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1 Educação, certeza habitual e reiteração de idéias sem impressão: uma crítica moderna ao prejuízo da educação Bom dia. Vou abordar um tema bastante comum, mas de forma que no mínimo tem causado espanto entre as pessoas que me conhecem. O tema é a educação. A forma de abordar é a que vai de encontro – e lembrem-se de que ir de encontro, quando por exemplo vai-se de encontro a um muro, bate-se de frente com ele – pois bem, é a que vai de encontro a essa espécie de ufanismo que tomou conta do mundo todo pela educação. Particularmente vai de encontro a uma tese bastante difundida, e quase que uma lei da educação. Eis o mito, em palavras poucas mas precisas de Azanha, autor que, sem dúvida alguma é uma das mais fortes e seguras influências na Faculdade de Educação: Pense-se, como exemplo de pressuposição absoluta, na idéia da possibilidade de aperfeiçoamento humano. A rejeição desta idéia inviabilizaria a ação educativa. A crença nela, a sua admissão, é algo absolutamente inevitável ao educador. (AZANHA, José Mário Pires. Uma reflexão sobre a didática. In: A didática em questão, 3º Seminário, Atas Volume I, São Paulo. USP, 1985, Introdução, par 2) Pode até ser que a rejeição da idéia inviabilize a ação educadora. Talvez concordasse com isso... Mas isso seria rejeitar a própria educação. A minha pergunta, entretanto, difícil de ser feita e entendida é a seguinte: tal idéia do aperfeiçoamento leva aquê, ou melhor a que nos tem levado?!? A crença na evolução é a crença em uma evolução determinada, a que afirma um modo de vida determinado, que não tem em si nenhuma naturalidade para ser aceita… Afinal, os homens se mostraram, historicamente, sempre muito prodigiosos em, querendo evoluir-se como protótipo de alguma perfeição, arremessarem-se em genocídios e fascismos de várias formas e procedimentos diversos. Todos eles acreditando, por pressupostos implícitos e absolutos no aperfeiçoamento humano. Tirada esse meio de campo podemos fazer a primeira incursão no terreno de Pascal: 354 — A natureza do homem não é ir sempre em frente; comporta idas e vindas. A febre tem calafrios e ardores, e o frio mostra-lhe a intensidade tanto quanto o próprio calor. O mesmo ocorre com as invenções dos homens através dos séculos. E também com a bondade e a malícia do mundo em geral: A mudança agrada quase sempre aos grandes (Horácio, Odes, III, 29,13) .

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Educação, certeza habitual e reiteração de idéias sem impressão: uma crítica moderna ao prejuízo da educação

Bom dia.

Vou abordar um tema bastante comum, mas de forma que no mínimo tem causado espanto entre as pessoas que me conhecem.

O tema é a educação.

A forma de abordar é a que vai de encontro – e lembrem-se de que ir de encontro, quando por exemplo vai-se de encontro a um muro, bate-se de frente com ele – pois bem, é a que vai de encontro a essa espécie de ufanismo que tomou conta do mundo todo pela educação. Particularmente vai de encontro a uma tese bastante difundida, e quase que uma lei da educação.

Eis o mito, em palavras poucas mas precisas de Azanha, autor que, sem dúvida alguma é uma das mais fortes e seguras influências na Faculdade de Educação:

Pense-se, como exemplo de pressuposição absoluta, na idéia da possibilidade de aperfeiçoamento humano. A rejeição desta idéia inviabilizaria a ação educativa. A crença nela, a sua admissão, é algo absolutamente inevitável ao educador.

(AZANHA, José Mário Pires. Uma reflexão sobre a didática. In: A didática em questão, 3º Seminário, Atas Volume I, São Paulo. USP, 1985, Introdução, par 2)

Pode até ser que a rejeição da idéia inviabilize a ação educadora. Talvez concordasse com isso... Mas isso seria rejeitar a própria educação.

A minha pergunta, entretanto, difícil de ser feita e entendida é a seguinte: tal idéia do aperfeiçoamento leva aquê, ou melhor a que nos tem levado?!?

A crença na evolução é a crença em uma evolução determinada, a que afirma um modo de vida determinado, que não tem em si nenhuma naturalidade para ser aceita… Afinal, os homens se mostraram, historicamente, sempre muito prodigiosos em, querendo evoluir-se como protótipo de alguma perfeição, arremessarem-se em genocídios e fascismos de várias formas e procedimentos diversos. Todos eles acreditando, por pressupostos implícitos e absolutos no aperfeiçoamento humano.

Tirada esse meio de campo podemos fazer a primeira incursão no terreno de Pascal:

354 — A natureza do homem não é ir sempre em frente; comporta idas e vindas. A febre tem calafrios e ardores, e o frio mostra-lhe a intensidade tanto quanto o próprio calor. O mesmo ocorre com as invenções dos homens através dos séculos. E também com a bondade e a malícia do mundo em geral: A mudança agrada quase sempre aos grandes (Horácio, Odes, III, 29,13) .

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Então a primeira coisa no campo em que estamos nos impedirá, em nossa incursão, de considerar o argumento do progresso como fator que fundamente a educação como bem universal, teremos que buscar outro.

Mas, o que criticamos, afinal, na idéia de conceder à educação ser agente de uma determinação melhoria permanente? Justamente o que insere o termo “aperfeiçoamento” numa determinada forma de vida caracterizada justamente, como temos visto, pelo fetiche, em sua forma mais patente: a descorporização do corpo, e a encarnação de um valor abstrato, fantasmagórico, que apenas vale quando dissolve todos os valores numa mesma possibilidade de troca. O que significaria aperfeiçoamento, e quais seriam as suas consequências se recolocarmos a questão?!?

O que nos coloca um sério problema, pois temos, efetivamente, “coisas a fazer”, ou seja, progressos dos quais podemos nos aproveitar para melhorar a vida das pessoas. O problema é que normalmente a vida coletiva do homem encontra nos extremos o seu ponto de equilíbrio, de tal modo que, quando tudo se resolve e se acha em harmonia, nada se resolveu e tendeu-se, de fato, para o desequilíbrio, parafraseando Pascal.

