo decisório, por outro lado é importante atentar para o fato de que elites locais – detentoras de cargos políticos ou suficientemente influentes na esfera política local – são, tradicionalmente, menos propícias a adotarem políticas equânimes de dis-tribuição de terras e frequentemente se revelam pouco favoráveis à efetivação do direito indígena às terras.

Por fim, no que diz respeito à ex-tensão da TI RSS, embora neste aspecto a votação não tenha sido unânime, fi-cou decidido que a área demarcada não pode ser ampliada, o que pode signifi-car fonte de dificuldades para diversas comunidades indígenas caso isso seja interpretado como aplicável a todas as TIs demarcadas no Brasil. Quem acom-

panha a questão indígena de perto sabe que há comunidades, como é o caso dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, cuja sobrevivência depende da re-visão do tamanho de suas terras, demar-cadas antes de 1988 e, portanto, sem as atuais garantias constitucionais.

Diante de tais considerações, per-cebe-se que as consequências da de-marcação da TI RSS ultrapassam o caso particular. Apesar das restrições determinadas pelo STF, a conclusão do processo de demarcação represen-tou um ganho importante em favor do projeto da Constituição Federal de 1988, que visa garantir o respeito aos direitos das comunidades indígenas no Brasil. Também significou a superação dos impasses político-institucionais apontados e a possibilidade real de se encontrarem novas soluções para atender os interesses de diferentes se-tores da sociedade.

A conclusão do processo de demarca-ção representou um ganho importan-te em favor da Constituição.

Carolina Mota Mourão e Bianca Galafassi são advogadas, com experiência em questões indígenas.FO

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REAL OPORTUNIDADEPARA O CONTINENTEROBERTO RODRIGUES

ECONOMIA

aGroeNerGia Não É UMa aVeNtUra

a agricultura mundial tem um enor-me conjunto de desafios para o futuro, representados pela necessi-dade de aumentar a produção agro-pecuária com sustentabilidade. Nos próximos 30 anos, mais de dois bi-

lhões de pessoas se somarão aos atuais 6,2 bilhões de terráqueos. Isto representa um aumento de 30% em 30 anos! Deste total, cerca de 85% estarão na Ásia e na África, continentes com países mais pobres, mas onde a renda per capita cresce mais que nos países ricos. Em 2030, 61% da população global será urba-na, devido ao forte êxodo rural que vem ocorrendo, mudando um perfil que, até 2010, terá maioria rural. Por estas, e outras razões, a FAO - Organização das Nações Unidas, para a Agricultura e a Alimentação,

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acredita que, de 2005 e 2025, a oferta de grãos e de carnes precisaria crescer cerca de 42% para atender ao aumen-to da demanda.

Mas produzir alimentos não será o único grande desafio dos agriculto-res contemporâneos. O prêmio Nobel de Química o neozelandês, Alan Mac Diarmid, afirmou que, nos próximos 50 anos, cinco dos dez maiores problemas da humanidade terão que ser resolvidos pela agricultura (energia, água, alimen-tos, meio ambiente e pobreza).

Na verdade, a agropecuária con-temporânea será responsável pela pro-dução de três eixos fundamentais para a vida humana: alimentos, fibras e energia.

E no caso da energia, esta respon-sabilidade ganha uma dimensão extra-ordinária. Nos próximos 30 anos, de

acordo com a Agência Internacional de Energia, a demanda crescerá 50% em todo o mundo. Só a demanda de com-bustíveis líquidos será 55% maior no período. E está claro que o petróleo não resolverá tudo isto sozinho, ou o fará a preços elevados.

Aliás, não deixa de ser surpreen-dente o fato de o petróleo ter se torna-do a grande fonte de energia universal, somente em poucas décadas do século XX. Antes disso, a biomassa derivada de lenha havia sido, por séculos, a grande fonte de energia, secundada pelo carvão mineral. Mas, de repente, pelo baixo cus-to e pela facilidade de extração, o petró-leo - que é fóssil, finito e mal distribuído se tornou o motor da civilização.

O debate sobre seus altos preços e seus efeitos perversos para o aqueci-

Álcool armazenado em tonéis.

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mento global e para a poluição atmos-férica, sobretudo nos grandes centros urbanos, vai conduzindo a investigação para fontes renováveis e não poluentes de energia. A ciência está debruçada so-bre formas de melhoria da qualidade de vida para o futuro. Energia solar, energia nuclear, energia eólica, energia hidráuli-ca, são temas recorrentes de eventos re-alizados diariamente nos quatro cantos. E, para o caso dos combustíveis líqui-dos, alternativas são também pensadas, como o gás natural, uma nova célula de hidrogênio e o carro elétrico volta a ser avaliado com novas tecnologias.

No entanto, é indiscutível que a agroenergia tem um papel reservado neste cenário em que os biocombustí-veis se apresentam como uma solução simples. Qualquer país pode fazer seu próprio etanol e seu biodiesel, embo-ra os custos de produção favoreçam mais uns que outros.

O Brasil acumulou uma larga ex-periência com o etanol. Embora conhe-cesse este combustível desde os idos de 1929, foi somente após o “choque do pe-tróleo”, na década de 70, que o Governo Federal implantou um formidável progra-ma nacional, o Proalcool - em 1975 - des-tinado à produção de álcool carburante. Foi um programa espetacular e único no mundo como alternativa concreta e con-sistente à explosão dos preços da gasoli-na. A indústria automobilística aderiu ao programa, reinventando o carro movido a álcool hidratado e os motores a gasoli-na aditivada com álcool anidro. Foi um grande sucesso, mas a falta de visão de al-guns poucos empresários do setor quase o colocou a perder. Como a matéria- pri-ma para o álcool era a mesma do açúcar, a cana, quando os preços internacionais do açúcar remuneravam mais que o mercado interno do álcool, eles reduziam a produ-ção deste para ganhar mais com aquele. Isto aconteceu em mais de uma oportu-nidade, derrubando a confiança e a segu-

rança dos donos de carro a álcool, que perderam a fé no projeto. O Proalcool quase morreu por esta razão e, natural-mente, pela resistência que a indústria de petróleo oferecia a esta alternativa ao seu próprio império.

O grande impulso do etanol se deu mais recentemente, a partir do co-meço do século XXI, quando a indús-tria automobilística brasileira desenvol-veu o carro flex e quando os preços do petróleo voltaram a disparar.

O carro flex deu ao consumidor a oportunidade de escolher qual com-bustível usar, em função do preço e da disponibilidade do produto.

O presidente Luis Inácio Lula da Silva compreendeu a importância que a agroenergia poderia ter para o Brasil, seja na direção da autossuficiência do petróleo, seja na geração de empregos, riqueza e renda no país, para exportar etanol, biodiesel ou equipamentos e tecnologia, seja - principalmente - para ofertar ao mundo uma alternativa ener-gética renovável, ambientalmente me-lhor, que poderia ser um projeto de desenvolvimento para todos os países tropicais. E passou a trabalhar em de-fesa da agroenergia. Mas este não é um tema apenas para o Brasil. Praticamente toda a América Latina, entre os trópi-cos, é potencial produtora de agroener-gia. A Argentina já produz biodiesel a partir da soja.

