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Eduardo lourenço

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"Portugal como Destino, Seguido da Mitologia da Saudade" is an illustrated book about the work of the portuguese writer Eduardo Lourenço, who won a Premio Pessoa in 2011. This book was hand sewn.

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Mitologia da Saudade

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Eduardo Lourenço

Portugal como Destinoseguido de

Mitologia da Saudade

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Conceito, Design e Ilustrações de Ana Pereira, Cristiano Silva e Tatiana Louro, sob a orientação de Joana Lessa (coord.) e Gabriela SoaresNovembro 2013Edição: ESEC- Universidade do AlgarveImpressão: MulticópiasExemplares: 1500Reservados os direitos por Universidade do AlgarveEstrada da Penha, 8005-139 FaroTelefs. 289 800 100/900Fax 289 800 061 —Email: [email protected]

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Ensaísta português, nasceu a 29 de Maio de 1923, em S. Pedro de Rio Seco, Almeida. Formado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Univer-sidade de Coimbra, onde foi professor entre 1947 e 1953. Tendo marcado durante cinquenta anos, com especial ressonância no pós-25 de Abril, o pensamento portu-guês, a voz de Eduardo Lourenço exerce um profundo e consensual fascínio sobre a intelectualidade portuguesa. Nesta obra, sobre o modo como esse destino é miti-camente sobre determinado. Considerando, do exteri-or (português fora de Portugal), o destino português, Eduardo Lourenço consegue, fazer concorrer todo o seu saber (histórico, filosófico, literário), para formu-lar, no fim de século, sem qualquer intuito doutrinário, uma imagem imparcial do ser português, na sua wsin-gularidade e universalidade, espelho, onde, observan-do-se, pode conhecer-se e aceitar-se “tal como foi e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa im-perfeição.” (Portugal Como Destino Seguido de Mito-logia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 83).

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Na verdade, não temos saudades, é a saudade que nos tem, que faz de nós o seu objecto. Imersos nela, torna-mo-nos outros. Todo o nosso ser ancorado no presente fica, de súbito, ausente.(Mitologia da Saudade)Eduardo Lourenço

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Portugal como DestinoDramaturgia cultural portuguesa

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É tentador assimilar o destino de um povo ao do in-divíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista é, natural-mente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmação e desaparição. Um povo tem igualmente uma história e, por comodidade hermenêutica, pode ser tentado a ler o seu percurso em termos subjectivos de afirmação de si, de presença mais ou menos forte entre os outros ou de existência precária ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como fini-to e irreversível. O tempo de um povo é trans-histórico na própria medida em que é «historicidade», jogo im-previsível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente e que o futuro reorganizará de maneira misteriosa.Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa convicção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos «identidade».

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Mas só o que a cada momento da vida de um povo aparece como paradoxalmente inalterável ou subsis-tente através da sucessão dos tempos confere sentido ao conceito de identidade. Podemos assimilar essa estranha permanência no seio da mudança àquilo que os românticos alemães designaram, para desespero da historiografia iluminista, como «alma dos povos».A realidade efectiva de um povo é aquela que ele é como actor do que chamamos «história». Mas o con-hecimento — em princípio impossível ou inesgotável — da realidade de um povo enquanto autoconhec-imento do seu percurso, tal como a historiografia se propõe decifrá-lo, não cria nem pode criar o sentido desse percurso. Não é a pluralidade das vicissitudes de um povo através dos séculos que dá um sentido à sua marcha e fornece um conteúdo à imagem que ele tem de si mesmo. A história chega tarde para dar sentido à vida de um povo. Só o pode recapitular. Antes da plena consciên-cia de um destino particular — aquela que a memória, como crónica ou história propriamente dita, revisita —, um povo é já um futuro e vive do futuro que imagi-na para existir. A imagem de si mesmo precede-o como as tábuas da lei aos Hebreus no deserto. São projectos, sonhos, injunções, lembrança de si mesmo naquela época fundadora que, uma vez surgida, é já destino e condiciona todo o seu destino. Em suma, mitos.

