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Educ Med Salud, Vol. 21, No. 4 (1987) A QUESTAO DOS RECURSOS HUMANOS E A REFORMA SANITARIA Francisco Eduardo de Campos, Marcelo Torres Teixeira Leite, 1 Maria Cristina Fekete' Sábado Nicolau Girardi' INTRODU.AO O presente texto é resultado das discuss5es que vem sendo travadas pelo grupo técnico de recursos humanos da Comissáo Nacional da Reforma Sanitária e tem como objetivo tratar suscintamente os princi- pais aspectos que sáo pontos nodais para o estabelecimento de uma política de recursos humanos para o setor saúde, tendo em vista o novo sistema que se busca construir. Espelha-se nas decisoes e principios as- sinalados na VIII Conferencia Nacional de Saúde, e aprofundados na Conferencia Nacional de Recursos Humanos, tendo em vista um sistema de saúde que ademais de ser resolutivo, equanime e universal ampare-se no principio da responsabilidade estatal para com sua organizaçao. Temos claro que a viabilizaçao das proposigoes apresentadas no decorrer deste trabalho, quaisquer que sejam elas, estaráo na dependencia das decis5es relativas as propostas do novo arcabouço institucional para o setor saúde bem como de seu financiamento, seja pela necessidade de compatibilizaaáo de aspectos técnico-administrativos relativos á gestáo do novo sistema de saúde, seja pela necessidade de encontrar formas para sua viabilizaçao nos planos político-institucional e financeiro. Náo se buscou tracar prioridades ou determinar estratégias a serem utilizadas. Trata-se tao somente do levantamento e caracterizaaáo dos principais pontos a serem discutidos quanto aos recursos humanos para o setor saúde. Ao longo dos últimos anos se fizeram os diagnósticos necessá- rios bem como se ensaiaram as propostas de soluçao para os problemas detectados. Trata-se táo somente de ter a decisáo política para a imple- mentaçao das decisoes que se fazem necessárias neste setor estratégico, Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Hori- zonte, Brasil. 374

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Educ Med Salud, Vol. 21, No. 4 (1987)

A QUESTAO DOS RECURSOSHUMANOS E A REFORMASANITARIA

Francisco Eduardo de Campos, Marcelo Torres Teixeira Leite, 1Maria Cristina Fekete' Sábado Nicolau Girardi'

INTRODU.AO

O presente texto é resultado das discuss5es que vem sendotravadas pelo grupo técnico de recursos humanos da Comissáo Nacionalda Reforma Sanitária e tem como objetivo tratar suscintamente os princi-pais aspectos que sáo pontos nodais para o estabelecimento de umapolítica de recursos humanos para o setor saúde, tendo em vista o novosistema que se busca construir. Espelha-se nas decisoes e principios as-sinalados na VIII Conferencia Nacional de Saúde, e aprofundados naConferencia Nacional de Recursos Humanos, tendo em vista um sistemade saúde que ademais de ser resolutivo, equanime e universal ampare-seno principio da responsabilidade estatal para com sua organizaçao.

Temos claro que a viabilizaçao das proposigoes apresentadas nodecorrer deste trabalho, quaisquer que sejam elas, estaráo na dependenciadas decis5es relativas as propostas do novo arcabouço institucional para osetor saúde bem como de seu financiamento, seja pela necessidade decompatibilizaaáo de aspectos técnico-administrativos relativos á gestáo donovo sistema de saúde, seja pela necessidade de encontrar formas para suaviabilizaçao nos planos político-institucional e financeiro. Náo se buscoutracar prioridades ou determinar estratégias a serem utilizadas. Trata-setao somente do levantamento e caracterizaaáo dos principais pontos aserem discutidos quanto aos recursos humanos para o setor saúde.

Ao longo dos últimos anos já se fizeram os diagnósticos necessá-rios bem como se ensaiaram as propostas de soluçao para os problemasdetectados. Trata-se táo somente de ter a decisáo política para a imple-mentaçao das decisoes que se fazem necessárias neste setor estratégico,

Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Hori-zonte, Brasil.