Existem vantagens extraordiná-rias no uso dos biocombustíveis. A pri-meira, e relevante, é a ambiental. Qual-quer planta cultivada sequestra carbono. Por outro lado, é evidente que os com-bustíveis fósseis são muito mais poluen-tes do que os renováveis. Desta forma, a agroenergia contribui de maneira efetiva pra a redução do aquecimento global.

A segunda é a renovabilidade: pe-tróleo queimado não volta mais, ao passo que o etanol e o biodiesel são produzi-dos sempre, e cada vez com melhor tec-

A agroenergia contribui de maneira efetiva para a redução do aquecimento global.

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nologia, mais produtiva, competitiva e sustentável. O petróleo está onde está e ponto final. O biocombustível pode ser produzido em qualquer lugar do mundo, a partir de diversas matérias-primas.

A terceira é de caráter social: o Pro-alcool gerou, à sua época, mais de um milhão de novos empregos, diretos ou in-diretos. A nova fase do boom do etanol volta a empregar milhares de brasileiros de todos os níveis e competências, e já está faltando gente preparada para as dezenas de nascentes projetos agroindustriais. Este é um fator que pode ser multiplicado em todos os países que optarem pela agroe-nergia, especialmente na América Latina.

O quarto é econômico: mais em-pregos e mais renda já são dados sufi-cientes, mas o impacto na balança co-mercial de quem depende do petróleo é evidente. O Brasil é hoje auto-sufi-ciente em óleo por causa dos biocom-bustíveis, especialmente do etanol. A matriz energética é muito melhor que a do resto do mundo, porque mais de 40% é de energia renovável.

E, mais ainda, a cogeração de eletricidade por parte das usinas de ál-cool ganha crescente importância no país, reduzindo os riscos de um apa-gão elétrico. O Estado de São Paulo, o mais industrializado do país, já conso-me 17% de energia vinda da cana-de-açúcar. E vai crescer.

Mas a quinta vantagem é a mais importante de todas: a agroenergia é um novo paradigma agrícola, e vai mudar a geoeconomia agrícola mundial. Diferen-tes matérias-primas vocacionadas para os mais diversos países mudarão o panora-ma rural neles. Só a cana-de-açúcar, que ocupará áreas de pastagens, por exemplo, permitirá a produção de grãos, especial-mente leguminosas, onde antes isto não existia. Além do mais, agroenergia de-manda terra, sol, água, gente, tecnologia e capital. Os primeiros cinco itens estão disponíveis entre os trópicos, seja na América Latina, na África ou na Ásia.

O capital, por sua vez, virá dos grandes consumidores de energia, mu-dando até mesmo, possivelmente, a

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geopolítica mundial. Esta é a meta tra-çada para a agroenergia e para os bio-combustíveis. Da mesma forma como respondeu ao monumental desafio da segurança alimentar no século XX, a agricultura, a pecuária e o agronegó-cio vão responder, no século XXI, ao enorme desafio da segurança energé-tica, base para o desenvolvimento de qualquer comunidade, de qualquer país, e nosso continente pode sair na frente.

A recente volatilidade dos preços do petróleo não afetará violentamente os investimentos em biocombustíveis. Da mesma forma que a segurança alimen-tar era estratégica, a segurança energética também o será, e não importará, como não importou no primeiro caso, o custo de produção: o que importará é a garan-tia do suprimento de energia.

É preciso, no entanto, criar um mercado global para os biocombustí-veis. Para que este mercado seja criado, quatro premissas são essenciais: mais países produzindo e exportando; legis-lações que obriguem a mistura nos paí-ses consumidores; derrubada dos mitos; uma estratégia global.

Mais países produzindo e expor-tando: jamais haverá uma commoditie se um único país for exportador ou se o maior dentre eles estiver muito longe do segundo colocado. Nenhum governo asiático ou europeu trocará a dependên-cia que tem hoje do petróleo da Opep por álcool de um só produtor. Por isso é necessário levar avante o acordo Bra-sil/Estados Unidos para a produção do etanol de cana na América Central e no Caribe, que já tem projetos na República Dominicana, El Salvador e Haiti.

Também com o Japão se busca parceria similar, visando a produção de etanol em países asiáticos. O processo deveria se repetir em acordos com a União Européia tendo em vista a Áfri-ca, sobretudo a subsahariana. Neste caso a concentração da atenção deve se dar na cana-de-açúcar como matéria- prima principal. Ela tem muito mais re-sultado econômico e no balanço ener-gético do que outras matérias primas, especialmente o milho.

Mistura compulsória: é evidente que os biocombustíveis não interessam à indústria de petróleo, nem a boa parte

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da indústria de alimentos. Não obstante algumas empresas petrolíferas já este-jam reconhecendo que a mistura de X% de álcool na gasolina pode aumentar em X% o tempo de “dominação” do impé-rio, o lobby ainda é contra a agroenergia, porque esta não deixa de ser uma ame-aça. Diante disto, só com legislação que obrigue a mistura, será possível criar um poderoso mercado consumidor. O po-tencial deste mercado é enorme.

A legislação americana prevê um consumo de 136 bilhões de litros em 2022 e a União Européia, mais de 10 bilhões no mesmo período, sem falar em China, Japão, Coréia e outros países importantes.

Mesmo no Brasil, o Proalcool só se firmou para valer quando o governo obrigou, por lei, a mistura do álcool à gasolina. Aliás, foi este mesmo princípio que orientou a posição do atual governo ao implantar o Programa de Biodiesel.

Os países da América Latina deveriam criar legislações harmoni-zadas neste quesito, tornando-se o primeiro grande conjunto global pro-dutor de biocombustíveis.

Eliminar os mitos: os “adversários” dos biocombustíveis tratam de alimentar a mídia com desinformações. Todos os dias se noticia, mundo afora, um fantasma hipoteticamente criado pela agroenergia: vai haver escassez de alimentos porque as terras cultivadas com estes serão usadas para produção de biocombustíveis. Nada mais escandalosamente falso. Dados co-nhecidos mostram que há disponibilida-de de terra para isso, no mundo todo.

Em recente estudo econométrico realizado pela Fundação Getúlio Vargas, importante e respeitada instituição acadê-mica brasileira, ficou absolutamente pro-vado que o aumento recente dos preços dos alimentos se deve a dois fatores:

Primeiro, o desequilíbrio entre oferta e demanda: nos últimos anos, a demanda de alimentos, especialmen-te nos países emergentes cresceu mui-

to mais que a oferta, gerando estoques mundiais cada vez menores.