E é inevitável que pensemos que sempre podemos melhorar as coisas, do ponto de vista, por exemplo, da defesa da integridade dos jovens. Estamos cuidados dos “nossos filhos” e estamos preservando as novas gerações.

Mas dessa forma, invadimos e universalizamos todos os campos da vida das pessoas, e a nossa tendência é penetrar, como água que vaza, na verificação de validade, reificamos os universais (como diria um famoso lógico, que não me atrevo a dizer o nome) e na busca do melhor dos mundos, criamos genericamente uma melhoria para ninguém.

Todos se sentem mais infelizes, ou com a sensação de uma espécie de perda inindentificada, mas apresenta-se uma conta geral, uma contabilidade metafísica, uma operação reinterpretada como de uma espécie de uso abstrato, um uso que tem, paradoxalmente valor de troca, onde o resultado é positivamente uma melhoria coletiva. Objetivamente um aperfeiçoamento.

Apenas um aparte, que é complicado e não sei ainda falar disso, mas tenho trabalhado com a hipótese, hoje corrente nos programadores e desenvolvedores de controle de dados, de que a sintática está definitivamente invadida pela semântica nas cadeias escritas de código. O que isso quer dizer??? Sei lá, é uma completa degenração que tem me deixado intrigado…

Preocupação bizarra

Hoje existe uma preocupação, que estou qualificando de bizarra, com a integridade das novas gerações, mas tem me parecido que não é mais a mesma preocupação tradicional dos pais e mães, aquela que responde pelos cuidados, pelo amparo e apoio, acompanhamento.

É um novo tipo de integridade, que se quer preservar nos jovens uma integridade, e fala em nome de uma subjetivação, impõe de fato uma integridade fetichizada, e vou tentar explicar porque.

A integridade que é defendida para o jovem é a integridade do jovem cidadão. O que mais a gente vê, nas melhores palavras, cabeças e escolas que os bolsos podem pagar, é que o jovem está sendo preparado para a cidadania…

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Parece brincadeira, mas a questão é muito simples, quase simplória (daí o meu medo, posso estar falando baboseiras): os estados fazem contratos entre estados, países entre países, nações, blocos, etc…

Contratos que envolvem empresas, governos mas, principalmente, pessoas. O contrato de exportação, importação, manutenção do fluxo de x ou y produtos, se é feito por dezenas, mesmo centenas de anos (guerras, grandes construções, prospecções, acordos econômicos, planejamentos de previdência…) envolve, evidentemente, mais do que uma geração, afinal, ninguém vive ou trabalha tanto que possa, daqui a setenta anos, ver se as metas do pré sal, da previdência ou sei lá de que protocolo que assinou hoje estão sendo atingidas.

Mesmo os mais poderosos, mesmo que não trabalhem, como quer nossa amiga, envelhessem e morrem… Quanto mais os trabalhadores, esqueceram deles???, aqueles que vão extrair, produzir, embalar, manter os fluxos e tudo o mais, trabalhando???

Pois bem, como é que se pode garantir que, de uma geração a outra, vá ocorrer a preservação do modo de produção, ou de forma mais abrangente, que derivo de Wittgenstein, como garantir a preservação da forma de vida?

Acredito que hoje a tese republicana de que o conjunto de leis e o estado de direito sejam suficientes para essa manutenção não esteja mais se pensando suficiente, já que os juízes hoje estão sob a mira popular, os parlamentares e poderes na democracia se alternam…

O que garante na verdade os compromissos da BIOPOLÍTICA é a FORJA da nova geração.

Forja que opera analogamente ao fetiche: retira do corpo o corpo e encarna no corpo o sobrenatural…

Retira da educação a educação e transfere para a educação a esfera do que podemos chamar de PROFILAXIA SOCIAL. Um fetiche de educação.

Como saber que o jovem de daqui a cinquenta anos, aceitou de bom grado os acordos de sua civilização, e vai cumprí-los… Em nome e por quem, afinal, por quem assinou o contrato???, por quem contratou a guerra ou o sítio???, as gerações manterão o mesmo tipo de… forma de vida???

Ou alguém tem dúvida de que quando falamos em forma de vida, cultura educação e coisas afins, estamos completa e implicitamente também falando da faixa de gaza, da guerra fundamentalista ao “oriente” travada por “potências ocidentais” que mais do que nunca nos parecem muito mais distantes do que o outro lado do mundo. A democracia é isto que está aí, não existe outra. Como se contrata uma guerra, como as recentes invasões americanas, que futuras gerações crescerão tendo que preparar-se e educar-se para ela?!?

Apesar de ser um estudioso da lógica modal, meu coração pertence a um único mundo possível. Preparar o jovem, é preparar para tais acordos, um pacote completo, sem escolhas. A integridade do jovem, como dizíamos não é mais aquela integridade que vimos antes, é a integridade social. Sua identidade de troca.

E o fetiche esconde justamente o encantamento da coisa toda: diz-se que buscamos, na educação, preparar o jovem para conhecer o mundo, quando na verdade, o que ocorre é uma projeção de uma espécie de futuro do sempre igual. Ilude-se a própria razão de que se está a buscar sentido no mundo,

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quando verdadeiramente se dá sentido a ele, na ordem de razões tão arbitrárias quanto explodir uma bomba porque um determinado modo de vida, em termos biopolíticos, são inevitavelmente nocivos à reprodução da nossa forma de vida.

Tal preocupação com a integridade, não é mais a da mãe ou pai preocupados com o filho se machucar ou repetir de ano, é uma preocupação abstrata, exercida por todos e por ninguém, algo acêntrico, no mais genuíno dizer pascaliano: o centro está em toda parte, mas nunca podemos fixá-lo. Tudo é ordenado, mas não se encontra ordem alguma…

Exerce-se aqui a preocupação da espécie com sua preservação, se é que posso dizer assim. Ou no mais genuíno dizer freudiano, já que a característica do que é inconsciente é, segundo Lacan, a excentricidade; o discurso do outro.