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sem o qual dificilmente se marchará na direaáo desejada da reforma sani-tária. A Comissáo Nacional da Reforma Sanitária (CNRS) competirá adecisáo política e a conduaáo estratégica do processo.

O texto se divide nos seguintes tópicos: distribuiçao de recursoshumanos; desigualdade nas condiç5es de inserçao no mercado de tra-balho; preparaçao e formaçao; composiaáo interna das equipes e valo-rizaaáo do profissional. Cada tópico será abordado com a caracterizaáaodo problema, propostas de enfrentamento e suas implicaoSes.

DISTRIBUIÁAO GEOGRÁFICO-SOCIAL DOS RECURSOS HUMANOS

Transparece, como consensual, que um dos obstáculos mais sé-rios a serem enfrentados, com vistas á consecuaáo dos objetivos de univer-salizaáao da cobertura e garantia da equidade das ao5es de saúde, dizrespeito aos desequilíbrios sociais, regionais e institucionais que caracte-rizam a distribuiçao dos servicos de saúde. Vigora nitidamente no Brasiluma concentraaáo geográfica, social e institucional de recursos humanos.

O mais flagrante desequilibrio é o social. Amplos extratos dapopulaçao brasileira nao tem ainda acesso a serviços de saúde, em con-dio5es de equanimidade. Apesar dos avanços ocorridos nessa direçao háque se enfatizar que náo se lograram os resultados pretendidos.

Soma-se a isso uma inadequada distribuiçao geográfica dosprofissionais de saúde reforçada por sua concentracao nas grandes cidadese regi5es metropolitanas. dos estados mais desenvolvidos do país. Deter-minadas regioes sao completamente desassistidas de serviço de saúde.Note-se, por exemplo, que somente a regiáo sudeste, que concentra hojecerca de 43% da populaçao brasileira, detém nada menos que 56% dosempregos de saúde existentes no país, concentrando aproximadamente omesmo índice em relaçao á capacidade física (consultórios e leitos) insta-lada setorialmente. Ao mesmo tempo os estados do nordeste, em seu con-junto, com aproximadamente 30% da populaçao brasileira, nao detémmais que 20% da capacidade instalada em recursos humanos e físico-materiais no setor.

Em Minas Gerais, a relacáo médico-habitante era, em 1984, de1 para 450 na capital e de 1 para 2 000 no interior. Se levarmos em contaque parte importante desses municipios considerados como interior con-centram populao5es com mais de 200 000 habitantes, podemos concluirque vastas regi5es desse estado ainda se encontram completamente desas-sistidas de médicos. A mais desenvolvida das unidades federadas, SaoPaulo, no início do corrente governo contava com mais de duas centenasde municipios sem médicos-residentes, situaçáo somente equacionadaatravés de uma corajosa política de descentralizaçao levada a cabo pelaatual gestao.

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Por outro lado, o contexto de forte desigualdade institucionaldentro do setor público, no que respeita a capacidade instalada em recur-sos humanos, equi]pamentos médico-sanitários e demais recursos físico-materiais, contraria. enormemente a diretriz de descentralizaçao. A esferamunicipal, por exeinplo, detinha, em 1984, pouco mais que 16% dos re-cursos humanos alocados no setor público, ao passo que os níveis estaduale federal somavam, juntos, algo em torno de 84% dos recursos, o mesmose dando relativamente á disponibilidade de equipamentos e recursos físi-cos.

Obviamente que a permanencia de um padráo semelhante dedistribuiaáo de recursos humanos no setor público acaba por inviabilizarquaisquer propositiVes de reorganizaçao dos serviços de saúde sob pers-pectiva descentralizadora, a menos que se busque imediatamente a cons-truçáo de instrumentos e o desenho de mecanismos que permitam a in-versáo do referido padráo.

No entender deste grupo técnico táis medidas se situam basica-mente em dois planos: expansao e descentralizaaáo.