Segundo, a especulação dos grandes fundos nos mercados fu-turos. Aliás, com a crise financeira mundial, os especuladores saíram do mercado agrícola e os preços já caí-ram bastante.

Mas o exemplo brasileiro é o mais importante. Hoje no país se cultivam 72 milhões de hectares de todas as plantas, e apenas 5% disto (3,6 milhões de hectares) são plantados com cana para produzir eta-nol. Outro tanto é destinado para açúcar. E temos cerca de 71 milhões de hectares, parte do que é hoje ocupado com pasta-gens, por ser agricultados, em função de boas condições de solo e clima. Destes, apenas 22 milhões de hectares serviriam para a cana, de modo que ainda sobrariam, só no Brasil, cerca de 50 milhões de hec-tares para a produção de alimentos. É a mesma área hoje cultivada, o que nos per-mite dobrar, horizontalmente, a produção.

E toda a América Latina tem espa-ço generoso para isso. Adicionalmente, a perspectiva de fazer álcool do bagaço de cana e das folhas de cana cortada crua com colhedeiras, viabiliza dobrar a produção

Fonte: USDA (Jun/2009) Nota: calculado com base no estoque inicial e o consumo do mesmo ano.Elaboração: GV Agro

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de álcool por hectare. Tudo isso leva ao horizonte hipotético da produção de 300 bilhões de litros de álcool por ano, quinze vezes mais do que hoje se produz.

A oferta de alimentos, por outro lado, crescerá não apenas por causa do au-mento horizontal da área cultivável, mas também pelo aumento da produtividade. A julgar pelos avanços obtidos nos últi-mos quinze anos com a área e a produção de grãos, há muito ainda por avançar.

Também precisa ficar claro que não vai ser preciso ir à Amazônia em busca de terra: toda a América Latina tem área suficiente para produzir ener-gia e alimentos sem competição. Ade-mais, a Amazônia é longe dos centros de consumo e dos portos, e a logística cara inviabilizaria o etanol. E por últi-mo, vastas regiões da floresta são im-próprias para o cultivo da cana porque chove todo o tempo, o que impede a maturação da gramínea.

Por todas estas razões, a flores-ta não será destruída para plantar cana. Também é tolice dizer que nenhuma área da Amazônia legal terá cana. Terá, até porque na região vivem hoje 25 milhões de brasileiros que também consomem. Mas esta é a exceção à regra.

Para eliminar estes mitos, é preci-so dizer também que a emissão de CO2

de toda a cadeia produtiva do etanol (desde o plantio da cana até queima do combustível) representa apenas 11% da emissão de CO2 da gasolina.

Portanto, os biocombustíveis, além de gerar empregos e renda nos países mais pobres, além de ajudar a produzir mais alimentos e bioeletrici-dade, também contribuem para a redu-ção do aquecimento global.

Trata-se de uma obviedade tão cristalina, que impressiona a resistên-cia contra estas vantagens todas. O Brasil vai ampliar sua produção; como se vê no quadro abaixo.

E toda a América Latina pode-ria entrar nesta temática. Uma estraté-gia global: a criação de um mercado de biocombustíveis mudará o paradigma agrícola mundial, aumentará a produção de alimentos, melhorará a geopolítica internacional (diminuindo a distância entre países ricos e pobres) e reduzirá o aquecimento global.

Estes fatos exigem uma grande es-tratégia global, alicerçada em parcerias cons-trutivas entre países dos cinco continentes e com uma visão inovadora dos organismos das Nações Unidas, como a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação- FAO, a Organização Mun-dial de Comércio- OMC, e Conferência das Nações Unidas, para o Comércio e o Desenvolvimento, entre outros.

As grandes instituições finan-ceiras como Banco Interamericano do Desenvolvimento e Fundo Monetário Internacional, também precisam se en-gajar neste projeto.

Não é uma aventura. A América Latina sabe disso, e só não vê quem não quer.

Roberto Rodrigues é engenheiro agrônomo e foi ministro da agricultura.

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AVANÇOSE RETROCESSOS

EM 18 ANOSRUBENS BARBOSA

DESAFIO

o Mercado Comum do Sul – Mercosul – está completando 18 anos. Alcançou a maiori-dade? Tudo indica que ain-da não. A despeito de muitos esforços no sentido de sua

consolidação, o organismo tem apresentando di-ficuldades. Um especialista no assunto, Rubens Barbosa, mestre em ciências políticas e econô-micas, aponta, nesta edição, os problemas que o organismo vem enfrentando, ao responder per-guntas formuladas por cinco outros intelectuais estudiosos do assunto: Celso Lafer, Tullo Vigeva-ni, Ricardo Markwald, Demétrio Magnoli e Sérgio Fausto. De todo o modo, para Barbosa, a despei-to dos retrocessos o Mercosul não desaparecerá.

MerCoSUlatiNGe a Maioridade

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TULLO VIGEVANI - No início dos anos 90 nos governos Collor e Ita-mar Franco e ainda no governo Sar-ney surgiu a ideia de um ministério da integração regional que acabou sendo efetivamente constituído. Qual é a re-lação entre a criação deste ministério e o início do funcionamento da Sub-secretaria de Integração Regional do Ministério das Relações Exteriores? Havia divergências nos governos bra-sileiros sobre as formas de encami-nhar a integração?

RUBENS BARBOSA - A criação do Ministério da Integração Regional foi uma decisão política do Presidente Fer-nando Collor. O Itamaraty já estava es-tudando a criação de um Departamento de Integração para coordenar as negocia-ções comerciais no âmbito da Aladi e do recém criado Mercosul. O aparecimento do Ministério acelerou a decisão sobre o Departamento de Integração, sugerido por mim ao Ministro Rezek. Por indica-ção dele, fui o primeiro chefe do recém- criado Departamento. Pelo Tratado de Assunção, as Chancelarias são, em todos os países membros, os coordenadores

das negociações do Mercosul e durante o período em que o Ministério existiu hou-ve estreita coordenação, sob o comando do Itamaraty. Mais tarde, o Departamen-to foi transformado em Subsecretaria de Integração e o Ministério foi extinto. Não havia nenhuma divergência entre o Go-verno Collor e o Governo Itamar Franco quanto à forma de encaminhamento do processo de integração. O Mercosul foi, desde o início e continua atualmente sen-do, um projeto de Estado, com razoável continuidade de ações governamentais não só na área comercial, como também agora na área política e social.

RICARDO MARkwALD - Quando do estabelecimento da união adua-neira afirmava-se que a principal mo-tivação do Brasil para a constituição do Mercosul era “política”, enquanto a da Argentina era prioritariamente “comercial”. Em outras palavras: o principal atrativo do Mercosul para Argentina era o livre acesso a um mer-cado cujo tamanho era três ou quatro vezes maior que o próprio, enquanto que o principal atrativo para o Brasil residia na possibilidade de afirmar sua FO

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liderança na América do Sul, ganhar visibilidade e aumentar seu poder de barganha na arena internacional. Qual é o balanço do Mercosul na ótica de cada um dos (principais) sócios à luz dessas expectativas?