Qualquer possibilidade de subjetivação deve submeter-se a essa ordem. Por preocupação da espécie, falamos aqui da espécie humana, como as das algas, carrapatos ou golginhos, que seguem seus instintos, preservam-se na garantia da manutenção, por gerações, de suas formas de vida.

A preservação da integridade do jovem responde, familiarmente, à segurança da espécie, novo cidadão saudável, e da pessoa, um filho querido em bem estar.

A nova preservação, aquela exercida por todos e por ninguém, preocupa-se com a integridade que pode ser quantificada, mensurada. Justamente no campo que Marx chamou de: campo da dissolução, onde tudo deve ser dissolvido em um mesmo quantum, que permita a troca baseada em conceitos abstratos de valor.

Uma dissolução, diria ele, do “corpo do objeto”, e a “encarnação” de um valor sobrenatural: um fetiche!

O feitiço, o encantamento, é justamente a transição da corporeidade para a supracorporeidade, ou como ele diz: “o mundo físico metafísico”. Se nos lembrarmos das origens do termo, com Charles de Brosses (O culto dos deuses fetiches, 1760), e a influência sobre o iluminismo francês, veremos que o fetiche tinha um movimento contrário: o fetiche marcava a fronteira entre a europa civilizada e os outros povos, justamente porque existia nos segundos uma incapacidade cognitiva para afirmar ou apreender causas, então tais povos de deuses fetichistas, iam do natural para o sobrenatural: da paternidade à paternidade do dia, por exemplo.

Mas vejam só que diz Marx que a tão objetiva troca de mercadorias obedece ao mesmo princípio fetichista, mas dessa vez num movimento inverso: transforma o sobrenatural, o fantasma do valor, em concretude de objetos que “ganham vida própria”. Ao invés da natureza virar sobrenatural, o sobrenatural é naturalizado…

Estou falando aqui da primeira grande ocorrência do termo fetiche no Capital de Marx (I, cap 1). Haverá uma segunda grande ocorrência, talvez bem mais rica de significados, mas que não abordaremos hoje (III, cap 24)

Pois bem, olhemos agora objetivamente para o mundo e vamos perceber que hoje a educação, para se tornar essa panacéia mundial, e ser objeto desse ufanismo, teve que passar por uma objetivação, que veremos ser do mesmo tipo de objetivação do próprio capital: um valor subjetivo com investidura de objetividade, uma corporeidade que se afirma, diria Agambem, pela prórpria

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alienação do objeto, vixe maria, além da alienação do sujeito, agora até objeto é alienado… deixa pra lá, isso seria muito longo aqui...

Deverão existir medidores universais… Mas, antes de mais nada, deverão existir conteúdos universais que possam ser comparados, senão, como comparar medidores internacionais de educação?!?

Mas, vejam bem, estaremos lidando com algo que é hoje chamado de mercado internacional, onde, diferentemente de alguns anos atrás, até mesmo os mais fervorosos capitalistas do mercado, os americanos, querem negociar com a China, antiga supervilã.

E, pasmem, todo mundo quer uns trocadinhos do Afeganistão, Iraque, etc… nem que seja em venda de serviços de segurança e comércio de arma. Então respondam, que tipo de educação pode ter um conteúdo tão universal que permita essa adaptabilidade entre coisas tão díspares?!?

Que conhecimento de história, geografia, biologia estarão sendo universais? Pior: que forma de vida será universal?!?

Percebemos logo que de objetivo, um dos valores efetivos é o tempo de escolaridade, uma tendência mundial: pelo menos os nove anos.

E esse valor tem, efetivamente, valor de troca. Determinados mercados só podem ser explorados por países vendedores que cumpram metas em educação, menos ou mais taxas de juros são negociadas em projetos desse tipo. E todos ficam felizes, contentes e na espera de um mundo melhor. Veja que o próprio conceito de EXPLORAÇÃO ganhou ares de coisa muito boa, já que explorar mercados é ter mais empregos, mais… carteiras assinadas…

Só os paranóicos ficam lendo pascal e pensando: “só deixo de ser paranóico quando deixarem de me perseguir”…

Autômatos

Já que o tema da palestra abrange Pascal e Hume, vamos terminar com uma citação de Wittgenstein:

Então procure uma vez no trânsito habitual, p. ex., na rua, insistir nessa idéia! Diga a si mesmo, p. ex.: "As crianças ali são meros autômatos, toda sua vitalidade é meramente automática." E estas palavras, ou irão se tornar totalmente insignificantes para você, ou você irá produzir em você mesmo talvez uma espécie de sentimento inusitado, ou coisas do gênero.

(WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução: M. G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 1996, 20)

Quis introduzir esta citação por dois motivos: primeiro um dos temas de fundo que permeia a questão, o tema do autômato.

Em segundo lugar, mas não menos importante, o fato de que, nessa afirmação, vemos que algo pode ser constatado no mundo, o automatismo invadindo a vitalidade, e que isso pode provocar duas reações distintas nas pessoas: pode não significar nada… E pode… causar uma “espécie de sentimento inusitado, ou coisas do gênero”.

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Chamemos esse “sentimento inusitado” de espanto. E pronto, segundo a conhecida receita de Aristóteles, a partir desse espanto pode-se filosofar1.

Então vejamos que temos dois espantos: o de que pode existir um automatismo que invade a vida, e o de que existem pessoas que não se importarão com isso. Quem não se importar com isso, também não se espantará, evidentemente de não ter se espantado. Mas quem se espanta, espanta-se ainda de não ter se espantado antes, ou de alguém não se espantar diante disso; ou seja, o estranhamento da automação, que pode invadir a vida humana, não é sentido por todos. Mas quem o sente, ou ainda, quem não pode sentí-lo?!? Quem não sente, não sente ainda?, que quem sente aprendeu a sentir? Ou seja, que tipo de coisa que se dá, que uns têm o tal “sentimento inusitado” e outros não. Em alguns momentos, Wittgenstein vai falar que esse tipo de descoberta parace uma “vertigem, a mesma que se tem com certas demonstrações”.

