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EDUARDO COSTA PINTO AS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E A DESARTICULAÇÃO SOCIAL E SETORIAL NO BRASIL SALVADOR 2005

EDUARDO COSTA PINTO AS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS DO ... · dimensões do “novo imperialismo”.....91 . CAPÍTULO III O CAPITALISMO DEPENDENTE LATINO-AMERICANO À LUZ DAS TRANSFORMAÇÕES

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EDUARDO COSTA PINTO

AS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E A

DESARTICULAÇÃO SOCIAL E SETORIAL NO BRASIL

SALVADOR

2005

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EDUARDO COSTA PINTO

AS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E A DESARTICULAÇÃO SOCIAL E SETORIAL

NO BRASIL

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Economia da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de mestre em Economia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Balanco

SALVADOR 2005

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Ficha Catalográfica – Biblioteca Central da UFba

Pinto, Eduardo Costa.

As dimensões constitutivas do capitalismo contemporâneo e a desarticulação setorial e social no Brasil / Eduardo Costa Pinto. – Salvador, 2005.

190 p.

Orientador: Paulo Balanco Dissertação (mestrado) – Faculdade de Ciências Econômicas da

Universidade Federal da Bahia, 2005

1. Economia Política. 2. Capitalismo Contemporâneo. 3. Crise. 4. América Latina. 5. Desarticulação Social e Setorial – Brasil. I Pinto, Eduardo Costa

CDD 000.00

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A Maria Isabel,

companheira nas alegrias e nas agruras.

A Maria Clara,

filhinha amada que está por vir.

Aos meus pais, João e Clemilvia.

Aos meus irmãos,

Ricardo e Ana Paula.

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AGRADECIMENTOS

São tantos e tão especiais... Ao meu professor orientador, Paulo Balanco, pela paciência, pela compreensão, pelas valiosíssimas reflexões, pela receptividade e por ter sido bem mais que um orientador ou um professor. Ao Mestrado em Economia da UFBA, pelo apoio, a infra-estrutura, a qualidade de seus funcionários e, especialmente, aos professores que contribuíram para minha formação. Ao Núcleo de Conjuntura Econômica (NEC - FCE/UFBA), que, além do apoio financeiro concedido através de bolsa de pesquisa, me permitiu refletir acerca do cenário econômico-político nacional e internacional, por meio dos debates sistemáticos com professores e com estudantes de graduação e de pós-graduação. Agradeço, em especial, aos professores integrantes desse núcleo: prof. Luís Filgueiras, prof. Plínio e profª. Celeste. Aos meus colegas de mestrado (turma de 2002), pela amizade e pelos debates travados dentro e fora da sala de aula. Pessoas que jamais cairão no meu esquecimento. Ao professor Nelson de Oliveira, com quem tenho “dívidas” que remontam desde meu tempo de graduação, por ter, de modo tão generoso, concedido seu tempo precioso e posto à minha disposição seus conhecimentos e críticas na consecução desta dissertação. Professor cujos ensinamentos transcendem o campo acadêmico, sendo, para mim, um referencial a ser seguido por toda vida. A Maria Isabel, por tudo: pela paciência, por compreender as intermináveis horas que passei em frente ao computador, ausentando-me de todas as decisões domésticas, pela firmeza nas horas difíceis, pela leitura, em várias fases, de toda dissertação, pelo companheirismo, enfim, sem palavras...

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É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias.

(Lênin - Que fazer?)

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RESUMO

Esta dissertação teve como objetivos (i) “radiografar” as transformações socioeconômicas recentes do modo de produção capitalista, procurando situá-las como resultados do processo dialético de produção e reprodução do capital em sua busca contínua por novos espaços acumulativos; e (ii) analisar o aprofundamento contemporâneo da dependência estrutural dos países latino-americanos - principalmente a partir da realidade brasileira desarticulada setorial e socialmente - provenientes dos movimentos das frações capitalistas nacionais e internacionais durante a década de 1990. A pesquisa teve um caráter exploratório, tendo alocado os objetos destacados em uma dialética materialista histórica. Nesse sentido, se afirmou que as modificações capitalistas hodiernas - associadas à reestruturação produtiva, à globalização financeira e ao novo papel dos Estados nacionais - foram introduzidas pelos representantes do capital como estratégias de retomada do controle social e da recuperação dos níveis de acumulação, abalados pela crise estrutural do capital dos anos 70. Tais transformações, por um lado, propiciaram a retomada do controle social do capital, em virtude do processo de fragmentação da classe trabalhadora e da desvalorização da força de trabalho, e, por outro, criaram limitações à acumulação, as quais foram precariamente contornadas por intermédio da ampliação da acumulação em bases financeiras. Contudo, esse novo padrão de acumulação, centrado nas finanças, vem consubstanciando um aumento da dependência econômica e um aprofundamento do quadro social desigual, principalmente nos países periféricos, haja vista a conformação de um “novo imperialismo”, sob a égide norte-americana. No que concerne à atual configuração socioeconômica da América Latina, foram identificadas as razões que conduziram à posição de degradação social e econômica trilhada pela grande maioria dos países latino-americanos desde os anos 70 até os dias atuais, principalmente com a adoção dos ajustes estruturais neoliberais na década de 1990. No que diz respeito à realidade brasileira atual, foram apresentados – por meio dos movimentos e das alianças entre as frações dominantes nacionais e forâneas e seus rebatimentos na atual configuração do Estado nacional e na adoção de determinadas políticas econômicas - os efeitos deletérios do ajuste estrutural brasileiro (Plano Real) na estrutura setorial (especialização regressiva do aparelho produtivo) e social (redução do peso dos salários na economia, desestruturação do mercado de trabalho e ampliação da desigualdade social). Na verdade, a implantação do Plano Real ampliou a desarticulação social e setorial no Brasil, já marcado, desde sua formação histórica, por ser uma das economias mais socialmente desarticuladas do mundo capitalista, que se materializa pela sua ingente e histórica exclusão social. Palavras-chaves: Crise; Saídas “internas” e “externas”; Capitalismo contemporâneo (reestruturação produtiva e globalização financeira); Novo imperialismo; América Latina – dependência e ajuste estrutural neoliberal; Brasil – desarticulação setorial e social e Plano Real.

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ABSTRACT

This research has as objectives (i) to evaluate the recent social and economic transformations in the capitalist production to point out the dialectic process of production and reproduction of the capital in its continuous search for new accumulatiou spaces; e (ii) to analyze the current deepening of the structural dependence of the Latin American countries - mainly from the sectoral disarticulated Brazilian reality and socially - proceeding from the movements of the national and international capitalist fractions during the decade of 1990. The research had an exploratory character, having placed detached objects in a historical materialistic dialectic. In this direction, if it affirmed that the contemporaneous capitalist modifications - associates to the productive reorganization, the financial globalization and the new paper of the national States - had been introduced by the representatives of the capital as strategies of retaken of the social control and the recovery of the accumulation levels, shaken for the structural crisis of the capital of years 1970. Such transformations, on the other hand, had propitiated the retaken one of the social control of the capital, in virtue of the process of spalling of the diligent classroom and of the depreciation of the work force, and, for another one, they had created limitations to the accumulation, which had been precariously contouring for intermediary of the magnifying of the accumulation in financial bases. However, this new standard of accumulation, centered in the finances, comes configuring an increase of the economic dependence and a deepening of the different social picture, mainly in the peripheral countries, has seen the conformation of a “new imperialism”, under command North American. In that it concerns to the current socioeconomic configuration of Latin America, the reasons that had lead to the position of social and economic degradation trod by the great majority of the Latin American countries since years 70 until the current days, mainly with the adoption of the new liberal structural adjustments in the decade of 1990 had been identified. In that it says respect to the current Brazilian reality, the deleterious effect of the Brazilian adjustment had been presented - by means of the movements and of the alliances between the national and forâneas dominant fractions and its striking in the current configuration of the national State and in the adoption of determined economic policies - structure (Real Plan) in the sectorial structure (regressive specialization of the productive device) and social (reduction of the weight of the wages in the economy and magnifying of the social inequality). In the truth, the implantation of the Real Plan extended the social and sectorial disarticulation in Brazil, already marked, since its historical formation, for being one of the economies more socially disarticulated of the capitalist world that can concretely be translated by its grandiosity and historical social exclusion. Word-keys: Crisis; “Internal” and “external” alternatives; Contemporary Capitalism (productive reorganization and financial globalization); New imperialism; Latin America - dependence and new liberal structural adjustment; Brazil - sectoral and social disarticulation and Real Plan.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12

Objetivos do estudo: uma leitura à luz da economia política..............................................17

CAPÍTULO I

OS “ANOS DOURADOS” DO CAPITALISMO E A CRISE DA DÉCADA DE 1970:

DA HARMONIZAÇÃO AO AUMENTO DA CONTRADIÇÃO ENTRE CAPITAL E

TRABALHO............................................................................................................................23

1.1. Do capitalismo “concorrencial” ao monopolista.........................................................23

1.2. Os anos dourados do capitalismo planejado: a busca da harmonia entre capital e

trabalho........................................................................................................................30

1.3. A crise dos anos 70 em perspectivas e suas saídas “internas” e “externas”:

impedimentos à acumulação ou à dominação? Um debate contraditório....................42

CAPÍTULO II

O CAPITALISMO PÓS-ANOS 70 E SUAS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS:

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA E AS

TRANSFORMAÇÕES DAS RELAÇÕES INTERESTATAIS..........................................62

2.1. Reestruturação produtiva e reafirmação do capital: fragmentação do trabalho com

centralização e concentração do capital........................................................................63

2.2. A Globalização das finanças: o papel dos Estados Unidos na ampliação da

acumulação financeira..................................................................................................68

2.3. Economia política internacional contemporânea: alguns aspectos do debate acerca do

Estado-nação, do “Império” de Hardt e Negri, das instituições “supranacionais’ e das

dimensões e contradições do “novo imperialismo”......................................................76

2.3.1. A morte do Leviatã e o “Império” de Hardt & Negri: visões distorcidas das

relações estatais.................................................................................................80

2.3.2. As relações entre as instituições “supranacionais” (FMI, Banco Mundial e

OMC) e o capital estadunidense e europeu.......................................................88

2.3.3. As contradições do projeto de império mundial dos Estados Unidos e as

dimensões do “novo imperialismo”..................................................................91

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CAPÍTULO III

O CAPITALISMO DEPENDENTE LATINO-AMERICANO À LUZ DAS

TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS................................................................104

3.1. O capitalismo dependente latino-americano: do modelo agro-exportador ao fim do

Modelo de Substituição de Importações num breve panorama..................................106

3.2. O endividamento estrutural latino-americano e a “década perdida” dos anos 1980: a

“pavimentação social” para a assunção do neoliberalismo.........................................111

3.3. A integração passiva latino-americana dos anos 1990: impactos dos ajustes estruturais

neoliberais...................................................................................................................117

CAPÍTULO IV

A DESARTICULAÇÃO SETORIAL E SOCIAL BRASILEIRA: DIMENSÕES

CONSTITUTIVAS E AMPLIAÇÕES RECENTES PÓS-PLANO REAL.....................130

4.1. O conceito de (des)articulação setorial e social.........................................................130

4.2. Do Império ao Estado Novo: do domínio irrestrito das oligarquias agrárias regionais

ao surgimento de novas frações dominantes ligados aos interesses urbano-

industriais....................................................................................................................136

4.3. As peculiaridades da industrialização desarticulada brasileira: a instável aliança entre

as frações dominantes e a saída autoritária.................................................................146

4.4. Alguns elementos da crise dos anos 80 e o ajuste estrutural neoliberal brasileiro

(Plano Real): ampliação da desarticulação setorial e social a partir dos movimentos

das frações dominantes nacionais e forâneas..............................................................160

CONCLUSÃO.......................................................................................................................180

REFERÊNCIAS....................................................................................................................184

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LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS

Gráfico 3.1 - Variações do PIB e do PIB per capita entre 1990 e 2002 - América Latina.....123

Tabela 4.1 - PIB, PIB per capita,Transferência liquida de recursos e Inflação na década de 80

– Brasil....................................................................................................................................161

Tabela 4.2 - PIB, Inflação e Taxa de desemprego na década de 90 – Brasil..........................167

Tabela 4.3 - Transações Corrente, Balança Comercial, Serviço e Renda, Taxa de juros e

Transferência líquida na década de 90 – Brasil......................................................................172

Gráfico 4.1 - Remuneração do trabalho como porcentagem do PIB a preços de mercado –

Brasil.......................................................................................................................................177

Tabela 4.4 - Distribuição da renda urbana no Brasil, segundo os decis: 1960-2001..............178

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INTRODUÇÃO

O padrão de acumulação keynesiano/fordista dos anos dourados do capitalismo proporcionou

um dos mais longos períodos de contínua expansão das economias capitalistas. Para muitos

cientistas sociais, atrelados ao reformismo do Welfare State, o capitalismo planejado estaria

conformando uma nova sociabilidade centrada na harmonia social entre o capital e o trabalho.

Tal otimismo “harmonicista” começa a se diluir à medida que os primeiros sinais de

esgotamento do padrão de acumulação surgem nos anos finais da década de 1960. As

diruptivas do modelo vão se aprofundando a partir de três elementos, quais sejam: i)

intensificação das contradições entre os capitalistas e os movimentos operários; ii)

acirramento da concorrência intercapitalista; iii) elevação dos preços das matérias-primas no

mercado mundial. A confluência desses elementos, tendo o primeiro o papel mais importante,

provocou, em meados dos anos 1970, uma grande instabilidade econômica e política, alçando

o capitalismo a uma condição de crise estrutural.

Com a crise estrutural, o sistema econômico passou a conviver com uma significativa redução

da lucratividade e dos níveis de acumulação produtiva, proporcionados, num primeiro

momento, pelo aumento da contradição entre capital e trabalho e, num segundo momento,

pelas próprias estratégias voltadas à retomada do controle social (saída “interna”:

reestruturação produtiva e globalização financeira). Em paralelo, como conseqüências típicas

desse processo crítico, ocorreu uma redução nas taxas de investimento e de crescimento

acompanhadas de resultados sociais amplamente negativos, tais como, o aumento do

desemprego em seu caráter crônico nos mais diversos espaços nacionais - Europa ocidental,

América Latina e outros países periféricos e, inclusive, nos Estados Unidos.

Neste cenário, no qual esteve presente uma combinação de queda de lucro e instabilidade

hegemônica do capital e do Estado norte-americano, os representantes do capital acabaram

por orientar o sistema em direção a novas formas de acumulação que, por sua vez,

necessariamente estiveram condicionadas a transformações profundas no âmbito intra e

interestatal atreladas ao plano da produção e da circulação. A dificuldade cada vez maior em

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viabilizar a acumulação a taxas crescentes de valor novo no plano da produção, fez o

capitalismo se voltar acentuadamente para alternativas de acumulação centradas em

fundamentos financeiros. Ao se deslocar da produção, passou a privilegiar o universo do

capital-dinheiro em um grau de autonomia muitas vezes superior àquele que se manifesta

quando o capital portador de juros atua somente como um apêndice da esfera produtiva.

As transformações capitalistas hodiernas (reestruturação produtiva, globalização financeira e

regulação institucional neoliberal) consubstanciaram a retomada do controle social pelo

capital. Entretanto, geraram efeitos colaterais problemáticos tanto no plano da realização das

mercadorias, em virtude da queda na demanda agregada, como no plano político inter e intra-

estatal, haja vista a elevação das tensões provocadas pelas (i) modificações nas relações de

coerção e controle entre os Estados Unidos e os demais países capitalistas centrais e

periféricos - a partir da ruína do sistema monetário regulado de Bretton Woods, em 1973, e da

política Volcker do dólar “forte” implementada em 1979 – e pelos (ii) conflitos intra-estatais

provenientes das novas estratégias públicas configuradas a partir dos novos conflitos e

articulações entre as frações capitalistas, principalmente com a supremacia dos segmentos

financeiros, em suas inter-relações com os Estados nacionais e com os segmentos dominados.

Neste contexto de alargamento de novos espaços para a acumulação do capital, o Estado-

nação se apropriou das armas mais poderosas (funções repressivas e ideológicas) para garantir

a reprodução e a ampliação de novos eixos de acumulação tanto produtivos como financeiros.

Para garantir a máxima rentabilidade do capital em sua forma financeira, em sua fuga à

tendência baixista da taxa de lucro, fez-se mister a introdução de mecanismos de

potencialização da sua mobilidade dentro de determinados parâmetros inerentes à relação

espaço-tempo, enquanto em sua forma produtiva elevou-se, desmesuradamente, a coerção

sobre o trabalho, haja vista o processo de reestruturação produtiva que promoveu o aumento

do “exército industrial de reserva”1 e a fragmentação do trabalho. Neste sentido, as amplas

medidas de desregulamentação dos fluxos financeiros (globalização financeira) e comerciais e

1 “A adequação do número de trabalhadores às necessidades do capital, através da constituição de Exército Industrial de Reserva, significa duas coisas: 1) o capital sempre tem, a sua disposição, uma oferta regular de trabalhadores, necessitados de venderem a força de trabalho pela impossibilidade de garantirem a sobrevivência através do trabalho por conta própria; e 2) essa massa de trabalhadores “supérfluos” funciona como regulador do nível salarial, uma vez que modera as exigências dos trabalhadores que estão empregados e enfraquece o poder dos sindicatos” (MARX apud FILGUEIRAS & PINTO, 2003, p. 39).

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os ajustes estruturais que os Estados centrais, sobretudo os Estados Unidos, passaram a impor

– por meio das agências “supranacionais” - aos Estados nacionais em geral, e mais

especificamente aos países periféricos, configuraram um novo quadro de regulação

institucional neoliberal.

De fato, o capital, em suas frações, buscou, a partir da crise estrutural dos anos 1970, expandir

seus espaços de acumulação em virtude da necessidade de manutenção dos condicionantes

materiais necessários à implantação do processo de produção e à realização completa de seu

ciclo. Tal expansão dos eixos de acumulação capitalista influenciou direta ou indiretamente as

diversas realidades nacionais da economia-mundo capitalista – do Sudão à França; de Guiné

Bissau à Inglaterra; do Haiti aos Estados Unidos; do Brasil ao Japão – devido à integração,

cada vez maior, dos espaços nacionais aos movimentos de produção e reprodução capitalista.

Contudo, os efeitos das reconfigurações socioeconômicas internacionais materializaram-se

diferenciadamente nos espaços nacionais e regionais, a depender de sua posição hierárquica

de “comando” no sistema-mundo capitalista.

Apesar da integração capitalista contemporânea centrada na consolidação do mercado

mundial, verifica-se que tal totalidade não leva a convergências, nem ao estado de paz

perpétua idealizado por Kant, em 1795, nem muito menos ao Império de mil platôs

construídos recentemente por Hardt e Negri. Na verdade, a expansão do mercado mundial não

matou o Leviatã estatal hobbesiano, pelo contrário, o Estado-nação continua como elemento

de “regulação” institucional fundamental aos eixos de produção e reprodução do capital, em

suas frações, nos mais diversos espaços mundiais. Além de não eliminar o Leviatã, a

ampliação atual do mercado mundial cria e estende uma totalidade desigual na qual a relação

entre centro e periferia acontece dentro de um universo (economia-mundo) explicitamente

definido por relações integradas entre Estados-nações capitalistas centrais e periféricos.

Contudo, tanto agora como antes, apresenta-se, de forma bem definida, uma hierarquia, que

traduz relações de domínio, dependência e subordinação, vinculada à produção e reprodução

dos movimentos dialéticos da acumulação espacial do capital. Portanto, a dinâmica

capitalista, ao longo de seus períodos históricos, vai conformando trajetórias distintas

espacialmente que tendem a não se reproduzir de forma igualitária nos espaços nacionais.

Encontram-se assim, dentro deste processo, duas expressões marcantes do capitalismo, a

saber, a expansão geográfica e a conseqüente dominação territorial. Sem dúvida não seria

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possível a materialização do mercado mundial sem a produção de ações e movimentos

relativos aos espaços nacionais. E, evidentemente, a trajetória do capitalismo, nestes termos,

está fortemente associada ao colonialismo e ao imperialismo em suas diversas conjunturas

históricas, desde o imperialismo clássico das potências capitalistas, na virada do séc. XIX,

descrito por Lênin, até o “novo imperialismo” unipolar estadunidense configurado a partir da

queda do muro de Berlin e da dissolução da União Soviética nos anos finais da década de

1980.

Com a implosão do bloco socialista, as transformações estruturais, iniciadas em decorrência

da crise dos anos 1970, foram aceleradas, uma vez que se consubstanciaram iniciativas

agressivas e amplas, por parte dos países capitalistas centrais, de integração completa dos

países periféricos ao mercado mundial. Nesse contexto, a América Latina integrou-se

passivamente, ao longo dos anos 1990, por meio dos ajustes estruturais liberais2, aos circuitos

de produção e reprodução do capital, “acreditando” que este seria o único caminho para a

“modernização” da região, uma vez que, nesses países, a crise dos anos 1980 pavimentou o

caminho para a implantação dos ajustes. A prosperidade não chegou, pelo contrário, o que se

verificou foi uma ampliação da dependência3 e da subordinação latino-americana às potências

centrais capitalistas, no transcurso da década de 1990, gerando, com isso, a ampliação do

legado histórico de concentração de riquezas e das mazelas sociais do capitalismo dependente

regional.

A cristalização de um recente quadro latino-americano deletério - marcado pelas crises

financeiras, maior instabilidade socioeconômica, baixo crescimento do produto regional,

aumento do desemprego e queda dos rendimentos reais dos trabalhadores – teve como

elementos constitutivos o processo estrutural de reprodução da dependência e da crise

associados ao endividamento, conformado ao longo dos anos 1980, e à ampliação da

2 Os países latino-americanos, em quase sua totalidade, adotaram os ajustes estruturais em virtude das suas restrições provenientes de seus endividamentos de caráter estruturais. Estes foram potencializados a partir da elevação das taxas de juros norte-americanas, em 1979, e da crise dos anos 1980 em toda América Latina. Os ajustes estruturais aqui implementados foram pautados pela busca da estabilidade monetária, do equilíbrio fiscal e da competitividade internacional. Assumiu-se que o excessivo intervencionismo estatal e os déficits fiscais do estado criavam dificuldades para os países latinos alcançarem a “modernização”. 3 Apesar da subordinação histórica da América Latina aos movimentos de produção e reprodução das frações do capital forâneo, a dependência latino-americana não pode ser caracterizada como integralmente reflexa dos condicionantes externos, uma vez que determinadas relações socioeconômicas intra-regionais influenciam no maior ou menor grau de dependência ou de certa autonomia relativa ao longo de vários momentos históricos.

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desarticulação setorial e social nos países da região, haja vista a aplicação dos ajustes

estruturais neoliberais da década de 1990. Vale ressaltar que os movimentos de desarticulação

socioeconômica se processaram de forma diferenciada e com diferentes graus de intensidade,

em virtude das particularidades das relações de produção dos espaços nacionais da região.

O Brasil foi retardatário, dentre os países da América Latina, na substituição do modelo

desenvolvimentista, de origem cepalina, pelo modelo de “desenvolvimento” centrado no

ajustamento estrutural liberal. Tal relutância em adotar o modelo neoliberal no final do

Governo Sarney, entre os anos finais de 1980 e início da década de 1990, esteve atrelado à

falta de definições ou de articulações das frações capitalistas nacionais (capital industrial,

comercial, agrário e financeiro) quanto aos eixos a serem seguidos pelo capitalismo

dependente brasileiro. Com o fim das indefinições das frações nacionais do capital,

materializaram-se, a partir do governo Fernando Henrique, as estratégias de

“desenvolvimento” liberal (Plano Real) pautadas na abertura comercial e financeira, na

competitividade e na estabilidade monetária.

Transcorrido mais de uma década do ajuste estrutural brasileiro (Plano Real), o otimismo fácil

dos primeiro anos do ajuste foi substituído pelo pessimismo, uma vez que o tão sonhado

caminho da “modernidade” não foi alcançado. Muito pelo contrário, o que se verificou, ao

longo da década de 1990, foi o alargamento da miséria, do desemprego e das graves crises

econômicas. Na verdade, a implantação do ajuste liberal ampliou a desarticulação social e

setorial no Brasil, já marcado, desde sua formação histórica, por ser uma das economias mais

socialmente desarticuladas do mundo capitalista, que pode ser traduzido concretamente pela

sua ingente e histórica exclusão social, bem como pela elevadíssima desigualdade.

Esse quadro socioeconômico brasileiro contemporâneo representa a configuração de antigos e

novos eixos de acumulação conformados a partir das novas formas de relacionamento entre os

Estados centrais e periféricos. Estas relações, por sua vez, são, na verdade, o reflexo dos

conflitos e das articulações das frações dos capitais nacionais em suas interações com o

capital internacional e com o Estado brasileiro.

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Objetivos do estudo: uma leitura à luz da economia política

Esta pesquisa tem como objetivos (i) “radiografar” as transformações socioeconômicas

recentes do modo de produção capitalista, procurando situá-las como resultados do processo

dialético de produção e reprodução do capital em sua busca contínua por novos espaços

acumulativos; e (ii) analisar o aprofundamento da dependência estrutural dos países latino-

americanos - principalmente a partir da realidade brasileira desarticulada setorial e

socialmente - provenientes dos movimentos das frações capitalistas nacionais e internacionais

durante a década de 1990.

A abordagem aqui adotada tem um caráter exploratório, centrado na descrição e nas análises

dos processos socioeconômicos através de dados e informações de natureza secundária,

coletados em trabalhos acadêmicos, em periódicos, em documentos e em bancos de dados de

órgãos oficiais nacionais e internacionais. Em decorrência do grau de complexidade que cerca

a problemática desta pesquisa, metodologicamente, alocaram-se os objetos destacados em

uma dialética4 materialista histórica. Poulantzas define os objetivos do método materialista

histórico da seguinte forma:

O objetivo do materialismo histórico é o estudo das diversas estruturas e práticas ligadas e distintas (economia, política e ideologia), cuja combinação constitui um modo de produção e uma formação social: podemos caracterizar estas teorias como teorias regionais. O materialismo histórico compreende, de igual modo, teorias particulares [...], cuja legitimidade está baseada na diversidade de combinações das estruturas e práticas, que definem modos de produção e formações sociais distintas (POULANTZAS, 1977, p. 12).

Ao adotar tal metodologia buscou-se distinguir os processos reais dos processos de

pensamento e ressaltar a primazia do ser sobre o pensamento. Segundo Poulantzas (op. cit., p.

12), “no sentido rigoroso do termo, apenas existem objetos reais, concretos e singulares. O

processo de pensamento tem como fim último o conhecimento destes objetos”. Sendo assim,

4 A abordagem dialética considera que o processo social tem que ser entendido nas suas determinações e transformações dadas pelos sujeitos. Compreende uma relação intrínseca de oposição e complementaridade entre o pensamento e a base material. Advoga também a necessidade de se trabalhar com a complexidade, com as especificidades e com as diferenciações que os problemas e/ou ‘objetos sociais’ apresentam (SOUZA, s/d).

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intenta-se apreender as dimensões do real-concreto5 a partir de informações e noções acerca

do real.

O eixo condutor desta pesquisa, em forma de ensaio livre, está centrado em quatro elementos

explicativos fundamentais, a saber: i) os movimentos das lutas e das articulações entre as

classes e suas frações; ii) as crises estruturais e suas saídas “internas” e “externas”; iii) o papel

do Estado-nação e de suas interações inter e intra-estatais; e iv) a desarticulação setorial e

social dos países dependentes. Para um melhor entendimento desse fio condutor, achou-se

conveniente empreender uma conceituação sintética prévia dos termos classes sociais, crise

estrutural, Estado e (des)articulação setorial e social6, aqui adotados, tendo em vista a

diversidade de interpretações acerca de tais termos, a freqüência com que são utilizados e a

relevância que desfrutam nesta pesquisa.

O conceito de classes e luta de classes, adotado ao longo desta pesquisa, tende a se aproximar

da perspectiva marxista a partir da leitura de Poulantzas (op. cit., p. 65), para quem

“a classe social é um conceito que indica os efeitos do conjunto das estruturas [relações

econômicas, políticas e ideológicas] [...] sobre os agentes que constituem os seus suportes;

esse conceito indica pois os efeitos da estrutura global de dominação das relações sociais”. No

que se refere à luta de classes, Poulantzas destaca:

A relação conflitante, a todos os níveis, das práticas das diversas classes, a “luta” de classes, a existência mesmo das próprias classes, são o efeito das relações entre as estruturas, a forma que as contradições entre as estruturas revestem nas relações sociais: elas definem, a todos os níveis, relações fundamentais de dominação e de subordinação das classes – das práticas de classe – que existem como contradições particulares. Trata-se, por exemplo, da contradição entre práticas que visam à realização do lucro e as que visam ao aumento dos salários – luta econômica -, entre as que visam a manutenção das relações sociais existentes e as que visam a sua transformação – luta política [...] (op. cit., 1977, p. 83-84).

5 Segundo Marx (1996, p. 39-40) o real-concreto apresenta as seguintes características: “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação. No primeiro caso, a representação plena é volatilizada numa determinação abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento”. 6 Cabe ressaltar que tais termos serão conceituados de forma mais aprofundada ao longo dos capítulos seguintes.

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Quanto ao conceito de crise estrutural, deu-se, nesta abordagem, um caráter amplo,

incorporando os elementos econômicos e políticos problemáticos à acumulação do capital. Na

verdade, admite-se aqui a existência da crise estrutural somente quando há elementos que

desestabilizam a hegemonia7 da classe dominante, permitindo, por sua vez, a possibilidade de

rupturas sociais além do eixo da acumulação capitalista. Desse modo, a crise, vinculada aos

fenômenos problemáticos da realização das mercadorias originários do aumento das luta de

classes, assume um caráter amplo, abarcando todo o conjunto das relações sociais (culturais,

políticas, éticas, intelectuais, ideológicas e morais). A crise estrutural, portanto, só se

materializa a partir do momento histórico em que os “de baixo” não estiverem mais dispostos

a se subordinar, pelos menos conjunturalmente, aos movimentos do capital, em concomitância

com a perda de certa capacidade de manutenção da dominação/hegemonia dos “de cima”.

No que se refere ao Estado, adota-se, neste trabalho, um enfoque antideterminista, concebido

como uma estrutura permeada de interesses de classes conformados dialeticamente, ou seja, o

Estado não é reduzido deterministicamente a um “instrumento” da classe dominante, nem, por

outro lado, a uma instituição que detém o poder autônomo de determinar a realidade

socioeconômica. Desse modo, a intervenção estatal (políticas públicas) é o reflexo da

correlação de forças políticas em momentos históricos determinados. Segundo Oliveira,

[...] o processo de intervenção estatal, está sempre pressuposta uma correlação de forças políticas ou ideológicas, que implica uma permanente relação entre estruturas de representação de interesses e os poderes públicos; prática de intervenção estatal entendida mais concretamente como aquela definida no confronto entre interesses organizados em determinados contexto histórico (OLIVEIRA, 2001, p. 15).

No que tange ao conceito de (des)articulação social e setorial, adota-se aqui a visão de

Teubal (2000-2001) e de Janvry (1981), para os quais tal conceito está associado ao grau de

influência das rendas salariais na dinâmica dos “setores chaves” que conformam e

7 Existe uma diversidade de perspectivas para o entendimento do conceito de hegemonia, muitos deles associados à lógica da força. Tal compreensão torna-se restrita à medida que restringe as dimensões do convencimento nos processos sociais. O conceito de hegemonia gramsciano abarca essas duas dimensões (força e convencimento), sendo assim faz-se necessário adotá-lo ao longo deste trabalho. A hegemonia, segundo Gramsci, é a manutenção da coesão de todos os grupos sociais que compõem uma sociedade em torno de valores políticos, econômicos, sociais, morais e culturais, obtidos através de uma conjunção de coerção com consentimento. Nessa construção admiti-se a possibilidade de formação de uma nova hegemonia a partir de uma outra direção cultural que as classes subalternas possam dar.

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influenciam, em grande medida, a estrutura produtiva de determinadas economias, inclusive

no balanceamento entre os departamentos de produção e de consumo. Segundo Teubal (2000-

2001), a análise dos efeitos da maior/menor participação das rendas salariais na dinâmica

econômica e nas cadeias produtivas perpassa o entendimento dos mecanismos atrelados à taxa

de exploração – que depende dos conflitos entre as classes e suas frações - e à importância das

rendas salariais na demanda efetiva kaleckiana.

Para Janvry (1981) as relações desiguais entre os Estados centrais e periféricos, a estrutura

econômica doméstica e a estrutura das classes e de suas frações são os fatores determinantes

da desarticulação setorial e social das economias periféricas. Tais economias tendem a se

configurar historicamente como desarticuladas, tendo em vista suas posições subalternas na

dinâmica da economia-mundo e a grande dificuldade interna das classes dominantes nacionais

e de suas frações em construir hegemonias amplas8. Dessa maneira, a desarticulação setorial e

social é proveniente tanto de fatores externos como internos aos espaços nacionais.

Para desenvolver as idéias preliminarmente expostas nesta introdução, dividiu-se esta

dissertação em quatro capítulos e numa última seção que se procura alinhavar algumas idéias

conclusivas.

No primeiro capítulo, é efetuada uma análise das características do padrão de acumulação

“regulado” dos anos dourados do capitalismo e das dimensões constitutivas das crises

estruturais de suas saídas “internas” e “externas”. Mostra-se que as transformações

econômicas, culturais e institucionais do capitalismo planejado dos anos dourados, que

concediam certas benesses à classe trabalhadora, funcionaram, na verdade, com estratégias

defensivas do capital diante da segunda crise estrutural, provocada, em grande medida, pela

ofensiva operária anti-sistêmica, principalmente após a Revolução Russa. Tais estratégias

centradas no compromisso keynesiano/fordista e no Welfare State buscaram harmonizar a

contradição entre as classes; contudo, esta continuou viva e voltou a se intensificar com a

8 A hegemonia ampla, na formulação gramsciana – adotada ao longo deste trabalho -, ocorre quando a classe dominante ou uma de suas frações ocupa um lugar decisivo no padrão de acumulação num determinado momento histórico e, a partir de seus interesses econômicos, políticos e ideológicos, consegue uma unidade orgânica entre as demais frações do capital, de forma consentida, articulando, ao mesmo tempo, seus interesses aos das classes dominadas. Desse modo, essa hegemonia ampla, de uma fração do capital, se estabelece sobre o conjunto da sociedade (dominantes e dominados).

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deterioração do padrão de acumulação “regulado”. Além disso, adentra-se, também, pelos

meandros teóricos e concretos das dimensões socioeconômicas da crise estrutural do capital

iniciada no final da década de 1960. Para tanto, fez-se necessário debater, a partir de alguns

eixos teóricos, as origens e as saídas “internas” e “externas” das crises.

O segundo capítulo, a partir das constatações realizadas no capítulo precedente, busca enfocar

os elementos do capitalismo contemporâneo (reestruturação produtiva, globalização

financeira e regulação institucional neoliberal) que funcionaram como estratégias voltadas à

retomada do controle social do capital e à recuperação dos níveis de acumulação. Mostra-se,

ainda, que tais estratégias conseguiram restabelecer o controle, mas provocaram efeitos

negativos à acumulação produtiva, tornando-se necessário, ao capital, abrir novos espaços

para a acumulação, pautada pelas finanças. Tais transformações provocaram o acirramento

dos conflitos intra e interestatais, pois, no âmbito internacional, ocorreu uma elevação das

tensões devido às modificações nas relações de coerção e controle entre os Estados Unidos e

os demais Estados capitalistas avançados e periféricos (“novo imperialismo”) e, no contexto

intra-estatal, verificou-se também a ampliação dos conflitos provenientes das novas

estratégias públicas frente ao novo poder das finanças. Desse modo, procura-se evidenciar que

a idéia de morte do Leviatã (Estado) não passa de visões distorcidas da realidade, uma vez

que o Estado-nação persiste como instituição fundamental do capitalismo contemporâneo,

mesmo com a ampliação dos “tentáculos” das empresas transnacionais e das instituições

“supranacionais”.

No terceiro capítulo, discute-se o aprofundamento recente da dependência estrutural das

economias latino-americanos à luz das características históricas da região em sua articulação

com o movimento geral do capitalismo. Para tanto, fez-se necessário: (i) apresentar as

características peculiares do capitalismo dependente, tanto no período agrário-exportador

como no momento de industrialização após a crise de 1929; (ii) discutir o endividamento

estrutural latino-americano, conformado ao longo dos anos 1970 e 1980, mostrando seus

efeitos socioeconômicos deletérios para a região; e, por fim, (iii) analisar a integração passiva

da América Latina ao mercado mundial, configurada a partir da implantação do ajustes

estruturais neoliberais na década de 1990. Tais ajustes, na verdade, aprofundaram a

desarticulação setorial e social já existente na região. Isso, por sua vez, provocou o aumento

da degradação socioeconômica e da dependência estrutural.

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No quarto capítulo, pretende-se compreender os elementos constitutivos da realidade

socioeconômica brasileira e, principalmente, as transformações recentes no Brasil, associados

ao ajustamento estrutural neoliberal (Plano Real) da década de 1990, através dos movimentos

das classes e de suas frações, enfatizando as alianças e os conflitos entre as frações

dominantes nacionais e internacionais e seus desenlaces tanto na configuração do Estado

nacional e na adoção de determinadas políticas públicas, mais especificamente as políticas

econômicas, como na ampla exclusão social da classe trabalhadora. Para tanto, utiliza-se o

instrumental teórico da (des)articulação setorial e social, uma vez que este engloba os

elementos da demanda efetiva e da taxa de exploração, a qual é conformada a partir das lutas

e dos movimentos das classes e de suas frações setoriais e regionais.

E, finalmente, na última seção, busca-se articular as idéias desenvolvidas nos capítulos

anteriores e, principalmente, apontar para novas possibilidades de pesquisas teóricas e

históricas acerca do capitalismo contemporâneo e da realidade socioeconômica brasileira.

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CAPÍTULO I

OS “ANOS DOURADOS” DO CAPITALISMO E A CRISE DA DÉCADA DE 1970:

DA HARMONIZAÇÃO AO AUMENTO DA CONTRADIÇÃO ENTRE CAPITAL E

TRABALHO

1.1. Do capitalismo concorrencial ao monopolista

O século XIX foi marcado pela transição do capitalismo concorrencial ao capitalismo

monopolista. O primeiro abrangeu, aproximadamente, o período entre 1800 e 18709, enquanto o

segundo se consolidou após uma transição conflituosa marcada pela crise agrária de 1872, a qual

se estabeleceu como a primeira crise estrutural do capitalismo maduro. Ainda, o capitalismo

monopolista apresentou, como características mais relevantes, entre outras, a ascensão e

solidificação da grande indústria como a forma predominante da acumulação capitalista e a

subsunção real do trabalho ao capital. E, no final do século XIX,

[...] confirmava-se o movimento determinante da reprodução do capital a partir da atuação da grande empresa transnacional e, com isso, o surgimento de novas formas de concorrência, sobretudo aquelas que expressavam o domínio do monopólio (BALANCO, 1999, p. 14).

Naqueles anos finais do séc. XIX constituíram-se forças produtivas especificamente

capitalistas à medida que se verificava uma separação econômica e técnica, cada vez maior,

entre os departamentos de meios de consumo e de produção, principalmente nos países

europeus desenvolvidos. Já em alguns países periféricos se verificou simultaneamente o início da

destruição das relações de produção pré-capitalistas, conjugadamente a um processo de

industrialização embrionário. Tais transformações de grande envergadura foram impulsionadas

pela extraordinária ampliação da escala de produção atrelada às mudanças tecnológicas,

originárias da 2ª revolução industrial, e por novas formas organizacionais da empresa

9 Não existe consenso no tocante à periodização do capitalismo, muito embora seja dispensável entrar nos termos dessa polêmica no escopo deste trabalho.

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capitalista, tanto no âmbito da gestão10, que buscou integrar a classe trabalhadora, quanto na

estrutura da propriedade através da consolidação das sociedades anônimas (TAVARES &

BELLUZO, 2004; BALANCO & PINTO & MILANI, 2004; BALANCO, 1999).

Essas transformações no âmbito da produção e da reprodução capitalistas, observadas no séc.

XIX, estiveram eminentemente ligadas às relações inter e intra-estatais e à supremacia da

Inglaterra no sistema mundial que consubstanciou uma Ordem Liberal Burguesa, assentada na

prática e na ideologia do livre-comércio multilateral, principalmente, a partir da segunda

metade do século XIX, com o Tratado de Comércio Anglo-Francês. Antes disso, a Grã-

Bretanha, unilateralmente, manteve seu mercado interno aberto aos produtos forâneos. Esse

livre-comércio associado à expansão territorial ultramarina e ao desenvolvimento da indústria

e das finanças na Inglaterra, possibilitou a consolidação da supremacia deste país em toda

economia mundial. Tal poderio inglês foi alcançado em virtude (i) da sua liderança na

primeira revolução industrial, (ii) do seu pioneirismo em consolidar uma “revolução

financeira” que possibilitou ao Estado uma transformação do crédito público (sistema de

dívida pública e de tributos), (iii) da derrota das pretensões imperiais de Napoleão Bonaparte

e (iv) de seu controle quase monopolista dos meios de pagamentos aceitos

internacionalmente, o que fazia da libra a “moeda mundial” (ARRIGHI, 1996; FIORI, 1997 e

2004a).

A ordem liberal, sob domínio inglês, num ambiente de Segunda Revolução Industrial, que

espraiou a industrialização além das fronteiras inglesas, abriu brechas para que alguns países

capitalistas retardatários (EUA, Japão e Alemanha) emergissem ao largo das relações

comerciais e financeiras próprias da supremacia liberal inglesa como novas potências

industriais. Esses países retardatários alçaram-se à condição de “novas potências” (Estados

soberanos) em virtude da presença ativa de seus respectivos Estados nacionais que

propugnaram políticas indústrias articuladas aos seus sistemas bancários. Estes passaram a

financiar não apenas as operações de financiamento da dívida pública e o giro dos negócios,

10 Entre o final do século XIX e início do século XX, a utilização da gestão da produção taylorista teve como objetivo integrar ao processo produtivo uma classe trabalhadora que tinha sido proletarizada muito recentemente. Naquele momento o operariado industrial, em sua grande maioria, era originário da agricultura e, por conseguinte, não estava habituado nem treinado para lidar com a maquinaria moderna. Assim, o taylorismo consolidou-se pressupondo que os trabalhadores fossem incapazes de compreender mais que uma operação de trabalho. Isso possibilitou elevados ganhos em escalas materiais e o aumento da acumulação oriundo do incremento da mais-valia relativa (BERNARDO, 2000).

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mas também novos empreendimentos e fusões de empresas já existentes (TAVARES &

BELLUZO, 2004).

Isso possibilitou o surgimento e o desenvolvimento, naqueles países retardatários, de grandes

corporações associadas, pelo menos até a depressão dos anos 30, sob controle dos grandes

Bancos (finanças). Inclusive, pode-se afirmar que esse processo engendrado no território

norte-americano se constituiu no embrião da posterior “multinacionalização” do grande

capital aos moldes da empresa monopolista americana.

Pouco a pouco todos os setores industriais foram dominados por grandes empresas, sob o comando do capital financeiro. O movimento de concentração do capital produtivo e de centralização do comando capitalista tornou obsoleta a figura do empresário frugal que confundia o destino da empresa com sua própria biografia. O magnata da finança é o herói e o vilão do mundo que nasce (TAVARES & BELLUZO, 2004, p. 114).

Esse “magnata da finança”, que surge no final do século XIX nos países retardatários,

principalmente nos Estados Unidos, já havia ascendido à posição de supremacia na Inglaterra,

desde 1870, em função da importância dos ganhos de senhoriagem do capital financeiro para

a manutenção da burguesia inglesa no controle mundial. Londres (City) havia se tornado o

centro financeiro mundial.

A estrutura financeira, tanto inglesa quanto dos países capitalistas retardatários, orientou-se,

no momento inicial do processo de industrialização, ao financiamento do capital industrial.

Esta estrutura atuava como componente da divisão do trabalho entre diferentes modalidades

funcionais do capital, configurando-se como a representação do capital portador de juros, o

qual, por sua vez, se originava do capital industrial. Apesar da existência desses vínculos

orgânicos entre capital industrial e financeiro, a superestrutura financeira tem, desde então,

uma tendência à aquisição de certa autonomia relativa. Isto se tornava possível mediante a

instalação de um aparato creditício-financeiro, constituído pioneiramente como aporte à esfera

produtiva geradora da mais-valia, e à aquisição de meios de controle e centralidade (poder)

decorrente da posse da operação da máquina monetária das sociedades capitalistas à medida

que avançava a concentração do capital produtivo (MARX, 1986).

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A centralização da esfera financeira está baseada na categoria capital financeiro, que segundo

Hilferding (1985) e Lênin (1979), representa um fundamento estrutural fixado na economia

capitalista entre o final do século XIX e inicio do século XX, principalmente nos países

centrais da Europa, mediante a interpenetração entre a propriedade dos meios de produção e

as instituições bancárias por intermédio das sociedades por ações. Corresponde a um processo

de fusão entre banco e indústria, possibilitando a constituição de uma nova “esfera financeira”

(finance) cujo objetivo é a maximização da lucratividade por intermédio de operações de

lançamento e compra e vendas de ações, potencializando, por conseguinte, o aspecto fictício

do capital envolvido nesse movimento de valorização.

A impulsão do capital financeiro à posição central na disputa entre frações da classe

dominante ocorre em momentos de enfrentamento de crises - barreiras à valorização do valor

– que se reflete em conflitos inter e intra-estatal dos diversos países que compõem o sistema

mundial. A acumulação fictícia pode muitas vezes funcionar como uma válvula de escape à

crise, pelo menos temporariamente. Não foi por acaso que o capital financeiro inglês se

consolidou no sistema mundial nas últimas décadas do século XIX marcadas pela crise agrária

de 1872, que se prolongou por duas décadas.

Aquela Grande Depressão representou muito mais do que um percalço conjuntural11 do

sistema capitalista, como apregoava Alfred Marshal, um dos economistas liberais mais

importantes à época. A crise, na verdade, teve um caráter estrutural, pois se vinculava à

própria dinâmica do capitalismo, o qual, naquele período, atravessava um esgotamento do

padrão de acumulação “concorrencial”, em virtude (i) da transição tecnológica de 1873-1893

e seus desdobramentos nos processos de trabalho e de valorização do capital; (ii) do aumento

dos conflitos sociais atrelados à maior organização e nitidez ideológica dos trabalhadores

(“classe para si”), que, inclusive, à época, intentavam estratégias anti-sistêmicas de caráter

socialista; e (iii) da incapacidade do Estado liberal, dentro de seus marcos regulatórios, de

11 Os economistas liberais à época consideravam aquela crise como um fenômeno temporário associado às fortes quedas nos preços das matérias primas e dos alimentos. Nessa perspectiva, a crise não se constituiria num obstáculo ao curso equilibrado da dinâmica econômica, uma vez que deveria ser garantida a vigência plena do laisser-faire. Entrementes, “a crise – agrária ou de um padrão tecnológico – contribuiu não só para demonstrar o quanto eram falaciosas certas posturas até então identificadas como progresso ilimitado ou ininterrupto, na vigência de um pleno laisser-faire; como também para revelar não tanto a imprecisão conceitual mas a própria inadequação estrutural do chamado mercado auto-regulável em face de sua própria incapacidade de conter a escalada depressiva dos preços”(OLIVEIRA, 2004, p.107)

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controlar as manifestações de descontentamento, abrindo espaço para a lei do mais forte. Um

perigo para o sistema naquele momento, uma vez que a classe trabalhadora ganhava força e

poderia subverter as relações de dominação (OLIVEIRA, 2004).

O avanço das forças produtivas capitalistas, ao longo do séc. XIX, consolidou a dinâmica

social sob a égide do capital; contudo, tal avanço propiciou, se bem que a contragosto dos

capitalistas, o avanço da organização e da consciência da classe trabalhadora. “A organização

da classe trabalhadora cresceu com o capitalismo, que produziu a classe, o sentimento de

classe e o meio físico de cooperação e comunicação” (HUBERMAN, 1979, p. 220 apud

CALVETE, 2003, p. 11).

Os movimentos operários, em certa medida, principalmente a partir de meados do séc. XIX,

não se preocupavam apenas com as reivindicações salariais, mas também haviam se inserido

no processo da luta de classes em virtude do avanço da consciência de classe. A passagem

abaixo, do livro A era das Revoluções de Hobsbawm, expressa muito bem esse processo:

O verdadeiramente novo no movimento operário do princípio do século XIX era a consciência de classe e a ambição de classe. Os ‘pobres’ não se defrontavam com os ‘ricos’. Uma classe específica, a classe operária, trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões ou capitalistas (HOBSBAWM, 1977, p. 230).

Apesar das divergências históricas entre as correntes (anarquistas, socialistas e comunistas) do

movimento operário, estas, percebendo a dimensão da luta de classes à época, se articularam,

em 1864, em prol da formação de uma união internacional permanente dos trabalhadores, a

Primeira Internacional, buscando aumentar o poder da classe trabalhadora diante do capital.

À medida que aumentavam as barreiras ao processo de valorização do valor, o capital

materializava formas para derrubá-las e, conseqüentemente, se manter hegemônico. Uma das

estratégias de enfrentamento da crise de valorização foi a busca de ganhos financeiros de

senhoriagem através do deslocamento do capital produtivo à esfera financeira, principalmente

na Inglaterra. Para a burguesia inglesa a ampliação das finanças garantiu, pelo menos até o

final da 1ª guerra mundial, sua supremacia na economia-mundo. Outra estratégia utilizada

pelos representantes do capital, principalmente pelas burguesias dos países capitalistas

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retardatários, foi a centralização e a concentração do capital em determinados espaços

territoriais através da defesa dos monopólios e, conseqüentemente, das burguesias nacionais,

mediante políticas estatais protecionistas.

O modelo ideológico liberal do laisser-faire pautado no Estado não-interventor, centrado no

modelo idealizado da Inglaterra, tornava-se cada vez menos funcional à reprodução sistêmica,

naquela conjuntura de insurgência, de boa parte da classe trabalhadora e de aumento da

concorrência entre capitais nacionais cada vez mais monopolistas.

Desse modo, materializou-se o surgimento de uma nova etapa do capitalismo, iniciada no

final do século XIX, se estendendo até o final da década de 30 do século XX, denominada de

capitalismo monopolista ou imperialismo, que esteve associada à concentração e centralização

do capital industrial e financeiro em determinados espaços. Isso, por sua vez, provocou um

acirramento das disputas entre a Inglaterra e as potências retardatárias por espaços para a

realização e reprodução do valor, culminando nas guerras mundiais imperialistas.

A competição entre eles [Inglaterra e potências retardatárias] foi a grande responsável pela recolonização européia do mundo, na segunda metade do século XIX, mas também levou a Europa às duas guerras mundiais, que desmontaram o império inglês e a superioridade mundial européia (FIORI, 2001a, p. 68).

A Primeira Guerra Mundial, fruto da agudização da concorrência interimperialista, reafirmou

a incapacidade do modelo institucional liberal de regular as diferenças dos mais diversos

interesses socioeconômicos que vinham se materializando desde a crise de 1872. Ao final

daquele conflito não apenas a regulação da concorrência capitalista era preocupação da classe

dominante, mas também a nova correlação de forças entre o capital e trabalho que emergiu

após a revolução socialista russa de 1917. Tal evento político estimulou o crescimento do

movimento operário em boa parte da Europa ocidental. O capital não se acomodou diante de

tal conjuntura “negativa” e partiu para o contra-ataque, uma vez que delegou às forças da

própria monopolização o direcionamento dos padrões de concorrência e, no plano

microeconômico, buscou se reafirmar diante das lutas de classes através de novas

possibilidades de controle social (OLIVEIRA, 2004).

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Naquele contexto de aumento dos conflitos inter (capital versus trabalho) e intraclasses

(capital versus capital), as barreiras impostas ao processo de valorização se tornaram mais

robustas e elevadas, principalmente, com o acirramento da luta de classes, a qual representa o

principal componente crítico. Tal dinâmica socioeconômica conflituosa, por sua vez, alçou o

capital a uma segunda crise estrutural - iniciada nos anos de 1929 e concluída com advento da

II guerra - que atingiu a totalidade do mundo capitalista, provocando (i) forte deflação de

ativos; (ii) crises bancárias recorrentes; (iii) intensa queda dos preços das mercadorias; (iv)

desvalorizações competitivas das moedas nacionais; (v) a ruptura do padrão-ouro; (vi) o

colapso da produção industrial; e (vii) a forte elevação do desemprego que chegou até a 40%

da população economicamente ativa em alguns países centrais.

O epicentro da crise foram os EUA onde ocorreu o crack da bolsa de Nova York, provocado,

segundo Belluzo (1997) e Tavares & Belluzo (2004) pelo “estouro” da bolha especulativa

(inflação de ativos), em virtude da mudança de sinal da política monetária americana. Desse

modo, para tais autores, a crise foi gerada pelas fraquezas institucionais do modelo de

regulação do Estado liberal que impedia a coordenação e o controle da anarquia da produção,

por parte do agente estatal, na nova etapa monopolista do capitalismo. Cabe ressaltar que o

fato gerador da crise, como apresentado pelos autores supracitados, demonstra o caráter

limitado de suas análises, na medida em que estes deixaram de lado a luta de classes - origem

do processo crítico – que representa a principal restrição imposta à continuidade do processo

de acumulação, e enfocaram apenas os problemas institucionais da regulação da concorrência

intercapitalista. Percebe-se, na verdade, que tais autores não penetram nos meandros

econômicos e políticos da contradição entre capital e trabalho e seus efeitos para as crises. Em

seção à frente retomar-se-á o debate sobre as origens das crises à luz de algumas correntes

teóricas.