R.B. - Talvez fosse mais preciso dizer que o Brasil sempre teve uma visão de longo prazo em relação ao Mercosul, enquanto a Argentina tinha, e ainda tem, uma visão de curto prazo, mais comer-cialista, tendo como referência o grande mercado brasileiro. Na visão brasileira, o Mercosul seria a plataforma para um processo mais amplo de integração sul-americana. O objetivo era aumentar o intercâmbio comercial com os países membros do Mercosul e com os vizi-nhos da América do Sul. No início do Mercosul, não havia a ênfase de coor-denação política, o que veio a ocorrer mais tarde e agora adquiriu contornos mais nítidos, apesar da inexistência de resultados concretos do ponto de vista do Brasil. Do ângulo político, é evidente que uma integração comercial no Cone Sul e depois na América do Sul refor-çaria a posição e a visibilidade do Bra-sil - que representa mais da metade do produto, da população, do território da região - no cenário internacional. Não havia, contudo, a intenção de buscar uma liderança política a partir do Mer-cosul. Ela viria por gravidade no médio e longo prazo. Um dos problemas que o Mercosul enfrenta hoje é justamente a falta de uma atitude firme do Brasil no sentido de influir decididamente no processo de integração do Mercosul e regional. O Brasil hoje está sem uma estratégia clara para a defesa de seus interesses, e mostra uma atitude reativa frente a iniciativas que são tomadas por seus sócios do Mercosul, nem sempre alinhadas com nossos interesses. Hoje, contudo, com as grandes transforma-ções que estão ocorrendo no mundo, na

América do Sul e no Brasil, o Mercosul, no contexto internacional, é mais um peso do que uma vantagem. O Mercosul está perdendo importância relativa no contexto do comércio exterior brasilei-ro, representando, em 2008, apenas cer-ca de 9% do total, enquanto em 1997/8 era responsável por 16%. No caso da Argentina, penso que o resultado foi bem mais positivo, como pode ser com-provado, por exemplo, pela ampliação da capacidade produtiva da indústria automobilística, que, sem o Mercosul, provavelmente teria deixado de existir. Se a Argentina não se beneficiou mais do acesso ao mercado brasileiro foi em decorrência de seus problemas internos, políticos e econômicos, e pela debili-dade de seu setor industrial, fragilizado por políticas econômicas equivocadas ao longo dos últimos 20 anos.

DEMéTRIO MAGNOLI - O Mercosul, como a União Européia, nasceu para so-lucionar uma necessidade política e estra-tégica: converter a tradicional rivalidade com a Argentina numa parceria estraté-gica. A entrada da Venezuela de Hugo Chávez no Mercosul também deveria ser analisada sob o ponto de vista estratégi-co, e não meramente sob o ponto de vis-ta comercial. Como o senhor interpreta a incorporação da Venezuela?

R.B. - O Mercosul foi um desdobra-mento natural da aproximação políti-ca e estratégica entre o Brasil e a Ar-gentina, iniciada logo após a volta ao poder civil nos dois países. Acordos econômicos e comerciais e de coope-ração nuclear foram a pedra de toque para o desarmamento dos espíritos entre os dois países. O eixo Brasília-Buenos Aires é a base para o processo de integração do Mercosul. A entrada da Venezuela - promovida pela Argen-tina e apoiada pelo Brasil -, do ponto de vista estratégico, para o Mercosul

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é positiva na medida em que amplia a base territorial da União Aduaneira, que irá da Terra do Fogo ao Caribe, e incorpora uma potência petroleira e um dos três ou quatro maiores países da América do Sul. A adesão da Vene-zuela, com o forte empenho do atual governo brasileiro, colocará, contu-do, alguns desafios importantes para o Brasil. Em primeiro lugar, poderá criar um novo eixo: Buenos Aires-Caracas, como evidenciado pela coor-denação entre as duas capitais em re-lação a diversas iniciativas de Chávez. Em segundo lugar, poderá aumentar a pressão sobre o Brasil na tomada de decisões, visto que o processo deci-sório ainda é consensual. O veto de um país bloqueia decisões que podem interessar a todos. O voto ponderado terá de ser introduzido, caso o proces-so avance em direção a um mercado comum, como previsto no Tratado de Assunção. O Congresso Nacio-nal, que deverá apreciar o Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul, com compromissos assumidos livre-mente por Caracas, deveria verificar se essas obrigações estão sendo cum-pridas no tocante ao processo de li-beralização comercial, a incorporação da Tarifa Externa Comum, a incorpo-ração das normas e regulamentos do Mercosul ao ordenamento jurídico ve-nezuelano e as obrigações decorrentes de acordos assinados pelo Mercosul com terceiros países. O maior desafio do Brasil, nos próximos anos, com a Venezuela incorporada ao Mercosul, será como tratar as atitudes e pro-postas de Hugo Chavéz que tem uma agenda diferente da do Brasil, dentro de sua visão alternativa aos EUA e ao sistema de mercado. Como vai atuar a alternativa bolivariana (Alba) em re-lação ao Mercosul? Vamos continuar a reboque dos acontecimentos, como até aqui, ou vamos definir claramente

nosso interesse regional, dentro e fora do Mercosul?

SéRGIO FAUSTO - Em vista do re-trospecto do Mercosul e das opor-tunidades que se abrem para o Brasil no mundo, o que seria melhor para os interesses de longo prazo do País: pre-servar o Mercosul como União Adua-neira ou transformá-lo em Área de Li-vre Comércio?

R.B. - O Mercosul, apesar de todas as dificuldades e retrocessos na área co-mercial, não desaparecerá. Dificilmente algum presidente assumirá o ônus polí-tico de tomar uma decisão radical nessa direção. Em vista da fragilidade insti-tucional do Mercosul, decorrência do seguido descumprimento de muitas das regras do Tratado de Assunção, o Brasil deveria adotar uma atitude pragmática. O Mercosul é hoje uma união aduaneira imperfeita. O desaparecimento da Tari-fa Externa Comum, como consequên-cia de uma eventual transformação do Mercosul em área de livre comércio, poderia, a médio prazo, ser contrário aos interesses da indústria brasileira pela inevitável triangulação que ocorreria so-bretudo com a China. A Resolução 32, de 2000, que determina aos membros do Mercosul a negociação interna com uma só voz, deveria ser flexibilizada, como ocorreu nos entendimentos com o Grupo Andino e com o Suriname. Os objetivos maiores de completar uma união aduaneira e um mercado comum permaneceriam, mas, na prática, as ne-gociações sobre produtos deveriam ser feitas de forma individual. A Resolução 32 representa uma decisão política, fora do Tratado de Assunção. Mesmo sem revogar a Resolução, os países poderiam concordar em negociar individualmente com o compromisso de fazer convergir as tarifas depois de um período deter-minado. Os objetivos de longo prazo do

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Tratado permaneceriam, mas nas nego-ciações de novos acordos comerciais, as listas de produtos seriam discutidas se-paradamente. O importante, do ponto de vista do Brasil, é não limitar - como está ocorrendo no momento atual - a margem de manobra para buscar acor-dos com parceiros comerciais impor-tantes. Essa modificação no Mercosul deveria ser parte de uma nova estratégia de negociação comercial, mais de acor-do com os interesses nacionais.

