12
A construção da identidade a partir da genealogia e da tradição oral em “Raízes”, de Alex Haley EDSON PEDRO DA SILVA No final da década de setenta observou-se, nos Estados Unidos, um pronunciado interesse por genealogia e pesquisas sobre origens étnicas, ancestralidade e linhagens genealógicas. Tal entusiamo pode ser explicado em grande parte por uma complexa conjuntura de valorização da etnicidade com vinculações, em muitos aspectos, na luta pelos direitos civis da população afro-americana ocorrida na década anterior. Não se pode deixar de apontar, no entanto, a influência de um fenômeno de inegável impacto no cenário cultural norte-americano da mesma época: a publicação e posterior adaptação televisiva do romance “Raízes”, de autoria do escritor e jornalista Alex Haley. “Raízes” 1 foi publicado em 1976 após noves anos de exaustiva pesquisa empreendida por seu autor. Com o título original de “Roots: the saga of an American Family”, a narrativa reconstrói um relato de tradição oral que os famili ares de Haley transmitiram de geração a geração, a partir de um ancestral conhecido como “o africano”. Com base neste relato, Alex Haley iniciou uma investigação para registrar em livro sua saga familiar, fundamentando-a com registros da tradição oral e documentos históricos. A narrativa tem início na segunda metade do século XVIII, em uma aldeia nas proximidades de Juffure, às margens do rio Gâmbia, na África Ocidental. Neste local o africano Kunta Kinte, um jovem mandinga, foi capturado por mercadores de escravos e, em uma tortuosa travessia em um navio negreiro, é trazido aos Estados Unidos. Vendido em um leilão para um proprietário de terras da Virgínia, recebeu de seu dono um novo nome: Toby. Disposto a lutar por sua liberdade e preservar sua herança cultural, Kunta Kinte recusou-se a aceitar o nome escolhido por seu senhor e tentou escapar do cativeiro diversas vezes, sem sucesso. Subjugado pela violência do USP, Doutorando em História Social 1 O romance recebeu no Brasil o título de “Negras Raízes”. Adotamos neste texto o título “Raízes” tanto para o romance quanto para o teledrama baseado no livro

EDSON PEDRO DA SILVA - encontro2018.historiaoral.org.br · e reforçar sua identidade étnica ao transmitir a Kizzi o relato de sua origem, registrando inclusive os vocábulos de

  • Upload
    lethu

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

A construção da identidade a partir da genealogia e da tradição oral

em “Raízes”, de Alex Haley

EDSON PEDRO DA SILVA

No final da década de setenta observou-se, nos Estados Unidos, um pronunciado

interesse por genealogia e pesquisas sobre origens étnicas, ancestralidade e linhagens

genealógicas. Tal entusiamo pode ser explicado em grande parte por uma complexa

conjuntura de valorização da etnicidade com vinculações, em muitos aspectos, na luta

pelos direitos civis da população afro-americana ocorrida na década anterior. Não se

pode deixar de apontar, no entanto, a influência de um fenômeno de inegável impacto

no cenário cultural norte-americano da mesma época: a publicação e posterior

adaptação televisiva do romance “Raízes”, de autoria do escritor e jornalista Alex

Haley.

“Raízes”1 foi publicado em 1976 após noves anos de exaustiva pesquisa

empreendida por seu autor. Com o título original de “Roots: the saga of an American

Family”, a narrativa reconstrói um relato de tradição oral que os familiares de Haley

transmitiram de geração a geração, a partir de um ancestral conhecido como “o

africano”. Com base neste relato, Alex Haley iniciou uma investigação para registrar em

livro sua saga familiar, fundamentando-a com registros da tradição oral e documentos

históricos. A narrativa tem início na segunda metade do século XVIII, em uma aldeia

nas proximidades de Juffure, às margens do rio Gâmbia, na África Ocidental. Neste

local o africano Kunta Kinte, um jovem mandinga, foi capturado por mercadores de

escravos e, em uma tortuosa travessia em um navio negreiro, é trazido aos Estados

