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Educação, Cultura e Sociedade - Abordagens Críticas da Escola - Nildo Viana e Renato Vieira (orgs.)

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Críticas da escola, abordagens antropológicas, sociológicas, políticas, da escola no capitalismo. Estes são alguns dos temas abordados neste livro, que tematiza a formação humana e o trabalho, as desigualdades sociais na escola, o significado pedagógico dos contos de fadas, a relação entre violência e escola, a diversidade cultural e sua manifestação no mundo escolar, a família e autoritarismo no processo educacional, a religiosidade e a lógica popular, a desintegração camponesa e a educação rural.

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Educação, Cultura e Sociedade Abordagens Críticas da Escola

Cleito Pereira Jean Paraízo Alves

Maria Angélica Peixoto Nildo Viana (org.)

Ovil Bueno Fernandes Renato Gomes Vieira (org.)

Rosani Moreira Leitão Veralúcia Pinheiro

Prefácio de José Carlos Libâneo

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Germinal

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Educação, Cultura e Sociedade Abordagens Críticas da Escola

Cleito Pereira Jean Paraízo Alves

Maria Angélica Peixoto Nildo Viana (org.)

Ovil Bueno Fernandes Renato Gomes Vieira (org.)

Rosani Moreira Leitão Veralúcia Pinheiro

Prefácio de José Carlos Libâneo

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© Edições Germinal Todos os direitos desta edição reservadas à Edições Germinal Goiânia – Goiás 2002 http://www.edicoesgerminal.hpg.com.br [email protected] Capa: Nildo Viana

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ÍNDICE Prefácio_______________________________________________ 07 José Carlos Libâneo Apresentação___________________________________________ 13 Organizadores Formação Humana e Trabalho______________________________15 Renato Gomes Vieira Educação e Desintegração Camponesa_______________________ 33 Ovil Bueno Fernandes O Significado Pedagógico dos Contos de Fadas________________ 51 Maria Angélica Peixoto e Nildo Viana O Paradigma da Educação Autoritária: A Contribuição da Família ___59 Veralúcia Pinheiro Religiosidade e Lógica Popular____________________________ 79 Jean Paraízo Alves Educação, Cultura e Diversidade___________________________ 87 Rosani Moreira Leitão Educação, Estrutura e Desigualdades Sociais__________________ 99 Cleito Pereira dos Santos Violência e Escola______________________________________ 111 Nildo Viana

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SOBRE OS AUTORES

Cleito Pereira Economista. Sociólogo. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás e Faculdade de Caldas Novas - Unicaldas. Jean Paraízo Alves Graduado em Ciências Sociais/UFG e em Direito/UCG; Especialista em Políticas Públicas/UFG; Mestre em Sociologia/UFMG. Maria Angélica Peixoto Graduada em Ciências Sociais/UFG; Especialista em Educação e Diferença/UFG; Mestre em Sociologia/UnB. Professora da Universidade Católica de Goiás. Nildo Viana Graduado em Ciências Sociais/UFG; Especialista em Filosofia/UCB; Mestre em Filosofia/UFG; Mestre em Sociologia/UnB; Doutorando em Sociologia/UnB. Professor da Universidade Estadual de Goiás. Autor de A Filosofia e Sua Sombra, Escritos Metodológicos de Marx, entre outros livros. Ovil Bueno Fernandes Graduado em Ciências Sociais/UFG; Especialista em Metodologia do Ensino Superior/UEG e Professor da Universidade Estadual de Goiás. Renato Gomes Vieira Graduado em Ciências Sociais/UFG; Mestre em Educação/UFG; Professor de Sociologia da Universidade Salgado de Oliveira – Universo e da UFG (no curso de formação de professores da prefeitura de Goiânia). Rosani Moreira Leitão Graduada em Ciências Sociais/UFG; Especialista em Políticas Públicas/UFG; Mestre em Educação/UFG; Doutoranda no Programa do Centro de Estudos e Pesquisa para a América Latina e Caribe – CEPAC/UnB. Professora da Universidade Estadual de Goiás. Veralúcia Pinheiro Graduada em Serviço Social/UCG; Especialista em Políticas Públicas/UFG; Mestre em Educação/UFG. Professora na Universidade Católica de Goiás.

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PREFÁCIO

José Carlos Libâneo*

Pedem-me os autores deste livro umas palavras introdutórias aos seus textos. São eles vinculados, de algum modo, a referenciais de análise obtidos nas ciências sociais, pelo que seus textos refletem um ponto de vista sociológico das práticas educativas. Da minha parte, minhas referências teóricas são buscadas na pedagogia e na didática, resultando disso uma visão eminentemente pedagógica dos fenômenos, dos processos, das estruturas. São, de fato, dois olhares necessários e intercambiáveis da realidade educacional, todavia, distintos entre si, por mais que o sociólogo deva pensar sobre a relevância de suas análises para as salas de aula e o pedagogo deva sempre situar seu trabalho nas escolas em contextos macro-institucionais e macro-sociais.

Não obstante essa diferença, aceitei prefaciar este livro, sabendo seus autores que a maior parte de suas idéias seriam por mim compartilhadas – já que defendo uma visão crítica da educação – mas, também, que algumas delas não obteriam minha concordância. Especialmente, devo dizer que quase todos os textos tratam de questões sumamente pertinentes à análise da prática escolar mas são, a meu ver, um tanto cáusticos em relação à instituição escolar. Não deixa de ser desafiante, pois, atender ao pedido que os colegas me fazem para prefaciar seu livro já que, sabedores da minha predileção por uma visão assertiva da escola, especialmente a escola pública, vêem a escola sob um prisma diferente do meu.

Os textos ora reunidos gravitam em torno de temas muito atuais e emblemáticos da problemática da educação hoje: formação e trabalho, educação e diferenças culturais (educação no campo, família, religiosidade, cultura indígena), educação e desigualdades sociais (a estratificação social pela educação, a violência), educação e ideologia (conto de fadas). Todos eles, de alguma forma, partem de uma visão crítica das práticas educativas na sociedade capitalista, possibilitando aos leitores educadores captar as tramas sociais, os antagonismos, as disparidades provocadas por uma forma de organização da sociedade profundamente opressora, injusta, excludente. Os professores que lidam nas escolas não podem eximir-se da compreensão das práticas reais e concretas em que vivem seus alunos e eles próprios e das formas de organização política da * Professor da Universidade Católica de Goiás.

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sociedade visando manter a luta incessante pela transformação das relações sociais vigentes. Daí a importância de lerem este livro.

Com efeito, conforme explicita um dos textos, ampliaram-se o acesso à escolarização e os anos de permanência na escola mas as desigualdades sociais continuam. É, também verdade, que persistem mecanismos escolares internos que são seletivos e marginalizadores, contribuindo para que mantenham as diferenças e desigualdades sociais. Será sempre oportuno que as professoras e professores aprendam a identificar essas formas de marginalização social e afetiva presentes na escola e na sala de aula, inclusive ações que eles próprios podem estar praticando com seus alunos.

As relações entre formação e trabalho, tema de outro texto, constituem-se numa das problemáticas mais marcantes da atualidade. As alterações no mundo da produção – também conhecidas como reestruturação produtiva – modificam as formas de trabalho e requerem novos tipos de qualificação e formação profissional. O autor mostra, com muita propriedade, o papel que o capital reserva às escolas: adequar-se ao sistema produtivo, às exigências do mercado e da competição. Para isso, propostas neoliberais propõem a refuncionalização das escolas, investindo-se na formação geral, na formação do raciocínio e desenvolvimento das capacidades, no provimento de condições para a autonomia de pensamento. O paradoxal disso é que sejam essas tarefas também requeridas na formação dos trabalhadores. Há que se considerar, também, que a reorganização das escolas para as necessidades postas pelo novo paradigma produtivo entra em contradição com características trazidas por esse mesmo paradigma: redução dos postos de trabalho, redução dos salários, desemprego, desregulamentação das leis trabalhistas etc.

Olhando essas questões do ponto de vista da população trabalhadora, espera-se que as escolas preparem os alunos para a vida e, também, para o trabalho, mas como formar para a sociedade e não apenas para o mercado de trabalho? Ou, dizendo de outro modo, o que fazer nas escolas para ligar o mundo do trabalho com as lutas pela superação das desigualdades e da exclusão social? São vários os dilemas postos ao sistema de ensino e aos educadores, suscitados pelo texto sobre formação humana e trabalho.

A violência escolar e a violência na escola é um tema que toca de perto a realidade das escolas hoje. Segundo o autor, a violência da escola se manifesta em dois tipos de violência, a disciplinar e a

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cultural, que impõem práticas, significados, valores, saberes, modos de agir e de pensar, determinado tipo de ordem e de regras às instituições. Ela também se manifesta por práticas de contestação da cultura dominante e de recusa da escola por parte dos que são vitimas da violência disciplinar e cultural, os alunos. Já a violência na escola são aquelas formas de violência não produzidas pela escola, isto é, vêm de fora dela: da família, de ex-alunos, de grupos ligados ao narcotráfico, de ladrões. Para o autor, a solução seria contestar a violência da escola mediante auto-organização dos estudantes para instaurar novas práticas escolares (por suposto, nem disciplinares nem culturais) voltadas para formas de socialização não repressiva e não-conservadora.

Um outro texto aborda a cultura indígena para destacar que as escolas não podem ignorar formas diferenciadas de ordenação e interpretação do mundo e formas peculiares de solucionar problemas concretos da vida cotidiana. Frente à ocorrência de múltiplas formas de diversidade cultural, propõe-se um relacionamento mais pluralista, menos autoritário e preconceitos quanto ao outro, ao diferente, um desafio aos professores.

Textos como os que tratam da religiosidade popular, da família e da educação no campo, como ingredientes da formação cultural e da constituição das subjetividades, são extremamente úteis para possibilitar aos educadores a ampliação de seu foco de visão frente à cultura inter-subjetiva. O texto sobre contos de fadas é um exemplo de como conteúdos aparentemente viciados por uma visão de classe social podem ser vistos, também, na sua positividade, como possibilidade de desenvolvimento da criatividade, da imaginação.

Vê-se, pois, uma gama de temas que tocam diretamente a vida da escola e o trabalho de educadores que, em muitos lugares e sob várias modalidades, fazem educação. Dizia nosso querido amigo Carlos Rodrigues Brandão, não há educação, há educações. Este livro quer, pois, educar educadores para uma visão crítica de questões que transvasam as práticas educativas.

Todavia, qual seria o olhar do pedagogo? Não é pertinente, neste espaço, argumentar mais detidamente com os autores, apenas quero sugerir idéias para a ampliação do diálogo. Em primeiro lugar, não penso que o sistema de ensino formal seja hoje a instância responsável pela reprodução das desigualdades sociais. A escola é uma parcela da sociedade e nem é a mais importante, hoje há um peso considerável das práticas sociais extra-escola, especialmente o

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mundo da informação e comunicação na determinação de valores, modos de agir, comportamentos. A estrutura social geradora das desigualdades, as diferenças, preexistem à escola e esta nem sequer dá conta por si só de promover mudanças. É preciso, sim, resistir a imposições culturais, inclusive as disciplinares, mas a luta pela autodeterminação e reafirmação das identidades culturais supõe o saber sistematizado, o desenvolvimento dos processos mentais, o espaço de apropriação das contradições sociais. É paradoxal, mas a critica à escola supõe passar pela escola.