CELSO LAFER - O Mercosul corre, passados 18 anos, o risco de uma ala-dização?

R.B. - A fragilidade institucional, já men-cionada, o descumprimento do Tratado de Assunção e das regras da OMC pelas crescentes medidas restritivas dentro do bloco e a falta de um claro objetivo nos entendimentos apontam para um cres-cente risco de aladização do Mercosul.

Como fui Representante do Brasil junto a Aladi, em Montevidéu, entendo perfei-tamente a observação. A Aladi, criada em 1980 para impulsionar o processo de in-tegração regional, decorridos quase trinta anos, pouco avançou pela falta de apoio político dos seus membros e pelo déficit de integração de todos os países, muito mais preocupados com seus problemas internos do que com o avanço institu-cional dos mecanismos de integração. A grande questão é que o Brasil, que pode-ria se beneficiar mais com o processo de integração, está paralisado. Sem lideran-ça, o processo de integração avança tími-da e lentamente sem uma estratégia clara e sem um objetivo definido.

Rubens Barbosa, Celso Lafer, Sérgio Fausto e Tulio Vigevani são cientistas políticos, Ricardo Markwald é especialista em comércio internacio-nal e Demetrio Magnoli é sociólogo e geógrafo.

À esquerda, Brasília em desenho de Oscar Niemeyer,

e à direita, Buenos Aires em intervenção sobre fotografia.

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BOGOTÁCAPITAL MUDIAL DO LIVRO

LEONOR AMARANTESILVIA PRADA

ACERVO

Já na calçada, momentos antes de en-trar na Biblioteca Luis Ángel Arango em Bogotá, a mais visitada da América Latina, fui surpreendida por um proje-to cativante. Caiu em minhas mãos um exemplar de bolso de Cortázar, entre-

gue por uma pessoa que esperava um ônibus. Sem compreender nada, abri o livro e na contracapa entendi a senha. “Depois de ler, passe a outra pes-soa ou deixe o exemplar em outro lugar público”.Na sequência fiquei sabendo que a coleção Lei-tura ao Vento publicara outros escritores como García Márquez, Borges, cada um com 70 mil exemplares. Nesse cartão de visita de Bogotá já continha tudo o que aquele país havia conquis-tado em matéria de livro e de leitor. Com uma

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ponta de inveja, reação natural de qual-quer editor e amante de livro, segui para a megabiblioteca Luis Ángel Arango.

Logo depois de vencer as pri-meiras salas me dei conta de onde es-tava e me lembrei de Humberto Eco falando sobre bibliotecas. “Elas de-veriam se transformar, gradualmente, numa grande máquina de tempos li-vres, como é o Museu de Arte Mo-derna de Nova York, aonde se vai ao cinema, se passeia no jardim, se vê escultura e se faz refeição completa.” Ou seja, se a biblioteca é, como pre-tende Borges, um modelo do Univer-so, tentemos transformá-la num Uni-verso à medida do Homem.

A Colômbia, terra natal de García Márquez, parece seguir os conselhos de Humberto Eco. O movimento intenso da Biblioteca Luis Ángel Arango, no centro do Bogotá, que reúne cerca de dois milhões e setecentos exemplares, e tem espaços amplos com capacidade de acomodar dois mil leitores sentados, dá mostra de que o público heterogêneo e animado se orgulha da sua biblioteca modelo.

Ao longo do edifício perfilam espaços amplos, claros, coloridos, mas também há outros silenciosos dedica-dos ao estudo e à pesquisa. O ambien-te digno qualifica o ato de ler. Trans-cendendo os conceitos de Borges, nos FO

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quais livro e leitura são extensões da memória, as bibliotecas colombianas fazem parte dos programas de comba-te à violência e dão ao homem comum muito mais do que leitura, o introdu-zem ao universo das artes plásticas, da música e os leva aos debates, que ocor-rem frequentemente.

Pouco se sabe sobre essa outra face da Colômbia, país de prêmio No-bel de literatura com Garcia Márquez, pintores importantes como Fernando Botero, alta tecnologia no cultivo do café, de flores e frutas. Esse país de to-pografia cenográfica busca acabar com o narcotráfico e a violência tendo como armas a cultura e, sobretudo a leitura. Se bibliotecas brotam em todo o país, só nos últimos anos houve a “corrida aos livros”. O programa colombiano de al-fabetização, considerado modelo, exibe

seu resultado: apenas cinco por cento da população não sabe ler. Somada a essa maratona do saber, a presença marcante do Banco de la República, mantenedor da Biblioteca Luis Ángel Arango com investimentos constantes é a alavanca principal. A resposta natural do público é imediata e figura no índice de fidelida-de à instituição e ao livro.

Costuma - se dizer que só se colhe aquilo que se planta. Essa lógica é com-provada na Colômbia. A Unesco esco-lheu Bogotá como Capital Mundial do Livro. Diante do reconhecimento, ou-tras instituições também se curvaram. A Fundação Bill e Melinda Gates doou um milhão de dólares para a rede muni-cipal de bibliotecas, além de disponibili-zar equipamentos tecnológicos.

A Biblioteca Luis Ángel Arango é o principal guardião da riqueza lite-rária do país e responsável por outras 16 bibliotecas espalhadas por várias ci-dades, além de sala de concertos, mu-seu numismático e a Coleção Botero, doada pelo nome máximo da pintora colombiana, que além de seus quadros

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conserva ainda os de Picasso, Klee, Ba-con e Miró, entre outros. Esse projeto governamental fez escola. A prefeitura de Bogotá construiu outras megabi-bliotecas pela cidade e criou diversos programas de leitura de olho da forma-ção de leitores em massa.

Hoje tudo isso é sinônimo de su-cesso, e a história da Biblioteca Ángel Arango prova que uma ideia simples pode se desdobrar em algo espetacular. Em 1933 quando o Banco de la Repú-blica (Banco Central da Colômbia) de-cidiu receber o público em sua acanha-da biblioteca, que contava com apenas doze cadeiras e cerca de dez mil livros. Vinte e cinco anos se passaram e o gran-de impulso veio em 1958 quando a bi-blioteca ganha sede e se transforma em Biblioteca Luis Ángel Arango, com 250 lugares para leitura e acervo de cerca de cem mil volumes. O sucesso do empre-endimento foi tal que logo se tornou a biblioteca mais visitada de Bogotá. A qualidade dos serviços é também uma grife. Vários pesquisadores nacionais e estrangeiros mencionam esse quesito em artigos acadêmicos.