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O nascimento de Portugal como estado inscreve-se no movimento geral da reconquista cristã do Islão, que só terminará com a conquista de Granada, em 1492. Portugal é precisamente o primeiro reino da Península a libertar-se da presença do Islão e a ocupar, desde os fins do século XIII até hoje, a mesma tira estreita à bei-ra do Atlântico, a outra fronteira sem fim que mais tarde fará parte do seu espaço real e mítico de povo descobridor.A hora de nascimento de um povo — que pode ser ou não a da sua cultura — não se compara a nenhuma outra. A de Portugal foi ao mesmo tempo simples e interminável. Ainda hoje, olhando o mapa da Penín-sula Ibérica, ocupado quase todo com a grande man-cha da Espanha, custa a perceber como só o pequeno rectângulo português se constituiu e, sobretudo, per-severou ao longo de oito séculos como uma nação politicamente independente., com este estatuto, um dos mais antigos e coerentes estados da Europa. Com-preende-se mal que o pequeno reino de Portugal do século XII tenha resistido ao destino comum de todos os pequenos reinos da Ibéria, seus contemporâneos ou anteriores, como os reinos de Aragão, de Castela e Leão, ou do condado da Catalunha, incorporados com o tempo à «grande Espanha».

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Claro está que a história da Península anterior à con-stituição tardia dessa grande Espanha — a dos Reis Católicos, de Carlos V e de Filipe II — explica ou per-mite tornar mais inteligível a insólita excepção portu-guesa. Do século XII ao século XV, período que vê a ascensão irresistível e hegemónica de Aragão e Cas-tela no espaço ibérico e a que, com dificuldade, só o pequeno reino lusitano escapa, a situação de Portugal, as suas forças, os seus recursos, o seu relacionamen-to com outros reinos da Península ou da Europa não eram muito diversos dos da Catalunha, de Aragão, seu aliado privilegiado, ou da própria Castela e Leão de que se separou, seu adversário potencial. Isto pode explicar, em parte, o aparentemente insólito milagre de uma sobrevivência política e de uma autonomia histórica como a de Portugal. Nem por isso o seu caso é menos estranho e como tal foi vivido sempre, não só pelos que consideram do exterior o destino português, mas so-bretudo, e permanentemente, pelos próprios Portugueses.

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Quando, nas primeiras décadas do século XIX, Por-tugal, pela pena dos primeiros representantes de um novo Portugal — saído da revolução liberal —, faz o balanço da sua situação no mundo, isto é, na Europa, e, ao mesmo tempo, se volta para o passado para saber se ainda terá futuro, fá-lo já como se não fosse Europa, ou então como se fosse uma outra espécie de Europa. É então que se dá conta de até que ponto a sua situação é singular. E dessa singularidade faz parte o estran-híssimo fenómeno, mais do que paradoxal, de ter sido durante séculos uma nação que viveu e se viveu sim-bolicamente como uma ilha, sendo ao mesmo tempo um povo que desde os séculos XV e XVI se instalara no papel de descobridor e colonizador, em terras de África, do Oriente e do Brasil. Nesse diagnóstico não era muito claro que essa situação de país isolado — e por isso em perigo — e esse alheamento, pelo menos relativo, do movimento geral da civilização e da cul-tura europeias tinham uma relação íntima com esse facto, ainda hoje insólito, de uma pequena nação se ter convertido num império. Só hoje, no fim desse império, aparece com outra evidência que a nossa situação de «ilha», quando nos consideramos em relação à Europa, está intimamente conexa com o nosso destino imperial.