Em segundo lugar, a escola constitui-se hoje num espaço de síntese, ela articula a cultura formal com a vida fora da escola, isto é, com outras culturas como a social, a organizacional, a institucional, a experiencial dos alunos. A questão é saber acolher a diferença, é pensar o currículo e as metodologias, frente a essa variedade de culturas que atravessam a escola por dentro. Penso que a escola é espaço de contradições e somente nesta perspectiva é possível compreender sua positividade. Para a população trabalhadora não creio que haja outro lugar mais adequado para o desenvolvimento da razão crítica, formação de cidadãos participativos, críticos, à medida que lhes possibilita armas de luta contra o domínio cultural, intelectual, político e econômico, de que é vítima nesta sociedade capitalista.

Em terceiro lugar, é extremamente útil a teoria do habitus de Bourdieu, que explica a formação das disposições, e que isto é gerado pela cultura. Mas convinha nos apropriarmos de contribuição do mesmo Bourdieu quando utiliza a noção de campo. O espaço social global é um campo de forças e de lutas no qual os agentes se enfrentam, tendo em vista a conservação ou transformação. Ou seja, esse campo de forças que vigora numa sociedade ou num segmento dela carrega sempre possibilidades de mudança, inclusive das representações e esquemas de ação dos agentes. Os professores, conhecendo a realidade e suas relações complexas, podem pensar suas formas de ação em outra direção, em outra perspectiva, experimentar novos modos de estar no mundo, um novo habitus.

Quarto, não posso aceitar a idéia de que escola seja um lugar de trabalho capitalista, não há uma incidência mecânica na organização escolar das relações sociais que ocorrem no âmbito da sociedade. A escola está funcionalizada aos interesses capitalistas, prepara sujeitos para o mercado de trabalho, mas ela tem uma natureza institucional e social tal que lhe permite mover-se para outros interesses e para a

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busca de outras formas organizacionais. Penso que a democracia pode deixar de ser um sonho se formos suficientemente realistas para buscar soluções a partir das condições existentes, em qualquer lugar onde haja agentes humanos capazes de mobilizar seus desejos e suas energias para se oporem ao constituído, ao determinado, ao imposto.

Há que se reconhecer, finalmente, junto com os autores deste livro, a anterioridade do todo social e, portanto, da estrutura de relações sociais vigente, em relação às instituições e às pessoas. Não deixa de ser verdadeiro, em conseqüência, a necessidade de organização da sociedade para lutar contra as injustiças, a concentração da renda, as desigualdades. Mas, também, sugiro uma pauta social e política assertiva para as esquerdas. A população pobre e excluída precisa do acesso ao conhecimento escolar como condição para interpretar o mundo e atuar na sua transformação. Sem escolarização e formação geral básica reduzem-se as possibilidades de emprego e as pessoas podem cair na vala da exclusão social. A educação escolar pode propiciar uma mínima garantia de sobrevivência, embora não faça isso sozinha, juntando duas coisas: a preparação dos alunos para as novas necessidades da produção e consumo e a formação para a cidadania, isto é, formação de sujeitos capazes de participar das relações de poder na sociedade, de influir nas decisões que afetam sua própria existência e interferir criticamente nos espaços de construção da democracia.

Que este livro tenha uma longa caminhada junto aos educadores de todos os lugares, especialmente aos que atuam ou atuarão nas escolas, já que sua função é alimentar a razão crítica e prover meios cognitivos de compreender o mundo contemporâneo e ganhar competência para transformá-lo. Ainda recorrendo a Bourdieu, a riqueza da análise sociológica é que ela oferece alguns dos meios mais eficazes de acesso à liberdade que o conhecimento dos determinismos sociais permite conquistar, contra os determinismos.

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APRESENTAÇÃO

Nildo Viana Renato Gomes Vieira

A presente coletânea traz um conjunto de artigos sobre os mais

variados temas relativos à educação. O seu título já revela a sua amplitude: Educação, Cultura e Sociedade. O termo educação pode ser compreendido em seu sentido amplo, como socialização, o processo de inserção do indivíduo na sociedade. Vários artigos tratam deste termo neste sentido, embora focalizem a educação escolar, ou seja, o termo educação em sentido restrito, como o processo formal, institucional de socialização. Cultura é um termo amplo que possui, tal como já colocaram alguns antropólogos, mais de duzentas definições. Considerando cultura seja no sentido mais restrito, como as formas de manifestação de toda e qualquer espécie de produção intelectual, seja num sentindo mais amplo, de toda produção humana (material e intelectual), ela está presente aqui em todos os textos. Sociedade, compreendida como o conjunto de relações sociais existentes num determinado momento histórico e sob determinada forma, eis outro elemento presente permanentemente nos ensaios aqui apresentados.

No entanto, resta saber o que une textos sobre temas tão diferentes, tais como o significado dos contos de fadas, a educação autoritária, as desigualdades sociais e o processo educativo, a relação entre trabalho e educação e da escola e violência, a diversidade cultural e a religiosidade popular, a cultura camponesa. Aparentemente nada poderia unir tais textos, mas uma leitura atenta nos fornece o fio para compreender o que há de comum em todos estes ensaios. Todos eles apresentam abordagens críticas da escola, seja através de referência direta a ela, seja através de observações indiretas.

A escola está intimamente envolvida com o processo de reprodução das desigualdades sociais, com a desintegração do campesinato, com a violência, com o autoritarismo, com o “adestramento” da força de trabalho para ser explorada pelo capital, com a destruição da cultura indígena.

Três textos, no entanto, parecem destoar dos demais, pois não se refere diretamente à escola. Dois destes textos podem ser incluídos no que denominamos crítica indireta da escola. Estes textos são os que tratam dos contos de fadas e outro sobre a cultura popular. Eles realizam uma análise de elementos contidos na presente coletânea –

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Nildo Viana e Renato Gomes Vieira Apresentação

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socialização em sentido amplo, sociedade, cultura – e, o que é fundamental, colocam elementos de crítica indireta à escola, pois ao colocarem a positividade da socialização extra-escolar e a riqueza da cultura não-escolar contida nos contos de fadas e na religiosidade popular, fazem uma crítica à educação escolar, evidenciando a capacidade dos seres humanos de desenvolverem sua criatividade, sua percepção da realidade, fora dos muros e grades que cercam uma escola, o que significa, no final das contas, uma crítica implícita a esta instituição que precisa de muros e grades. O terceiro texto que nos referimos não trata da escola diretamente mas da família, enquanto paradigma da educação autoritária que se reestrutura no espaço escolar, ou seja, temos aqui novamente uma crítica da escola, que observa sua estrutura autoritária como sendo gerada em instituições extra-escolares.

Desta forma, os oito textos aqui presentes, deixando de lado suas diferenças – algumas evidentes – realizam uma crítica da educação escolar e contribuem sobremaneira para repensarmos a escola e nosso posicionamento diante dela, bem como para abandonarmos o “messianismo pedagógico”, por um lado, e o “mito da escolarização”, por outro, duas posições diante da instituição escolar, uma a colocando como “salvadora” e “redentora” da sociedade, meio fundamental de transformação social, outra a apresentando como meio de ascensão social e de superação das desigualdades. A primeira visão ilusória da escola esquece que seu papel primordial é reproduzir a sociedade que lhe criou e a outra esquece que ela é, como tudo o mais em nossa sociedade, uma instituição onde a competição é a palavra de ordem e onde somente os mais aptos sobrevivem.

Mas a crítica não vem apenas para destruir, pois toda destruição significa, ao mesmo tempo, a construção de algo novo. A destruição, é, na verdade, uma forma de construção, de transformação. O que é destruído é substituído por algo. Então, uma vez realizada a crítica da escola, resta saber o que iremos colocar em seu lugar. A escola não produz transformação social, mas pode contribuir com ela, e para isto ocorrer ela deve, primeiramente, transformar a si mesma. Eis a lição das abordagens críticas da escola contidas aqui.

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FORMAÇÃO HUMANA E TRABALHO

Renato Gomes Vieira

O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi libertado da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo. O tempo da flexibilidade é o tempo de um novo poder.

Richard Sennett As últimas três décadas estão sendo marcadas por uma série de

mutações que continuam a receber as mais diversas e variadas denominações e conceituações, no campo econômico, político e social. Uma observação do cotidiano serviria para demonstrar a verdadeira avalanche de processos sociais velhos e novos que se mesclam: globalização ou mundialização, reestruturação produtiva, neoliberalismo, novas tecnologias, declínio do welfare state, exclusão social, novos modelos de competitividade, crescimento do setor terciário, mudanças nas relações de trabalho com precarização e flexibilização da força de trabalho, dos mercados de emprego, dos produtos e do consumo, convivendo com exigências ampliadas nos padrões de qualificação, ao mesmo tempo em que cresce também a dualidade social.

O campo educacional não poderia estar isento de receber influências e participar destas transformações e buscar respostas aos novos problemas que se somam aos já habitualmente conhecidos. Mas um fato relativamente novo marca estas relações: a educação e formação humana sofreram uma grande revalorização enquanto caminho e instrumento viabilizador da competitividade num mundo globalizado, como condição sine qua non ao sucesso individual e da empresa, no mercado de emprego e mundial respectivamente e, por extensão, como resposta crucial à reconversão e reestruturação produtiva, organizacional e gerencial do mundo moderno.

As perspectivas atuais do campo educacional estão sendo orientadas fortemente, pelas duas grandes estratégias colocadas em andamento pelas classes dominantes para servirem como obstáculos à crise em que se debate o capitalismo desde a década de 70, a reestruturação produtiva e o neoliberalismo.

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Renato Gomes Vieira Formação Humana e Trabalho

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A visão neoliberal de mundo procura impor uma determinada ótica sobre as relações entre produção e educação, como se houvesse uma necessidade mecânica de adequação do último termo ao primeiro, com a conseqüente redução do papel das escolas a um mero atendimento da formação de mão de obra para o processo de reestruturação das empresas modernas. Quando isto não acontece, sucede-se uma crise do sistema educacional, resultado justamente da desarticulação da relação educação/mercado.

Esta maneira de enfocar os problemas oriundos da complexa relação entre educação e trabalho é a que poderíamos denominar fetichismo da educação, desenvolvida também em outras variáveis: vivemos em uma nova sociedade “pós-industrial” do conhecimento, na qual a educação tem papel primordial enquanto instrumento mais eficaz para aquisição de sucesso e competitividade, enfim uma formação flexível para um mercado flexível onde todos teriam seus espaços e colocações, mas onde, ao mesmo tempo, há um obscurecimento das reais relações envolvidas nestes complexos e variados movimentos. Os limites impostos pelo capital na realização dessas metas tendem a limitar a extensão de sua generalização, seja porque as funções de um sistema educacional não se limitam àquelas descritas, seja porque os aspectos que contradizem àquelas aspirações são por demais evidentes, bastando para tanto uma simples observação na generalização da precarização do trabalho e do desemprego estrutural. (Frigotto, 1998; Antunes, 1995).