É imperioso que se desenhe uma política de expansáo da capa-cidade instalada emn recursos humanos, físico-materiais e equipamentosno setor público, baseada num processo de planejamento descentralizado,observando-se critérios de regionalizaaáo e hierarquizaaáo de serviçosacordes ao arcabouç;o institucional que se pretende implantar. E precisoentáo que se inverta o atual padráo de distribuiçao de recursos do setorpúblico, privilegiando-se, em termos quantitativos e qualitativos, as es-feras mais descentralizadas, vale dizer municipais, do sistema. [sto signi-fica que as políticas de ampliaçáo da rede de serviços e dos contratos deprofissionais de saúcle devem ser subordinadas gerencial e administrativa-mente aos níveis correspondentes.

A simples expansáo náo se mostra suficiente para corrigir osatuais desníveis a curto e médio prazo. Vale relembrar que enquanto aesfera municipal detém pouco mais que 16% dos contratos de pessoal desaúde, o nivel estadual concentra quase 45 % destes e o nível federal cercade 39%. Faz-se mister, portanto, que uma vez viabilizada no planopolítico-administrativo, uma das alternativas pode ser o imediato repassedo exercício dos atuais vínculos de pessoal com o setor público para umúnico local geográfico, observando-se a gestao e administraaáo unificada eas prioridades de lotaçao de pessoal estabelecidas pelo planejamento inte-grado. Isto, obviamente, para os casos de existencia de multiplicidade devínculos. Nos casos em que prevalecer vínculo único, deve-se na-turalmente, cumprir tao somente o repasse para o nivel concernente.

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DESIGUALDADE NAS CONDICOES DE INSERÇAO NO MERCADODE TRABALHO (SEGMENTAÇAO)

O mercado de trabalho em saúde tem como uma de suas carac-terísticas peculiares o alto grau de segmentaaáo. Isto significa que as con-diçoes de compra e venda da força de trabalho sáo extremamente variáveispara um mesmo tipo de qualificaçao profissional e um mesmo tipo de ser-viço exigido do trabalhador. Em outras palavras, há uma patente desi-gualdade nas condiçoes de inseraáo nesse mercado e uma grande diversi-dade de situaçoes no que diz respeito a níveis salariais e regimes jurídicosde vinculaaáo que poderáo dificultar sobremaneira a imediata equipa-raaáo para todos os profissionais de saúde. Existem profissionais cujos re-gimes jurídicos sao aqueles regidos pela Consolidaaáo das Leis do Tra-balho (CLT), tanto na administraaáo direta quanto na indireta. Outrosfuncionários sáo vinculados estatutariamente á Uniáo, aos estados e aosmunicipios. Há ainda trabalhadores autonomos de diferentes regimes,como os credenciados e autorizados pela Previdencia Social. A cada umdesses regimes correspondem remuneraçao, sistemas previdenciários, di-reitos e deveres extremamente diferenciados. Resolver satisfatoriamentetais problemas exige o claro enfrentamento de um cipoal de elementos ju-rídicos, administrativos, financeiros e político-ideológicos de soluçao com-plexa. A única soluaáo que pode conduzir ao Sistema Nacional de Saúde éa unificaaáo de todos os empregos em uma única modalidade contratual,com a consequente isonomia plena nao apenas de salários como tambémdo conjunto de direitos e deveres.

Para a operacionalizaaáo desta medida duas alternativas vemsendo debatidas: a primeira delas seria a centralizaçáo dos vínculos dosetor saúde no nível federal, independentemente do nivel de exercício.Sua vantagem seria a unificacáo de fato de todos os cargos, com isonomiaplena caracterizando os profissionais de saúde como trabalhadores do sis-tema único de saúde. A desvantagem vista nesta modalidade é suavulnerabilidade aos mecanismos clientelísticos de transferencia dos profis-sionais, de caráter quase sempre centrípeto, das regioes dessassistidaspara as mais centrais.