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Durante séculos, nem para nós nem para os outros era Portugal mais do que «um país que tinha um império». E esse estatuto, que foi — e continua sendo na nos-sa memória — o identificador supremo de Portugal, convertera-nos na ilha histórica mítica por excelência da Europa. O Império Português não foi um mero prolongamento da «pequena casa lusitana» (primeira grande fórmula camoniana de Portugal como ilha), um Portugal objectivamente mais poderoso e maior por possuí-lo no espaço europeu, ou sob o olhar eu-ropeu, que era então «o olhar do mundo». Também foi algo disso, no século XVI e um pouco no século XVIII, mas foi sobretudo, para o Portugal europeu, um refúgio. Com os Descobrimentos e as suas consequências — estabelecimentos na costa da Índia, em Malaca, na China, povoamento de ilhas atlânticas, colonização e povoamento do Brasil, mais tarde, ou simultanea-mente, presença em Angola, Guiné, Moçambique —, Portugal entrou num tempo histórico que lhe alterou não só o antigo estatuto de pequeno reino cristão pen-insular, entre outros, mas a totalidade da sua imagem. Em sentido próprio e figurado, passou a ser dois, não apenas empiricamente, mas também espiritualmente. Camões, que conferiu à nova idade de Portugal a sua máxima expressão simbólica e épica, conhecedor desses «dois Portugais», falou da «alma [portuguesa] pelo mun-do repartida». Na verdade, é de «visão» que se trata.

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O novo tempo imperial português — o da nossa cul-tura daí em diante votada à glosa interminável desse tempo, entre todos «glorioso» — não se acrescenta, como fizeram os reis de Portugal ao atribuírem-se os títulos das suas novas conquistas1, ao «velho tempo português», dilacera-o. E, antes de tudo, metamorfos-eia-o e com essa metamorfose instala Portugal e a sua cultura num espaço fechado, embora de âmbito uni-versal. Como se de súbito nos tivéssemos transforma-do numa autêntica «grande nação», sem mais passado que o de Roma ou de Alexandre com o qual pudésse-mos comparar o nosso, encerrámo-nos magicamente na esfera do Império e de lá olhámos e medimos, com os olhos de sonho que o Império não menos de sonho nos dera, essa Europa a que, real e simbolicamente, primeiro do que ninguém, voltáramos as costas.

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Com o esgotamento — ou a relativização — da ideo-logia própria das Luzes seria tentador inverter, como o faz o sector mais assumidamente «reacionário» do pensamento português, não só suspeitar, mas inverter o diagnóstico da nossa célebre «decadência» de País da Estupidez. Não têm faltado provocadoras e brilhantes tentativas nesse sentido. O exercício é fácil, mas eiva-do de tanto ressentimento cultural e ideológico como o era o processo, mais justificado pelos factos, do nosso «atraso» cultural, levado a cabo por Verney, Antero e António Sérgio e seus seguidores. Felizmente que, desde há meio século, um conhecimento mais sério dos nossos séculos XVII e XVIII permite sermos mais justos para com eles, isto é, para com nós próprios, como cultura portuguesa. Não há dúvida de que uma boa parte da cultura portuguesa funcionou então em termos de arcaísmo, saber repetitivo ao serviço de uma ideologia religiosa — máscara da religião — em esta-do de excepcional hagiografismo ou de autodefesa em relação ao discurso não menos ideológico, mas mais autocrítico e criativo, da Europa protestante, política e economicamente dominadora.

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Mas este fechamento, tão bem comparado mais tar-de, por Oliveira Martins, ao de uma «lamassaria» e Portugal a uma espécie de Tibete europeu, era, no outro lado do Atlântico, lenta construção de um futu-ro país-continente, de onde nos finais do século xvii, nos viria um ouro mal e bem empregado (do ponto de vista da metrópole), e, no inteiro espaço portu-guês, em termos de cultura, condição daquilo que é, a vários títulos, a mais original manifestação estética portuguesa: o barroco. Fenómeno europeu, do cato-licismo contra-reformista, sem dúvida, mas a que a circunstância portuguesa, mesmo no âmbito de uma evidente decadência política, emprestou um esplendor universal. De Macau a Belo Horizonte, as igrejas e os palácios daqueles séculos falam ainda hoje uma cultu-ra de glo¬rificação onírica de nós mesmos e da nossa maneira extasiada, feérica e lúdica de sermos cristãos sem tragédia cristã. E este «barroquismo» histórico é uma das componentes, e não das menos significativas, da nossa dramaturgia cultural. Com os Sermões, de Vieira, o espaço dourado do nosso barroco, que foi também a nossa maneira de esconder e transfigurar a morte, foi o nosso real e único Quinto Império.