Os processos de trabalho em curso, apesar de algumas modificações importantes, principalmente a utilização da subjetividade do trabalhador, não alteram características imprescindíveis do trabalho no seio da sociedade capitalista: a divisão social do trabalho, a divisão entre concepção e execução, a divisão entre quem tem o comando e a riqueza e aqueles que obedecem e são desprovidos de meios de produção. A dualidade persiste como uma norma na sociedade, mesmo ou apesar de longas apologias sobre os novos e “enriquecedores” processos de trabalho.

Os projetos educacionais vinculados e englobados pela dupla reestruturação produtiva/neoliberalismo requerem uma educação (centrada na educação básica, principalmente nos países periféricos) baseada no desenvolvimento de habilidades básicas e competências (atitudes, conhecimentos, valores e gestões de qualidade) voltadas para a produtividade e competitividade exigidas pelo mercado de trabalho no mundo atual. O necessário do ponto de vista empresarial,

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como insistentemente vem sendo salientado, é a adequação da escola e da mão-de-obra com base formativa sólida e seu posterior aprofundamento, ao sistema produtivo perpassado por um viés ideológico em que o indivíduo “educado” esteja livre de compromissos políticos, sociais e éticos e porte apenas algumas habilidades para venda no mercado de sua força de trabalho. Configura-se, assim, uma nova pedagogia do capital, não tão diferente da existente (os próprios processos de trabalho não mudaram tanto), mas com indubitáveis modificações quando se inseridos na linguagem e prática educacional, de maneira forte, termos como flexibilidade, abstração, polivalência, aprendizagem rápida, como determinantes das novas capacidades requeridas pelo mundo do trabalho (Frigotto, 1998; Fidalgo, 1996; Costa, 1995; Machado, 1996).

Os processos, ora em prática, de reformas na produção e na educação que são denominados neoliberalismo/reestruturação produtiva implicam a preparação/formação/disciplinamento de um trabalhador apto a participar dos novos processos produtivos flexibilizados. Estes espaços estão fortemente reduzidos em especial nos postos de trabalho estáveis e sobram empregos de baixa qualificação. Num mercado dualizado desta maneira, não é paradoxal o ataque à educação pública, apresentada como ineficiente. Pelo contrário, é até compatível com a lógica que segue o movimento do capital. A educação, neste processo, deve incorporar os valores do mercado regidos pela eficiência, lucro, produtividade, êxito, competição, que lhe permitam também preparar uma mão-de-obra para este mercado dual, que separa os “bons” dos “ruins” e negligencia elementos que, se não no todo, pelo menos em parte, orientaram a formação das redes de ensino público e gratuito: a cidadania, a participação, a igualdade. A ênfase no desenvolvimento da educação básica, na necessidade de escola para todos, de educação de qualidade para inserção no mercado de trabalho, não pode levar a desconsideração do fato de que a escola deve preparar uma mão de obra com certas características importantes no processo de produção “estimuladas” no ensino fundamental e, ao mesmo tempo, selecionar previamente aqueles “bons” para o processo produtivo daqueles “fracos” rebaixados para trabalhos mais degradados (Kuenzer, 1998: 68).

Se nos processos de trabalho os elementos de envolvimento e cooptação dos trabalhadores, a utilização de sua subjetividade, sua capacidade intelectual adquiriram uma revalorização, trata-se agora de

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“ganhar” os coletivos de trabalho para executar, cuidar e resolver os problemas desta natureza segundo a lógica do mercado, especialmente a que transforma os sujeitos do trabalho em clientes, fornecedores e consumidores e deve ser internalizada de maneira mais sólida na escola. Isso para individualizar cada vez mais as relações, ganhando o trabalhador já nos bancos escolares para a lógica da valorização, colocando sobre seus ombros a necessidade de seu envolvimento acentuado com a dinâmica da empresa como razão direta de seu sucesso ou insucesso; estar em alerta com o andamento da produção; otimizar o tempo de produção; atender às solicitações da chefia; participar ativamente dos grupos de controle de qualidade; saber trabalhar com várias máquinas (polivalente); estar em ininterrupta formação que permita a mobilidade e adaptação constante do trabalhador na empresa, enfim, construir uma série de condições para que o indivíduo empenhe sua subjetividade no processo produtivo com o intuito precípuo de evitar perdas.

Apropriar-se da subjetividade do trabalhador passa a ser, diante das mudanças forjadas na produção, uma condição importante para o prosseguimento normal do processo de trabalho e de valorização, sem os obstáculos e dificuldades da produção próprios da organização de trabalho fordista que vinham se acumulando. Utilizar-se intensa e prolongadamente da subjetividade do trabalhador tornou-se o cerne do aumento da produtividade.

Todos estes pré-requisitos serão evidentemente criados ou estimulados na empresa, mas a educação e formação humana a cargo das escolas deve se constituir em peça imprescindível na configuração de um perfil de trabalhador socializável para uma dinâmica capitalista, papel que, por sinal, este já cumpria, mas agora se intensifica dentro do momento histórico de mudanças e novas exigências do processo produtivo capitalista, onde o envolvimento, a motivação, a comunicação, a lealdade, a capacidade de abstração são importantes no coletivo de trabalho, segundo as determinações do capital que é, afinal de contas, quem proporciona a orientação do processo, não desconhecendo evidentemente as variadas resistências por parte do trabalho e na escola.

Diante de uma relação complexa entre trabalho-educação, com as novas metamorfoses produtivas organizacionais, gerenciais e tecnológicas em curso apontando para uma certa revalorização dos conteúdos gerais e um aumento médio da qualificação, é preciso lembrar que a lógica de polarização não subsumiu a uma dimensão

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totalmente qualificadora, validando uma visão otimista das mudanças, pois velhos e novos problemas, persistem: segmentação e fragmentação do mercado de trabalho, trabalho precário, aumento do ritmo de trabalho, crise das formas de representação dos trabalhadores, etc. Está claro, então, que o potencial que a nova base técnica microeletrônica e os novos processos de trabalho possuem de a partir da superação da “base técnica eletromecânica e a organização fordista de trabalho”, criar uma maior integração e métodos mais participativos e qualificados de trabalho, não está totalmente garantido. O processo é bem mais complexo como apontam diversos estudos, onde coexistem métodos fordistas e flexíveis de trabalho, ocupações altamente qualificadas com formas precarizadas e segmentadas, como já foi referido anteriormente (Wood, 1991; Antunes, 1995; Harvey, 1992).

Neste contexto, importante também é ressaltar que, se os novos processos de trabalho aportam características novas, algumas nuances dos processos antigos, nomeadamente o fordismo-taylorismo1, persistem ainda, porque o sentido do processo de trabalho ainda é o da acumulação e valorização do capital. O fordismo continua bem vivo e quase sempre se mescla a processos novos, aqui e alhures. E se o significado que se sobressai não é o opressivo e degradante da era fordista, o componente envolvente e manipulatório do modelo toyotista, sueco, e outros não se volta para uma formação integral do sujeito, mas, sim, para os interesses do mercado e do capital. (Antunes, 1995; Harvey, 1992).

A educação integra este contexto, influindo, e sendo influenciada, e se refazendo. Se até recentemente era possível verificar na literatura e prática educacionais uma presença notável de termos como cidadania, formação integral, participação, omnilateralidade, entre tantos, a onda avassaladora de mutações contemporâneas

1 “O fordismo representa a adaptação do taylorismo à linha de montagem e

também está voltado para a produção estandardizada para o consumo de massa, se possível a custos unitários sempre decrescentes. Enquanto economia de escala, tira todo proveito da base eletromecânica para disciplinar e intensificar o trabalho segundo um ritmo imposto mecanicamente. A estrutura ocupacional apresenta-se polarizada, hierarquizada e rígida. Salvo um pequeno grupo de trabalhadores qualificados, composto por técnicos, tais como ferramenteiros e da manutenção, a grande maioria não requer atributos escolares e culturais de alguma relevância” (Machado, 1994, 174).

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provocou o desaparecimento de alguns destes termos e outros foram convertidos a seu sentido original e aprisionados pela lógica da competitividade e do mercado como investimento que permite ao indivíduo adquirir oportunidades cada vez mais escassas num mercado de trabalho cada vez mais seletivo (empregabilidade). (Frigotto, 1998; Kuenzer, 1998).

A produção flexível e integrada2, em suma, os novos processos de “acumulação flexível” (Harvey, 1992) esperam/exigem do trabalhador um conjunto de características como criatividade, autonomia, participação, iniciativa no horizonte de pensamento da empresa para viabilizar a sua competitividade em um mercado global3.

De qualquer maneira é preciso considerar que atividades de operação, programação e manutenção sofrem modificações para se adaptarem à organização flexível e integrada de trabalho, exigindo destes trabalhadores “a participação, o interesse e o envolvimento” para o atendimento rápido das mudança do mercado. Saber trabalhar nesta variedade e nessa flexibilidade passa a ser uma qualidade importante da mão de obra:

Se de um lado, é necessário ter abertura, criatividade, motivação, iniciativa, curiosidade, vontade de aprender e de buscar soluções, de outro, deve-se demonstrar cooperação,

2 “Em termos econômicos, as vantagens para o capital são inigualáveis:

aumenta-se a produtividade do trabalho, graças à economia de tempo e à subseqüente redução do custo do trabalho e da energia; obtém-se uma flexibilidade extraordinária para a adaptação da produção às variações da demanda, o que envolve a nova relação com o tempo, mencionada acima. Contudo, acontece que, por força da sua configuração social capitalista, todas as qualidades e vantagens das novas tecnologias aparecem como atributos do capital, dono das tecnologias. Na sua função de capital, as tecnologias funcionam segundo a lógica do lucro e servem para reforçar o poder sobre o trabalho em geral” (Castro, 1994).

3 “Para enfrentar a ‘vulnerabilidade’ tecnológica, o capital redescobriu a humanidade do trabalhador assalariado, que foi ignorada pelo taylorismo. Forçado pela vulnerabilidade e complexidade da sua nova base técnica-organizacional, o capital passa a se interessar pela apropriação de qualidades sociopsicológicas do trabalhador coletivo por meio dos chamados sistemas sociotécnicos de trabalho em equipe, dos círculos de qualidade, etc. Trata-se de novas formas de gestão da força de trabalho, que visam garantir a integração do trabalhador nos objetivos da empresa” (Castro, 1994).

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responsabilidade, organização, equilíbrio, disciplina, concentração e assiduidade.