Hoje a Biblioteca Luis Angel Arango é uma das maiores das Américas e seu nome entrou para o catálogo das maiores bibliotecas contemporâneas. No seu acervo se destacam entre livros raros, teses estrangeiras sobre a Colôm-bia e a América Latina, que somam mais de cinco mil; a documentação em mi-crofilme, perto de 400 rolos que trans-crevem as instruções e informações secretas dos embaixadores americanos em Bogotá, bem como coleções sobre movimentos sociais. A música também chama a atenção com a ampla coleção de partituras eruditas e populares, gra-vações de vídeo, discos laser e digitais, que podem ser apreciados nas cabines com equipamento apropriado.

Depois de reler no hotel o Jogo de Amarelinha e já pensando em que outro lugar público deixaria a obra de Cortázar saí feliz pelas ruas de Bogotá.

Leonor Amarante é editora da revista Nossa América.

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A biblioteca pública como insti-tuição social tem sofrido importantes transformações na sociedade atual. Nesse sentido países como a Colôm-bia vêm observando importantes fe-nômenos relacionados com o lugar e a valorização da biblioteca pública, não apenas como um problema dos biblio-tecólogos, mas também como parte, cada mais crescente, dos discursos de governo tanto do país como das gran-des cidades.

Neste sentido, a biblioteca pú-blica pode ser comprendida num mar-co dos processos sociais relacionados com a educação e a cultura, mas tam-bém passa a ser entendida a partir de processos sociais relacionados com o econômico e o político. Isto tem im-plicado transformações na forma de pensar, projetar e executar os projetos relacionados com as redes ou sistemas de bibliotecas no país.

Como evidência desses impor-tantes processos, surgem no país o projeto de Biblored no Distrito Ca-pital, o Plano Nacional de Leitura e Bibliotecas no país e a Red de Biblio-tecas da cidade de Medellín, refletin-do o papel consciente que começam a ter os serviços bibliotecários públi-cos nos planos de desenvolvimento e na construção de uma sociedade mais equitativa e includente.

A Biblored começou em 1998 como um dos projetos especiais de in-vestimentos da Prefeitura de Bogotá, que incluiu o desenvolvimento de uma rede de bibliotecas dentro de suas es-tratégias encaminhadas no sentido de conseguir melhores condições para os

indivíduos, as famílias e para a comu-nidade em Bogotá, com ênfase nos mais necessitados.

Além disso, a Biblored buscou atrair as crianças, os jovens , os adultos, os idosos para apropriarem-se do pro-grama de biblioteca públicas. O projeto também tinha a expectativa de oferecer aos cidadãos maior segurança, uma vez que as bibliotecas ofereciam espaços de interação e convivência social naquilo que se chegou a conhecer como “uma cidade na escala humana”.

A Bibliored é um projeto da Prefeitura de Bogotá e da Secretaria de Educação do Distrito e foi concebido como um sistema de conhecimento in-tegrado por quatro bibliotecas maiores, localizadas em pontos estratégicos da cidade (três delas em funcionamento e uma em contrução), seis bibliotecas locais e dez de bairro, todas conectadas entre si e distribuídas de forma a dar uma ampla cobertura.

Cada biblioteca é por si só um importante centro de investigações e aprendizagem, assim como um espaço cultural e de encontro comunitário, no qual os habitantes da cidade têm acesso livre, representando a outra dimensão do espaço público ao serviço de in-formação, a educação e a cultura. As coleções que a rede oferece alcançam, na atualidade, mais de 420 mil volumes e atendem mais de 450 mil visitantes por mês. Igualmente, a rede integra o Sistema de Bibliotecas Públicas de Bo-gotá junto com a Biblioteca Luis Ángel Arango que depende do Banco de la República e a Rede de bibliotecas de Colsubsido que é uma Caixa de Com-

biblored ColoMbiaNaSILVIA PRADA

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pensação Familiar, oferecendo uma ampla gama de serviços e programas em diferentes setores da cidade, assim como uma extensa coleção bibliográfi-ca em diversas áreas. Igualmente, pro-porcionam acesso gratuito à Internet, favorecendo a relação das comunida-des com as novas tecnologias.

A Biblored surge como resulta-do de um diagnóstico que mostra uma Bogotá em situação profundamente crítica frente a seus sistemas biblio-tecários, que não chegam a cobrir as necessidades básicas da população, ao redor de 7,5 milhões de habitantes. Noventa por cento das coleções esta-vam concentradas na Biblioteca Luis Ángel Arango e na Rede de Bibliote-cas de Colsubsidio.

Dentro desse panorama se plei-teia uma rede de bibliotecas distrital que objetiva o enriquecimento do ca-pital cultural da cidade( individual, co-letivo e público) e o melhoramento da qualidade de vida, além da construção da cidade e da cidadania.

Durante a primeira etapa do projeto se deu uma ampla difusão e um protagonismo às três megabiblio-tecas estabelecidas pela administração Distrital, dada a sua importância e re-levância por seu papel fundamental na inclusão das bibliotecas públicas nos planos do desenvolvimento distrital, como projetos fundamentais para o melhoramento da qualidade de vida da cidade, seu impacto no desenvol-vimento urbanístico de Bogotá, uma

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vez que esses projetos de alto nível arquitetônico geraram novos espaços e ambientes em setores antes dete-riorados, originando novas dinâmicas sociais, econômicas e sociais em dife-rentes comunidades onde se encon-tram; provocando a transformação do imaginário, não só nas cidades, mas também em todo o país, sobre o conceito de biblioteca, dando-lhe um protagonismo no marco institucional e emblemático de cidade. Ao oferecer espaços mais amplos e confortáveis, com a possibilidade de criar diferen-tes ambientes para diferentes tipo de público, as bibliotecas começaram a diversificar amplamente os usuários.

Mas apesar de todas as trans-formações que estas megabibliotecas geraram na cidade era indiscutível o papel fundamental que cumpriam os serviços bibliotecários de caráter local e de bairro, uma vez que muitas pesso-as localizadas neste pontos da cidade não podiam ter acesso às bibliotecas

maiores e era necessário projetar o crescimento da rede em todos os ní-veis de intervenção.