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Nem o romantismo, nem, em geral, o século xix se reclamaram desse barroco e menos ainda do Portu-gal onde representara uma cultura em estado de feli-cidade pública — com a tragédia do terramoto mais célebre do século no meio —, plena de peregrinos, de culto divino profanizado e de culto profano diviniza-do — evocado magistralmente por Oliveira Martins e ressuscitado com ironia no mais célebre livro de José Saramago, O Memorial do Convento. Antes de ser para nós a expressão de um novo Portugal, o ro-mantismo foi, na Europa além-Pirenéus, a expressão de um certo cansaço europeu, após o acontecimento capital da história política do Ocidente — a Revolução Francesa e a sua consequência napoleónica — que põe termo ao Ancien Régime e que, na ordem da cultura, entrelaçou a epopeia com a nostalgia. Mas, sobretu-do com a Alemanha e na Alemanha, fez da cultura, e não da política, a essência da nação. É neste sentido, e não no meramente ideológico ou filosófico, que o ro-mantismo é a «crítica» do século das Luzes, que já fora utópico, mas não onírico, como ele o será. Depois do Renascimento, o romantismo foi (é) a maior revolução cultural do Ocidente. Melhor dizendo, espiritual.

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A Revolução Francesa consagrara os direitos do homem — seus direitos de homem e cidadão —, o ro-mantismo instala a concreta humanidade no coração do mundo. Como Kant, seu inocente pai espiritual, o propusera, o Eu é a forma do universo. Mas um Eu universal e singular ao mesmo tempo.Nenhuma revolução cultural nos veio mais de fora — no sentido próprio e figurado — que o romantismo. Por isso mesmo nos foi ele outra coisa bem diferente da que pôde ser nos países de cultura protestante, de que é a sublimação e a conclusão natural. Nós adaptámos o romantismo a uma cultura e a um país que não tivera «Luzes» — não se pode chamar assim ao despotismo iluminado de Pombal — e adoçámos com ele uma rup-tura política que viera nas bagagens de Napoleão em 1807 e em 1820 permitira o difícil triunfo do liberalismo.Pela primeira vez, em séculos de unanimismo re-ligioso, cultural, político, ético, desde as invasões napoleónicas até ao definitivo estabelecimento da monarquia constitucional (1834), Portugal discute-se. Por conta do que é ou foi, por conta do que não é e quer ser: um país europeu, com o mesmo ou análogo modelo político e cultural corrente na Europa, Desde então, de uma certa maneira, Portugal e a sua cultura nunca mais deixaram de se discutir.

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Com o rei longe, embora sempre amado e obedeci-do no período da regência, Portugal e os Portugueses, pela primeira vez dividi-dos ideologicamente — ao menos uma pequena mino-ria —, começam a preocu-par-se e a ocupar-se com o destino de Portugal. Como se fossem já cidadãos e não meros súbditos. É a esse título, revoltados contra a tutela inglesa de Beresford e invocando a sua fidelidade ao rei ausente e às tradições do País, que em 1820 levam a cabo a Revolução Liber-al, tomando como modelo político a Espanha, a das cortes de Cádis de 1812.