Essa forma grupal de organização constitui uma novidade capaz de introduzir ganhos significativos em termos de produtividade com a combinação de capacidades humanas, antes degradadas pelo esquema taylorismo-fordista. Ela modifica a estrutura hierárquica verticalista anterior e confere espaços e oportunidades de manifestação, exercício e desenvolvimento de competências, ao permitir maior integração vertical e horizontal das informações. (Machado, 1994:182).

Paradoxalmente, negando os espaços de abertura, forma-se nas várias redes de educação um indivíduo inserido em um contexto de alta competitividade e extremamente individualista, pois é ele o responsável pelo próprio (in) sucesso e não as condições sócio-econômicas em que vive. Neste ambiente busca-se centralizar as discussões e ações sobre a necessidade de uma educação eficiente e de qualidade, continuada e permanente. O momento do emprego vitalício e seguro ficou no passado, a imprevisibilidade impõe aos trabalhadores (jovens, adultos e velhos) a ininterrupta formação para sua colocação com “segurança” e “estabilidade”, momentâneas. A influência das novas tecnologias não pode estar restrita a uma mera relação entre educação e produção de um determinado trabalhador, pois seus papéis e efeitos vão além, atingindo as pessoas também na sociedade como um todo.

O fetiche da educação está em centrar nos processos educativos e de formação a chave mágica da solução dos problemas deste mundo em permanente mudança. Se as exigências do mercado e da vida social apontam na direção de uma certa elevação da qualificação média da população, não se pode esquecer sua estreita ligação com os interesses do capital que é efetivamente quem dirige/comanda os processos formativos humanos, não em direção a uma formação ampla e multifacetada. Em qualquer destes processos volta a aparecer pelas portas do fundo da edulcorada realidade, os elementos que nunca se ausentam na existente e real sociedade capitalista, a exclusão e a dualidade social (Frigotto, 1998: 65).

Essa nova revalorização das questões atinentes ao campo educacional deve ser vista com muita cautela, especialmente quando

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vinculada aos novos requerimentos do setor produtivo ou, então, a uma versão aprimorada, da educação como eixo propulsor do desenvolvimento econômico. Seu caráter fetichista e ilusório sobressai-se diante de um panorama claro de ampliação do desemprego, agora estrutural, que atinge também ou principalmente os jovens (Paiva, 1993:311).

Um “novo” elenco de elementos constitui as diretivas básicas para o sentido que a formação humana tende a estabelecer, em qualquer ordem que sejam tomados, acrescidas evidentemente das características sociais mais persistentes: a incerteza, a precarização e a disponibilidade para o emprego/desemprego. As perspectivas de um processo geral de enriquecimento não se realizam. A dualidade da mão de obra persiste, a proximidade da matéria-prima ou da informação nestes processos produtivos flexíveis diferenciará os trabalhadores na estrutura ocupacional, pois alguns utilizam, na produção, recursos como abstração e outros já mencionados, e muitos continuam com sua rotina de atividades mais degradadas (Machado, 1994; Paiva, 1993). São faces de um mesmo processo o movimento do capital em busca de valorização, que assume a forma de neoliberalismo/reestruturação produtiva, portanto só podendo ser melhor compreendido nesta unidade.

Este conjunto de referências sobre o perfil da força de trabalho hoje, pode ser melhor definido, seguindo as indicações de Castro (1994), a partir de quatro importantes aspectos sobre as relações entre as novas modificações na produção e na educação. O primeiro deles, refere-se a necessidade de maior capacidade de abstração do trabalhador, pois as novas tecnologias parecem apontar para uma atividade de supervisão de processos e regulagem de máquinas. O segundo indica uma necessidade maior de verbalização e simbolização no trato com o trabalho. O terceiro aspecto implica uma dissociação entre o aprender e o fazer em benefício de formas voltadas mais para capacidades de aprendizagem de princípios científicos genéricos. Decorrente de tudo isso, existe a necessidade de mão de obra polivalente e com conhecimento que lhe permita atuar em diversas situações.

Neste quadro uma mudança deve-se fazer com urgência: a da função da escola enquanto mecanismo de integração social imprescindível. O conceito de educar e formar, deve ser tomado no sentido do emprego e também, de maneira cada vez mais presente, no do desemprego, assinalando o fim de uma era (a do fordismo, do

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welfare state, etc.) e a “desintegração da promessa integradora” (Gentilli, 1994:116), que a escola parecia cumprir. As últimas décadas têm sido pródigas em não conseguir produzir ocupações suficientes para as novas gerações, situação agravada pela incapacidade crescente do mercado de reabsorver uma ampla parcela da população incapaz de se qualificar. Não é gratuita a assiduidade do tema desemprego nas agendas dos problemas mais candentes atualmente.

A relação entre neoliberalismo e educação, segundo Gentilli (1994: 116), mostra a penetração da retórica conservadora sobre a qualidade na educação, como expressão deste relacionamento e aponta um “duplo processo de transposição” neste caso: “A primeira dimensão deste processo remete ao mencionado deslocamento do problema de democratização ao da qualidade; a segunda, à transferência dos conteúdos que caracterizam a discussão sobre qualidade no campo produtivo-empresarial para o campo das políticas educativas e para a análise dos processos pedagógicos”. Neste processo, corretamente sinalizado como momento das reformas que a educação está sofrendo para se ajustar ao momento de modificações do capitalismo moderno, no sentido de atender a uma formação de mão-de-obra com atributos já indicados, para um mercado cada vez mais precarizado, flexível e incerto, desaparece concomitantemente a problemática da desigualdade social (Costa, 1995). Mas, igualmente, está em jogo como uma das funções da escola a preparação dos jovens para assimilarem as mesmas características que o mundo atual incorporou: a incerteza, a competitividade, o sucesso, a eficiência, a produtividade, em perfeita consonância com a invasão de critérios de qualidade empresariais no campo educativo. É preciso ressaltar aqui a sua não limitação apenas a aspectos administrativos da escola, mas a outros elementos fundamentais: o conhecimento, o currículo, a formação. O mercado deve pautar os interesses, objetivos e necessidades da escola.

Conforma-se desta maneira uma “nova” pedagogia do capital com o intuito de envolver e conseguir a adesão das novas gerações, nas empresas e nas escolas, centrando-se nos valores apontados acima, para constituir uma educação e formação humanas para o novo formato societário moldado pelos processos de reestruturação produtiva e a ofensiva neoliberal dentro do quadro de luta de classes na atualidade. Esta “nova” pedagogia do capital está centrada em alguns pontos básicos: em primeiro lugar, constituir uma nova subjetividade do trabalhador vinculada às novas configurações do

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trabalho e do mercado; em segundo, estreitar as perspectivas da formação aos ditames do mercado e do consumo; em terceiro, vincular o ingresso dos educandos no mercado de trabalho única e exclusivamente pela própria capacidade individual; e, por último, cancelar as utopias, rebaixa o sentido de cidadania e participação, anacronizando perspectivas de lutas sociais.

Quanto ao primeiro objetivo, pode-se partir das indicações do teórico italiano Antônio Gramsci. A racionalização produtiva em curso no mundo (década de 1940) e a introdução do fordismo, destacavam “a necessidade de elaborar um novo tipo de trabalho e de produção” (Gramsci, 1983:382). O capitalismo avançava essa racionalização exigindo a destruição de formas anteriores de sindicalismo e de produção vinculadas a certas formas artesanais sobreviventes (Bihr, 1998). Era mister engendrar as condições possibilitadoras da constituição “de um novo nexo psicofísico” (Gramsci, 1983: 397), de um novo tipo de trabalhador4 em toda sua integralidade adaptado às novas formas de produzir.

Está em curso hoje um processo semelhante de constituição de um novo tipo psicofísico, um pouco diferente da era fordista, que vincula coração e mente ao mundo do mercado flexível do neoliberalismo e da reestruturação produtiva.

A busca da mobilização das capacidades dos trabalhadores sempre norteou a lógica do capital. Duas tendências, contudo, aparecem como novidade: o interesse pela organização metódica da mobilização ampliada dos diversos elementos que compõem estas capacidades e o reconhecimento prático da importância do caráter coletivo dos saberes dos trabalhadores. (Machado, 1996,26).

Trata-se da construção de uma nova subjetividade “que articula as capacidades de agir intelectualmente e pensar produtivamente” (Kuenzer, 1998:73) empregando todas as suas capacidades físicas e intelectuais disciplinadamente nos novos processos de trabalho no 4 “A ‘recriação’ do trabalhador torna-se, novamente, uma necessidade

estratégica do capital. Com as chamadas novas tecnologias passa a ser possível obter a disciplina, a incorporação ativa do trabalho vivo ao trabalho morto e conseguir que o trabalhador vista a camisa da empresa. Fazê-lo desejar o capital. Para realizar essa tarefa faz-se necessária a introdução de tecnologias mais sofisticadas. Produziu-se uma reterritorialização do trabalho” (DIAS, 1999: 49-50).

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qual aquelas capacidades devem ser acionadas na perspectiva de garantir uma sempre renovada responsabilidade, envolvimento e participação no trabalho, norteados pela lógica do capital.

O amplo espectro de mecanismos para ajustar a formação humana aos ditames do mercado se avulta em um mundo onde a lógica neoliberal dita os seus passos e penetra nas consciências e nos espaços contraditórios das escolas cada vez mais fortemente. Muitos educadores preocupados com esta avalanche de desígnios do mercado iniciaram uma crítica ao sentido das reformas educacionais em curso, voltadas para o estabelecimento de vínculos estreitíssimos com o mercado.

Como mostrou Enguita (1989: 125 e 131) as escolas sempre tiveram, ao longo da ascensão do capitalismo, a tendência de seguir os passos do sistema produtivo, notadamente as indústrias, como parâmetros de eficiência, qualidade e gestão, desde o século passado, ignorando espantosamente os vários casos de falhas como quebras da produção e a resistência dos trabalhadores.

Isso aconteceu em virtude, seguindo Enguita, da prevalência de alguns fatores fáceis de se observar: a influência das empresas sobre o poder, os recursos aplicados pelo empresariado na educação, a aceitação da escola como caminho para o trabalho, a aceitação das empresas como modelos de eficácia.

O que se revela novo nesta mudança toda, é um estreitamento cada vez maior dos espaços educativos para outras ações que não as do mercado, como, por exemplo, discussões sobre participação política na sociedade, cidadania, direito ao emprego, fim da miséria e exploração, etc.

Isso pode ser explicado pela necessidade de formas de controle sobre a força de trabalho no processo produtivo diferente da época fordista, na qual predominava baixa formação intelectual com controle autoritário. Como os novos processos de trabalho exigem um trabalhador mais participativo e com uma formação melhor, tudo leva a crer que as maneiras de se exercer o domínio sobre o trabalho devam também ser convertidas em novos métodos, com a ocupação, pela escola, de um espaço de suma importância na elaboração de todo este perfil, pois a “experiência da escolaridade é algo muito mais amplo, profundo e complexo que o processo de instrução” (Enguita, 1989:158), e contribui para produção de comportamentos, atitudes, rotinas, comunicabilidade, participação, aspectos importantes no espaço produtivo.