Unidos. Vendido em um leilão para um proprietário de terras da Virgínia, recebeu de

seu dono um novo nome: Toby. Disposto a lutar por sua liberdade e preservar sua

herança cultural, Kunta Kinte recusou-se a aceitar o nome escolhido por seu senhor e

tentou escapar do cativeiro diversas vezes, sem sucesso. Subjugado pela violência do

USP, Doutorando em História Social 1 O romance recebeu no Brasil o título de “Negras Raízes”. Adotamos neste texto o título “Raízes” tanto

para o romance quanto para o teledrama baseado no livro

2

regime escravista, ele acaba por se unir à Belle, uma escrava cozinheira com quem tem

uma filha, a quem dá o nome de Kizzi.

Sob o jugo da estrutura escravista, Kunta Kinte encontra uma maneira de resistir

e reforçar sua identidade étnica ao transmitir a Kizzi o relato de sua origem, registrando

inclusive os vocábulos de origem africana que servirão de rastro para a futura

reconstrução genealógica da família. Posteriormente vendida a outro proprietário após

envolver-se em uma tentativa de fuga, ela se torna o primeiro elo de transmissão entre

as gerações ao manter a tradição e também repassar a seu filho Chicken George o

mesmo relato. Primeiro membro da família a obter a alforria, antes mesmo da

emancipação dos escravos afro-americanos, Chicken George refaz a conexão do núcleo

familiar com a África, rememorando seu avô Kunta Kinte, nascido em liberdade. Alex

Haley conclui seu romance reconstruindo a linhagem que o liga a Chicken George e a

seus outros antepassados africanos.

Alex Haley produziu seu romance a partir de uma narrativa oral, transmitida de

geração a geração como uma marca de identidade que ultrapassou os limites familiares

para se tornar, após a publicação do livro e sua versão audiovisual, um símbolo de

valorização étnica para todos os afro-americanos. De fato, a sobrevivência do relato e

dessa marca identitária africana foi algo bastante incomum se considerarmos as

especificidades do violento regime escravista estadunidense em que o processo de

desenraizamento (natal alienation) foi bem mais profundo quando comparado, por

exemplo, ao regime escravista no Brasil. O historiador Orlando Paterson, ao descrever o

que caracterizou de “morte social” do escravo, aponta de que maneira os laços

familiares eram desfeitos no escravismo, não apenas em relação aos parentes vivos, mas

também aos mortos: “...formalmente isolado de suas relações sociais com aqueles entre

os quais vivia, ele (o escravo) também estava culturalmente isolado da herança social de

seus antepassados” (PATTERSON, 2008: 24)

“Raízes” é um exemplo interessante de um produto da indústria cultural que

permite articular conceitos e reflexões sobre memória, tradição oral e parentesco a partir

da recuperação do passado por meio da reconstrução genealógica e da narrativa. A

adaptação e veiculação do romance em uma série televisiva pouco tempo depois de sua

publicação foi fundamental para a divulgação da obra e ampliou a questão do

afrocentrismo para a esfera pública. Para os afro-americanos engajados nos movimentos

de valorização étnica, a questão do retorno à ancestralidade finalmente alcançou uma

ampla dimensão pública há muito tempo ansiada.

3

A aproximação entre o trabalho empreendido por Alex Haley com o fazer

historiográfico engendrou uma série de polêmicas em relação à sua metodologia de

pesquisa e consequentemente à natureza da própria obra, oscilando entre a declaração

inicial de veracidade até uma classificação quase que totalmente ficcional da obra

literária.

É fundamental destacar a centralidade da história oral e de sua metodologia na

trajetória de recuperação do passado empreendida por Alex Haley. O próprio autor,

antes mesmo da publicação de “Raízes”, escreveu um artigo para a revista “The Oral

History Review” apresentando sua narrativa familiar e as etapas de sua investigação na

busca de outros relatos ou evidências documentais que a corroborassem. Haley inicia o

texto destacando a cadeia geracional que permitiu a sobrevivência do relato a partir de

Kunta Kinte, presente nas histórias relatadas por sua avó materna e acrescentou o

auxílio obtido pelo antropólogo e historiador belga Jan Vansina para decifrar as palavras

“ko” e “kamby bolongo” (termos da tradição mandinga presentes no relato), indicando

posteriormente o caminho para a investigação a partir de outros detalhes. As orientações

de Vansina levaram Alex Haley até Juffure, onde ele foi apresentado ao griot Kebba

Kanga Fofana.