A segunda alternativa que vem sendo apresentada é a completadescentralizaçao dos vínculos empregatícios dos profissionais, vincu-lando-os ao nível do governo respectivo ou ainda ás unidades de exercíciodas funo5es assistenciais. A vantagem alegada para essa modalidade é oreal envolvimento do profissional com a unidade de exercício e, por via deconseqüencia, com a própria clientela a ela adscrita. A principal desvanta-gem apontada é o possível agravamento da situaaáo de segmentaçáo domercado antes apontada. Imagine-se, no exemplo extremo, cada unidadede saúde recrutando profissionais, estabelecendo vantagens salariais, ca-

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pacitando os profissionais, executando o pagamento. Muitos julgam queessa hipótese nao tem factibilidade.

O Grupo de Recursos Humanos aponta como factível e viáveluma opaáo alternativa aos modelos apontados, nos quais os vínculos se-jam efetuados com o correspondente nível de governo responsável pelaatividade exercida, resguardada a normatizaaáo central que assegure ummínimo de uniformidade num sistema de saúde que, afinal, se pretendeúnico. Desta forma poderiam ser estabelecidos principios gerais quanto amecanismos de provimento, administraçao de recursos humanos modali-dade de vinculaçao dos trabalhadores (p. ex. emprego único, dedicaçaoexclusiva). Isso poderia ocorrer sem prejuízo das peculiaridades regionaise locais, que poderiam dar os elementos específicos sem os quais difi-cilmente se viabilizaria a Reforma Sanitária.

Entrementes náo se viabiliza essa situacao, é necessário que seavancem propostas intermediárias que deem conta do transito para a si-tuaaáo desejada. Um sério obstáculo detectado é a legislaçao ora existente,fruto de um período onde o exercício liberal da profiss5o era aindadominante sobre o vínculo assalariado, que estabelece que a jornada detrabalho de médicos e odontólogos, diferentemente dos demais profis-sionais, é de quatro horas. Muitas instituio8es, no afa de superar esseóbice legal tem se valido de artificios como o duplo contrato ou ainda oregistro dos profissionais em novas categorias como técnicos de nivel supe-rior. Náo resolvida tal questao a nível de legislaçao ordinária, poder-se-áter impossibilitada a implantaçao de distritos sanitários com adscriçao declientela. Enquanto nao se logram tais alteraçoes, entretanto, ¿ possívelpensar-se imediatamente em arranjos alternativos que viabilizem já o em-prego único.

Como mecanismo transicional considera-se, neste momento,que a possível saída para as categorias que detem o privilégio da acumu-laçao de empregos públicos é a proposta de adesao voluntária, dos profis-sionaisjá mencionados, a um sistema de emprego único com a conjugaçaodos vínculos atualmente existentes. O mecanismo seria o preenchimentode termo voluntário de adesáo á proposta com a declaraçao dos empregosocupados, seus respectivos proventos, assumindo compromisso de em-prego único ou, possivelmente, de dedicaçao exclusiva ao setor público.Em contrapartida, as instituio5es alocariam o profissional para exercício,em regime de tempo integral, em unidade de saúde pertencente ao sis-tema. A partir desse momento esses profissionais teriam seus salários com-plementados até os valores estabelecidos como os mais adequados. Me-canismo similar a esse já é utilizado hoje pelo Conselho Nacional dePesquisas para os pesquisadores do país; classificados os pretendclentes deacordo com a titula~i[o docente o Conselho Nacional de Pesquisas comple-menta os salários pagos pelas instituiçoes de origem até tetos previamente

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estabelecidos. No caso do setor saúde julga-se que esse controle deveria serfeito pelos colegiados interinstitucionais ou por seus sucedáneos. Para osdemais profissionais que legalmente nao contam com a possibilidade daacumulaaáo de empregos, a soluçao se torna mais simples, vinculando-setáo somente á remuneraçao que dignifique o trabalho.