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O caminho então, de subordinação estreita da escola para o atendimento das exigências postas pelo mercado passará pela internalização, no circuito escolar, de formas de funcionamento típicas do mercado, balizadas na concorrência, na individualização, no controle de qualidade, na segmentação e diferenciação sociais (Frigotto, 1999; Gentilli, 1998). Especificando: a educação e a formação humanas se subordinarão via “delimitação de conteúdos e da gestão do processo educativo” (Frigotto, 1999: 155).

Quanto aos conteúdos, é importante configurá-los pelos valores da competitividade, da lucratividade, do livre mercado, da fragmentação do conhecimento, do empreendentismo, do rendimento (Silva, 1994). Este conjunto de valores se estende aos métodos educacionais voltados para moldar também o corpo e as disposições físicas e emocionais para a participação em comunidade, não sendo estranha a proliferação de modelos pedagógicos que prometem entregar ao mercado este tipo de força de trabalho.

A gestão educacional garantidora do resultado discutido acima deverá ser aquela em que uma organização e administração pautada pela qualidade total diretamente transferida das empresas, oriente a busca da eficiência, do rendimento e da produtividade. A educação, a saúde e outros setores devem, agora, ser totalmente tomados por critérios de rentabilidade e não como direitos sociais. O resultado do processo educacional será considerado eficiente se o indivíduo conseguir, de forma competitiva, se adaptar às demandas do mercado, seja em um emprego estável, precário ou no desemprego (Antunes, 1995).

Complementando a visão de Frigotto (1999) sobre os caminhos por onde segue a ligação direta entre educação-mercado, é preciso colocar a dimensão do tempo livre, espaço fora da produção e da escola, mas como aquele, espaço formativo do ser humano. Se outrora este tempo dedicado ao lazer e à recomposição das energias para o trabalho existia como válvula de escape do domínio do capital, esta situação inverteu-se completamente transformando-o em um “tempo morto, vazio, que os vendedores de lazer programado logo preencheriam, desviando-o em seu benefício, ampliando o campo da colonização mercantil e espetacular da vida cotidiana” (Bihr, 1998:205; Harvey, 1992). O tempo de lazer passou a ser constitutivo da formação humana, com a ampliação colossal da indústria do entretenimento, atingindo a sociedade e o indivíduo em todos os seus

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momentos, como produtor, como consumidor e difundindo seus valores de uma “nova” ordem neoliberal.

Um terceiro ponto importante nesta discussão refere-se ao crescimento estrondoso de formas de individualismo que germinam por todos os poros da sociedade por conta do retorno das visões neoliberais de concorrência, das novas configurações do mercado de trabalho e da expansão de novos processos de trabalho, com graves conseqüências para as ações coletivas e solidárias dos trabalhadores e com forte ressonância na escola.

Como afirmamos anteriormente, o controle sobre a força de trabalho sempre consistiu num objetivo importante perseguido pelo capital para a garantia de sua valorização. Tanto mais fácil será o transcorrer deste processo, sem interrupções, embates e conflitos, quanto mais as relações de trabalho forem marcadas pela individualização daquela relação como ocorre por exemplo no toyotismo com seu sindicalismo de empresa que provoca uma profunda redução dos níveis de sindicalização e das atividades sindicais no mundo inteiro, ressalvando suas raras exceções (Antunes, 1995).

Nesse sentido, a ofensiva do capital contra os sindicatos é coerente com os novos modelos de trabalho, nos quais essas relações salariais são tratadas cada vez mais individualizadamente. Agravam este cenário os altos índices de desemprego, que contribuem para o burilamento de uma força de trabalho não solidária e agressiva na disputa das vagas de trabalho.

Harvey fez as mesmas vinculações e chega a consideração que o “individualismo exacerbado se encaixa no quadro geral como condição necessária, embora não suficiente, da transição do fordismo para a acumulação flexível”. Em seguida discorre, sobre a troca de valores coletivos da sociedade por “um individualismo muito mais competitivo como valor central numa cultura empreendimentista” que, na sua visão, pode ter liberado uma “explosão de energia” e das novas atividades, que foi profundamente perniciosa para os movimentos sociais (em especial o sindical) e positiva para os privilegiados no tocante à distribuição de renda. (Harvey, 1992: 161).

Neste panorama é consoante a divulgação de valores liberais sobre o indivíduo que deve se fazer sozinho, alcançar o sucesso atomizadamente, desvinculado de “contratos sociais” ou políticos. Ele deve, obrigatoriamente, ser competitivo e eficiente na luta por um

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lugar ao sol no mercado de trabalho, flexibilizado deste final de século.

A participação da escola neste âmbito de “redefinição das categorias com que pensamos o espaço social, a conversão de questões sociais e políticas em questões de moralidade pública de conduta e de assistencialismo social” (Silva, 1994:14) tem sido fundamental. Trata-se, neste momento, de lançar sobre os ombros do indivíduo o ônus e a responsabilidade sobre seu futuro no mercado de trabalho. E o local principal onde os indivíduos deverão conquistar as capacidades necessárias para sua inserção em algum tipo de ocupação é a escola, que na lógica educacional neoliberal deverá ser eficiente e de qualidade na seleção dos alunos “vencedores” e “perdedores”.

Ao colocar ênfase na centralidade das reformas educacionais para continuar ou melhorar na competição internacional, está-se afirmando que se o país não vai melhor é por culpa de seu sistema educacional. Ao insistir permanentemente no desgastado problema do “ajuste” entre educação e emprego, entre o que o sistema escolar produz e o que o mundo empresarial requer, está-se lançando mensagem de que o fenômeno do desemprego é culpa dos indivíduos, os quais não souberam adquirir a educação adequada ou dos poderes públicos que não souberam oferecê-la; mas nunca das empresas, embora sejam essas que tomam as decisões sobre investimento e emprego e que organizam os processos de trabalho (Enguita, 1994:103).

Deve-se acrescentar que, nos tempos atuais, a culpa é atribuída de maneira mais incisiva aos indivíduos e este é o elemento novo nos processos de mudança, que oculta fantasiosamente a responsabilidade do estado e da economia, das condições sociais, econômicas e políticas vigentes que diminuíram os postos de trabalho, mesmo com o crescimento da economia. A escola se adapta a esta situação, passando a educação a ser preparatória para o emprego e o desemprego (Frigotto, 1998).

O quarto elemento dessa análise sobre as relações trabalho-educação permite fechar os pontos abertos pela ofensiva do capital de dupla face: neoliberalismo e reestruturação produtiva. Trata-se aqui da ofensiva e do cancelamento das utopias, o estreitamento dos canais de participação, o esvaziamento dos movimentos sociais, a campanha de

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negação dos meios de luta e de resistências, como as formas pelas quais o capital procura impor uma determinada visão de mundo neoliberal, a única factível de realização em uma época na qual o sucesso do indivíduo e o lucro são os fatores mais importantes.

Trata-se de um desinvestimento em relação aos empreendimentos coletivos (sindicais e políticos) totalizantes, que apelam para um ideal transcendente, e requerem uma parte de abnegação do indivíduo na realização de tarefas impessoais (Bihr, 1998:173).

Não basta apenas exercer uma hegemonia no campo das idéias e das práticas sociais, é mister negar o oponente, o outro, pois os requerimentos de trabalho mais complexos implicam participação, envolvimento capacidade de abstração. O trabalho precisa ser controlado em limites rígidos na ótica do capital, para que o processo de trabalho e de valorização não sofra perturbações.

Com o neoliberalismo, deve vir junto um alastramento da hostilidade e descrédito das idéias e ações de esquerda e sindicais, como maneira de garantir uma docilidade e passividade dos movimentos sociais de oposição, e um empenho e investimento dos indivíduos no mundializado mercado de consumo:

As novas normas culturais – o privado predominando sobre o público, o individual sobre o social, o sensacional e violento sobre as lutas cotidianas e as realidades sociais – todas contribuem para inculcar exatamente os valores egocêntricos que solapam a ação coletiva (Petras, 1995).

A argumentação em torno das quatro questões apontadas para o entendimento das relações entre trabalho e educação conduz, invariavelmente, à conclusão de que inúmeras possibilidades de realização de uma formação integral do ser humano estão abertas com a reestruturação produtiva, com as novas tecnologias e com a automação, mas encontram-se contidas pela “lógica destrutiva do capital” (Mészáros, 1996). Os traços que se afiguram no horizonte são os da segmentação e dualidade sociais, da flexibilidade, do predomínio do mercado, da insegurança e do desemprego estrutural, que dificultam as condições de vida e de educação de grande parcela da população. Mas de outro lado renascem novas formas de resistência e lutas que tem assinalado o início de um novo século carregado de perspectivas.

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EDUCAÇÃO E DESINTEGRAÇÃO CAMPONESA: O Papel da Educação Formal na Desintegração do Campesinato

Ovil Bueno Fernandes

Todos os aparelhos ideológicos de Estado concorrem para o mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalista... O papel dominante cabe à Escola, se bem que sua música seja silenciosa...

Louis Althusser

A educação formal vem sendo apresentada nos últimos anos como a saída para resolver muitos problemas da sociedade capitalista. A escola passou a ser na sociedade capitalista o lugar privilegiado onde se desenvolve o processo de ensino, qualquer conhecimento desenvolvido fora da escola é desvalorizado, o que é levado em conta é o conhecimento formal desenvolvido dentro da escola, e não o desenvolvimento da consciência e as experiências acumulativas do dia-a-dia.

Com o advento da sociedade capitalista e a constituição da burguesia como classe dominante, a educação se concretiza como uma instituição privilegiada para a burguesia tornar seu projeto de mundo hegemônico, os conhecimentos, valores transmitidos na escola são valores burgueses que tem o objetivo de difundir a ideologia burguesa. Por isso, a necessidade da universalização da educação para que todos tenham um mínimo de informação e instrução que vêem de encontro com os valores e projeto burguês. A educação é um instrumento capaz de difundir os valores burgueses como valores universais de todas as classes sociais mesmo naquelas sociedades com relação de produção não capitalistas.

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil se dá de forma tardia, e se concentra em algumas regiões e com pouca penetração em outras, o que facilita o surgimento de outras relações de produção não capitalistas. As relações de produção capitalistas vivem simultaneamente com outras relações de produção não capitalista, como é o caso do campesinato. As relações de produção não capitalistas são aos poucos subordinadas pelas relações capitalistas de

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produção e seus valores, costumes, sendo invadida por valores burgueses.

Uma dessas relações de produção não capitalista é a produção camponesa, que constitui como um modo de particular de produção, com um sistema próprio de produção e uma visão de mundo particular. Portanto, com a expansão das relações capitalistas no campo, a relação camponesa de produção, e sua visão de mundo são subordinadas pela ideologia burguesa.