A segunda crise estrutural de valorização do valor representou a ocorrência de um evento

complexo com manifestações paradoxais. A redução das restrições à acumulação só foi

alcançada devido à profilaxia drástica e amplamente destrutiva de mercadorias, de capitais e

de força de trabalho, originárias da Segunda Guerra Mundial, e à nova forma de controle

social pautada pela regulação do Estado social (Welfare State), planejador e produtor. Estes

fatores engendraram certa harmonização (1945-1970) no âmbito das relações entre capital e

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trabalho. Assim, foi possível o estabelecimento de uma nova plataforma de relançamento da

acumulação.

Em linhas gerais, a crise de 1929, sem dúvida, desempenhou um papel central no reforço de

uma nova institucionalidade, tanto no âmbito do capitalismo, em sua generalidade, quanto no

do Estado. Essas mudanças refletiram alterações políticas ocorridas nos mercados capitalistas

em virtude do grau mais elevado de socialização do capital até então. A busca de alternativas

para conter os efeitos da crise – desemprego e deflação – tendeu a reforçar as mudanças no

plano institucional e na determinação das políticas em seu todo.

As novas alianças de classe que se articulam tendo em vista o enfrentamento da crise – New Deal, Planificação Nazista, Front Populaire... - aos poucos vão forjando aquilo que se pode caracterizar como a forma alternativa mais concreta ao Estado liberal [...]: o Estado social [Welfare State]” (OLIVEIRA, 2004 p. 197).

1.2. Os anos dourados do capitalismo planejado: a busca da harmonia entre capital e

trabalho

A retomada da acumulação, no pós-crise de 1929, deve ser identificada como o ponto de

partida do longo boom pós-II Guerra. O programa de recuperação da economia americana

(New Deal12), e seus correlatos em outros espaços nacionais, inauguraram uma nova

macroestrutura sócio-econômica capitalista, cuja marca decisiva foi a forte presença estatal

em termos normativos e também como esfera (ramo) de produção (Estado planejador e

produtor), articulada à nova forma de controle social assentado no Welfare State,

principalmente nos países centrais. Esta acentuada inflexão relacionada às atribuições

socioeconômicas designadas ao Estado capitalista baseou-se em dois elementos fulcrais, quais

sejam, (i) um inquestionável aparato de regulação com o propósito principal de

enquadramento do capital financeiro e seu direcionamento para o financiamento da produção

através do planejamento, considerado necessário à própria dinâmica do capital naquele

12 “A essência do New Deal era a idéia de que os grandes governos deveriam gastar com liberdade para conquistar a segurança e o progresso. Assim, a segurança do após-guerra exigiria certa liberdade de desembolsos por parte dos Estados Unidos, a fim de superar o caos criado pela guerra. [...] A ajuda aos [...] países pobres teria o mesmo efeito dos programas de bem-estar social dentro dos Estados Unidos – dar-lhes-ia segurança para superar o caos e impediria que eles se transformassem em revolucionários violentos” (SCHURMANN, 1974, p. 67 apud ARRIGHI, 1996, p. 285).

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momento histórico; e (ii) uma acomodação das contradições entre capital e trabalho por meio

de certas concessões, por parte do capital, aos trabalhadores dos países centrais (compromisso

keynesiano/fordista ou estratégia de harmonização) e de forte coerção, por parte das ditaduras

militares, dos frágeis movimentos operários dos países periféricos.

Embora o New Deal tenha sido implementado já no início da década de 1930, pode-se afirmar

que essa nova macroestrutura e seus efeitos sobre a retomada da acumulação só se

consolidaram realmente ao final da II Guerra13, a partir de um novo reordenamento

internacional, qual seja: a materialização de um novo sistema monetário internacional (padrão

dólar-ouro) e de instituições internacionais de coordenação e controle (Fundo Monetário

Internacional, Banco Mundial e GATT), baseado nos acordos de Bretton Woods, sob a égide

irrestrita da nova supremacia, quer dizer, dos Estados Unidos, que se constituiriam

posteriormente numa hegemonia mundial no sentido gramsciano até meados da década 1970.

A adoção da estratégia de recuperação sócio-econômica foi assentada, por um lado, no

princípio da economia da demanda efetiva, configurada no programa do New Deal e

consolidada com o acordo de Bretton Woods e com o Plano Marshall, e, por outro lado, na

busca de harmonização entre as classes capitalista e trabalhadora. Tal estratégia somente se

consubstanciou em virtude de determinados fenômenos, a saber: (i) redução da influência dos

condicionantes externos - cooperação antagônica - sobre as políticas macroeconômicas

domésticas dos países capitalistas, principalmente após o começo da Guerra Fria em 1947; (ii)

repressão financeira, ou seja, a “regulação”, por parte das autoridades monetárias estatais,

sobre a moeda de crédito, capital a juros, através do processo de monetarização da dívida

pública; (iii) “mediação” estatal entre o empresariado e os trabalhadores, através de suas

representações sindicais, objetivando articular o aumento dos salários reais aos ganhos de

produtividade e dos preços e integrar o trabalhador ao âmbito dos processos decisórios da

produção. Quando a mediação não funcionava o Estado utilizava seu poder coercitivo,

principalmente nos primeiros anos após o final da Segunda Guerra; (iv) incorporação de

13 O programa de recuperação americana (New Deal) não conseguiu retomar inicialmente (1933/1938) os investimentos privados no montante esperado, em virtude das baixas expectativas de expansão dos mercados. Configurando-se em um fracasso parcial num primeiro momento. Na verdade, a retomada da acumulação nos Estados Unidos teve forte vinculação à economia de guerra e ao processo de reconstrução da Europa no pós-guerra (MANDEL, 1985). Apesar de certo fracasso inicial, as diretrizes do New Deal de maior intervenção e regulação estatal sobre os mercados, além de uma nova forma de controle social, tornaram-se o eixo da acumulação capitalista entre o pós-II Guerra e a crise da década de 1970.

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investimentos diretos e das transferências de seguridade social como componentes basilares

da demanda e do controle social (BELUZZO, 1999; GUTTMANN, 1998; MEYER, 2000;

BALANCO & PINTO, 2004).

O sistema monetário de Bretton Woods (padrão dólar-ouro), um dos elementos importantes da

estratégia de recuperação, configurou-se a partir de três elementos fundamentais: 1) taxas

fixas de câmbio, mas ajustáveis, em virtude de “desequilíbrios fundamentais” associados aos

balanços de pagamentos; 2) a aceitação do controle dos fluxos de capitais internacionais; e 3)

a criação do FMI para monitorar as políticas nacionais e oferecer financiamento para

equilibrar os balanços de pagamentos com desequilíbrios. Segundo Eichengreen (2000, p.

132) apenas “os controles de capital constituíram-se no único elemento que funcionava mais

ou menos segundo o planejado”. Esse controle de capitais afrouxou os vínculos entre as

políticas econômicas domésticas e externas – redução dos condicionantes externos -,

possibilitando aos governos espaços para a adoção de políticas macroeconômicas voltadas ao

pleno emprego (EICHENGREEN, 2000).

Essa ordem financeira e monetária internacional, em que o dólar passou a funcionar como

moeda de circulação internacional, foi construída sob a égide norte-americana em virtude de

sua posição de superioridade diante de outros países centrais no pós-II Guerra. O poderio dos

EUA esteve atrelado, naquele momento, à sua posição de prestamista para todos os países

aliados e às suas reservas em ouro que totalizavam quase que integralmente as reservas

mundiais. Nesse cenário de assimetria de poder, quando do encontro de Bretton Woods, a

delegação dos Estados Unidos - que tinha no Plano White seu programa de diretrizes -, impôs

a maior parte de suas deliberações à delegação da Inglaterra - que através do Plano Keynes

vislumbrava certa contenção do poderio americano - e às delegações dos outros países

vencedores e derrotados da Segunda Guerra. Os acordos firmados ao final daquele encontro

permitiam a manutenção de controles sobre movimentos de capitais e a limitação do volume

de financiamento para os países que apresentassem balanço de pagamento deficitário. Essa

resolução garantiu grande poder para os países superavitários que naquele momento

correspondia solitariamente aos EUA. Assim, mesmo com algumas concessões que

permitiram o controle de capitais, os Estados Unidos consolidaram-se como o centro da

ordem capitalista pós-II Guerra (EICHENGREEN, 2000; MATTOS, 2000; SERRANO,

2004).

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Apesar dos EUA apareceram como o espaço capitalista pioneiro de desenvolvimento do New

Deal, também a Europa e o Japão conheceriam a aplicação dos seus principais elementos

constitutivos, sobretudo quando da imposição americana ao financiar suas reconstruções

depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Em particular, deve-se destacar a afinidade do

Plano Marshall, aplicado à reconstrução dos países capitalistas da Europa Ocidental, ao

modelo de demanda efetiva e seus enquadramentos institucionais. Por conseguinte, essa

orientação, como um dos elementos que visava à recolocação da economia capitalista nos

trilhos da expansão da acumulação, é introduzida principalmente naquele núcleo de países que

passaria a ser considerado como o núcleo orgânico do sistema no plano mundial.

O acordo de Bretton Woods não conseguiu sanar os graves problemas da Europa, pois a

limitação de empréstimos para os países deficitários no balanço de pagamentos – naquele

momento todos os países europeus - restringia a possibilidade de sua reconstrução. A

instabilidade econômica (crise da libra esterlina em 1947) e política na Europa criaram um

terreno fértil para a possibilidade da tomada do poder estatal por partidos comunistas, o que,

por sua vez, poderia provocar um alinhamento de alguns países europeus ocidentais ao bloco

socialista. Certamente este resultado potencial ampliaria o poder da União Soviética no

âmbito da Guerra Fria que se iniciou em 1947, e, principalmente, poderia elevar o poder da

classe trabalhadora numa nova correlação de forças entre o capital e o trabalho. Entrementes,

antes de possíveis vitórias da classe trabalhadora socialista em território europeu ocidental, os

Estados Unidos adotaram a estratégia da “exportação de capital”, em grande monta, através

do Plano Marshall para reduzir a instabilidade sócio-econômica européia e para ampliar os

tentáculos da grande empresa hierarquizada e “verticalizada” norte-americana. Segundo

Arrighi (1996, p. 306) o “Plano Marshall iniciou a reconstrução da Europa Ocidental à

imagem norte-americana e, direta e indiretamente, deu uma contribuição à ‘decolagem’ da

expansão do comércio e da produção mundiais da década de 1950 e 1960”.

Para Brenner (2003) a expansão econômica do pós-guerra (1950-60) vinculou-se à capacidade

do núcleo de países capitalistas avançados realizarem e sustentarem altas taxas de lucro14,

produzindo superávits relativamente elevados a partir do uso de capital fixo/estoque de capital

(instalações e equipamentos). No entanto, Brenner (2003) não apresenta, ou apenas

14 Entre 1950 e 1970, a taxa de lucro líquido do setor manufatureiro, em média anual, foi de 24,3% nos EUA, de 23,1% na Alemanha e de 40,4% no Japão (BRENNER, 2003).

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tangencia, os novos elementos institucionais que proporcionaram aos países centrais a

capacidade de sustentar a taxa de lucro nos anos 50 e 60, delegando à política, portanto, em

sua análise, um caráter secundário.

Na verdade, a sustentabilidade das taxas de lucro em um patamar elevado só foi factível a

partir de um renovado arranjo político, articulado ao final da II Guerra, ou seja, uma nova

institucionalidade, tanto em níveis inter e intra-estatais quanto no plano gerencial-

administrativo da produção. Com isso, a tarefa de regulação da concorrência intercapitalista e

de arrefecimento da contradição entre capital e trabalho nos espaços nacionais foi facilitada

pelo novo controle social estruturado em certas concessões aos trabalhadores. Na Europa

empregou-se o reformismo social-democrata assentado da “participação” dos trabalhadores

em “associação” com os capitais, já nos Estados Unidos configurou-se uma racionalização

fordista/taylorista que possibilitava ganhos salariais aos trabalhadores.

A intensa acumulação de capital ocorrida nos anos dourados aconteceu a partir do núcleo

funcional composto pela grande empresa, aprofundando sua penetração nacional e

internacional, e do Estado planejador e produtor, mediante forte intervencionismo e

“regulação”. Entretanto, essa mesma receita pouco contribuiu para que os países periféricos

lograssem diminuir o fosso que os separavam do núcleo orgânico do sistema, confirmando o

desenvolvimento desigual e hierarquizado do capitalismo.

A expansão da atuação da grande empresa15 americana no pós-II Guerra, para além dos

espaços nacionais que as sediavam originariamente, caracterizou uma nova etapa da

“exportação de capital”: num primeiro momento, por meio de gastos militares e do Plano

Marshall; e num segundo momento, após o Plano, pela internacionalização do capital privado

americano, financeiro e principalmente industrial, para a Ásia e a América Latina. Tornou-se

possível, com isso, um reordenamento na divisão internacional do trabalho, já que a revolução

tecnológica então experimentada permitiu um avanço da integração dos países

subdesenvolvidos ao mercado mundial de tal forma a elevá-los também à posição de

15 A grande empresa teve, ao longo de quase todo séc. XX, o binômio taylorista/fordista como a expressão dominante da gestão da produção e seus respectivos processo de trabalho. Tal arranjo da produção estava baseado na produção em massa de mercadorias mais homogeneizadas e na estrutura organizacional “verticalizada” (ANTUNES, 1999).

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produtores de bens acabados. Emerge, então, um novo quadro que apenas confirmaria a

inexorável atuação das leis econômicas do capitalismo como fatores de impulsão ao

deslocamento dos capitais entre os diversos espaços geográficos do planeta. No interior desse

processo, os novos interesses das empresas multinacionais européias e, principalmente,

americanas nas regiões atrasadas do planeta levaram-nas, por conseguinte, a ampliar o espaço

de vigência das relações capitalistas de produção (PINTO & BALANCO, 2004).

As elevadas taxas de lucro alcançadas pelas economias avançadas no pós-IIGuerra

propiciaram a manutenção de altos índices de investimentos, gerando uma aceleração da

produtividade, associados a um crescimento rápido dos salários reais sem ameaçar os lucros.

Nesse período, a maioria das economias capitalistas avançadas, e algumas subdesenvolvidas,

vivenciaram um longo boom econômico. Materializaram-se altas taxas de crescimento do

investimento (privado16 e estatal), da produção17, da produtividade18 e dos salários19 nunca

vistos historicamente, enquanto constatavam-se pequenos níveis de desemprego20 e de

inflação21 e processos recessivos mínimos (BRENNER, 2003).

O crescimento econômico dos anos dourados foi materializado a partir da articulação entre

crescimento das taxas de lucro e dos salários reais - economia da demanda efetiva – a partir

de uma nova institucionalidade voltada à harmonização das relações entre capital e trabalho.

Essa articulação harmonizadora tornou-se viável, conjunturalmente, em virtude de

determinados eventos políticos, quais sejam, a Segunda Guerra Mundial e a posterior

16 Verificou-se um crescimento relevante do estoque de capital (economia das empresas privadas), entre 1960 e 1969, de 3,9% nos Estados Unidos (estoque líquido), de 11,3% no Japão (estoque bruto), de 6,6% na Alemanha (estoque bruto), e de 4,8% no G-7 (estoque bruto) (BRENNER, 2003, p.93). 17 Entre 1950 e 1973, a economia mundial cresceu 4,9%, em média anual, recorde histórico. Tal crescimento foi puxado pela França e Alemanha, na Europa, que cresceram 5,0% e 6,0%, respectivamente; pelo Japão, na Ásia, que cresceu 9,2%; e pelo Brasil, na América Latina, que cresceu 6,8% (GONÇALVES, 2002, p. 108). 18 As taxas de produtividade da mão-de-obra dos países centrais (PIB/trabalhador) alcançaram seus maiores crescimentos entre 1960 e 1969. Naquele período ocorreu um alto crescimento nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha, na União Européia e no G-7 de 2,5%, 8,6%, 4,3%, 5,2% e 4,8%, respectivamente (BRENNER, 2003, p. 93). 19 Os salários reais, entre 1960 e 1973, elevaram-se fortemente nos países centrais. Nos Estados Unidos, no Japão, Alemanha e na União Européia ocorreram crescimentos dos salários de 2,8% (por hora), 7,7% (por pessoa), 5,4% (por pessoa) e 5,6% (por pessoa), respectivamente (BRENNER, 2003, p. 90). 20 Na década de 1960, as taxas de desemprego alcançaram os menores índices do século XX. 21 As baixas taxas de inflação dos anos dourados podem ser consideradas, em certa medida, surpreendentes num contexto de altas taxas do produto e do emprego. Na verdade, a estabilidade de preços teve como fatores relevantes o regime de cambio quase fixo de Bretton Woods e o controle, por parte dos norte-americanos, do petróleo do Oriente Médio. Isso, por sua vez, garantia a estabilidades dos preços das commodities negociadas internacionalmente, inclusive o petróleo (SERRANO, 2004)

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consolidação do bloco socialista, conformando a divisão do mundo em dois pólos. No pólo

capitalista os Estados Unidos buscaram configurar o êxito econômico para seus aliados e

concorrentes como uma forma de consolidar a ordem capitalista – um mundo seguro para a

livre empresa – e combater o regime comunista. Nesse cenário, o Estado imperialista

americano, já consolidado como hegemônico, arquitetou uma cooperação antagônica entre os

principais países capitalista, ou seja, uma cooperação entre Estados capitalistas concorrentes

(THALHEIMER apud MEYER, 2000), alçando o crescimento econômico e o progresso a

uma questão de segurança nacional e de manutenção da ordem capitalista regulada.

O processo de expansão mundial não ocorreu de forma simultânea no núcleo dos países

avançados. Na verdade, os EUA, pelas suas condições econômicas e materiais no final da

Segunda Guerra Mundial, saíram na frente no processo de expansão, provocando um

crescimento temporalmente desigual entre os Estados Unidos, Europa e Japão. Quando a

Europa e o Japão atravessaram os seus auges expansionistas a economia doméstica americana

já vivenciava um processo de declínio relativo. Essa dinâmica mundial diacrônica garantiu a

contínua vitalidade das forças dominantes dentro dos Estados Unidos, pois o desenvolvimento

mais tardio, após a II Guerra, da Europa e do Japão, em relação ao norte-americano,

representou, por um lado, oportunidades de expansões externas para as empresas

multinacionais e os bancos americanos, configurando canais de lucratividade para os seus

investimentos diretos. Por outro lado, significou o crescimento das exportações dos

produtores internos americanos que necessitavam de uma demanda estrangeira de crescimento

acelerado (BRENNER, 2003).

O êxito econômico estadunidense, como centro da economia-mundo capitalista, portanto,

esteve atrelado ao sucesso de seus concorrentes e aliados capitalistas e à manutenção da

ordem capitalista regulada. Isto propiciou, ainda que sob hegemonia dos Estados Unidos, um

maior grau de cooperação e coordenação internacional – Plano Marshall e sistema financeiro

internacional “regulado”: Bretton Woods -, marcado por altos níveis de apoio político-

econômico dos norte-americanos a seus aliados e concorrentes. Nesse período a hegemonia

americana foi exercida através de um comportamento dual, coercitivo e persuasivo, com o

aspecto persuasivo ocupando maior destaque na política internacional norte-americana

(MEYER, 2000).

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Sem dúvida, tornava-se muito claro que o capitalismo resolvera adotar um modelo de

desenvolvimento de inquestionável inspiração keynesiana22, portanto, privilegiando o

princípio da demanda efetiva como norma teórica tanto no plano econômico como no cultural.

Coube ao Estado o papel de controle do ciclo econômico e de disseminação da cultura

burguesa23 do consumo e da eficiência aos moldes norte-americanos (American Way of Life)

através do consumo de massa e das transformações ideológicas dos indivíduos – um novo tipo

humano. À medida que as organizações trabalhistas assimilavam tal cultura aumentava a

integração passiva dos trabalhadores aos rumos assumidos pelo movimento do capital em sua

globalidade.

Um desses mecanismos estatais, no plano econômico, foi a estrutura de regulação da moeda e

do sistema de crédito adotada por Roosevelt24. Assim, constituiu-se uma nova ordem

monetária em que as autoridades monetárias do Estado (Bancos Centrais) podiam interferir na

oferta de moeda tanto de forma direta, alterando a quantidade de moeda em circulação, quanto

de forma indireta por meio da regulação das atividades de criação monetária dos bancos

comerciais. Isso possibilitou a criação de uma oferta elástica de moeda a juros baixos através

do aumento das despesas financiadas pelo endividamento. Esse processo originou uma

“monetização” das dívidas e permitiu financiar, simultaneamente, os déficits orçamentários

crônicos do Estado previdenciário, os investimentos necessários à difusão de tecnologias da

produção fordista e as normas de consumo sociais de consumo de massa de bens mais caros,

tais como automóveis e casas (GUTTMANN, 1998).

A justificativa para a intervenção estatal na economia, sob influência do planejamento, em

boa medida, foi explicada em vista da profunda destruição econômica causada pela Grande

Depressão de 1929 e pela II Guerra. Nesse cenário deletério seria uma quimera acreditar que

22 A leitura keynesiana, como apresentada neste trabalho - a mesma defendida por Oliveira (2004) -, não se reduz apenas ao plano econômico: adoção, por parte do Estado, de políticas ativas de criação de demanda agregada e de instrumentos passivos (regulação) de natureza monetária buscando a simples reativação do controle do ciclo; mas também ao plano cultural, na medida em que o Estado disseminou a cultura burguesa do consumo e eficiência através do consumo de massa (Oliveira, 2004). 23 O acesso aos bens e serviços representaria a felicidade individual e para tanto os envolvidos na produção deveriam se comprometer com a eficiência. 24 A regulação do sistema financeiro americano pós-crise de 1929 esteve assentado na Glass-Steagall Act (1933) e pelo Securities Exchange Act (1934) e estruturou-se “em três princípios: a) proteção estatal que incluiu o sistema de seguro dos depósitos e mecanismos de supervisão; b) restrição à competição exacerbada entre instituições financeiras; c) intenção de dar transparência na gestão dos negócios” (Braga e Cintra, 2004, p. 257). Essas medidas tinham como objetivo regular a interação creditícia e especulativa inter-organizações financeiras e entre bancos e indústria.

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semelhante situação poderia ser revertida rapidamente apenas com base nos mecanismos

espontâneos do mercado e da livre-iniciativa. A destruição econômica e eventos do plano

político - intensificação da luta de classes na Europa e a construção do “socialismo real”

soviético - forçaram o engendramento, por parte do capital, de estratégias contra-ofensivas de

caráter preservativo pautadas na harmonização entre as classes através de algumas

concessões25 aos trabalhadores: o chamado compromisso keynesiano/fordista. Quanto maiores

fossem os poderes dos movimentos operários nacionais, maiores eram as concessões por parte

dos gerentes e representantes do capital. Assim, tal arranjo institucional “harmonicista” foi

assumindo características bastante distintas em cada país, face ao nível nacional de correlação

de força entre as classes. Isso explica, até certo ponto, as formas diferenciadas da

harmonização implantadas nos Estados Unidos e na Europa e a predominância da coerção aos

movimentos trabalhistas nos países periféricos.

Na Europa ocidental, ou na Europa que continuaria capitalista depois dos acordos de

coexistência pacífica firmados entre EUA, Inglaterra e URSS ao final da Segunda Guerra, o

compromisso keynesiano/fordista, como estratégia de harmonização, teve que assumir um

caráter mais amplo denominado “pacto social”26, o qual também foi transplantado tanto para o

plano macroestrutural (regulação institucional: Welfare State) quanto para o da produção

(certa “participação” dos trabalhadores nos processos organizacionais e ganhos salariais

reais), haja vista a grande insurgência das organizações dos trabalhadores europeus.

Nos Estados Unidos o compromisso keynesiano/fordista voltou-se, prioritariamente, ao

âmbito da produção mediante a racionalização taylorista/fordista. Esse processo proporcionou

ingentes ganhos de produtividade, os quais foram em parte repassados aos salários dos

trabalhadores norte-americanos. A maior intermediação, nos Estados Unidos, das instâncias

políticas e ideológicas no processo de harmonização não se fez necessária face à pequena

articulação dos movimentos operários estadunidenses – sindicalismo reformista à semelhança

25 Vale ressaltar que essas concessões visavam contornar a ofensiva operária sem, no entanto, atingir a legitimidade do domínio do capital. 26 A “concertação” do “pacto social”, que perpassava pelo consenso negociado e pela harmonização das relações sociais entre capital e trabalho sob orientação social-democrata, assentou-se numa nova aliança de classe que concedia aos trabalhadores certas benesses em troca do fim das lutas mais radicais orientadas ao deblacê do sistema capitalista. A classe capitalista só aceitou fazer certas concessões em virtude do aumento, no primeiro quartel do século XX, das constantes insurgências, greves e revoluções da classe trabalhadora contra a ordem vigente nos países europeus industrializados e do “perigo” comunista que rondava o ocidente (Oliveira, 2004).

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das trade unions inglesas - e suas reivindicações de caráter muito mais salarial dos que anti-

sistêmico.

Gramsci, no seu ensaio Americanismo e Fordismo, fora um dos primeiros a perceber a

relevância da gestão taylorista/fordista para o processo de harmonização social nos EUA. Para

ele, o ganho com essa nova gestão da produção viabilizou

[...] racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força (destruição do sindicalismo operário de base territorial) com a persuasão (altos salários benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política habilíssima) para, finalmente, basear toda a vida do país na produção. A hegemonia [do capital] vem da fábrica e, para ser exercida, só necessita de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia (GRAMSCI, 1978, p. 381-2).

Nos países periféricos a relação entre os representantes do capital e os movimentos operários

não assume a forma de compromisso keynesiano/fordista e sim de maior coerção, uma vez

que tais economias dependentes estruturavam-se num modelo de capitalismo desarticulado -

voltado para exportação ou para o consumo interno de bens de luxo - e alicerçado na

“superexploração” do trabalho. Tal dinâmica capitalista dependente conformava um grande

“exército industrial de reserva”, o que, em certa medida, restringia a ampliação das bases das

organizações operárias. Com a correlação de força pendendo fortemente a favor do capital

não se fazia necessária à harmonização de classes nos países periféricos. A coerção foi a arma

principal do capital para se impor como dominação. Ao sinal de “subversão” dos

trabalhadores à “superexploração” e, por conseguinte, ao sistema estabelecido, os

representantes das frações dos capitais nacionais articulavam-se entre si27, com os

representantes das forças armadas, com parte das classes médias locais e com o grande capital

forâneo para manter a ordem estabelecida. O instrumento de manutenção da acumulação e,

conseqüentemente, dessa ordem capitalista dependente, fora o golpe militar e a respectiva

implantação de regimes ditatoriais, pois estes facilitavam a extração de mais-valia dos

trabalhadores através da repressão dos salários e da coerção da organização livre dos

movimentos operários. A “ajuda” estrangeira para manutenção da ordem, geralmente, vinha

dos organizadores do sistema capitalistas (EUA), quer seja através de intervenções militares

27 Em momento de possíveis rupturas sistêmicas as frações das classes dominantes deixam de lado, pelo menos temporariamente, os seus conflitos, associados à apropriação e à repartição da riqueza, em prol de instrumentos de manutenção da hegemonia do capital.

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violentas (Coréia, Vietnã, e República Dominicana), quer seja incitando e sustentando política

e economicamente golpes militares e ditaduras ao redor do mundo (Brasil, Chile, Argentina,

Grécia, Uruguai etc.). Ao utilizar tais instrumentos, o Estado norte-americano estava

buscando proteger os interesses de suas empresas multinacionais (grande capital) e, por

conseguinte, defender sua posição central na economia mundo capitalista, além, é claro, da

hegemonia do capitalismo como sistema social.

Em linhas gerais, a arquitetura de regulação e coordenação, sob controle norte-americano,

seria ainda ampliada à dimensão internacional. O capitalismo colocou em prática um

mecanismo “regulatório” direcionado para o controle das relações entre países, abarcando,

dessa maneira, os fluxos financeiros e de mercadorias. Os acordos de Bretton Woods

resultaram na substituição definitiva do padrão-ouro pelo padrão dólar-ouro e na construção

de uma estrutura institucional baseada em organismos como o FMI, o Banco Mundial e o

GATT, sob a égide dos EUA. A principal preocupação vinculava-se à necessidade de evitar

mudanças bruscas e imprevisíveis, amenizando a autonomia dos fluxos financeiros

especulativos e potencialmente portadores de elementos desestabilizadores. Depois de 1944,

quando os acordos de Bretton Woods foram firmados, prevaleceu até 1971 um controle

relativo que acabou por privilegiar os fluxos de mercadorias e de investimento direto

mediante um sistema de taxas de câmbio fixas fortemente administrado.

O excesso de liberdade para os movimentos dos capitais, das duas primeiras décadas do séc.

XX, daria lugar a uma condução econômica estatal planejada de perfil anti-cíclico associada

ao controle social via harmonização. Dessa forma, o papel da demanda agregada, no plano

socioeconômico, passou a ser decisivo, o que implicou na elevação para o primeiro plano de

dois elementos desta macroestrutura, a saber, os gastos em consumo privado e as despesas

público-estatais. No que diz respeito à função do consumo neste modelo, tornou-se necessário

estabelecer uma estrutura institucional de “reforçamento” dos rendimentos do trabalho e de

elevação do nível de emprego.

O redimensionamento do Estado configurou-se como um dos principais componentes

estruturais do padrão de acumulação colocado em prática naquele período. Este

redimensionamento, por um lado, expressou os novos componentes de controle social

supracitado e, por outro, atribuiu ao Estado o papel de esfera produtiva no interior da divisão

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social do trabalho da economia. Todavia, não corresponde integralmente, e nem poderia, ao

conceito de esfera produtiva tal qual aquela da categoria capital industrial como teorizado por

Marx (1986) em sua interpretação da reprodução capitalista. No padrão de desenvolvimento

dos anos dourados o Estado cumpre uma atuação de inspiração keynesiana, o que significa

dizer que, no plano econômico, o mesmo passa a se responsabilizar direta e indiretamente

pela efetivação de uma determinada taxa de investimento, constituindo-se, por conseguinte,

em fonte de estabilidade cíclica.

Além disso, o Estado passa a ser fonte de financiamento fundamental ao capital produtivo.

Tendo em vista a atrofia da esfera financeira e seu descolamento relativamente à esfera

produtiva, tal como se apresentou no período anterior à grande depressão, as amplas reformas

introduzidas pelo New Deal, e propagadas para a Europa e Japão, levaram a uma modificação

drástica da estrutura de financiamento da economia. Isso significou uma ampliação da atuação

estatal neste campo, uma vez que bancos, agências de financiamento e organismos de fomento

de caráter público/estatal foram criados. O próprio segmento privado do setor financeiro

passou por um processo de saneamento, ficando sujeito a legislações voltadas ao estímulo das

atividades produtivas. Esses dispositivos de ampliação do financiamento do setor produtivo

constituíram-se na outra faceta relacionada à importância adquirida pelo endividamento

público, como instrumento que possibilitava a consecução de políticas fiscais expansionistas

(déficit orçamentário) voltadas ao controle dos ciclos econômicos.

Neste contexto, o gasto público assume um significado relevante à dinâmica capitalista. Sem

sombras de dúvida, em meio à fase de prosperidade experimentada pelos países centrais, a

dívida pública torna-se um dos componentes da acumulação produtiva. Ao lado dos elementos

favoráveis à acumulação de capital, entre eles, o arrefecimento da luta de classes, a inovação

tecnológica e organizacional, o padrão de consumo de massas e a introdução das relações

capitalistas em novos espaços geográficos do planeta, a dívida pública cumpriu seu papel a

contento ao se transformar em fonte de estabilidade cíclica e de acumulação. Portanto, a

transferência de parte da riqueza e da renda para o Estado - e sua redistribuição sistêmica

integradora de um mecanismo reprodutivo favorável aos capitais privados na esfera não

financeira - foi tolerada sem maiores questionamentos até que o padrão de acumulação

começasse a se esgarçar. Isso começou a ocorrer no final da década de 1960.

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Os primeiros sinais de reversão da expansão de cerca de três décadas surgem ao final da

década de 1960. Desde então, a economia capitalista passou a conviver com uma significativa

inflexão da taxa geral de lucro e dos níveis de acumulação gerados por uma grave crise. Em

paralelo, como conseqüências típicas dos processos recessivos, a redução das taxas de

investimento e crescimento foi acompanhada de resultados sociais amplamente negativos.

Destaca-se assim, entre outros, o aumento do desemprego e seu caráter crônico,

principalmente, nos países avançados da Europa ocidental e nos EUA (BRENNER, 1998).

Assim fica muito claro que o dispositivo “regulatório” tanto “harmonicista” quanto coercitivo

aplicado ao mundo do trabalho nos mais diversos países reduziu as resistências dos

trabalhadores à exploração, o que viabilizou a retomada do processo de acumulação e, por

conseguinte, dos níveis de lucratividade que o capitalismo veria desaparecer com a eclosão da

crise na década de 1970.

1.3. A crise dos anos 70 em perspectivas e suas saídas “internas” e “externas”:

impedimentos à acumulação ou à dominação? Um debate contraditório

Por volta do final dos anos 60 o boom econômico “virtuoso” dos anos dourados começou a se

deteriorar. O padrão de acumulação assentado em normas “regulatórias”, no planejamento

econômico e na harmonização entre as classes apresentava sinais de esgotamento. Assim,

como na crise agrária de 1873 e na crise de 1929, fortes restrições se impuseram à

continuidade do processo de acumulação da ordem capitalista regulada e “harmonicista”.

O esgotamento desse padrão criou um contexto socioeconômico de instabilidade e incerteza

quanto à trajetória societal. Tal fenômeno “problemático” suscitou diversas perspectivas para

sua explicação e soluções. Será que o sistema capitalista estaria atravessando um

ciclo/momento econômico e/ou institucional ou tecnológico desfavorável? A partir de um

determinado diagnóstico tal ciclo poderia ser corrigido mediante (i) políticas

macroeconômicas de regulação e planejamento de inspirações keynesianas e kaleckianas; ou

(ii) um novo modo de regulação institucional pautado no regulacionismo francês; ou (iii) a

conformação de um novo paradigma tecnológico de origem neo-schumpeteriana; ou ainda (iv)

novos rearranjos privados auto-regulados (“teóricos da especialização flexível”) ou regulados

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por um Estado liberal, sob uma perspectiva neoclássica. Ou será que se estaria vivenciando

uma terceira crise estrutural28, como defendido por correntes marxistas, que poderia ser

solucionada, pelo lado do trabalho, por uma ruptura anti-sistêmica ou, pelo lado do capital,

por transformações socioeconômicas de grande envergadura que propugnaria um novo padrão

de acumulação?

Para os neoliberais29 - liberais que não admitiam intervenções do Estado na atividade

produtiva -, a crise da década de 1970 não teve origem em problemas na demanda, mas, sim,

no poder excessivo dos sindicatos, que pressionavam tanto as empresas por maiores salários

quanto o Estado pelo aumento dos benefícios sociais. Isso, por sua vez, levaria à compressão

dos lucros, corroendo as bases da acumulação das empresas e acelerando a inflação. A partir

desse diagnóstico as propostas e ações neoliberais vão todas no intuito de desestruturar o

compromisso keynesiano/fordista dos anos dourados e engendrar uma nova forma de Estado.

Para tanto, fazia-se necessário (i) romper com o poder dos sindicatos, buscando restaurar a

taxa “natural de desemprego”; (ii) desregulamentar os diversos mercados, principalmente o

financeiro e o de trabalho; e (iii) reduzir as intervenções estatais no campo econômico e

social, ou seja, substituir a regulação keynesiana pela “livre concorrência”, com o Estado

assumindo uma dimensão mínima e forte para manter a ordem e a livre iniciativa.

Apesar da apregoada oposição dos diversos pensamentos teóricos supracitados, quase todos

eles, a exceção dos neoliberais e de algumas correntes marxistas,

[...] se baseavam nas evidências conjunturais [da crise dos anos 70], cujos registros estavam fundados essencialmente nas dificuldades de realização das mercadorias produzidas. Desse modo, terminava por rodar em círculos e a construir identidades problemáticas: não realiza porque não há renda, ou não há renda porque não realiza (OLIVEIRA, 1999, p.58).

28 Para Marx a crise real só pode ser explicada pelo movimento real e dialético da produção, materializado na contradição entre capital e trabalho, e do conflito intercapitalista configurado a partir da concorrência e do crédito capitalista. 29 O neoliberalismo nasceu na Europa, logo após a 2a Guerra Mundial, e teve como texto seminal o livro O caminho da servidão de Friedrich Hayek. A Sociedade de Mont Pélerin foi o eixo de resistência dos pensadores neoliberais os anos dourados do capitalismo, uma vez que tais ideólogos se reuniam de dois em dois anos, com o intuito de reforçar o combate ao keynesianismo e ao solidarismo, buscando preparar as bases para um capitalismo sem regulação estatal.

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Por outro lado, o diagnóstico da crise baseado na insuficiência de demanda, como formulado

pelos kaleckianos e keynesianos, não se chocava completamente com o que postulava os

liberais intervencionistas que admitiam certas correções voltadas ao equilíbrio entre demanda

e oferta via rearranjos privados auto-regulados ou regulados por um Estado liberal (agências

reguladoras). Mesmo algumas correntes marxistas, em certa medida, para direcionarem

alternativas à crise, depois de efetuarem diagnósticos assentados em leituras d’ O capital, no

que se refere à lei da tendência decrescente da taxa de lucro e ao problema de realização,

adotaram uma mescla da estrutura teórica de Keynes e Kalecki (OLIVEIRA, 1999).

No campo liberal, os teóricos da especialização flexível, associaram a crise dos anos 70 à

insuficiência de demanda, diferentemente da visão neoliberal. Piore & Sabel, principais

representantes dessa visão, enxergavam a crise a partir da falta de demanda dos bens de

consumo duráveis, ou seja, crise do regime de acumulação fordista. Para eles a crise foi

provocada por dois elementos, quais sejam: (1) os choques exógenos e (2) a limitação da

procura por produtos padronizados. Os choques exógenos (acidentes ou erros), vinculados às

crises do petróleo de 1973 e 1979 e às políticas econômicas equivocadas, destruíram a

regulação da inflação e desestimularam o investimento, ocasionando a queda da produtividade

e do emprego. O segundo aspecto crítico, segundo tais autores, refere-se ao próprio

esgotamento da demanda, que se dá, por um lado, pela falência da possibilidade de

manutenção de uma procura por produtos com pouca opção de escolha e, portanto, altamente

massificados ou padronizados, e, por outro lado, pelo aumento da concorrência no mercado

internacional, provocado pela entrada de novos países industrializados. Dessa forma, tanto os

choques exógenos como os próprios limites da demanda contribuíram para a sua redução.

Emerge daí, portanto, uma procura por produtos artesanais, mais elaborados e exclusivos,

como opção aos produtos padronizados ofertados até então (PIORE & SABEL, 1984).

Para tal corrente, a crise poderia ser sanada pela assunção da especialização flexível baseada

em novas formas organizacionais e produtivas, vinculadas à diferenciação de produtos; à

introdução de técnicas de produção flexível; à descentralização interna da grande empresa; à

configuração de sistemas autônomos de PME´s; e às mudanças nos padrões de territorialidade

ligados a alocação de recursos. Ainda neste eixo, Corò (2001) observa que os sistemas de

pequenas e médias empresas, localmente circunscritas, especializadas em produtos ou

processos industriais singulares, não constituem apenas um fenômeno de natureza

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conjuntural, ou uma anomalia da organização produtiva predominante. Ao contrário, é cada

vez mais forte, segundo Corò (2001), a idéia de que tais sistemas produtivos localizados,

especialmente os distritos industriais marshallianos (DIM’s), poderiam representar uma saída

para o impasse da produção em massa. Portanto, os DIM’s seriam uma das formas mais

adequadas da organização da produção pós-fordista. Garofolli (1994) também destaca o papel

do sistema baseado em PME’s, considerando-o como o modelo de desenvolvimento endógeno

alternativo à crise. Assim, os modelos de acumulação flexível, baseados em PME’s, como o

caso da terceira Itália, são, para tais autores, muito mais que casos particulares, mas uma

tendência à superação da rigidez fordista.

Em suma, para os “teóricos da especialização flexível”, o desenvolvimento endógeno, ou

desenvolvimento de “baixo para cima”, seria a saída mais viável e representaria um novo

modo de acumulação assentado em sistemas locais de produção que teriam capacidade de

agregar valor ao processo produtivo através da produção artesanal, da sinergia entre

trabalhadores e empresários, e das externalidades geradas pela aglomeração, resultando numa

contínua ampliação do emprego, do produto e da renda local.

A alternativa à crise, dessa visão liberal, portanto, seria construída através de um novo

rearranjo privado - ao molde pensado por Marshall - que levaria ao bem-estar social das

regiões, crendo, piamente, na capacidade, nas vontades e nas iniciativas dos atores de uma

comunidade empreendedora e solidária, que teria autocontrole sobre o seu destino e poderia

promover uma governança virtuosa (BRANDÃO, 2002 e 2004).

Na verdade, esta perspectiva é uma idealização do particular e do local e, em certa medida,

um retorno às idéias liberais marshallianas construídas em uma estrutura capitalista

concorrencial completamente diferentes da estrutura monopolista atual. Portanto, essa

alternativa à crise funciona muito mais como uma espécie de slogan destinado a criar um

sentimento de pseudocomunidade, como compensação da derrocada e da desintegração de

lugares importantes e significativos com as transformações em curso, do que uma alternativa

viável a um novo padrão de acumulação (BUSATO & PINTO, 2004 e 2005).

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Para os neo-schumpeterianos30 a crise seria uma manifestação periódica (ciclos ou ondas

longas), autodeterminada e autogerada associada ao esgotamento de um determinado

paradigma tecnológico, a força motriz do capitalismo. Tal interpretação da crise assenta-se no

velho empirismo que tem como um de seus principais representantes o economista russo N.

D. Kondratieff, que a partir da análise dos movimentos de preços de atacados em vários países

industrializados, detectou uma cronologia das flutuações longas. Para os schumpeterianos e

neo-schumpeterianos as ondas longas de ascendência e descendência (crise) seriam

determinadas pelas transformações do paradigma tecnológico.

A saída da crise, segundo os neo-schumpeterianos, dar-se-ia, pelo lado da oferta, a partir da

configuração de um novo paradigma tecnológico, tendo em vista que o paradigma da

microeletrônica não conseguiu reverter a queda da lucratividade do sistema econômico. Tal

paradigma novo proporcionaria uma nova fase de expansão do investimento e do produto.

Para eles, a via “revolucionária” de superação da crise seria a biotecnologia, ou a

bioeletrônica31, já que, através da engenharia genética, poder-se-ia ocorrer uma ruptura do

fluxo circular, tanto em termos das técnicas utilizadas como em termos de suas aplicações,

viabilizando a criação de novos organismos a serviço da produção de riquezas (PEREZ,

1986). Assim sendo, a biotecnologia, como inovação estrutural, levaria a uma fase de

obtenção de lucros acima do normal pelas empresas inovadoras e atrairia empresas

imitadoras, resultando na elevação do nível de riqueza.

Essa visão tem um caráter pragmático à medida que confunde, em linhas, a crise como uma

manifestação periódica, autodeterminada e autogerada. Percebe-se um esforço de

neutralização das principais determinações da crise, sendo esta um fenômeno estritamente

ligado ao paradigma tecnológico. Para tal corrente a ciência e a tecnologia (paradigma

30 A concepção neo-schumpteriana – que tem como principais representantes Fremann, Dossi, Winter e Carlota Perez - está pautada na obra de Schumpeter, que interpreta o ciclo econômico a partir da inovação e da difusão, a qual apresenta a seguinte dinâmica: em um determinado momento “inicial” todos os empresários estariam obtendo “lucro normal” (reprodução simples), essa situação só seria modificada se um deles, através do seu “instinto inovador”, implementasse determinada inovação. Desse modo, ele conseguiria obter lucros acima do normal; tal atitude seria imitada pelos demais empresários, desencadeando uma onda de difusão via imitação (fase de ascendência do ciclo) e, por conseguinte, ocorreria a expansão do investimento, incentivada por rendas temporárias de monopólio obtidas pelo empresário inovador. Quando a difusão da inovação chegasse a seu máximo, o lucro do setor tende a retornar a zero. Isso ocorria devido à sobre-capacidade engendrada pelo grande número de imitadores, caracterizando a fase de declínio do ciclo econômico (SCHUMPETER, 1984). 31 A bioeletrônica é objeto de crescente interesse no desenvolvimento de novas tecnologias, via fabricação de “biochips”, através da utilização de células com capacidade de memória cem mil vezes maior que os chips atuais e maior velocidade de operação.

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tecnológico) teriam uma lógica autônoma e apresentariam uma trajetória independente. No

entanto, a ciência e a tecnologia estão vinculadas às condições sociais do sistema econômico e

dependem do seu movimento reprodutivo.

O maior dilema da ciência moderna é que o seu desenvolvimento esteve sempre vinculado ao dinamismo contraditório do próprio capital. Além do mais [...] a ciência moderna não pode deixar de ser orientada para a implantação, a mais efetiva possível, dos imperativos objetivos que determinam a natureza e os limites inerentes ao capital, assim como seu modo necessário de funcionamento sob as mais variadas circunstâncias. [...] A obtenção da justa disjunção entre ciência e as determinações capitalistas destrutivas é concebível somente se a sociedade como um todo tiver sucesso em sair fora da órbita do capital e proceder um novo patamar – com princípios de orientação diferentes (MÉSZÁROS apud ANTUNES, 1999, p. 122-123).

Para Lipietz (1989), um dos principais representantes da Escola da Regulação Francesa, a

crise seria um fenômeno orgânico do capitalismo em virtude do seu caráter intrínseco atrelado

ao movimento e ao funcionamento contraditório do sistema. A contradição estaria no âmago

da relação salarial, já que, sendo a taxa de exploração muito acentuada, existiria a ameaça de

uma crise de superprodução. Ao contrário, se a taxa é muito fraca, a possibilidade de sub-

investimento poderia se efetivar.

Nesse arquétipo teórico, a crise emergiria em virtude do descompasso temporal/histórico entre

as estruturas econômicas e os seus elementos de regulação32. Dessa maneira, a crise do regime

de acumulação fordista33, da década de 1970, delineou-se à medida que surgiram dificuldades

para a manutenção da estrutura macroeconômica keynesiana/fordista, em vista da queda da

produtividade, do aumento dos salários reais e do aumento da concorrência do setor

manufatureiro, elementos estes geradores da redução dos lucros (LIPIETZ, 1989). Para

Aglietta (1979), as condições gerais da crise somente são apreendidas a partir das leis de

regulação do capitalismo, pois estas satisfazem o princípio da invariabilidade e conformam

historicamente uma determinada relação salarial, implicando, por conseguinte, que a crise do

32 O modo de regulação inclui, entre outras coisas, as formas de determinação dos salários diretos e indiretos, de concorrência e de coordenação interempresas e da gestão da moeda. 33 O regime de acumulação fordista foi estruturado a partir de acordos salariais coletivos, que viabilizaram a demanda efetiva para produtos padronizados, e de um novo sistema de proteção social, que tinha como objetivo manter o status de consumidor aos trabalhadores desempregados.

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regime de acumulação fordista estaria associada à contestação dos fundamentos do modo de

regulação.

Vejamos os sinais do esgotamento apontados por Aglietta (1979): 1) A evolução da

organização do trabalho que, em sua aplicação cada vez mais mecânica, tendeu a provocar o

esgotamento das potencialidades produtivas e a renovar a insatisfação dos trabalhadores ao

processo de trabalho fordista; 2) O aumento da dependência do consumo do governo para

manter o nível de demanda em virtude da estabilização do consumo de massa; 3) A elevação

dos gastos sociais dos Estados provenientes de uma maior pressão social; e 4) A incapacidade

das políticas econômicas em conter a debilidade monetária manifestada através da inflação.

Os regulacionistas franceses delegam papel importante ao processo histórico para a apreensão

das crises. Para Boyer (1999) as crises maiores se sucedem; contudo, jamais se repetem

quanto ao seu formato, já que o capitalismo evolui em espiral, nunca passando pela mesma

configuração. As crises e conflitos, nesta dinâmica capitalista “inovativa” contemporânea,

marcada por uma notável irreversibilidade, são os momentos oportunos para reajustamentos

das formas institucionais. Assim, cada crise estrutural tende a ser original no exato

entrelaçamento das causas e mecanismos de transmissão.

Nesta linha, a saída da crise, segundo Aglietta (1979), passaria por uma nova forma de

institucionalidade - novo modo de regulação: neofordismo - criada a partir de uma nova

“relação salarial” coerente com as transformações das estruturas econômicas contemporâneas.

Isso só seria possível se a nova forma de regulação proporcionasse uma articulação entre os

custos sociais da força de trabalho - base da acumulação intensiva - e uma reestruturação do

consumo por meios coletivos. Boyer (1999) e Lipietz (1989) passam a incorporar, com maior

ênfase, o âmbito internacional, no processo de construção de um novo modo de regulação

articulado nacional e internacionalmente. Para eles, a crise poderia ser sanada a partir da

regulação das finanças internacionais, articulando-as aos compromissos nacionais voltados

para o crescimento econômico assentado na demanda doméstica. Para tanto, far-se-ia

necessário construir uma nova agenda política (modo de regulação), completamente renovada,

num duplo sentido: i) domesticar novamente as finanças e o mercado que devem se tornar

meios para garantir o bem-estar das sociedades; e ii) estabelecer novos compromissos

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institucionalizados para engendrar o crescimento vinculado à exportação e ao mercado

interno.

A formulação regulacionista apresenta, em certa medida, os conflitos e os choques de

interesses de grupos organizados como delineadores da dinâmica do sistema capitalista de

produção, destacando as diferenças entre os aspectos econômicos e sociais e o caráter

intrínseco das crises a partir de um processo histórico. Para tal eixo teórico, a crise, apesar de

sua regularidade, poderia ser eliminada, pelo menos temporariamente, através de controles

instrumentais baseados no modo de regulação como peça-chave para contornar a crise, ao

mesmo tempo preservando o padrão atual das relações sociais. Desse modo, as relações

sociais contraditórias capitalistas deixam de ser um impedimento à continuidade sistêmica, do

que se pode deduzir que esta escola, ao delinear suas alternativas à crise, torna-se funcional

para a dinâmica excludente do capital, na medida em que busca a harmonização para a

retomada da acumulação, colocando a luta de classes num papel secundário (OLIVEIRA,

2004; BRAGA, 2003). Essa funcionalidade da teoria da regulação francesa ao capital foi

muito bem expressa por Braga:

Sinteticamente, a Teoria da Regulação apresenta, desde as origens, sua vocação: representar, do ponto de vista teórico, o suposto destino dos trabalhadores em colaborar inevitavelmente com a burguesia. Por intermédio do reprodutivismo teórico, as determinações políticas da classe trabalhadora são sacrificadas no altar das “necessidades sistêmicas” capitalistas. O formalismo da análise expulsa, progressivamente, as referências aos antagonismos sociais, eliminado a contradição: a relação salarial assume o espaço da luta de classe (BRAGA, 2003, p. 228).

De outro lado, as leituras marxistas, no que tange à reflexão da crise do capital e suas

alternativas, podem ser divididas em dois grandes grupos: 1) os que a entendem apenas como

uma crise de acumulação; e 2) os que a compreendem como uma crise de dominação.

Vejamos os eixos dessas duas perspectivas.

Alguns dos que apreendem a crise do capital sob um eixo apenas da acumulação tende a

realizar leituras textuais d’ O capital sobre a lei da tendência decrescente da taxa de lucro e

sobre o problema de realização das mercadorias. Os partidários desse tipo de leitura, em certa

medida, “quase sempre se afastaram para uma linha de reflexão que privilegiava, sobretudo,

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as saídas internas; [acabando por] reforçar as linhas de harmonização em vista das retomadas

de crescimento [e, por conseguinte, da dinâmica do capital]” (OLIVEIRA, 1999, p. 62).

As leituras marxistas, que apreendem a crise apenas a partir de problemas na acumulação,

argumentam que a crise ocorreria em virtude (i) das dificuldades de realização das

mercadorias, associadas ao subconsumo ou à superprodução, provocadas por desproporção

intersetorial, ou pela queda nas taxas de lucro médias da economia, e (ii) da leitura textual e

naturalizada da lei tendencial decrescente da taxa de lucro34. Tais análises críticas partem

quase sempre de uma lógica derivada do próprio capital.

Os problemas na realização das mercadorias (superprodução ou subconsumo), como um dos

processos originários da crise de acumulação, estariam associados a dois elementos, que não

necessariamente estariam interligados, a saber: (1) a desproporção35 entre os setores

produtivos; e (2) a queda nas taxas de lucros médias na economia.

O primeiro elemento problemático à realização, a desproporção entre os vários ramos da

produção, seria originário do caráter não-planificado ou “anárquico” da produção capitalista.