As palavras “ko” e “kamby bolongo” podem ser caracterizadas como um dos

conectores entre o tempo físico e o tempo vivido apontados pelo filósofo francês Paul

Ricoeur em sua articulação das formas temporais em sua obra “Tempo e Narrativa”. Os

termos (considerando sua especificidade de uma transmissão oral) funcionam como

rastro, vestígio de uma presença que já não é, mas cuja significância é reconstruída pelo

historiador. Esta busca e orientação partem do presente, para significar um passado

findo. Nesse sentido, a coisa marcante é a transmissão dos termos pelo ancestral

comum. A coisa marcada é a transmissão, no decorrer das gerações, das mesmas

palavras que se tornaram objeto de investigação no presente (RICOUER, 1984: 196-

207).

Fofana permitiu a Alex Haley estabelecer o elo entre o relato familiar e a

tradição oral mandinga, ao localizar a história de Kunta Kinte, filho de Omoro e Binta

Kinte, um membro do clã que nunca mais foi visto após sair em busca de um tronco

para confeccionar um tambor. A descrição de Alex Haley de seu encontro pessoal, em

uma vila próxima a Juffure, com o griot Fofana e outras figuras relacionadas com sua

ancestralidade recuperada, concretizam a conclusão de sua busca, ao menos sob o ponto

de vista da tradição oral.

4

A história oral e a tradição oral foram, e em certa medida ainda são, alvos

frequentes do ceticismo por parte de uma parcela da historiografia de tradição

positivista quando não consideradas no cotejamento com fontes escritas. No que diz

respeito à tradição oral, a especificidade desta forma de expressão, frequentemente

ligada a elementos míticos e a sociedades àgrafas, salienta aspectos complexos que

geralmente são negligenciados nas críticas às evidências de determinadas reconstruções

históricas. Como afirma Jan Vansina a respeito da validade ou não de um relato da

tradição oral como evidência histórica: “A resposta não pode ser um simples sim ou

não. Pelo contrário, como acontece com outros tipos de fontes históricas, esta é a

questão que leva a um exame de como a confiabilidade de várias tradições particulares

pode ser avaliada. ” (VANSINA, 1985: xxii)

Ao ser aprisionado na África e transportado para os Estados Unidos, Kunta

Kinte passou a ser parte de um registro documental que foi acionado por Haley tanto na

comprovação do relato familiar quando na construção de sua narrativa. O percurso de

Alex Haley pelos vários arquivos sobre o comércio escravista e sobre o registro de

propriedade e identidade dos senhores de seus antepassados escravizados procurou,

dentro do universo narrativo do período escravista, estabelecer o tom de veracidade

sugerido pela tradição oral. Desta forma, no universo ancestral africano é a centralidade

da tradição oral que se estabelece enquanto fonte primordial. Após a chegada de Kunta

Kinte aos Estados Unidos e o início de sua trajetória familiar na América que permitirá

a sobrevivência de seu relato, os documentos escritos ganham importância em sua

finalidade de fundamentação histórica, como ele mesmo explica: “Comecei seguindo o

trilho da história. Em registros de fazendas, testamentos, recenseamentos. Documentei

trechos aqui, pedaços ali. Em 1967 senti que tinha sete gerações do meu lado americano

documentadas”2 (HALEY, 1997: 149).

Fenômeno editorial e televisivo, marco cultural de um anseio da comunidade

afro-americana na busca por sua ancestralidade, “Raízes” foi alvo de uma série de

críticas, tornando-se também objeto de uma ampla controvérsia envolvendo plágio e

direitos autorais. O destaque ao escrutínio e à crítica dos historiadores profissionais para

o trabalho de pesquisa e fundamentação documental empreendida por Alex Haley é o

2 (Tradução do autor). No original: “I began following the story’s trail. In plantation records, wills, census

records, I documented bits here, shreds there...By 1967, I felt I had the seven generations of the U. S. side

documented.”