Um dos instrumentos utilizados pela burguesia para atingir a hegemonia é a educação formal, onde qualquer conhecimento adquirido fora da escola é desvalorizado, com isso, o projeto burguês de educação transmite valores, costumes relacionados a sua visão de mundo. Por isso, nosso objetivo é estudar essa relação entre o ensino formal (escola) e a desintegração do campesinato.

Neste trabalho pretendemos estudar a desintegração do campesinato através da escola, ou seja, da aculturação e inculcação dos valores burgueses pela escola impostas às crianças das classes subalternas, ou, no nosso caso, às crianças camponesas. Com isso, compreender o papel da escola na mudança de valores dos filhos de camponeses e conseqüentemente a aculturação dos mesmos.

Temos como hipótese que a educação formal (escola) contribui para a desintegração do campesinato através da disseminação da ideologia dominante na padronização da cultura, através dos conteúdos administrados, que são construídos de forma estratificada e hierarquizada. A educação formal (escola) não valoriza as diferenças regionais e nem as particularidades culturais, com isso, na tentativa da padronização da cultura burguesa, as crianças de culturas diferentes não conseguem acompanhar o ritmo dos outros alunos, levando à repetência, à evasão escolar etc. Por que as crianças de culturas diferentes como a criança camponesa não tem na escola o desempenho que deveriam ter ou alcançada por outras crianças da classe dominante? Por que não têm os mesmos instrumentos conceituais para compreender as formas de conhecimento que resultam historicamente do conhecimento escolar, sua cultura tem particularidades que não são respeitadas pelos conteúdos escolares, e, quando sua cultura é mencionada, é de forma pejorativa, levando as crianças a ter vergonha de seu mundo, a cultura e os conhecimentos considerados verdadeiros são os da cultura do outro, da sociedade burguesa.

Este trabalho foi dividido em quatros partes: na primeira discutimos o conhecimento escolar, como ele é produzido e

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transmitido as crianças das classes subalternas e relacionamos com a teoria da violência simbólica de Bourdieu; na segunda refletimos sobre a cultura camponesa, como são mantidos seus costumes e valores; na terceira abordamos a natureza capitalista do estado e da escola e na última concluímos com uma análise da relação da educação com a desintegração de campesinato levando em conta a aculturação e a mudanças de valores transmitidos pela pedagogia escolar aos filhos de camponeses.

O Conhecimento Escolar Hoje em dia, a educação, ou melhor, a educação formal, se tornou

um verdadeiro fetiche. A escolarização aparece como a solução para vários problemas tais como: o atraso econômico, a violência, a desigualdade social etc., com isso, escola torna-se sinônimo de desenvolvimento econômico, político e social. Discutir o papel da escola faz necessário discutir o conhecimento escolar e suas implicações sociais.

Segundo Sarup (1980), o conhecimento escolar é aquele conhecimento transmitido pela escola aos seus alunos. Ele é considerado como um conhecimento construído socialmente, ou seja, o conhecimento escolar é o conhecimento construído pela mente através de interação social com os outros e é extremamente dependente da cultura, do contexto, do costume e especificidade histórica. Além de ser uma construção histórica e social, é empreendida por gerações passada e presente, permeada por significados a serem interpretados e reelaborados dando novas sentidos ao seu conteúdo. Ele é “construído socialmente” mas de forma estratificada e hierárquica.

Se o conhecimento escolar é uma construção social, por que só o conhecimento das elites encontra lugar nos currículos das escolas? As estruturas modulares das escolas envolvem domínios ou áreas de conhecimento previamente definidas pela elite dominante sem nenhuma preocupação com a cultura e experiências dos alunos das camadas populares. O conhecimento é apresentado como independente dos que o criam e dos que o aprendem. Há uma hierarquização no currículo, a dissociação entre teoria e prática, as metodologias que não favorecem a atividade e a autonomia do estudante, o distanciamento das disciplinas acadêmicas da vida e do trabalho, entre outros fatores que mostram o sentido contrário desta educação em relação à cultura que os estudantes levam para a escola.

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Também é dito que a educação é neutra e procura o desenvolvimento global e não parcial, o que não condiz com a verdade.

Considerar o conhecimento como socialmente construído usualmente significa dizer que o mundo é uma síntese de interações sociais, e que não há especificidades culturais. Tal concepção de educação não pressupõe o conhecimento como, inevitavelmente, ligado à questão de poder, que o conhecimento está ligado diretamente ao poder e a serviço deste.

Na prática, a escola é um espaço de reprodução da estrutura social vigente, mas, podem ser também um espaço de desenvolvimento da consciência e contribuir para a transformação social, mais para isso é necessário mudança de atitudes de professores e teóricos da educação. A escola precisa ser mediadora de conhecimento que deve estar ligado a vida diária, relacionar a teoria e a prática, chegar à práxis.

Acontece que na educação professores e alunos estão constantemente em terreno culturais diferentes, quando o aluno está na escola, ele fica entre fogo cruzado, de um lado os valores culturais que ele traz consigo, e de outro lado o que a escola lhe ensina e prega como verdade e que o conhecimento “oficial” é o conhecimento verdadeiro e seus conhecimentos e valores devem ser desprezados porque não têm nenhum significado para o conhecimento escolar. Só a educação é capaz de ensinar normas e conteúdos moralmente válidos para equalizar as oportunidades de sucesso na vida.

Nas sociedades pré-capitalistas, a educação formal era um meio de adquirir status social, reservado a uma pequena parcela da sociedade. Com o advento do capitalismo ela passa a ser um mecanismo de reprodução do sistema. Por que o projeto burguês de sociedade necessita da educação? Por que as manufaturas colocaram o trabalho sob novas bases, transformaram as relações de propriedade e mudaram as relações entre trabalhador e empregador. Para trabalhar com as máquinas é preciso possuir um mínimo de um outro saber prático para operar as máquinas e também é necessário entender e aceitar os valores burgueses como sendo valor universal, por isso, a necessidade de uma educação básica para todos.

Além das necessidades práticas das máquinas para a produção de mercadorias, o projeto burguês precisa de uma base ideológica para fundamentar e legitimar seu projeto. A educação se encarregaria de difundir a visão burguesa de mundo.

Fazendo uma análise mais criteriosa do sistema educacional, constataremos que a educação é uma forma de reprodução exercendo

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fortes poderes violentos através da violência simbólica que exercem sobre as classes subalternas. Recorrendo a Bourdieu e Passeron, eles colocam que “certos grupos ou classe têm poder de exercer violência material sobre outros, constrangendo-os a se conformarem aos interesses deles” (Apud. Cunha, 1979).

Bourdieu e Passeron complementam colocando que o poder de violência material não é exercido apenas sobre os escravos nas sociedades escravocratas. Mesmo quando não aparece a coação física, ela pode estar presente, exemplos são as relações entre as classes na sociedade capitalista. Embora o proletariado seja livre para aceitar ou não as condições de trabalho e salário que a burguesia impõe, a não aceitação implica em ficar à mercê da fome, do desemprego etc. Em suma, o poder de violência material se exerce por meio de força material, militar ou econômica, aparente ou não.

Existem muitos meios de violências exercidas pela burguesia ao proletariado. Além da violência material através da exploração de classe, também é exercida a violência simbólica. A violência simbólica é exercida por vários meios como os meios de comunicação de massa e por meio da educação formal. A educação exerce a violência simbólica quando legitima a cultura dominante através da sua ação pedagógica por meio dos conteúdos e dos valores transmitidos. A educação estabelece uma relação onde a ideologia dominante exerce força sobres os alunos e até mesmo sobre os professores, porque ela tem o poder de exercer força sobre a cultura daqueles que não pertencem a classes dominante.

Para Bourdieu e Passeron, a educação exerce a violência simbólica, porque a ação pedagógica se coloca como dependente da cultura prévia estabelecida pelos sistemas educacionais. Por isso, a cultura da classe dominante abrange e influencia os modos de agir, pensar, sentir das classes subalternas levando as classes populares a identificar essa cultura e valores como sendo seu e não de uma classe do qual está legitimando essa imposição.

Bourdieu e Passeron colocam que há dois tipos de força simbólica: a ação pedagógica e a comunicação cultural (Bourdieu & Passeron, 1982). A ação pedagógica exerce uma imposição da cultura de um grupo ou de uma classe a outros grupos ou classes, por meio de um poder arbitrário, mas um poder que tende a ser reconhecido como legítimo. A ação pedagógica se desenvolve na relação que a escola tem com seus alunos e a maneira de repassar os conteúdos e valores da escola. Essa ação tem o poder de impor sua mensagem, sua

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ideologia através de conteúdos culturais arbitrários porque são conteúdos de uma cultura dominante.

É através da ação pedagógica que há a seleção dos conteúdos a serem administrados, onde os alunos de culturas deferentes recebem a carga de violência contra seus valores, valores estes que nem sequer são discutidos, quando são lembrados são sob formas pejorativas, servindo de humilhação para os alunos portadores dessas culturas.

Segundo Bourdieu, a ação pedagógica dominante, principalmente nas escolas, é aquela ação que corresponde, ainda que de maneira mediata, aos interesses dos grupos dominantes, e sua posição resulta na reprodução da ideologia desses grupos que sobrepõe os valores das classes subalternas nas quais levam eles a agir, pensar, sentir que a ação pedagógica está a serviço da universalidade e não de um grupo.

Bourdieu coloca que a ação pedagógica é substituta da coação física. Se a violência material, após cessar seus efeitos, não pode fazer com que os dominados se conformem com os desígnios dos dominantes, a ação pedagógica consegue esse intento através da inculcação da cultura dominante nos conteúdos e valores ensinados nas escolas.

Já a comunicação cultural não tem esse poder de aplicar sanções, embora tenha uma cultura a impor, que também utiliza a educação como um dos principais instrumentos para impor essa cultura. Então a ação pedagógica se realiza através de trabalhos pedagógicos, os quais são atividades contínuas e sistemáticas de inculcação dos princípios e valores culturais que devem persistir após a cessação da ação pedagógica.

A prática pedagógica nas escolas tem o objetivo de interiorização de princípios e valores de uma cultura aos alunos que estão submetidos a tais ações, e faz com que os princípios desta cultura ou da cultura dominante tendem a se perpetuar na prática dos destinatários que são os alunos. É através deste trabalho que permite a ideologia dominante produzir e reproduzir a integração moral e intelectual de sua cultura sem recorrer a repressão externa (coação física), ela exerce uma violência sutil, uma violência de aculturação e inculcação de princípios e valores arbitrários como necessários e como sendo natural.

A educação legal, com sua prática pedagógica, procura sufocar as diferenças culturais que existem na sociedade e impor uma padronização de costumes, valores e princípios que vão de encontro com a ideologia e interesses da classe dominante, para isso, o sistema

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educacional é um sistema totalmente burocratizado com uma instância superior responsável pelo repasse das regras, conteúdos e praticas pedagógica a outra instância inferior. A escola que é a instância encarregada de exercer a transmissão de conhecimento, recebe tudo pronto e determinado como devem ser repassados.