Se algum ramo produtivo ampliasse a oferta de mercadorias acima do nível da demanda,

ocorreria uma superprodução setorial. Tal ramo, por sua vez, restringiria suas compras de

mercadorias dos outros setores, provocando uma superprodução também nestes últimos e

assim sucessivamente, gerando uma crise geral de superprodução (MIGLIOLLI, 1986;

TUGAN-BARANOWSKY apud SWEEZY, 1976). A origem desse tipo de crise poderia ser

eliminada pelo planejamento capitalista que funcionaria como uma saída “interna” à crise, o

que permitiria a moderação dos conflitos em prol do crescimento econômico e,

conseqüentemente, manteria a hegemonia do capital. Inclusive Sweezy, no trecho abaixo,

34 Alguns eixos marxistas ao adotarem uma visão naturalizada e mecânica da lei tendencial decrescente da taxa de lucro foram levados a assumir a idéia de autodestruição do capital, ou seja, a teoria do colapso catastrófico. Kautsky, por exemplo, escreveu, em 1891, que as “forças econômicas irresistíveis levam, com a certeza do destino, a produção capitalista ao naufrágio. A substituição da ordem social existente por uma nova já não é simplesmente desejável – tornou-se inevitável” (KAUTSKY, 1910 apud SWEEZY, 1976, p. 220). Esse viés, ao adotar tal visão, incorreu numa perspectiva fortemente positivista e determinista, deixando de lado o método materialista histórico e dialético que é a essência da perspectiva de Marx. 35 Tugan-Barnowsky foi um dos primeiros a utilizar os esquemas de reprodução expostos por Marx para provar que a crise seria provocada pela desproporcionalidade setorial. No entanto, Tugan pode ser considerado um “revisionista” de Marx, pois ele se utilizou de tal instrumental para rejeitar as explicações de Marx para a crise (SWEEZY, 1976).

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critica, de forma irônica, a idéia de Tugan e seus discípulos de que a crise seria provocada

apenas pela desproporção setorial:

[...] se as crises são realmente causadas apenas pelas desproporções no processo produtivo, então a ordem social existente parece estar a salvo, pelo menos até que as pessoas se tornem suficientemente bem educadas e moralmente evoluídas para desejarem uma ordem melhor. Enquanto isso, não só não há necessidade de um colapso no capitalismo, como muito se pode fazer [através do planejamento], mesmo sob o capitalismo, para eliminar as desproporções, causa de muito sofrimento (SWEEZY, 1976, p. 188-189).

A queda na taxa de lucro média da economia, como outra leitura do problema crítico da

acumulação, seria derivada do próprio movimento do capital, pois à medida que ocorresse um

declínio da taxa média de lucro, proveniente principalmente do aumento da concorrência

intercapitalista, consubstanciar-se-ia uma redução do investimento que acabaria por provocar

uma redução nos níveis de emprego e salários, afetando a demanda por mercadorias e

deflagrando a crise de superprodução.

A visão de Robert Brenner sobre a crise dos anos 70, em seu ensaio A crise emergente do

capitalismo mundial... e no seu livro O boom e a bolha, coloca-o na perspectiva crítica de

acumulação atrelada à queda na taxa de lucro média, muito embora rejeite o fundamento da

lei marxista representado pelo crescimento da composição orgânica do capital. Para ele, a

crise seria proveniente da queda secular da lucratividade, oriunda do excesso de capacidade e

produção do setor manufatureiro mundial. Tal compressão dos lucros desse setor teria origem

no acirramento da competição internacional, pois à medida que os produtores da Europa

ocidental e do Japão começam a suprir frações cada vez maiores do mercado mundial,

inclusive com bens similares àqueles que já eram produzidos pelos Estados Unidos, surgem

redundância e excesso de capacidade e de produção. Para Brenner, o problema tendeu a se

agravar com a crise monetária internacional e com o colapso da ordem de Bretton Woods,

entre 1971 e 1973, uma vez que tanto o Japão quanto a Alemanha foram obrigados a enfrentar

uma maior concorrência internacional, haja vista as elevadas valorizações de suas moedas

frente ao dólar. Isso, por sua vez, gerou reduções em suas taxas de lucro, aprofundando ainda

mais a contração dos lucros do setor manufatureiro internacional. À medida que se

consubstanciava a redução das taxas de acumulação de capital, materializava-se a queda dos

níveis de investimento e, conseqüentemente, do emprego. Isso provocou uma queda na

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demanda, o que, por sua vez, agravou o problema da realização, ampliando o problema do

excesso de capacidade e de produção (BRENNER, 1999 e 2003).

Ainda na perspectiva de Brenner, a explicação da crise acaba por recair no problema de

insuficiência da demanda atrelada à redução da taxa de lucro. O epicentro da crise seria

conformado no plano da concorrência do setor manufatureiro, principalmente, nos países

centrais; há, então, o deslocamento da luta de classes como o elemento principal do problema

enfrentado pelo capital. Ao deslocá-la para uma posição secundária do movimento crítico,

assumi-se a concorrência intercapitalista como fator causal da crise, abrindo novamente

possibilidades de saídas “internas” à mesma. Tais saídas podem ser representadas (i) por

arranjos nacionais e internacionais de controle da concorrência capitalista que estimulem a

demanda e (ii) por novos processos distributivos que levem à harmonização entre as classes;

garantindo assim, elementos de sustentação do domínio do capital.

Ainda numa perspectiva de crise de acumulação, algumas leituras marxistas utilizam a lei

tendencial decrescente da taxa de lucro de forma textual e naturalizada, uma vez que a crise

ocorreria em virtude da busca obsessiva dos capitalistas por mais-valia, tanto relativa quanto

absoluta. Na busca pela valorização, o capital, no âmbito da concorrência intersetorial, é

levado a reduzir ao máximo o uso da força de trabalho por meio do rebaixamento dos custos.

Então, a tendência à queda da taxa de lucro seria originária da crescente exploração do

trabalhador face aos ditames da concorrência intercapitalista. À medida que aumenta a

extração de mais-valia (exploração) maior seria a resistência dos trabalhadores; em vista dessa

maior resistência, ocorreria uma diminuição da mais-valia. De outro lado, esta situação amplia

a possibilidade de utilização de novas tecnologias, que resultará na ampliação da mais-valia

apenas à medida que haja uma diminuição da resistência dos trabalhadores. Atrelada a esta

dinâmica há uma tendência ao aumento da relação entre as máquinas e a mão-de-obra direta

(composição orgânica do capital) no processo produtivo. Isso, por sua vez, tenderia a

provocar uma retração relativa da própria mais-valia, gerando assim uma crise. Em suma, a

crise seria fruto de um crescimento mais elevado da composição orgânica do capital em

relação ao crescimento da taxa de mais-valia (SWEEZY, 1976).

Geralmente, em tal perspectiva do entendimento da crise, a concorrência ganha precedência

sobre a resistência dos trabalhadores ao processo de exploração. Ao adotar tal primazia do

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elemento concorrencial, a crise tornar-se-ia auto-impulsionada pelos fatores econômicos. Isso

conduz a um determinismo e a uma naturalização da lei tendencial decrescente da taxa de

lucro. Essa visão inclusive abre margens para formulações mecanicistas e positivistas

extremadas de autodestruição do capital (teoria do colapso catastrófico) (OLIVEIRA, 1999).

Alguns marxistas, ao adotarem essa perspectiva de crise autogerada, esqueceram que Marx

(1986) ao lado da formulação da lei tendencial decrescente da taxa de lucro também

enumerou elementos “contrabalançadores” ou de contra-tendências - tais como, o

barateamento dos elementos do capital constante, a elevação da intensidade da exploração, a

compra da força de trabalho por um preço abaixo do seu valor-de-troca, dentre outros – que

podem manter reduzida a composição orgânica do capital ou elevar a taxa de mais-valia. As

contra-tendências podem, portanto, impedir ou anular a queda da taxa de lucro. Assim, tal lei

problemática ao capital assume um caráter tendencial.

Nenhuma lei em economia política pode deixar de ser tendencial, na medida em que é obtida isolando um certo número de elementos e deixando de lado, portanto, as forças contrapostas. Seguramente, será necessário distinguir um grau maior ou menor de tendencialidade e, enquanto geralmente o adjetivo “tendencial” subentende-se como óbvio, insistindo-se nele, pelo contrário, a tendencialidade converte-se em uma característica organicamente relevante (como neste caso, no qual a queda da taxa de lucro é apresentada como o aspecto contraditório de outra lei, a da produção de mais-valia relativa, na qual uma tende a suprimir a outra com a previsão de que a queda da taxa de lucro será predominante). [...] Quando se pode imaginar que a contradição chegará ao nó górdio, insolúvel normalmente, mas que exija a intervenção de uma espada de Alexandre? [...] Quando a contradição econômica transforma-se em contradição política e resolve-se politicamente [,através da luta de classes,] em uma inversão da práxis (GRAMSCI, 1977, p. 1.279 apud BRAGA, 2003, p. 216).

Será, então, que o capitalismo se perpetuaria como sistema social, em virtude dos elementos

de contra-tendência que proporcionariam saídas “internas” à crise? Gramsci, na passagem

acima, responde essa questão mostrando que a crise ao ganhar uma dimensão de totalidade

(contradições econômicas e políticas) abre a possibilidade de saídas “externas” à sociabilidade

construída pelo capital por meio da inversão de práxis.

Em suma, a visão marxista de crise do capital, como apenas uma crise de acumulação,

associada aos problemas de realização (subconsumo e/ou superprodução) ou vinculada à

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leitura naturalizada e mecânica da lei de tendência decrescente da taxa de lucro, tende a

deslocar do eixo crítico da luta de classes, tornando-a uma variável externa, dependente e

passiva à dinâmica do capital. Isso acaba descartando a necessidade de transformação social

“para além do capital”. Ao adotar tal trajetória, essa leitura marxista se tornar economicista à

medida que privilegia o formalismo nas interpretações da crise em detrimento das análises das

contradições.

Abdicar da luta de classe como fonte originária [da crise] abria caminhos para a busca de soluções orgânicas através do planejamento da repartição, da harmonia intersetorial com a interveniência do capital financeiro e da distribuição de rendas [...]. No fundo, o que se procurava deslocar como anacrônico era a idéia mesma de uma revolução como alternativa, em nome das reformas graduais. Não por acaso, estas paulatinamente ocupam esse espaço, quando a aposta intelectual se desloca para a possibilidade de eliminar a revolução pelo planejamento e pelos consensos possíveis, mesmo que ao custo da exclusão dos setores de base (OLIVEIRA, 1999, p. 62-63).

Em outra direção, considerando-se agora a leitura do segundo grande grupo marxista, a crise

somente ocorre quando existem elementos problemáticos à dominação do capital. Ou seja,

uma crise de dominação, que deve ser tomada como uma categoria mais ampla do que a da

crise de acumulação, na medida em que incorpora a luta de classes como principal elemento

crítico, articulando-a aos fenômenos problemáticos à realização das mercadorias. Essa leitura

assume caráter, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo, com interações dialéticas, já que a

crise surge objetivamente no âmbito das relações de produção, associada à lei da tendência

decrescente da taxa de lucro, ampliando-se para todo o conjunto das relações societais

(culturais, políticas, éticas, intelectuais, ideológicas e morais), atingindo a dimensão de uma

crise de dominação do capital. Cabe ressaltar que a crise de dominação pode atingir graus,

formas e temporalidades diferenciadas em cada país face à correlação de força entre as classes

no nível nacional – haja vista o grau de desenvolvimento das forças produtivas, o nível de

intercâmbio interno e as estruturas políticas de cada país – e, também, ao grau de

hierarquização entre Estados nacionais mais fortes e mais fracos.

Ao alcançar o patamar de crise de dominação, esta adquire um caráter estrutural, isto é, de

totalidade à medida que desestabiliza, em certa medida, a hegemonia das classes dominantes,

abrindo a possibilidade de rupturas sociais e, por conseguinte, de novas alternativas

“societárias” fora do eixo do capital. Para Braga (2003, p. 215), apoiado em Gramsci, “a crise

[de dominação], nesse sentido, aponta uma ruptura, por vezes violenta, dos vínculos que

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atavam as classes subalternas a todo um ambiente intelectual e moral [das classes

dominantes]. Um verdadeiro movimento de erosão das bases do consentimento”.

Na perspectiva marxista de crise de dominação, como uma crise do capital em sua totalidade,

a luta de classes assume papel fulcral tanto no movimento da crise como em suas saídas

“externas”, pois ela representa uma das principais restrições à acumulação e, também, pode

funcionar como o elemento propulsor de novas trajetórias sociais. Segundo Oliveira (1999, p.

62) “fora o próprio Marx quem já alertara para o fato de que as maiores restrições impostas à

continuidade do processo de acumulação são de natureza essencialmente política”, na medida

em que depende “da correlação de forças que se expressa na luta marcada pela resistência dos

trabalhadores à exploração”. Desse modo, a luta de classes está “na origem do processo

crítico e, em perspectiva, é dela que vai depender o seu desfecho, não havendo, portanto, nada

de natural ou mecânico no seu desenrolar”.

Assim, a efetivação da crise de dominação do capital só pode ser apreendida a partir de uma

dualidade, qual seja, ela se constitui quando os “de baixo” (classe trabalhadora) não quiserem

mais se subordinar à dinâmica do capital e os “de cima” (classe dominante) perdem certa

capacidade e instrumentos para manterem-se como dominação/hegemonia. Com isso,

materializa-se um ambiente de incerteza quando as trajetórias sociais.

Os ciclos/momentos econômicos desfavoráveis que adquirem dimensão de crise de

acumulação, vinculados à lei tendencial decrescente da taxa de lucro, são condições

necessárias, mas não suficientes para o surgimento de uma crise de dominação. Dito de outra

maneira, para que ela exista faz-se necessário que os elementos econômicos objetivos,

elevação do conflito distributivo entre lucro e salário, transbordem ao campo das contradições

políticas da luta de classes.

A possibilidade de um processo diacrônico, entre as dimensões críticas da economia e da

política, está vinculada à dificuldade, por parte do capital, em determinados momentos

históricos, em articular instrumentos de coerção e consentimento socioeconômicos36 que, ao

36 Tais instrumentos ideológicos, culturais, intelectuais, morais e éticos, no âmbito da superestrutura, e de controle do trabalho, no nível estrutural, viabilizam a integração passiva do trabalho à dinâmica do capital. A

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mesmo tempo, eliminem os problemas na realização das mercadorias e reduzam a intensidade

da luta de classes. Numa situação como esta a classe trabalhadora é mantida numa condição

de “classe em si”, impedindo assim que se constitua numa “classe para si”. Quando o capital

consegue engendrar tal articulação estaria por eliminar, pelo menos temporariamente, a crise

em sua totalidade, quer dizer, tanto na dimensão da acumulação como da dominação.

A construção do arranjo institucional do compromisso keynesiano/fordista do pós-II Guerra

permitiu a eliminação da crise estrutural de 1929 em sua totalidade, já que criou um ambiente

de harmonização da luta de classes e engendrou um novo modelo de acumulação assentado na

demanda efetiva. Tal saída interna à crise do capital, de 1929, levou a um novo período de

elevada taxa de acumulação capitalista.

Em suma, a análise da crise do capital sob apenas uma das suas dimensões, a da acumulação,

acaba por privilegiar, em certa medida, as resoluções dos problemas de realização. Ao adotar

tal caminho subordinam o movimento da sociedade à dinâmica do capital e, em alguns

momentos, acabam por viabilizar alternativas socioeconômicas para o próprio capital. Em

outro campo, os que apreendem a crise do capital como um processo crítico de dominação

tendem a adotar saídas “externas” à sociabilidade ditada pela lógica do capital ainda que estas,

às vezes, não se evidenciem como uma possibilidade em determinados momentos históricos.

Os que se detiveram na crise como ruptura de um ciclo de dominação nem sempre estiveram colocados à construção dos arranjos institucionais e de outra natureza em vista da recomposição dos espaços do capital. Estiveram sim bem mais atentos aos caminhos da revolução como necessidades históricas ainda que esta, às vezes, não se evidenciasse como uma possibilidade (OLIVEIRA, 1999, p. 62-63).

Após essa incursão nos eixos teóricos de apreensão da crise, faz-se necessário engendrar uma

análise sobre o fenômeno crítico do capital iniciado no final da década de 1960 e suas

dimensões atuais. Existe certo consenso, dentre as diversas correntes teóricas supracitadas, de

que a década de 1970 foi marcada por um esgotamento do modelo de acumulação. Esse

consenso deixa de existir no que se refere à duração dessa crise. Para muitos analistas críticos,

a crise estaria presente até os dias atuais. Será que existe uma crise estrutural do capital no

implementação desses são propugnados pelo Estado, pelos meios de “comunicação de massa”, pela “indústria cultural” e por novas formas de organização da produção e de controle do trabalho.

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momento presente? Parte-se aqui do constructo de que não existe hoje uma crise estrutural do

capital, como uma crise de dominação, mais sim o que existe é uma crise de acumulação,

associada ao problema de realização das mercadorias que teve início na década de 1960 e

perdura hodiernamente.

A crise, atrelada ao esgotamento do padrão de acumulação dos anos dourados, foi se

ampliando e transbordou, no fim de 1960, ao âmbito político da luta de classes,

principalmente, nos países centrais do capitalismo. Naquele momento, a crise deixava de se

configurar apenas como de acumulação para se materializar como de dominação, ganhado

assim um caráter estrutural e de totalidade em vários espaços nacionais. Os representantes do

capital nesses territórios, ao perceberem o momento de instabilidade de sua hegemonia,

contra-atacaram engendrando transformações socioeconômicas de grande envergadura que

acabaram por contornar a crise de dominação, por volta do início dos anos 80, através da

redução do poder da classe trabalhadora. Vale ressaltar que a cronologia histórica e as

dimensões da crise assumem características bastante diferenciadas nos países periféricos, pois

nestes a crise de acumulação, em certa medida, foi adiada pelas ditaduras militares, em

virtude de instrumentos de achatamento dos salários que retardaram temporariamente, até

finais dos anos 70, a queda da lucratividade. Ademais, nessa região a crise de acumulação não

se propagou para a dimensão de crise de dominação.

As amplas transformações construídas conseguiram arrefecer a crise de dominação, mas não a

crise em sua totalidade, uma vez que outros impedimentos à acumulação, atrelados

principalmente à concorrência capitalista inter e intra-setores, continuaram e continuam até os

dias atuais. A continuidade da crise decorre da dificuldade de fixação de um novo padrão de

acumulação que incorpore os diversos interesses organizados, em virtude das próprias

transformações (regulação liberal e reestruturação produtiva) engendradas pelo capital para

contornar a luta de classes. Vejamos, a seguir, de forma mais detalhada a dinâmica prática da

crise.

Por volta do final dos anos de 1960, as contradições do padrão dos anos dourados vão sendo

reforçadas à medida que (i) se elevava a contradição entre as classes, através da rearticulação

dos movimentos operários diante da redução do “exército industrial de reserva”; (ii) se

acirrava a concorrência inter e intra-setorial dos capitais, principalmente nos países centrais

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(EUA, Alemanha e Japão) pela busca de apropriação dos segmentos mais lucrativos, o que

acabou gerando um excesso de produção e de capacidade; (iii) ocorreram aumentos nos

preços das matérias-primas, associados à redução dos investimentos da indústria petrolífera e

à maior pressão da OPEP por reajustes de preços que estavam defasados em valores reais,

provocando a elevação dos custos de produção (CLAUDIN, 1977 apud OLIVEIRA, 1999).

Esses foram os três fatores determinantes da queda observada nas taxas de lucro, a partir da

década de 1970, na origem da qual está o aumento da contradição de classes no âmbito da

produção, principalmente, entre o final da década de 1950 e início da década de 1980.

Naquele período, os movimentos operários (classe trabalhadora) rearticularam-se em

decorrência da redução do “exército industrial de reserva” provocada pelo crescimento

econômico dos anos dourados. Em boa parte do planeta os movimentos trabalhistas

realizaram uma ofensiva ao capital com características bastante peculiares. Dentre estas,

destaca-se a construção de movimentos/greves de base operária autônoma e, por conseguinte,

independentes, em certa medida, das instituições sindicais social-democratas que naquela

altura ainda “representavam” os trabalhadores na arquitetura do compromisso

keynesiano/fordista (consenso estabelecido entre a burocracia sindical e os patrões). Tais

iniciativas dos trabalhadores foram denominadas, num primeiro momento, de greves

“selvagens”, ficando depois conhecidas como movimentos autônomos. Não foram poucas as

ocupações das empresas por parte dos trabalhadores buscando remodelar as relações

tayloristas/fordistas37 de trabalho e sua respectiva disciplina empresarial. Boa parte do

movimento grevista esteve em luta contra esta forma de organização da produção e sua rígida

hierarquização (BERNARDO, 2000; ANTUNES, 1999).

A contradição entre as classes se elevou, em maior ou menor grau, tanto na Europa,

principalmente nos países industrializados centrais, quanto na América, à época. Pelos idos de

1968, as ações dos movimentos trabalhistas de deslegitimação destes processos de trabalho

autoritários e avessos a formas democráticas de participação atingiram um dos seus pontos

culminantes. Passou-se a questionar alguns pilares constitutivos do capital, tanto no âmbito da

produção quanto, em certa medida, da superestrutura, particularmente aqueles relacionados ao

37 Segundo Antunes (1999, p. 37), esse processo produtivo caracteriza-se “pela mescla da produção em série fordista com o cronômetro taylorista, além da vigência de uma separação nítida entre elaboração e execução. Para o capital, tratava-se de apropriar-se do savoir-faire do trabalho, ‘suprindo’ a dimensão intelectual do trabalho operário, que era transferida para as esferas da gerência científica”.

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controle social. A ampliação da luta de classes e do poder do operariado, nos países

capitalistas desenvolvidos, perturbou seriamente o funcionamento do sistema capitalista,

constituindo-se no fator mais importante no desencadear da crise estrutural do capital. À

medida que o conflito distributivo passava a uma dimensão de luta de classes, verificava-se o

aumento da resistência dos trabalhadores à exploração que, por sua vez, provocava a queda da

taxa de lucro.

A crise transbordara ao âmbito das contradições políticas da luta de classes, ao longo da

década de 1970, tanto no plano da fábrica, quanto além dela, em menor grau, através dos

movimentos estudantis, dos grupos em luta por direitos humanos, da oposição à guerra do

Vietnã e dos movimentos de contracultura. À época verificava-se certa contestação da ordem

estabelecida, ou seja, o capital atravessava uma crise estrutural em sua totalidade equivalente

a uma crise de dominação. Vale ressaltar que a mesma foi menos intensa do que as crises

estruturais pretéritas, em função da influência social-democrata no interior dos movimentos

proletários e da absorção, por parte dos trabalhadores, da cultura e da ideologia burguesa do

american way of life.

Além da intensificação da luta de classes, outros dois fatores provocaram a redução na taxa de

lucro. O primeiro deles foi a elevação dos preços das matérias primas, principalmente, como

já mencionado, do petróleo. A OPEP começou, a partir de 1971, a pressionar por reajustes no

preço internacional do petróleo que estavam defasados. Os EUA aceitaram um reajuste de

cerca de 50% no preço internacional do petróleo, entre 1971 e 1973, buscando manter

relações estáveis com os países árabes e, principalmente, para viabilizar a indústria petrolífera

norte-americana cujos custos haviam se elevado. Em 1973, a guerra entre os países árabes e

Israel foi o estopim de um elevado aumento dos preços do petróleo, que quase quadruplicou

(SERRANO, 2004). Desse modo, os custos das matérias-primas se elevaram provocando uma

compressão nos lucros.

O segundo deles diz respeito ao acirramento da concorrência inter e intra-setorial,

principalmente, entre os capitais americanos, alemães e japoneses, a partir da segunda metade

da década de 1960, uma vez que os produtores da Europa ocidental e do Japão começaram a

suprir frações cada vez maiores do mercado mundial, inclusive com bens similares àqueles

que já eram produzidos pelos Estados Unidos. Tal situação acabou por reduzir ainda mais as

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taxas de lucro que vinham se comprimindo em virtude da elevação da luta de classes. Assim,

havia se tornado difícil repassar aos preços a elevação dos custos de produção, face ao

excesso de produção. Com a intensificação da concorrência capitalista ocorreu a elevação do

grau de atrito entre os Estados nacionais industrializados (EUA, Alemanha e Japão), gerando

inclusive, a ruptura do arranjo institucional do sistema monetário de Bretton Woods

construído nos anos dourados.

Nesse contexto de desarranjo institucional cresciam os conflitos entre os Estados

desenvolvidos ao longo dos anos 70. A cooperação antagônica se desestruturou. O

acirramento das tensões dentro do bloco capitalista esteve eminentemente vinculado à

contestação da supremacia norte-americana no sistema-mundo capitalista por parte dos

capitais japoneses e alemães. Muitos analistas, na década de 1970, das mais diversos matizes,

afirmaram que a supremacia dos EUA estaria chegando ao seu fim e que estaria por emergir

um novo centro capitalista. Tais previsões não se confirmaram; ao contrário, o que se

verificou foi uma forte retomada da supremacia dos Estados Unidos, principalmente, no final

dos anos de 1970 com a política Volcker do “dólar forte”. Mais recentemente, pós-dissolução

do pacto de Varsóvia e do fim da União Soviética, os Estados Unidos têm ampliado seu

poderio econômico, político, militar e cultural.

Em suma, a crise foi conseqüência de um conjunto de manifestações econômicas e políticas

que caracterizaram um determinado período histórico, a saber: o aumento da contradição entre

as classes, articulado ao aumento da concorrência intercapitalista entre países, a partir da

década de 1960, e à elevação dos preços das matérias-primas. Tal processo crítico assumiu a

dimensão de crise de dominação a partir da ampliação dos movimentos de contestação, em

certa medida, da ordem capitalista estabelecida. Os representantes do capital, face à crise

estrutural (dimensão econômica e política), engendraram estratégias contra-ofensivas de

caráter preservativo, em seus diversos espaços nacionais, principalmente, nos países

desenvolvidos, pautadas principalmente na coerção e no controle sobre a classe operária,

provocando um intenso processo de desvalorização da força de trabalho, diferentemente da

estratégia “harmonicista” (compromisso keynesiano/fordista) adotada como alternativa à crise

de 1929. As estratégias de reação à crise, implementadas pelo capital, tanto no plano micro

(reestruturação da produção) quanto no macro (modelo de regulação liberal), em associação

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com a dificuldade dos movimentos operários em construir um projeto hegemônico38 contrário

ao capital, acabaram por arrefecer a crise de dominação. Como resultado, houve um

arrefecimento da luta de classes decorrente, sobretudo, da desvalorização da força de trabalho

e de sua contrapartida, o aumento do “exército industrial de reserva”, além do combate aos

sindicatos. No entanto, não ocorreu a eliminação da crise em sua totalidade, permanecendo no

plano econômico, uma vez que, por um lado, o processo de reestruturação produtiva, ao criar

um maior contingente de desempregados, acabou por reduzir a demanda agregada e, por

conseguinte, gerou problemas na realização das mercadorias. Por outro lado, a adoção do

modelo de regulação liberal (neoliberalismo) dificultou, e continua dificultando, a

consolidação de um novo padrão de acumulação que consiga incorporar os diversos interesses

organizados, ainda mais com a assunção dos rentistas à posição central na disputa entre

frações da classe dominante.

A regulação neoliberal, na verdade, ampliou a concorrência capitalista intra e intersetores e

abriu brechas para a assunção das finanças como importante motor da dinâmica capitalista,

provocando profundas transformações na natureza dos ciclos econômicos, tornando-os cada

vez mais curtos e instáveis, gerando crises financeiras recorrentes.

38 Os movimentos operários tiveram dificuldade em construir um projeto societal hegemônico contrário, face à dificuldade de reduzir a influência do sindicalismo social-democrata no interior do proletariado e a dificuldade de transbordar, com maior intensidade, a luta contra o controle e a hierarquia da produção fordista/taylorista para a luta contra o capital (ANTUNES, 1999).

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CAPÍTULO II

O CAPITALISMO PÓS-ANOS 70 E SUAS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS:

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA E

TRANSFORMAÇÕES DAS RELAÇÕES INTERESTATAIS.

A instabilidade socioeconômica fora a marca da década de 1970. O capitalismo mergulhara

numa crise estrutural (de dominação) que significou um abalo nos mecanismos de controle

social e de acumulação. Em tal contexto crítico, o capital engendrou, nos mais diversos

espaços nacionais, principalmente onde a crise estrutural assumiu maior intensidade, uma

série de importantes transformações estruturais de grande envergadura, tanto no âmbito da

produção quanto no plano superestrutural do Estado e da ideologia.

Muito embora a globalização (transformações estruturais) seja apresentada pelos círculos

conservadores como o ingresso da humanidade em uma definitiva e abrangente era de

progresso e evolução inexoráveis, na verdade, contraditoriamente, ela nada mais representa do

que a síntese de elementos que tem por finalidade combater a crise estrutural do capital. Quer-

se afirmar, com isso, que a crise estrutural que concilia aumento da luta de classes e queda de

lucro acabou orientando os representantes do capital a buscarem meios alternativos de

enfrentamento da crise através do estabelecimento de um processo de desvalorização da força de

trabalho - arrefecendo assim a luta de classes - e do ajuste voltado à determinação de novas formas

de acumulação. Portanto, importantes modificações produtivas, socioeconômicas e institucionais

foram lançadas tendo em vista o enfrentamento da intensificação da luta de classes e, por

conseguinte, da queda da taxa de lucro.

O enfrentamento da crise estrutural processou-se a partir de duas dimensões que se articulam,

quais sejam: (i) no plano da produção, pela reafirmação do capital diante das lutas de classes

através da fragmentação da produção e, conseqüentemente, do trabalho, associado ao

processo de centralização e concentração do capital. Isso foi viabilizado pela reestruturação da

produção - que teve como balizadores a acumulação flexível e a adoção de novas formas de

organização das empresas - e pelas mudanças institucionais no âmbito nacional e

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internacional; e (ii) no plano institucional, pela assunção do modelo de regulação neoliberal

que trouxe subsídios ao processo de fragmentação da produção e ao processo de retomada da

supremacia pelos Estados Unidos. Este modelo neoliberal centrou-se e centra-se na

liberalização dos fluxos comerciais e financeiros, na desregulamentação dos mercados de

trabalho, no forte ataque à estrutura sindical, na diminuição dos gastos públicos sociais e na

redução da intervenção estatal na economia (privatizações). Esta nova regulação institucional

abriu espaço para a globalização financeira e, por conseguinte, para o favorecimento do

rentista, principalmente nos EUA, elevando seus beneficiários a uma posição central na

disputa entre as frações da classe dominante nacional e internacional pela apropriação da

renda e da riqueza.

2.1. Reestruturação produtiva e reafirmação do capital: fragmentação do trabalho com

centralização e concentração do capital

No ambiente de acirramento da luta de classes (crise de dominação) da década de 1970, os

movimentos autônomos trabalhistas demonstraram a capacidade relativa dos trabalhadores de

controlar diretamente os movimentos reivindicatórios. Ficou patente, naquele processo de

luta, que os trabalhadores não possuíam apenas força bruta – como havia dito Taylor ao

estudar os tempos e movimentos do processo produtivo no final do séc. XIX -, mas que eram

dotados de inteligência e capacidade organizacional. No entanto, os instrumentos da nova

organização dos trabalhadores acabaram sendo transformados, pelos capitalistas, em meios

para a própria reestruturação produtiva. A nova forma de organização do trabalho, agora sob a

égide do capital, em associação com novas tecnologias eletrônicas e computacionais

(microeletrônica), se convertera na base para a reorganização capitalista sob novas formas de

gestão do trabalho, tais como, o toyotismo, a produção “enxuta”, a qualidade total, entre

outras formas similares de gestão do trabalho associadas ao padrão da acumulação flexível.

Tal processo teve por objetivo retomar o controle social - abalado pelo questionamento da

hierarquia e controle da produção fordista por parte dos trabalhadores -, abafando as lutas de

classes e restabelecendo níveis elevados de lucratividade.

A passagem abaixo, do livro Transnacionalização do capital e fragmentação dos

trabalhadores de João Bernardo, expressa muito bem esse processo:

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Os capitalistas compreenderam então que, em vez de se limitarem a explorar a atividade muscular dos trabalhadores, privando-os de qualquer iniciativa e mantendo-os enclausurados nas compartimentações estritas do taylorismo/fordismo, podiam multiplicar o seu lucro explorando-lhes a imaginação, os dotes organizativos, a capacidade de cooperação, todas as virtualidades da inteligência. Foi com esse fim que se desenvolveram a tecnologia eletrônica e os computadores e que se remodelaram os sistemas de administração de empresas, implantando-se o toyotismo, a qualidade total e outras técnicas similares de gestão (BERNARDO, 2000, p. 29).

Além das novas formas de gestão/organização do trabalho, a reestruturação produtiva

vinculou-se também às transformações da produção tanto no âmbito setorial quanto nas

estruturas organizativas das empresas. Tais modificações consubstanciaram estratégias

defensivas, diante da crise estrutural, voltadas ao aumento da concentração e da centralização

do capital, articuladas a descentralização das operações (fragmentação da produção).

O processo de acumulação flexível, estruturado a partir de formas novas da gestão do

trabalho39, em associação com a introdução ampliada de novos padrões de automação

informatizada (base microeletrônica) e da teleinformática40, possibilitou o surgimento de

novas formas de organização industrial, combinando a desconcentração espacial da produção

tanto nacional como internacionalmente. Também faz parte dessa combinação a estrutura

mais horizontalizada da grande firma e a integração entre a grande empresa e as diversas

unidades menores subcontratadas em redes hierarquizadas, processo este denominado de

terceirização. Nesse contexto, as empresas, por um lado, necessitam de menor contingente de

força de trabalho e, por outro, apresentam maiores índices de produtividade (CHESNAIS,

1996; ANTUNES, 1999). Na verdade, estas mudanças de gestão da produção permitiram

aumentar a extração de mais-valia, tanto relativa quanto absoluta.

Esses novos elementos, relacionados tanto à gestão do trabalho quanto às novas formas de

organização industrial (“empresa-rede”), possibilitaram às multinacionais (empresas e bancos)

um maior controle e expansão de seus ativos em escala internacional. Ao mesmo tempo,

39 As novas técnicas de gestão do trabalho foram consubstanciadas a partir “do trabalho em equipe, das ‘células de produção’, dos grupos ‘semi-autônomos’, além de requerer, ao menos no plano discursivo, o ‘envolvimento participativo’ dos trabalhadores, em verdade uma participação manipuladora e que preserva, na essência, as condições do trabalho alienado e estranhado” (ANTUNES, 1999, p 52). 40 “A teleinformática surgiu da convergência entre novos sistemas de telecomunicações por satélite e a cabo, as tecnologias de informatização e a microeletrônica” (CHESNAIS, 1996, p.28).

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também serviram para reforçar a ampliação das operações dessas firmas no âmbito mundial

por meio do crescimento, tanto das relações de terceirização entre firmas localizadas a

milhares de quilômetros umas das outras quanto da “deslocalização” de tarefas rotineiras nas

indústrias. Esta dinâmica, por um lado, levou a uma maior concentração e centralização do

capital, uma vez que os investimentos internacionais cruzados e as fusões-aquisições entre as

multinacionais, principalmente nos EUA, Japão e Alemanha, consubstanciaram uma elevada

concentração da oferta mundial, e, por outro lado, possibilitou a fragmentação de processo de

trabalho e as novas formas de “trabalho em domicílio” (CHESNAIS, 1996).

A centralização do capital é uma característica histórica e necessária ao padrão de

desenvolvimento capitalista. No entanto, em momentos de crise esse fenômeno tende a se

intensificar em vista das estratégias defensivas dos representantes do capital. Verifica-se que

tal tendência vem se materializando a partir dos anos 80, na medida em que se observa uma

grande elevação de fusões e aquisições, ampliando a concentração e a centralização dos mais

diversos ramos produtivos41. As indústrias já oligopolistas em seus espaços nacionais

ampliaram seu espaço de atuação internacionalmente. Para tanto, utilizaram os investimentos

externos diretos (IED) como forma de integrar, tanto horizontal quanto verticalmente, as

novas bases industriais nacionais separadas e distintas (op. cit., 1996).

Desse modo, verifica-se hodiernamente que os setores produtivos estão articulados

internacionalmente, ou seja, a partir de diversos espaços nacionais, diferentemente do que

ocorreu nos anos dourados do capitalismo, principalmente nos países centrais (EUA,

Alemanha e Japão), onde, grande parte da produção, era setorialmente articulada

internamente. Quer dizer que existia um maior balanceamento entre o departamento de

produção e de consumo dentro dos espaços nacionais. Vale ressaltar que o processo atual de

fragmentação da produção não significou redução no poder dos Estados centrais, já que o

controle do processo produtivo continuou ali instalado. Na verdade, quem perdeu poder foi a

classe trabalhadora, pois tal dinâmica fragmentou os processos de trabalho e,

conseqüentemente, provocou um rebaixamento dos preços da força de trabalho e um

arrefecimento da luta de classes. Chesnais, em seu livro A Mundialização do Capital, mostra,

41 Nessa nova fase, a concentração não ficou restrita apenas aos setores já historicamente concentrados, tais como, a indústria de petróleo, a extração de metais não-ferrosos, petroquímica, dentre outros, e ampliou-se para as indústrias de alta intensidade de P&D. Isso acabou reforçando o peso dos custos fixos dessas empresas, o que, por sua vez, gerou uma necessidade de mercados cada vez maiores.

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na passagem a seguir, como o capital se impôs diante do trabalho, num cenário de

fragmentação da produção:

Agora o capital está à vontade para pôr em concorrência as diferenças no preço da força de trabalho entre um país – e, se for o caso, uma parte do mundo – e outro. Para isso, o capital concentrado pode atuar, seja pela via do investimento seja pela via da terceirização [...] (op. cit., 1996, p.27).

À medida que avançava o processo de reestruturação produtiva, o capital ficava cada vez mais

à vontade para se impor diante do trabalho. Esse maior poder do capital não pode ser

associado apenas ao plano da produção, mas também ao campo da institucionalidade, uma vez

que a assunção da regulação neoliberal - engendrada, no final da década de 1970, pelos novos

governantes Reagan nos EUA, Thatcher na Inglaterra e Khol na Alemanha - teve um papel

preponderante na viabilização da reorganização da produção ao combater os sindicatos e ao

implantar o processo de abertura dos fluxos financeiros e comerciais. De fato, a abertura

significou um elemento de fundamental importância à promoção da integração entre as bases

empresariais nos diversos países - quer seja através dos IED quer seja por meio das maiores

facilidades às importações e às exportações intra-firmas – e, por outro lado, abriu o caminho

às alternativas de lucros centradas em fundamentos financeiros.

As mudanças da estrutura produtiva, articuladas à regulação neoliberal foram estruturadas a

partir de(a): (i) uma enorme desregulamentação dos direitos do trabalho; (ii) grande

“precarização” e terceirização da força de trabalho, num cenário de aparecimento de

desigualdades salariais; (iii) destruição dos sindicatos classistas.

Para a classe operária e as massas trabalhadoras, o que o capital tende a restaurar é o regime do “tacão de ferro” [...] [a partir] do ressurgimento de formas agressivas e brutais de procurar aumentar a produtividade do capital em níveis macroeconômicos, a começar pela produtividade do trabalho. Tal aumento baseia-se no recurso combinado às modalidades clássicas de apropriação da mais-valia, tanto absoluta quanto relativa, utilizadas sem nenhuma preocupação com as conseqüências sobre o nível de emprego, ou seja, o aumento brutal do desemprego (op. cit., 1996, p. 16-17).

Chesnais, em trecho acima, parece não perceber a funcionalidade e a importância do aumento

do nível de desemprego para o restabelecimento do controle social do capital. Na verdade, o

aumento da exploração ocorre em articulação com a redução do emprego da força de trabalho,

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pois a reconstrução do “exército industrial de reserva” propiciou uma queda no valor trabalho,

possibilitando a ampliação da extração de mais-valia.

O crescimento espetacular do desemprego na Europa com conseqüências semelhantes para algumas regiões periféricas, como aconteceu na América Latina, enquanto em outras, como o foi o caso dos Tigres Asiáticos, via-se surgir uma nova industrialização; quer dizer, reconstrução do exército de reserva de trabalhadores nos países centrais e utilização deste mesmo exército historicamente presente nos países atrasados com o objetivo de estabelecer a queda do valor do trabalho (BALANCO, 1999, p. 18).

A reconstrução do exército de reserva de trabalhadores, associada à pujança da ideologia

neoliberal - centrada no individualismo e na liberdade burguesa – desarticulou as formas

clássicas de solidariedade. Isso, por sua vez, provocou fraturas nos vínculos classistas entre os

trabalhadores, implicando na precarização das ações coletivas e num engajamento

personalista e “egoísta”. Com isso, os trabalhadores, em boa medida, acabaram perdendo sua

identidade de classe, o que levou a um arrefecimento do processo de luta.

Por outro lado, as medidas voltadas à desvalorização da força de trabalho geraram efeitos

colaterais à acumulação produtiva, já que tais medidas provocaram uma redução na massa de

salários e, conseqüentemente, consubstanciaram uma redução da demanda agregada, tanto

pelo lado do consumo das famílias como dos investimentos, gerando assim, problemas na

realização das mercadorias. Tal dificuldade em realizar a produção criou limites à acumulação

produtiva. Para compensar essa limitação, os representantes do capital buscaram alternativas

nas finanças. Deslocando-se da produção, os capitalistas passaram a privilegiar o universo do

capital-dinheiro em um grau de autonomia muitas vezes superior àquele que se manifesta

quando o capital portador de juros atua somente como um apêndice da esfera produtiva.

Em suma, o processo de reestruturação produtiva (centralização e concentração do capital e

fragmentação do trabalho), vinculado à implantação da regulação estatal neoliberal,

consolidada nos anos finais da década de 1970, principalmente nos países centrais do

capitalismo, arrefeceu a luta de classes. O capital retomara o controle social. Entrementes, os

mecanismos utilizados para tal “feito”, provocaram restrições à acumulação no âmbito da

produção, o que levou a adoção, por parte dos capitalistas, de alternativas de acumulação

pautadas nas finanças.

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2.2. A Globalização das finanças: o papel dos Estados Unidos na ampliação da

acumulação financeira

Desde o início da década de 1970, em meio a um cenário marcado pela crise estrutural, as

taxas de acumulação produtiva do capital nos países avançados começaram a apresentar

trajetórias de desaceleração. Nem mesmo as estratégias, no âmbito da produção, voltadas ao

aumento da produtividade, propiciaram a retomada da acumulação aos níveis pretéritos. Nesse

contexto de aumento das barreiras à valorização do valor originadas do aumento do conflito

entre capital e trabalho, configurou-se um excesso de capacidade e de produção no setor

manufatureiro, em decorrência da maior confrontação intercapital. Os preços do setor

manufatureiro mundial não foram capazes de se elevar na mesma proporção dos custos diretos

de produção. Essa dinâmica acabou gerando, ao longo da década de 1970, a desaceleração das

taxas de crescimento do produto42, da produtividade43 e dos lucros nas economias capitalistas.

O avanço econômico do Japão e da Alemanha, nos anos de 1970, começou a confrontar a

supremacia econômica estadunidense no pólo capitalista, ameaçando a posição do dólar como

moeda de reserva internacional, entre 1977 e 1978. Ademais, a derrota no Vietnã, a crise dos

mísseis em Cuba e o fortalecimento militar da União Soviética e da China colocaram à prova

a força geo-política estadunidense. Diante de um quadro crítico estrutural, que se revelou

reticente no que se refere à recuperação das taxas de lucros do setor produtivo e no que tange

à expansão econômica e geopolítica dos Estados Unidos, importantes transformações

estruturais foram introduzidas com o objetivo de recolocar o capital norte-americano no

centro da economia-mundo. O processo de retomada da supremacia norte-americana foi

consubstanciado, por um lado, pelo processo de globalização financeira e, por outro, pela

“diplomacia das armas”, atrelada ao aumento da corrida armamentista e ao programa “guerra

nas estrelas” (TAVARES, 1997).

42 As taxas de crescimento da economia mundial desaceleraram fortemente. Entre 1958-73 e 1973-82, a taxa de crescimento mundial, em média anual, caiu de 5,0% para 2,8% haja vista a queda na taxa de crescimento do PIB em quase todos os países e regiões a exemplo dos Estados Unidos (de 4,3% para 2,0%), da Alemanha (de 4,9% para 1,6%), da França (5,3% para 2,4%), do Japão (9,8% para 3,5%), da Oceania (4,9% para 2,2), da África (4,7% para 3,5) e da América Latina (5,4% para 3,7%) (GONÇALVES, 2002, p. 111). 43 As taxas médias anuais de crescimento da produtividade, entre 1960 e 1973, nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha, França e no Reino Unido, foram 2,1%, 9,2%, 5,0%, 5,0%, 2,9%, respectivamente. Estas taxas desaceleraram fortemente na década de 1970. Entre 1974 e 1979, tais taxas caíram para 0,3%, nos EUA, para 3,0%, nos Japão, para 2,7%, na Alemanha, para 2,8%, na França, e para 1,1%, no Reino Unido (GONÇALVES, 2002, p. 90).

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Os cânones keynesianos, implementados nos anos dourados do capitalismo, deveriam ser

quebrados para promover uma nova rota de acumulação, assentada na abertura de espaços à

acumulação financeira e no aumento da extração de mais-valia, tanto relativa quanto absoluta,

por meio da flexibilização do trabalho e da reestruturação produtiva conforme descrito na

seção anterior.

As amplas transformações introduzidas no plano da produção, conforme já descrito, não foram

capazes de alavancar a retomada da acumulação produtiva nos níveis dos anos dourados. Nesse

contexto, a superestrutura financeira envereda por uma trajetória de descolamento atrofiado

relativamente à esfera produtiva, destacando-se as alternativas de realização do lucro

financeiro, primeiro na forma de capitais de empréstimos e, depois, como capitais voláteis

especulativos, configurando-se a partir desse momento uma dinâmica de acumulação

predominantemente financeira (BALANCO & PINTO, 2004).

A nova superestrutura financeira levantada depois dos anos 1970 viabilizou a chamada

financeirização, quer dizer, a diminuição acentuada das restrições com as quais as empresas

se deparavam para obter um diferencial de rentabilidade positiva ao privilegiar as aplicações

financeiras em detrimento dos investimentos produtivos (SALAMA, 2000). A aplicação

financeira dos capitais é agora possibilitada por um universo multifacetado de ativos, agentes

e instituições creditício-financeiras que se constituíram em uma notável inovação frente aos

tradicionais agentes participantes desta esfera. Trata-se agora de corporações e governos,

representando um conjunto de agentes e instituições negociadores de papéis, remuneradoras

dos investidores a partir de uma riqueza não previamente existente, ressaltando, portanto, o

caráter acentuadamente especulativo em seu interior (McNALLY, 1999).

Vejamos agora de forma detalhada como a assunção do padrão de acumulação

predominantemente financeiro esteve associada à crise estrutural da década de 1970 e às

estratégias de saídas “internas” da mesma.

A economia norte-americana, ao final dos anos 60, enfrentava déficits astronômicos e

persistentes no balanço de pagamentos, em virtude dos investimentos externos crescentes,

associados ao Plano Marshall e aos gastos militares no exterior com a Guerra do Vietnã. Esses

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dois elementos, e mais a ingente elevação da quantidade de petrodólares no mercado

financeiro europeu, produziram um forte aumento na liquidez do dólar nos mercados

internacionais, provocando a “crise do dólar” na década de 1970. Na verdade, desde o início

dos anos 60, o padrão cambial do dólar-ouro, firmado em Bretton Woods, começava a dar

sinais de precariedade. Segundo Eichengreen (2000, p. 160), em 1960, “pela primeira vez o

passivo monetário dos Estados Unidos no exterior ultrapassou as reservas norte-americanas de

ouro” e, em 1963, “o passivo norte-americano junto a autoridades monetárias externas”

também ultrapassou suas reservas em ouro. A paridade estabelecida entre o ouro e dólar

estabelecida em Bretton Woods estava sob suspeita.

Desde 1947, o economista Robert Triffin já vinha alertando para a instabilidade dinâmica do

sistema de Bretton Woods à medida que aumentava, nos Estados Unidos, a geração de

reservas mediante a acumulação de passivos oficiais no exterior sobre cada vez menos ouro.

Isso causava uma instabilidade no padrão dólar-ouro, conhecida como “dilema de Triffin”, já

que

[...] acumular reservas em dólares era algo atraente apenas na medida em que não houvesse dúvidas sobre sua conversibilidade em ouro. Mas, depois que os saldos em dólares do exterior cresceram muito em relação às reservas norte-americanas de ouro, a credibilidade desse compromisso poderia ser colocada em dúvida. [...] Se alguns credores estrangeiros procurassem converter suas reservas, as decisões destes poderiam produzir o mesmo efeito de uma fila de correntistas às portas de um banco. Outros entrariam na fila por temer que elas fossem fechadas (op. cit., 2000, p. 160).

O crescimento do comércio e da renda nos principais países europeus - que passaram à

condição de superavitários -, a conversibilidade das contas correntes e a gradativa redução das

restrições à mobilidade de capitais levaram a uma encruzilhada, a saber, as políticas

econômicas nos Estados Unidos deveriam preservar a paridade dólar-ouro ou garantir as

medidas internas expansionistas. Diante de tal tensão, os EUA não hesitaram em eleger os

interesses domésticos como prioridade (CUNHA, 2003; EICHENGREEN, 2000).

Em face disso, tornou-se inevitável a ruína do sistema monetário de Bretton Woods, de

relativa rigidez das taxas de câmbio e de taxas de juros fixadas em patamares reduzidos. Tal

resultado possibilitou ao governo norte-americano praticar políticas monetárias expansionistas

e keynesianas de déficits orçamentários “visando, de uma só vez, estimular o crescimento

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doméstico, desvalorizar o dólar para ajudar na competitividade do setor manufatureiro e

depreciar as reservas de dólares mantidas no exterior por governos e indivíduos estrangeiros”

(BRENNER, 2003, p. 69).

O financiamento dos déficits, tanto orçamentários quanto no balanço de pagamentos, do

governo norte-americano, foram realizados a partir do aumento da dívida pública. Para tanto,

foi de fundamental importância o crescimento da mobilidade de capital com o intuito de

captar capitais forâneos e repatriar parte do capital dos Estados Unidos que haviam se

deslocado para a Europa. O aumento da dívida pública norte-americana, nesse primeiro

momento, facilitou os planos produtivistas de retomada do crescimento da economia e, ao

mesmo tempo, fortaleceu os interesses financeiros domésticos dos principais bancos do país.

As economias avançadas, principalmente a dos Estados Unidos, em meados da década de

1970, recorreram uma vez mais, agora excepcionalmente, aos déficits keynesianos, em larga

escala, que geraram intenso crescimento da dívida pública, possibilitando a superação pelo

menos temporária da crise do petróleo através do subsídio à demanda. Contudo, o remédio

keynesiano não limpou o caminho para novas expansões, pois perpetuou o excesso de

capacidade de produção combinada com elevação de preços, gerando estagflação.

Nos anos finais da década de 1970, mais especificamente entre 1977 e 1978, o dólar

apresentava sinais evidentes de sua fragilidade como unidade de reserva de valor em escala

mundial. As estratégias norte-americanas, ao longo dos anos 70, de incorrerem em sempre

maiores déficits orçamentários e em conta corrente para garantir a expansão e a elevação da

competitividade do setor manufatureiro, geraram uma forte desvalorização do dólar, chegando

ao ponto crítico de questionamento da própria posição do dólar como moeda-chave da

estrutura financeira internacional (OLIVEIRA, 2004; BRENNER, 2003).

Nesse contexto crítico de “crise do dólar”, o presidente Carter decidiu adotar uma mudança de

sinal na sua política interna e externa por meio de medidas monetaristas voltadas ao aperto da

base monetária e aos ajustes do “lado da oferta”. A valorização do dólar, em 1979,

implementada de forma unilateral pelo governo dos EUA, a denominada política Volcker,

teve como objetivo estratégico enquadrar os países sócios e os principais competidores

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econômicos do mundo capitalista. Tal política foi centrada na elevação das taxas de juros dos

Estados Unidos que propiciou um direcionamento dos fluxos de capitais da Europa, Japão e,

principalmente dos países subdesenvolvidos, para os Estados Unidos, já que outrora este era o

principal exportador de capitais. Esta ação permitiu o equilíbrio do balanço de pagamentos,

posto que o fluxo de capital oriundo do exterior mostrou-se suficiente para cobrir os déficits

crescentes. Por essa razão, a valorização do dólar em 1979, como um típico ato de força,

acabou por repercutir sobre os mais diversos espaços nacionais, atingindo diferentes

instancias “regulatórias” regionais. A política Volcker, por exemplo, praticamente decretou o

default da maioria dos países latino-americanos na década de 1980.

O (des)arranjo institucional entre Estados - provocado pelo fim do sistema financeiro

internacional “regulado”, em 1973, e pela política do dólar forte adotada, em 1979 – acabou

abrindo espaço para o reflorescimento daquela fração da classe dominante do sistema

capitalista, os rentistas, que fora mantida sob controle relativo durante o padrão de

acumulação dos anos dourados. Isto porque, o novo ambiente estabelecido para a recuperação

do controle social e da acumulação, muito embora se apresentasse eficiente de per se, ao

mesmo tempo abrira caminho inapelavelmente para a prevalência da acumulação em seu

caráter financeiro, o que, por sua vez, passou a limitar a acumulação mediante a reativação do

capital produtivo.

Características inéditas relevantes foram consolidadas como elementos dessa nova arquitetura

financeira, principalmente nos EUA na década de 1990. A primeira delas, relacionada à

tomada de decisão dos proprietários do capital e dos consumidores de alta renda, corresponde

ao fenômeno denominado por Chesnais de “efeito mercado acionário”: este tem dois

componentes, a saber, um “efeito-renda”, que financia o consumo com base em dividendos e

juros, e um efeito “posse de patrimônio”, que patrocina despesas apoiadas em antecipações de

ganhos financeiros futuros (CHESNAIS, 2001).

Nesta nova fase do capitalismo, a liquidez absoluta adquire status de meta exclusiva dos

investidores, assegurando, por isso, um comportamento distintivo relativamente ao mercado

financeiro tradicional. Se, no passado, o interesse primordial era o recebimento de dividendos,

no presente se busca a liquidez a mais ampla possível. Este propósito é viabilizado por

intermédio da apropriação de excedentes bursáteis mediante alternativas amplas de escolhas

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das aplicações, as quais podem ser encaminhadas instantaneamente para os mais diferentes

espaços intra e internacionais. É por essa razão que as finanças exigem mercados financeiros

amplos, onde as transações ocorram livremente em busca de revalorização de títulos e

recomposição de portfólios (op. cit., 2001).