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Com o voto da Constituição de 1822 nasce o liberalis-mo em Portugal e pede-se ao rei que regresse para ju-rar a Constituição. A semente estava lançada, embora fossem precisos doze anos, a única das nossas guerras civis e o exílio dos nossos poetas futuramente român-ticos, para separar o Portugal velho do Portugal novo.Separação difícil na ordem política, mais difícil, mas, curio-samente, radical na ordem económica, teria de ser, por assim dizer, complexa e até impossível na es-fera do que ainda não se chamava cultura. Tratava-se, simplesmente, de questionar a mentalidade nacional, conservadora na ordem dos costumes, autoritária no plano da justiça, dogmática no domínio das ideias, in-tolerante em matéria de crença — como o será no da descrença quando chegar a sua hora —, horizonte e matriz da visão portuguesa do mundo.

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Nos meados do último século, Portugal começa a sen-tir-se, sem mórbido sentimento de inferioridade, pro-vincial e provincianamente, um pequeno país, politi-camente pacífico, esforçando-se por acompanhar uma Europa já em plena segunda revolução industrial, sem imaginar sequer o que os seus efeitos irão induzir na ordem dos comportamentos, das ideias, das crenças, pelo menos nos seus centros nevrálgicos, Lisboa e Porto, e na sua única cidade universitária, Coimbra. Portugal não está ainda na Europa, mesmo se a nova Europa da máquina de vapor e do telégrafo, da maior circulação dos jornais, está já dentro das suas fron-teiras. Na década de 60, Paris, então capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. Em sentido próprio, Portugal acede um pouco ao coração da Europa. Por-tugal, isto é, a sua escassa classe financeira, industrial, aristocrática e política, mas também, e de uma manei-ra paradoxal, a sua classe intelectual. É nesse momen-to exacto que uma nova geração, como se acabasse de descobrir um tesouro caído do céu, descobre que não é europeia, isto é, que não sente, nem conhece, nem pensa, nem cria como podia fazê-lo se estivesse «real-mente» nessa Europa que lhe envia as suas criações e os ecos reais ou fantásticos do que toda uma juventude vai nomear a «vida superior», a da Civilização, com maiúscula.

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Em menos de duas décadas, o panorama cultural português sofreu uma metamorfose que só pode com-parar-se à que o impacto do Renascimento italiano produzira entre nós no século XVI. Numa perspectiva quase só literária, o nosso romantismo reatara o antigo diálogo com a Europa. De 1870 a 1890, esse diálogo tornou-se imperativo e foi vivido e ilustrado, como Antero o havia anunciado, em termos que poderíamos rotular de «sociológicos» de inspiração diversa e por vezes inconciliável ao nível dos princípios, que iam de Proudhon a Auguste Comte, mas que obedeciam a um leitmotiv comum: europeizar Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. A europeização fazia-se em termos pragmáticos, pe-los progressos induzidos pela revolução industrial em curso, a que introduzia em Portugal, como no resto da Europa, ou no longínquo Far West, o caminho-de-fer-ro e o telégrafo, a especulação financeira, uma tímida indústria. Mais difícil, nos termos em que a Geração de 70 e, com ela, a maioria da classe liberal a deseja-vam, era a revolução cultural que o progresso técni-co supunha, a transformação do ensino, a criação de uma tradição científica, o gosto da experimentação, condições da liquidação do passado e da construção de um novo Portugal.

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Ora, como era fatal, os estigmas denunciados por Antero eram tudo menos estímulos, eram os próprios obstáculos a essa europeização mítica. Nós não podía-mos, por artes mágicas, transformar-nos nos Claude Bernard, nos Charcot, nos Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet, nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa geração lia com paixão, mas também como frutos excepcionais de uma cultura que lhes caía em casa literalmente do céu.É difícil imaginar hoje o que teve de exaltante e de perverso esse contacto, literalmente miraculoso, não filtrado por nenhuma recepção universitária digna desse nome, na plêiade de literatos às portas de quem a Europa vinha bater com tanto fascínio e exigência. A «normalização» das nossas relações com essa Eu-ropa, sobretudo a da ciência e da técnica, levará um século a efectuar-se. E, provavelmente, só a crise do paradigma «europeu», tão ambiguamente mitificada pela Geração de 70, nos permite hoje essa consoladora convicção. Para essa geração, que se converteu num mito cultural para as gerações seguintes, essa ilusão nunca lhes foi consentida. Nenhum dos seus grandes representantes, Antero, Eça de Queirós, Oliveira Mar-tins, talvez mesmo Teófilo Braga, morreu convencido de que o Portugal do seu tempo tinha «apanhado» o famoso comboio europeu.