Uma medida complementar a essa proposta, mas que deveráser imediatamente desencadeada visando garantir o sucesso de sua im-plantacáo será o Cadastramento dos Profissionais de Saúde do País, em-pregados no setor público ou nas instituiçóes privadas que recebam do-tao5es públicas. Esse cadastramento poderá garantir dados maisconfiáveis que aqueles hoje disponíveis para que se possam implementaras medidas necessárias no setor. Há que se discutir a quem caberia a re-sponsabilidade executiva na realizaaáo do cadastro. Os dados necessáriospoderiam ser colhidos nos estados pelas secretarias técnicas dos Centros deInformaçao de Saúde, sendo que muitos deles já se encontram disponíveisnas POI's/87.

A viabilizaçao, entretanto, de quaisquer das alternativas quevem sendo apresentadas sob esse aspecto, está na dependencia de decisoespolíticas, que obviamente passam pela compatibilizaaáo de diversos in-teresses cristalizados no plano institucional-burocrático, político-ideoló-gico e corporativo. O principio da isonomia, entendida em seu sentido am-plo e nao apenas salarial, mas de igualdade de direitos e deveres, que setraduziria no plano do atual estágio de organizaaáo econ6mico-social doBrasil, significando o estabelecimento de regras semelhantes para o con-trato de força de trabalho de idéntica qualificaçao, perfil semelhante deoferta e que se destina ao exercício de um mesmo serviço, é a resposta pos-sível neste momento. Conquistas corporativas em relaaáo a salários profis-sionais, a realizaçao de processos de seleçao ou concursos públicos paraadmissáo de pessoal em alguns estados, o desenho de planos de cargos esalários em algumas instituio5es com a nítida preocupaaáo do estabeleci-mento de regras mais compatíveis contemplando, sem dúvida, a ascençaofuncional para a totalidade da força de trabalho engajada, sáo alguns ele-mentos indicadores de que a discussao acerca da política de recursos hu-manos vem avançando no setor público mobilizando as mais diversas ca-tegorias profissionais.

Por outro lado, a existencia de uma multiplicidade de formas definanciamento, tanto no que se refere ao investimento quanto ao custeiodos serviços, somados t regressividade dos esquemas de financiamentoprevidenciário, obstaculizam, quando nao inviabilizam totalmente,quaisquer alternativas isonomicas mais consequentes. Dessa forma, taldiscussáo passa necessariamente pelo equacionamento das questoes re-lativas ao financiamento setorial. O estabelecimento de Fundos Unifica-dos de Saúde nos diferentes níveis de governo e a descentralizaçao das

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formas de sua operacáo se colocam, pois, como requisitos indispensáveispara a viabilizaçao financeira das propostas de isonomia.

FORMACAO/PREPARAÇAO DE RECURSOS HUMANOS

Relativarnente á questao da formaçáo/preparaaáo de recursoshumanos para a saúde, o diagnóstico da situaaáo se reveste de consensoem grande parte de seus aspectos. De uma maneira geral admrnite-se suainadequaaáo, tanto no plano quantitativo quanto no qualitativo, para osmais diversos níveis, desde o elementar até o de pós-graduaçao, frente árealidade de saúde do país. O passado recente, marcado pela submissaodas políticas de formaçao de recursos humanos aos interesses empresariaislucrativos que se constituíram, quer no sistema de ensino quer na presta-

aáo de assisténcia a saúde, deixou como legado um mosaico de problemasque váo desde a descoordenaçao e multiplicidade de esforços, passam pelainadequaçao do perfil da oferta e culminam na má distribuia;o sócio-regional dos recursos humanos.

As propo:siçoes apresentadas na VIII Conferencia Nacional deSaúde e aprofundaclas na Conferencia Nacional de Recursos Humanos,para o equacionamento e o enfrentamento da questáo, repousarn em doisprincipios básicos, quais sejam:

* O da responsabilidade estatal para com a educaaáo e o da gra-tuidade dlo ensino em todos os níveis, garantindo-se o seuacesso incliscriminado a todos os segmentos populacionais.