No ano de 2007 a Biblored defi-niu sua “Declaração de Propósitos de 2010” na qual foi estabelecido dentro de seus princípios orientadores que “a cidade contará com uma rede articu-lada que tenha presença em cada uma das localidades, dando prioridade às zonas com maior vulnerabilidade so-cial e econômica, sendo fundamental para o desenvolvimento, contemplar os vários níveis de intervenção na vida de Bogotá, possiblitando a preservação e a promoção da cultura de bairro, local e da cidade, e atendendo às característi-cas próprias de cada uma delas, com os mesmos níveis de qualidade e eficiência na prestação de serviços

Desta maneira, a partir de fevereiro de 2007, como resultado de uma vontade política da administração atual em que a Secretaria de Educação do Distrito gestou um projeto ante o Conselho

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de Bogotá, conseguiu-se uma amplia-ção de orçamento para a administra-ção direta destas bibliotecas por parte de Biblored, mediante a assinatura de convênios interinstitucionais com as diferentes entidades.

Este novo esquema permitiu definir uma estrutura de recurso hu-mano para cada biblioteca composto por um coordenador- bibliotecólogo, um promotor de leitura; permitiu re-plicar a escala do modelo de serviços e programas nas três frentes de ação da Red: serviços bibliotecários e de informação, promoção de leitura e es-critura e fomento à cultura.

A Bibliored funciona sob uma estrutura administrativa da cidade de Bogotá e de sua Secretaria de Educa-ção. A cidade designa um orçamento anual para sustentar o projeto de acor-do com os requerimentos de funcio-namento das distintas bibliotecas.

Na medida em que o projeto cresce, a cada ano a administração da

cidade concede um volume maior de dinheiro. No ano de 2007 tivemos cer-ca de 18 por cento acima da soma de-signada em 2006.

Para a Administração Municipal a Biblored tem sido um dos programas de maior impacto na cidade. A prova é que nos últimos três anos consecutivos, os cidadãos posicionaram a Biblored no ranque dos primeiros postos, como entidade com o melhor desempenho.

As bibliotecas são, de longe, es-paços especiais e privilegiados para a democratização da cultura, do conhe-cimento e da tecnologia. Fortalecem de maneira especial os Planos Seto-rais de Educação e Desenvolvimento da cidade.

Silvia Prada Torero é gerente da Rede Capital de Bibliotecas Públicas de Bogotá.

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AGENDA

SeMaNa CUltUral

O Memorial recebeu em fins de junho a Semana Cultural da Colôm-bia, evento que encerrou o Festival dos Valores Colombianos, organizado pelo Consulado Geral da Colômbia em parceria com o Ministério das Re-lações Exterior desse país. A progra-mação foi extensa, envolvendo desde exposição de artes plásticas a degus-tação de café, considerado um dos mais saborosos do mundo. A mostra de pinturas do artista Kamel Ilián, que vive atualmente em São Paulo, ficou em cartaz no foyer do Auditório Simón Bolívar, onde ocorreu a abertura do evento com a apresentação de dan-ça do grupo Semilla Colombiana. Da programação também constou uma exposição de livros e artesanato do país, bem como exibição de vídeos so-bre a cultura local.

reCorde de PÚbliCo

O Memorial registrou um nú-mero recorde de visitantes. Foram 161 mil até maio contra os 204 mil conta-bilizados em todo o ano de 2004. Ano passado, passaram pelo Memorial quase 800 mil pessoas, o que significa que os números vêm aumentando ano a ano. Um dos espaços mais aprecia-dos por crianças é o Pavilhão da Cria-tividade com sua colorida coleção de peças que representam a arte popular de todos os países da América Latina. Mas a Biblioteca, as sessões de vídeo, as apresentações musicais e a galeria, entre tantas outras atividades também estão com visitações crescentes.

MiGração boliViaNa

A história nem sempre tem um final infeliz. Ao menos na visão de dois documentaristas bolivianos, Leo-nardo de La Torre Ávila e Sergio Es-trada Lopez, que, em vez de gravar o triste destino de imigrantes bolivianos em regime de trabalho escravo, como ocorre, preferiram mostrar o sucesso fora de casa. Un día más, conta a vida de um imigrante natural do vale alto de Cochabamba, que mora nos Esta-dos Unidos, onde conseguiu vencer os obstáculos. O projeto, apresentado no Pavilhão da Criatividade, espaço vídeo, é fruto de um trabalho inves-tigativo chamado La Cheqanchada: Caminos y sendas del desarrrollo em los mu-nicípios migrantes de Arbieto y Toco, em que Ávila e Yolanda Alfaro abordam especialmente os imigrantes bolivia-nos nos Estados Unidos. Para Ávila o fenômeno migratório é uma tradição deixada pelos povos andinos e os ci-dadãos saem, mas voltam a seus locais de origem para rever e ajudar seus fa-miliares. Eles optaram por um filme e não um livro por se tratar de um meio de linguagem mais abrangente. FO

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AGENDAAGENDA

Corpos Estranhos reúne na Ga-leria Marta Traba três artistas interna-cionalmente conceituadas cujas obras se reconhecem pelo forte tom de caráter psicológico. Laura Lima, do Brasil, Pilar Albarracín, da Espanha, e Regina José Galindo, da Guatemala, esta última pre-miada na 51° edição da Bienal de Ve-neza, apresentam apelos comuns, entre eles o emprego de corpos para inter-mediar suas inquietações. Em Instância Dopada, de Laura Lima, vê-se a vulne-rabilidade do ser humano, na mulher que dorme em pleno espaço expositivo.

Em Enterramiento, Pilar Albarracín (na foto acima, Pata-negra da autora) cava sua própria cova, enterra-se nela e co-bre até a cabeça jogando terra com as próprias mãos numa espécie de grito de alerta. Outra criação é Quien puede borrar lãs huellas?, de Regina Galindo, em vídeo, em que a artista imprime no chão pega-das de sangue simbolizando mortos em conflitos de seu país. Há outros traba-lhos de cada artista na mostra que teve apoio da Sociedad Estatal para Acción Cultural Exterior, da Espanha, e do Ins-tituto Cervantes de São Paulo.

eStraNHoS e MaCabroS

O acervo do Memorial da América Latina enriqueceu. Recebeu um traje típico feminino da cultura mexicana. O cônsul geral do México e presidente do Grupo Latino-Ameri-cano e do Caribe, Salvador Arriola en-tregou pessoalmente a Fernando Leça, presidente da Fundação. A vestimen-

ta que foi doada pela cidadã mexi-cana Sylvia de la Garza de Silva irá compor a coleção de arte popular do Pavilhão da Criatividade. Sylvia foi presidente do Grupo de Mexicanos em São Paulo (Mesp) e participou ativamente da Associação Empresa-rial Mexicana no Brasil.

aCerVo eNriQUeCido

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CoNtoS de leoPoldo lUGoNeS

O escritor argentino Leopoldo Lugones (1874-1938) foi um represen-tante genuíno da passagem do século XIX para XX – período marcado por transformações sociais, científicas e históricas importantes no continente latino-americano. Seus contos retratam o conflito filosófico entre as pretensões cientificistas de oferecer uma explicação racional da realidade e as forças impre-visíveis e devastadoras do ocultismo. O estilo narrativo do autor, que conquis-tou a admiração de Jorge Luis Borges, se constrói a partir do equilíbrio muitas vezes tenso de referências antagônicas, alcançado com um senso de humor que se aproxima do delirante e do absurdo. Por essa razão, a proximidade com o mundo sombrio de Franz Kafka – onde a aparente normalidade sempre mascara dimensões assustadores e insuspeitas.