5

aspecto que mais nos interessa, por evidenciar a complexa relação entre memória

coletiva, tradição oral e narrativa.

A crítica historiográfica evidenciou falhas tanto em relação ao cotejamento dos

registros documentais selecionados para comprovar o encadeamento de sua narrativa

como a própria recuperação da história de seus ancestrais africanos por meio do griot

Kebba Kanga Fofana. As críticas dirigidas à reconstrução genealógica foram feitas em

duas frentes: a primeira delas colocando à prova a veracidade dos relatos orais ouvidos

pelo autor para localizar a origem mandinga de Kunta Kinte e a segunda que apontou

erros primários na avaliação de documentos históricos que comprovassem a identidade

de Kunta Kinte como o escravo Toby, e da própria veracidade dos fatos, datas e

personagens presentes em “Raízes”. A crítica dos genealogistas Gary B. e Elizabeth

Shown Mills são um exemplo da avaliação feita por historiadores profissionais para os

métodos de reconstrução histórica empreendidos por Haley:

Evidências históricas indicam que o Sr. Haley herdou as mesmas frustrações

enfrentadas por inúmeros outros genealogistas amadores que procuram

documentar tradições e lendas familiares tornando-se vítima da mesma

armadilha psicológica que atrapalhou muitos outros: uma relutância em

aceitar qualquer verdade que o desvie da lenda da família querida. 3 (MILLS,

1981: 6)

Na ausência de registros documentais que pudessem validar a trajetória de Kunta

Kinte antes de seu aprisionamento e entrada no universo escravista, Alex Haley deu

crédito ao papel do griot Fofana como o intermediário que preservou a tradição oral de

sua família. Sua própria impressão ao ouvir o longo relato de Fofana a respeito da

genealogia dos Kinte, no exato momento em que o griot localiza o desaparecimento de

Kunta após sair da aldeia para cortar madeira, revela o preenchimento de suas

expectativas em relação à comprovação do relato familiar:

Fiquei imóvel, como se fosse uma pedra. Meu sangue parecia ter congelado.

Aquele homem, que passara toda a sua vida numa aldeia do interior africano,

não tinha condições de saber que acabara de repetir o que eu ouvira ao longo

de todos os anos da minha infância, na varanda da casa de minha vó, em

Henning, Tennessee. (HALEY, 1976: 520)

3 (Tradução do autor). No original: “Historical evidence indicates that Mr. Haley has been heir to the

same frustrations faced by untold numbers of other amateur genealogists who seek to document family

traditions and legends, and he has fallen victim to the same psychological hangup that has entrapped

many others: a reluctance to accept any truths that deviate from the cherished family legend.”

6

O fato é que o Fofana aparentemente não era um iniciado na complexa

ritualística da tradição oral dos mandingas. Evidências apontaram que o griot procurou

dar a Haley um relato que pudesse satisfazer as aspirações de sua jornada. E o próprio

Haley havia sido alertado, durante sua investigação no Gâmbia, sobre seu excesso de

confiabilidade na narrativa apresentada por Fofana por Bakari Sidibe, um acadêmico

gambiano: “é impossível representar a performance de um griot através da escrita, que

perde muito de seu estilo, qualidade vocal e carisma, porque eles são artistas”4

(DELMONT, 2016: 51).

É necessário, no entanto, fazer uma caracterização da tradição oral na África

subsaariana, de suas cadeias de transmissão e das figuras envolvidas nesta tradição. A

esse respeito, nos esclarece Hampete A. Bâ:

Não se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar enquanto

divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores e

contadores de história e animadores públicos, que em geral pertencem à casta

dos Dieli (griots) ou dos Woloso ("cativos de casa"). Para estes, a disciplina

da verdade não existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes concede o

direito de travesti-la ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente,

contanto que consigam divertir ou interessar o público. "O griot" como se diz -

"pode ter duas línguas. (BÂ, 2010: 190)

A partir desta perspectiva, Fofana pode ter recriado trajetórias genealógicas

inexistentes e confirmado fatos e eventos que possibilitassem a Alex Haley estabelecer

o elo esperado entre o relato de sua tradição familiar afro-americana e as origens

ancestrais de Kunta Kinte.