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O paradoxo da Geração de 70, que se dera como missão «europeizar» Portugal, libertá-lo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um mod-elo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Ber-lim a sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, foi um retrato deprimente da sociedade portuguesa, o de um Portugal não apenas pouco ou nada «europeu», como essa geração o sonhava ou pretendia, ao menos nas suas classes dominantes ou instituições represen-tativas (Igreja, Parlamento, Banca, Universidade), mas mórbida e mimeticamente fascinado por essa mesma Europa que ele não era, mas oniricamente imagina-va ser. Nunca se tirou a Portugal e à sua cultura um retrato mais cruel do que aquele que Eça de Queirós deixou, com o rasto indelével do génio satírico e realis-ta que foi o seu, nos mais famosos romances da nossa literatura. O facto de os retratistas estarem também inscritos no retrato em nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar sem piedade sobre nós mesmos. Até porque a ironia e a auto-ironia, cada vez mais pre-sentes nessa descida ao coração do tempo português, redimiam pouco a pouco essa espeleologia, para não dizer esse exercício de anatomia, sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da lição, que era para os seus autores uma mistura indiscernível de júbilo e macer-ação, acabou por ressuscitar e mesmo por subir ao céu.

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Talvez devido ao «nosso tempo longo», à nossa provi-dencial falta de pressa, não esquecendo a metamorfose profunda que Portugal sofrera durante o longo aggior-namento salazarista — sobretudo sob o mal estudado reino dos «engenheiros» e «economistas» dos anos 60 e 70. O facto é que evitámos os messianismos de imi-tação e os desvairos caseiros, mais fáceis de domesti-car. Por fim, entrámos na Europa como se sempre lá tivéssemos estado, ao mesmo tempo que cultivamos, oniricamente, um Império de quinhentos anos como se nunca de lá tivéssemos saído.Neste momento, problematizar o que nos aconteceu neste século é uma tentativa que só a título de memória se explica. A nova historiografia — e o sucesso que várias e excelentes colecções do nosso passado teste-munham — se encarrega desse «dever de memória». Tanto mais que, depois da magnífica historiografia do século XIX — e deixando de lado a fixação épi-co-marítima dos Descobrimentos —, passámos meio século a sonharmo-nos. Mas do que se trata agora não é de «história» que a vários títulos está saindo da História ... É mesmo de memória.E, sobretudo, de mitologia. Embora pouco sebastian-ista, a do «salazarismo» não se presta ainda a mais re-vivalismo que o dos seus insubmersíveis valores e tem contra ela o ter perdido a África. Quanto à da democ-racia, tem contra ela o não a ter salvo.