A segunda característica, neste novo padrão, diz respeito ao papel crucial da ampliação do

endividamento do setor público – que outrora fora importante instrumento da acumulação

produtiva - para a consolidação do padrão de acumulação financeira. A elevação, na década

de 1980, do endividamento público do Japão (72,1% do PIB), da União Européia (63,0% do

PIB) e, principalmente, dos EUA (68,7% do PIB) pode ser explicada à luz da importância da

dívida pública na manutenção e ampliação da acumulação capitalista. Nesse contexto,

verificou-se um forte crescimento da participação dos títulos do Tesouro norte-americano na

formação da riqueza financeira - em virtude da grande liquidez de que são dotados -

demandados por agentes privados estadunidenses, como também de outros países

(BELUZZO, 1999).

A recuperação da acumulação, via finanças, não fica apenas restrita aos espaços nacionais

centrais, estendendo-se também aos países periféricos, conformando uma nova relação entre

as nações. A nova arquitetura das finanças internacionais, correspondente a esta lógica,

estrutura uma nova face da chamada “exportação de capitais”. Por conta da adoção dos

procedimentos “desregulatórios” de estirpe neoliberal, o movimento dos excedentes de

capitais, cujos proprietários optam por não transformá-los em investimentos produtivos,

torna-se muito mais fácil. Parcela significativa da chamada liquidez financeira do mercado

internacional flui sem obstáculos entre os países centrais e os países atrasados, sobretudo, na

forma de aplicações especulativas.

Ao mesmo tempo, praticando a arbitragem, tais capitais especulativos não estabelecem prazos

nem critérios definidos para sair dos mercados nacionais, principalmente dos países

periféricos. E quando o fazem, em função de melhores oportunidades em outras regiões do

planeta ou em decorrência da deterioração das contas externas dos países onde se encontram,

deixam um rastro de ataques especulativos que provocam crises econômico-financeiras

agudas. Esta realidade é enfrentada não apenas pelos países latino-americanos, mas também

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por outros países ditos emergentes, como foi o caso da crise de 1997 nos novos países

industrializados do sudeste asiático.

Neste ambiente, a continuidade do pagamento do serviço da dívida e, ao mesmo tempo, a

remuneração generosa do capital estrangeiro especulativo, colocam os países periféricos numa

posição funcional ímpar no escopo da reprodução da acumulação financeira. Esta

funcionalidade os obrigam a implementar políticas de ajuste macroeconômico de forte

contensão do nível interno de atividade, haja vista as elevadíssimas taxas de juros reais

necessárias para manter tal modelo. Paralelamente, o crescimento do endividamento interno,

mediante a oferta de títulos públicos a juros generosos ao capital financeiro, se transformou

em uma componente cotidiana deste processo.

O avanço dessa acumulação financeira provocou a desaceleração do nível de atividade da

economia mundial, inclusive nos países capitalistas avançados, tais como, Japão e União

Européia, que enfrentaram taxas de crescimento reduzidas durante as décadas de 1980 e 1990.

A exceção ficou por conta dos EUA, particularmente na segunda metade dos anos 90, em

virtude dos seus ganhos de senhoriagem sobre o capital financeiro nacional e internacional,

das políticas keynesianas parciais configuradas a partir de gastos bélicos e, principalmente, da

“bolha” do mercado acionário norte-americano que alimentou o boom econômico – o

denominado “efeito mercado acionário”. À época, boa parte do mainstream econômico

acreditava que a hipótese de “bolha” financeira era uma falácia e que, por sua vez, o

crescimento econômico era fruto dos elevados ganhos de produtividade da “Nova

Economia”44 que estaria propiciando o aumento das rendas – inclusive dos lucros - e, por

conseguinte, impactando na elevação dos preços das ações. Inclusive, até o Presidente do

FED, Alan Greenspan, um dito keynesiano, foi seduzido pela idéia da Nova Economia e

declarou, em 1999, que:

Algo especial aconteceu à economia americana [...] As sinergias que se desenvolveram, em especial entre as tecnologias de microprocessamento, de laser, fibras óticas e satélites, dramaticamente elevaram as taxas potenciais

44 A “Nova Economia” estruturava-se a partir das novas tecnologias de comunicação e de informação e de suas respectivas indústrias (TIC). Em meados da década de 1990, muitos economistas apologéticos acreditavam que essa nova estrutura econômica estaria criando uma nova forma estrutural de acumulação capitalista, na qual a riqueza não mais seria originária do trabalho manual e sim do trabalho intelectual que teria na ciência, na tecnologia e no capital humano suas fontes geradoras.

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de retorno em todos os tipos de equipamento incorporando ou utilizando essas novas tecnologias. Além disso, as inovações em tecnologia de informação começaram a alterar a maneira como fazemos negócios e criamos valor, com freqüências de forma que não eram de imediato previsíveis menos de cinco anos atrás (GREENSPAN apud BRENNER, 2003, p. 244).

O otimismo a respeito da Nova Economia como desencadeadora de uma nova era econômica

não durou muito. A dura realidade do “estouro” da bolsa de Nova York, em 2000,

desmanchou no ar a riqueza criada de forma fictícia45. Na verdade, a expansão norte-

americana, da segunda metade da década de 1990, não foi sustentada pelos ganhos de

produtividade do setor de tecnologia e sim pela “exuberância irracional” da criação de capital

fictício no mercado acionário dos Estados Unidos e de seus efeitos sobre o consumo e o

investimento privado. “O mercado de ações veio a exercer [...] um maior impacto na

economia real do que a economia real no mercado de ações [...]. Mas a economia podia

desafiar a atração gravitacional dos retornos reais sobre o investimento apenas por um tempo”

(BRENNER, 2003, p. 253).

Marx, já em sua época, desenvolvera uma análise sobre o processo de fetichização extremada

do dinheiro, proveniente da criação de capital fictício. Segundo ele, isso acontece quando o

capital financeiro assume certa autonomia, pelo menos temporária, em relação ao capital

produtivo – único capaz de gerar a mais-valia. Nas palavras de Marx este processo ocorre

[...] porque o aspecto dinheiro do valor é sua forma independente e tangível, que a forma D-D’, cujo ponto de partida e de chegada são o dinheiro real, expressa de modo mais tangível a idéia de ‘fazer dinheiro’, principal motor da produção capitalista. O processo de produção capitalista aparece somente como um intermediário inevitável, um mal necessário para produzir dinheiro. É por isso que todas as nações submetidas ao modo de produção capitalista são tomadas periodicamente da vertigem de desejarem produzir dinheiro sem a intermediação do processo de produção (MARX apud CHESNAIS, 2001, p. 56).

45 “Ao final de 2001, o índice Nasdaq dominado por empresas de tecnologia e de Internet, sede central da disparada das ações, tinha decrescido em 60% de seu pico do início de 2000. O S&P 500 era território de especulação, caindo em mais de 20% de seu ponto alto. Cinco trilhões em ativos desfizeram-se como fumaça” (BRENNER, 2003, p. 315).

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O boom da economia norte-americana da década de 1990, sustentado pelo capital fictício do

mercado acionário na Nova Economia, foi mais uma vertigem dos capitalistas em suas

tentativas de criar dinheiro sem a presença da produção. Tal vertigem começou a se dissipar

com o colapso da bolsa Nasdaq em 2000. Com o “estouro da bolha” acionária iniciou-se um

processo de recessão nos Estados Unidos em virtude da queda dos investimentos, haja vista a

inversão do efeito propriedade (redução nos gastos e dos empréstimos das empresas e das

famílias) e o excesso de capacidade, legado da economia da bolha (BRENNER 2003;

SERRANO, 2004).

A desaceleração da economia mundial, a partir dos anos 1970 até os dias atuais, a exceção dos

Estados Unidos na década de 1990, o caráter errático do crescimento do PIB mundial e as

crises financeiras foram características econômicas do padrão de acumulação dominado pelas

finanças. Outra característica marcante fora as transformações políticas no âmbito das

relações entre os Estados-nações em vista do maior controle dos Estados Unidos sobre os

demais países e dos conflitos intra-nacionais devido aos novos rumos das estratégias públicas

frente ao novo poder das finanças.

2.3. Economia política internacional contemporânea: alguns aspectos do debate acerca

do Estado-nação, do “Império” de Hardt e Negri, das instituições “supranacionais’ e das

dimensões e contradições do “novo imperialismo”

A compreensão da economia política internacional atual perpassa pela análise das dimensões

constitutivas das relações entre os Estados-nações num contexto capitalista de globalização

das finanças e de reestruturação produtiva. Na verdade, as relações entre os Estados são

configuradas a partir da posição hierárquica em que cada Estado se insere na economia-

mundo. Tal posicionamento de “comando” depende da configuração intra-estatal das forças

produtivas, da divisão do trabalho e do intercâmbio interno. Marx e Engels, em passagem a

seguir do livro Ideologia alemã, já tinham alertado para a importância das formações sociais

distintas intra-estatal como fator fulcral no entendimento das relações inter-estatais:

As relações entre umas nações e outras dependem do estado de desenvolvimento em que se encontra cada uma delas no que concerne às forças produtivas, à divisão do trabalho e ao intercâmbio interno. Tal princípio é em geral conhecido. Entretanto, não apenas a relação de uma

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nação com outras, mas também toda estrutura interna desta mesma nação, dependem do grau de desenvolvimento de sua produção e de seu intercâmbio interno e externo. O quanto as forças produtivas de uma nação estão desenvolvidas é mostrado da maneira mais clara pelo grau atingido pela divisão do trabalho [...] (MARX & ENGELS, 1999, p.28-29).

Antes de analisar as relações interestatais contemporâneas, faz-se necessário, em primeiro

lugar, apreender uma breve análise do papel e das funções do Estado-nação no modo de

produção capitalista. Tal intento se constitui numa tarefa, em certa medida complexa, mesmo

sendo um breve panorama da problemática do Estado. Lênin em conferência alertara sobre a

dificuldade do entendimento sobre tal problemática:

[...] A questão do Estado é uma das mais complexas, mais difíceis e, talvez, a mais embrulhada pelos eruditos escritores e filósofos burgueses. [...] Todo aquele que quiser meditar seriamente sobre ela e assimilá-la por si, tem de abordar essa questão várias vezes e voltar a ela uma e outra vez, considerar a questão sob diversos ângulos, a fim de conseguir uma compreensão clara e firme (LÊNIN apud CODATO & PERISSINOTTO, 2001, p. 01).

A compreensão da realidade (modo de produção capitalista) passa pelo entendimento das

contradições de classe, do papel ativo que o Estado tem na regulação dos conflitos de classes

e das relações entre a classe capitalista e o Estado. Tarefa bastante complexa é que não se

pretende esgotar aqui, uma vez que este não é o eixo central desta pesquisa. Para tanto, adota-

se neste trabalho a concepção marxiana de Estado assentada num enfoque antideterminista,

isto é, uma relação dialética entre as relações de produção e o Estado (um dos elementos da

superestrutura), entrelaçados num todo, com a centralidade das relações sociais de produção

configurada pela luta de classes. Dessa forma, em Marx, o Estado não é reduzido a uma

estrutura econômica, nem, por outro lado, o Estado tem o poder de determinar, de forma

autônoma plena, a realidade social de produção. Na verdade, para Marx e Engels, a estrutura e

a função do Estado são reflexos das lutas e contradições históricas entre as classes capitalistas

e trabalhadoras e suas respectivas frações. Sabe-se que ao adotar tal concepção de Estado

marxiana está-se adentrando por um dos debates “mais pantanosos do marxismo”. O cuidado

aqui é o de não ficar preso nesse emaranhado teórico sobre o papel do Estado.

Apesar do aparente antagonismo, ao longo da história, entre o capital e o Estado, esta disputa

só é realmente conflituosa quando os capitalistas são considerados de forma individual.

Efetivamente, o que existe é uma dialética “virtuosa e feliz” entre Estado e capital, na medida

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em que o Estado, desde sua formação, entre outras coisas, funcionou e funciona como

regulador precípuo da acumulação capitalista através da regulamentação e controle da

circulação do dinheiro, do emprego/desemprego da força de trabalho, da dívida pública e da

garantia da propriedade privada. Para Marx e Engels (1998, p. 03) “o executivo no Estado

moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”.

Isto quer dizer que o Estado, embora contrarie, às vezes, os interesses imediatos dos

capitalistas individuais, atua em prol, no longo prazo, dos capitalistas como coletividade.

Funciona, assim, como um aparelho de regulação e coerção dos conflitos tanto entre as

frações da classe dominante quanto entre as classes capitalista e proletária.

Tal dialética virtuosa assume diferentes formas ao longo das diferentes fases do capitalismo.

Na fase da acumulação originária, pré-capitalista, entre os séculos XV e XVIII, o Estado

absolutista europeu presidiu formas de violência extra-econômicas para abrir espaços para o

capitalismo através da expropriação e expulsão de parte do povo do campo. Quer seja,

transformando “os pequenos camponeses em trabalhadores assalariados, e seus meios de

subsistência e de trabalho em elementos materiais do capital”, quer seja criando, “ao mesmo

tempo, para esse último seu mercado interno”, separando radicalmente os produtores

campesinos dos seus meios de produção (MARX, 1985, p.283). O Estado funcionou, também,

como garantidor do contrato social/propriedade privada por meio do seu poder de polícia,

ensejando sustentar e ampliar a acumulação capitalista.

Ao longo das mudanças históricas e do contexto reconhecidamente diferente das condições

analisadas por Marx e Engels, o debate acerca do papel do Estado no marxismo foi assumindo

duas tendências diferenciadas: uma ótica instrumentalista (funcionalista) e outra

estruturalista, ambas derivadas de uma ampla gama de posições. Na perspectiva

instrumentalista o Estado funciona como um “instrumento nas mãos das classes dominantes,

ou, mais concretamente, de suas variadas frações burguesas”, por outro lado, na ótica

estruturalista, o Estado “como nada mais do que algo postado acima dos conflitos de classes,

ou como instância dotada de total autonomia diante deles” (OLIVEIRA, 2004, p.216).

A discussão teórica desses dois eixos marxistas a respeito do papel do Estado se renovou, ao

longo dos anos 1970 e início de 1980, a partir do debate analítico entre a visão estruturalista e

a perspectiva da luta de classes, configurado através do conhecido debate entre Poulantzas

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(estruturalista) e Miliband (luta de classes)46. Para Poulantzas (1977) o Estado teria a função

de coerção social e corresponderia aos interesses políticos da classe dominante. Entretanto,

para ele, o Estado tem uma autonomia relativa no que tange às classes e frações de classe do

bloco de poder. Noutra perspectiva, Miliband (1970) considera uma fraqueza a idéia de

Poulantzas de autonomia relativa, já que existe um “superdeterminismo estrutural”. Segundo

Bonefeld, as “estruturas [, dentre elas o Estado,] devem ser vistas como modo de existência

‘do antagonismo de capital e trabalho’ e então como resultado e premissa da luta de classes”

(BONEFELD, 1992 apud MOLLO, 2001, p. 353).

No decorrer dos anos 1970 e 1980 emergem, a partir do viés estruturalista, algumas correntes

renovadas desse eixo, uma delas foi a escola de regulação. Nessas novas correntes

estruturalistas a

[...] luta de classes representa [...] papéis especificamente secundários – ainda que importantes – no desenrolar do processo de tomada de decisão, tolhida que está por leis objetivamente dadas. Sua influência nesse modelo é secundária, resumindo-se ao papel de instâncias meramente condicionadora – da aceleração ou do retardamento de processos – sem que, em qualquer momento, constitua num desafio ao desenvolvimento do capital em si mesmo (OLIVEIRA, 2004, p. 224).

Desse modo, as estruturas capitalistas acabariam definindo os condicionantes da luta de

classes e de suas orientações. “A luta de classes perde o caráter de motor da história, em nome

da autonomia relativa da estrutura hegemônica” (BONEFELD apud OLIVEIRA, 2004, p.

225).

Codato & Perissinotto (2001) identificam nas obras de Marx o papel reprodutivo do Estado,

num nível mais geral e abstrato. Segundo tais autores, o Estado “é a ‘forma política’ da

sociedade burguesa e o ‘poder de Estado’ identifica-se plenamente como o poder de classe” e

que a autonomia que o Estado adquire “em determinadas situações históricas não faz delas

uma força social ‘autônoma’ ou ‘descolada’ da sociedade”. Ainda segundo eles, o Estado,

numa análise mais “conjuntural”, em que se configuram “as lutas políticas de grupos, facções

e frações de classe”, pode ser percebido como uma instituição dotada de “capacidade de

46 Uma resenha detalhada do debate entre Poulantzas e Miliband pode ser encontrada no artigo A concepção marxista de Estado:... de Maria de Lourdes Rollemberg Mollo (2001)

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decisão” e de “capacidade de iniciativa” (CODATO & PERISSINOTTO, 2001, p. 17). Assim,

segundo Codato & Perissinotto, é possível pensar o “poder de Estado” separado do “poder de

classe”, mas em constante relação conflituosa quando apreendido numa perspectiva

“conjuntural”.

Muitos cientistas sociais estariam se perguntando os porquês de se analisar o papel do Estado

no momento em que se anunciam os funerais teóricos do Leviatã (Estado-nação). A

importância de tal análise reside no fato de que o Estado continua a desempenhar papéis

significativos na dinâmica da reprodução capitalista e que as visões de fim do Estado são

perspectivas apressadas e disformes da realidade contemporânea intra e interestatal. Nelson

Oliveira, em trecho abaixo, do seu livro Neocorporatismo e política pública: ..., reafirma a

importância do Estado nacional no capitalismo contemporâneo:

O Estado nacional não só não foi eliminado como instância estratégica como continuou a desempenhar papéis importantes na reconstrução dos espaços mais atingidos pela crise dos anos 70-80. As novas formas institucionais que passam a responder pela regulação do ciclo reprodutivo do capital no âmbito internacional mais parece reforçar do que negar alguns de seus papéis históricos fundamentais. Não se trata, apenas, de papéis tradicionais enquanto fonte de legitimação e coerção, mas de sua inserção mesmo como instância necessária à transformação das dinâmicas internas nos espaços nacionais como componente do processo de acumulação internacional (OLIVEIRA, 2004, p. 233-234).

2.3.1. A morte do Leviatã e o “Império” de Hardt & Negri: visões distorcidas das

relações estatais

As transformações contemporâneas nas relações intra e interestatais têm suscitado diversos

entendimentos sobre o atual papel do Estado. Para muitos, inclusive das mais diversas matizes

ideológicas, o Leviatã teria ou estaria por se sucumbir diante de uma nova “ordem

capitalista”. Esta nova configuração teria eliminado ou restringindo a soberania nacional dos

Estados-nações, extinguindo assim, a sua principal prerrogativa histórica. As visões de “fim”

do Estado não ficaram restritas apenas ao campo dos liberais e se espraiaram por distintas

perspectivas desde as heterodoxas até as mais a esquerda. Os ultraliberais globalistas,

representantes da ciência política norte-americana, sustentam que a internacionalização

produtiva e financeira libertou o capital das correntes do Leviatã e que a “mão invisível” iria

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conduzir a uma convergência internacional. Outros arquétipos advogam que as questões

políticas, administrativas e econômicas que antes seriam prerrogativas dos Estados-nações

teriam sido transferidas para a esfera supranacional, quer seja para órgãos ou instituições

“supranacionais”, tais como, as Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio

(OMC), o Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), quer seja para os

mercados financeiros privados (“Governo Mundial”).

Por outro lado, procurar-se-á demonstrar que as idéias propaladas da decadência, fim ou

transcendência do Estado-nação são visões distorcidas da realidade capitalista hodierna, uma

vez que este continua como um fator central na política, sendo o lócus do poder de classe,

mesmo com a assunção das empresas transnacionais e das instituições “supranacionais”. Não

se defende aqui a idéia de que “nada mudou” nas relações entre Estados. Na verdade, parti-se

do constructo de que o Leviatã continua vivo e robusto só que mais restrito aos espaços

estadunidenses e de alguns países europeus. Isso, por sua vez, tende a restringir, em certa

medida, o exercício de soberania nacional dos Estados mais frágeis. Tais redefinições de

hierarquias e de graus de autoridade no exercício das soberanias nacionais - alçando os EUA

ao posto de país com maior poder soberano - estão associadas ao aumento das tensões tanto

externas, provocadas por modificações nas relações de coerção e controle entre os Estados,

quanto internas, em virtude dos novos rumos das estratégias públicas controladas por frações

da classe dominante.

Rosecrance, um dos principais expoentes da escola globalista norte-americana, sustenta “a

hipótese de total internacionalização do capital, libertando-se definitivamente das amarras dos

Estados-nação” (ROSECRANCE apud VIGEVANI et al, 1994, p. 22). Ele argumenta que o

único regulador possível do sistema internacional seriam as relações econômicas (“mão

invisível”). Estas, inclusive, deveriam ter, no máximo, uma ligação tênue com a sua base

territorial, não se apoiando na existência do Estado. Nessa perspectiva o mundo do futuro

pertenceria às nações comerciais, o que permitiria um crescimento maior da riqueza, caso

houvesse uma economia mundial mais livre.

Para Vigevani et. al., os teóricos norte-americanos globalistas depositam absoluta confiança

no mercado, haja vista suas crenças e, principalmente, devido “a idéia de que os Estados

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Unidos ainda possuiriam vantagens comparativas no sistema internacional, o que lhe daria

sustentação para melhorar sua própria posição” (VIGEVANI et. al., 1994, p.22).

Até mesmo um teórico como Giovani Arrighi, que se aproxima do arquétipo de economia-

mundo47 de Fernand Braudel e de Immanuel Wallerstein, em que haveria um sistema político

estruturado a partir de Estados soberanos distribuídos em diferentes níveis de soberania, vem

defendendo recentemente que os Estados-nações estão perdendo a capacidade de controlar as

finanças. Segundo Arrighi et. al. “à medida que esse sistema [interestatal] ganhou âmbito

global, [...], a maioria dos Estados perdeu prerrogativas historicamente associadas à soberania

nacional. Até nações poderosas, [...] têm sido descritas como ‘semi-soberanas’”(ARRIGHI et.

al., 2001, p.103). De acordo com tais autores, a desintegração da ordem mundial bipolar

provocou uma fissão das duas fontes de poder mundial: militar e financeiro. O poder eficaz de

violência (militar) concentrou-se ainda mais nos EUA, potência vencedora da guerra fria,

enquanto o poder financeiro dispersou-se pelos múltiplos rivais, concentrando-se nas mãos de

agentes empresariais transnacionais. Essa bifurcação entre militar e financeiro, no âmbito da

economia política global, segundo eles, vem diminuindo a capacidade dos Estados de

controlar o processo de acumulação do capital globalizado.

Alguns teóricos que lutam contra o domínio do capital48, também, embarcaram nessa “onda”

de “nova ordem mundial” de negação do Estado-nação. A obra Império de Hardt & Negri é

um exemplo rico e paradigmático dessa nova linha de luta da “multidão” contra o “Império”,

estágio este que, segundo tais autores, o capital teria destruído os limites entre o “interior” e o

“exterior” e, por conseguinte, eliminado qualquer resquício de Estado-nação. Vejamos agora

de forma mais detalhada os principais conceitos e enlaces da obra dos últimos autores

mencionados que tem suscitado amplo debate crítico.

47 A economia-mundo é uma estrutura social que tem fronteiras, grupos integrantes e uma legitimação social, no qual existem forças conflituosas que o mantêm unido. Tal estrutura socioeconômica centra-se em três eixos, a saber: i) um sistema econômico integrado mundialmente, tendo um centro polarizador da dinâmica econômica; ii) um sistema político alicerçado em Estados soberanos e com diferentes hierarquias de autonomias e poder; iii) e, fim, um modelo cultural que legitime e dê coerência ao sistema (BRAUDEL 1994; WALLERSTEIN, 1985). 48 “A militância atual é uma atividade positiva, construtiva e inovadora. Esta é a forma pela qual nós e todos aqueles que se revoltam contra o domínio do capital nos reconhecemos como militantes. Militantes resistem criativamente ao comando imperial. Em outras palavras, a resistência está imediatamente ligada ao investimento constitutivo no reino biopolítico e à formação de aparatos cooperativos de produção e comunidade” (HARDT & NEGRI, 2001, p. 437).

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Hardt & Negri (2001, p. 325) sustentam que “a mudança do paradigma de produção para o

modelo de rede fomentou o poder crescente das empresas transnacionais, além e acima das

tradicionais fronteiras dos Estados-nações”. Quer dizer que estes perderam soberania e

autonomia política, tornando-se incapazes de regular as permutas econômicas e culturais

agora articuladas em rede. Para tais autores, a rede, equivalente a uma infra-estrutura de

informação, por sua característica imanente, estaria alterando a base econômica e social da

sociedade49, reforçando o poder das empresas transnacionais e, por conseguinte, teria

reduzido a zero a autonomia política dos Estados nacionais. Por isso, segundo Hardt & Negri,

o fim do Estado-nação teria eliminado o imperialismo moderno no sentido leninista. O mundo

teria transitado do imperialismo para um “Império” pós-moderno, do “não lugar”50, em que a

soberania estaria agora circunscrita ao patamar dos organismos supranacionais. Tais autores

deixam isso bastante claro, na passagem abaixo, no início de sua obra:

O império está se materializando diante de nossos olhos. Nas últimas décadas, [...] quando as barreiras soviéticas ao mercado do capitalismo mundial finalmente caíram, vimos testemunhando uma globalização irresistível e irreversível de trocas econômicas e culturais. Juntamente com o mercado global e com circuitos globais de produção, surgiu uma ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando - em resumo, uma nova fase de supremacia. O império é a substância política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo.[...] Os fatores primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens – comportam-se cada vez mais à vontade num mundo acima das fronteiras nacionais (HARDT & NEGRI, 2001, p.11).

É preciso ressaltar que, nessa visão, as funções do Estado-nação e seus elementos

constitucionais não desapareceram, mas sim, deslocaram-se ao plano da dominação dos

“organismos nacionais e supranacionais”. “O declínio da soberania dos Estados-nação,

entretanto, não quer dizer que a soberania como tal esteja em declínio” (Hardt & Negri, 2001,

p.12). Portanto, segundo eles, a soberania se revestiria de uma nova forma – englobando

organismos internacionais e supranacionais, regidos por uma lógica única – que levaria à

constituição do poder em nível supranacional: o Império.

49 No auge da produção contemporânea, a informação e a comunicação são as verdadeiras mercadorias produzidas e a rede, em si, é o lugar tanto da produção quanto da circulação (HARDT & NEGRI, 2001). 50 Nesta perspectiva, não existiria mais a diferença entre os países do primeiro e do terceiro mundo, já que estas realidades tornar-se-iam híbridas, na qual o primeiro mundo poderia ser encontrado no terceiro e vice-versa. Essa concepção está vinculada à metáfora da “aldeia global” cujas diferenças entre países e regiões (territórios) teriam se deslocado para o espaço virtual (rede).

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O poder, nessa nova arquitetura supranacional, seria representado de forma piramidal, a saber:

i) no topo: os organismos internacionais e o organismo nacional norte americano; ii) no meio:

as redes de empresas transnacionais e os organismos nacionais subordinados ao poder destas

empresas; e iii) na base: a Mídia, a Igreja, os organismos nacionais e, principalmente, as

ONGs que representariam os interesses populares: a multidão. Apesar da existência destes

três níveis, na pirâmide de poder no Império, não haveria uma hierarquia entre esses níveis

nem um equilíbrio funcional de poder, pois existiria uma hibridização entre os poderes, o que,

por sua vez, abriria espaço para a assunção da multidão, possibilitando as modificações

estruturais através das lutas políticas contra o império. Para tais autores, o avanço do trabalho

imaterial51 teria modificado a estrutura de poder conformando uma sociedade biopolítica52

que se aproximaria da idéia foulcaultiana de poder. Tal perspectiva teria eliminado as classes

e, conseqüentemente, a contradição entre capital versus trabalho (HARDT & NEGRI, 2001).

A luta política que se consubstanciava no âmbito do Estado-nação, portanto, teria se findado e

deslocado ao âmbito do “não lugar” e do lócus do digital, onde ocorreria o conflito político

entre a “multidão” e o “Império” devido às novas configurações produtivas. Assim, a

comunicação e a informação, como novos elementos centrais do modo de produção, teriam

fomentado, por um lado, a vitória das empresas transnacionais sobre os Estados-nações e, por

outro lado, estariam propiciando a diminuição da subsunção do trabalho pelo capital, pois

com a ascensão do trabalho imaterial abrir-se-ia a possibilidade de auto-valorização do valor,

em certa medida, independente do capital.

Cérebros e corpos ainda precisam de outros para produzir valor, mas os outros de que eles necessitam não são fornecidos obrigatoriamente pelo capital e por sua capacidade de orquestrar a produção. A produtividade, a riqueza e a criação de superávits sociais hoje em dia tomam a forma de interatividade cooperativa mediante lingüísticas, de comunicação e afetivas. Na expressão se suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece,

51 Para Hardt e Negri (2001) o trabalho imaterial vincula-se à produção de serviços, bens culturais, conhecimentos ou comunicação, tornando indispensável à presença das tecnologias da comunicação e do computador nas atividades laborais. Uma análise crítica consistente do conceito de trabalho imaterial adotado por Hardt e Negri pode ser encontrada em Prado (2003) 52 “O poder se torna inteiramente biopolítico, todo corpo social é abarcado pela máquina do poder e desenvolvimento. Essa relação é aberta, qualitativa é expressiva que vai até os gânglios da estrutura social e seus processos de desenvolvimento, reage como um só corpo” (NEGRI & HARDT, 2001, p. 43). Dessa forma, para eles, o poder estaria disperso, mais “democrático” e imanente ao campo social, na medida em que estaria distribuído por corpos e cérebros dos cidadãos. Nessa visão o poder aparece como uma dimensão biológica que perpassa pela dimensão individual sendo associado à produção e à reprodução da própria vida.

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dessa forma, fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar (HARDT & NEGRI, 2001, p. 315).

Essas múltiplas teses, que vêm diagnosticando o fim ou declínio do Estado-nação, quase

sempre apresentam relações problemáticas, já que elas partem de relações sem mediações, o

que, por sua vez, implica em um reducionismo da política à economia (“economicismo”) ou

da política a uma síntese biotecnológica53 (Hardt & Negri, Castells, dentre outros).

Na visão economicista liberal parte-se do pressuposto que a expansão e a centralização do

capital, no espaço mundial, estariam provocando a restrição, quase que total, da esfera política

nacional, delegando as livres forças do mercado à regulação socioeconômica que levaria a

convergência entre os espaços. Assim, uma “nova ordem global” estaria adoçando os

costumes e, com o fim da Guerra Fria, aproximando o mundo da “paz perpétua”. A velha

retórica liberal smithiana, ricardiana e kantiana abstrata retornando mais viva do que nunca

para legitimar o contexto atual.

Na perspectiva reducionista da política a uma síntese biotecnológica, de forte influência

fulcotiana e spinosiana, desenvolvida por Hardt e Negri e outros autores dessa linha, ocorre

um fetichismo da comunicação e da informação, na medida em que os bites e os átomos, os

instrumentos, estariam modificando os atores da sociedade: os homens. Na verdade, a

construção do Império e do contra-império de Negri & Hardt, que busca, explicitamente, a

ruptura com determinados padrões de dominação na sociedade, não consegue se liberar de

uma visão utópica de emancipação, posto que, através da tese da imanência do indivíduo

acabam por formular uma leitura pouco profícua das verdadeiras contradições de classes que

perduram na sociedade atual.

Além desse fetiche verificam-se vários elementos problemáticos “aos mil platôs” do Império

de Hardt & Negri como destacado por Eleutério Prado, em seu artigo Pós-grande indústria:

53 “A revolução da produção da comunicação e da informação transformou práticas laborais a tal ponto que todas elas tendem ao modelo das tecnologias de informação e comunicação. Máquinas interativas e cibernéticas tornaram-se uma nova prótese integrada a nossos corpos e mentes, sendo uma lente pela qual redefinimos nossos corpos e mentes” (HARDT & NEGRI, p.312). Verifica-se claramente, nesse trecho e ao logo de toda obra, que tais autores advogam da idéia que, em última instância, a mudança tecnológica estaria modificando o homem, um ser biológico, alçando assim, o sistema a novos padrões socioeconômicos.

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trabalho imaterial e fetichismo..., e por Jacques Bidet, em seu artigo A multidão perdida no

império. Segundo Eleutério Prado, Hardt & Negri ao preverem a dissolução do Estado-nação

e a emergência de uma nova soberania global (Império) não teriam percebido os verdadeiros

movimentos de poder nas relações inter-estatais. Para ele, “o que se vê emergir atualmente é o

Império Americano que hierarquiza os Estados nacionais e que põe o próprio Estado

americano no topo, o que pode ser encarado, talvez, como um estágio superior do

imperialismo” (PRADO, 2003, p. 130).

A visão distorcida de Hardt e Negri ocorreu em virtude das suas perspectivas de Estado

capitalista como uma ordem jurídica e política de dominação sem levar em conta a influência

das dimensões contraditórias do modo de produção. O Estado, além de suas dimensões

jurídica-política, “deve ser derivado das contradições entre a aparência e a essência do modo

de produção capitalista” (FAUSTO apud PRADO, 2003, p.130).

Nessa mesma linha crítica à Hardt e Negri, Bidet argumenta que

não haveria, sem dúvida alguma, nada a objetar ao “império” se ele não se colocasse como substituto no campo conceitual à estrutura de classe e ao sistema-mundo, que – em seu tempo – foram a força crítica do marxismo, frente às questões de uma alternativa e de “uma outra mundialização”. [...] Ora, é preciso objetar [a idéia de fim do] Estado-nação, ao contrário, [ele] cresce vertiginosamente em potência (BIDET, 2004, p. 100).

Aceitar a idéia de deslocamento do poder para o âmbito supranacional seria admitir que as

empresas transnacionais não tivessem uma base nacional. Não obstante, tais empresas têm um

alcance global, mas sua propriedade encontra-se numa base nacional que legisla e protege

estes capitais. Na verdade, o constructo de Império de Hardt e Negri tende a perceber a

realidade de forma distorcida, haja vista a idéia de transformação a partir da imanência

individual e do caráter fetichista do biopoder e da sociedade de controle. Isso desencadeia,

por sua vez, uma leitura disforme dos acontecimentos históricos recentes, obliterando o

crescimento do controle do Estado-nação norte-americano sobre os demais Estados. Portanto,

o Estado-nação atualmente, como outrora, continua operando como um agente de controle e

hierarquização em favor do capital diante do trabalho.

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Ao relermos a história das relações conflituosas e, até certo ponto, complementares entre o

Estados-nações e o desenvolvimento internacional do capitalismo pode-se compreender

melhor que a crise contemporânea da maioria dos Estados não deriva do fenômeno de que

eles sejam hoje menos soberanos do que sempre foram diante do poder do capital ou das

grandes potências. Na verdade, as modificações do capitalismo hodierno não eliminaram as

funções dos Estados nacionais. O que agora ocorre é a redefinição de suas hierarquias e de

seus graus de autoridade no exercício de suas soberanias (FIORI, 1997).

Apesar das transformações do padrão de acumulação verificadas nas últimas três décadas, não

podemos afirmar que o capital e os mercados financeiros se tornam independentes do poder

político. Segundo Chesnais, “a globalização entendida como a mundialização do capital não

apaga a existência de Estados nacionais, nem as relações de dominação e de dependência

entre eles. Ao contrário, acentuam os fatores de hierarquização entre países...” (CHESNAIS,

1997, p. 22).

O Estado-nação, na figura dos Estados Unidos, se robustece e se apropria de armas mais

poderosas, de funções repressivas, para garantir a assunção da acumulação rentista. Sendo

assim, o capital e os mercados financeiros não se desvinculam do poder político, uma vez que

este continua sendo uma condição indispensável à multiplicação da lucratividade. Na verdade,

o que se altera não é o papel do poder político, mas sim suas formas de atuação e proteção dos

espaços nacionais econômicos garantidos para seus capitais.

Em suma, as transformações do padrão de acumulação verificadas nas últimas três décadas

conformaram modificações nas relações entre espaços nacionais, contudo não se extingui o

Estado nacional, nem mesmo as relações de dominação entre eles. Na verdade, o que se

verifica é que após a crise da macroestrutura definida pelos acordos de Bretton Woods, os

organismos “supranacionais”, entre os quais se destacam o FMI, o Banco Mundial e a OMC

(ex-GATT), são utilizados como peças chaves das novas formas de integração dos espaços

nacionais à dinâmica do capital. Isto acaba facilitando o processo acelerado de centralização

acima observado, cujo rebatimento mais importante é a ampliação do poder econômico e

político num espaço restrito, qual seja, o Estado norte-americano. Estas agências, na verdade,

colaboram para a cristalização de uma nova configuração interestatal com a elevação da

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hierarquização entre países, a qual apresenta o Leviatã estatal americano desfrutando de uma

ascendência inaudita sobre os demais Estados nacionais.

2.3.2. As relações entre as instituições “supranacionais” (FMI, Banco Mundial e OMC) e

o capital estadunidense e europeu

Mais do que nunca as instituições criadas pelos acordos de Bretton Woods revelam sua

importância para a integração do capital tanto financeiro, quanto produtivo. O Fundo

Monetário Internacional (FMI) foi um dos principais elementos dessa nova integração

capitalista, uma vez que impôs e vem impondo aos países periféricos um conjunto de

reformas que incluíam e incluem como pilares a desregulamentação financeira e comercial e a

flexibilização do trabalho. Tais medidas visam a atender a novas perspectivas da remuneração

do capital dinheiro, amplamente especulativo, e a subsidiar as mudanças na estrutura da

organização da produção e do trabalho (reestruturação produtiva) voltadas à ampliação da

mais-valia.

Para asseverar a acumulação financeira do capital, em sua estratégia alternativa às limitações

na acumulação produtiva, e ampliar as taxas de exploração no âmbito da produção, tornou-se

necessário a introdução de mecanismos de potencialização da mobilidade do capital

financeiro, da liberalização comercial e da desmesurada coerção e controle sobre o trabalho.

Para tanto, os EUA e as potências européias, passaram a impor - via Banco Mundial (BM),

FMI e Organização Mundial do Comércio (OMC), haja vista seu forte controle sobre estas

instituições – os ajustes estruturais. Isso, por sua vez, conformou um novo quadro político-

econômico que se materializou na aplicação do chamado receituário neoliberal.

Não surpreende, portanto, que com a crise e com suas saídas “internas”, o Banco Mundial, o

FMI e a OMC, instituições econômicas “supranacionais”, tenham se fortalecido, uma vez que

elas continuam a desempenhar, só que agora de forma ampliada, funções relevantes para o

ajuste integrativo dos espaços mundiais à luz das novas condições de produção e reprodução

do capital. Fica patente a preocupação embutida nos principais movimentos efetuados por

estas instituições, estreitamente identificadas com os seguintes eixos dominantes: i)

capitalismo como eixo da esfera econômica; ii) democracia liberal no campo político; iii)

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valores culturais coerentes com as perspectivas liberais. Este ideário torna-se uma quase

obrigação a ser comprida pelos países que disputam empréstimos ou ajuda financeira,

principalmente, nos momentos em que enfrentam dificuldades de captação de recursos para

projetos produtivos ou crises cambiais, associados a problemas nos balanços de pagamentos

(OLIVEIRA, 1998).

Com o intuito de consolidar este ideário neoliberal, o FMI e o Banco Mundial impõem os

ajustes estruturais aos países que enfrentavam e enfrentam dificuldades. Em linhas gerais,

existe uma concordância entre FMI e Banco Mundial nas principais estratégias das reformas

institucionais. Vejamos, em cada item seguinte, primeiro as “recomendações” e seus

respectivos objetivos que conformam os ajustes estruturais: i) liberalizar o comércio, revisar

políticas de preços e diminuir os subsídios com o objetivo de permitir a operacionalização das

vantagens comparativas; ii) eliminar restrições ao investimento externo e alentar a

intermediação financeira com taxas de juros reais positivas com o intento de remover a

repressão financeira e fomentar a livre circulação de capitais; iii) redefinir o papel do setor

público em atividades econômicas, reduzir os programas sociais “universalizantes”, eliminar

subsídios aos bens e serviços públicos objetivando estimular a iniciativa privada, estabelecer

prioridade de investimentos sociais (políticas focalizadas) e desalentar gastos improdutivos

que pesem no déficit fiscal (LICHTENSZTEJN & BAER, 1987).

Ademais, o Banco Mundial, em parceria ideológica com o FMI, continua a desempenhar

papéis a que sempre se propôs desde sua criação como parte dos acordos de Bretton Woods. E

nunca foram, como agora, tão explícitas e declaradas as funções atribuídas às principais peças

da sua holding, formada pelo BIRD (Banco Internacional de Reconstrução e

Desenvolvimento), encarregado do financiamento de projetos de infra-estrutura do capital de

um modo geral; pela CFI (Corporação Financeira Internacional), dirigida para o

fortalecimento do capital privado, com mais ênfase nos países com maior intervenção estatal

até recentemente; e pela AID (Agência Internacional para o Desenvolvimento), esta última

voltada para empréstimos aos países mais pobres (OLIVEIRA, 1998).

Os países centrais e, mais especificamente, os EUA sempre tiveram claro predomínio na

concepção e implementação tanto do FMI quanto do BM. Hoje, como outrora, os Estados

Unidos são o principal país membro (poder de votos) das duas instituições. O controle norte-

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americano não se restringe apenas aos aspectos organizativos. Cabe destacar, também, que o

Tesouro estadunidense exerce grande influência na estrutura de poder do Fundo e do Banco

(LICHTENSZTEJN & BAER, 1987).

Além do Banco Mundial e do FMI, as novas formas de integração capitalista se sustentam,

também, através da OMC. Estas instituições formam um tripé “virtuoso” para a produção e

reprodução do capitalismo. Após a Rodada Uruguai e a criação da OMC, as economias

nacionais foram obrigadas a adotar uma nova regulação comercial do investimento, dos

serviços e da propriedade intelectual. Essas regras, da OMC, de enquadramento a respeito de:

ações antidumping, subsídios e medidas compensatórias, agricultura, têxteis e propriedade

intelectual, facilitaram e facilitam as práticas monopolistas das grandes empresas

internacionais, ao mesmo tempo em que não impedem o protecionismo e a regulação nacional

das grandes potências. Na verdade, essas regras, não têm qualquer outra razão econômica, a

não ser os interesses de um conjunto limitado de grupos poderosos nos países industrializados

(TAVARES & BELLUZO, 2002).

A OMC não apresenta um poder amplo para que suas deliberações e propostas de retaliações,

no âmbito do comércio mundial, se efetivem. Na verdade, as medidas de retaliações

encaminhadas pela OMC fornecem um respaldo importante, na esfera legal, para os países

poderosos, nos processos de conflito comerciais com os países fracos. Isso já não acontece no

sentido inverso, pois as queixas consubstanciadas pelos países em desenvolvimento e

reconhecidas pela OMC, têm pouca funcionalidade quando o adversário é uma potência

mundial (GONÇALVES, 2000). Assim, a OMC, da mesma forma que o FMI e o Banco

Mundial, se transformou em utensílio relevante da política econômica externa de países

desenvolvidos, particularmente dos Estados Unidos.

Em linhas gerais, observa-se claramente que o novo papel das instituições “supranacionais”

é viabilizar novos processos integrativos do capital nos espaços mundiais. Isto, na verdade,

acaba facilitando o processo de aceleração e centralização do capital já observado, cujo

rebatimento mais importante é a ampliação do poder econômico e político em espaços

restritos, quais sejam, os Estados Unidos e as potências européias. Estas agências, com isso,

colaboram para a cristalização de uma nova configuração interestatal com a elevação da

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hierarquização entre países, a qual apresenta o Leviatã estatal americano desfrutando de uma

forte ascendência sobre os demais Estados nacionais – um novo imperialismo.

2.3.3. As contradições do projeto de império mundial dos Estados Unidos e as dimensões

do “novo imperialismo”

Contemporaneamente, existe um grande debate a respeito da nova configuração das relações

entre os Estados-nações e da configuração da política externa norte-americana, após os

atentados de 11 de setembro de 2001. Para muitos, a passagem do governo Clinton ao

governo republicano neoconservador de George W. Bush, em associação com os atentados às

torres gêmeas, teria gerado a transição de uma política norte-americana de consenso a uma

política de coerção no âmbito internacional. Nessa perspectiva, a reação aos atentados de 11

de setembro seria o divisor de águas na virada da política externa estadunidense. Segundo

Emir Sader,

[...] a nova doutrina do governo George W. Bush representaria uma virada histórica significativa da política externa norte-americana. [...] Mais do que uma virada de linha na política externa, trata-se de uma nova doutrina estratégica, em que desembocam as concepções que foram sendo amadurecidas pela oposição republicana ao governo Clinton (SADER, 2003, p. 34 e 41).

Emir Sader e outros autores, ao considerarem a reação aos atentados de 11 de setembro como

o marco da nova política externa estadunidense, deixaram de perceber que as mudanças nas

estratégias norte-americanas já vinham se processando, ao longo da década de 1990, após a

queda do muro de Berlim e da dissolução da União Soviética (fim da Guerra Fria). A partir

do desaparecimento do perigo comunista, delineou-se, desde 1991, uma estratégia norte-

americana orientada por uma visão unipolar direcionada à construção de um império mundial

(Estado internacional) que ficou mais bem codificado com as reações aos atentados de 11 de

setembro e no relatório intitulado “Estratégia para a segurança nacional dos Estados Unidos”,

distribuído em 20 de setembro de 2002.

Com o fim da União Soviética, uma nova ordem estaria se consubstanciando segundo uma

versão atualizada da ideologia liberal. As fronteiras nacionais estariam se extinguindo e um

império mundial norte-americano estaria se erguendo. O ideal liberal, “de que o mundo inteiro

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não fosse mais do que um só povo, ao interior do qual as nações fossem como pessoas”

(NORTH apud FIORI, 1997, p. 87), renasce contemporaneamente assentado nas raízes mais

utópicas e profundas do liberalismo do séc. XVII. Alguns cientistas sociais, atualmente,

inclusive “chegaram a pensar, como Montesquieu, que depois do annus mirabilis de 1989 esta

nova ordem global já estaria ‘adoçando os costumes’ e, com o fim da Guerra Fria,

aproximando-se o mundo da ‘paz perpétua’ de Kant” (FIORI, 1997, p.87).

Desde 1991, os Estados Unidos vêm adotando uma conduta cultural, econômica e diplomática

imperial, pois este cada vez mais se orienta por uma visão unipolar do mundo. Tal condução

dessa nova ordem mundial, no transcurso dos anos de 1990, anunciada por George Bush (pai)

e conduzida por Bill Clinton, ampliou o poder e a economia estadunidense, enquanto gerou

nos demais Estados uma perda de legitimidade e de poder dos governantes diante de suas

populações, haja vista a estagnação econômica, o desemprego e a insatisfação social (FIORI,

1997). Portanto a virada na política externa norte-americana começa a se configurar com a

dissolução da União Soviética, ficando mais visível com os eventos de 11 de setembro de

2001.

Mészáros defende que não houve mudança significativa nas doutrinas militar e econômica dos

Estados Unidos após o 11 de setembro. Na verdade, para ele, o presidente democrata Clinton

adotava as mesmas políticas de seu sucessor republicano (Bush filho) só que de forma

camuflada (MÉSZÁROS, 2003).

Na mesma linha de Mészáros, José Luís Fiori, em seu artigo O poder global dos Estados

Unidos:..., também deixa muito claro que não existem incongruências entre o governo de

Clinton e de Bush (filho) - apesar de tais governantes utilizarem retóricas diferentes - no que

se refere à estratégia de longo prazo norte-americana de construção de um império mundial.

Na década de 1990, difundiu-se a crença que o “poder pacífico dos mercados” e “a força

econômica convergente da globalização” consolidariam finalmente o “império mundial

cosmopolita, pacífico e democrático, sob a liderança benevolente dos Estados Unidos”. Não

obstante essa retórica liberal, a administração Clinton “manteve um ativismo militar sem

precedentes, apesar de sua retórica globalista [humanitária] que propunha uma ‘convivência

pacífica pelo mercado’. Desde que fossem respeitadas as regras do novo império”

(FIORI, 2004a, p. 97). Configurando-se, portanto, um unilateralismo implícito. A vitória do

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republicano Bush (filho) significou apenas uma mudança na retórica dominante da política

externa dos Estados Unidos, que agora assume uma linguagem bélica e um unilateralismo

explícito, uma vez que o discurso do liberalismo econômico não foi abandonado e o projeto

de construção do império ficou às claras (FIORI, 2004a). O trecho abaixo do artigo

supracitado de Fiori sintetiza muito bem esses elementos:

Parece cada vez mais claro que depois do fim da Guerra do Golfo - a despeito das diferenças retóricas e de estilo - formou-se um grande consenso, entre republicanos e democratas, a respeito dos objetivos de longo prazo dos Estados Unidos. Como no início do século XIX, agora também é possível distinguir e identificar dois grandes grupos dentro de política externa americana: “aqueles que advogam a dominação americana irrestrita e unilateral do mundo, e aqueles que defendem um imperialismo com objetivos ‘humanitários’.” (Johnson, 2004: 67). Mas do ponto de vista estratégico e de longo prazo, o objetivo é um só, e aponta na direção de um império mundial [Estado internacional] (FIORI, 2004a, p.98).

O sonho de um império mundial liberal, sob o controle norte-americano, não é uma

característica histórica nova, na verdade, muitos historiadores e analistas internacionais

identificam a origem do projeto imperial americano através da guerra hispano-americana de

1889 e das medidas do governo Roosevelt54. Recentemente Henry Kissinger afirmou que “os

Estados Unidos enfrentaram, em 1991, pela terceira vez na sua história [1918 e 1945], o

desafio de redesenhar o mundo à sua imagem e semelhança [...]” (FIORI, 2004a, p. 94;

FIORI, 2001a). Tal sonho do império mundial estadunidense sofre certa influência dos ideais

“cosmopolitas” liberais kantianos, expressos na obra À paz perpétua, editada em 1795.

Para Immanuel Kant seria possível, por intermédio do direito internacional e da ampliação do

comércio livre, construir uma liga de alguns povos, tendo um Estado central que se ampliaria,

num primeiro momento, e, conseqüentemente, evitaria a eclosão de hostilidades até o

estabelecimento, num segundo momento, de uma paz perpétua, eliminando assim, os conflitos

entre as nações e as diferenças culturais sob a alegação de que a pátria de todos os homens é o

mundo. Isso, por sua vez, criaria uma verdadeira liberdade e igualdade entre os homens. Tal

Estado central, segundo ele, deveria ser regulado pelas normas do direito internacional. A

54 O governo norte-americano de Roosevelt ao adotar sua política de expansão da supremacia internacional utilizava-se da retórica da liberdade para todos e da idéia de um “destino” universal. Roosevelt declarou, em discurso pronunciado em 1936, que “uma civilização melhor que a que sempre conhecemos está reservada para a América e, por meio de nosso exemplo, talvez para o mundo. O destino aqui parece ter se detido longamente” (ROOSEVELT apud MÉSZÁROS, 2003, p. 37).

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inexistência do conflito entre a política e a moral no âmbito objetivo (na teoria) - apesar de tal

conflito ocorrer na dimensão prática -, segundo Kant, abriria a possibilidade de criação de um

estado de paz perpétua muito além dos tratados de armistícios entre povos. Tendo o direito

público (estabelecimento de leis universais), nesse processo, o papel de eliminar o conflito em

sua dimensão prática associadas ao comércio (KANT, 1989).

Kant argumenta, ainda, que a paz perpétua deveria ser um caminho a ser seguido pela

humanidade, uma vez que esta poderia realizar o seu intento. O trecho abaixo de sua obra

reflete esse ideal liberal utópico:

Se há um dever, se há ao mesmo tempo uma esperança de tornar efetivo o estado de um direito público, embora somente em aproximação que progride ao infinito, então a paz perpétua, que sucede aos até aqui falsamente assim denominados tratados de paz (propriamente armistícios) não é uma idéia vazia, mas uma tarefa que, solucionada pouco a pouco, aproxima-se continuamente de seu fim (KANT, 1989, p. 79-80).

Algumas dessas idéias kantianas retornaram com grande força, sejam em dimensões de

retórica ou de práticas, em função da nova tentativa de construção de um império liberal,

tendo o Estado norte-americano como centro. Tal configuração sociopolítica levaria à paz

perpétua (fim da história). Um império liberal, teoricamente, pode ser caracterizado: i) pela

ausência de fronteiras e pelo poder ilimitado do império; ii) por uma ordem que suspende a

história e determina, para sempre, o estado de coisas existentes; iii) pela busca de uma paz

perpétua e universal fora da história, apesar das práticas de guerra do império. Tais guerras,

na verdade, seriam justas e legítimas em virtude dos seus fins, a saber: a paz perpétua.

Para muitos pensadores norte-americanos a consecução do império mundial liberal, sob o

controle estadunidense, seria possível, inclusive estaria numa rota acelerada. “Daí que os

Estados Unidos não só são a primeira e a única verdadeira potência global, senão que,

provavelmente, serão também a última” (BRZEZINSKI apud AYERBE, 2002, p. 33).