A segunda coisa, a questão do autômato, é uma questão de fundo para nós.

A idéia vem desde Raimond Lull (1232, espanhol, escreve em catalão), uma mistura de místico, religioso, filósofo, daqueles que a chamada idade média (que desaprendi de chamar de idade média com o prof Leon, mas que ainda não sei dar nome, nem no renascimento…), que criou um sistema mecânico de esferas de vários centros, e movimentando as esferas, com máscaras adequadas, podia-se gerar, entre outras coisas úteis, as infinitas combinações de qualidades de Deus. Como aqueles populares calendários eternos, em que giramos a rodinha e os buraquinhos são organizados para mostrar a combinação do dia da semana, mês, etc… Os mais sofisticados podem, mecanicamente, mostrar as fases da Lua. Ou seja, depende da complexidade dos círculos envolvidos.

O que Lull não sabia, é que ia virar um dos heróis da inteligência artificial, pois cria um sistema puramente mecânico que tem a capacidade de resolver problemas semânticos. Assim como Pascal não sabia que a sua definição de Deus ia inspirar uma das primeiras linguagem a operar com ponto flutuante, o Turbo Pascal, justamente por definir-se um ponto flutuante, em operações algébricas, como um pode que circula numa velocidade impressionante, está em todo lugar mas se tentar fixá-lo não consegue… mas isso é folclore de programador.

O autômato acompanha a modernidade toda, e a possibilidade de uma mecanicidade nas operações cerebrais é uma recorrência constante.

Em pascal, p.e., encontramos a seguinte formulação:

*252 — ... Pois não devemos conhecer-nos mal: somos autômato tanto quanto espírito […]

E já nos afirma de determinadas coisas, por exemplos os costumes, onde existe um tipo de comportamento que, por assim dizer, nos arrebata sem que o percebamos.

[…] COSTUME - O costume torna as nossas provas mais fortes e mais críveis; inclina o autômato, o qual arrasta o espírito sem que este o perceba. Quem demonstrou que amanhã será dia, e que

1 Sobre o tópico do espanto, cf. Aristóteles, Metafísica, 982b 18s. (Aristóteles,

2002)

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morreremos? E haverá algo em que mais se acredite? E, pois, o costume que nos persuade disso; ele é que faz tantos cristãos, ele é que faz os turcos, os pagãos, os artesãos, os soldados, etc.

Dessas figuras que nos remetem à automação, vamos hoje focar uma que, metaforicamente, nos servirá muito bem, a figura da “mola”.

As molas bem ajustadas, os relógios, os instrumentos de precisão, os meios de transpostes macios. Matematicamente, falamos de algo muito inusitado, também tributado a Pascal: a projeção da cônica. A recorrência da helicóide ou das cônicas é interessante, por devem ser tomadas e calculadas no plano (desenho) mas devem dar resultados não apenas precisos para sólidos, mas para objetos do mundo.

Vamos destacar duas dessas referências a molas:

A natureza pôs-nos de tal modo no meio que, se trocamos um lado da balança trocamos também o outro [..] Isso me leva a crer que há molas em nossa cabeça, dispostas de tal maneira que, se se toca uma, toca-se também a contrária. [Pascal, 70]

Estas emoções mais sutis do espírito são de natureza extremamente delicada e frágil, e precisam do concurso de grande número de circunstâncias favoráveis para fazê-las funcionar de maneira fácil e exata, segundo seus princípios gerais e estabelecidos. O menor dano exterior causado a essas pequenas molas, ou a menor desordem interna, é o bastante para perturbar seu movimento, e confundir a operação do mecanismo inteiro. [Hume, Do padrão do gosto, 321]

Mostraremos que pode existir uma interpretação em que se mostra que Bacon, Pascal, Hume e Wittgenstein oferecem uma linha de interpretação alternativa para a questão da educação.

Se reconhecem o valor da educação na formação e, principalmente, a sua eficiência em disserminar, criar ou difundir valores, alertam para o perigo da utilização da educação na moldagem e configuração de valores e idéias, interferindo diretamente na organização da forma de vida humana, podendo ser fonte de preconceitos e prejuízos e tornando-se presa fácil do dogmatismo. E a crítica vem justamente de duas questões, comuns nos autores: 1) a crítica do automatismo e sua expressão discursiva o dogmatismo; 2) O conceito certeza habitual, abordado a seguir.

A posição antidogmática é assumida explicitamente pelos autores, em várias passagens de suas obras. No entanto, o mais característico entre eles, diferentemente de outros autores, é que o enfrentamento ao campo dogmático não se dá na relativização das verdades, ou mesmo na negação cética sobre o conhecimento da verdade.

Aqui os autores trabalham com a possibilidade de recorrer a uma espécie de moderação entre os campos céticos e dogmáticos. Na terminologia de Hume, uma espécie de ceticismo mitigado (HUME1999,p.216). O céticos, apresentados pela tradição como perigosos, são agora inofensivos e até mesmo úteis.

A base racional de operação desse campo cético mitigado, que tem a dúvida como mola de propulsão, é a própria definição de certeza habitual: certezas indemonstráveis que são aceitas por convenção ou hábito, e tendem, a partir

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do uso recorrente e habitual, a tornarem-se normativas, passando a figurar como definição e regulando as próprias relações semânticas.

Isso porque fazem referência a um tipo específico de certezas: as certezas que não podem ser demonstradas, mas que são tomadas por certas.

Certezas habituais

Pascal já apontava a existência de dois tipos de proposições: as que podem ser demonstradas, e as indemonstráveis2. No entanto, apesar da indemonstrabilidade, tais questões muitas vezes constituem certezas inquestionáveis e inabaláveis do ser humano. Ao mesmo tempo em que determinadas certezas advindas principalmente da extrapolação do campo da demonstrabilidade racional para inferências no campo do indemonstrável que, por mais que se afirmem certas e corretas, muitas vezes ruem sob o crivo dos sentidos. (Cf. PASCAL1960, Ordem da Experiência [Espírito de Justeza], Resposta ao Padre Noel, p. 29s)

Encontraremos aqui uma incapacidade intrínseca em provar (e mesmo transformar em discurso) grande parte das questões importantes e sobre as quais é importante filosofar.