Há aqui uma aproximação com as proposições do antropólogo Tim Ingold a

respeito da linha genealógica e as distinções entre a noção de pedigree e de genealogia,

associando a primeira a uma construção cultural e a segunda a uma comprovação

científica de linearidade (INGOLD, 2007: 104-119). As críticas direcionadas à Haley no

crédito dado à reconstrução genealógica do griot Fofana ou até mesmo na própria

diagramação genealógica de seus parentes escravizados em conformidade com a sua

construção narrativa parecem partir da noção da possibilidade de uma genealogia

depurada. O que aparentemente não foi observado pelas avaliações críticas à obra do

escritor é o caráter mitológico das genealogias e a sua pouca proximidade com uma

verdade histórica objetiva. Embora tais críticas tenham se justificado em alguma medida

4 Tradução do autor. No original: “It is impossible to represent a griot’s performance in writing, which

loses much of this style, voice quality, and general showmanship, for they are entertainers”.

7

ao destacar as afirmações de Haley no que diz respeito o aspecto de veracidade de sua

narrativa fundamentada em pesquisa documental, faltou a essas avaliações compreender

as intenções e os significados subjacentes à feitura do romance e de seu impacto.

O historiador Paul Thompson também apontou o excesso de entusiasmo por

parte de Alex Haley com a identificação de Kunta Kinte e sua família africana antes de

sua captura e transporte para o continente americano. Mas Thompson também destaca

que, a despeito das imprecisões:

O relato de Haley prova, com grande vigor, o prestígio de que desfrutava o

historiador oral, antes que a disseminação da documentação nas sociedades

letradas tornasse supérfluos esses momentos públicos de revelação histórica.

Não podemos mais distinguir, como os suaíles, entre os ‘mortos vivos’, cujos

nomes ainda são relembrados na tradição oral, e os inteiramente esquecidos.

O genealogista de hoje trabalha em reservado silêncio no gabinete de um

arquivo. A memória foi rebaixada do status de autoridade pública para o de

um recurso auxiliar privado. (THOMPSON, 1988: 50).

Diante das imprecisões de “Raízes” reveladas após o sucesso do livro e da

minissérie, Alex Haley minimizou as críticas que recebeu alegando que seu objetivo não

foi o de construir um trabalho historiográfico (no sentido do método científico da

historiografia), mas um esforço de recriação ficcional com base em fatos reais do

passado e na tradição oral. A essa metodologia ele deu o nome de faction (uma

conjunção dos termos em inglês “fact” and “fiction”). As alegações de Alex Haley

referentes a uma imaginação ficcional calcada em fatos e eventos reais estabelecem um

diálogo com o debate a respeito dos limites entre a história, a narração e a ficção e a

própria natureza literária da escrita da história.

As críticas sobre as falhas metodológicas na investigação de Alex Haley também

permitem uma aproximação com aquilo que um outro antropólogo, Michael Herzfeld,

chama de “distinções simplistas entre culturas ‘orais’ e ‘literárias’ – como se culturas

inteiras pudessem ser definidas nesses simples termos fracassados” (HERZFELD, 2014:

81). Herzfeld também procura apontar a importância dos sentidos de história e do

passado pensando também os métodos historiográficos dos interlocutores algo que

aparentemente não foi levado em conta por aqueles que procuraram deslegitimar a

pesquisa empreendida pelo autor de “Raízes” evocando os pressupostos da

historiografia de tradição positivista.

Pode-se fazer aqui uma analogia com a polêmica proposição de Hayden White

de que a recriação do passado pelo historiador através do ato poético da narrativa não

faz referência a um passado acessível tal como realmente aconteceu, tema que despertou

8

a discussão do papel da imaginação na escrita histórica e das aproximações da história

com o gênero literário. Herzfeld menciona White ao apontar que “as narrativas

principais da historiografia ocidental representam uma sucessão de dispositivos dos

quais se pode dizer que nenhum oferece uma interpretação literal do passado”

(HERZFELD, 2014: 88).