Esse tipo de perspectiva de formação de algum tipo de federação cosmopolita e pacífica

(Império mundial liberal ou um Estado internacional) não tem nenhuma sustentação a partir

da análise histórica do sistema mundial, nem se percebe nenhum indício efetivo da

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conformação de um novo sistema desse tipo. Portanto, mostrar-se-á que o projeto de império

mundial cosmopolita dos Estados Unidos é um objetivo inatingível em virtude de suas

contradições e limitações. Apesar da impossibilidade de consecução plena de um império

mundial, a busca de tal objetivo pelos norte-americanos, a partir de 1991, acabou modificando

as relações entre os diversos Estados nacionais. Uma vez que os EUA, conforme detalhado

nas subseções anteriores, vêm ampliando sua capacidade autônoma para determinar políticas

internas e estabelecer a dominação externa sobre Estados nacionais mais poderosos e débeis,

o que, por sua vez, possibilita o processo de integração do capital nacional norte-americano.

Nesse contexto internacional, o imperialismo, como categoria de análise, não pode ser

desprezada na apreensão das relações inter e intra-estatais, muito pelo contrário. Na verdade,

pretende-se demonstrar que a atual configuração internacional do capitalismo está assentada

numa “nova fase do imperialismo”, influenciada pelo grande poderio do Leviatã

estadunidense e pelo seu projeto de construção de um império mundial.

Em decorrência, a tese da impossibilidade de construção de um império mundial (Estado

internacional) liberal de paz perpétua será analisada tanto sob a perspectiva “politicista” de

Luís Fiori quanto sob a visão classista de István Mészáros.

Fiori argumenta que a marcha norte-americana rumo ao poder global será restringida pelo

próprio movimento de tal objetivo, à medida que este alimenta “a contratendência

‘nacionalizante’ dos demais Estados que bloqueiam sua marcha em direção ao poder global”

(FIORI, 2004a, p. 58). Nesse contexto, os limites intransponíveis ao poder global estão

associados à impossibilidade de uma paz perpétua num cenário de expansão das economias

nacionais capitalistas e à incapacidade estrutural de uma Grande Potência praticar, de forma

permanente, uma política coercitiva voltada apenas a preservar seu status quo (FIORI 1999,

2004a, 2004b). Sendo assim,

[...] historicamente, os “estados-imperiais” ou “grandes potências” sempre recriaram seus concorrentes e adversários, logo depois de submeter ou destruir o concorrente anterior. Exatamente como na concorrência capitalista, onde o próprio capital recria sem cessar as suas novas formas de competição, por que perderia capacidade de acumulação se ocorresse uma monopolização completa dos mercados (FIORI 2004b, p. 102-103).

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Para István Mészáros, o elevado poder dos Estados Unidos diante de outras potências rivais

tende a provocar uma situação perigosa, haja vista a tentativa de tal país assumir a função de

“Estado do sistema do capital em si”. Segundo ele, apesar da impossibilidade de tal objetivo,

por um período longo de tempo, verifica-se que isso “não inibe as forças que buscam

implacavelmente sua realização” (MÉSZÁROS, 2003, p. 41).

Tal impossibilidade de construção de um Estado internacional, a partir dos EUA, está

associada à separação estrutural entre capital transnacional e os Estados nacionais originária,

na verdade, da própria natureza das redes de contradições subjacentes ao sistema capitalista.

Para Mészáros (2003, p. 19) a raiz das contradições pode ser encontrada no “antagonismo

inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de

subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital”, mesmo quando são elaboradas

mistificações que intentam camuflar tal antagonismo. Ainda, segundo Mészáros:

A idéia de um governo mundial viável implicaria, como base material necessária, que se eliminassem da constituição global do sistema do capital todos os antagonismos materiais significativos, e a conseqüente administração harmoniosa da reprodução do metabolismo social por um monopólio global incontestado, que abrangeria todas as facetas da reprodução social com a alegre cooperação da força de trabalho global – uma verdadeira contradição em termos; ou que um único país imperialista hegemônico governasse todo o mundo permanente e autoritariamente e, sempre que necessário, violentamente, uma forma insustentável e absurda de governar a ordem mundial (MÉSZÁROS, 2003, p. 101)

Ao se constatar que a idéia de construção de um império mundial vincula-se a visões pouco

profícuas das interações estatais internacionais, faz-se necessário desenvolver a análise das

relações entre Estados nacionais à luz das dimensões do “novo imperialismo”. Para tanto,

serão incorporados elementos do conceito de imperialismo desenvolvido por Lênin, no

primeiro quartel do século XX. Segundo ele, o imperialismo ou “estágio superior do

capitalismo” estava associado à luta, entre nações industrializadas, por posições dominantes,

tanto no mercado mundial quanto no controle de matérias-primas. Fora ele um dos primeiros a

perceber a importância da exportação de capitais para legitimação dos poderes imperialistas

dos Estados centrais capitalistas:

O imperialismo é o capitalismo chegando a uma fase de desenvolvimento onde se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro, onde a

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exportação dos capitais adquiriu uma importância de primeiro plano, onde começou a partilha do mundo entre trustes internacionais o onde se pôs termo à partilha de todo o território do globo, entre as maiores potências capitalistas (LENIN, 1979, p.88).

A concentração e centralização do capital são características inerentes à acumulação

capitalista. Tal processo contemporaneamente tem sido comandado pela ampliação do capital

financeiro que na forma de acumulação atual predomina sobre as órbitas produtiva e

mercantil. Na análise da configuração mundial recente, acrescenta-se um elemento

importante, não desenvolvido por Lênin, tendo em vista sua limitação histórico-temporal, qual

seja: o extraordinário poder que um único país adquiriu diante dos outros Estados nacionais.

Desse modo, a estratégia norte-americana de construção de um Estado imperial mundial

liberal, apesar de sua impossibilidade construtiva, nos remete a um quadro complexo das

interações estatais que conformam um novo imperialismo. Vejamos agora de forma mais

detalhada suas características.

Nesse novo imperialismo, um único Estado-nação (Estados Unidos), exerce um domínio

preponderante sobre os demais países. Tal exercício de poder norte-americano é sustentado a

partir das diversas formas de dominação, a saber: i) política; ii) cultural e ideológica; iii)

econômica; e v) a ocupação militar territorial. Todo esforço norte-americano se volta,

portanto, à manutenção e à ampliação do controle do mercado mundial, das fontes de

matérias-primas e da ideologia mundial, já que os estadunidenses sonham em construir um

mundo a sua semelhança.

Os Estados Unidos exercem sua dominação política através de seu controle direto e indireto

sobre as principais instituições supranacionais (FMI, BM, ONU, OTAN, OMC). Tais

instituições se voltam ao direcionamento de novos processos de integração do capital nos

mais diversos espaços mundiais sob a égide estadunidense, conforme detalhado na subseção

anterior.

Quanto à dominação cultural e ideológica, os Estados Unidos vêm utilizando os mais diversos

meios para disseminar a economia de mercado, a democracia pluralista norte-americana e os

valores culturais consumistas. Arrisco-me a dizer que este é um dos principais instrumentos

de dominação e controle, pois a ideologia dos dominantes tende a ocultar e esconder dos

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dominados as contradições e as barbáries da economia capitalista. A disseminação da

ideologia norte-americana é consubstanciada por meio das agências “supranacionais” e pela

mídia global (televisão, cinema, etc.) sob controle estadunidense. Para Baber (2003, p. 41) “a

cultura mundial americana – a cultura McWord” tem como objetivo central construir “uma

sociedade universal de consumo que não seria composta nem por tribos nem por cidadãos,

todos maus clientes potenciais, mas somente por essa nova raça de homens e mulheres que

são consumidores”. Ainda segundo ele, a Music Television (MTV), a McDonald’s, a

Disneylândia e Hollywood funcionam, antes de tudo, como ícones da cultura norte-americana,

“cavalos de Tróia dos Estados Unidos imiscuindo-se nas culturas das outras nações”

(BABER, 2003, p.42).

Robert Mcchesney - em seu texto: Mídia global, neoliberalismo e imperialismo - apresenta de

forma detalhada a relação entre o sistema de mídia global e seus enlaces com o imperialismo

norte-americano atual. Para ele, quando as grandes firmas vendem seus produtos ao redor do

mundo elas estão vendendo a cultura popular estadunidense, sua pretensa prosperidade e seu

imaginário. “O sistema de mídia global pode ser bem entendido como aquele que defende

valores e interesses corporativos e comerciais [estadunidense] e denigre ou ignora os que não

podem ser incorporados à sua missão” (MCCHESNEY, 2003, p. 238).

O sistema de mídia global anuncia aos quatros cantos sua autonomia e sua liberdade de

imprensa, entretanto, defendem diretamente ou indiretamente interesses comerciais,

ideológicos e culturais demarcados. Mcchesney, em trecho abaixo, expressa muito bem essa

falsa ilusão da ausência de censura:

Na verdade, o gênio do sistema mídia comercial é a ausência geral de censura aberta. Como observou George Orwell em sua introdução não publicada de A revolução dos bichos (Animal Farm), a censura nas sociedades livres é infinitamente mais sofisticada e completa do que nas ditaduras, porque “idéias pouco populares podem ser silenciadas e fatos inconvenientes ocultados sem nenhuma necessidade de proibição oficial” (ORWELL apud MCCHSNAY, 2003, p. 236).

No âmbito econômico, a dominação estadunidense é originária do seu domínio do comércio

internacional e dos mercados financeiros e, também, da função exercida por sua moeda, uma

vez que o dólar americano funciona como unidade de conta, meio de troca e reserva de valor

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internacionalmente (padrão monetário dólar flexível). O manejo do comércio internacional e

dos mercados financeiros – que tem nos títulos da dívida pública dos EUA os ativos líquidos

de última instância na economia mundial - permite aos Estados Unidos incorrerem,

constantemente, em déficits externos em conta corrente sem desestabilizar o dólar como

moeda internacional. Tais déficits funcionam como uma bomba de sucção da poupança

mundial, possibilitando expansões da economia doméstica estadunidense, em função dos seus

níveis negativos atuais de poupança interna. O mundo, principalmente a Ásia, financia o

padrão consumista da sociedade norte-americana. Tavares e Belluzo, em trecho abaixo,

sintetizam esse processo:

Os EUA, a despeito do monumental déficit em transações correntes, não precisaram se preocupar com o risco de uma fuga do dólar. A demanda pela moeda americana nasce hoje do papel dos Estados Unidos como economia dominante no comércio internacional e nos mercados financeiros onde continua a atração dos títulos públicos como ativos líquidos de última instância na economia global. Enorme vantagem para quem tem um déficit de transações correntes da ordem de US$ 550 bilhões. Com um déficit dessa magnitude, qualquer outro país teria sofrido um ataque contra sua moeda. No entanto, apesar dos augúrios, não parece provável uma derrocada do dólar. A demanda de não-residentes por títulos do governo americano, especialmente a que nasce dos saldos comerciais e enormes reservas dos países asiáticos, vem permitindo a expansão do crédito e sustentação do preço dos ativos no mercado financeiro americano. Enquanto isso, as famílias se endividam ainda mais para adquirir produtos baratos oriundos dos “produtivistas” da Ásia (TAVARES & BELLUZO, 2004, p. 134).

No que concerne à ocupação militar de territórios, os Estados Unidos, desde 1991, vêm

exercendo um ativismo militar sem precedentes, haja vista a ampliação de suas bases militares

nos mais diversos países e, principalmente, as ocupações recentes do Afeganistão e do Iraque

- nesta última os norte-americanos passaram por cima do suposto “poder supranacional da

ONU”. Mészáros já tinha alertado, antes mesmo das ocupações territoriais recentes, que o

imperialismo contemporâneo também está vinculado a ocupações de territórios. Segundo ele,

[...] os que sustentam que hoje o imperialismo não implica a ocupação militar de territórios não apenas subestimam os perigos que nos esperam, mas também aceitam as aparências mais superficiais e enganadoras como as características substantivas definidoras do imperialismo de nosso tempo, ignorando tanto a história quanto as tendências contemporâneas de desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2003, p. 55).

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Os Estados Unidos reafirmaram e ampliaram sua posição de organizadores desse novo

imperialismo, a partir da regência do processo de globalização financeira e produtiva atrelado

a sua política externa pós-queda da União Soviética. Tal política ficou explícita a partir do

documento: “Estratégia para a segurança nacional dos Estados Unidos” distribuído após os

atentados de 11 de setembro de 2001. Naquele documento, os norte-americanos se reafirmam

onipresentes em escala mundial, uma vez que o mundo todo, pelo menos no plano da

segurança interna, participa da América. Nessa nova ordem, segundo o documento, a luta não

é mais contra um estado totalitário forte (bloco socialista), já que as forças da liberdade

venceram (democracia, liberdade e livre empreendimento). Segundo o referido documento,

todas as nações deverão garantir a liberdade econômica e política e os direitos humanos para

assegurar a prosperidade de seus povos. Os inimigos estadunidenses agora são os pequenos

Estados e grupos não-estatais que ainda resistem à penetração da moral política americana em

suas nações. Neste processo, os Estados Unidos devem atuar no sistema internacional como

agentes desta liberdade através do bom relacionamento entre as nações amigas - Estados

nacionais que se ajustam às posições e não oferecem perigo contra-hegemônico - e ajudar o

povo das nações inimigas a “restabelecer o caminho da prosperidade” mediante a implantação

da liberdade econômica e política.

As we defend the peace, we will also take advantage of an historic opportunity to preserve the peace. Today, the international community has the best chance since rise of the nation-state in the seventeenth century to build a world where great powers compete in peace instead of continually prepare for war. Today, the word’s great powers find ourselves on the same side – united by common dangers of terrorist violence and chaos. The United State will build on these common interests to promote global security. We are also increasingly united by common values. [...] The United States will use this moment of opportunity to extend the benefits of freedom across the globe. We will actively work to bring the hope of democracy, development, free markets, and free trade to every conrer of the world (THE NATIONAL..., 2002, p. 02).

Os Estados Unidos proclamam-se convencidos de uma “missão” divina de estender ao

mundo, de maneira generosa e desinteressada, o modelo de liberdade, de democracia e dos

direitos humanos estadunidenses. Tal liberdade deveria se configurar como um valor

universal, inserindo-se assim, como um elemento categórico da construção de uma moral

kantiana que sobrepõe o poder. Desse modo, a liberdade, ao molde estadunidense, seria o

conjunto de regras que as sociedades deveriam seguir para alcançar um estado de paz

perpétua que seria configurado a partir do império mundial sob a égide norte-americano.

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Entrementes, as estratégias adotadas pelos norte-americanos provocam um estado de guerra

intermitente, pois há uma imposição do “regime democrático”, através das armas, nas mais

variadas regiões do globo. Isto, na verdade, gera uma incompatibilidade à construção do

Império mundial liberal e, por conseguinte, do estado de paz perpétua devido à incongruência

entre subordinação ideológica e consentimento ativo. Apesar da busca insana para a

configuração do Império mundial liberal, desde 1991, verifica-se a impossibilidade de sua

construção, na medida em que isto exigiria a obtenção da hegemonia no sentido gramsciniano

(consentimento ativo), transladado para o âmbito internacional ao invés de um transformismo

(subordinação ideológica).

O que há subjacente nesta iniciativa norte-americana de construção de uma paz perpétua é a

ampliação de sua capacidade de controlar e coagir os mais diversos estados nacionais através

de uma nova dominação imperialista atrelada aos elementos econômicos, culturais, políticos,

comunicacionais e, principalmente, bélicos. Os Estados Unidos, com o pretexto de alcançar

um estado de paz no futuro conseguem ampliar seu controle econômico e ideológico

auferindo, cada vez mais, poder no sistema internacional e mantendo-se como centro

econômico e político. Portanto, a projeção das idéias kantianas para a organização de uma

nova estrutura internacional funciona, na verdade, como um instrumento ideológico de

dominação, uma vez que cria no imaginário coletivo dos povos a possibilidade dos mesmos

alcançarem um estado final de igualdade e solidariedade mundial dentro do sistema

capitalista.

Na verdade, o que existe contemporaneamente é uma organização imperialista, em grande

medida, articulada por meio de instituições globais, tais como, FMI, Banco Mundial e OMC,

que são dominadas eficazmente, tanto administrativa quanto politicamente pelas potências

centrais, principalmente, pelos Estados Unidos (McNALLY, 1999). Quando estas instituições

não conseguem integrar determinados países ao sistema mundial, através da cultura, da

política e do comércio, a potência imperialista, utiliza-se de ações militares -

consubstanciadas por determinadas agências “supranacionais” como as Nações Unidas e a

OTAN55 - para integrá-los, com a retórica de que estariam estendendo ao mundo, de forma

55 “Within international institutions, such as the United Nations, or military structures such as NATO, the hierarchy of powers is very strict. The US control to a large extent the military power of Europe, and make constant efforts to secure such a coordinated military efficient order in various regions of the world, as in South America” (DUMÉNIL & LÉVY, 2003, p.6)

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abnegada, a liberdade, como foi recentemente confirmado com as invasões do Afeganistão e

do Iraque. Portanto, como afirma Katz:

Es también incorrecto conceptualizar la agresión como un acto del ‘imperio’ en el sentido de Negri y Hardt asignan a este término. Los marines no actuaron al servicio de un capital transnacionalizado, globalizado e indiscriminado, sino a pedido de las corporaciones norteanericanas, a fin de apuntalar la competitividad de estas conpañías frente a sus rivales europeos (KATZ, 2003, p. 4).

Em suma, o projeto de império mundial norte-americano perpassaria por uma hegemonia

consentida, que implicaria na transformação do terreno ideológico anterior e na criação de

uma visão de mundo nova que serviria de princípio unificador da nova vontade coletiva

(consentimento ativo). Conforme, descrito anteriormente, este não é o cenário hodierno, já

que a soberania política, via Estado-nação, garante a hierarquização do regime de acumulação

capitalista e a dimensão do controle e coerção se sobrepõe ao consentimento. Ademais, existe

ainda a possibilidade de ampliação do poderio da Europa a partir da União Européia. Isso, por

sua vez, provocaria uma maior tensão entre os capitais daquele continente frente aos seus

competidores norte-americanos que dependeriam, cada vez mais, da capacidade do Estado

norte-americano de traduzir seus avanços militares em dominação política e econômica,

abrindo, com isso, novos mercados.

Assim, as supostas novidades progressistas, tanto econômicas quanto políticas, tais como: (i)

as formulações radicalmente liberais (globalismo e projeto de império mundial) - que

aplaudem a extensão da livre-iniciativa como sinônimo de bem-estar geral – e (ii) as

elaborações da “nova esquerda” - que apregoam a evolução do capitalismo a uma nova

superestrutura política, em parte reunidas em torno do conceito de Império de Hardt & Negri,

que possibilitaria a superação do capital - não se sustentam à luz de uma análise mais rigorosa

que parte das contradições fundamentais do modo de produção capitalista. Na verdade,

verifica-se uma tentativa de homogeneização, em andamento, da superestrutura mundial, a

partir dos EUA que tenta universalizar seus valores culturais. Estes funcionariam como

instrumentos ideológicos voltados à legitimação das mudanças produtivas e financeiras,

centradas no novo imperialismo, facilitando, com isso, o aumento das taxas de extração de

mais-valia e da acumulação rentista nos mais diversos espaços nacionais.

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Para Mészáros o novo imperialismo, sob o comando norte-americano, estaria

consubstanciando uma grande instabilidade nos cenários nacionais e internacionais que

poderia, inclusive, gerar um estado de barbárie mundial. Segundo ele nós

[...] entramos na fase mais perigosa do imperialismo em toda história; pois o que está em jogo hoje não é o controle de uma região particular do planeta, não importando o seu tamanho, nem a sua condição desfavorável, por continuar tolerando as ações independentes de alguns adversários, mas o controle de sua totalidade por uma superpotência econômica e militar hegemônica, com todos os meios – incluindo os mais extremamente autoritários e violentos meios militares – à sua disposição. É essa a racionalidade última exigida pelo capital globalmente desenvolvido, na tentativa vã de assumir o controle de seus antagonismos inconciliáveis (MÉSZÁROS, 2003, p. 53-54).

Este novo imperialismo, na verdade, afeta diretamente todas as realidades espaciais da

economia-mundo capitalista, desde a África, à Ásia, ao Oriente Médio, à América Latina até a

Europa, em virtude da forte integração das diversas regiões ao modo de produção capitalista.

Apesar dos efeitos mundiais dessa nova configuração política internacional, verifica-se que

tais impactos materializam-se de forma diferenciada nos espaços nacionais e regionais. Tal

diferenciação espacial ocorre em virtude da própria característica desigual e hierarquizada da

economia-mundo capitalista - um sistema econômico mundial integrado de forma

polarizadora e hierarquizada em diversos níveis que tem uma economia central

“comandando” a dinâmica mundial. Neste contexto, a dinâmica capitalista vai sendo

construída a partir de trajetórias distintas espacialmente que conformaram capitalismos

periféricos e centrais, tendo em vista o nível hierárquico político-econômico que determinada

região assume na economia-mundo. A partir daqui, serão analisados os impactos das

mudanças da dinâmica do capitalista contemporâneo supracitadas sobre os espaços regionais

dependentes, mais especificamente na América Latina e em particular no Brasil.

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CAPÍTULO III

O CAPITALISMO DEPENDENTE LATINO-AMERICANO À LUZ DAS

TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo de transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minérios, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos (GALEANO, 1978, p. 14).

A América Latina foi forjada pelo capitalismo nascente por meio do processo de expansão

comercial do século XVI. Desde seu “descobrimento” até os dias atuais essa região se

desenvolveu de forma atrelada - em menor ou maior grau a depender do contexto histórico –

aos movimentos do capitalismo internacional sob o auspício de uma determinada potência

capitalista. Em seus primórdios, o ouro e a prata pilhados dos países da região, na fase

colonial, foram utilizados na acumulação originária do capital industrial europeu,

principalmente inglês, possibilitando a expansão dos meios de pagamentos, o que, por sua

vez, permitiu a expansão do capital comercial e bancário na Europa. Num segundo momento,

entre 1850 e 1930, a América Latina se inseriu num processo de divisão do trabalho definida

pelos países capitalistas centrais europeus em que a região cumpria a função de fornecedora

de alimentos (bens-salários) e matérias-primas para os países centrais (modelo agro-

exportador latino-americano), comprando dos países centrais produtos manufaturados. É a

partir desse momento histórico que ocorre a configuração da dependência, apreendida como

uma relação de subordinação entre países formalmente independentes. Entre os anos 1930 e

final dos anos 1980, os Estados nacionais latino-americanos experimentaram um período

atípico de sua história, na qual foi possível obter uma maior margem de manobra interna no

exercício e no manejo de políticas socioeconômicas, o que, por sua vez, possibilitou a

configuração do processo de industrialização latino-americano assentado no modelo de

“substituição de importações”. Vale ressaltar que tal industrialização se estruturou em bases

diferenciadas do que foi verificado nos países centrais do capitalismo. Mesmo com aquela

relativa maior autonomia regional, o capital forâneo, principalmente o norte-americano,

continuou presente entre nós durante todo esse período, haja vista o processo de “exportação

de capitais” (investimento direto estrangeiro) para a região, principalmente produtivo,

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consolidado através do avanço das multinacionais estadunidenses sobre o continente

americano, com o intuito de ampliar os espaços de produção e reprodução do valor e da

dominação estadunidense (D-M-D’).

Dessa forma, todas as riquezas – recursos naturais e humanos - latino-americanas têm-se

acumulado até hoje nos distantes centros de poder. “A chuva que irriga os centros do poder

imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema”. E ao mesmo tempo propiciam “o bem-

estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a

maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de besta de carga” (GALEANO, 1978,

p. 14). Essa conformação histórica deixou um legado pesado de elevada concentração da

riqueza e de mazelas sociais recalcitrantes.

Tal cenário de concentração de riquezas e de mazelas sociais históricas na região não se

modificou a partir dos anos 1990, pelo contrário, verifica-se uma ampliação dos problemas

históricos em virtude da inserção passiva da região ao processo de globalização financeira e

reestruturação produtiva. A América Latina a partir daquele período passaria a funcionar

como um espaço de acumulação do capital financeiro, por meio da ampliação dos títulos da

dívida pública locais, e como um mercado consumidor de produtos manufaturados norte-

americanos. Nessa nova fase, o “novo imperialismo” estadunidense, com o patrocínio do

capital produtivo e, principalmente, financeiro – bancos privados e, principalmente, fundos

mútuos e de pensão – ampliou seus tentáculos sobre a região, ao mesmo tempo, que limitou a

capacidade dos Estados nacionais latino-americanos de construírem políticas econômicas

autônomas.

Assim, a degradação social e econômica vivenciada pelos países da América Latina, durante

as duas últimas décadas, não consegue ser explicada pela tese da herança cultural, associada à

suposta incompatibilidade, entre os valores ibéricos tradicionais, o pluralismo político e a

liberdade de mercado. Na verdade, as crises socioeconômicas recorrentes, o crescimento da

instabilidade e da vulnerabilidade, o retrocesso e a ampliação da desarticulação social

configurados a partir das décadas de 1980 e de 1990, só conseguem ser apreendidos, em sua

totalidade, a partir da percepção das modificações atreladas à dinâmica da acumulação

capitalista atual e das características particulares das dimensões constitutivas do capitalismo

dependente latino-americano estruturalmente marcado pela desarticulação setorial e social.

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3.1. O capitalismo dependente latino-americano: do modelo agro-exportador ao fim do

modelo “desenvolvimentista industrializante” num breve panorama

A América Latina, entre 1850 e 1930, foi levada a engendrar o modelo de desenvolvimento

primário-exportador que teve como eixo dinâmico a economia do setor externo, mais

especificamente a exportação de apenas um ou dois produtos primários – desenvolvimento

“para fora”. Naquela perspectiva, as exportações funcionavam como uma variável exógena

responsável pela maior parte da renda nacional e pela quase exclusividade do seu dinamismo

e as importações funcionavam como fonte flexível de suprimentos dos vários tipos de bens e

serviços que atendem grande parte da demanda interna (TAVARES, 1983; TAVARES,

2000). Em um arcabouço liberal tal desenvolvimento “para fora” latino-americano, assentado

em produtos primários, poderia ser explicado pela divisão do trabalho associada à teoria das

vantagens comparativas56 do comércio internacional de David Ricardo.

A divisão internacional do trabalho, na verdade, foi sendo imposta pelo processo histórico de

desenvolvimento do capitalismo – assunção da grande indústria -, em suas especificidades

espaciais, na configuração e integração do mercado mundial. O espaço latino-americano,

naquele período, surgia como o principal fornecedor de alimentos e matérias-primas aos

países industrializados, impulsionando a oferta mundial de alimentos. Ruy Mauro Marini, em

seu artigo clássico Dialética da dependência, ressalta que essa função da América Latina vai

muito além do que uma simples resposta aos requerimentos físicos da acumulação dos países

centrais, uma vez que a maior oferta mundial de bens primários (bens-salários) possibilitou o

aumento da mais-valia relativa nos países centrais.

A oferta mundial de alimentos, que a América Latina contribuiu a criar e que alcança seu auge na segunda metade do século XIX, será um elemento decisivo para que os países industriais confiem ao comércio exterior a atenção de suas necessidades de meios de subsistência. O efeito dessa oferta (ampliada pela depressão dos preços dos produtos primários no mercado mundial) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países

56 Para Ricardo quanto mais livres forem as fronteiras dos estados, mais eficiente seria a alocação do mercado no âmbito internacional, já que a alocação produtiva nacional dependeria apenas da sua maior produtividade marginal em determinados produtos com relação aos produtos forâneos. Tal divisão engendraria o bem estar no sentido paretiano beneficiando o conjunto das nações.

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industrializados, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em cotas de mais-valia cada vez mais elevadas. Em outras palavras, mediante sua incorporação ao mercado mundial de bens-salários, a América Latina desempenha um papel significativo no aumento da mais-valia nos países industriais (MARINI, 2000, p. 115-116).

Tal processo foi marcado por uma profunda contradição, a saber: o subsídio da economia

primário-exportadora latino-americana na ampliação da extração da mais-valia relativa nos

países industriais, só foi possível a partir de uma acumulação interna centrada na

“superexploração” 57 do trabalhador (op. cit., 2000).

Na economia primário-exportadora latino-americana a capacidade interna de consumo -

concentrada no consumo do trabalhador - pouco interferia na realização de grande parte da

produção, uma vez que o grosso da produção destinava-se ao mercado forâneo. Verifica-se,

portanto, desde então, uma grande desarticulação interna entre os departamentos de consumo

e de produção. Com essa desarticulação o consumo individual do trabalhador não interfere na

realização do produto, diferentemente dos países centrais industrializados em que o fundo de

consumo do trabalhador é um dos componentes fundamentais da demanda efetiva e, por

conseguinte, do processo de realização do valor. Em outras palavras, uma desvalorização ou

uma valorização das mercadorias da economia exportadora latino-americana não afeta

substancialmente o valor da força de trabalho. Em conseqüência, de tal fenômeno

característico das economias dependentes latinas, materializou-se uma tendência de

exploração máxima da “força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições

para que este a reponha, sempre que seja possível substituí-lo mediante a incorporação de

novos braços ao processo produtivo”, tal tendência tornou-se possível, à época, haja vista “a

existência de reservas de mão-de-obra indígena (como no México) ou os fluxos migratórios

derivados do deslocamento de mão-de-obra européia” (op. cit., p. 134).

No que se refere à circulação interna das mercadorias nos países latino-americanos, observou-

se que o modelo exportador criou uma estratificação do mercado interno em virtude da

separação entre o consumo dos trabalhadores (salários) e dos capitalistas (mais-valia não

57 “A superexploração do trabalho representa um regime de acumulação em que a força de trabalho sofre uma queda permanente de seus preços em relação ao seu valor. Esta queda se manifesta por três formas principais: pelo aumento da jornada de trabalho sem a elevação dos preços da força de trabalho correspondente ao seu maior emprego; pelo aumento da intensidade de trabalho sem a equivalência salarial correspondente ao seu maior desgastes; e pela redução do fundo de consumo do trabalhador” (MARINI apud MARTINS, 1999 p. 02).

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acumulada) no âmbito das esferas de circulação. Marini, em trecho abaixo, apresenta tal

diferenciação entre as esferas de circulação:

Enquanto a esfera “baixa”, em que participam os trabalhadores – que o sistema se esforça para restringir -, se baseia na produção interna, a esfera “alta” de circulação, própria dos não trabalhadores – que é a que o sistema tende a ampliar -, se entronca com a produção externa, através do comércio de importação (op. cit., p. 135).

O modelo exportador desarticulado setorialmente e socialmente provocou uma cisão profunda

na esfera da circulação de bens-salários e dos bens associados ao consumo capitalista. Tal

separação influenciou de maneira decisiva nos modelos de desenvolvimento latino-

americanos posteriores (“substituição de importações” e modelo neoliberal).

A crise capitalista de 1929 provocou uma redução da demanda mundial, principalmente por

produtos agrícolas, e uma queda nos níveis de preços. Isso, por sua vez, criou impedimentos à

acumulação, baseada na produção para o mercado externo, que teve que se deslocar para a

indústria. Nascia a partir daí o processo de industrialização dependente latino-americano.

Com a crise e com seu posterior desfecho, a América Latina, entre 1930 e início dos anos 70,

conseguiu experimentar uma maior margem de manobra no exercício e no manejo de suas

políticas econômicas, facilitando, em certa medida, a consecução de políticas destinadas ao

processo de industrialização. Essa maior autonomia esteve vinculada, no primeiro momento, à

crise de 29 e às duas guerras que desestruturaram as bases econômicas e geopolíticas

internacionais. Tais fatos, por sua vez, provocaram, pelo lado político, certo vácuo de poder

no ponto hierárquico mais alto do sistema-mundo capitalista – transição da supremacia

inglesa à norte-americana – e, pelo lado econômico, crises no comércio exterior que

diminuíram a capacidade de importação dos países da região. Isso, por sua vez, levou vários

governos a adotarem medidas de estímulo a atividades internas. Num segundo momento,

mesmo com a hegemonia norte-americana consolidada, a maior autonomia latino-americana

esteve vinculada a maior benevolência estadunidense com os países da região alinhados ao

eixo capitalista devido à conformação do bloco socialista – arranjo geopolítico internacional

bipolar.

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A industrialização latino-americana se conformou a partir de bases bastante distintas do

processo de industrialização clássica dos países centrais, uma vez que a industrialização

dependente “nasce para atender a uma demanda já constituída e se estruturará em função das

exigências de mercado procedentes dos países avançados”, não criando, portanto, sua própria

demanda (op. cit., p. 140). O que se verificou foi um deslocamento da esfera “alta” da

circulação, que antes se voltava ao consumo de produtos importados, para a produção interna

de produtos suntuários. Em tal modelo

[...] já não é a dissociação entre a produção é a circulação de mercadorias em função do mercado mundial que opera, mas a separação entre a esfera alta e a esfera baixa da circulação no interior mesmo da economia [...] Dedicada à produção de bens que não entram ou entram muito escassamente na composição do consumo popular, a produção latino-americana é independente das condições de salário próprias dos trabalhadores (op. cit., p. 141-142).

Desse modo, o recurso da superexploração do trabalhador também foi utilizado, de forma

específica, na economia industrial dependente, já que a dinâmica econômica industrializada

continuou dissociada dos salários dos trabalhadores. Para suprir os problemas vinculados à

pequena demanda interna originária do consumo dos trabalhadores, o capitalismo dependente

“encontra três formas possíveis” de solucionar tal problemática: “a exportação de mercadorias

e de capitais; o consumo estatal e o aprofundamento do consumo suntuário” (MARTINS,

1999, p.8),

O boom econômico do pós-II Guerra, na América Latina, assumiu características bastante

diferenciadas da dos países centrais, em virtude da sua condição de economia industrial

dependente – desarticulação entre os departamentos de produção e consumo. Nessa condição,

não se verificou na região, a consolidação de uma economia de demanda efetiva ampla como

nos países centrais do capitalismo, pois a construção da industrialização não significou uma

forte elevação dos níveis salariais, nem tão pouco numa ampla redução do exército industrial

de reserva, apesar da elevação ingente dos índices de crescimento do investimento, de

produção e de produtividade na região.

Portanto, a dinâmica do crescimento regional, nos anos dourados, foi atrelada à substituição

do modelo de desenvolvimento “para fora” (primário-exportador) pela acumulação industrial.

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A industrialização dependente só conseguiu se consolidar através da ampliação do consumo

das camadas médias e do esforço para aumentar a mais-valia absoluta e relativa

(superexploração do trabalho), condição necessária para baratear as mercadorias.

Configurando assim, na região, um modelo incompleto de demanda efetiva (MARINI, 2000).

A nova configuração econômica e política internacional de cooperação e coordenação

internacional, sob a égide norte-americana, - Plano Marshall, sistema financeiro internacional

“regulado”, apoio político-econômico norte-americano aos seus aliados e concorrentes e até

mesmo uma maior conivência com o protecionismo dos Estados periféricos aliados - abriu a

possibilidade de expansão da industrialização dependente, principalmente do México, Brasil e

Argentina, através da importação de capitais forâneos, sob a forma de financiamento e de

investimentos diretos na indústria. Esse afluxo de capitais estrangeiros, na região, ocorreu,

principalmente, a partir do término da reconstrução européia (Plano Marshall) e japonesa,

uma vez que as grandes corporações financeiras e não-financeiras estadunidenses e européias

– que nesse momento apresentavam grande liquidez de capital – necessitavam de novos

espaços de valorização e de realização, buscando assim, garantir a manutenção das taxas de

lucro. Naquele período, as firmas multinacionais, principalmente as estadunidense,

perceberam que a “periferia” deveria ser um novo eixo de expansão, principalmente, do

capital industrial.

A alta lucratividade do capital forâneo, investido no setor industrial dos países periféricos, era

garantida pelo mecanismo de “superexploração” do trabalho na indústria periférica e pela

necessidade, por parte dos países centrais, de exportar equipamentos e maquinarias obsoletos

não amortizados completamente, devido ao acelerado progresso técnico. Na verdade,

verificou-se que “a industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão

internacional do trabalho, em cujo âmbito se transferem aos países dependentes etapas

inferiores da produção industrial” (op. cit., p.145).

As contradições do capitalismo dependente, em associação com a crise da década de 1970,

empurraram a América Latina para o esgotamento do modelo de substituição de importação.

Ficara clara que as estratégias de crescimento econômico dos países latino-americanos nos

anos 70, pautadas no endividamento externo e na redução do controle das importações, não

poderiam ter fôlego longo. Na verdade, tais estratégias consubstanciaram desequilíbrios

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socioeconômicos, configurando, com isso, o caminho à bancarrota dos países latino-

americanos na década de 1980. Essa

[...] configuração desequilibrada das economias latino-americanas, com marcada preponderância da indústria de bens suntuários e a restrição de seus mercados, determinada primariamente pela superexploração do trabalho e expressada em uma concentração crescente de ingresso, as empurrava de fato para a crise, não deixando-lhes outra alternativa senão – paralelamente à tentativa de abrir novos campos ao investimento estrangeiro, o que reproduzia de maneira ampliada a contradição inicial – o esforço por conseguir mercados preferenciais, sem prejuízo de que se acusasse a tendência ao protecionismo comercial (op. cit., 2000, p. 274)

3.2. O endividamento estrutural latino-americano e a “década perdida” dos anos 1980: a

“pavimentação social” para a assunção do neoliberalismo

A crise estrutural da década de 1970 e as medidas tomadas, por parte do capital, para sua

reversão promoveram profundas transformações socioeconômicas e políticas no âmbito das

relações entre países centrais e periféricos. Desde então, os países e regiões dependentes que

participam do sistema do capital passaram a enfrentar profundas mudanças, as quais, na maior

parte das vezes, representaram um retorno do grau de desenvolvimento a períodos pretéritos,

aprofundando, com isso, o quadro social amplamente desigual conhecido desde a superação

do período colonial. Em particular, os países latino-americanos adentraram em um período

marcado profundamente por crises recorrentes, crescimento da instabilidade, retrocesso e

ampliação da desarticulação social - característica histórica do capitalismo dependente. Para

estes países, a cristalização deste quadro deletério deu-se mediante a fixação de um processo

estrutural de reprodução da dependência associado à conformação do endividamento

estrutural.

O declínio da taxa de lucratividade das empresas, os déficits ingentes no balanço de

pagamento estadunidense e a forte elevação da quantidade de petrodólares no mercado

financeiro da Europa provocaram, na década de 1970, o aumento dos fluxos de capitais na

forma financeira. Em face desse excedente crescente, verificou-se que parcela significativa da

chamada liquidez financeira do mercado internacional foi transferida para os países atrasados,

em particular os da América Latina, na forma de empréstimos. Estes passaram a priorizar o

endividamento como estratégia principal de desenvolvimento econômico, o qual, por sua vez,

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se transformou em um dos elementos mais significativos da estrutura contemporânea da

reprodução capitalista.

Naquele novo contexto, a dívida dos países latino-americanos ocupou o lugar da política de

desenvolvimento nacional baseada na “substituição de importações” que havia sido adotada

desde os anos 1930. Isto quer dizer que essas economias tiveram que passar por uma primeira

reestruturação produtiva no interior da qual o esforço exportador passou a ser a variável mais

importante em detrimento da expansão do mercado interno. A dívida foi formada, sobretudo,

entre 1965 e 1985, passando, então, a ser administrada como fator de reprodução da

rentabilidade do capital financeiro oriundo dos países centrais. Naquele período, a principal

mudança foi a adequação dos Estados nacionais ao processo de constituição da dívida. Os

governos latino-americanos, por conseguinte, internalizaram um volume imenso de recursos

financeiros reciclados pela banca internacional mediante políticas de desenvolvimento que em

alguns casos, e por um período limitado, viabilizaram taxas de crescimento acima daquelas

verificadas historicamente ao longo da década de 1970, mesmo com crescentes déficits

fiscais, na conta corrente e no balanço de pagamento.

Acontece que aquela montanha de dinheiro, que fluiu para a região, foi contratada para

começar a vencer em períodos relativamente curtos e a taxas de juros flutuantes (LIBOR e

prime rate americana). Evidentemente, com o aumento ingente das taxas de juros

internacionais, em 1979, proveniente da mudança de sinal da política interna e externa norte-

americana (política Volcker), os países latino-americanos não foram capazes de viabilizar

excedentes necessários ao pagamento regular do serviço da dívida e passaram a adotar o

regime de financiamento Ponzi58, caracterizado pela extrema fragilidade a choques externos.

Assim, o choque dos juros internacionais provocou, sobretudo nos países endividados, crises

cambiais e fiscais intensas configurando um quadro de iminente desmoronamento dos

sistemas monetários nacionais (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).

Não demorou muito para a América Latina sentir o impacto da política Volcker norte-

americana. O primeiro grande país da região a cair foi o México que entrou em crise em 1982,

decretando moratória. Os impactos da bancarrota mexicana se espalharam aos outros países

58 Segundo Minsky essa etapa corresponde ao processo de endividamento em que a tomada de novos créditos decorreu da necessidade de se cobrir o serviço da dívida passada.

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latino-americanos, já que, com a decretação do default, minguaram os fluxos de capitais para

a região59. Logo toda a região foi guiada à crise da dívida, haja vista os problemas no balanço

de pagamentos, aprofundados pela recessão mundial e pela ampliação da deterioração dos

termos de troca. A América Latina, então, adentra numa fase que passou a ser conhecida

como a “década perdida”. Sendo assim, denominada em face do peso da dívida relativamente

ao tamanho do produto interno e das baixas taxas de crescimento da formação bruta de capital

e do produto60.

Um outro agravante, naquele contexto de crise, fora a iminente insolvência das empresas e

bancos privados latino-americanos nos anos finais da década de 1970. Tal insolvência esteve

relacionada ao aumento do endividamento externo privado em moeda estrangeira “forte” e à

redução das expectativas de lucros esperados num contexto de recessão econômica. Para

evitar a bancarrota do setor privado, os Estados latino-americanos, entre 1978 e 1979,

assumiram os passivos externos privados em moeda estrangeira; cabendo, então, às

instituições privadas pagar suas dívidas em moeda nacional aos seus governos, tendo estes

que assumir o ônus dessa diferença cambial. Este fenômeno foi denominado: “estatização da

dívida externa”. Tal

[...] procedimento tinha amparo porque a maioria dos Estados não tinha dólares disponíveis para saldar aqueles compromissos. Com isso, os Estados nacionais inflacionaram seus gastos com juros e correção cambial da dívida externa, agravando ainda mais sua crise fiscal (CANO, 2000, p. 31).

À medida que as taxas de juros internacionais iam aumentando a partir de 1979, ampliaram-se

as obrigações da dívida externa dos Estados latino-americanos, levando-os literalmente à

bancarrota. Destarte, o processo de estatização da dívida externa aprofundou a crise fiscal do

Estado, uma vez que se fez necessário expandir a venda de títulos da dívida pública interna

com vistas à obtenção de receitas que possibilitassem a compra de divisas para o pagamento

de juros e de parte das amortizações da dívida externa. Os governos contraíram dívidas no

mercado interno para amortizarem dívidas externas, criando assim, uma verdadeira ciranda

59 Entre 1984 e 1989, o saldo da conta de capitais em porcentagem do PIB, na região – média entre Colômbia, Chile, Peru, Argentina, México e Brasil – foi negativo em 1,6%, ou seja, existiu transferência líquida para o exterior (CEPAL, 2002b). 60 A crise do endividamento provocou uma forte redução das taxa de crescimento do PIB regional (de 5,6%, nos anos de 1970, para 1,2%, na década de 80, na média anual) (CEPAL, 2002b).

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financeira que provocou ingente elevação do endividamento do setor público e pressões

altistas nos níveis de preços. Cano (2000), em passagem abaixo, descreve esse processo:

Dado o risco e baixa credibilidade no Estado, a dívida interna era negociada a altos juros e com vencimentos efetivos diários na rede bancária, o que a convertia em quase moeda. Com isso, a ampliação da dívida pública interna inflacionava ainda mais o gasto público, agora com mais juros e correções monetárias aos credores nacionais. Estava criada, assim, uma geminalidade financeira entre as duas dívidas, aumentando ainda mais as pressões altistas no sistema de preço [, em virtude da criação da quase moeda] (CANO, 2000, p. 31).

Tal tipo de financiamento da dívida externa, em associação com a fuga de capital da região a

partir da moratória mexicana, provocou um estrangulamento tanto na obtenção de divisas

quanto na geração de recursos fiscais. Naquele cenário de estrangulamento ficara claro que

seria impossível cumprir, ainda que parcialmente, os serviços da dívida. Diante disso, quase

toda região teve que buscar empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao

Banco Mundial (BM) para financiar a conta de transações correntes. A contrapartida

requerida por estas instituições foi a implementação de políticas de ajustes macroeconômicos

voltadas a exportação. Tais políticas constituíam-se dos seguintes pontos: i) políticas fiscais e

monetárias restritivas; ii) controle dos níveis salariais objetivando a redução dos salários reais.

A conjunção desses dois elementos provocou a queda do consumo interno e dos

investimentos; e iii) desvalorizações cambiais recorrentes, como forma de incentivar as

exportações e reduzir as importações, buscando aumentar os superávits comerciais com o

objetivo de reduzir os déficits em transações correntes. As políticas de desvalorizações

possibilitaram o ajuste exportador, em contrapartida, provocaram uma forte elevação dos

níveis de preço, em virtude da inflação de oferta originária da elevação dos preços dos

produtos importados (BALANCO & PINTO & MILANI, 2003; CANO, 2000).

Na verdade, essas políticas tinham com único propósito criar receitas em divisas estrangeiras

necessárias ao pagamento do serviço da dívida. Vale ressaltar que o pagamento dos juros aos

credores absorveu uma parcela significativa da elevação das exportações nos anos de 1980.

Entrementes, o esforço exportador, pós-1985, realizado na região, foi, em grande parte,

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corroído, em função da deterioração dos termos de troca61, em especial, no que se refere às

commodities agrícolas e industriais.

Os países da região passaram, portanto, a implementar um esforço exportador desmesurado

com o único propósito de criar receitas em divisas estrangeiras necessárias ao pagamento do

serviço da dívida. Tal esforço só poderia ser viabilizado a partir da redução da absorção

interna, o que, por sua vez, remetia a aplicação de uma recessão econômica de longo

alcance62. Esse ajuste exportador não surtiu os efeitos desejados nas contas do setor externo

na primeira metade da década de 1980, já que, entre 1980 e 1985, as importações, na média

anual, reduziram-se em 8,1% e as exportações praticamente não cresceram (0,8 % na média

anual). As contas externas só começaram a melhorar na segunda metade da década de 1980

(entre 1986 e 1990), em virtude do afrouxamento da demanda interna, das desvalorizações

cambiais e das renegociações da dívida externa. As importações voltaram a crescer numa

taxa de 9,7%, em média anual, e as exportações, também, cresceram cerca de 5,8%, em média

anual. Apesar disso, a participação da região nas exportações mundiais encolheu de 5,5% para

3,9%, entre 1980 e 1990, o que, por sua vez, comprova a inserção marginal da América Latina

nos fluxos comerciais mundiais (CEPAL, 2002a).

Os grandes países da América Latina, Argentina, Brasil e México, em diferentes momentos da

década de 1980, enfrentaram crises internas agudas cujas características principais foram a

recessão e a inflação galopante e recorrente63, uma vez que tanto a política de desvalorização

cambial quanto a criação da quase moeda do processo de financiamento da dívida externa

provocavam pressões altistas no nível geral de preços.

61 Na década de 1980 ocorreu uma deterioração dos termos de troca para a América Latina. Tal indicador caiu de 130 para 95,6, entre 1980 e 1993 (CEPAL, 2002a). 62 As medidas de contenção da absorção interna do ajuste macroeconômico exportador, da década de 80, impactaram negativamente no nível de atividade regional. Entre 1980 e 1985, taxa de crescimento do PIB foi ínfima, cerca de apenas 0,6 %, ao ano, em média. A mesma tendência de crescimento baixo foi verificada, entre 1985 e 1990, tendo o PIB se incrementado em apenas 1,9%, ao ano (CEPAL, 2002a e 2002b). 63 A taxa média anualizada de inflação, no conjunto da América latina, elevou-se para 84,4%, entre 1980 e 1984, e aumentou ainda mais, entre 1985 e 1989, alcançando o patamar de 229,8% (CEPAL, 2002a).

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No geral, embora tivessem parcialmente superado os efeitos mais deletérios, no momento em

que os efeitos mais graves de seus respectivos choques particulares foram amenizados, a dura

realidade do endividamento já se tornara estrutural64.

Nesta altura, a dependência crucial dos capitais de financiamento para garantir a reprodutibilidade da própria dívida, e possibilitar pequenos períodos de recuperação limitada, constituíra-se como inexorável e seria decisivo no novo ambiente que se formaria entre o final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado (BALANCO & PINTO & MILANI, 2003, p. 05).

Percebe-se, portanto, que o endividamento constituído no período 1965-1985 tornou-se, em si

mesmo, um obstáculo ao crescimento e, ao mesmo tempo, fonte principal da instabilidade

crônica e de processos recessivos permanentes nos quais ingressaram os países da América

Latina. No período contemporâneo, iniciado na segunda metade da década de 1980, este fator

estrutural conduziu estes países a uma posição de dependência crucial frente ao capital

externo. Como afirma Salama (2000),

[...] em geral a política de taxas de juros altas é [...] um freio ao desenvolvimento e pesa muito sobre o serviço da dívida interna dos Estados, aprofunda rapidamente os déficits orçamentários destes e é fonte de ceticismo crescente quanto à política econômica do governo (SALAMA, 2000, p.36).

Em suma, o ajustamento dos anos 80, na região, patrocinou a reestruturação corrente e

patrimonial do grande capital; em contraponto, provocou desequilíbrio do setor público. A

preservação dos lucros e do patrimônio do setor privado e o certo re-equilíbrio em conta

corrente foram conseguidos a custas de altos níveis inflacionários, da precarização da situação

cambial e do agravamento da vulnerabilidade fiscal do setor público e de suas respectivas

empresas estatais (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).

As crises, que se sucederam, em diversos países da região, serviram como uma pavimentação

social para a assunção social do modelo de desenvolvimento liberal na década de 1990. Os

64 As elevadas taxas de juros, que serviram de instrumento na captação recursos via emissão de títulos da dívida pública interna, funcionaram como agente da desestruturação das contas públicas – agravando fortemente os déficits orçamentários em virtude dos pagamentos dos serviços da dívida - dos Estados latino-americanos. O montante da dívida externa bruta desembolsada passou de US$ 222,7 bilhões para US$ 468,3 bilhões, entre 1980 e 1990 (CEPAL, 2002b).

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ajustes macroeconômicos heterodoxos, da década de oitenta, não conseguiram compatibilizar

o ajustamento do balanço de pagamentos e o reordenamento das finanças públicas. Na

verdade, o conflito distributivo na América Latina, que foi modelado pelo regime monetário

inflacionário dos anos 80, significou a primeira etapa da renúncia da soberania monetária dos

Estados, já que estes delegaram, em grande parte, ao FMI e ao Banco Mundial as estratégias

econômicas regionais. Tais estratégias acabaram voltando-se para os que enriqueceram com

os títulos da dívida e para legitimação do ideário neoliberal (PEREIRA, 2001).

3.3. A integração passiva latino-americana dos anos 1990: impactos dos ajustes

estruturais neoliberais

A década de 1990 foi marcada por profundas transformações no âmbito das relações entre

países centrais e periféricos, em virtude da: i) implosão do mundo socialista e da posterior

estratégia estadunidense de busca de construção de um império liberal, conforme descrito em

capítulo anterior; ii) forte desaceleração nas economias desenvolvidas, com a exceção dos

EUA, principalmente na segunda metade da década; iii) queda das taxas de juros

internacionais em comparação com as taxas dos anos 1980; iv) integração de novos espaços à

dinâmica do capital através da reestruturação das dívidas externas; v) reestruturação produtiva

das multinacionais nos espaços periféricos; e vi) busca estadunidense de mercado externo

para seus novos excedentes exportáveis.

As economias dos países centrais, sobretudo o Japão e o Estados Unidos, atravessaram, no

início dos anos de 1990, situações econômicas restritivas. Os EUA sofreram uma forte

recessão, entre 1990 e 1992, enquanto no Japão ocorreu o “estouro” de uma bolha

especulativa financeira. Isso provocou uma deflação da riqueza mobiliária e imobiliária nos

mercados globalizados. Numa situação como aquela os Bancos Centrais daqueles países

reduziram suas taxas de juros fortemente, buscando assim, equalizar os desequilíbrios tanto

correntes quanto do balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias (BELLUZZO &

ALMEIDA, 2002; BRENNER, 2003).

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As reduções dos juros nos países centrais provocaram uma grande elevação da liquidez

internacional. Parte deste capital direcionou-se à América Latina65, engajando-a assim em um

novo ciclo de absorção de capitais externos. A região se configurou como um novo porto

bastante rentável para os capitais forâneos. Isso representou uma reviravolta em relação aos

anos de 1980, momento em que a região praticamente não participou da rápida expansão dos

fluxos financeiros na economia internacional daquela década. Na verdade, aquele afluxo de

capital, inclusive com períodos de superabundância, potencializou a integração da região à

dinâmica de acumulação do capital. Quer seja como espaço de reprodução da acumulação

financeira ou como espaço de realização das mercadorias do setor manufatureiro norte-

americano por meio do ajuste importador realizado pela América Latina ao longo de boa parte

dos anos noventa.

A maior liquidez internacional, em associação com a abertura comercial e financeira e com a

reestruturação das dívidas externas por meio do Plano Brady, potencializou o afluxo de

capital para os países latino-americanos. Além da abertura da conta de capital, a dinâmica

financeira foi impulsionada pela securitização das dívidas externas e internas através da

emissão de bônus negociáveis no mercado financeiro norte-americano e das inovações

financeiras (derivativos, mercados futuros, etc.). Nesse novo contexto, a América Latina sai

da posição de exportador líquido de capitais para se tornar receptor, principalmente, de

capitais de curto prazo (hot-money).