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Num quarto de século, o novo regime converteu o País numa Disneylândia à procura de Portugal. Bastam-nos três heróis efémeros para entreter a Holà histórica na-cional ... Os top models, as spice girls, não importa o quê, ou quem, faz o resto. Não é o famigerado «fim da história». E o interminável começo das «histórias sem fim» destinadas a esquecer a história. Sobretudo a nossa, a que nos incomoda, a que não celebra noite e dia o celebérrimo «esplendor de Portugal» .”“ O homem que se encarregou de «arrumar a casa», tanto política como economicamente, escudado em méritos académicos reconhecidos e sustentado pela genérica opinião católica, chamou-se Salazar. O sala-zarismo tem uma história que está longe de estar feita. Reduzi-lo a uma mimética versão do fascismo italiano — do qual adoptou tibiamente o esquema corpora-tivista não é falso, sobretudo nos seus começos, mas esquece o essencial. O seu ideário nem é laico nem de matriz socializante. A doutrina social da Igreja é a sua referência e os valores católicos, mais que familiares num país «organicamente» católico e proselitista que durante séculos não separou a sua actividade coloni-zadora da actividade missionária, bastavam para sed-imentar o seu específico nacionalismo autoritário. A sua oposição determinada ao regime dos partidos — sem ter jamais institucionalizado o «partido único» — rasurou a prática democrática, sem nunca a ter posto fora da lei.

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Salazar, que não podia prescindir da aliança inglesa — e, em menor medida, da francesa —, não queria que confundissem o seu Estado Novo com o fascismo e muito menos com o nazismo. Na medida do pos-sível, foi um ditador sem poderes oficiais que conser-vou até ao fim a ficção de uma República plebiscitada onde o presidente da Re-pública, símbolo da Nação, conservava, formalmente, todos os poderes.”“Em 1918, o primeiro de uma longa série de «caudi-lhos» dispostos a porem ordem na «desordem» eu-ropeia estabelece uma breve ditadura em Portugal. Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido assas-sinado um ano depois, transformou-se num dos raros personagens lendários da medíocre história portu-guesa deste século. Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em plena aurora do cinema, foi a primeira star da nossa moderna mitologia. Suscitou paixões, de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portu-guesa». Tínhamos, na tradição de Oliveira Martins, um possível Bismark. Morto, tivemos uma referência para uma nova ordem.

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Sob a designação de Estado Novo, trazida às fontes baptismais por uma intervenção militar de aparên-cia caótica, essa ordem durará um bom meio século. Comparada com as «novas ordens» da Europa, foi pouco totalitária. A partir de 1936, data crucial do nos-so século, o seu dispositivo constitucional, ideológico, ético, repressivo, de assumido teor anticomunista, assegurou-lhe, se não perfeita tranquilidade, uma lon-gevidade invejável. Até aos sobressaltos dos anos 60, conspícuos jornais do Ocidente referiram-se ao Estado Novo como ao exemplo mesmo de «ditadura sábia».

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Provavelmente, embora noutros termos, esta é a situ-ação da maioria das nações europeias — todas vel-has, mesmo as que parecem novas — implicadas na edificação de um inédito organismo histórico-político chamado Europa. Talvez só a Inglaterra lhe escape, que nunca foi nação «só europeia», ou a Itália, que nunca foi nação. Todas as outras, a começar pela mais orgânica de todas, em termos políticos, a França ou a Alemanha, poderosa massa etnocultural, conhecem no seu interior as dores inéditas de uma mudança de ser, estar, actuar no mundo que ninguém sabe como assumir. O caso de Portugal é único. Nunca esteve acompanhado na definição do seu destino. Está agora acompanhado de mais, de certo modo sobreprotegido, contente com a companhia e as ajudas que recebe, que o compensam do Império perdido e, aparentemente, não o privam de nada.Como no célebre monólogo de Gil Vicente, pode ocupar com desembaraço os lugares de «tudo» e de «ninguém». Mas, obscuramente, no meio de orgias pagas com o din-heiro dos outros, pela primeira vez, Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o que é como destino.