Ao apresentar o texto histórico como um relato literário, White valoriza o papel

da linguagem figurativa tanto para caracterizar os objetos da representação histórica

quanto em relação às estratégias pelas quais a narrativa apresentará a transformação

desses objetos no tempo. Tal aproximação, em sua concepção, não diminui o valor do

conhecimento histórico:

Dizer que conferimos sentido ao mundo impondo-lhe a coerência formal que

costumamos associar aos produtos dos escritores de ficção não diminui de

maneira nenhuma o status de conhecimento que atribuímos à historiografia.

Só o diminuiria se acreditássemos que a literatura não nos ensinou algo

acerca da realidade, por ter sido um produto de uma imaginação que não era

deste mundo, mas de outro, de um mundo inumano. (WHITE, 2001: 115)

As inúmeras críticas em relação aos aspectos factuais e ficcionais presentes em

“Raízes” poderiam se apoiar nas afirmações de Hayden White a respeito do papel do

sentido da narrativa e da imaginação historiográfica.

Leslie Fishbein aponta que as inexatidões factuais de “Raízes”, tanto no romance

como em sua adaptação para televisão, não foram cruciais para diminuir a importância

da obra porque “os fatos eram muito menos significantes do que os mitos que ‘Raízes’

desejava gerar” (FISHBEIN, 1999: 285). Assim, o objetivo de Alex Haley aponta para a

construção de uma imagem mitológica de determinada representação da ancestralidade

afro-americana. Como afirma Stephanie Athey:

O foco apenas na manipulação incorreta da recuperação histórica efetuado

por Haley ignora a relevância de seu livro para seu momento contemporâneo.

É a maneira pela qual Haley se baseia na tendência acadêmica e popular para

recuperar a história e, em seguida, a canaliza em uma direção política e

emocional específica que deve ser examinada.5 (ATHEY, 1999: 174)

5 Tradução do autor. No original: “To focus solely on Haley’s mishanding of the work of historical

recovery is to miss the relevance of his book to the contemporary moment. It is the way in which Haley

draws on the scholarly and popular drive to recover history and then channels that drive in a specific

political and emotional direction that must be examinated. ”

9

Parece evidente que as avaliações críticas apontando a ausência do rigor

científico nas pesquisas empreendidas por Alex Haley e em suas conclusões para a

feitura de sua obra ignoraram a real natureza da proposta do escritor ao construir o seu

romance. De fato, tais críticas veem o passado recuperado por Haley sem levar em

consideração as diferenças entre memória e história e a relação de ambas com a

afirmação da identidade. Como afirma o historiador Allan Megill, ao se referir à

valorização da memória e sua relação com a afirmação da identidade:

uma alta valorização da memória tende a entrar na historiografia (e no

interesse público na história) naqueles pontos em que eventos e circunstâncias

históricas se cruzam com a experiência pessoal e familiar. (MEGILL, 2007:

53)

Ao expandir a história de Kunta Kinte para além da experiência familiar,

possibilitando que o relato alcançasse um público mais amplo e se tornasse uma

narrativa exemplar da sobrevivência da ancestralidade africana mesmo na violenta

estrutura escravista, Alex Haley equiparou-se ao griot Kebba Fofana em sua

performance de experiente contador de história. Como aponta Matthew F. Delmont:

“Para Haley, ouvir a Kebba Fofana Kinte contar a história do clã Kinte deve ser sido

como olhar-se no espelho”6 (DELMONT, 2016: 52).

Recuperemos os argumentos da historiadora Gabrielle Spiegel, ao advogar a

impossibilidade de uma conversão recíproca entre a memória e a história. Ao se referir à

questão do trauma na memória e na história judaica, esta pesquisadora elenca uma série

de características da memória que se adequam ao empreendimento de Alex Haley:

monumentalização, reencarnação do que já viveu, caráter litúrgico do passado e

presença da oralidade (SPIEGEL, 2002: 149-162).