No entanto, encontraremos também algumas certezas que desafiam qualquer cético, da mesma forma que encontraremos determinadas dúvidas que balançam o maior dos dogmáticos… — deixando de poder ser provadas e articuladas discursivamente (ou mesmo mencionadas), ali onde invade a dúvida e só nos caberia o dedo de Crátilo. (PASCAL1973,§395)

Tendência para o dogmatismo

Da primeira incapacidade vem a tendência do pensamento filosófico para o dogmatismo: o único jeito de “provar” o que não pode ser demonstrado (postular como verdadeiro, recorrer para a autoridade da tradição, etc) e de dizer o que só pode ser mostrado. Ou seja, aonde se dá um ponto de inflexão para a arbitrariedade completa da lógica do dircurso, pois são regras externas que deverão reger o comportamento interno de sua semântica.

E daí também o perigo do dogmatismo: ao encontrar seu principal desafio — certezas que não pode demonstrar — opta pela solução de afirmá-las como certezas que se pode afirmar e pensa estar demonstrando quando está apenas afirmando algo arbitrário. No entanto, por via de regra, não se crê dogmático. Essa tendência dogmática de pensamento pode encalacrar-se em qualquer tipo de logos, mesmo no discurso cético.3 Parece ser da própria natureza do discurso o seu caminho para o dogmatismo, ou é dizer muito?!? Sei lá.

2 Ao conceito de indemonstrável, poderíamos reivindicar outro, que a partir de

Goedel parece mais adequado, de indemonstradas, pois sobre a sua indemonstrabilidade não se pode também provar nada. Mas para o escopo deste trabalho tal questão não tem influência direta.

3 Quanto ao ceticismo entranhado de dogmas cf. BACON1999, I/§LXVII; PASCAL1973,§375; HUME1999,12/2§23, p.216.

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Por isso que os céticos, tomados por perigosos, são na verdade inofensivos e mesmo úteis, quando se comportam moderadamente.

Uma dose de ceticismo, que Hume chamou mitigado (HUME1999,p.216), mantendo acesa a chama da dúvida e a crítica do fundamento, pode ser uma das ferramentas mais eficientes para combater essa tendência dogmática que nosso pensamento discursivo (logos) tem de tão característico.

Tudo que puder ser pensado em seu pensamento contrário, sem cair em contradição, deve ser posto em dúvida, através de uma suspensão temporária do juízo, antes que se conclua sobre sua verdade. Tal suspensão não é prejudicial à certeza: não tende para a irresolução, mas para uma solução final cujo ônus que sustenta a certeza é a sua condição de arbitrariedade ou, em outras palavras, as certezas são tomadas como crenças4 habituais, principalmente a crença na regularidade da natureza: de que as coisas tendem a repetir, no tempo, determinadas relações entre elas, principalmente relações de causalidade.

Isso significa colocar-se contra uma tradição muito forte na filosofia, que de maneira propedêutica, retira do campo do verdadeiro as questões que no máximo podem ser colocadas sob dúvidas. Descartes, por exemplo. Mas significa aventurar-se para o campo das verdades não racionais, ou de probabilidades, o que vai expressar-se na matemática de Pascal, por exemplo, nas projeções de sólidos e nas postulações juntamente com Fermat de teorias de probabilidades.

Este campo conceitual operado pelos autores, ou melhor dizendo: esse nosso corte arbitrário, nos permite pesar, ponderar e decidir sobre valores nesse campo, apenas veda a conclusão de valores absolutos ou fundamentados, no sentido estrito, já que por definição entendem ser este o campo do indemonstrável e dos “frágeis fundamentos móveis”.

Reiteração da verdade carente de impressão

Evidentemente que, considerando a educação, esse tipo de concepção de verdade não vê com muito bons olhos a reiteração de valores e verdades por horas, anos a fio massacrando uma pessoa.

Isso pode ao invés de formar uma pessoa, forjar um automatismo [biológico] do logos, pronto para ser civil (e servil) sem a menor consciência crítica (ou uma completamente sitiada) que seja.

Pode ser um instrumento que além de fonte de erros, é instrumento também de controle das populações, da desumanização do homem e não o caminho da construção do ser humano. A fundamentação de sua alienação, e não a revelação da verdade. A interferência da educação no que mais nos alardeamos de combater, a sua utilização dogmática e ideológica no aprimoramento e controle das formas de vida humanas.

A educação pode ser uma arma poderosíssima:

1. Na construção de preconceitos (BACON2007,I/XII §7 p.255)

4 Sobre crença, nesse sentido cf. PASCAL1973§252; HUME1999, 5/2§12, p.;

WITTGENSTEIN1996,§472s. Bacon não chega a utilizar crença a não ser no sentido de credo.

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2. De falseamento da verdade (PASCAL1973, §82),

3. De criação de idéias sem impressões (HUME1999 Livro I, Parte III, Sec. IX, p. 146s) ou

4. De automatização do pensamento (WITTGENSTEIN1996, §441).

A história do homem tem demonstrado que frequentemente isso ocorre. Enfim, é um campo que tende para o dogmatismo e a imposição de verdades e consensos implícitos na maioria de suas formulações discursivas, sem que se coloque em questão tais postulados implícitos.

Considere-se, primeiramente, o conceito humeano, central nesta caracterização e interpretação do papel da educação5: as idéias são produzidas por impressões dos sentidos, ou relações entre idéias. Uma idéia só é impressa na mente quando marcada por uma impressão sensível original ou quando, ligando idéias entre si, mantenha a carga original de impressão das idéias tomadas. No entanto, no processo educativo, encontramos um quadro em que, através da reiteração sistemática de determinados conceitos, acabamos tendo uma idéia gravada na mente, ainda que não tenhamos como raiz uma impressão sensível original. Mas tal certeza comporta-se analogamente, com o passar dos anos, como uma certeza habitual original. Isso faz da educação um perigoso campo de construção de preconceito: “idéias sem impressões”, desligadas da experiência.