O sistema educacional utiliza um mecanismo burocrático bem eficiente através do controle de conteúdos e princípios. As escolas são submetidas a uma série de controles: as deliberações dos Conselhos Nacionais de Educação, são repassadas pelos conselhos Estaduais que por sua vez as repassam as secretarias de educação, sub-secretarias (Delegacias de Ensino) e para as escolas, e os conteúdos são controlados através dos Parâmetros Curriculares Nacional (PCN). A escola por sua vez reproduz em seu espaço interno também essa burocratização e hierarquias da sociedade capitalista como legítima e necessária.

Assim concluímos que a educação formal (escola) é um instrumento de reprodução do sistema vigente exercendo fortes violências, mesmo que de forma silenciosa, às populações das classes subalternas com valores, costumes e princípios diferentes através da imposição de conhecimento produzido em função de uma determinada classe social, a classe dominante, e tais conteúdos são apresentados como conhecimentos independentes dos que o criaram e que representam uma síntese do conhecimento universal.

A Cultura Camponesa Com o advento da sociedade capitalista a educação passa a ser

bastante privilegiada e até mesmo disputada na perspectiva de articular as concepções de mundo da burguesia emergente. A escola passa a ser o lugar privilegiado para ampliar as múltiplas habilidades sem as quais as atividades produtoras capitalistas não poderiam ser realizadas, e ao mesmo tempo seria responsável quase que direto pela reprodução da estrutura de valores na qual a sociedade capitalista necessita para a sua manutenção. Antes de tudo, a escola caberia de desenvolvimento de potencialidades e apropriação de “saberes sociais” (conjunto de conhecimentos e habilidades, atitudes e valores que são produzidos para a classe dominante).

Como diz Comenius, “a educação deve ser para todos”... Assim, “todos saberão para onde devem dirigir todos os atos e desejos da vida, por que caminhos devem andar, e de que modo cada um deve ocupar o seu lugar” (apud. Buffa, 1987).

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Assim a educação escolar procura homogeneizar os valores, os costumes na qual todas as maneiras de ver o mundo estão dentro de uma ótica comum: a ótica dos valores capitalistas. Mas, qual a relação entre a educação formal (escola) com a desintegração do campesinato? A escola padroniza o conhecimento, e todas as crianças, mesmas as de realidades culturais diferentes, são submetidas às mesmas didáticas, os mesmos conteúdos, provocando uma alienação nas crianças, principalmente as camponesas, onde são transmitidos a elas valores e costumes alheio aos seus.

A classe camponesa possui uma cultura com costumes e valores bem diferentes e até antagônicos aos valores transmitidos pela sociedade capitalista urbana. Mesmo constituindo um modo de produção subordinado ao capitalismo, a produção camponesa apresenta uma combinação particular de fatores que a caracteriza como um modo de produção particular. A cultura camponesa está centrada no trabalho e suas dificuldades, e não na propriedade, na liberdade de vender sua força de trabalho ao capitalista, na marginalização social e na concepção capitalista de direito.

A cultura camponesa, principalmente no Brasil, nasce no espaço produzido pelo rompimento dos vínculos de dependência de escravidão entre senhores e escravo. Por isso, na cultura camponesa, a noção de trabalho é de um trabalho que organiza as novas concepções de vida, do eu e do outro, do “nós”. É uma cultura centrada no trabalho e solidariedade, na cooperação do mutirão, na troca de dia de serviços, na repartição da carne de porco, do bolo assado no forno de barro.

Na cultura camponesa, a força de trabalho não é uma simples mercadoria que pode ser vendida ao capitalista quando necessário, é principalmente um instrumento de solidariedade a serviço da comunidade. Por isso, o valor monetário da força de trabalho é insignificante, quase sempre o dia trabalhado vale outro dia de trabalho, as chamadas marcas (muitos trabalhadores trabalhando junto na lavoura de uma pessoa em troca de outro dia de trabalho posteriormente). Quando um camponês está necessitando de ajuda para limpar sua lavoura, roçar sua pastagem etc. ao invés de contratar mão-de-obra pagando em dinheiro, o camponês procura companheiro que possa lhe ajudar em troca de outro dia de trabalho já pago ou a ser pago posteriormente.

A economia camponesa tem como objetivo a subsistência e, somente secundariamente, a troca do produto que excede às suas

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necessidades, o trabalho também segue essa lógica de valor de uso como um bem destinado à produção de subsistência e não uma mercadoria para ser vendida no mercado de trabalho, para o camponês o trabalho é uma forma de solidariedade que organiza uma nova concepção de vida centrada no “nós”, no coletivo.

Para José de Souza Martins, o caminho para compreender a cultura camponesa é o de examinar as transformações que modificaram velhas relações sociais, que destroem a autoridade da cultura tradicional e que abrem espaço para a inovação cultural (Martins, 1989).

Essas mudanças políticas e culturais, apresentam alternativas opostas àquelas apresentadas pela classe dominante. É nessa contraposição que se podem compreender o sentido da fala, do gesto, da canção, na sociabilidade do camponês.

Para Martins, as mudanças não estão associadas a nenhum evolucionismo, e sim, a rupturas socialmente concebidas como inovação e até inversão da ordem, como, por exemplo, os grandes movimentos sociais no campo que até pouco tempo foram movimentos messiânicos, como Canudos na Bahia, contestado no Paraná, Santa Dica em Goiás etc. A ruptura se dava porque a ordem se invertia, introduzindo, assim, uma nova lógica nas relações sociais, nas concepções, nos valores, nas crenças. Na cultura camponesa, a inovação está centrada na catástrofe, na perda de sentido das relações e concepções estabelecidas. Por isso, os movimentos sociais no campo conservam, na maioria das vezes, um forte caráter messiânico portador de uma mensagem política socialista, voltada para a solidariedade, da posse coletiva da terra, numa concepção de vida do eu e do outro, do “nós”, onde sujeito e sociedade são indivisível.

Na sociedade capitalista, o indivíduo é apresentado como átomo. A qualidade e característica de um átomo são não ter qualidade nenhuma e, portanto nenhuma espécie de relação determinada por sua própria natureza, com outros seres além dele. Por isso, na sociedade capitalista, há necessidade da valorização do indivíduo em detrimento do coletivo. Porque o indivíduo está acima de toda a sociedade, o que é valorizado é o “eu” e não o “nós”, as relações estabelecidas são através da lei do mercado, da competição, ao contrário de muitas das práticas da cultura camponesa.

Na sociedade camponesa, as relações se dão nas maiorias das vezes pelo favor e a retribuição do mesmo como agradecimento e obrigação moral. Esses favores sempre são apresentados como obrigações da propriedade, obrigação de quem a tem em relação a quem não a tem,

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de dar uma roça a meia, pastagem para algumas vacas e cavalos, lugar para morar, emprestar sacas de arroz, feijão e até latas de banha de porcos que são retribuídos no mutirão e em outros trabalhos. O favor não deve ser fruto do arbítrio de quem o faz, mas é obrigação embutida no direito de propriedade. As transformações econômicas que vem ocorrendo no campo com o avanço das relações capitalistas de produção, e com a expulsão dos camponeses, estão provocando o fim das regras e obrigações do favor no mundo rural.

Educação no Estado Capitalista Um dos principais aspectos a ser considerado para compreender o

papel da escola na desintegração do campesinato é o próprio caráter capitalista da escola e do estado que necessita da escola para disseminação do conjunto de idéias que vão alimentar, reproduzir e manter a ideologia dominante.

O Estado na maioria das vezes é apresentado como uma instituição acima de qualquer interesse de classe: como neutro, como um mediador dos conflitos entre as classes sociais. Para compreender qual é a natureza do Estado, precisamos compreender qual é a base social que sustenta o estado capitalista.

“A estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e a qual correspondem determinadas formas de consciência social” (Sousa, 1979).

Em cada sociedade, o estado se sustenta em uma base social que lhe dá legitimidade. O homem organizara-se em sociedades de tipo primitiva, ou escravista, ou feudal, ou capitalista. A passagem de um tipo de sociedade para outro é o resultado das contradições internas entre as forças produtivas e as relações de produção. Cada tipo de sociedade é um tipo de Estado e ele é a própria estrutura da sociedade e repousa na contradição existente desta sociedade. O Estado capitalista funda-se na contradição entre a vida pública e a vida privada. Diz Marx:

“A base do estado antigo era a escravidão; a base do Estado moderno é a sociedade civil, fundada nos direitos de liberdade, igualdade e da propriedade privada. Como na sociedade feudal fundava nos privilégios, a sociedade moderna funda-se nos direitos e o Estado como

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instância maior para garantir o comprimento de tais direitos”(apud, Sousa, 1979).

Como diz Marx, o Estado é a forma em que os indivíduos da classe dominantes proclamam seus interesses comuns, e na qual é condensada toda a sociedade civil de uma época, segue-se que o Estado atua como intermediário em nome de todas instituições da sociedade, e tais instituições recebem uma conformação política. Daí a ilusão de que a lei é baseada na vontade geral, e decerto na vontade divorciada da sua base real – a vontade livre. Do mesmo modo, o direito é por sua vez reduzido às leis do momento.

Na sociedade capitalista, o Estado está a serviço do interesse da burguesia. Marx diz, “o governo do Estado moderno não é senão um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Portanto, a principal função do Estado é a defesa dos interesses comuns de toda a classe capitalista. O Estado cumpre sua função de dirigir o conjunto da sociedade, de acordo com os interesses da classe dominante, fundamentalmente, por dois meios: convencer o conjunto da sociedade de que seu poder é legítimo, como diz Althusser, através dos aparelhos ideológicos de Estado como: as escolas, as Igrejas, poder judiciários, sindicatos, partidos políticos etc. e por possuir meios de fazer prevalecer suas determinações, através dos aparelhos repressivos de Estado (Althusser, 1998).

O estado tem a função de promover um conceito (burguês), único da realidade com predomínio ideológico dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas. Ele é uma ordem na qual um certo modo de vida e de pensamento é dominante, na qual um conceito de realidade é difundido por toda sociedade, é o próprio Estado responsável pela reprodução das relações de produção e manutenção da ordem vigente.

Segundo Althusser, a reprodução das relações de produção é garantida:

Em primeiro lugar pela materialidade do processo de produção e do processo de circulação da produção. Mas não se deve esquecer que as relações ideológicas estão imediatamente presentes, nesse mesmo processo. E que grande parte, é garantida pelo exercício do poder de Estado nos Aparelhos de Estados (repressivos e ideológicos”) (Althusser, 1998).

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A principal função do Estado é a de garantir a reprodução das relações e condições materiais da produção, porque não há produção possível sem que seja assegurada a reprodução das condições materiais da produção: a reprodução dos meios de produção.

Para o estado garantir a reprodução do sistema, ele tem que garantir primeiro, a reprodução dos meios de produção, como garantir a propriedade privada das fábricas, dos bancos, dos latifúndios, e garantir a reprodução da força de trabalho. A força de trabalho é garantida ao dar a ela o meio material de se reproduzir: o salário.