A expansão da integração da América Latina ao mercado mundial, através da retomada das

“exportações de capitais”, especulativos e voláteis em sua grande maioria, dos países centrais

para os países dependentes, ao longo da década de 1990, aprofundou ainda mais o

endividamento estrutural. A impossibilidade de se desatrelar deste endividamento permanente

foi cristalizada mediante a aplicação dos ajustes estruturais de corte neoliberal.

A intensa abertura comercial e financeira regional, na década de 1990, também esteve atrelada

à estratégia comercial norte-americana voltada para a recuperação da competitividade das

65 A partir de 1990, o continente (média entre Colômbia, Chile, Peru, Argentina, México e Brasil) se inseriu no mercado internacional como receptor de investimentos de portfólio e o saldo da conta de capitais foi de 1,4% do PIB (UNCTAD, apud MEDEIROS, 1997, p. 293). Dessa forma, o crédito interno, entre 1988 e 1993, aumentou de 22% para 30 % do PIB, enquanto o índice dos preços dos valores negociados em bolsa incrementou-se mais de três vezes e meia.

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suas exportações. A desvalorização do dólar em relação ao iene, entre 1992 e 1995 (queda de

mais de um terço na relação dólar/iene) e a redução das barreiras tarifárias dos países latino-

americanos possibilitaram a abertura de mercados na região para os diversos tipos de produtos

manufatureiros norte-americanos. Portanto, a análise de tal estratégia comercial faz-se

necessário para o entendimento das mudanças macroeconômicas na década de 1990

(MEDEIROS, 1997; BRENNER, 2003).

O ingresso de capitais na região propiciou a ampliação da acumulação produtiva e,

principalmente, financeira do capital norte-americano. Pelo lado da acumulação financeira,

verificou-se que os capitais especulativos forâneos foram recompensados com altas taxas de

juros (D-D’). Pelo lado do capital produtivo estrangeiro, a entrada de capitais, em

consonância com a abertura comercial, possibilitou a equalização dos déficits na balança

comercial originados pelo aumento das importações provenientes da sobrevalorização

cambial. Essa equalização, por sua vez, possibilitou o aumento das exportações de produtos

manufaturados norte-americanos para a região. Portanto, o intenso processo de abertura

financeira e econômica da América Latina esteve e está associado às estratégias

estadunidenses voltadas às suas altas finanças e ao seu capital manufatureiro.

Nesse contexto, os Estados Unidos ampliaram sua capacidade de influenciar nas políticas

internas e externas dos Estados nacionais mais débeis por meio da imposição do modelo

neoliberal aos países devedores, já que estes foram constrangidos por seus endividamentos

estruturais. O FMI e o Banco Mundial foram peças chaves na implantação de tal modelo,

conforme descrito no capítulo anterior.

Entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990, a grande maioria dos países da região

abraçou, se bem que seletivamente e com diferentes graus de intensidade, os ajustes

estruturais, que consistiam, sinteticamente, nas privatizações e desregulamentações; na

flexibilização do mercado de trabalho; na diminuição do papel do Estado; e na abertura

comercial, como estratégias para alavancagem do desenvolvimento. Assumiu-se, portanto, a

retórica de que o excessivo intervencionismo estatal e seus déficits fiscais eram os principais

empecilhos para os países latinos adentrarem numa nova fase de prosperidade. Nessa

perspectiva liberal, a estabilidade monetária, o equilíbrio fiscal e a competitividade

internacional seriam os elementos para a modernização da periferia. O modelo de

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“desenvolvimento” neoliberal, aplicado na região, assentou-se no binômio da abertura e da

competitividade atrelado à estabilidade inflacionária.

O combate à inflação dos anos 1990 foi a pedra de toque da construção do modelo neoliberal,

uma vez que boa parte da sociedade latina, nos mais diversos países, entendia que os

problemas internos (estagnação econômica, deterioração dos serviços estatais e da infra-

estrutura do Estado e o empobrecimento generalizado da população) estariam associados,

basicamente, à hiperinflação, que estaria vinculada, principalmente, aos déficits do setor

público. Segundo Sader (2003), esse diagnóstico liberal da crise dos anos 1980, na América

Latina, e sua aceitação por grande parte da população possibilitaram a implantação dos ajustes

estruturais liberais em quase todo território latino-americanos. O imposto inflacionário e a

intervenção econômica do Estado, que provocaria déficits públicos, deveriam ser debelados a

qualquer custo.

Esta aquiescência da população ao ideário neoliberal foi reforçada nos momentos iniciais da

implementação dos ajustes estruturais neoliberais, na medida em que se verificou uma rápida

redução da inflação66 e um aumento do crédito. Isso, por sua vez, possibilitou um aumento do

consumo e um crescimento da produção e do emprego. A estabilidade monetária se converteu

no principal bem público da América Latina e garantiu a eleição e a reeleição de vários

presidentes, dentre eles: Carlos Menem na Argentina, Fernando Henrique Cardoso no Brasil,

Alberto Fujimori no Peru e a manutenção do partido governista no México. Ademais, os

Ministros da Fazenda e presidentes de Bancos Centrais que consubstanciaram a austeridade

fiscal e monetária foram saudados como heróis pelos investidores estrangeiros, que trouxeram

quantidades de capital sem precedentes para a região. No entanto, o crescimento logo se

mostrou efêmero, diante dos problemas surgidos pela própria operacionalização do modelo

neoliberal, a saber, deterioração das contas externas e das finanças públicas e a elevadíssima

dependência de capital especulativo forâneo.

66 As políticas econômicas ortodoxas conseguiram alcançar seu intento monetário: conter a inflação. No México a inflação se reduziu de 60,9%, na média entre 1980-95, para 5,1% em 1995. No Brasil e na Argentina essa redução foi ainda maior, de 2.862,4%, em 1990, para 6%, em 1995, e de 2.314,0%, em 1990, para 3,4 %, em 1995, respectivamente (CEPAL, 2003).

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Além disso, o ciclo de absorção de capital externo, iniciado nos anos de 1990, apresenta

características particulares, o que contribui, inclusive, para dificultar a prospecção dos riscos

envolvidos em seu momento inicial. Nas décadas de 1970 e 1980 os empréstimos e

financiamentos eram as principais formas de ingresso de capital na América Latina e,

portanto, a dívida externa constituía uma aproximação razoável do passivo externo total dos

países da região. Recentemente, isso já não é mais verdade, uma vez que os investimentos

diretos, muitas vezes resultantes de operações de privatização, ou os investimentos de

portfólio (aplicações em bolsa de valores) constituem parte substancial do capital que vem do

exterior. Como esses passivos não são contabilizados na dívida externa, os dados referentes ao

estoque e ao serviço da dívida, assim como suas relações com as exportações ou PIB,

subestimam significativamente a extensão do problema e os indicadores de vulnerabilidade

externa (NOGUEIRA, 1997).

Vejamos de forma detalhada como o modelo macroeconômico neoliberal, com livre

mobilidade de capital e câmbio fixo ou quase fixo, que foi utilizado na maioria dos países da

América Latina, em boa parte dos anos 90, criou situações econômicas insustentáveis no

longo prazo. Tal modelo apresentava a seguinte dinâmica: a entrada de capitais forâneos,

viabilizada pela liquidez internacional e pelos spreads exigidos pelos investidores

estrangeiros, num primeiro momento, proporcionava o aumento das reservas internas devido

ao câmbio fixo ou quase fixo. Isso provocava a expansão da base monetária interna e, por

conseguinte, do crédito que poderia provocar aumentos nos níveis de preços. Para reverter

essa possível situação, os Bancos Centrais utilizavam políticas de esterilização, ou seja,

enxugavam a liquidez interna por meio da venda de títulos públicos. Para tanto, fazia-se

necessário elevar a taxa de juros com o intuito de atrair compradores para os títulos públicos

da dívida. A política de esterilização elevou a dívida interna e o pagamento de juros da

mesma, acentuando assim, o déficit orçamentário. Ademais, a valorização cambial, nos países

da região, consubstanciou déficits comerciais recorrentes e intensos67 ao longo da década de

1990.

67 As políticas de valorização cambial e a abertura comercial provocaram aumentos nas importações que excederam fortemente as exportações. Entre 1990 e 2000, o déficit comercial, com relação ao PIB, foi de 0,9% e o déficit da conta capital foi de 2,6% do PIB, ambas em média anuais. Isto demonstra o aumento da vulnerabilidade externa na economia Latino América (CEPAL, 2003).

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122

Os déficits na balança comercial foram financiados pelo lado da conta de capital e financeira

do balanço de pagamentos através da entrada contínua de capitais forâneos voláteis, em

grande monta, enquanto, os déficits orçamentários foram financiados por meio da emissão de

novos papeis da dívida pública. Evidentemente, para que esse modelo se tornasse viável, o

movimento de entrada e saída dos capitais nos espaços nacionais teria que ser o mais amplo

possível. Daí, o caráter volátil que o capital-dinheiro passou a ter, o que, por sua vez, ampliou

a vulnerabilidade dos países recebedores destes tipos de capital. Aqui se revelara novamente,

sob outras condições, o papel da dívida68 como componente estrutural decisivo. Os novos

capitais passaram a entrar por períodos relativamente curtos, sem compromisso com a

alteração da estrutura produtiva interna, quando muito, os mesmos passaram a ser utilizados

nos pagamentos das obrigações do serviço da dívida externa. Ao mesmo tempo, praticando a

arbitragem, estes capitais, agora especulativos, não tiveram prazos nem critérios definidos

para sair dos países da região e quando o fizeram, em função de melhores oportunidades em

outras regiões do planeta (taxas de juros mais elevadas), ou por conta da deterioração das

contas externas dos países onde se encontravam, abriam-se ataques especulativos, que, por

sua vez, geraram crises agudas nos países da região, tais como, no México em 1994, no Brasil

em 1999 e na Argentina em 2001, dentre outras crises.

Naquele modelo, as taxas de juros reais assumiram um caráter basilar, já que estas

funcionavam como instrumento de atração de capitais forâneos em abundância naquele

momento. Neste contexto, a política de manutenção de altas taxas de juros fora utilizada para

atrair capitais forâneos e para consubstanciar as políticas de esterilização.

As taxas reais não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites estabelecidos pelos spreads exigidos pelos investidores estrangeiros para adquirir e manter em carteira um ativo denominado em moeda fraca, artificialmente valorizado (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002, p. 367).

A combinação de déficit externo, taxa de câmbio apreciada e déficit orçamentário

constituíram-se numa política insustentável na América Latina, pois a qualquer sinal

68 A dívida externa bruta da América Latina saltou de U$ 460,9 para U$ 727,8 bilhões, entre 1991 e 2001. A Argentina e o Brasil desembolsaram mais de 40% de sua riqueza nacional em pagamentos da dívida. Entre 1991 e 2001 a dívida externa bruta desembolsada saltou de 32,3% para 52%, na Argentina, e de 30,4% para 43,4%, no Brasil (CEPAL, 2000a).

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desfavorável aos mercados verificava-se uma saída maciça dos capitais voláteis,

comprometendo assim, a conversibilidade da moeda: crise financeira. Desse modo, as

contradições internas do modelo neoliberal (impossibilidade de redução da taxa de juros a

certo nível imposto pelo capital financeiro) provocaram ingentes elevações na dívida pública69

e impediram qualquer possibilidade de se engendrar um crescimento sustentável que pudesse

levar a melhoria na distribuição de renda regional, já que a busca de “credibilidade” para os

mercados, uma vez conquistada, cobra um preço alto pela sua fidelidade. A manutenção das

altas taxas de juros restringiu o crescimento econômico nos anos 1990 na América Latina. O

máximo que este modelo gerou, ao longo da década, foram crescimentos espasmódicos - os

denominados “vôos de galinha” – e mesmo assim quando o cenário internacional era bastante

favorável (ver Gráfico 3.1).

Gráfico 3.1 - Variações do PIB e do PIB per capita entre 1990 e 2002 - América Latina

- 0,6

- 2,4

3,3

1,5

2,8

1,1

3,4

1,6

5,1

3,3

1,1

- 0,6

3,8

2,1

5,1

3,4 2,2

0,6 0,5

- 1,1

3,7

2,2

0,4

- 1,1- 0,6

- 2,0

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

PIB PIB per capita

Fonte: CEPAL

Os movimentos de curto prazo, de aceleração e desaceleração da economia latino-americana,

caracterizaram o nível de atividade regional. Nem mesmo as mudanças dos regimes cambiais,

nem as políticas de metas inflacionárias, nem os regimes fiscais mais draconianos,

69 As elevadas taxas de juros do modelo neoliberal provocaram uma forte elevação da dívida pública regional. A dívida externa bruta saltou de U$ 460,9 para U$ 727,8 bilhões, entre 1991 e 2001, tendo a Argentina e o Brasil desembolsado mais de 40% de sua riqueza nacional em pagamentos da dívida em 2001. Entre 1991 e 2001 a dívida externa bruta desembolsada saltou de 32,3% para 52%, na Argentina, e de 30,4% para 43,4%, no Brasil (CEPAL 2002a e 2002b).

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engendrados no final dos anos 1990 e início dos 2000, em diversos países da região,

conseguiram reverter, de forma estrutural, a vulnerabilidade externa e a fragilidade financeira

do setor público.

Vejamos agora, de forma bastante sintética, algumas características do processo de

conformação e de implantação dos ajustes estruturais nas maiores economias latino-

americanas: Argentina, México e Brasil.

No México, a gravidade da crise da dívida de 1982 adiou o início das reformas liberalizantes

salvo o programa de desestatização. As reformas liberais foram aprofundadas, entre 1989 e

1995, com assunção no governo do tecnocrata Salinas que governou o México, entre 1988 e

1994, imbuído da missão de concluir a abertura e a desregulamentação e de consolidar a

integração da economia mexicana à dos Estados Unidos, com a inserção do país à NAFTA

(Área de Livre Comércio da América do Norte), alçando assim o México ao “Primeiro

Mundo”! As privatizações foram conduzidas gradualmente, tendo em vista a difícil

negociação com trabalhadores, sindicatos e Congresso, para obter emendas constitucionais e

novas leis que fossem retirando do Estado ou do capital nacional a exclusividade das

atividades econômicas locais. A consolidação da abertura comercial, em 1987, e a valorização

cambial a partir de 1988 formaram as vigas mestras para a política de estabilização praticada

entre 1987 e 1989. A desregulamentação financeira e as crescentes entradas de capitais de

curto prazo expandiram o crédito ao setor privado, financiando as crescentes importações,

privatizações e a especulação bursátil. A integração mexicana à NAFTA, atrelou o país, cada

vez mais, à dinâmica da economia norte-americana. Na verdade, o México vem funcionando

como um departamento de produção estadunidense no exterior, em incessante busca de

trabalho barato. A dinâmica produtiva mexicana configurada pós-NAFTA, implicou, num

primeiro momento, na desarticulação interna da cadeia produtiva e, num momento seguinte,

na articulação entre indústrias norte-americanas e mexicanas - substitui-se com importações

crescentes dos Estados Unidos o que antes era fornecido pela produção interna mexicana –

sob o comando do capital estadunidense através das indústrias maquiladoras - a legislação

mexicana permite que sejam controladas em até 100% por capital estrangeiro (CANO, 2000).

Na Argentina, a hiperinflação de 1989 consubstanciou um processo de desorganização

econômica e social, a saber: produção paralisada, redução drástica dos salários reais,

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125

incremento da miséria e do descontentamento social. Na campanha eleitoral Carlos Menem

assume um programa tipicamente peronista de incremento salarial e de “revolução” produtiva.

Após vitória eleitoral, Menem muda radicalmente o programa peronista e implementa o mais

severo programa de ajuste estrutural da América Latina - uma “terapia de choque” ao estilo

monetário ortodoxo de Chicago. Em 1991, o Ministro da Economia Domingo Cavalo

implanta o Plano de Conversibilidade, o que, por sua vez, limitava as funções do Banco

Central a uma caixa de conversão (Currency Board). Aquela política teve como o objetivo

essencial garantir o pagamento dos débitos externos, um interesse que se atrelava fortemente

aos interesses financeiros argentinos e internacionais. A manutenção da Lei de

Conversibilidade por mais de dez anos, os sucessivos ajustes fiscais, as privatizações de todo

o patrimônio público, as reduções do valor dos salários e das aposentadorias aprofundaram as

dificuldades e jogaram a crise para adiante, que estourou em 2001. Paul Cooney, em seu

artigo Argentina at the Abyss, apresenta, na passagem a baixo, algumas das principais causas

da crise Argentina de 2001:

The economic and social crisis that Argentina has been experiencing clearly has a number of causes. As I tried to argue, a significant historical process that began under the dictatorship of the late 1970s is that of deindustrialization, and more recently ‘agriculturalization’ of the Argentine economy. This has come about from a range of mainly neoliberal policies strongly pursued by the military government and the Menem administration. It is clear that Argentina has become much more vulnerable to the processes of globalization and the oscillations of the world market, having eliminated many of its controls for trade, finance, etc. Undoubtedly, the pegging of the peso to the dollar became a problem by the mid to late 1990s. The need for a currency correction was building up and as years went by took on a political aspect (COONEY, 2003, p. 11).

O Brasil foi um dos últimos países da região a substituir o modelo de Substituição de

Importação pelo modelo de desenvolvimento neoliberal. Isto não acontece por acaso. Na

verdade, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, não se tinha ainda clara a rota a

ser tomada pelo capitalismo dependente brasileiro. Havia, naquele período, certa disputa de

poder entre o capital industrial, comercial, agrário e financeiro com vistas ao controle

hegemônico das estratégias de desenvolvimento nacional. Os governos Sarney e Collor foram

marcados pela representação desse interregno hegemônico de uma fração de classe

consolidada no plano interno. À medida que vão se rearticulando os interesses das finanças,

do agronegócio e do capital comercial inicia-se a conformação das estratégias de

“desenvolvimento” liberal (Plano Real) assentadas na abertura e na competitividade, tendo

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126

como suposto a estabilidade inflacionária. Tais medidas provocaram uma mudança

desfavorável no padrão de comércio internacional, haja vista a perda de competitividade das

exportações manufatureiras e a expansão das exportações de produtos agrícolas, refletindo na

“reprimarização” das exportações. Os ganhos de competitividade brasileiros vincularam-se à

expansão dos produtos agrícolas, o que, na verdade, gera uma incerteza crítica no processo de

ajustamento das contas externas, uma vez que essa alternativa tende a ampliar as trocas

desiguais. As modificações na estrutura socioeconômica brasileira na década de 1990 serão

detalhadamente aprofundadas e analisadas no capítulo seguinte.

Do ponto de vista estrutural verificou-se, na América Latina, uma mudança desfavorável no

padrão do comércio internacional, o que, por sua vez, levou ao aumento na participação dos

produtos com baixo valor agregado nas exportações. Isso aconteceu fortemente no Brasil e na

Argentina e com muito menos intensidade no México, em virtude das características

especificas das maquiladoras na estrutura produtiva desse país. O baixo dinamismo das

exportações manufatureiras com maior conteúdo tecnológico nesses dois países, dentre outras

coisas, demonstra o desmantelamento e/ou a desnacionalização do aparelho produtivo

atribuído especialmente à apreciação cambial e às baixas taxas de investimento

(GONÇALVES, 2000; TEUBAL, 2000-2001; SALAMA, 2002 e 2003).

Os ajustes estruturais implantados na maioria dos países latino-americanos proporcionaram

“enormes transferências de renda, poder e riqueza para o establishment político e econômico”.

Implicando a “marginalização e exclusão da maioria da população” e a desvalorização das

políticas sociais universalizantes (TEUBAL, 2000-2001, p. 461). Tais ajustes liberais

provocaram (i) um incremento na exploração do trabalho, evidenciado através da redução dos

salários reais dos grupos de rendimentos mais baixos; (ii) uma maior “regressividade” na

distribuição da renda; e (iii) uma elevação do desemprego em suas várias formas. A adoção de

tal modelo ampliou a desarticulação setorial e social – uma característica histórica do

capitalismo dependente -, provocando, com isso, a deterioração das condições sociais das

populações.

Os programas de ajustes estruturais na América Latina, em certa medida, não tiveram como

componente principal o avanço tecnológico, que provocaria o aumento da taxa de mais-valia

relativa. Na verdade, a busca pela lucratividade, no âmbito produtivo, na região, esteve

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127

assentada mais fortemente no aumento da mais-valia absoluta devido à redução dos salários

reais e ao aumento da jornada de trabalho provenientes do processo de flexibilização do

mercado de trabalho (TEUBAL, 2000-2001).

Com a acumulação da região assentada na flexibilização das relações trabalhistas e na

valorização financeira, materializa-se um aumento da heterogeneidade no continente, tanto

interno a cada país quanto entre diferentes países, pois a renda vem sendo distribuída de

forma cada vez mais regressiva. Desse modo, a desigualdade, nos países latino-americanos, se

acentuou70, tanto nos países que tiveram êxito nos ajustes estruturais quanto nos menos

exitosos. O abismo entre os mais abastados e os mais pobres cresceu de forma acentuada nos

países latino-americanos que adotaram as políticas liberalizantes. Dentre os países principais,

a evolução do salário mínimo real urbano mostrou a superação dos níveis salariais de 1990 -

com exceção do México e Uruguai. Entrementes, no cotejo entre os níveis de 1980 e de 2000,

verificaram-se reduções significativas: no Brasil (-5,42%), na Argentina (-32,80%), na

Venezuela (-98,47%), no México (-235,27%) e no Peru (-460,51%) (CEPAL, 2003).

O baixo crescimento econômico, juntamente com abertura comercial, as privatizações das

empresas estatais e a fragilização dos sindicatos, na América Latina, implicaram diretamente

e indiretamente no aumento das taxas de desemprego e contribuíram para a desestruturação do

mercado de trabalho71, com a substituição de ocupações mais estáveis e de melhor qualidade

70 A distribuição da renda encontra-se em níveis piores hoje, na maioria dos países do continente, do que nas décadas de 80 e 90. Segundo a Cepal (2003), os 20% mais pobres e os 20% mais ricos da população detinham, respectivamente, em porcentagem da renda total: na Argentina, 6,8 e 45,3, em 1980, e 6,0 e 56,0 no ano de 1999; no Brasil, 3,3 e 59,2 , em 1980, e 3,5 e 61,9, em 1999. Neste país, apesar de certa melhora na renda dos mais pobres, ocorreu um aumento na renda dos mais ricos, com um provável descolamento de renda das classes médias brasileiras para as classes mais pobres e mais ricas, o que não se configura como melhor forma para obtenção de equidade na renda; 7,8 e 41,2, em 1984, e 6,7 e 49,0, em 2000, no México, uma das piores evoluções na distribuição de renda, só perdendo para a Venezuela. Uma das poucas exceções foi o Chile e a Colômbia que lograram uma melhora dos índices de equidade social. No conjunto da América latina a herança da desigualdade social e suas conseqüências continuam sendo levadas às futuras gerações. A pobreza e a indigência da população urbana, entre 1994 e 1999, diminuíram de 32% e 12% para, respectivamente, 30% e 9%. Embora se perceba uma pequena melhoria neste período, a pobreza ainda manteve-se muito acima dos níveis de 1980 (25% e 9%), enquanto a indigência urbana se manteve na mesma posição. Com a população rural, o quadro é ainda pior: entre 1994 e 1999, a pobreza e a indigência caíram de 56% para 54% e de 34% para 31%, respectivamente; em relação a 1990, ambas também pioraram (CEPAL, 2003). 71 A taxa de desemprego urbano aberto, em média ponderada, da América Latina, ao longo da década de 1980, se reduz de 6,1 a 5,8, entre 1980 e 1990 apesar de todo colapso das várias políticas macroeconômicas e da crise do endividamento na região. No decorrer dos anos 90 a taxa de desemprego eleva-se, de 5,8 para 8,4, no cotejo entre 1990 em 2001, confirmando que as políticas neoliberais tendem a acentuar o desemprego, seja pelo seu aspecto estrutural, seja pela sua dimensão conjuntural. A maior era a da Argentina (passa de 2,6 em 1980 para 7,4 em 1990, e mais do que dobra, 17,4, em 2001); vale ressaltar que este foi o país que implementou de forma mais intensa o ajuste; a do México, embora fosse uma das mais baixas (por problemas metodológicos), cai de 4,5

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128

por outras mais precárias. O que existe subjacente a este processo é a busca por parte das

empresas multinacionais e nacionais, aqui implantadas, em aumentar a taxa de exploração do

trabalho, mais-valia relativa e absoluta, viabilizada pela flexibilização do mercado de trabalho

na América Latina.

Nesse contexto, de aumento do desemprego e queda da renda das famílias, em justaposição

com a piora dos serviços públicos sociais (saúde e educação, principalmente) que vêm se

configurando, no decurso dos últimos vintes anos, na América Latina, conforma uma

contraface de profunda deterioração social hodiernamente associada à prostituição, à

violência, ao tráfico e à corrupção que atinge praticamente todos os espaços urbanos e parte

do rural da América Latina, variando apenas em grau entre diferentes países (CANO, 2000).

Na análise efetivada neste capítulo, procurou-se identificar as razões que conduziram à

posição degenerescente trilhada pela América Latina desde os anos 70 do século passado,

principalmente, no âmbito das relações entre a região e as potências capitalistas. E as razões

profundas explicativas dessa situação só podem ser descortinadas se procedermos a uma

análise totalizadora na qual a América Latina seja compreendida como parte inelutável do

sistema capitalista internacional. Dessa forma, pode-se concluir que o quadro econômico e

social presenciado nos países latino-americanos, de forma quase homogênea, nada mais

significa do que a expressão de novos eixos de valorização do capital associados às

transformações nas relações de poder entre os Estados nacionais. Tais mudanças são, na

verdade, o reflexo dos conflitos das frações capitalistas (agrária, industrial, comercial e

financeira) e das contradições entre capital e trabalho, tanto no âmbito dos países centrais

quanto periféricos, cuja origem centra-se na busca da construção da hegemonia de

determinadas frações do capital.

A análise dos conflitos e das alianças das frações intercapitalistas no conjunto latino-

americano não foi efetivada, neste capítulo - apesar de sua relevância explicativa à

compreensão dos fenômenos socioeconômicos latinos -, uma vez que seria necessária uma

em 1980 para 2,7 em 1990, mantendo-se praticamente estável 2,5 em 2001; a taxa do Brasil, também apresenta problemas metodológicos, passa de 6,3 em 1980 para 4,3 em 1990, elevando-se para 6,2 em 2001. A queda do desemprego no México e a certa estabilidade do Brasil são explicadas em grande parte pela violenta precarização e informalização dos seus mercados de trabalho, na medida em que se empregam cada vez mais pessoas sem vinculo empregatício e com relações de trabalhos precários (CEPAL, 2003).

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129

pesquisa profunda e complexa das mais diversas realidades dos países que compõem a região.

Tal investigação ampla transbordaria ao escopo deste trabalho. Portanto, nesta análise

socioeconômica da América Latina utilizou-se apenas uma das características do instrumental

teórico da (des)articulação social e setorial, quais sejam, os elementos da demanda efetiva em

detrimento das análises das configurações da estrutura econômica interna e de suas classes

sociais. No entanto, pretende-se, em certa medida, no capítulo seguinte, apreender as

transformações socioeconômicas do Brasil à luz das relações classistas - mais especificamente

entre as frações dominantes nacionais em suas interações com o Estado nacional e como o

capital internacional - através do instrumental teórico da (des)articulação setorial e social,

tanto em seus elementos vinculados à demanda efetiva como, principalmente, em seus

aspectos relativos à estrutura de classes e seus respectivos efeitos sobre a taxa de exploração.

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130

CAPÍTULO IV

A DESARTICULAÇÃO SETORIAL E SOCIAL BRASILEIRA: DIMENSÕES

CONSTITUTIVAS E AMPLIAÇÕES RECENTES PÓS-PLANO REAL

4.1. O conceito de (des)articulação setorial e social72

A análise das dimensões constitutivas do capitalismo dependente brasileiro e suas

configurações recentes - após a implementação do Plano Real, em 1994, (ajuste estrutural

neoliberal) até o final do segundo governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002 - serão

realizadas, neste capítulo, por meio do referencial teórico da (des)articulação setorial e social,

dando um enfoque maior aos movimentos das classes e, principalmente, das frações da classe

dominante. Portanto, faz-se necessário, antes de qualquer análise do caso brasileiro,

aprofundar a discussão a respeito de tal conceito.

O conceito de (des)articulação social e setorial foi desenvolvido no intuito de descrever e

explicar as diferenças estruturais entre os países centrais e periféricos, inclusive, no que se

refere à maior exploração do trabalho e à maior pobreza e exclusão social dos países

periféricos em relação aos centrais. Segundo Teubal, a (des)articulação

[...] on the one hand, it refers to the degree or rate de exploitation prevailing in different economies [maior ou menor taxa de mais-valia, que depende dos conflitos entre as classes e suas frações]. But then it also includes important demand elements [importância da renda salarial na demanda agregada kaleckiana], which are complementary to the rate of exploitation but not exhausted by that concept (TEUBAL, 2000-2001, p.463).

72 O conceito de (des)articulação foi sendo construído, ao longo das décadas de 1960, de 1970 e de 1980, a partir de trabalhos desenvolvidos por Celso Furtado, Samir Amin, Alain de Janvry, Miguel Teubal, entre outros. Cabe ressaltar que a depender da vertente teórica desses autores o conceito de (des)articulação empregado por eles pode se voltar apenas aos elementos da demanda em detrimento da análise da taxa de exploração. Esse foi, por exemplo, o viés adotado por Furtado. Aqui será adotada uma perspectiva particular para o entendimento da (des)articulação das economias nacionais, que tende a se aproximar da de Teubal (2000-2001) e da de Janvry (1981), na medida em que estes incorporam, em certa medida, alguns elementos da exploração.

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Tendo por base esse conceito, analisam-se os efeitos da maior/menor participação dos salários

dos trabalhadores na dinâmica de setores-chaves e na estrutura econômica

((des)balanceamento entre departamentos de produção e de consumo) de determinados países,

haja vista a maior/menor dificuldade interna da classe dominante nacional ou de uma de suas

frações em consubstanciar hegemonias amplas, ou por assim dizer, uma hegemonia que

consiga incorporar ao mesmo tempo a unidade contraditória no interior do bloco no poder73 e

fora do bloco no poder (classes dominadas). Essa maior/menor dificuldade em formar uma

hegemonia ampla, em regra geral, tende a se correlacionar com a ausência/construção de

projetos nacionalistas de criação de um sistema econômico nacional que, inclusive, definam

os limites constitutivos dos Estados nacionais. Portanto, a não-formação de uma hegemonia

ampla impediu a construção de estruturas e dinâmicas produtivas internas que conseguissem

integrar as diversas frações das classes (dominantes e dominados), ou por assim dizer,

bloqueou a construção de economias articuladas setorial e socialmente.

A formação e o desenvolvimento histórico dos países capitalistas retardatários (Estados

Unidos, Alemanha, França e Japão) nos dão uma boa sinalização desse processo. Nesses

países, em suas especificidades, verificou-se, ao longo do séc. XIX, um constante conflito

interno entre as frações oligárquicas ou feudais agrárias - em grande parte articuladas aos

interesses do capital comercial e financeiro inglês - e a nascente burguesia industrial. Tais

73 Poulantzas, em passagem bastante elucidativa do seu livro Poder político e classes sociais, explicita muito bem o conceito de bloco no poder que será adotado aqui: “O bloco no poder constitui-se uma unidade contraditória de classes e frações politicamente dominantes sob a égide da fração hegemônica. A luta de classe, a rivalidade dos interesses entre as frações sociais, encontra-se nele constantemente presente, conservando esses interesses a sua especificidade antagônica [...]. A própria hegemonia, no interior deste bloco, de uma classe ou fração, não é devido ao acaso: ela tornou-se possível [...] através da unidade própria de poder institucionalizado do Estado capitalista. Esta, corresponde à unidade particular das classes ou frações dominantes, isto é, estando em relação com o fenômeno do bloco no poder, faz precisamente com que as relações entre essas classes ou frações dominantes não possam consistir, como acontecia com outros tipos de Estado, em uma ‘repartição’ do poder de Estado – ‘igualdade de poder’ daqueles. A relação entre o Estado capitalista e as classes ou frações dominantes funciona no sentido da sua unidade política sob a égide de uma classe ou fração-hegemônica. A classe ou fração hegemônica polariza os interesses contraditórios específicos das diversas classes ou frações no bloco no poder, constituindo os seus interesses econômicos em interesses políticos, representando o interesse geral comum das classes ou frações do bloco no poder: interesse geral que consiste na exploração econômica e na dominação política. [...]. O processo de constituição da hegemonia de uma classe ou fração difere, consoante essa hegemonia se exerce sobre as outras classes e frações dominantes – bloco no poder -, ou sobre o conjunto de uma formação, inclusive, portanto, sobre as classes dominadas.[...]. O interesse geral, que a fração hegemônica representa em relação às classes dominantes repousa, em última análise, no lugar de exploração que elas detêm no processo de produção. O interesse geral que esta fração representa em relação ao conjunto da sociedade, em relação, portanto, às classes dominadas, depende da função ideológica da fração hegemônica. [...] Essa concentração da dupla função de hegemonia em uma classe ou fração, inscrita no jogo das instituições do Estado capitalista, não é senão uma regra geral cuja realização depende da conjuntura das forças sociais” (POULANTZAS, 1977, p. 233-234-235)

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disputas, entre classes ou frações dominantes, resultaram, em grande medida, em rupturas

profundas e em guerras civis (Guerra de Secessão estadunidense, Revolução Meiji no Japão e

as Guerras de unificação do Estado prussiano), as quais, na maioria das vezes, provocaram um

fortalecimento das frações industriais em detrimento do poder político e econômico das forças

agrárias e, por conseguinte, da influência dos capitais comerciais e financeiros forâneos.

Naquele contexto de fragilidade das forças agrárias, as frações industriais consolidaram-se

como poder econômico e político, engendrando, por sua vez, projetos nacionais de

industrialização. Cabe destacar que os poderes das forças industriais não foram construídos

apenas pela coerção, diante de outras frações de classes, mas também pelo consentimento,

uma vez que o processo de industrialização naqueles países criou uma unidade contraditória

econômica, política e, em certa medida, ideológica, possibilitando, com isso, a construção de

um sistema econômico nacional.

A construção de uma hegemonia ampla, nos países capitalistas retardatários, não foi

configurada ao acaso, nem muito menos foi fruto exclusivo das guerras civis supracitadas. Na

verdade, tal unidade teve como elemento fulcral a construção de um Estado nacional forte,

atrelado aos projetos nacionais da burguesia industrial, ou seja, o Estado nacional funcionou

como uma unidade política e, muitas vezes, ideológica, em prol da construção de um sistema

econômico nacional. Além do que a própria dinâmica econômica dos países retardatários, sob

a hegemonia das frações industriais74, gerava ganhos econômicos (i) para as frações

financeiras locais, haja vista a necessidade de construção de uma estrutura nacional voltada ao

financiamento das inversões industriais; e (ii) para as frações agrárias em decorrência do

aumento da produtividade e da demanda de produtos agrícolas direcionados ao consumo dos

trabalhadores industriais (bens-salários). Pelo lado dos dominados, a industrialização, nos

países capitalistas retardatários, apresentou uma função ideológica fundamental, a saber: a

integração dos trabalhadores ao mundo do consumo capitalista em virtude da redução dos

preços das mercadorias. No entanto, esta foi decorrente do próprio aumento da exploração do

trabalho pela via da mais-valia relativa. Desse modo, o consumo dos trabalhadores, além de

criar uma demanda necessária à realização das mercadorias, funcionou também como um

74 A burguesia industrial, como uma fração ou uma classe dominante, é a única força, após as mudanças socioeconômicas provenientes da revolução industrial, capaz de articular os mais diversos segmentos sociais a partir de uma hegemonia ampla, haja vista que a constituição de seus interesses particulares pode representar interesses gerais dentro do bloco no poder e, ainda, que tal fração apresenta uma função ideológica forte sobre as classes dominadas – fora do bloco no poder -, diferentemente das frações comerciais, financeiras e agrícolas que são consideradas, pelos dominados, como frações usurárias ou arcaicas.

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133

elemento ideológico fundamental de consentimento da classe dominada aos padrões de

dominação capitalista.

O conceito de (des)articulação setorial e social não foi ainda completamente delimitado. Aqui

se pretende usá-lo como eixo articulador dos elementos constitutivos da taxa de exploração

(mais-valia), vinculados às disputas das frações de classes e às configurações institucionais, e

seus rebatimentos na maior/menor importância dos ganhos salariais na conformação da

demanda efetiva e, por conseguinte, na estrutura setorial da economia. Dessa maneira,

pretende-se incorporar tanto os elementos da produção como da circulação das mercadorias

articulando-os aos elementos institucionais. Vejamos os elementos constitutivos da

(des)articulação.

No que se refere aos elementos da demanda, o conceito de (des)articulação volta-se para a

análise da maior/menor influência dos rendimentos salariais na demanda de produtos dos

ramos-chaves da economia e, conseqüentemente, na configuração e na interligação dos

setores produtivos nacionais, principalmente, no que se refere ao (des)balanceamento dos

departamentos de consumo e de produção.

Nas economias mais articuladas (países centrais), a renda salarial é, em grande parte,

responsável pela expansão da demanda dos setores chaves da economia, o que, por sua vez,

contribui para uma maior homogeneidade da estrutura produtiva – um maior balanceamento

entre os departamentos de produção (I) e de consumo (II) – haja vista a maior produção de

serviços e bens-salários destinados ao consumo dos trabalhadores. Com isso, o circuito do

capital, em suas fases de produção e de realização, tende, na grande maioria dos ramos

produtivos chaves, a se completar no mesmo espaço nacional. Dessa forma, o trabalho

is simultaneously a cost and benefit for capital: a cost in that all wage payments are a subtraction form profits, and a benefit in that the mass of wages paid creates “the necessary effective demand for the products to be sold and for capital to return to the form of money” (JANVRY & SADOULET apud TEUBAL, 2000-2001, p. 469).

Por outro lado, nas economias mais desarticuladas, verifica-se que a maior parte da demanda

dos ramos dinâmicos é proveniente do consumo de grupos de alta renda - não vinculados aos

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rendimentos salariais - e/ou do consumo forâneo. Com isso, a produção dos setores dinâmicos

tende a se voltar aos “bens de luxo” e/ou aos bens para exportação - inclusive no que se refere

aos investimentos, produzindo um forte desbalanceamento entre os departamentos I e II -,

uma vez que o rendimento da força de trabalho representa uma pequena parcela do Produto

Interno Bruto e do consumo. Existe, portanto, nas economias desarticuladas, uma ingente

estratificação entre o consumo da esfera “alta” (mais-valia não acumulada dos capitalistas) e

da esfera “baixa” (salários dos trabalhadores). Desse modo, o trabalho, em economias

desarticuladas setorial e socialmente,

is only a cost to capital. Non-workers’ incomes create both the source of savings and the expanding final demand for the key growth sectors. “Growth finds its roots in increasing inequality, and the only limit to inequality is the relative power of labor versus other classes” (JANVRY & SADOULET apud TEUBAL, 2000-2001, p. 469).

Como os salários dos trabalhadores não se configuraram como um dos principais

componentes da realização do valor nas economias desarticuladas e sim como apenas um

custo de produção, verifica-se uma tendência de redução do preço da força de trabalho devido

à possibilidade de manutenção de grandes “exércitos industriais de reserva” sem que isto afete

fortemente a realização das mercadorias produzidas pelos setores dinâmicos das economias

nacionais desarticuladas. Tais características socioeconômicas tendem a criar grandes

desigualdades sociais, tanto de renda como de riqueza, configurando, com isso, um processo

de exclusão social histórico que se retroalimenta, podendo inclusive se ampliar à medida que,

em determinadas conjunturas históricas, os ganhos dos trabalhadores perdem ainda mais

importância no processo de realização interna das mercadorias – aumento do grau de

desarticulação social e setorial.

De fato, a desvalorização da força de trabalho nas economias nacionais desarticuladas (países

periféricos), quando comparados com os países centrais, está associada ao maior grau de

exploração que pode ser empregado em diferentes economias em vista das particularidades

das relações de produção de determinados espaços nacionais. Nos países periféricos, tal

procedimento pôde e pode ser adotado em virtude dos menores níveis de desenvolvimento75

75 O termo desenvolvimento não é adotado aqui num sentido evolutivo, configurado a partir de diversos estágios ou etapas, como empregado por diversos economistas evolucionários.

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das forças produtivas e dos intercâmbios internos e externos (economias desarticuladas) que

tendem a produzir elevados níveis de desemprego ou de ocupações precárias.

A desarticulação social e setorial das economias periféricas, na verdade, tem origem nas

realidades históricas específicas dos circuitos (processos de produção e realização) de

acumulação do capital controlados por frações dominantes nacionais - tanto no âmbito setorial

e regional quanto na esfera dos seus conflitos e alianças com frações forâneas - que não se

consolidaram, em nenhum momento, numa hegemonia ampla nacional que conseguisse

consolidar, ao mesmo tempo, um Estado nacional forte e estratégias nacionais voltadas à

construção de um sistema econômico nacional, ou seja, de uma economia articulada

setorialmente. A dificuldade em construir uma hegemonia ampla nas economias

desarticuladas periféricas esteve e está associada ao poder das frações agrárias (oligarquias

fundiárias) e das frações dominantes forâneas, ao longo da história, uma vez que a dinâmica

econômica e/ou política destes segmentos tendem a criar uma estrutura interna desarticulada.

Nem mesmo a forte redução do poder econômico da agricultura (oligarquias fundiárias) - em

alguns países periféricos - em decorrência do processo de industrialização substitutiva,

representou a construção de uma hegemonia ampla a partir das frações industriais nacionais,

já que a redução do poderio econômico não significou uma diminuição do poder político:

capacidade estratégica de controle social territorializado que as oligarquias exerciam sobre

todos que viviam em seu entorno.

A confrontação direta entre as nascentes burguesias industriais periféricas e a oligarquias

agrárias poderia significar uma desordem interna, provocando, inclusive, o avanço de

reivindicações reformistas das classes dominadas. Isso poderia desestabilizar as condições de

superexploração do trabalho que se configuraram historicamente nos países periféricos. Desse

modo, as frações industriais nacionais preferiram construir alianças com as oligarquias

fundiárias – possibilitando, assim, o avanço gradual e seguro da industrialização periférica

sem sobressaltos à superexploração –, ao invés de engendrar um processo de configuração de

uma hegemonia ampla.

Em suma, a análise das economias desarticuladas setorial e socialmente perpassa (i) pela

compreensão das dificuldades das frações dominantes em se consolidar como uma hegemonia

ampla impedindo, com isso, a construção de um Estado nacional forte e de um projeto

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nacional voltado à construção de uma economia articulada; e (ii) pela apreensão do controle

de uma das frações da classe dominante e, também, das alianças interclasses e seus

rebatimentos na consecução das políticas públicas e mais especificamente nas políticas

econômicas. Vejamos agora as dimensões constitutivas e as mudanças recentes da realidade

socioeconômica brasileira por meio do instrumental da (des)articulação setorial e social.

4.2. Do Império ao Estado Novo: do domínio irrestrito das oligarquias agrárias regionais

ao surgimento de novas frações dominantes ligados aos interesses urbano-industriais

A formação socioeconômica brasileira, ao longo do século XIX até a década de 1930, em seus

diferentes momentos e contextos - do Império à Velha República –, esteve vinculada

fortemente aos movimentos de valorização dos capitais em nível mundial e, por conseguinte,

aos ciclos conjunturais do comércio internacional e ao avanço do processo de industrialização

dos países capitalistas centrais. Os processos de acumulação em andamento no plano interno,

em diferentes regiões brasileiras, centrado em alguns cultivos especializados (alimentos e

matérias-primas) voltados a demandas forâneas, em certa medida, viabilizaram avanços do

ciclo produtivo industrial dos países centrais, em virtude da ampliação do fornecimento de

alimentos básicos (bens-salários) - fundamentais à reprodução da força de trabalho industrial -

e de matérias-primas - reduzindo os custos referentes a este insumo. Nem mesmo as diferentes

configurações sócio-produtivas das regiões brasileiras funcionaram como barreiras à

integração nacional ao circuito do capital internacional. Pelo contrário, o país se utilizou de

suas diferentes potencialidades regionais como importante elemento de inserção internacional

passiva em diversos ciclos dominantes de acumulação no plano mundial. Para Oliveira os

ciclos conjunturais de comércio foram determinantes para o movimento de capitais nos diferentes espaços regionais [brasileiros] e que as tendências da acumulação de capitais acompanharam de perto esses movimentos cíclicos, sofrendo os impactos das trajetórias internacionais, quase sempre impossibilitado de reagir às suas principais determinações. No geral, todas as alternâncias observadas nos padrões de acumulação refletiram, de um modo ou de outro, no âmbito interno, as formas de integração de seus diferentes espaços produtivo ao capitalismo mundial. Em função disso, cada momento conjuntural de mudanças nos ciclos dominantes da reprodução social, ou de reformulação nos referidos padrões de acumulação interna, sempre expressou um etapa de convivência contraditória entre interesses. [...] [Esse padrão de acumulação interna], não só propaga novas relações sociais, como gera pontos de conflito dos diferentes espaços [...]. Há uma tendência a esses espaços serem potencializados a cada momento do ciclo, como resultado da

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conformação de frações de capital que, além de se diferenciarem, caminham sempre em busca da constituição de autonomia reprodutiva e de hegemonia (OLIVEIRA, 2004, p. 297).

As diferentes potencialidades produtivas de cultivos regionais, ao longo do séc. XIX e início

do séc. XX, – tais como: São Paulo, exportando café; a Bahia exportando cacau e açúcar, o

Maranhão, algodão, a Amazônia borracha, dentre outras regiões – articuladas diretamente aos

espaços forâneos, criaram e reforçaram heterogeneidades entre as regiões, haja vista (i) as

trajetórias distintas do processo de acumulação regionais e seus efeitos nas instituições locais;

e (ii) o reduzido fluxo de bens e serviços intra-regiões decorrente da ligação local direta aos

mercados internacionais. Portanto, as regiões brasileiras, como espaços diferenciados de

acumulação, não se articulavam nacionalmente e configuravam-se como “ilhas isoladas”.

O grande isolamento entre as regiões do território brasileiro, até praticamente os anos 1930,

na verdade, foi uma conseqüência dos padrões de acumulação do modelo agrário-exportador

em seus rebatimentos com o poder político, controlado, principalmente, pelas oligarquias

fundiárias locais a partir da aquiescência do poder central, seja no Império ou na República

Velha. Naquela estrutura econômica ingentemente desarticulada internamente, cada região

engendrava produtos primários, com pouco valor agregado, e vendia-os ao mercado mundial,

principalmente aos países capitalistas centrais, já que aqueles espaços funcionavam como

fornecedores de quase todos os produtos industrializados consumidos na região. Naquele

contexto de ampla desarticulação institucional e produtiva, as províncias - a partir de suas

elites e institucionalidades locais, e não do poder central - definiam, em grande medida, a

ligação com os espaços produtivos industriais externos. Vale destacar que tal ligação sempre

esteve completamente condicionada à dinâmica econômica internacional e suas oscilações.

Apesar das formações sociais distintas - que criavam elementos de conflitos inter e intra-

regionais, em virtude de interesses diferenciados das oligarquias agrárias escravocratas

regionais -, a unidade nacional foi mantida, após a ruptura do pacto colonial, por meio da

articulação entre as frações regionais e o poder central do império, diferentemente da

desintegração verificada na colônia hispano-americana. Segundo Fiori (2003, p. 115-6) a

preservação, após a ruptura do pacto colonial brasileiro, do “sistema local de controle do

sistema produtivo herdado da colônia” possibilitou a organização de “alianças políticas

internas que permitiram definir as fronteiras e estabilizar uma forma relativamente eficaz de

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dominação, que assegurava suas relações com o exterior”. Esse arranjo sócio-político

configurado “mediante a confederação dos vários grupos sociais e regionais da antiga

colônia” sustentou a constituição do poder central imperial.

De fato, a aliança entre as frações dominantes regionais, principalmente a cafeeira e

açucareira, e o poder estatal do império só pôde ser construída a partir de um eixo em comum

entre os diversos processos de acumulação regional, qual seja: a manutenção da escravidão. O

mercado de escravos, por um lado, funcionou como minadouro principal dos volumosos

rendimentos auferidos pelos grandes intermediários comerciais e, por outro, possibilitou a

oferta de mão-de-obra à agricultura exportadora, àquela altura altamente dependente do

trabalho servil. Desse modo, a escravidão articulava os interesses das oligarquias agrárias e do

capital comercial nacional e internacional (OLIVEIRA, 2005).

A aliança entre as frações regionais e o movimento de centralização do poder imperial não foi

consolidada facilmente. Inclusive materializaram-se diversas rebeliões locais contra o poder

do império, em quase todo território brasileiro, tais como, a Setembrada e a Novembrada, em

Pernambuco (1831); a Cabanagem, no Grão-Pará (1834); a Balaiada, no Maranhão (1838); a

Revolta Farroupilha, no Rio Grande do Sul (1835); a Sabinada, na Bahia (1835). Quase todas

essas rebeliões encamparam o ideário de constituição de “pátrias” locais e, inicialmente,

quase sempre, foram sustentadas por forças oligárquicas locais que buscavam ampliar seus

poderes socioeconômicos e político. No entanto, à medida que algumas dessas rebeliões

foram fugindo ao controle e assumindo uma radicalidade social a partir do questionamento do

latifúndio e da escravidão, verificou-se um recuo das elites locais em seus projetos de

“pátrias” locais. Segundo Lessa (2001, p. 262) “o principal fator de coesão foi de fato o temor

das oligarquias com os movimentos sociais: sua manifestação fazia as elites recuarem para

negociar uma nova aliança com o poder imperial”.

Apesar da aliança, entre as diversas oligarquias regionais e o Império, voltada à manutenção

do controle social, havia uma disparidade muito grande entre os interesses oligárquicos

regionais haja vista as particularidades socioeconômicas de cada espaço. Assim, os laços

dessa aliança não eram resistentes, nem tornava possível a ampliação de tal acordo a uma

condição de hegemonia ampla. Como os interesses locais não tinham um caráter de conotação

nacional, verificou-se uma total ausência de projeto nacional ao longo do Império e também

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da Velha República. Isso, por sua vez, influenciou na configuração do poder estatal central.

Nelson Oliveira, em passagem abaixo, descreve como a não-configuração de um projeto

nacional claro durante o Império afetou na constituição do Estado e de suas políticas

econômicas:

Submetido a pressões aleatórias e sem um projeto claro de constituição da nação, na ausência de uma hegemonia política o poder estatal tende a se defrontar, como ocorrera durante todo o Império, com as mais inusitadas, ainda que freqüentes, crises financeiras, decorrentes muito menos de ações orientadas para fins reprodutivos de classes sociais no plano econômico que de defesa da unidade imperial. Atitudes com as de expandir, então, ou de restringir a circulação monetária não se articulam a nenhum projeto mais consistente. Na ausência de mecanismos arrecadatórios estruturados, que ensejem uma mínima previsibilidade de gastos, tende a predominar, quase sempre, o momento das finanças como critério para a tomada de decisões. Quando as pressões regionais eram mais intensas, se a situação das finanças era também promissora atendia-se com mais facilidade aos reclamos; se não, recorria-se a empréstimos ou emissão, de que decorriam freqüentes e incontrolados déficits orçamentários. [...] As políticas fiscais não eram discricionárias [...] (OLIVEIRA, 2004, p. 337-338).

Em linhas gerais, o padrão de acumulação regionalizado da economia agro-exportadora

brasileira, ao longo do Império e da Velha República, controlado pelas oligarquias agrárias

locais, em suas particularidades e conflitos, configurou uma das economias nacionais mais

desarticuladas setorial e socialmente, haja vista a profunda separação espacial da produção

nacional e de sua realização (circulação) - que se efetivava completamente no âmbito do

mercado mundial - e seus efeitos na organização interna do trabalho, ao qual nesse tipo de

dinâmica econômica enquadrava-se apenas como um custo de produção, não tendo, portanto,

nenhuma influência no processo de realização das mercadorias. Com isso, as estruturas

produtivas agrícolas especializadas das províncias se relacionavam diretamente com o

mercado mundial que determinava os fluxos e refluxos das econômicas regionais. A passagem

do trabalho servil ao “trabalho livre”76 da economia agro-exportadora, não significou

nenhuma mudança estrutural na dinâmica econômica, uma vez que as características

prevalecentes não se modificaram. A diferença maior fora que no modelo agrário-exportador,

76 Com a interrupção brasileira do tráfico de escravos (Lei Eusébio de Queiroz), após forte pressão da Inglaterra, a mão-de-obra escrava tornou-se pouco atraente aos latifundiários em relação ao trabalho imigrante assalariado, já que o custo de reposição do escravo elevou-se fortemente, inviabilizando, por sua vez, o prolongamento da jornada de trabalho do escravo além dos seus limites fisiológicos admissíveis. Por outro lado, a forte imigração européia possibilitou o aumento da oferta de força de trabalho “livre”, garantindo, com isso, grande contingente de força de trabalho a custos reduzidos (MARINI, 2000).

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centrado no “trabalho livre”, as despesas relativas à utilização do trabalho deixam de ser

configuradas como um custo fixo de produção, como assim o fora no modelo de “trabalho

servil”, para se configurar como um custo variável de produção. Entretanto, a implantação do

trabalho assalariado não representou uma mudança no perfil de circulação interna da

economia, já que as rendas salariais pouco influenciavam na realização das mercadorias no

âmbito interno.