Assim como os mentirosos, de tanto repetirem suas mentiras, acabam se lembrando delas como fatos, assim também o juízo, ou antes a imaginação, por meios semelhantes, pode ter idéias impressas tão fortemente em si, e concebê-las com tal clareza, que essas idéias podem operar sobre a mente da mesma maneira que aquelas que se apresentam pelos sen- 147 tidos, memória ou razão. (HUME2001, p.147)

E a imaginação, essa soberba potência e inimiga da razão:

Se compraz em controlá-la [a razão] e em dominá-la para mostrar quanto pode em todas as coisas, estabeleceu no homem uma segunda natureza. Tem seus felizes, seus infelizes, seus sãos, seus doentes, seus ricos, seus pobres; faz crer, duvidar, negar a razão; suspende os sentidos, fálos sentir; tem seus loucos e seus sábios: e nada nos despeita mais do que ver que enche seus hóspedes de uma satisfação bem mais plena e completa do que a razão. (PASCAL1973,§82)

A educação, portanto, pode ser um instrumento capaz de:

1. incutir no ser humanos mitos que podem confiná-los em cavernas, obscurecidos da luz do conhecimento (BACON1999, I/LIII);

2. construir nos homens uma segunda natureza, que tem seus próprios verdadeiros e falsos (PASCAL1973, §82);

5 “A educação é uma causa artificial, e não natural, e como suas máximas são

freqüentemente contrárias à razão, e até a si mesmas em diferentes momentos e lugares, ela nunca é reconhecida pelos filósofos. Na realidade, entretanto, ela é construída quase sobre o mesmo fundamento que o de nossa experiência ou de nossos raciocínios de causas e efeitos, ou seja, o costume e a repetição […] apesar de desprezada pelos filósofos, prevalece no mundo.” (HUME2001,149s)

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3. afirmar e difundir falsas crenças, idéias vazias de impressões e pautadas apenas pelo hábito intelectual (HUME2001, Livro I, Parte III, Sec. IX, §16, p. 147s);

4. apenas reprimir a dúvida e o desejo, sem resolver nem explicar e muito menos ensinar nada (WITTGENSTEIN2003, Parte II Sobre a lógica matemática 25 p.320).

Dor e prazer têm duas maneiras de aparecer na mente, cada uma com efeitos bem diferentes. Podem se dar como impressões que se apresentam à sensação [feeling] e experiência real, ou simplesmente como idéias, como ocorre agora que os menciono [idéias sem impressões transmitidas pedagogicamente](HUME2001, seção X, p.149)

Evidentemente que as impressões sensíveis são muito mais fortes na formação da idéia. E nisso a natureza foi sábia:

Escolheu um meio-termo: não conferiu a toda idéia de bem e mal o poder de ativar a vontade, mas tampouco retirou-lhes por completo essa influência. (HUME2001, p.149)

Por mais que a razão grite, não pode valorizar as coisas. (PASCAL1973,§82)

Universo sitiado

Talvez uma das coisas que possa concluir, da discussão precedente, é que a se não podemos tornar alguém sábio pela educação, podemos torná-lo culturalmente estreito, submisso e automatizado enquanto ser. O modelo que está sendo imposto na educação estatal hoje tem por meta justamente a construção de um UNIVERSO SITIADO para o jovem, de forma que ao imaginar-se significando social ou humanamente, esteja já refém de uma rede de significados válidos com os quais deverá operar. Para integrar-se na escola, é preciso que, enquanto cidadão, assuma um conjunto de valores que lhe permita ingressar no campo dos integrados.

Essa reflexão me permite afirmar que o papel da Filosofia na escola é fundamental nos dias atuais. Por ser patentemente inútil para a vida prática, como se diz, é justamente um possível antídoto à construção desse sítio citado acima.

A Filosofia não ensina a pensar, mas pensa a respeito disso; não ensina valores, mas dá instrumentos de ajuizamento; não define a natureza humana, mas justamente mostra que sempre é possível nos concebermos de outra forma.

A filosofia traz um pressuposto que, diferentemente das outras matérias, é indissociável de seu ensino: o amor e respeito pelo pensar, pelo raciocínio humano, pelo conhecimento. Pode-se muito bem aprender matemática, por ser ela necessária para a vida útil, mesmo sem gostar dela, ou sem ver nos números mais do que contas. Entretanto, não se pode buscar o conhecimento sem amar o conhecimento. E mais ainda: quando se busca esse conhecimento

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ele não é uma matéria bruta e pronta para ser assimilada ou transmitida ou revelada, mas seu próprio exercício.

*É preciso saber duvidar quando necessário, afirmar quando necessário, submeter-se quando necessário. Quem assim não faz não entende a força da razão. Há os que pecam contra esses três princípios, ou afirmando tudo como demonstrativo, por falta de conhecimentos em demonstrações; ou duvidando de tudo, por não saberem quando é preciso submeter- se; ou submetendo-se a tudo, por ignorarem quando é preciso julgar. (PASCAL1973,§268)

O cientificismo da sociedade contemporânea dá por certo valores que passam a se tornar conceitos definidos, e acabam por não dar mais conta da própria vida. Somos levados a aceitar o conjunto do que se chama de conhecimento, como uma coisa inquestionável, valores incontestáveis, provados e demonstrados pelos cientistas e aprovados pelos especialistas. No entanto, quando nos voltamos para nós mesmos, tais valores muitas vezes são difíceis de engolir.

Estágios

Nos últimos anos, durante minha licenciatura, fiz um cruzamento de dados das avaliações externas (índices como provões, saresp, enem, sec educ… se desejarem me procurem que tenho os dados) e escolhi as três piores escolas do Estado, e concentrei meus estágios nas que estivessem “ao meu alcance”: Itaquaquecetuba, extremo sul de São Paulo (guarapiranga), numa escola de uma aldeia indígena e na cidade de Mogi, onde tinha uma escola duas vezes constante entre as piores, no fundamental e no médio.