Spiegel também faz referência a uma inscrição presente no Yad Vashem, o

museu do Holocausto em Israel, que poderia ser aplicada facilmente para o caso de

“Raízes”: “o esquecimento leva ao exílio enquanto a memória é o segredo da redenção”.

Diáspora, exílio, redenção, são termos presentes nas realidades históricas da

comunidade judaica e da comunidade afro-americana. No caso da segunda, a redenção

também é o retorno às raízes, a África edênica em que o escravizado vivia livre. Um

sentido de liberdade e de nobreza que Alex Haley reconstruiu a partir do passado para

informar um anseio do presente. Uma memória que não é capaz de performar

6 Tradução do autor. No original: “For Haley, listening to Kebba Fofana Kinte tell the story of the Kinte

clan must have been like looking in a mirror”.

10

historicamente porque se nega a manter o passado no passado. Mais do que isso: a

presença desse passado é parte fundamental de um esforço de uma história afirmativa

que tem muito mais de memória do que de história.

Jan Vansina, que teve um papel fundamental na busca de Alex Haley por sua

ancestralidade africana, nos oferece uma reflexão pertinente sobre a importância

documental da tradição oral ao destacar seu aspecto de representação do passado feita

no presente:

Ninguém pode negar o passado ou o presente nas tradições orais. Atribuir

todo o seu conteúdo ao presente evanescente, como alguns sociólogos fazem, é

mutilar a tradição; é reducionista. Ignorar o impacto do presente, como

alguns historiadores fizeram, é igualmente reducionista. As tradições devem

sempre ser entendidas como refletindo passado e presente de uma só vez.7

(VANSINA, 1985: xii)

Referências bibliográficas

ATHEY, Stephanie. Poisonous roots and the new world rules: rereading seventies

narration and nation in Alex and Gayl Jones.Narrative. Multiculturalism and Narrative,

vol 7, n. 2, Maio, 1999

BÂ, A. Hampaté. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). Metodologia e pré-

história da África - História Geral da África da Unesco, 2010, p. 190. Disponível em:

http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/A-tradicao-viva.pdf

DELMONT, Matthew. Making Roots: a nation captivated. Oakland: University of

California Press, 2016

7 Tradução do autor. No original: “One cannot deny either the past or the present in them. To attribute

their whole content to the evanescent present as some sociologists do, is to mutilate tradition; it is

reductionistic. To ignore the impac of the present as some historians have done, is equaly reductionistic.

Traditions must always be understood as reflecting both past and present in a single breath”

11

FISHBBEIN, Leslie. Roots: Docudrama and the Interpretation of History. In

ROSENTHAL, Alan (Org.) Why Docudrama? Fact-Fiction on Film and TV. Illinois:

Southern Illinois University Press, 1999

HALEY, Alex. Black history, oral history and genealogy. The Oral History Review.

Vol. 1, n. 2, 1973, pp. 1-25.

HALEY, Alex. “My search for Roots, a black American’s stoty”. Reader’s Digest,

April, 1997

HALEY, Alex. Negras raízes: a saga de uma família. São Paulo: Record, 1976

HERZFELD, M. “Histórias”. In: Antropologia: prática teórica na cultura e na

sociedade. Petrópolis: Vozes, 2014

INGOLD, T. Lines. A Brief History. London; New York: Routledge, 2007

MEGILL, Allan. Historical knowledge, historical error. Chicaco: Chicago University

Press, 2007.

MILLS, Elizabeth Shown. MILLS, Gary B. “Roots” and the new “faction”: a legitimate

tool for Clio?” The Virginia Magazine of History and Biography. Vol. 89, n. 1, Jan,

1981.

PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social. São Paulo: Editora da Universidade

de São Paulo, 2008

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: 3: o tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes,

2010.

SPIEGEL, Gabrielle M. Memory and History: liturgical time and historical time.

History and Theory, n. 41, maio de 2002

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 1988

VANSINA, Jan. Oral Tradition as History. Madison: The University of Wisconsin

Press, 1985

12

WHITE, Hayden. "O texto histórico como artefato literário." In: Trópicos do discurso:

ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. 2ª ed. São

Paulo: EDUSP, 2001