* O da integraçao ensino-serviço como única forma capaz de pro-mover a necessária interaaáo entre teoria e prática, ou seja, decompatibilizar a formaçao ás necessidades do novo serviço,compreendidas como necessidades de enfrentamento das de-mandas epidemiológica-sociais.

No que diz respeito á formaaáo e aprimoramento de pessoal téc-nico de nível médio, as proposiçoes principais poderao ser subdividas emdois grupos interdependentes.

1. Desenvolvimento de estruturas regionais integradas para a formaçáode pessoal técnico necessário prioritariamente, tendo em vista a operaQáode um serviço descentralizado, e que preste assistencia integral á saúdedesde a sua base. Isto pode ser feito através da criaçao de escolas técnicaspúblicas, intimamente integradas ao novo sistema de saúde, que ofereçamcursos multiprofissionais específicos para o setor saúde em caráter regular,observando-se critérios de regionalizaçao e distribuiáao adotados. Estedeverá ser o mecaniismo de capacitaaáo dos novos contingentes profis-

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sionais que responderáo pela expansáo e pela reposicao profissional no sis-tema de saúde.2. Reconhecimento e fortalecimento dos centros formadores de recursoshumanos para a saúde destinados á qualificaQáo profissional pela via su-pletiva, a exemplo do Projeto Larga Escala, que visa a formaçao e o apri-moramento de pessoal de nivel médio e elementar já engajado nos ser-viços. Entendemos que tais processos devam ser adotados pela totalidadedos serviços públicos.

Em ambos os casos há que se considerar a necessidade do apro-fundamento dos mecanismos de integraaáo entre o setor de saúde e edu-caaáo como forma de garantir que os conteúdos programáticos a seremdesenvolvidos nesses cursos, sejam realmente adequados ás necessidadesdos serviços. Nesse sentido é fundamental que se definam tais processoscomo essencialmente pluri-institucionais. Da mesma forma há que seatentar para alguns aspectos legislativos vigentes, no sentido de modificá-los conforme o caso, de maneira a propiciar maior dinamismo ao processode formaaáo de pessoal intermediário e maior adequaçao á realidade. E ocaso, a título de exemplo, da vigencia do exame de suplencia como me-canismo de habilitaçao profissional para a saúde que, no entendimento daConferéncia Nacional de Recursos Humanos e deste grupo, náo atende,do ponto de vista do serviço e da clientela usuária, aos requisitos técnicosbásicos para aferiaáo da capacidade técnica do habilitando. No entenderda Conferencia Nacional de Recursos Humanos tal mecanismo deve serextinto.

Relativamente ao ensino de nível superior, a proposiaáo básicadiz respeito á adequaaáo da estrutura da oferta ao quadro de necessidades,definido a partir de critérios de hierarquizaçao dos serviços, de acordocom padroes nosológicos e sociais existentes.

Nesse sentido, é imperioso que se discuta, no conjunto, o papelda universidade dentro de novo sistema de saúde. Insistir-se neste mo-mento em restringir a discussao ás propostas anacr6nicas e marginais deintegraaáo docente-assistencial será reduzir muito as possibilidades quesao oferecidas por esse setor. Faz-se mister constatar que todo o discursode integraaáo docente assistencial, patrocinado geralmente pelas insti-tuio5es de ensino, há muitos anos tem produzido muito pouco impacto,seja na adequaaáo curricular á realidade de saúde, seja na produçao deconhecimentos de interesse da coletividade, ou ainda na inseraáo das uni-dades assistenciais próprias da rede de ensino como unidades de referenciapara o conjunto dos serviços de saúde.

Nao há quem negue a importancia do setor académico para areorganizaaáo dos serviços de saúde e viabilizaaáo da própria ReformaSanitária brasileira. Difícil é se propor, concretamente, quais os instru-mentos que poderiam compatibilizar o conceito da autonomia académica

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com um compromisso social nos tres níveis antes citados: formaçao profis-sional, prestaaáo de serviços e produçao de conhecimentos. O que se acre-dita é que a implantaaáo do novo arcabouço institucional, sem prejuizo deoutras medidas, poderá ser o principal motivador para que o setor aca-demico se recoloque, assumindo crescentes responsabilidades sanitárias esociais.