O impasse a que cheguei pode ser expresso de forma contundente, na pergunta recorrente, entre os alunos que passaram por mim nesse estágio pelo “eixo do mal”, seguida de reflexão. A pergunta é: “professor [tio, mano, aí meu…] estudar vai me tirar daqui?!?”…

O bom samaritano logo estaria diante do seguinte impasse: oh! Não posso prometer algo que ele não vai ter acesso, coitadinho dele…

Mas o que me passou pela cabeça foi algo totalmente distinto: a pergunta certa deveria ser: “isso aqui vai me levar para onde?!?”

Eu faria essa pergunta, meus filhos fariam essa pergunta…

Claro que quando não gostamos de onde estamos, qualquer coisa é uma tábua de salvação, nos agarramos a qualquer coisa para mudarmos de posição, acreditarmos afinal em algo, restituir a causalidade que diz: trabalhe, seja honesto, siga as regras e pronto, o natureza vai conspirar, e tudo vai dar certo. E o pra onde, todos o sabemos: pra essa máquina de moer carne, que tem um fetiche de felicidade e segurança, uma bóia, um salva vidas, e que chamam habitualmente de… carteira assinada.

A pergunta é: como fazer crer, ou deixar de crer, que estes jovens não nasceram exatamente para isso? Mas nasceram para quê então, dizem os pais aflitos, os educadores, os governos… Isso é o mais natural.

A lógica é muito simples: desde que os jovens foram proibidos de sair às ruas, em diversas cidades, caiu a violência entre os jovens depois do toque de

[AH1] Comealguém comovida inteira pfilhos e alunocom a possibuniversalizaçescolar?!? Prfinalmente asdireito, ou ma obrigação lfilhos diariamao ambiente melhor, postuque ficar na

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recolher. É óbvio, não saíam mais… Logo, e vejam que bela aplicação da lógica, logo, quanto menos saírem às ruas, menos acidentes.

Molas

"quando o corpo se abate ao peso dos anos, e as molas da máquina estão usadas, oblitera-se a inteligência, obscurece-se o espírito, delira a língua" (Lucrécio, N.doE). [Montaigne, Da idade, 159] .

Estas emoções mais sutis do espírito são de natureza extremamente delicada e frágil, e precisam do concurso de grande número de circunstâncias favoráveis para fazê-las funcionar de maneira fácil e exata, segundo seus princípios gerais e estabelecidos. O menor dano exterior causado a essas pequenas molas, ou a menor desordem interna, é o bastante para perturbar seu movimento, e confundir a operação do mecanismo inteiro. [Hume, Do padrão do gosto, 321]

A natureza pôs-nos de tal modo no meio que, se trocamos um lado da balança trocamos também o outro: Je fesons, zôa trékhei.1 Isso me leva a crer que há molas em nossa cabeça, dispostas de tal maneira que, se se toca uma, toca-se também a contrária. [Pascal, 70]

16 — A eloqüência é a arte de dizer as coisas de maneira: 1.° que aqueles a quem falamos possam entendê-las sem dificuldade e com prazer; 2.° que nelas se sintam interessados, a ponto de serem impelidos mais facilmente pelo amor-próprio a refletir sobre elas. Consiste, portanto, em uma correspondência que procuramos estabelecer entre o espírito e o coração daqueles a quem falamos, por um lado, e, por outro, entre os pensamentos e as expressões de que nos servimos; o que pressupõe termos estudado muito bem o mecanismo do coração do homem a fim de conhecer-lhe as molas e encontrar, em seguida, as proporções certas do discurso que desejamos ajustar-lhe. Cumpre colocarmo-nos no lugar dos que devem ouvir-nos, e experimentar também em nosso próprio coração a forma dada ao discurso, para ver se um se adapta ao outro e se podemos ter a certeza de que o ouvinte será forçado a render-se. É preciso, na medida do possível, confinarmo-nos dentro da naturalidade mais singela; não fazermos grande o que é pequeno, nem pequeno o que é grande. Não basta que uma coisa seja bela, é necessário que sejá adequada ao assunto, que nada tenha de mais, nem que nada lhe falte. [Pascal, Pensamentos, frag 16]

Fragmento do relógio: Os que julgam sem regras uma obra estão em relação aos outros como os que não têm relógios em relação aos demais. Um diz: "Já passaram duas horas", o outro: "Passaram apenas três quartos de hora". Olho o meu relógio, e digo a um: "Você está se aborrecendo", e a outro: r "O tempo anda depressa para você, pois» passou hora e meia". E zombo dos que dizem que o tempo custa a passar para mim, e que julgo pela imaginação: não sabem que julgo pelo meu relógio2 [Pascal, Pensamentos, frag 5]

O vulgo, que toma as coisas tal como lhe aparecem à primeira vista, atribui a incerteza dos resultados a uma incerteza nas causas, que as priva ocasionalmente de sua influência habitual embora não sofram impedimentos em sua operação. Mas os filósofos, observando que há na natureza, quase que em toda parte, uma grande diversidade de móveis e princípios que estão ocultos em razão de serem muito remotos ou diminutos, descobrem que é pelo menos possível que a disparidade dos resultados proceda não de alguma contingência na causa, mas da operação secreta de causas contrárias.