De fato, a economia continuou desarticulada uma vez que a dinâmica agro-exportadora, com

trabalho livre, não modificou a estrutura interna de consumo anterior; apenas reiterou a forte

heterogeneidade dos padrões de consumo entre os segmentos sociais, haja vista a não

relevância do consumo dos trabalhadores na realização dos produtos agrícolas especializados.

Sendo assim, tornou-se possível explorar ao máximo a força de trabalho “livre”, sem a

preocupação com o seu processo de reposição, em virtude da possibilidade da incorporação de

novos trabalhadores originários da forte imigração européia. Na verdade, o fim da escravidão

significou o fim da aliança entre as oligarquias locais e o poder estatal imperial.

A erosão paulatina do Império, a partir da década de 1870, culminou com a Constituição da

República em 1889. Tal mudança na forma de governo, na verdade, representou o

amadurecimento dos conflitos entre os interesses de classe da oligarquia cafeeira de São

Paulo77 - região mais dinâmica brasileira - e sua tentativa de afirmação ampla no contexto

nacional. A centralização do Império e suas medidas econômicas não discricionárias já não

mais traziam benefícios às frações agrícolas, principalmente, a cafeeira. O fim da escravidão

representou o ponto final na aliança entre o poder estatal imperial e as oligarquias agrárias.

Não obstante, a passagem do trabalho servil ao trabalho assalariado na produção agro-

exportadora, principalmente, nas regiões mais dinâmicas produtivamente, a exemplo da região

do café, não alterou substantivamente o eixo de organização socioeconômica, uma vez que,

desde 1850, as oligarquias agrárias foram construindo um conjunto de medidas antecipatórias

que impossibilitavam mudanças estruturais com o fim da escravidão, dentre elas destacam-se:

77 A partir meados do séc. XIX, a expansão da economia cafeeira (ciclo do café) em São Paulo começou a deslocar o eixo dinâmico do modelo agrário-exportador para a economia paulista. Entre 1821 e 1897, a participação do café nas exportações passa de 18,4% para 67,6%. As oligarquias cafeeiras paulistas estavam, cada vez mais, influenciando nas políticas do governo nacional (ALBUQUERQUE; VILELLA & SUZIGAN apud OLIVEIRA, 2004).

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i) a Leis de Terras de 185078; e ii) os incentivos à imigração européia (OLIVEIRA, 2005;

FIORI, 2003).

A República representou, portanto, a afirmação maior das autonomias locais, sobretudo das

províncias mais ricas ligadas aos interesses agromercantis do café, diante da centralidade

administrativa do Império. As oligarquias regionais tinham tornado o federalismo uma

reivindicação que se materializou na Constituição “liberal-federativa” de 1891. Assim como

nos momentos iniciais do Império, também se verificaram, no início da República, momentos

de instabilidades haja vista a falta de articulação, entre as oligarquias das regiões mais

dinâmicas e atrasadas economicamente, em prol de uma aliança. Tal aliança só foi construída,

no governo de Campo Salles, através da “política dos governadores” que tinha a seguinte

diretriz: “os poderes locais e central se sustentavam mutuamente, segundo regras de não-

intervenção em suas respectivas áreas de influência atuação”, além do que nesse pacto”

reconhecia a supremacia de São Paulo e Minas, mas preservava o poder relativo das demais

oligarquias”, uma vez que estas possuíam “ampla autonomia política e financeira perante o

governo central” (FIORI, 2003, p. 118). Agora em lugar da manutenção da escravidão, o

interesse comum que criava a possibilidade de uma nova aliança entre as oligarquias agrárias

regionais fora a preservação da estrutura fundiária que mantinha, por conseguinte, o poder

político nas mãos das classes dominantes locais.

Nos momentos iniciais da Velha República, o poder estatal central configurou-se de forma

frágil, mas estável, assumindo um apego a ideologias liberais das oligarquias do café e, em

certa medida, um pluralismo liberal. Entretanto, no transcurso da Velha República, aos

poucos, o poder central vai incorporando instrumentos de intervenção voltados à defesa dos

interesses do café, sem que o poder central pudesse a rigor se configurar em um poder estatal

78 “A primeira, entre um conjunto de medidas antecipatórias que seriam editadas no país, foi a Lei de Terras de 1850, promulgada três décadas antes da libertação legal dos escravos. Foi a primeira medida editada com tal objetivo, e a mais exemplar de uma proposta de contra-reforma agrária, por seu caráter, ao mesmo tempo restritivo, por impossibilitar legalmente, e na prática, a uma gama muito ampla de futuros produtores o acesso livre a terras públicas, e repressivo, por funcionar como o primeiro instrumento legal que impunha sanções bastante explícitas a quem ousasse infringir seus mandamentos. Foi por isto o primeiro documento legal de caráter fundiário que se arvorou a reorganizar o campo e definir prioridades, e que se preocupou em deslocar antecipada e preventivamente dessas prioridades categorias sociais oprimidas e exploradas, pondo no primeiro plano das atenções empresários e futuros imigrantes europeus. Seu caráter de medida legal contra-reformista é reforçado a cada momento. Em seu corpo legal antecipa-se uma noção que será doravante utilizada por quase todos os legisladores, a estes conferindo o privilégio do julgamento sobre quem é ou não é capaz como indivíduo produtor, com base simplesmente em preconceitos de classe, à época transfigurados em preconceitos de cor” (OLIVEIRA, 2005, p. 101).

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de cunho nacional, uma vez que as políticas econômicas concentravam-se apenas nos eixos da

economia da agricultura cafeeira de exportação e sua defesa nos mercados internacionais. A

maior utilização de instrumentos de intervenções coordenadas do poder central estatal nascem

a partir (i) da maior influência dos setores cafeeiros no Estado central e na consecução de suas

políticas econômicas, em virtude dos problemas de realização do café no mercado

internacional; e (ii) da saída do Brasil do Padrão-Ouro que permitiu ao Estado central arbitrar

discricionariamente o valor do dinheiro no mercado interno (FIORI, 2003; OLIVEIRA,

2004).

O forte dinamismo da economia agro-exportadora cafeeira começara a mostrar sinais de

arrefecimento desde os anos finais do séc. XIX, tendo como pontos de estrangulamentos

máximos a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial. Com a redução dos preços

internacionais do café, a partir de 1883, o Estado central, sob forte influência das oligarquias

cafeeiras, adota diversas medidas, a saber: i) subvenções à imigração que representou um dos

primeiros processos de socialização dos custos de empreendimentos privados; ii) políticas de

desvalorização cambial e uma reforma tributária que, na verdade, buscavam garantir os níveis

de renda dos cafeicultores. A desvalorização cambial garantiu a renda dos produtores de café,

no curto prazo. Entretanto, tal medida estimulou novos plantios de café, gerando, com isso,

uma superprodução do produto no Brasil, o que, por sua vez, provocou uma maior depressão

dos preços internacionais, haja vista a posição brasileira de maior produtor mundial; e, por

fim, (iii) as políticas aduaneiras e o programa de “valorização do café” (Convênio de

Taubaté79, em 1906), que tinham como intuito defender os interesses dos cafeicultores através

da criação de excedentes fiscais por meio da manipulação das diferenças cambiais.

As medidas de proteção do café criaram oportunidades para a implantação de um processo de

industrialização nascente. A desvalorização cambial, empregada no final do século XIX,

permitiu a emergência do processamento de matérias-primas produzidas localmente por

segmentos industriais emergentes haja vista a elevação dos preços internos dos produtos

importados com a desvalorização da moeda nacional. Além do que, no âmbito do programa

79 Segundo Furtado (1987, p. 179) o programa de “valorização do café” consistia das seguintes medidas: “a) com o fim de restabelecer o equilíbrio entre oferta e procura de café, o governo interviria no mercado para comprar os excedentes; b) o financiamento dessas compras se faria com empréstimos estrangeiros; c) o serviço desses empréstimos seria coberto com um novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café exportado; d) a fim de solucionar o problema a mais longo prazo, os governos dos Estados produtores deveriam desencorajar a expansão das plantações”.

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de “valorização do café”, fazia-se necessário aumentar a exportação de café para garantir,

através dos impostos aduaneiros, o pagamento dos empréstimos estrangeiros que foram

contraídos para a formação de estoques de café pelo Estado. Para garantir o aumento das

exportações fez-se necessário ampliar a infra-estrutura (portos, ferrovias, urbanização, etc.).

Isso contribuiu com o aumento da demanda efetiva e do nível de emprego em outros setores

da economia. As políticas de manutenção do preço do café na região Sudeste, em articulação

com as restrições as importações, criaram o cenário favorável para o desabrochar consistente

do processo de industrialização de bens de consumo final no Brasil (TAVARES, 1983;

FURTADO, 1987).

A industrialização brasileira, portanto, não nasceu por meio de pressões de instituições

organizadas de interesses industriais e sim como reflexo das políticas estatais voltadas aos

interesses das oligarquias agrárias paulistas. Para Oliveira (2004) a formação desse processo

de industrialização evidência duas tendências:

[...] a primeira delas, relacionada com a ausência de uma política explícita de apoio à industrialização, no vazio institucional de pressões organizadas nesse sentido, a denotar uma continuidade hegemônica – ainda que pouco explícita – de classes agrocomerciais sobre o Estado; enquanto a segunda é mais afeita às formas pelas quais, nos próprios interstícios do processo decisório, vão se criando as oportunidades para a implantação de novas indústrias no país (OLIVEIRA, 2004, p. 343).

A Primeira Guerra Mundial aprofundou a deterioração em curso da economia agro-

exportadora brasileira, centrada no café. Tal conflito mundial alterou os fluxos financeiros e

comerciais, atingindo fortemente a capacidade brasileira de exportar e, principalmente, de

importar. À época, as compras externas era a principal forma de suprir a demanda interna de

bens de produção e de consumo duráveis, uma vez que a industrialização brasileira naquele

momento era incipiente e se concentrava apenas nos bens não-duráveis. As restrições

externas, originárias da própria vulnerabilidade da dinâmica agrário-exportadora,

aprofundam-se com o primeiro conflito mundial, e afetaram os mecanismos internos de

financiamento e, conseqüentemente, provocaram modificações no padrão de vida das

populações rurais e urbanas. Naquele momento de instabilidade socioeconômica, afloraram os

conflitos latentes entre as oligarquias regionais - que estiveram sob controle a partir da aliança

proposta na “política dos governadores” -, e, também, surgiram novos conflitos provenientes

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do aparecimento de novos segmentos sociais ligados aos processos de industrialização-

urbanização.

O aumento dos conflitos sociais no Brasil, principalmente na década de 1920, não aconteceu

por acaso. Em um momento de crise econômica, ou por assim dizer, de “encolhimento do

bolo”, como aquele, verificou-se um acirramento do conflito distributivo político-econômico

entre as frações setoriais e regionais das classes dominantes e também, em certa medida, entre

os dominantes e os novos segmentos sociais que estavam emergindo. Fiori apresenta alguns

dos elementos, ao longo dos anos 1920, que refletem a tensão decorrente da instabilidade

socioeconômica, tais como,

[...] as pressões sociais, manifestadas nas greves operárias e nos quebra-quebras que sacudiram Rio de Janeiro e São Paulo, em 1917 e 1918; a surpreendente votação urbana obtida por Rui Barbosa nesse mesmo momento; a intensificação dos conflitos intra-oligárquicos explicitados, de forma mais clara na eleição tensa e no governo repressivo de Arthur Bernardes; além da sublevação tenentistas que irrompe a partir de 1922 dividindo os militares (FIORI, 2003, p. 125).

A instabilidade socioeconômica brasileira dos anos 1920 potencializou-se nos anos finais da

década, em virtude dos rebatimentos internos da crise mundial de 1929, principalmente no

que tange ao financiamento interno da atividade econômica. Segundo Bastos (2004), as

dificuldades de financiamento na economia brasileira ao longo dos anos 1930, agravadas pela

Grande Depressão de 1929, estiveram associadas a dois fatores, a saber: i) a redução drástica

dos investimentos diretos externos provenientes tanto da retração dos lucros e dos fundos

acumulados pelas matrizes como pelo aumento da incerteza no que se refere à rentabilidade e

à disponibilidade futuras de divisas para repatriação de lucros para as matrizes; e ii) a redução

de empréstimos aos países periféricos haja vista o forte abalo do sistema financeiro

internacional, em decorrência da crise de 1929, e as posteriores moratórias e renegociações da

dívida externa de diversos países periféricos devedores.

A situação crítica interna deteriorou-se ainda mais com a depressão mundial de 1929,

atingindo completamente tanto a capacidade da dinâmica econômica do modelo agro-

exportador como as formas nacionais de regulação estatal. Tais movimentos provocaram a

ruptura do pacto entre as oligarquias regionais, culminando com a “Revolução de 30” e a

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adoção posterior, em 1937, do Estado Novo. A regulação estatal de cunho liberal-pluralista80,

limitada por contingenciamentos regionais e locais, que perpassou grande parte do Império e

da Velha República, não dava mais conta daquela nova configuração nacional que ia se

formando a partir de novos grupos de interesses atrelados aos setores urbano-industriais, num

momento de graves problemas de financiamento interno.

A instituição do governo provisório81, após a “Revolução de 30”, e a configuração posterior

do Estado Novo, e do seu novo arcabouço “regulatório”, configurado a partir de novas

instituições estatais82, representaram a configuração de um Estado que passou a abarcar

também outros segmentos e setores sociais além das oligarquias cafeeiras paulistas. À medida

que o Estado passou a incorporar também interesses industrial-urbanos, que começava a

requisitar mais fortemente espaços no direcionamento das políticas econômicas83, este

começou a assumir características nacionais (OLIVEIRA, 2004).

A “Revolução de 30” - também denominada a “Revolução Burguesa Passiva Brasileira” - e

seus desdobramentos no Estado Novo traduziram a agregação de novos interesses no

80 Na perspectiva liberal-pluralista, o sistema político seria um mercado, no qual as decisões dos eleitores seriam baseadas em suas utilidades políticas, pois o Estado seria neutro – o reflexo do mercado econômico e, por conseguinte, dos seus intercâmbios impessoais, competitivos e livres - e um servidor do eleitorado. Ou seja, o Estado tornar-se-ia uma “arena” onde os diversos grupos da sociedade competiriam entre si, em suposta igualdade, de acordo com as regras do jogo estabelecidas “tecnicamente” pelo Estado. Dessa forma, a configuração estatal funcionaria, na verdade, como um “espelho da sociedade” (BORON, 1994, cap. 8; MILIBAND, 1970, introdução). 81 O Governo Provisório, constituído entre 1930 e 1937, teve como tática inicial buscar o restabelecimento dos compromissos com credores externos, preparando, com isso, um contexto para a retomada de empréstimos estrangeiros. “Mesmo quando a conjuntura de escassez de divisas forçou a aplicação de novos controles cambiais, em setembro de 1931, a necessidade de selecionar usos prioritários para as divisas se fez para satisfazer a capacidade de pagamento de parte da dívida publica externa. Isto implicava escassez de recursos para finalidades comerciais e protegia atividades manufatureiras substitutivas — mais como subproduto da força das articulações e interesses financeiros [forâneos] do que como uma política deliberada de proteção contra importações manufatureiras concorrentes, pelo menos de início” (BASTOS, 2004, p. 290). 82 Dentre as principais mudanças no padrão regulatório destaca-se aqui: i) a criação do Conselho Federal do Comércio Exterior, da Caixa de Mobilização Bancária e da regulamentação da Carteira de Redesconto do Banco do Brasil que fizeram parte de um elenco de iniciativas voltadas à criação e viabilização de financiamento das atividades produtivas; ii) a instituição do salário mínimo oficial; iii) a criação da Comissão Nacional de Siderurgia; e iv) a constituição da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, do Conselho Nacional do Café e do de Reajustamento Econômico dos Agricultores. De fato, tais mudanças institucionais refletiram, por um lado, um cenário em trânsito, no qual existiam pressões tanto dos setores oligárquicos agrários como dos novos segmentos industriais, e, por outro, a configuração de um Estado que gradualmente vai se distanciando dos particularismos e imediatismos, inclusive com certas medidas - como a criação do salário mínimo e da Comissão de Siderurgia supracitadas – que pareceram antecipar aos dados de realidade (OLIVEIRA, 2004). 83 Alguns dos elementos importantes, à época, da política econômica foram a política cambial e o controle de importações. Para tanto, o governo utilizou-se do procedimento da desvalorização e do monopólio do câmbio, com taxas diferentes para determinados grupos de produtos (câmbio múltiplo) (CANO, 2000).

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agrupamento das classes, ou frações de classe, dominantes sem que, entretanto, fossem

expropriados os mananciais de poder dos velhos interesses oligárquicos. Isso impossibilitou a

constituição de uma hegemonia ampla sob a égide da burguesia industrial local. Aquela nova

configuração das relações entre a classe dominante, apesar de não consubstanciar uma fração

hegemônica, conformou uma Estado com dimensões nacionais e, também, uma forma de

governo autoritária (Estado Novo). A dificuldade de arbitragem e regulação socioeconômica,

num contexto novo de ampla heteregoneidade entre as frações dominantes, sem que nenhuma

delas tenha, ao mesmo tempo, poder econômico, político e ideológico, potencializou a

configuração de um governo autoritário (Estado Novo), regulador desses conflitos, voltado ao

processo de industrialização. Para Bastos (2004), se

de um lado este processo de agregação de interesses conferia à cúpula presidencial [primeiro governo de Getúlio Vargas] a possibilidade de se apresentar como a única representante do interesse geral da nação (dividindo-a para reinar na cúpula), também fragmentava e limitava o escopo possível da centralização de recursos decisórios e financeiros, à medida que as reivindicações setoriais pressionavam recursos escassos (BASTOS, 2004, p. 309).

Um novo eixo socioeconômico industrializante, portanto, vai se delineando, gerando, com

isso, uma estrutura brasileira mais heterogênea, não vinculada apenas a uma base

agromercantil - único eixo estruturante ao longo de todo Império e da Velha República. Nos

momentos iniciais dessa nova direção socioeconômica industrial, principalmente na fase de

industrialização de bens não-duráveis, configurada até 1955, as frações industriais nacionais -

que iam se estruturando em virtude das políticas econômicas discricionárias do Estado

voltadas à indústria - controlavam, em grande parte, o novo direcionamento adotado. O

capital industrial forâneo até aquele momento ainda tinha um papel minoritário no novo rumo

industrializante brasileiro.

4.3. As peculiaridades da industrialização desarticulada brasileira: a instável aliança

entre as frações dominantes e a saída autoritária

O processo de industrialização substitutiva brasileiro, sob controle majoritário do capital

nacional, até os anos finais da década de 1940, esteve basicamente concentrado em ramos de

bens de consumo não-duráveis (setores “leves”). A partir daquele período a dinâmica

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produtiva teria que caminhar na direção da sua segunda etapa, a saber: a industrialização

“pesada” voltada à produção de bens de capital e de consumo duráveis. Entretanto, profundas

barreiras sócio-econômicas estavam postas ao prosseguimento da industrialização, sob o

comando do capital industrial nacional, haja vista a grande monta de recursos necessários à

construção dessa segunda fase. A possibilidade de continuidade da industrialização

substitutiva, sob o controle dos segmentos nacionais, era mínima, à época, em virtude da

grande escassez internacional de financiamento e da dificuldade de financiamento interno no

âmbito de um mercado financeiro nacional incipiente.

A consecução da industrialização “pesada”, sob a égide da burguesia nacional, só poderia ser

realizada a partir de um descolamento maciço e irrestrito de recursos internos ao processo de

industrialização através de reformas financeiras e tributárias radicais, o que era impossível

politicamente àquela altura haja vista o poder político e ainda econômico de outros segmentos

sociais, especificamente as oligarquias agrárias cafeeiras84. Dessa maneira, o avanço da

industrialização brasileira após os anos 1950, principalmente a partir do governo Juscelino

Kubitschek (JK), significou uma associação entre a fração industrial nacional e o grande

capital forâneo, tendo o primeiro segmento um papel de sócio menor nessa aliança. Portanto,

as medidas econômicas e institucionais implementadas acabaram funcionando como base à

retomada do processo de acumulação no pós-II Guerra, de acordo com os padrões definidos

pelo grande capital internacionalizado. Cabe aqui ressaltar que essas articulações e

movimentos entre as frações dominantes nacionais e internacionais voltados à industrialização

substitutiva brasileira não apresentaram um caráter monolítico. Muito pelo contrário, o que se

verificou, à época, principalmente no início década de 1960, foram resistências e conflitos

entre as diversas frações dominantes e, também, entre os dominantes e os movimentos

populares que reivindicavam por reforma agrária e por controle do capital estrangeiro. Nem as

conjunturas favoráveis, do governo JK, conseguiram eliminar os conflitos entre as frações

dominantes; ao contrário, uma vez que os mecanismos utilizados para potencializar o

crescimento ampliaram o conflito distributivo já no final daquele governo. A não-

configuração de um hegemonia ampla, sob a égide dos segmentos nacionais ligados à

indústria, impediam que os conflitos fossem sanados. Com a não-configuração de uma

hegemonia ampla e o aumento das pressões dos setores populares e de esquerda, no início da

84 A agricultura, à época, ainda era a principal “fonte geradoras de divisas necessárias à importação de insumos demandados pelo setor industrial”. Sendo assim, verifica-se que as “organizações representativas ainda dispõem de força e representatividade para exigir políticas de amparo à agricultura” (OLIVEIRA, 2004, p. 348-349).

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década de 1960, as frações dominantes sentiram-se ameaçadas e vislumbraram nas Forças

Armadas o único meio de manutenção do controle social e de “arbitragem” dos conflitos

distributivos intra-classe dominante.

De fato, a década de 1950 significou uma nova fase para o capitalismo brasileiro, período este

que demarcou um novo padrão de acumulação qualitativa e quantitativamente distinto do

anterior em virtude do predomínio da participação da indústria na renda interna, a partir de

1956, e do aumento substantivo de uma realização parcial interna crescente da produção

nacional. A partir daí novos espaços socioeconômicos e organizativos são abertos em

decorrência da nova correlação de forças sociais, sob o controle setorial da indústria, que

provocou modificações nas políticas econômicas e nas instituições estatais, destacando dentre

as modificações, a regulamentação dos fatores de produção, principalmente, no que concerne

ao preço da força de trabalho e a criação das condições institucionais necessárias à ampliação

de atividades econômicas voltadas ao mercado interno (OLIVEIRA, 2003; OLIVEIRA,

2004).

Diferentemente do padrão de acumulação agrário-exportador - que fora ditado completamente

pelos movimentos de expansão e retração do mercado mundial -, o novo padrão de

acumulação brasileiro, pautado na industrialização, não representou apenas um reflexo do

contexto externo, mas uma conjunção de fatores externos e internos haja vista o aumento da

heterogeneidade, tanto das frações dominantes como dos diversos segmentos trabalhadores,

produzida pelo processo de industrialização. Na verdade, o período compreendido entre a

primeira e segunda guerra mundial - marcado por profundas crises mundiais de realização

comercial, pela Revolução Russa e pelo interregno de poder no centro capitalista da economia

mundo decorrente da transição da supremacia inglesa à estadunidense – funcionou como uma

brecha espaço-tempo para modificações na até então vigente divisão intencional do trabalho.

Novas articulações econômicas, políticas e institucionais, voltadas ao processo de

industrialização substitutiva, abriram-se ao Brasil, uma vez que este contava com

determinantes estruturais que possibilitavam esse novo padrão de acumulação. Francisco de

Oliveira, em trecho abaixo de uma de suas obras clássicas Crítica à razão dualista, apresenta

a importância dos fatores internos - as lutas nacionais inter e intra-classes - para a

configuração e consolidação da industrialização brasileira:

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[...] a expansão capitalista [industrial] no Brasil foi muito mais resultado concreto do tipo e do estilo da luta de classe interna que um mero reflexo das condições imperantes no capitalismo mundial. Em outras palavras, com a crise dos anos 1930, o vácuo produzido tanto poderia ser preenchido com estagnação – ocorreu em muitos países da América Latina - como crescimento; este, que se deu no Brasil, pôde ser concretizado porque do ponto de vista das relações fundamentais entre atores básicos do processo existiam condições estruturais, intrínsecas, que poderiam alimentar tanto a acumulação como a formação do mercado interno (OLIVEIRA, 2003, p. 74-75).

O avanço da industrialização “pesada” no Brasil e a consolidação do controle socioeconômico

das frações industriais permaneceram, em certa medida, indefinidos desde o suicídio de

Getúlio Vargas até a eleição de Juscelino Kubitschek. Essa indefinição socioeconômica foi

sanada no governo JK, uma vez que este conseguiu configurar um processo de aceleração da

acumulação industrial brasileira, consolidando o capital industrial como o eixo chave da

economia nacional. O lema do governo de avançar “cinqüenta anos em cinco” demonstrava o

projeto de ampliação da industrialização. Para alcançar tal intento foi elaborado e executado,

em grande parte, um Plano de Metas que teve como objetivos incentivar a implantação de

ramos industriais “pesados”, voltados à produção de bens não-duráveis, intermediários e de

capital, e a ampliação dos investimentos públicos em infra-estrutura. O Plano de Metas de JK

teve como pontos estratégicos: (i) estimular a indústria automobilística, a construção naval, a

mecânica pesada, a produção de cimento e de papel e celulose; ii) ampliar a capacidade da

siderurgia; e iii) elevar os investimentos públicos destinados à construção e à melhoria da

infra-estrutura básica (rodovias, produção de energia elétrica, armazém e silos, portos), além

da construção de Brasília. Quase todos os objetivos estabelecidos pelo Plano de Metas foram

alcançados e alguns deles suplantados ao final do mandato de JK (OLIVEIRA, 2003).

Como fora possível, num contexto de elevadas restrições socioeconômicas85, alcançar êxito

tão grande na consecução de um Plano de Metas grandioso que requeria elevadas inversões

privadas e públicas? Na verdade, tal êxito esteve associado à habilidade de seus formuladores

em perceberem, ao mesmo tempo, que “o país não podia desperdiçar oportunidades abertas

pela nova conjuntura internacional, marcada pelo deslocamento espacial de capitais em busca

85 As restrições internas ao êxito do Plano de Metas eram elevadas haja vista a deterioração das contas externas, decorrente de quedas no preço do café - que ainda representava uma fonte de divisas importantes -; a baixa capacidade nacional de autofinanciamento da industrial; e o aumento dos conflitos entre as diversas frações das classes dominantes, e entre estas e as diversas categorias de trabalhadores que vinham se consolidando.

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de valorização internacional” e “que era necessário integrar o estado mais positivamente nesse

processo, conferindo um perfil mais dinâmico às suas estruturas decisórias” (OLIVEIRA,

2004, p. 353). Assim, o Plano foi configurado a partir dos investimentos externos diretos das

grandes empresas multinacionais e da capacidade do Estado em realizar inversões na infra-

estrutura e dar suporte aos setores industriais emergentes.

Naquele contexto do Plano de Metas, em que domínio da dinâmica socioeconômica passa às

mãos do capital industrial, fez-se necessário engendrar reformulações no padrão de

intervenção estatal no sentido da modernização dos processos decisórios e da acomodação dos

diversos interesses das frações dominantes, haja vista o peso específico no plano político das

oligarquias agrícolas. Essa nova realidade vai configurando, aos poucos, uma nova

institucionalidade estatal dual que se utiliza de critérios diferenciados voltados à acomodação

dos diversos interesses. Por um lado, deu-se privilégio a conformação de organismos

paraestatais que funcionavam como estruturas planejadoras e interlocutoras – tais como, o

grupo executivo da indústria automobilística e as diversas coordenações ad hoc - dos

segmentos do capital industrial, àquela altura o mais dinâmico e sob forte influência do capital

forâneo; e, por outro, manteve-se quase intactos determinados instrumentos tradicionais de

intervenção estatal que beneficiavam os segmentos menos dinâmicos sob o controle de

determinadas oligarquias regionais (OLIVEIRA, 2004). Vale ressaltar que o apoio ao Plano

de Metas, centrado na ideologia desenvolvimentista-cepalina, não ficou restrito apenas aos

velhos e novos segmentos dominantes, sendo inclusive apoiado por forças populares e de

esquerda86.

Além de tentar acomodar os interesses setoriais das classes dominantes nacionais, a nova

institucionalidade estatal teve que atender e absorver, também, os novos segmentos do capital

industrial estrangeiro. Desse modo, as reformulações na forma de intervenção estatal

mantiveram os velhos compromissos, ao mesmo tempo em que adequou uma estrutura estatal

moderna voltada à dinâmica industrial, cujo controle dos setores dinâmicos estava sob

domínio do capital forâneo. Segundo Fiori (2003, p. 156), a ampliação do capital industrial

86 “As esquerdas em geral sempre tiveram muita dificuldade de perceber as especificidades de um processo de desenvolvimento que tem no atraso, por exemplo, não um limite mas um potencial de dominação”. Naquele contexto, “a esquerda fingia desconhecer esses condicionantes e especificidades históricas. Insistia em ver na burguesia uma classe com perfil revolucionário”. Propondo inclusive “um projeto para o capital, sem qualquer exigência [...] de tomada de poder previamente” (OLIVEIRA, 2005, p. 108-109).

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estrangeiro criou “um pólo híbrido, com interesses internos e externos a serem defendidos

segundo uma lógica de reprodução que escapa, às vezes, às possibilidades de controle por

parte do Estado nacional”.

No que tange aos problemas de financiamento da industrialização, o ingresso de

investimentos externos direto das grandes empresas multinacionais, principalmente a partir de

1956, funcionou como uma solução parcial as dificuldades crônicas de mobilização de capital.

Cabe ressaltar que tais investimentos privados externos ingressaram no Brasil não apenas

pelos benefícios decorrentes da instrução 113 da SUMOC87 (Superintendência da Moeda e

Crédito) e dos reduzidos preços da força de trabalho local mais, também, pela capacidade do

Estado em realizar elevados investimentos em infra-estrutura e, conseqüentemente, gerar uma

demanda agregada necessária à realização interna da produção dos novos ramos industriais.

Assim, as inversões forâneas alteraram, significativamente, a problemática do financiamento

da industrialização, entretanto, modificaram a trajetória política da acumulação capitalista

haja vista o papel de sócio minoritário que o capital industrial passa a ter na dinâmica

econômica brasileira (FIORI, 2003).

No que concerne aos amplos recursos necessários aos investimentos públicos programados

pelo Plano de Metas, o governo utilizou-se de fundos fiscais especiais e, principalmente, dos

ágios e bonificações cambiais e de operações cambiais e financeiras de swaps. Ao adotar tais

caminhos para o financiamento dos investimentos, o governo optou por não alterar a base

tributária herdada do governo Vargas, uma vez que uma reforma tributária poderia romper as

alianças estabelecidas entre as diversas frações dominantes. No entanto, esse tipo de

financiamento do investimento estatal agravou fortemente o desequilíbrio cambial e,

principalmente, o de preço, desencadeando, por sua vez, um processo inflacionário (CANO,

2000).

Destarte, o problema do financiamento para o avanço da industrialização foi resolvido, pelos

menos temporariamente, a partir de uma trajetória heterodoxa que combinava investimento

externo direto e inflação. O Estado, portanto, utilizou-se do seu poder de redefinir o valor do

dinheiro ensejando alcançar os objetivos estratégicos do Plano, ou seja, valeu-se da inflação

87 A Instrução 113 da SUMOC tinha como objetivo atrair investimentos estrangeiros diretos. Tal instrução permitiu às indústrias recém instaladas a importar equipamentos sem a necessidade de cobertura cambial.

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como instrumento básico para o financiamento do desenvolvimento industrial. Entretanto, o

processo inflacionário ampliou a disputa entre as diversas frações dominantes e, inclusive,

entre os dominantes e as diversas categorias de trabalhadores, principalmente, no final do

governo JK e nos governos de Jânio Quadros/João Goulart (FIORI, 2003). Jose Luís Fiori, em

passagem abaixo de sua obra O vôo da coruja, ressalta como a inflação ampliou os conflitos

entre as frações de classes:

[Com a inflação] [...] abria-se uma nova e fatídica arena de luta entre as várias frações. Tencionando entre o seu poder e a única solução possível para a heterogenidade, o Estado opta pela inflação, fazendo dela causa e solução das sucessivas crises financeiras e institucionais que acompanharão o novo padrão de acumulação liderado pelo capital industrial. Enquanto mecanismo heterodoxo de financiamento, a inflação explicita a luta permanente relativa à distribuição dos recursos da produção e, por derivação, da riqueza e da renda. Luta-se em torno à política econômica, procurando balizar o câmbio e a moeda, instrumentos centrais na determinação do movimento dos preços e das taxas de lucro. [...] Os capitalistas necessitam da inflação, mas, ao mesmo tempo, a temem, na medida em que não têm assegurado o controle do seu momento político, que passa pela condução instável dos negócios do Estado (FIORI, 2003, p. 152-153).

De fato, o novo padrão de acumulação brasileiro, consolidado nos anos 50, - em que se

verificou a internacionalização da industrialização dos ramos “dinâmicos” – aprofundou ainda

mais a heterogeidade entre as estruturas produtivas e, por conseguinte, entre as frações

dominantes, haja vista a descontinuidade de interesses dificilmente integráveis que vinham se

materializando desde o início do processo de industrialização. Nem mesmo com domínio

econômico e político do capital industrial foi possível consolidar uma hegemonia ampla, pois

as oligarquias agrárias continuavam com certo poder político e o avanço da industrialização

esteve sob forte influência do capital forâneo. Dessa maneira, assim como ao longo do

Império e da Velha República, as frações dominantes forjam novas alianças a partir do

predomínio dos segmentos ligadas ao capital industrial, nacional e estrangeiro.

A não-consolidação de uma hegemonia ampla pelas frações industriais nacionais e a

manutenção do poder político das oligarquias regionais acabaram criando uma estrutura

econômica fortemente heterogênea formada por estruturas de produção fortemente

diferenciadas no que se refere à produtividade, à organização e ao grau de concentração. A

dinâmica de industrialização brasileira vai se configurando a partir da convivência dialética

entre setores produtivos “modernos” - ligados à indústria de bens de consumo duráveis – com

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alta produtividade e fortemente monopolizado e setores “atrasados” atrelados à agricultura

“latifundista” que tinham reduzida produtividade. A oposição formada (dualidade) entre os

setores “atrasados” (agricultura) e “modernos” (indústria), conforme desenvolvido pela

corrente cepalina, esteve longe de existir no Brasil, uma vez que a agricultura não foi um

empecilho à indústria. Pelo contrário, contribuiu para o seu crescimento através (i) do

fornecimento maciço de contingentes populacionais que foram criando um “exército de

reserva” urbano, possibilitando o aumento da exploração do trabalho na indústria; e (ii) do

aumento do fornecimento de excedentes alimentícios aos mercados urbanos, em vista do

avanço da fronteira agrícola, principalmente no centro-oeste (Goiás, oeste do Paraná, sul do

Mato Grosso), que possibilitaram a redução do custo da reprodução da força de trabalho

urbano (OLIVEIRA, 2003). Francisco de Oliveira, em trecho a seguir, mostra muito bem a

dialética integrativa entre indústria e agricultura no Brasil:

Não é simplesmente o fato de que, em termos de produtividade, dos dois setores – agricultura e indústria – estejam distanciando-se, que autoriza a construção do modelo dual; por detrás dessa aparente dualidade, existe uma integração dialética. A agricultura, nesse modelo, cumpre um papel vital para as virtudes de expansão do sistema; seja fornecendo os contingentes de força de trabalho, seja fornecendo os alimentos [...], ela tem uma contribuição importante na compatibilização dos processos de acumulação global da economia. De outra parte, ainda que pouco represente como mercado para a indústria, esta, no seu crescimento, redefine as condições estruturais daquela, introduzindo novas relações de produção no campo, que torna viável a agricultura comercial de consumo interno e externo pela formação de um proletariado rural. Longe de um crescente e acumulativo isolamento, há relações estruturais entre os dois setores que estão na lógica do tipo de expansão capitalista [...] (OLIVEIRA, 2003, p. 47-48).

Na verdade, o atraso de alguns setores produtivos nacionais não fora um limite ao

desenvolvimento. Em certa medida, funcionaram como um potencial de dominação,

possibilitando, com isso, a manutenção das condições de superexploração do trabalho no

Brasil. Não é para menos que as frações industriais nacionais e forâneas preferiram construir

alianças com os setores tradicionais das oligarquias fundiárias a construir com segmentos

progressistas, diferentemente do que ocorrera na industrialização dos países capitalistas

centrais. No entanto, as alianças entre as frações dominantes tornaram-se, cada vez mais,

instáveis devido à dificuldade em agregar interesses em comum num contexto de aumento

inflacionário decorrente da elevação do conflito distributivo, principalmente, a partir do final

do governo Juscelino Kubitschek. Agora, além da preservação da estrutura fundiária, a aliança

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entre as classes dominantes teve que incorporar a salvaguarda do capital industrial

estrangeiro.

Nos anos finais da década de 50, a aliança entre as frações dominantes novamente mostra-se

em suspensão em vista do aumento dos seus conflitos internos decorrente da desaceleração do

crescimento econômico88, além do que se verificou, também, à época, uma tentativa de

afirmação dos espaços dos trabalhadores através da organização sindical de diversas

categorias. Tais elementos geraram uma forte elevação do conflito distributivo proveniente

tanto do aumento da disputa entre as frações dominantes pelos lucros como pelas

reivindicações dos sindicatos por maiores salários. Isso, por sua vez, provocou um descontrole

inflacionário, demonstrando, portanto, que a inflação tinha deixado de ser um instrumento

eficiente ao processo de acumulação industrial. Ruy Marini, em passagem a seguir de seu

artigo Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil, descreve muito bem a elevação dos

conflitos aquela altura:

Era impossível continuar financiando a industrialização através de poupanças forçadas, quando tinha-se o nível de vida popular comprimido ao máximo (graças à erosão constante a que haviam estado submetidos os salários) e um movimento sindical em melhores condições para defender-se. Paralelamente à disputa entre as classes dominantes pelos lucros originados no aumento da produtividade [...], essas classes tinham que se confrontar agora com a resistência oposta pelas massas populares [...]. [O] processo inflacionário se converteu em luta de morte entre todas as classes da sociedade brasileira pela própria sobrevivência, e não poderia terminar de outra maneira senão colocando a sociedade ante à necessidade de uma solução de força [ Regime Militar] (MARINI, 2000, p. 28).

Além das reivindicações salariais, os movimentos populares, lastreado em setores da

população urbana e algumas frações da população rural, consubstanciaram um projeto

nacional-reformista que tinha como eixo estratégico as reformas de base, que compreendiam

as reformas agrária, tributária, financeira, administrativa e educacional e o controle do capital

88 A desaceleração econômica a partir de 1961 esteve vinculada a um novo tipo de crise econômica cíclica própria do avanço industrial – fase de descenso do ciclo econômico conforme descrito por Kalecki. “Se, antes, as crises no setor externo que afetavam a capacidade de financiamento interno [...] a partir de agora os descensos cíclicos da expansão industrial passariam também a contribuir para as novas crises políticas e financeiras”. Sendo assim, “a exaustão do primeiro ciclo de investimento promovido pelo Plano de Metas gerou uma crise recessiva endógena e reacelerou os conflitos internos à classe dominante, disparando a inflação” (FIORI, 2003, p. 161).

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forâneo. Dentre as propostas das reformas de base, duas despertaram as maiores resistências

entre as classes dominantes: a da reforma agrária e do controle do capital estrangeiro (CANO,

2000; FIORI, 2003).

Com o avanço progressivo do projeto nacional-reformista de caráter popular e com a elevação

das disputas entre as frações dominantes, verificou-se que estas perderam, em certa medida,

os instrumentos de controle social sobre os dominados, tendo seu ponto maior de descontrole

no momento em que o governo Goulart – que assumira após renúncia de Jânio Quadros –

encampou as reformas de base como eixo. No entanto, ao sinal do perigo maior, as frações

dominantes reaglutinaram-se em prol da manutenção das estruturas de dominação. A

consciência de classe dos dominantes fora maior do que muitos esperavam. A saída interna à

crise, à época, não seria possível pelo convencimento das classes dominadas - haja vista a

dificuldade histórica das frações dominantes em consolidar uma hegemonia ampla ainda mais

num período de desaceleração econômica – e sim pela forte coerção. Para tanto, as frações

dominantes buscaram nas Forças Armadas a direção autoritária – Regime Militar que durou

aproximadamente 20 anos (entre 1964 e 1984) - para arbitrar seus conflitos e rechaçar

fortemente os movimentos populares reformistas e as reivindicações salariais dos sindicatos.

Segundo Fiori (2003), as Forças Armadas, que antes funcionavam como um recurso de última

instância no que tange ao controle social, aquela altura, tinham sido convocadas, pelas classes

dominantes, para comandar a “fuga para frente” do ponto de vista socioeconômico. Desse

modo, ao longo de todo o Regime Militar, o crescimento econômico e o progresso tornaram-

se questões de segurança nacional.

O golpe militar em abril de 1964 dá início a configuração de um longo período de governos

militares pautados num estado de exceção89, principalmente a partir do Ato Institucional nº 5

de 1968. A partir daí, materializaram-se atos de exceção política e de controle social pela via

da coerção (autoritarismo). No entanto, tais procedimentos coercitivos só tiveram

sustentabilidade durante tanto tempo em virtude dos programas e medidas socioeconômicos

dos governos militares que consubstanciaram fortes crescimentos econômicos. O crescimento

89 Dentre os vários atos de exceção implementados pelo regime militar destacam-se aqui: a cassação dos direitos políticos de centenas de pessoas; a eleição indireta dos governos militares através do Congresso Nacional sob completo controle dos militares haja vista a liquidação dos partidos políticos e a instituição do bipartidarismo (ARENA, governista, e MDB, de oposição); prisões e torturas, à margem da lei, empregadas pelos aparelhos oficiais de repressão aos movimentos contrários ao regime (CANO, 2000).

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foi o sustentáculo do regime militar, uma vez que a partir dele foi possível estabilizar os

velhos conflitos entre as classes dominantes e, ao mesmo tempo, controlar com mão-de-ferro

as reivindicações dos movimentos populares.

Apesar dessas características gerais dos governos militares ao longo de vinte anos, cabe aqui

apresentar algumas diferenciações entre os programas socioeconômicos implantados no início

do golpe militar e após a configuração do Ato Institucional nº 5, em 1968. Inicialmente o

regime militar, sob o governo do general Castelo Branco (entre 1964 e 1968), assume uma

postura econômica de corte liberal e uma perspectiva política semidemocrática. No campo

econômico, o governo Castelo Branco adota o Plano de Ação Econômica do governo (PAEG)

voltado à estabilização monetária. Segundo a equipe Campos-Bulhões, responsável pelo

PAEG, o descontrole inflacionário tinha origem no excesso de demanda decorrente dos

aumentos salariais populistas do governo anterior. A partir de tal diagnóstico de corte liberal,

o governo utilizou instrumentos clássicos de estabilização, tais como: corte nos gastos

públicos, arrocho salarial, contenção dos meios de pagamentos e aumento da carga tributária.

Tais medidas provocaram uma recessão prolongada – onda de falências de empresas pequenas

e médias e forte aumento da capacidade ociosa das grandes empresas –, aprofundando a crise

econômica que se configurara desde 1962. Nesse contexto de recessão, os velhos problemas

reapareceram: aumento dos conflitos entre frações dominantes e o ressurgimento, em

1967/1968, de greves e de manifestações estudantis contra a política econômica e a repressão.

Para conter aquelas manifestações, o regime militar aumenta a repressão e abandona o

discurso econômico liberal, voltando-se a um projeto de desenvolvimentismo conservador. A

partir do golpe dentro do golpe, em 1968, o crescimento econômico passou a ser enquadrado

como uma questão de segurança nacional (FIORI, 2003; OLIVEIRA, 2003; BELUZZO,

1984).

Dessa maneira, os governos militares depois de 1965, e em particular, após 1968, passaram a

adotar políticas econômicas que estimulavam a demanda por meio do aumento do crédito e

dos gastos públicos. Os principais instrumentos daquelas políticas estiveram pautados na

estruturação do mercado de capitais, numa reforma fiscal e no controle salarial mais estrito90.

Segundo Francisco de Oliveira, tais políticas voltadas ao crescimento procuraram

90 Tais instrumentos foram construídos a partir das seguintes mudanças institucionais: i) reforma do sistema monetário e financeiro que criou elementos para o financiamento de médio e longo prazo da economia – criação

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transferir às classes de rendas baixas o ônus do combate [a inflação], buscando que as alterações no custo da reprodução da força de trabalho não se transmitam à produção, ao mesmo tempo que deixa galopar livremente a inflação que é adequada à realização da acumulação, através da instituição da correção monetária, a prática, já iniciada em períodos anterior, de fuga aos limites da lei da usura. A circulação desse excedente compatibiliza os altos preços dos produtos industrializados com a realização da acumulação, propiciada por um mercado de altas rendas, concentrados nos estratos da burguesia e das classes médias altas (OLIVEIRA, 2003, p. 94-95).

As reformas institucionais e as políticas econômicas de ampliação da demanda

proporcionaram um acelerado crescimento econômico entre os anos de 1967 e 197491. A

partir daí afirmou-se definitivamente a supremacia do capital monopolista internacionalizado

no comandando das indústrias dinâmicas que comandaram o ciclo de expansão industrial e a

centralidade do Estado no que se refere à produção e à regulação socioeconômica. Nem

mesmo a desaceleração econômica a partir de 1974 e a grave crise internacional da década de

1970 - conforme descrita anteriormente - foram capazes de parar o avanço da industrialização

pesada, já que a manutenção do crescimento econômico era condição necessária à

manutenção do controle social coercitivo adotado pelos governos militares e ao apoio dado ao

regime pelas frações dominantes. Por isso, o governo do general Geisel não titubeou ao

primeiro sinal de desaceleração econômica e adotou um programa econômico, denominado II

Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), voltado a complementar a cadeia produtiva

nacional e a criar um novo padrão de industrialização. Segundo Cano (2000), os principais

objetivos do II PND foram: i) a expansão e a modernização da agropecuária destinada à

exportação; ii) ampliação e diversificação da indústria de bens de capital e de insumos

básicos; iii) elevação das exportações; iv) tentativa de maior absorção de tecnologia moderna;

e v) desconcentração industrial. Apesar da ampliação absoluta dos investimentos, financiado

em grande medida por empréstimos estrangeiros e pelo aumento da dívida interna, o II PND

de Fundos Fiscais e de Bancos de Investimentos-, novos títulos financeiros, mecanismo de correção monetária sobre títulos públicos e privados e novos órgãos reguladores como o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central; ii) reforma fiscal assentada no lançamento de títulos públicos com correção monetária que possibilitaram novas formas de financiamento do investimento público; iii) novas políticas de trabalho e de reajuste salarial que eliminaram estabilidade no emprego, substituindo-o por um pecúlio para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), e, também, criaram instrumentos que serviram para corroer ao longo do tempo o salário médio real do trabalhador; e iv) uma deliberada expansão e reestruturação do crédito agrícola destinado ao processo de modernização da agricultura, principalmente a voltada à exportação (CANO, 2000). 91 No período de recuperação econômica, entre 1967 e 1970, o PIB cresceu 9,9%, ao ano, em media anual. No momento de maior aceleração econômica, entre 1970 e 1974, o crescimento médio anual do PIB foi de 11,3% (CANO, 2000).

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não implicou em mudanças no padrão de acumulação do período do Plano de Metas. Ricardo

Carneiro, em passagem a seguir de seu livro Desenvolvimento em crise, descreve os efeitos do

II PND na estrutura econômica brasileira:

Embora o II PND não tenha se materializado como instrumento da realização da pretendida diversificação adicional da matriz industrial na escala proposta inicialmente e tampouco tenha logrado a implantação definitiva dos setores mais avançados da indústria, ele preservou o processo de diferenciação da estrutura produtiva em direção à indústria pesada observado desde meados dos anos 50. Assim, cabem aqui algumas considerações acerca das limitações à maior diversificação da estrutura observada no período. Esses obstáculos manifestaram-se com intensidade na indústria de bens de capital, pois, nos segmentos produtores de bens intermediários e energia, o processo avançou substancialmente (CARNEIRO, 2002, p. 68).

O aumento da complementaridade entre ramos industriais foi bastante significativo; contudo,

um novo padrão de industrialização e, por conseguinte, de acumulação não pôde ser

efetivado, tendo em vista a necessidade de alterações estruturais do consumo e do

investimento que necessariamente só poderiam ser realizadas por meio da consolidação de

uma hegemonia ampla do capital industrial nacional. Àquela altura, uma realidade pouco

factível em virtude do avanço do capital forâneo.

O forte crescimento na taxa de acumulação de capital provocou profundas modificações

socioeconômicas no Brasil ao longo da década de 1970. No que concerne aos aspectos

econômicos, verificou-se a consolidação definitiva da indústria de bens de consumo durável e

de capital, em grande parte, controlada pelas empresas estatais e/ou pelas empresas

multinacionais. Para Fiori (2003, p. 173), o processo de industrialização brasileira dos anos

1970 consolidou “um pólo moderno e altamente concentrado dos pontos de vista econômico e

regional, e se completa a montagem de uma estrutura industrial relativamente complementar e

auto-sustentável”. Pode-se assim dizer que o processo de industrialização brasileiro, em certa

medida, reduziu o grau de desarticulação social e setorial do país devido à criação de um

mercado consumidor nacional - por meio das políticas econômicas voltadas à elevação da

demanda - e ao maior balanceamento entre os departamentos de produção (I) e de consumo

(II) provenientes da consolidação da indústria pesada.

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No entanto, o país não conseguiu transpor a barreira da desarticulação, uma vez que a maior

parte da produção dos ramos industriais dinâmicos continuaram se destinando aos grupos de

renda alta e média e à exportação. Na verdade, os salários dos trabalhadores continuaram a

não se configurar como um elemento fundamental na realização das mercadorias dos setores

industriais mais dinâmicos. Isso, por sua vez, possibilitou o avanço da industrialização

nacional, por meio do aumento da exploração do trabalho, sem que isso afetasse a realização

das mercadorias dos setores dinâmicos. Por outro lado, os setores industriais nacionais

“tradicionais” (calçados, tecidos e vestuário) que dependiam mais fortemente da demanda de

estratos de rendas baixas apresentavam constantes problemas de realização que eram sanados

por políticas governamentais que subsidiavam a exportação desses tipos de produtos. Nessa

estrutura, o trabalho é enquadrado apenas como um custo de produção. Por isso, a dinâmica

socioeconômica de industrialização brasileira foi sendo configurada através da exclusão e da

ingente concentração de renda.

Para Fiori (2003, p. 156-157), a industrialização pesada funcionou “segundo padrões

capitalistas modernos, altamente monopolizados, com baixa capacidade de emprego industrial

e segundo uma dinâmica fundada na hiperconcentração de renda”. Tal dinâmica gerou “uma

urbanização acelerada e reproduziu, permanentemente, uma massa de desempregados e

subempregados que vegetam nos bolsões de marginalidade urbana e miséria rural, ampliando

as bases de um sistema social excludente”. Dessa maneira, a exclusão e a superexploração do

trabalho fizeram parte do padrão de acumulação brasileiro, sob o controle do capital

industrial.

Os fluxos de investimento gerados pelos projetos do II PND conseguiram amortecer a queda

das taxas de crescimento decorrente do esgotamento do ciclo de expansivo de 1968/74.

Entretanto, após o segundo choque do petróleo, a ampliação da recessão mundial e,

principalmente, a partir da elevação das taxas de juros internacionais decorrentes da política

Volcker, em 1979, o Estado não consegue mais manter níveis elevados de investimentos

públicos, haja vista a insolvência interna e externa. Além do que, o país teve que recorrer ao

FMI e, conseqüentemente, acabou adotando um plano de estabilização recessivo conforme

acordado com tal instituição. Destarte, a desaceleração econômica não representou um ciclo

recessivo curto, mas sim uma crise socioeconômica profunda que se arrastou ao longo de toda

década de 1980.

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Com a desaceleração do crescimento reaparecem tanto os velhos conflitos dentro das classes

dominantes pela maior apropriação dos lucros como as reivindicações dos movimentos

operários decorrente da forte corrosão dos salários reais iniciada desde os anos finais da

década de 1960. Progressivamente, o regime militar ia perdendo seus principais apoios

ligados às frações dominantes e parte da classe média. “Nestas horas, como sempre, renasceu

a luta interna da classe dominante com virulência e por suas brechas cresceu, de forma

autônoma, um movimento social amplo que exigia melhores condições de vida e maior

participação política” (FIORI, 2003, p. 173).

Cabe ressaltar que além das frações dominantes que se configuraram a partir do Plano de

Metas – especialmente o capital industrial forâneo –, a nova etapa de industrialização,

consolidada pelo regime militar, abriu espaço para emergência de novas frações dominantes

vinculadas às finanças – haja vista a reforma fiscal e financeira, entre 1964 e 1968, que

ampliou a financeirização da economia a partir da vasta utilização dos títulos públicos e de

ampliação do crédito ao consumidor - e à agricultura industrializada (agronegócio) destinada

à exportação – uma decorrência de políticas governamentais destinadas à modernização da

agricultura. Portanto, a heterogeidade entre as frações dominantes ampliou-se ainda mais,

ficando visível, principalmente, em contexto de recessão econômica. Não é para menos que a

luta interna da classe dominante pela maior fatia dos lucros, nos últimos anos da década de

1970, reapareceram com grande virulência, mantendo-se intensa ao longo dos anos 80, ainda

mais com a dificuldade de construir uma hegemonia ampla com projeto voltado à

configuração de um sistema econômico nacional articulado setorial e socialmente.