Certamente seráo consequentes a esse processo as transfor-maç5es curriculares, no sentido de adequar o perfil profissional as necessi-dades de saúde, e á mudança do perfil das investigaç5es realizadas deforma a tornar mais consequentes os serviços prestados.

A constataaáo de que o setor academico possui uma inércia pró-pria, ainda maior que o setor de serviços, nao deve, entretanto, imobilizara Comissáo Nacional da Reforma Sanitária. Há que se ressaltar que exis-tem alguns setores nos quais se torna possível uma colaboraçao imediatada academia, sem prejuízo daqueles investimentos que devam ser feitosmais a médio e a longo prazo, tais como: atividades na área de formaçaocomo as propostas de reciclagem dos profissionais de saúde já engajadosna rede, através de processos de educaçáo continua, pesquisas opera-cionais e assessorias em áreas técnicas vitais para a implementaçao da re-forma sanitária e delimitaaáo clara das possibilidades da participaQáo dosserviços próprios do setor academico no modelo assistencial proposto.

COMPOSIÇAO DAS EQUIPES DE SAUDE

Outro aspecto que mereceu detalhamento na Conferencia Na-cional de Recursos Humanos, e que também se reveste de consenso acercade seu caráter estrangulador, é o que se refere á inadequaçao cda compo-siaáo das atuais equipes de saúde.

A rigor nao se pode nem mesmo falar na existencia de equipesde saúde quando apenas duas categorias profissionais perfazem entre 60 e70 % do pessoal ocupado nos estabelecimentos médico-sanitários. Sabe-seque as equipes se resumem, na realidade, a médicos e atendentes, confi-gurando-se, assim, uma situaçao de extrema gravidade quando se propoeque o cuidado a sauide deva ser prestado numa perspectiva de integrali-dade. A concepçao da descentralizaçao, tendo por base o distrito sanitárioque se incumbiria da assisténcia integral á saúde, envolvendo tanto aspec-tos assistenciais quanto preventivos e reabilitadores, ademais da progra-maaáo local baseada em demandas social e epidemiologicamente deter-minadas, exige a composiçao multiprofissional das equipes de saúde.

Independentemente de estudos mais aprofundados algumasevidencias sao nítidas. Em relaaáo aos profissionais de nível superiortorna-se necessário a incorporaaáo de outros profissionais que respondam

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pela integralidade e resolutividade das açoes. É o caso dos dentistas, dosenfermeiros, psicólogos e bioquímicos, entre outros. A crescente necessi-dade de qualificaaáo profissional aponta como desejável o incremento pro-porcional do quantitativo de profissionais de nivel médio em relaçáoaqueles de nível elementar, seja nas futuras provis5es, seja através de me-canismos de capacitaaáo dos profissionais já absorvidos.

Nao basta, entretanto, a atuaçáo singular de cada uma dessascategorias profissionais. Para que a produçáo dos serviços de saúde se re-alize em bases coletivas, faz-se necessário que a unidade produtora destesserviços seja a equipe de saúde e náo trabalhadores ou categorias profis-sionais isoladas.

A composiçao das equipes multiprofissionais deverá se fazer se-gundo critérios sociais e epidemiológicos ou seja, seu planejamento serádeterminado de acordo com o diagnóstico das necessidades de saúde dapopulaaáo. Sem o enfrentamento das quest5es relativas a distribuiçao geo-gráfico-social dos recursos humanos torna-se inviável a adequada compo-siaáo e organizaaáo das equipes de saúde.