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Observações adicionais convertem essa possibilidade em certeza, quando notam que, após um cuidadoso exame, uma disparidade nos resultados sempre revela uma disparidade nas causas e deriva de sua mútua oposição. Um camponês não pode dar melhor explicação para a parada de um relógio senão dizendo que ele não costuma funcionar bem; mas um artífice facilmente percebe que a mesma força na mola ou no pêndulo sempre tem a mesma influência sobre as engrenagens, embora possa perder seu efeito usual em razão, talvez, de um grão de poeira que interrompe todo o movimento. Da observação de diversos casos paralelos, os filósofos derivam a máxima de que a conexão entre todas as causas e efeitos é uniformemente necessária, e que sua aparente incerteza em alguns casos deriva da oposição secreta de causas contrárias. [Hume, Investigação, Sec 8, §13, pág 125s.]3

Com que finalidade pretenderia eu regular, aperfeiçoar ou revigorar qualquer daquelas molas ou princípios que a natureza implantou em mim? Será este o caminho pelo qual posso alcançar a felicidade? [Hume, O Epicurista, 207]

Comparáveis a grande número de artistas subordinados, usados para formar as diversas rodas e molas de uma máquina, são todos aqueles que se distinguem em qualquer das várias artes da vida. Ele é o mestre-artesão que justa todas essas partes, as movimenta segundo uma justa barmonja e proporção, e consegue a verdadeira felicidade como resultado de sua ordenada conjugação. [Hume, O estóico, 212]

A arte copia apenas o exterior da natureza, esquecendo as molas e princípios interiores, os mais admiráveis, por superarem seu poder de imitação, por ficarem muito além de sua compreensão. A arte copia apenas as mais diminutas produções da natureza, desesperando de atingir aquela grandeza e magnificência que tanto nos enchem de admiração nas obras magistrais de seu original. [Hume, O platônico, 215]

Mesmo que se eliminem as diferenças de interesse, o favor ou inimizade pessoais podem fazer surgir caprichosas e incontáveis facções. Mesmo na mais aperfeiçoada máquina política pode surgir ferrugem nas molas, perturbando seus movimentos. [Hume, Idéia de uma república perfeita, 279]

Assim, a vontade do povo, e a vontade do príncipe, e a força pública do Estado, e a força particular do governo, tudo enfim responde ao mesmo móbil; todas as molas da máquina estão na mesma mão, tudo caminha para o mesmo objetivo: não há movimentos adversos que se destruam mutuamente, e não se pode imaginar nenhuma espécie de constituição em que um esforço menor produza uma ação mais considerável. [Rousseau, Contrato Social, VI Da monarquia]

E também coisa mui digna de nota que, embora existam muitos animais que demonstram mais indústria do que nós em algumas de suas ações, vê-se, todavia, que não a demonstram nem um pouco em muitas outras: de modo que aquilo que fazem melhor do que nós não prova que tenham espírito; pois, por esse critério, tê-lo-iam mais do que qualquer de nós e procederiam melhor em tudo; mas, antes, que não o têm, e que é a natureza que atua neles segundo a disposição de seus órgãos: assim como um relógio, que é composto apenas de rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo mais

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justamente do que nós, com toda a nossa prudência. [Descartes, Disc Método, V Parte]

14. Entretanto, eu não poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detêm-me todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos e não pela tão-só inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos. [Descartes, Meditações, Meditação II, §14, pág. 97]

O que é o eu? Um homem que se põe à janela para ver os passantes, se eu estiver passando, posso dizer que se pôs à janela para ver-me? Não, pois não pensa em mim em particular. [...] Com efeito, Amaríamos a substância da alma de uma pessoa abstratamente e algumas qualidades que nela existissem? Isso não é possível, e seria injusto. Portanto, não amamos nunca a pessoa, mas somente as qualidades. [Pascal, frag. 323]

Para isto servi-me de muitos corpos formados artificialmente pelos homens; aliás, não vejo, efectivamente, nenhuma diferença entre as máquinas feitas pelos artesãos e os diversos corpos formados exclusivamente pela Natureza [a não ser que aqueles feitos pelas máquinas dependem apenas da disposição de certos tubos, molas ou outros instrumentos] e que são proporcionais às mãos daqueles que os fabricam, e como são sempre tão grandes as suas formas e movimentos podem ser facilmente percepcionados; ao passo que os tubos ou molas que causam os efeitos nos corpos naturais são normalmente demasiado pequenos para que os sentidos os possam percepcionar. É verdade que todas as regras da Mecânica pertencem à Física, de modo que todas as coisas artificiais são, por isso, naturais. Por exemplo, quando um relógio marca as horas por meio das rodas que o compõem, isso não lhe é menos natural do que uma árvore produzir frutos. Por conseguinte, quando um relojoeiro olha para um relógio que não fez, mediante a simples observação de uma única parte normalmente consegue avaliar quais são as outras que não vê. Por isso considerei os efeitos e as partes sensíveis dos corpos naturais e procurei conhecer depois as partes insensíveis. [Descartes, Princípios da Filosofia, §204, pág. 236s.]

1 M. Dés Granges nos esclarece, em nota a esta passagem, “Je fesons (eu fazemos). Nessa epressão popular o sujeito está no singular e o verbo no plural: em Ta zôa trékhei, encontra-se a aplicação de uma regra própria da sintaxe grega: o sujeito no plural neutro com o verbo no singular. Pascal assinala essas duas construções como prova de uma lei de oscilação e de um jogo de contrapesos em nosso cérebro.” Pascal, ob. Cit., pág. 54, nota 19.

2Brunschvicg aponta um hábito de Pascal que ajuda a compreender este pensamento: o nosso autor "usava sempre um relógio preso ao pulso

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esquerdo", o que lhe permitia ver as horas sem que os outros percebessem. (N.DoE.)

3Cf. com: Hume, Tratado, Livro I, Sec XII, § 5.

(BACON, curso, metodologia 1999) (BACON, O progresso do conhecimento 2007) (HUME, 

Investigação sobre o Entendimento Humano e Investigação sobre a Moral 1999) (HUME, 

metodologia, curso 2001) (PASCAL, Curso, Metodologia 1960) (PASCAL, Didática, metodologia, 

curso 1973) (WITTGENSTEIN 1996) 

Bibliografia

BACON, Francis. Novum Organum. Tradução: J. A. R. d. Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

—. O progresso do conhecimento. Tradução: R. Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 2007.

HUME, David. Investigação sobre o Entendimento Humano e Investigação sobre a Moral. Tradução: J. O. d. A. Marques. São Paulo: EDUNESP, 1999.

—. Tratado da Natureza Humana. Tradução: t. D. Danowski. São Paulo: UNESP - Imprensa Oficial, 2001.

PASCAL, Blaise. Opúsculos. Tradução: A. Ferreira. Lisboa: Guimarães Editores, 1960.

—. Pensamentos. Tradução: S. Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução: M. G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 1996.