4.4. Alguns elementos da crise dos anos 80 e o ajuste estrutural neoliberal brasileiro

(Plano Real): ampliação da desarticulação setorial e social a partir dos movimentos das

frações dominantes nacionais e forâneas

A implementação do II PND possibilitou ao Brasil uma sobrevida ao ciclo de expansão

econômica, iniciada pelo “milagre econômico” (1968/1976), até os anos finais da década de

1970, mesmo num cenário de crise internacional ao longo dos anos 70. No entanto, com a

política de elevação das taxas de juros praticadas pelos Estados Unidos, em 1979, não foi

mais possível manter o crescimento econômico pautando-se pela aceleração do financiamento

externo como tivera ocorrido no II PND, uma vez que se materializou uma forte escassez de

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recursos destinados ao financiamento dos países periféricos. A partir daí, a crise capitalista da

década de 1970 penetrou pela porta da frente no Brasil através da “crise da dívida”, pois esta

reduziu a capacidade do Estado em manejar políticas econômicas destinadas ao crescimento,

em função da elevação da sua dívida pública e a sua fragilização financeira. Isso, por sua vez,

gerou uma situação de estagnação econômica, de aceleração inflacionária, decorrente da

defesa das taxas de lucro média num contexto de pequeno crescimento, e de exportação de

capitais (Tabela 4.1) (FILGUEIRAS, 2000; OLIVEIRA, 2002).

Tabela 4.1 - PIB, PIB per capita, Transferência liquida de recursos e Inflação na década de 80 - Brasil

ANO Taxa de crescimento do PIB (%) (preços constantes de 1990)

Taxa de crescimento do PIB per capita (%)

(preços constantes de 1990)

Transferência liquida de recursos*

Inflação (IPCA) (%)

1981 - 4,3 - 6,4 2.123,5 95,6 1982 0,8 - 1,3 -1.831,9 104,8 1983 - 2,9 - 5,0 -3.904,1 164,0 1984 5,4 3,2 -4.329,8 215,3 1985 7,9 5,7 -11.483,5 242,2 1986 7,5 5,4 -9.667,5 79,7 1987 3,5 1,6 -7.848,0 363,4 1988 - 0,1 - 1,9 -14.986,3 980,2 1989 3,2 1,4 -12.655,3 1.972,9

1981-89 2,3 0,3 -7.175,9 468,7 Fonte: CEPAL; IpeaData; * (em milhões de dólares)

O crescimento econômico, que tivera sido o eixo de legitimação do regime militar, não tinha

mais como ser sustentado. Logo, o regime vai perdendo força à medida que a crise aprofunda-

se, uma vez que não era mais possível manter o controle social coercitivo num contexto de

baixo crescimento econômico e de ampliação das reivindicações de diversas categorias de

trabalhadores, notadamente a partir das greves operárias no ABC paulista nos anos finais dos

anos 1970. Os caminhos para a “democratização” começam a ser abertos. “A ditadura sentia o

momento; as classes dominantes também”, tanto é assim, que os “empresários, em documento

de 1977, deixam claro o que entendem por democracia: o fortalecimento do capital, ameaçado

pela crise a cada dia mais impossível de ser controlada pela via tão só repressiva por eles

claramente apoiada.” (OLIVEIRA, 1999, p. 53).

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A “crise da dívida” brasileira se aprofundou no primeiro qüinqüênio da década de 1980,

principalmente com a moratória do México, em 1982, que aprofundou a fuga de capitais da

América Latina. Naquele contexto de aceleração da dívida externa, a fuga de capitais

provocou um estrangulamento no balanço de pagamentos brasileiro, tornando impossível o

comprimento dos pagamentos dos serviços da dívida externa. Diante daquilo, o Brasil teve

que recorrer a empréstimos junto ao FMI para financiar seus déficits. Tal crise brasileira teve

características próximas ao conjunto da América Latina, conforme descrito no terceiro

capítulo.

A “ajuda” do FMI ao Brasil esteve condicionada à consecução do “ajuste monetário do

balanço de pagamentos”, conforme descrito em capítulo anterior, que se voltava

primordialmente à criação de divisas estrangeiras necessárias ao pagamento do serviço da

dívida aos credores internacionais. Tal ajuste só foi alcançado a partir da redução da demanda

agregada, via redução dos investimentos e gastos públicos e do consumo das famílias. Na

verdade, o FMI ao exigir a adoção de políticas econômicas restritivas estava defendendo os

interesses do capital financeiro internacional, principalmente o estadunidense, uma vez que

este era o principal credor do Brasil, à época. Desse modo, a política governamental brasileira

começa a privilegiar novas demandas do capital financeiro, principalmente, o forâneo.

As políticas econômicas restritivas implementadas no governo do general Figueiredo, a partir

do acordo com o FMI, provocaram uma forte recessão econômica, entre 1981 e 1983. O

regime não tinha mais sustentáculo, uma vez que os movimentos reivindicatórios dos

trabalhadores se ampliavam e os segmentos de classes médias e dos dominantes (empresários)

retiraram o apoio ao regime. A queda era inevitável. Entretanto, isso não aconteceu de forma

abrupta. Configurou-se uma transição democrática gradual negociada entre as classes

dominantes. Nenhuma mudança estrutural na dominação de classe brasileira, fortemente

excludente, foi efetivada; na verdade, as alterações ficaram circunscritas às representações

políticas. Essa configuração construída “por cima” foi facilitada pela ambigüidade, à época,

dos movimentos das ruas e das lutas dos trabalhadores voltadas principalmente aos objetivos

salariais. Segundo Nelson de Oliveira,

os movimentos de rua sempre tiveram por objetivo deslegitimar o regime militar, o que não significa que tenham ameaçado, em nenhum momento, a

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efetiva dominação das classes sociais [dominantes] [...]. Não dá para mensurar o repúdio real das ruas às formas mais espúrias de dominação do capital quando simplesmente se propunham seus protagonistas mais importantes a simplesmente desmontar um circo no qual essas forças eram tão-só representadas [...]. Pode-se afirmar, sem muito temor, que as ruas não queriam conquistar: queriam ser conquistadas. A burguesia brasileira parece ter muito cedo percebido isto. O rugido das massas não a perturbou. Em certo momento, pelo contrário, chegou a encantá-la pelo que ensejava de oportunidade. As ruas não acossavam, muito menos quando o que se pedia era tão pouco: alterar representações, expressão maior de um fingimento democrático, para qual ela sempre demonstrou grande propensão (OLIVEIRA, 2002, p. 12).

No momento em que o regime militar não conseguiu mais manter elevadas taxas de

crescimento, nem muito mesmo arbitrar o conflito distributivo entre as frações dominantes,

ocorreu sua deslegitimação como eixo de comando da “fuga para frente”. A partir de 1985

assume a presidência da república um governante civil: José Sarney; enquanto as Forças

Armadas voltam a sua condição de recursos de última instância para a manutenção do

controle social. Naquele quadro de baixo crescimento econômico, reaparecem, com bastante

virulência, as disputas entre frações dominantes pela maior apropriação dos lucros, ainda mais

com a ampliação da heterogeneidade entre o condomínio do poder, haja vista a manutenção

das frações existentes e a emergência e configuração de novos segmentos sociais, tanto

nacionais quanto forâneos, atrelados às finanças e ao agronegócio. A aliança entre as diversas

frações dominantes, que tivera sido mantida pelo crescimento, se desfez, criando, com isso,

uma grande instabilidade no âmbito socioeconômico, proveniente, principalmente, da não-

supremacia de nenhuma fração dominante como eixo da dinâmica socioeconômica. O reflexo

dessa disputa distributiva acirrada, sem um equilíbrio de poder, ao longo de toda década de

1980, foi a hiperinflação. É necessário ressaltar que apesar da grande disputa entre as frações

dominantes no âmbito da acumulação, construiu-se uma aliança entre os dominantes no

âmbito das representações políticas “democráticas” com objetivo de consubstanciar uma

transição democrática sem sobressaltos, nem mudanças estruturais ao controle social

efetivado pelo capital. Para Nelson Oliveira - em trecho abaixo de seu artigo Um país

privado: os dilemas conjunturais de uma oposição -,

enquanto as representações se esmeram em construir a farsa, o eixo real de poder se digladia [...]. A inflação refletia o desequilíbrio de poder. Hegemonias indefinidas facilitavam os augúrios: a hiperinflação era o destino. [...] Os mesmos grupos que pareciam tão condescendentes no campo das alianças representativas não abdicavam de seu principal objetivo: a defesa de suas margens de lucro, tanto mais quanto estas, se não eram

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ameaçadas no geral ameaçavam porém comprometer segmentos importantes do capital por suas tendências cada vez mais instáveis [, em decorrência do avanço da globalização financeira] (OLIVEIRA, 2002, p. 13).

Ao longo de toda década de 1980 até os primeiros anos da década de 1990 não existia uma

supremacia clara de uma fração do capital, seja nacional ou internacional, dentre os

segmentos dominantes. Na verdade, aquele período fora marcado por uma forte disputa

econômica, política e ideológica entre os segmentos sociais dominantes de caráter industrial –

com vestígios de perspectivas nacionalistas - e os de caráter financeiro – articulados a uma

visão cosmopolita - que vinha ganhando força com o processo de globalização financeira. O

primeiro grupo, em reposta a crise dos anos 1980, tentava consubstanciar um projeto

neodesenvolvimentista92 voltado à redefinição e à reforma do padrão de acumulação pautado

no Modelo de Substituição, ensejando manter o Estado com funções de planejamento e

implantação de investimentos estratégicos e acalentando a idéia de ampliação dos mercados

internos. O segundo grupo tinha como proposta de desenvolvimento uma integração passiva

aos movimentos de globalização dos espaços, buscando aproveitar algumas brechas existentes

para a promoção de alguns setores dinâmicos da economia (FILGUEIRAS, 2005;

OLIVEIRA, 1999).

O Plano Cruzado (1986) e os planos subseqüentes (Cruzado II, Plano Bresser e Plano

Verão)93, implementados no governo Sarney, em certa medida, foram tentativas heterodoxas

de saída da crise que buscavam conciliar estabilização de preços com aumento do consumo no

curto prazo. Tais planos, na verdade, intentaram consubstanciar um padrão de acumulação

neodesenvolvimentista, entretanto, não foram exitosos devido, principalmente, ao contexto

internacional de baixa liquidez internacional e, por conseguinte, de extrema dificuldade de

obtenção de financiamento externo aos desequilíbrios no balanço de pagamentos brasileiros

92 Esse projeto neodesenvolvimentista se direcionava no seguinte eixo:“... reforma do sistema financeiro, subordinando-o ao financiamento do desenvolvimento; controle público das empresas estatais, ‘preservando a capacidade produtiva dos setores estratégicos fundamentais (insumos básicos, energia, petroquímica, mineração e telecomunicações), cujo desempenho eficiente é fundamental para expansão do parque industrial brasileiro’ e fechando as estatais deficitárias; uma política industrial que privilegiasse os setores capazes de irradiar novas tecnologias e permitisse avançar no processo de substituição de importações; uma política de investimentos estatais que maximizasse a geração de empregos; e ‘uma nova atitude na renegociação da dívida externa’” (Documento dos Doze de 1983 BIANCHI apud FILGUEIRAS, 2005, p.5). 93 O congelamento de preços foi uma das principais medidas adotadas nos planos heterodoxos. Uma apresentação detalhada dos elementos constitutivos dos planos heterodoxos da década de 1980 pode ser encontrada em Cano (2000), Filgueiras (2000) e Beluzzo & Almeida (2002).

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ampliados pelo aumento da demanda interna decorrente dos efeitos do Plano Cruzado. Para

Filgueiras (2000, p. 82), a

queda das exportações, decorrente do crescimento da demanda interna e da sobrevalorização do câmbio, com a conseqüente ampliação do déficit na conta de transações correntes do balanço de pagamentos, implicou a queda drástica das reservas e levou o país à beira de uma crise cambial, desembocando na decretação de uma moratória no início de 1987. Com a desvalorização cambial efetuada, e com ela a retomada da aceleração dos preços, extinguiu-se formalmente o Plano [Cruzado] (FILGUEIRAS, 2000, p. 82).

Com a derrocada dos Planos heterodoxos do segundo qüinqüênio dos anos 1980,

principalmente do Cruzado, ocorreu um aprofundamento da crise econômica em vista do

quadro de estagnação econômica com hiperinflação (ver tabela 4.1). O governo Sarney se

arrasta até o seu último dia de forma trágica, assim como a transição democrática se finda de

maneira melancólica. Naquele contexto, o projeto de re-configuração do MSI, defendido por

parte das frações industriais nacionais, ficava cada vez mais desacreditado como alternativa

de combate à crise brasileira; enquanto as estratégias defendidas pelos segmentos sociais

dominantes, vinculados aos interesses financeiros nacionais e internacionais, iam ganhando

força à medida que projetava no imaginário coletivo a idéia de que a inserção brasileira ao

processo de globalização provocaria a melhoria das condições de vida da população. Os

segmentos sociais atrelados às finanças de “forma paulatina e bem estruturada, combinando

instrumentos os mais distintos, midiáticos, repressivos e ideológicos”, foram conseguindo

“lançar para os ares sonhos de transformação social ou de melhoria das condições de vida da

população, destruir o emprego, a organização dos trabalhadores, ou qualquer ensaio de

construção do novo, afirmando-se ultimamente como a apoteose” (OLIVEIRA, 2002, p. 11-

12).

Apesar do avanço do ideário neoliberal nos anos iniciais da década de 1990 com o governo

Collor (o “caçador de marajás”) – que deu os primeiros passos na adoção de reformas

estruturais assentadas na privatização, na abertura comercial e financeira -, não havia ainda

uma definição clara quanto ao projeto de desenvolvimento a ser seguido no Brasil. A

supremacia de uma fração dominante dentre as que compunham o condomínio do poder

brasileiro ainda não estava definida, apesar do poder, cada vez maior, das frações financeiras.

O governo Collor, com suas medidas ambíguas e voluntaristas, foi, em certa medida, a

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representação dessa indefinição das frações dominantes, uma vez que seu modelo de gestão

persistia distante de qualquer referencial claramente definido, mesmo com a maior influência

das frações financeirizadas nas políticas governamentais. Luiz Filgueiras, em passagem

abaixo do seu artigo Projeto político e modelo econômico neoliberal no Brasil..., descreve a

indefinição das frações dominantes durante o governo Collor:

A ascensão de Collor marcou o início da fase decisiva que levaria à vitória do projeto neoliberal no interior das classes dominantes. Produto de uma aguda crise de hegemonia, no conjunto da sociedade e mesmo no interior do bloco dominante, num momento de forte presença política das classes trabalhadoras, o Governo Collor – cujo programa contou, àquela altura, com a concordância da maioria das diversas frações do capital - foi a solução possível (bonapartista), momentânea, para essas distintas frações no seu embate contra a esquerda e as classes trabalhadoras (NEC, 1991; Oliveira, 1990). Apesar disso, e do fato do MSI, naquele momento, já estar desacreditado para as diversas frações do capital, o projeto neoliberal ainda continuava a ser uma grande interrogação. Configurava-se, então, [uma momento no] [...] qual o “velho” não tinha mais possibilidade de continuar existindo e o “novo” não podia ainda nascer (FILGUEIRAS, 2005, p. 11).

Para controlar a hiperinflação, o governo Collor adotou, em 16 de março de 1990, um Plano

econômico (Plano Collor I) que se apoiou numa reforma monetária – substituição da velha

moeda (Cruzado Novo) pela nova (Cruzeiro), com preços e salários convertidos ao par - e no

bloqueio das aplicações financeiras. Tais medidas tinham como objetivo reduzir a liquidez da

economia para cerca de 10% do PIB, já que os formuladores do Plano acreditavam que acima

deste patamar os recursos financeiros se destinariam a transações especulativas e não a

produção e a venda de mercadorias. Os índices de inflação despencaram inicialmente (1991)

haja vista a recessão econômica decorrente do forte aperto da liquidez, mas com abertura das

“torneiras da liquidez” (remonetização da economia) a inflação retornou a patamares elevados

(Tabela 4.2) (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).

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Tabela 4.2 - PIB, Inflação e Taxa de desemprego na década de 90 – Brasil ANO Taxa de crescimento do PIB

(%) Inflação (IPCA)

(%) Taxa de desemprego aberto

(PME) – Brasil* 1981-89 2,3 468,7 5,31

1990 - 4,4 1.621,0 4,28 1991 1,0 472,7 4,83 1992 - 0,5 1.119,1 5,66 1993 4,9 2.477,2 5,32 1994 5,9 916,5 5,06

1990-94 1,7 1.651,6 6,29 1995 4,2 22,4 4,65 1996 2,7 9,6 5,43 1997 3,3 5,2 5,67 1998 0,1 1,7 7,60 1999 0,8 8,9 7,58 2000 4,4 6,0 7,14 2001 1,3 7,7 6,23 2002 1,9 12,5 7,14

1995-02 2,3 9,2 6,43 Fonte: IBGE; IPEA; * seis regiões metropolitanas (SAL, SP, RJ, REC, BH, PA).

Além da tentativa de controle de inflação pela via recessiva, através do bloqueio das

aplicações financeiras, o governo Collor adotou as seguintes medidas estruturais, que deram

início ao projeto de “desenvolvimento” neoliberal no Brasil: (i) programa de privatizações das

empresas estatais e de reforma administrativa do Estado; ii) reforma do comércio exterior

pautada por uma política de liberalização drástica das importações; iii) instituição do “câmbio

livre” que passaria a ser fixado pelo mercado, por meio de agentes econômicos credenciados

pelo Banco Central a operarem nesse tipo de mercado; iv) ajuste fiscal que tinha como

objetivo a obtenção de superávit operacional de 2% do PIB, através, principalmente, da

redução dos gastos e investimentos públicos e da extinção de incentivos fiscais (BELLUZZO

& ALMEIDA, 2002; FILGUEIRAS, 2000).

O fracasso das estratégias de estabilização dos preços, a brutal recessão econômica e a

incapacidade estatal em arbitrar os distintos interesses das frações dominantes, associados às

denúncias de corrupção generalizada na campanha eleitoral, provocaram o isolamento político

do governo Collor diante de todos os segmentos sociais (empresários, trabalhadores, elites e

classe média). As ruas clamaram pelo impeachment que o Congresso Nacional aprovou em

setembro de 1992. Novamente, assim como na luta contra o regime militar nos anos 1980,

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as ruas falavam. Queriam ser reconquistadas, ouvidas... Queriam o seu dinheiro de volta. Tardiamente, demonstram um drama de consciência, sem uma consciência clara do próprio drama. A solução da crise é sua própria alimentação. A hiperinflação já fora atenuada com o impedimento dos saques das poupanças. A estabilidade clamava por um governo legítimo. Como se a farsa fosse tão-somente o prelúdio. Menos do que um governo, se questiona a figura: a representação. A saída de Collor passa a ser um ato puramente formal. As ruas despacham a figura mas não a figuração. O vazio persiste (OLIVEIRA, 2002, p.13).

Com o impeachment, Itamar Franco, vice de Collor, assume o governo sem um projeto

definido, tendo no combate à inflação a alternativa legitimadora de seu governo. Para tanto,

consubstanciou um programa de estabilização monetária e de reformas institucionais e

administrativas (Plano Real) iniciado em dezembro de 1993. Tal plano, no âmbito da

estabilização, foi constituído de três fases distinta e sucessiva: o ajuste fiscal, tendo como

principal iniciativa a criação do Fundo Social de Emergência (FSE); a criação da Unidade

Real de Valor (URV) que funcionou como um superindexador; e a configuração de uma nova

moeda (o Real), em julho de 1994. No que diz respeito às reformas, o Plano Real continuou e

aprofundou as medidas estruturais, de cunho neoliberal, iniciadas no governo Collor. Cabe

ressaltar que o Plano se valeu da grande liquidez internacional, à época, para alcançar êxito no

combate da inflação, condição completamente diferenciada da verificada no momento da

implementação do Plano Cruzado.

De forma resumida, o Plano Real (ajuste estrutural neoliberal), iniciado no governo Itamar e

consolidado nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), teve como objetivos

fundamentais: i) a estabilização dos preços, buscando criar instrumentos para o cálculo

econômico de longo prazo; ii) a ampliação da abertura comercial - iniciada por Collor -,

impondo uma maior concorrência aos produtores internos e, por conseguinte, forçando-os a

elevarem sua produtividade. O câmbio valorizado teve um papel fundamental na consecução

da política comercial; iii) o alargamento do processo de privatização e o estímulo ao

investimento forâneo94, ensejando melhorar a eficiência industrial e reduzir os gargalos infra-

estruturais; iv) a liberalização da conta de capitais do balanço de pagamentos, objetivando

94 Dentre as principais medidas de incentivo ao investimento externo, pode-se destacar o “fim da discriminação constitucional em relação às empresas de capital estrangeiro”; “autorização para o Estado passar a conceder o direito de exploração de todos os serviços de telecomunicações (telefone fixo e móvel, exploração de satélites, etc.) a empresas privadas”; e aprovação de “lei complementar regulando as concessões de serviços públicos para a iniciativa privada já autorizada pela Constituição (eletricidade, rodovias, ferrovias, etc.)” (SALLUM, 2000, p. 142).

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atrair as poupanças externas para financiar os déficits de transações correntes decorrentes da

política de câmbio valorizado; e v) a consecução de políticas sociais focalizadas voltadas à

eliminação da “pobreza”. Destarte, o Plano Real não buscava apenas a estabilização de

preços. Na verdade, ele constitui-se num modelo de “desenvolvimento” liberal assentado no

binômio da abertura e da competitividade, construído a partir da estabilidade inflacionária

(BELLUZZO & ALMEIDA, 2002; OLIVEIRA, 2002; FILGUEIRAS, 2000). O grande

“saque” do Plano foi:

Apostar num ajuste, aceitando plenamente a regra do jogo dos grandes capitais globais e valendo-se da liquidez internacional e da busca de novas oportunidades de valorização pelos referidos capitais. O preço cobrado não seria baixo. Para este, contudo, valia a pena. Para o governo, o campo das ilusões era imenso. No imaginário popular, que fora responsável pela derrubada de dois governos, em 1985 e em 1992, a estabilização tinha o maior peso do que qualquer outra reestruturação que reformulasse o status quo. O governo conta com isso. Está bem informado. As ruas já o haviam demonstrado (OLIVEIRA, 2002, p.16).

Aquela altura as frações dominantes financeiras e financeirizadas mundiais se declaram no

poder e por meio das instituições “supranacionais”, sob forte influência estadunidense e das

potências européias, exigem políticas de estabilização para os países latino-americanos. O

Plano Real se inseriu na família de planos de estabilização adotado em toda América Latina

ao longo dos anos 1990. De fato, o ajuste estrutural brasileiro (Plano Real) nasceu com uma

necessidade construída a partir de exigências globais delimitadas pelo movimento de

globalização financeira e reestruturação produtiva; contudo, tal plano só se tornou viável a

partir da adesão das frações dominantes brasileiras ao mito da “modernidade” proveniente da

utopia da globalização. O condomínio do poder brasileiro havia definido o projeto de

desenvolvimento a ser seguido: o modelo neoliberal de integração passiva aos movimentos da

globalização. A partir daí iniciou-se, no Brasil, um novo padrão de acumulação capitalista

pautado (i) pela ampliação da acumulação financeira por meio, principalmente, da expansão

da dívida pública brasileira; (ii) pela redução da realização interna da produção nacional que

havia se ampliado durante a industrialização “pesada” do Modelo de Substituição das

Importações; e (iii) pelo aumento da “superexploração” do trabalho, como decorrência do

processo de desregulamentação desse mercado.

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Nesse novo padrão acumulativo, as frações dominantes financeiras e financeirizadas95, tanto

do capital financeiro e produtivo internacional quanto dos grandes grupos econômico-

financeiros nacionais, assumiram a supremacia entre as frações dominantes brasileiras. Cabe

ressaltar aqui que as frações nacionais se inseriram de forma subordinada aos movimentos do

capital financeiro forâneo. Nessa nova configuração de poder das frações dominantes, fazem

parte:

[...] o capital financeiro internacional - expresso na movimentação dos fundos de pensão, dos fundos mútuos de investimentos e dos grandes bancos dos países desenvolvidos -; os grandes grupos econômico-financeiros nacionais, que conseguiram sobreviver, até aqui, ao processo de globalização, em função de sua capacidade competitiva ou através da associação (subordinada) com capitais estrangeiros; e o capital produtivo multinacional (associado ou não ao capital nacional); todos eles tendo aumentado suas respectivas influências [...] [no condomínio do poder] (FILGUEIRAS, 2005, p. 7).

A supremacia das frações financeiras, principalmente internacionais, no comando da dinâmica

do novo padrão de acumulação brasileiro impede qualquer possibilidade de consolidação de

uma hegemonia ampla que incorpore ao mesmo tempo os interesses dos dominantes e dos

dominados. Na verdade, a assunção dessa fração dominante eliminou de vez qualquer

“sonho” de construção de um sistema econômico nacional como aventado por alguns

segmentos da burguesia nacional e de alguns intelectuais neodesenvolvimentistas, ao longo da

década de 1980.

A nova correlação de forças sociais nacionais, sob a égide financeira, principalmente forânea,

potencializou e configurou o ajuste estrutural neoliberal no Brasil (Plano Real),

95 Segundo Filgueiras (2005, p. 8), “é importante distinguir entre a lógica financeira - que se constitui na lógica mais geral do capital, desde sempre, e que caracteriza a atual fase do desenvolvimento capitalista em escala nacional e internacional, imprimindo, de forma dominante, a dinâmica do modo de produção e influenciando as mais diversas esferas das sociedades e dimensões da vida social – das formas institucionais assumidas pelo capital financeiro, que definem os sujeitos que comandam concretamente esse processo, articulando os mais diversos interesses, a partir do domínio, controle e propriedade de instituições financeiras. Desse modo, embora todos os grupos econômicos e as frações do capital estejam, hoje, financeirizados – no sentido de estarem subordinados à lógica financeira e aplicarem seus excedentes no mercado financeiro, em particular nos títulos da dívida pública -, apenas aqueles que se articulam organicamente com a esfera financeira, através do controle e propriedade de uma ou mais instituições financeiras, são os sujeitos fundamentais dessa lógica, que subordina inclusive o Estado, a política econômica e social e a ação política em geral. Assim, apesar da maioria dos grandes grupos econômicos, no Brasil, não estar ligada, organicamente, ao capital financeiro – através de um banco ou outro tipo de instituição financeira de propriedade do grupo -, esses grupos também se beneficiam da especulação e do financiamento da dívida pública, ganhando também com as elevadas taxas de juros”.

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transformando profundamente as políticas econômicas e as estruturas industriais e

institucionais brasileiras, principalmente, a partir do governo FHC que contou com o apoio

dos mais diversos segmentos sociais. Dentre as principais modificações destacam-se aqui: (1)

a política macroeconômica liberal; (2) a especialização regressiva da estrutura industrial; e (3)

o aumento da superexploração do trabalho, decorrente da redução do preço da força de

trabalho e da elevação do desemprego em suas várias formas.

No que diz respeito à gestão da política econômica brasileira durante o Plano Real, a

estabilidade inflacionária, durante o primeiro mandato de FHC, foi alcançada por meio da

combinação entre câmbio valorizado, juros elevados e abertura comercial e financeira que,

por sua vez, provocaram uma explosão da dívida pública, a deterioração da contas externas e

um ritmo de crescimento baixo. A queda da inflação, nos momentos iniciais do Plano (entre

julho de 1994 e março de 1995), propiciou um círculo virtuoso de aumento do consumo e

crescimento da produção e do emprego, em decorrência do fim do imposto inflacionário e da

ampliação do crédito (Tabela 4.2). No entanto, tal dinâmica econômica teve fôlego curto, haja

vista que o modelo macroeconômico neoliberal brasileiro, com câmbio valorizado e fixo ou

quase fixo – conforme descrito no capítulo III para o conjunto da América Latina -, criou e

ampliou os problemas nas contas externas e nas finanças públicas do país. Quanto à

deterioração da contas externas, verificou-se que a conta de transações correntes do balanço

de pagamentos passou a apresentar, ano a ano, déficits elevados e crescentes provenientes dos

déficits recorrentes da balança comercial, que passara da posição de superavitária para

deficitária, e a elevação dos déficits da balança de serviços. Isso implicou aumento dramático

da vulnerabilidade externa, pois o país, cada vez mais, dependia da entrada de capitais

forâneos, principalmente voláteis (Tabela 4.3). A rápida deterioração das contas externas

determinou, ao mesmo tempo, uma crescente piora das finanças do setor público, apesar da

existência de equilíbrio ou pequenos déficits fiscais primários, uma vez que a permanente

política de taxas de juros elevadas – para assegurar a entrada e permanência de capitais

estrangeiros - elevou a dívida líquida do setor público sistematicamente, tanto em termos

absolutos quanto como proporção do PIB96 (FILGUEIRAS & PINTO, 2005; FILGUEIRAS,

2000).

96 A dívida líquida do setor público se elevou de R$ 153,7 bilhões (30% do PIB), em dezembro de 1994, para R$ 385,9 bilhões (41,7% do PIB), ao final do primeiro governo FHC, em dezembro de 1998 (FILGUEIRAS & PINTO, 2005).

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Tabela 4.3 - Transações Correntes, Balança Comercial, Serviço e Renda e Transferência líquida na década de 90 – Brasil

ANO Transações Correntes (US$ Bilhões)

Balança Comercial (US$ Bilhões)

Serviços e Renda (US$ Bilhões)

Transferência liquida de recursos

(US$ milhões) 1990 -3,78 10,75 -15,37 -7.310,5 1991 -1,41 10,58 -13,54 -8.570,1 1992 6,11 15,24 -11,34 584,3 1993 -0,68 13,30 -15,58 -1.632,6 1994 -1,81 10,47 -14,69 -723,0

1990-94 -0,39 15,08 -17,63 -4.413,0 1995 -18,38 -3,47 -18,54 19.950,7 1996 -23,50 -5,60 -20,35 19.397,1 1997 -30,45 -6,75 -25,52 5.862,7 1998 -33,42 -6,57 -28,30 7 257,0 1999 -25,33 -1,20 -25,83 - 1 335,0 2000 -24,22 -0,70 -25,05 4 076,0 2001 -23,21 2,64 -27,49 6 777,0 2002 -7,64 13,13 -23,27 - 10 193,0

1995-02 -23,27 -1,07 -24,29 6 474,1 Fonte: Bacen; Cepal

As políticas econômicas, a abertura comercial e as privatizações, implementadas no Plano

Real, criaram uma situação de baixo dinamismo econômico e de ampliação do desemprego

(Tabela 4.2). Além do que provocou a desestruturação e/ou desnacionalização de importantes

cadeias produtivas, haja vista as vendas e as fusões de empresas nacionais, quer sejam

privadas ou públicas, para e com o capital estrangeiro ou a reconversão de suas atividades

para montagem de componentes importados. Desse modo, ocorreu uma especialização da

estrutura produtiva97 brasileira, na medida em que se verificou uma menor diversificação dos

ramos produtivos e uma maior desarticulação das cadeias produtivas nos segmentos

industriais mais dinâmicos, intensivos em capital e tecnologia. O processo de especialização

ocorreu mais fortemente nos setores mais intensivos em tecnologia e capital, enquanto que os

menos afetados foram os intensivos em mão-de-obra, vinculados, principalmente, ao ramo de

recursos naturais (CARNEIRO, 2002; FILGUEIRAS, 2005). Ricardo Carneiro, em seu livro

Desenvolvimento em crise, a partir da análise de diversos índices de coeficientes de

penetração e de abertura da indústria brasileira (por categoria de uso, por intensidade de fator,

por setores), chegou a seguinte conclusão:

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A combinação das informações setoriais – por uso e intensidade de fator – permitiu concluir que a abertura acompanhada da valorização do câmbio promoveu uma reestruturação produtiva de grande significado na economia brasileira. Setores de alta intensidade de tecnologia e de capital, via de regra localizados nos segmentos produtores de bens de capital, intermediários elaborados ou consumo duráveis, realizaram uma expressiva especialização. Apenas uma parcela desses mesmos segmentos produtivos foi preservada e ampliou sua inserção externa. Ao revés, os setores intensivos em recursos naturais e trabalho, predominantemente produtores de bens de consumo correntes e intermediários convencionais, mantiveram-se mais diversificados e ampliaram moderadamente a inserção externa. Em resumo, há claras indicações de uma especialização regressiva na economia brasileira com a ampliação do peso dos setores intensivos em recursos naturais e trabalho e redução da importância – com exceções – dos intensivos em tecnologia e capital (CARNEIRO, 2002, p. 320).

Assim, a mudança desfavorável no padrão de comércio internacional – perda de

competitividade das exportações manufatureiras e expansão dos produtos agrícolas para

exportação98 –, na década de 1980, ocorreu em razão da reprimarização das exportações

decorrente da especialização da estrutura produtiva nacional. Para Gonçalves (2000, p. 118), o

baixo dinamismo das exportações manufatureiras demonstra o “desmantelamento do aparelho

produtivo” atribuído “especialmente à apreciação cambial e às baixas taxas de investimento”.

Isto, na realidade, sugere que a reestruturação produtiva com o crescimento medíocre da

produção representou uma adaptação regressiva do aparelho produtivo.

O modelo macroeconômico de câmbio valorizado fixo ou quase fixo tornou-se insustentável,

culminando na grande crise cambial de 1999 e gerando uma forte desvalorização da moeda

nacional (Real). Apesar da mudança do regime cambial, a vulnerabilidade externa do país e a

fragilidade financeira do setor público continuaram a dificultar, por sua vez, o crescimento do

produto, a redução das taxas de desemprego e a gestão das políticas macroeconômicas e,

principalmente, sociais. A desvalorização do real impediu o aprofundamento da deterioração

do balanço de pagamentos do país e reduziu, conjunturalmente, a grande vulnerabilidade

externa. No entanto, isto ocorreu, principalmente, em virtude do baixo crescimento

econômico do país durante o segundo governo de FHC (Tabela 4.2. e 4.3). Pelo lado das

finanças públicas, ocorreu uma piora, apesar dos reiterados superávits fiscais primários, nos

97 A especialização da estrutura produtiva, segundo Carneiro (2002), pode ser comprovada pela elevação do coeficiente de importação de 5,7%, em 1990, para 20,3%, em 1998. 98 A participação na receita de exportação, em porcentagem, de produtos manufaturados caiu de 55,1%, entre 1999-94, para 53,1%, entre 1995-98. Já a participação dos produtos agrícolas se elevou de 29,8%, entre 1999-94, para 33,8%, entre 1995-98 (GONÇALVES, 2000, p.95).

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quatro anos do segundo governo FHC, em função da elevação da dívida líquida do setor

público que chegou ao patamar de R$ 881,1 bilhões, correspondendo a 56,5% do PIB, em

dezembro de 2002 (FILGUEIRAS & PINTO, 2005).

Os serviços da dívida interna e externa do setor público brasileira transferem, a cada ano, uma

massa cada vez maior de recursos para a órbita financeira local e internacional. Nesse

contexto, as altas taxas de juros (política monetária) vêm funcionando como o instrumento de

transferência de renda e riqueza dos assalariados e da população em geral para as frações

dominantes financeiras, sustentando vultosas e especulativas operações cambiais, dentre

outras modalidades de acumulação financeira. Na verdade, as políticas monetárias e o

financiamento do Estado brasileiro99, através dos títulos públicos, são instrumentos cada vez

mais identificados com a dinâmica de acumulação, sob a égide financeira, que beneficia

especialmente grandes instituições financeiras ou financeirizada (MINELLA, 2002).

A mudança do regime cambial no início de 1999, a política de metas inflacionárias e um

regime fiscal mais draconiano não conseguiram reverter, de forma estrutural, a

vulnerabilidade externa da economia, a fragilidade financeira do setor público e a

especialização da estrutura produtiva, não abrindo espaço, portanto, para a retomada

sustentada do crescimento. A experiência vem demonstrando que o câmbio flutuante, apesar

de atenuar os efeitos internos das crises cambiais, não tem conseguido isolar a política

monetária e dar-lhe uma maior autonomia; a cada ataque especulativo contra o real, as

autoridades monetárias, tanto em função da fuga de capitais quanto de seus impactos sobre a

inflação, terminam por elevar a taxa de juros, com todas as conseqüências conhecidas sobre o

nível de atividade, o emprego, a renda e a dívida pública (CARVALHO, 2003; CARNEIRO,

2003, FILGUEIRAS & PINTO, 2005).

Em suma, as políticas econômicas liberais – pautadas pelas restrições nos gastos públicos e

pelo processo de privatizações - adotadas durante os dois governos de FHC não conseguiram

99 Desse modo, o financiamento do Estado, por meio dos títulos públicos, segue atualmente uma lógica pautada em grande parte pelos condicionados do mercado, ou por assim dizer, “das grandes instituições ou grupos financeiros nacionais e também pelos bancos estrangeiros, que intermediam o processo, através da chamada ‘indústria de fundos’. As decisões sobre os tipos e os prazos dos títulos, sobre as garantias e as taxas de juros, estão constrangidas ou condicionadas àquilo que estas grandes instituições estão dispostas a aceitar” (MINELLA, 2002, p. 07).

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reverter o baixo crescimento que prevaleceu ao longo de toda década de 1980 e início nos

anos 90 (Tabela 4.1), tendo em vista a redução dos investimentos (formação bruta de capital)

tanto público quanto privados em novas construções de infra-estrutura, potencializando o

aparecimento de gargalos nas áreas estratégicas de energia e transporte. O setor industrial,

durante os dois mandatos de FHC, apresentou taxas pífias de crescimento e uma deterioração

do tipo de crescimento industrial. Ademais, o acúmulo de desequilíbrios externos

transformados em fragilidade financeira interna do setor público e a inserção brasileira

passiva no âmbito internacional semearam na economia o germe da crise financeira que vem

acompanhado da ameaça recessiva. Nem mesmo a mudança do regime cambial, no início de

1999, conseguiu reverter esses elementos problemáticos (FILGUEIRAS & PINTO, 2005;

BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).

A configuração do novo padrão de acumulação brasileiro ampliou a superexploração do

trabalho, principalmente pela via da mais-valia absoluta devido à redução dos salários reais e

ao aumento da jornada de trabalho decorrentes do processo de desestruturação do mercado de

trabalho. Luis Filgueiras sinaliza as principais características dessa desestruturação do

mercado de trabalho:

A reestruturação produtiva e as políticas neoliberais mudaram o perfil e a composição das classes trabalhadoras no Brasil: houve uma redução do peso relativo dos assalariados e dos trabalhadores industriais, tendo como contrapartida o crescimento da informalidade, com uma maior fragmentação da classe trabalhadora (Oliveira, 2003). Em resumo, uma maior fragilidade e heterogeneidade da classe trabalhadora e, portanto, uma menor identidade entre os seus diversos segmentos, com redução de sua capacidade de negociação. Isto tudo se deu em razão da desestruturação do mercado de trabalho, acompanhada por um processo de desregulamentação das relações trabalhistas (Krein, op.cit), que levou ao crescimento do desemprego e ao aprofundamento da precarização do trabalho e das formas de contratação (cooperativas, terceirização, etc) (FILGUEIRAS, 2005, p. 42)

Apesar das mudanças organizacionais (reestruturação), introduzidas na década de 1990, no

Brasil, terem provocado uma forte elevação da intensidade do trabalho, tais mudanças não

foram suficientes para acompanhar a sucção do valor absorvido pelo setor financeiro. Desse

modo, a superexploração do trabalho se manifestou pela via do rebaixamento dos salários,

uma vez que a desarticulação do setor produtivo (especialização produtiva regressiva) e a

desregulamentação das leis trabalhistas ampliaram o excedente da força de trabalho (aumento

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176

do exército industrial de reserva), criando as condições materiais para pressionar os preços da

força de trabalho para baixo (MARTINS, 1999).

As mudanças na base técnico-material do processo produtivo, associadas à absorção crescente

de tecnologia intensiva em ciência e subjetividade do paradigma microeletrônico, também

têm contribuído para a depreciação do preço da força de trabalho, uma vez que tal tecnologia

substitui dispêndio físico e industrial de força de trabalho. Portanto, “a maior produtividade

trazida pelas novas tecnologias transforma-se em grande parte em desemprego aberto ou

oculto sob a forma do desalento ou da precarização do trabalho” (MARTINS, 1999, p. 15).

O novo padrão de acumulação brasileiro, configurado na década de 1990, assentado no

modelo de “desenvolvimento” neoliberal, sob o domínio das frações financeiras, ampliou a

desarticulação setorial e social da economia nacional que havia diminuído durante a

consolidação da indústria “pesada” (II PND). A ampliação da desarticulação teve origem nas

políticas econômicas neoliberais e nas reformas estruturais, uma vez que tais medidas

consubstanciaram (i) um processo de reestruturação da indústria nacional (especialização

regressiva da estrutura produtiva, conforme descrito anteriormente), que causou uma maior

desbalanceamento entre os departamentos de produção e consumo; (ii) uma redução da

importância do mercado interno na realização dos produtos dos setores dinâmicos da

economia nacional; e uma queda, ao longo de quase toda década de 1990, tanto das rendas do

trabalho como de sua participação no Produto Interno Bruto, que chegou ao patamar de 36,1%

do PIB, em 2002 (Gráfico 4.1).

Gráfico 4.1 - Remuneração do trabalho como porcentagem do PIB a preços de mercado

- Brasil

34,7

38,4

45,4

41,6

43,5

45,1

40,1

38,3 38,537,5

38,938,2 37,9

37,036,1

30,0

32,0

34,0

36,0

38,0

40,0

42,0

44,0

46,0

1980

1985

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

Fonte: Conta Nacionais 2004/Cepal

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177

À medida que os salários dos trabalhadores foram perdendo, ao longo dos anos 1990,

relevância na realização da produção brasileira, quer seja pela ampliação do consumo de luxo

e/ou das exportações ou até mesmo pelo processo de desendustrialização nacional, verificou-

se uma forte desvalorização da força de trabalho, em função da ampliação do “exército

industrial de reserva” decorrente do baixo crescimento econômico e da reestruturação

organizacional. Essas características - do novo padrão de acumulação brasileiro desarticulado

social e setorialmente - aprofundaram ainda mais as desigualdades sociais (Tabela 4.4),

ampliando, por um lado, o processo de exclusão social histórico brasileiro e, por outro, a

transferência de renda e riqueza para as frações dominantes, principalmente, pela via dos

títulos públicos e pelo aumento da superexploração do trabalho.

Os dados da Tabela 4.4 a seguir mostram de forma detalhada a evolução temporal da

desigualdade no Brasil e seus aprofundamento após uma década de ampliação da

desarticulação setorial e social dos anos 1990. A grande diferença entre as rendas urbanas dos

mais ricos e dos mais pobres no Brasil, ao longo dos últimos 40 anos, foi o reflexo da

desarticulação da economia brasileira, que se traduz mais concretamente na exclusão social.

Nem mesmo nos períodos de menor desarticulação, como o ocorrido ao final do II PND

(1980), verificou-se uma melhoria nas desigualdades sociais, uma vez que, entre 1960 e 1980,

ocorreu uma piora na desigualdade de renda urbana, pois a participação dos 10% mais pobres

na renda manteve-se inalterada (1,2%), enquanto a participação dos 10% mais ricos aumentou

de 39,7% para 47,9%. Desse modo, a renda média dos 10% mais ricos, que era 33,9 vezes a

dos 10 % mais pobres aumento para 40,6 vezes em 1980. A situação se agravou ainda mais

nos anos 1980, pois a renda urbana dos 10% mais ricos alcançou 60,1 vezes a renda dos 10%

mais pobres em 1990. Isso ocorreu em virtude da crise socioeconômica que se prolongou por

toda década com a crise (GONÇALVES, 1999). Nos anos 1990, com a implementação do

ajuste estrutural neoliberal, ocorreu um grande salto concentrador, uma vez que a renda

urbana dos 10 % mais ricos chegou a 78,3 vezes a renda dos 10% mais pobre em 2001.

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Tabela 4.4 - Distribuição da renda urbana no Brasil, segundo os decis: 1960-2001 (em porcentagem)Decil 1960 1970 1980 1990 2001 Primeiro 1,17 1,16 1,18 0,78 0,66 Segundo 2,32 2,05 2,03 1,64 1,53 Terceiro 3,42 3,00 2,95 2,37 2,27 Quarto 4,65 3,81 3,57 3,19 3,06 Quinto 6,15 5,02 4,41 4,16 4,00 Sexto 7,66 6,17 5,58 5,50 5,19 Sétimo 9,41 7,21 7,17 7,22 6,82 Oitavo 10,85 9,95 9,88 10,29 9,53 Nono 14,69 15,15 15,36 16,37 15,29 Décimo 39,66 46,47 47,89 48,47 51,69 Fonte: Gonçalves (1999, p. 66) para os anos de 1960,1970 e 1980 e Cepal para os anos de 1990 e 2001.

Ao longo da história brasileira não se configurou, em nenhum momento, nem mesmo na fase

de industrialização “pesada brasileira”, uma hegemonia ampla que conseguisse construir um

projeto nacionalista de criação de uma economia articulada setorial e socialmente. A não-

formação dessa estrutura de poder impediu a construção de estruturas institucionais (Estado

nacional forte ou “prussiano”) e dinâmicas produtivas nacionais que conseguissem integrar as

diversas frações das classes (dominantes e dominados), por meio de um sistema econômico

nacional. Atualmente, a possibilidade de construção de um sistema econômico nacional

articulado é bastante reduzida devido à supremacia das frações financeiras internacionais no

processo de acumulação brasileiro que, na verdade, tem gerado a ampliação da desarticulação

da economia nacional. Francisco de Oliveira, em passagem do Ornitorrinco, descreve com

bastante pessimismo a atual configuração socioeconômica do Brasil:

O ornitorrinco [Brasil] é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial proporcionava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as “acumulações primitivas”, tais como as privatizações propiciaram: mas agora como o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são, propriamente falando “acumulação”. O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voragem da financeirização, uma espécie de “buraco negro” [...]. O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão. (OLIVEIRA, 2003, p. 150).

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CONCLUSÃO

Esse estudo não teve como objetivo chegar a conclusões definitivas a respeito da atual

configuração do capitalismo (pós-década de 1970), nem da realidade socioeconômica

brasileira. Na verdade, buscou-se aqui muito mais apontar para novas pesquisas teóricas e

históricas do que chegar a resultados conclusivos acerca do contexto nacional e internacional

hodierno. Não obstante, é possível apresentar algumas formulações da realidade

contemporânea a partir dos elementos desenvolvidos ao longo desta pesquisa.

Sendo assim, procurou-se ao longo deste trabalho mostrar que os elementos constitutivos do

capitalismo contemporâneo, assentados na reestruturação produtiva e na globalização

financeira, em articulação com a (des)regulação neoliberal e com o “novo imperialismo”,

propiciaram a retomada do controle social pelo capital em virtude do processo de

fragmentação da classe trabalhadora e da desvalorização da força de trabalho. Entretanto, tais

modificações criaram impedimentos à acumulação produtiva, já que reduziram a demanda

agregada, tanto pelo lado do consumo dos trabalhadores como pelo dos investimentos. A

situação problemática à dinâmica da acumulação capitalista foi contornada fragilmente

através da ampliação da acumulação centrada nas finanças viabilizada pelos Estados nacionais

centrais.

O padrão de acumulação predominantemente financeiro foi e é posto em prática num contexto

de “convivência” com os problemas de realização das mercadorias e, principalmente, com o

aprofundamento do quadro social desigual entre os países (“novo imperialismo”). Este padrão

provocou transformações na natureza dos ciclos econômicos, tornando-os cada vez mais

curtos e erráticos, gerando assim, crises econômicas recorrentes, principalmente, nos países

periféricos. Destacam-se entre estes os latino-americanos, que se integraram, um a um,

passivamente à dinâmica financeira através dos programas de ajustes neoliberais que abriram

espaço para os movimentos de capitais especulativos e voláteis na região.

As medidas postas em prática visando ao enfrentamento da queda da taxa de lucro, decorrente da

crise estrutural da década de 1970, estão inscritas em iniciativas de contra-tendência. Entretanto,

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longe de redirecionar o sistema para uma nova era de prosperidade, o que se presencia são

transformações econômicas e políticas que espelham o impasse em questão e, por isso, são

portadoras de conteúdos profundamente conservadores e regressivos. As supostas novidades

progressistas da utopia da globalização, tanto econômicas quanto políticas, não se sustentam à

luz de uma análise mais rigorosa que parte das contradições fundamentais deste modo de

produção.

Dados os elementos presentes na configuração do capitalismo atual, não existem elementos

suficientes que ensejem fortes potenciais de agravamento ou explosão (crise de dominação),

pois a luta de classes, principal alternativa de saídas “externas” ao capital, foi arrefecida ao

longo dos anos 80 e 90. Contudo, existe uma crise no plano econômico, atrelada aos

problemas na acumulação produtiva, que poderia, em algum momento, alcançar um estágio

político de ruptura. Este seria uma projeção não muito clara para o curto-prazo, em virtude da

grande penetração da ideologia burguesa neoliberal no imaginário dos operários e de seus

movimentos. Isso, por sua vez, vem dificultando fortemente a configuração de movimentos

dos trabalhadores, impedindo, com isso, que a “classe em si” possa se constituir numa “classe

para si”.

No que concerne a atual configuração da América Latina, a análise aqui efetivada procurou

identificar as razões que conduziram à posição de degradação social e econômica trilhada pela

grande maioria dos países latino-americanos desde os anos 70 do século passado. E as razões

profundas explicativas dessa situação só puderam ser descortinadas ao se proceder a uma

análise totalizadora na qual a América Latina foi compreendida como parte inelutável do

sistema capitalista internacional. Dessa forma, pode-se concluir que o quadro econômico e

social presenciado nos países da região, de forma quase homogênea, nada mais significa do

que a expressão do novo padrão de acumulação capitalista sob a égide das finanças.

É preciso ressaltar que as transformações nas relações de poder entre países centrais e

periféricos foram e são fruto de um “novo imperialismo”, que vem ampliando a

hierarquização entre os países e elevando, com isso, o poder econômico e político dos países

centrais, mais especificamente dos Estados Unidos. Assim, os EUA, desde meados dos anos

1980, têm procurado reforçar sua posição de supremacia do sistema-mundo capitalista,

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181

através de fundamentos políticos, militares e ideológicos, principalmente após a derrocada da

União Soviética e, mais recentemente, após o atentado de 11 de setembro de 2001.

Assim, como parte do novo padrão de acumulação capitalista, a integração da América Latina

à nova dinâmica do capital deu-se, principalmente, através da constituição de um

endividamento ao mesmo tempo crônico e estrutural, através da retomada das “exportações de

capitais” dos países centrais para os países dependentes, as quais adquiriram duas formas, a

saber, primeiramente, os empréstimos externos – na década de 1970, e, depois, já no início da

década de 1990 – após a escassez do financiamento externo provocada pela crise da dívida

latino-americana dos anos 1980-, os movimentos de capitais especulativos e voláteis. A

impossibilidade de se desatrelar do endividamento permanente foi cristalizada mediante a

aplicação dos ajustes estruturais neoliberais emanados dos países centrais, medida esta que

garantiram a reprodução do endividamento como elemento estrutural da acumulação.

No que tange à realidade brasileira atual, a apreciação aqui realizada procurou mostrar - a

partir dos movimentos e das alianças entre as frações dominantes nacionais e forâneas e seus

rebatimentos na atual configuração do Estado nacional e na adoção de determinadas políticas

econômicas - os efeitos deletérios do ajuste estrutural brasileiro (Plano Real) na estrutura

setorial (especialização regressiva do aparelho produtivo) e social (redução do peso dos

salários na economia, desestruturação do mercado de trabalho e ampliação da desigualdade

social). Para tanto, utilizou-se do referencial teórico da (des)articulação setorial e social, uma

vez que este instrumental possibilitou a vinculação entre os elementos da demanda efetiva e

das disputas e das relações de poder entre as classes e suas frações.

Na verdade, o novo padrão de acumulação brasileiro dominado pelas finanças, configurado na

década de 1990, ampliou a desarticulação setorial e social - que havia se reduzido com a

consolidação da indústria “pesada” brasileira -, provocando, com isso, enormes transferências

de renda e riqueza da maioria da população para as frações dominantes, sobretudo, as

financeirizadas. A atual dinâmica socioeconômica expandiu ainda mais a ingente e histórica

exclusão social no Brasil, além de neutralizar qualquer possibilidade de configuração de um

sistema econômico nacional articulado. Cabe ressaltar que a dificuldade histórica do Brasil

em construir uma economia articulada setorial e socialmente esteve e está atrelada à não-

configuração de uma hegemonia ampla nacional que conseguisse integrar as diversas frações

das classes (dominantes e dominados).

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Dentre os novos eixos de pesquisas teóricas e históricas a respeito do entendimento e dos

rumos do capitalismo e da realidade socioeconômica brasileira, que não puderam ser

realizados neste trabalho, tendo em vista o tamanho limitado deste tipo de pesquisa e as

limitações do próprio pesquisador, podem-se destacar:

i) Em que medida o “trabalho imaterial” estaria modificando os processos produtivos e as

relações sociais de produção, configurando uma nova sociabilidade?

ii) Até que ponto a utilização do conceito de (des)articulação social e setorial, aqui adotado,

poderia ajudar no entendimento da capitulação do primeiro governo de esquerda da história

brasileira (Lula: eleito em 2002) diante das elites dominantes brasileiras e forâneas?

iii) E qual seria a possibilidade construtiva atual de uma nova sociabilidade “além do

capital”?

Por fim, é preciso ressaltar que atual configuração socioeconômica brasileira e mundial nos

remete a uma situação de profunda letargia e de pessimismo quanto aos rumos da sociedade.

Entretanto, precisamos continuar sonhando e acreditando nos nossos sonhos, sem perder de

vista a realidade concreta. “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de

observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar

escrupulosamente nossas fantasias” (LÊNIN - Que fazer?).

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