Nos textos de Contos fatais/ As forças estranhas, Lugones apresenta muitas situações em que a tentativa de explica-ção objetiva da realidade é subvertida pela loucura, ou por fenômenos sobrenatu-rais. A razão, nesta perspectiva, não pas-sa de um pálido espelho dos elementos subterrâneos que escapam ao nosso con-trole e nos dominam, como demonstrou Freud e sua teoria psicanalítica no início do século XX ao definir o inconsciente. No caso de Lugones, entretanto, não são apenas as maquinações do inconsciente que estão em cena, mas forças misterio-sas, que alteram os rumos da história, ou mesmo dos desejos pessoais. O que pode se manifestar no relato de um milagre, no reconto de uma passagem mitológica ou bíblica, e mesmo na exasperante tentati-va de encontrar a chave para um enigma

musical. Está presente no universo fic-cional de Lugones a mistura daquele in-consciente freudiano, e sua matriz racio-nalizante, com a teosofia e o esoterismo, que põem à prova todo entendimento objetivo.

Há momentos em que o leitor supeitará que Lugones quer testar a ra-cionalidade e uma suposta, ou imagi-nada, ordem das coisas no mundo em que vivemos. O escritor se vale de uma narrativa que aparente um certo con-vencionalismo e elegância realista, con-duzindo o leitor a saltos vertiginosos em camadas ou instâncias do real que po-dem até parecer fantásticas, com seres fantasmagóricos, pesadelos e bizarrices. Algo também próximo da literatura gó-tica de Edgar Alan Poe, ou dos contos do uruguaio Horácio Quiroga.

Ao definir as características de novela (pequena narrativa, entre o con-to e o romance), num ensaio do livro Discusión, Borges diz que o processo causal de tais textos deve ser “o mágico, onde profetizam os pormenores, lúcido e limitado”. A definição é genérica e se aplica a um gênero marcante na litera-tura de língua hispânica, mas poderia muito bem ser aplicada ao tipo de ficção realizada por Lugones, que soube mani-pular com inteligência e originalidade os limites entre a magia e a lucidez.

Para Lugones, o poeta é uma es-pécie de “eleito”, com acesso privilegia-do aos mistérios profundos.

da tradição À VaNGUarda

Segundo o poeta Octavio Paz, “no México, a tradição da obra aberta, não no sentido estrito, mas no amplo e lasso, começa com Tablada”. O livro Poemas (Edusp, 2008), do também mexi-

LIVROS

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cano José Juan Tablada (1871-1945), foi organizado, apresentado e traduzido pelo poeta Ronald Polito. Trata-se de leitura essencial para o conhecimento da me-lhor literatura de língua espanhola, além de proporcionar um contato amplo e em profundidade com as origens e os des-dobramentos da poesia moderna latino-americana, especialmente aquela de teor mais experimental.

Tablada foi historiador, cronista, tradutor, crítico de arte e literatura, tea-trólogo, comerciante de vinhos, gourmet e polemista político – tendo se destaca-do como grande poeta. Foi o principal responsável pela introdução do haicai e dos poemas ideográficos na literatu-ra feita na América Latina no início do século XX. Seus poemas misturam ele-mentos da tradição milenar do Oriente com vigor inventivo dos movimentos de vanguarda que configuraram o am-biente da cultura e da política, tanto no continente como na Europa.

O jogo intenso entre a brevidade de imagens e a exploração conceitual se desdobra numa surpreendente figu-ração tipográfica, gerando poemas vi-suais inovadores, que subvertiam a tra-dição lírico-discursiva consolidada no final do século XIX. Como poeta que participou ativamente dos movimentos literários de seu tempo, Tablado transita do simbolismo à vanguarda, como ex-plica Ronald Polito na apresentação do livro, aproximando-se em larga medida de nossos modernistas e antecipando procedimentos que seriam reformula-dos por movimentos vanguardistas pos-teriores, como a poesia concreta.

Um livro extraordinário como “Li-Po”, publicado em 1920, provocou grande polêmica nos meios intelectuais da época por seu radicalismo, por tra-

zer elementos de construção imagética e exploração dos espaços da página, do arranjo das palavras, com movimentos e representação de objetos por meio da disposição dos versos. A ousadia de Ta-blada o projetou no cenário demolidor dos movimentos literários que sacudi-ram a tradição no início do século XX, como futurismo, ultraísmo, dadaísmo, criacionismo e cubismo.

PriMeira NarratiVa de beNedetti

Publicada originalmente em 1953, Quem de nós – editada no Brasil pela Record, em 2007 – é a primeira novela escrita pelo escritor uruguaio Mario Be-nedetti (1920-2009). A narrativa aborda o tema clássico do triângulo amoroso. O casal Miguel e Alicia vive um momento de desgaste na relação e acaba se sepa-rando. Alicia, por sua vez, encontra no escritor Lucas o estopim para sair do ca-samento e repensar a própria existência e seus sentimentos.

O modo como Benedetti articula essa drama corriqueiro é muito delicado, poético, seguindo uma estrutura episto-lar, que torna o leitor um participante quase íntimo das reflexões e dos ques-tionamentos das personagens. Os capítu-los em forma de cartas permitem que a história seja apresentada sob várias pers-pectivas, como na vida real, onde não há uma versão apenas para os fatos.

A certa altura, o narrador afir-ma que os três estavam “organizados em uma espécie de burla recíproca, cada um pensando que os outros dois não se correspondiam e ele era a única peça adequada”.

Reynaldo Damazio é jornalista e escritor.

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POESIA

Poeta espanhol autor de obras como Romance Cigano, Poeta em Nova York, Seis Poemas Galegos e Cantares Populares.

FEDERICO GARCIA LORCA

Morte

Que esforço!Que esforço do cavalo para ser cachorro!Que esforço do cachorro para ser andorinha!Que esforça da andorinha para ser abelha!Que esforça da abelha para ser cavalo!E o cavalo,Que flecha aguda exprime de uma rosa!,Que rosa gris levanta de seu beiço!E a rosa,Que rebanho de luzes e alaridosAta no vivo açúcar de seu tronco!E o açúcar,Que punhaizinhos sonha na vigília!E os punhais diminutos,Que lua sem estábulos, que nus,Pele eterna e rubor, andam buscando!E eu, pelos alpendres,Que Serafim de chamas busco e sou!Porém o arco de gesso,Que grande, que invisível, que diminuto,Sem esforço! Tradução de Augusto de Campos