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Com o triunfo da Revolução dos Cravos muita gen-te soube com espanto que o Partido Comunista Por-tuguês, que a propaganda do regime diabolizara em termos grotescos, pensando saber o que fazia, tinha um número exíguo de militantes. Mas este facto só toma mais extraordinária a amplitude, para não dizer a hegemonia quase absoluta, em termos de discurso popular difuso, mas mais eficazmente em cultura es-truturada dominante, da versão portuguesa do marx-ismo. Nada ou pouco de teoria num país avesso a elu-cubrações filosóficas, com um teor de analfabetismo superior ao do resto da Europa, impossibilitado, por assim dizer, pela própria maneira de vestir de aceder a níveis de educação superiores à instrução primária. A «divisão de classes» estava inscrita nas caras, nos usos e nos costumes. E assim se manteve até aos anos 60, começo das guerras ocultadas de África e das não menos ocultadas emigrações clandestinas da imensa massa de trabalhadores de estatuto medieval, como com bastante verdade e muito fervor as descrevera, desde os anos 40, a literatura portuguesa.

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E é aqui que o sintagma «Portugal como destino» ad-quire a sua pertinência. De uma certa maneira, como a última exposição do século o mostrou — ao menos em parte e através do seu conceito «oceânico» —, o mundo está todo em Portugal e Por-tugal em parte alguma. Parece o sonho de Pessoa, mas não é. É mesmo o contrário.A história e o destino de Portugal nunca foram trági-cos fora da tragédia adiada que a vida é. Também não o são agora. Pela primeira vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até a ser visto pelos outros, que sabem onde ficamos e quem somos, como um povo insolente-mente feliz. Mas de que está cheio este novíssimo con-tentamento de arraial minhoto? Da total ausência de interesse pela «ideia de Portugal» que tenha qualquer conteúdo além do da sua representação, da sua ima-gem, do seu look no espelho alheio, seja ele desportivo, turístico, artístico, cultural, já que não é fácil imaginar que aí figure como uma referência obrigatória na or-dem económica ou científica. No meio século de cul-tura salazarista, Portugal só tinha «exterior». Ele mes-mo era uma ilha, um «oásis de paz», como lhe chamou Marcelo Caetano, e só podia distrair-se com a balbúr-dia do mundo e as suas extravagâncias. Desde há um quarto de século, sem cuidados de império, rendeiros módicos da nova Europa, podemos cultivar, enfim, o nosso jardim, como o Cândido de Voltaire.

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Nos últimos dez anos, o mundo (isto é, a América) já se destruiu uma meia dúzia de vezes. Monstros saídos de um mar de Lautréamont ou dos sucessores medío-cres de Júlio Verne ou Kubrik deitaram fogo ao único templo —premonitoriamente votado à expiação — da Casa Branca. Investidos do carisma do rei dos reis, o presidente dos Estados Unidos, Harrison Ford, Tom Hanks, Travolta, acabam por salvar a nossa atormenta-da morada. Não se pode insinuar com mais claridade que o único espaço simbólico da história nesta aurora daqueles tempos que Malraux imaginou «metafísicos» ou «religiosos» é já um espaço de onde a memória e a história europeias, autolegitimativas do seu poder e do seu saber, são as dessa América que, ao fim de dois séculos, se promoveu a povo eleito. Não é o único povo que se pensa assim, nem a última cultura que elevou a palavra santa a sua convicção de representar, melhor do que ninguém, o destino da humanidade. A única diferença é que este delírio, coração de todas as identi-dades, não tem, ao menos na aparência, outra palavra santa que a contrarie. Como recentemente se exibiu na cena do mundo, a América, transparente e divina, só conversa consigo própria. Consigo própria como es-pírito de Deus ou sua histórica encarnação.

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Que destino fica reservado aos povos que não comun-gam nesta apoteose de uma América convertida em «internet de Deus»? Reinventar uma outra cultura rad-icalmente diferente, não por enraizar em tempos mais antigos ou supostamente menos bárbaros — que todos o são —, mas por não se imaginar, como a americana e desde o seu início, imune ao Mal e destinada dem-ocraticamente a comungar, por convicção ou sem ela, no êxtase ao mesmo tempo natural e transcendente da sua pradaria celeste.Saído de ilusões da mesma ordem, povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinado no modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi e é, apenas um povo entre os po-vos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição.

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