VALORIZAÇAO DO PROFISSIONAL

Há para o setor saúde uma política de pessoal implícita, mar-cada pelo clientelismo, que apresenta características próprias nos diversosníveis e instituiçoes. A ausencia de planos de carreira, a diversidade deparámetros para definiçao de quadros de lotaçáo, o despreparo das chefiasem relaaáo á gerencia de recursos humanos, constituem-se em algumasdas dificuldades a serem enfrentadas quando se pretende a construaáo donovo Sistema Nacional de Saúde. Na realidade as distorçoes só serao cor-rigidas na medida em que se defina e se explicite a política de recursoshumanos para o setor saúde. Alguns pontos de reorientaçao dessas políti-cas, que foram abordados na Conferencia Nacional de Recursos Hu-manos como relativos á valorizaaáo do profissional, seráo agora aborda-dos de forma suscinta.

No que se refere ao processo de recrutamento e selecao de pes-soal, parece-nos claro que deve conter critérios gerais uniformes e trans-parentes para todos os órgáos do sistema unificado de saúde, observadassua capacidade operacional e as características de cada regiao. Os métodosutilizados para selecionar pessoal devem ser ajustados á realidade dos ser-viços, assim sendo, o processo deve ser regionalizado e descentralizado.Entende-se o concurso público como a forma legítima de ingresso de pro-fissionais no setor saúde.

Quanto á definiçao dos quadros de lotacáo há que se atentarpara que sejam orientados pelas bases coletivas da produaáo dos serviços

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de saúde contemplando aspectos relativos á demanda, capacidade insta-lada, resolutividade e populaçao alvo.

A implantaçao de plano de carreira, com possibilidade de pro-gressao horizontal e vertical para todas as categorias profissionais deve serentendida como indispensável para o setor saúde. Um dos parámetros aserem considerados para ascençao e progressáo funcional, refere-se á ava-liaaáo de mérito e desempenho, que deve realizar-se sistematicamente,tendo como eixo norteador o sentido coletivo do trabalho.

Em rela5ao ao despreparo das chefias, no que se refere á geren-cia dos recursos humanos, deve-se pensar em garantir sua capacitaáaoatravés do estímulo aos já existentes cursos de desenvolvimento de recur-sos humanos. Por outro lado, faz-se também necessário que sua inseráaoorganizacional se de -de forma a lhe conferir autonomia de decisáo e recur-sos para aaáo.

Por fim, há; que se considerar a importancia da participaçao dosusuários e dos trabalhadores em saúde como partícipes fundamentais noprocesso de planejamrento, execuaáo e avaliaçao dos serviços e, por conse-iqüencia, na formaçao e controle da política de recursos humanos no setor

saúde, ingrediente b,ásico para a consecuçao desses objetivos.

RESUMO

Neste trabalho o autor trata suscintamente os principais aspec-tos que sáo pontos nodais para o estabelecimento de uma política de recur-sos humanos para o setor saúde. Náo se buscou traQar prioridades ou de-terminar estratégias a serem utilizadas. A Comissáo Nacional da ReformaSanitária (CNRS) co:mpetirá a decisáo política e a conduçao estratégica doprocesso.

O texto se divide nos seguintes tópicos: distribuiçao de recursoshumanos; desigualdade nas condio5es de inserQao no mercado de tra-balho; preparaaáo e formaaáo; composiaáo interna das equipes e valori-zaçao do profissiona]. Cada tópico é abordado com a caracterizaaáo doproblema, propostas de enfrentamento e suas implicaçoes.

HUMAN RESOURClES AND THE SANITARY REFORM

Summary

In this artiicle, the author analyses briefly the main consider-ations that will be the bases for the establishment of a human resourcespolicy in the health sector. It is not the purpose of the article to determine

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Recursos humanos e a reforma sanitária / 385

priorities or to set strategies. It will be up to the National Commission ofSanitary Reform (CNRS) to make policy decisions and to conduct theprocess.

The text is divided in the following topics: distribution of hu-man resources; inequalities regarding admittance to the work force; devel-opment and training; internal composition of the health teams; and evalu-ation of the professional.

The author's approach in each topic is to identify the problem,propose solutions, and examine the implications.

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