O salário representa apenas a parte do valor produzido pelo gasto da força de trabalho, indispensável para sua reprodução, quer dizer, indispensável para a reconstituição da força de trabalho do assalariado (para alimentação, vestuário etc.) para que ele esteja em condições de trabalhar para o capitalista, em suma, a reprodução do sistema é assegurado ao dar as condições necessária para a reprodução como: garantir a força de trabalho e inculcação da ideologia dominante.

Não basta assegurar para a força de trabalho as condições materiais de sua reprodução para que ela se reproduza como força de trabalho. A força de trabalho disponível deve ser “competente”, isto é, apta a ser utilizada no sistema complexo de produção. Como se dá esta reprodução da qualificação (diversificação) da força de trabalho no regime capitalista? Através do sistema de escola capitalista e de outras instâncias e instituições.

Nas escolas, principalmente os alunos das classes subalternas, aprendem ler, escrever, contar, ser obediente, introjetam a moral burguesa etc. Aprendem também algumas técnicas, e outras coisas inclusive elementos necessários a reprodução do sistema capitalista.

Junto com essas técnicas de conhecimentos, aprende-se na escola as “regras” do bom comportamento, as convivências que devem ser observadas por todo agente da divisão do trabalho e da sociedade. Aprendem as regras da moral e de consciência cívica e profissional, o que na verdade são as regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e regras da ordem estabelecida pela dominação de classe. Como diz Althusser:

Aprende-se bem a falar bem o idioma, a redigir bem, o que na verdade significa (para os futuros capitalistas e seus servidores) saber “dar ordem”, dirigir-se adequadamente aos operários”(Althusser,1998).

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A reprodução da força de trabalho não exige somente uma reprodução de sua qualificação, mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua submissão às normas da ordem vigente, isto é, uma reprodução da submissão das classes subalternas à ideologia dominante e uma reprodução da capacidade de perfeito domínio da ideologia dominante por parte dos agentes da exploração e repressão, de modo que eles assegurem e legitimem o predomínio da classe dominante.

Não somente a escola, mas outras instituições do Estado também repassam a ideologia dominante, mas cabe a ela, como uma das principais instituições do Estado capitalista, assegurar a submissão ideológica dominante, porque é reservado a ela.

“Nenhum Aparelho Ideológico de Estado dispõe, durante tantos anos, dessa Audiência obrigatória (5 a 6 dias em 4 ou até 8 horas por dias, da totalidade das crianças da formação social capitalista) (Althusser, 1998).

Segundo Althusser, o poder do Estado é garantido através dos Aparelhos de Estado (aparelhos repressivos e ideológicos). A função da ideologia é a materialização e legitimação dos corpos que compõe o estado. Por que a escola é o aparelho ideológico por excelência no estado capitalista? Para Althusser, todos os aparelhos ideológicos de estado concorrem para o mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalista, a escola desempenha esse papel muito bem ao legitimar a exploração e as relações capitalistas de produção.

Como afirma Althusser, cabe a escola o papel dominante porque nela encontra as crianças de todas as classes sociais em idade mais “vulnerável” inculcando-lhe saberes práticos, valores, envolvidos na ideologia dominante como (linguagem, cálculo, ciência), maneiras de comportamentos como (a moral burguesa, o civismo), colocando necessidades secundárias como se fossem primárias, as necessidades de consumo como: roupas de marca, calçados, eletrodomésticos, carros, bebidas como a coca cola etc.

Além dos valores transmitidos pela escola, ele também reproduz a divisão de classe como se fosse uma seleção natural ao induzir a competição no desenvolvimento de habilidades que leva uma maioria cair na produção como: operários, na prestação de serviços como o comércio considerado empregos de baixo valor, e outros levados a ocupar empregos médios e, por último, uma pequena parcela que se sobressai e passa a se dedicar à exploração das outras classes.

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A escola está provida da ideologia dominante pois cabe a ela legitimar todo o conhecimento, por que o modelo de desenvolvimento predominante na sociedade capitalista exige que qualquer país para se desenvolver precisa investir na educação de massa para dar aos indivíduos um mínimo de conhecimentos “científicos” e noções de civismo e obediência.

Educação e Desintegração Camponesa Um dos principais problemas da educação é a padronização nos

métodos e conteúdos ministrados. A educação formal (escola) não valoriza as diferenças regionais e nem as particularidades culturais, com isso, na tentativa da padronização da cultura burguesa, as crianças de culturas diferentes não conseguem acompanhar o ritmo dos outros alunos, levando à repetência, à evasão escolar etc. Por que as crianças de culturas diferentes como a criança camponesa não tem na escola o desempenho que deveriam ter ou alcançada por outras crianças da classe dominante? Porque a criança camponesa não tem os mesmos instrumentos conceituais para compreender as formas de conhecimento que resultam historicamente do conhecimento escolar, sua cultura tem particularidades que não são respeitadas nos conteúdos escolares, e quando sua cultura é mencionada é de forma pejorativa, levando as crianças a ter vergonha de seu mundo, a cultura e os conhecimentos considerados verdadeiros são os da cultura do outro, da sociedade burguesa.

A educação para ser uma forma de libertar os indivíduos, tornando-os mais críticos e conscientes, não pode ser apenas um meio de transmissão de uma cultura. Ela, educação, precisa nascer desta cultura, ter suas raízes nesta cultura. A função cultural da escola continua sendo uma função secundária e até ignorada. Em conseqüência, o ensino ministrado transmite um conhecimento formal e desvinculado da realidade social da maioria da população que ela freqüenta, apresenta conceitos vazios de significados por se encontrarem distantes da cultura real do povo, longe da dinâmica dos grupos sociais, principalmente do campesinato. A reeducação do saber e da experiência do mundo ao simples conhecimento controlado e estratificado tende a eliminar a realidade cultural do estudante em favor de uma cultura imposta, a cultura burguesa.

Para compreender o que ocorre com a criança camponesa, utilizamos o conceito marxista de alienação, na qual a educação escolar em lugar de desenvolver o potencial inerente aos indivíduos, o negligencia e a pessoa passa a ser considerada como mais uma

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mercadoria no mercado. Ou seja, a criança não vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas o mundo e ela mesma permanecem alheios ou estranhos a ela. O “potencial” humano da criança camponesa é considerado apenas em termos de utilidades para as “necessidades sociais”, e, em lugar de desenvolver suas potencialidades, elas são aniquiladas, ou melhor, se desenvolvem parcialmente.

Segundo Marx, o homem tem potencialidades que só se podem realizar através de seu trabalho (Sarup, 1980). A educação deve preparar o homem para que esse trabalho não seja considerado simplesmente como a reprodução de existência física dos indivíduos, uma forma definida de expressar sua vida, um modo de vida definido. A educação não pode significar uma expressão da alienação das relações sociais como ocorre na escola atual.

O ensino escolar é uma forma de doutrina que busca levar a criança, a aceitação passivamente de uma ideologia que a mantém subordinada ao sistema capitalista. As crianças são instruídas no consumo disciplinado, no mito do mercado. São inculcadas nas crianças idéias de que os valores podem ser produzidos e medidos, elas tendem a aceitar todos os tipos de classificação social. A escola às vezes é tão alienante que se torna para a criança camponesa um processo de desumanização. A criança camponesa se aliena do conhecimento ao ponto que este se torna para a criança algo hostil e estranho.

Para Marx, o processo de alienação manifesta-se no trabalho e na divisão do trabalho (Fromm, 1975). A atividade intelectual é uma forma de trabalho, ou seja, Marx considera como trabalho todas atividades, manual e intelectual. No trabalho alienante, (escola), o objeto produzido pelo trabalho (conhecimento), se opõe ao trabalhador (aluno), como um ser estranho, como uma força independente do produtor (aluno). O conhecimento adquirido pelo aluno é alienado porque não faz parte da sua natureza, e conseqüentemente, ele a (criança) não se realiza com o conhecimento adquirido, porque esse conhecimento nega a si mesma, não pertence a ela, é um objeto estranho que às vezes ela domina, mas não se realiza com ele.

Assim, podemos considerar a educação formal (escola) como alienante para a criança camponesa, porque o (conjunto de conhecimentos e habilidades) nas quais são transmitidas a ela, não faz parte de sua cultura e sim da sociedade burguesa urbana.

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A desintegração do campesinato acontece com o avanço das relações de produção capitalistas no campo, via subordinação da produção camponesa a economia de mercado e conseqüentemente introdução dos costumes e valores burgueses aos camponeses.

A subordinação da economia camponesa acontece através do controle da produção agrícola pelo capital. Este processo se dá pela expansão do capital no controle da produção via especialização da pequena produção baseada na policultura alimentar, intensificando a dependência aos mercados de produtos, insumos e aumento a dependência do capital para manter a produção. Todos estes aspectos estão associados a um processo crescente de mercantilização das atividades agrícolas do campesinato.

A escola tem o papel de inculcação dos valores burgueses, levando os filhos de camponeses a pensar e sentir como os outros alunos da zona urbana. A mudança nas condições de vida e valores de uma sociedade não pode ser feita da noite para o dia. Daí a necessidade da universalização da educação básica para as crianças de 7 a 14 anos, porque nesta fase de idade as crianças assimilam com maior facilidades os valores, normas e condutas que vão lhes marcar pelo resto de suas vidas.

O campesinato e sua cultura, representam um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo e ao “progresso” no campo, porque impede a formação de um amplo mercado interno pela sua mentalidade e capacidade de pouca produção e consumo de mercadorias. O que existe na economia camponesa é uma economia de mercado dispersa por uma escala de pouca monetarização da economia.

A educação transmite uma ideologia mobilizadora provocando mudança cultural que facilita a passagem da produção camponesa – que produz mercadorias para transformá-las em dinheiro e depois transformar este em mercadorias necessárias para satisfazer suas necessidades – por uma economia monetária onde o dinheiro (capital) é investido na produção de mercadorias para depois obter mais dinheiro, não para atender as necessidades, mas sim para efetivar a acumulação de capital.

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O SIGNIFICADO PEDAGÓGICO DOS CONTOS DE FADAS

Maria Angélica Peixoto Nildo Viana

Os contos de fadas estão sendo amplamente utilizados nas escolas como material pedagógico. Por isso, torna-se interessante analisarmos o significado pedagógico dos contos de fadas. Existem duas abordagens sobre este significado dos contos de fadas: para alguns, os contos de fadas são uma forma de manifestação da ideologia dominante, que possui um caráter repressivo1; para outros, eles possuem um caráter significativo e positivo para a criança e por isso colabora com a sua aprendizagem (Bettelheim, 1979). Buscaremos, a partir disto, descobrir se os contos de fadas são “repressivos” ou não e, ainda, se colaboram ou não com o desenvolvimento da consciência da criança.

Iniciaremos analisando a contribuição do psicanalista Bruno Bettelheim ao estudo dos contos de fadas e seu significado pedagógico. Bruno Bettelheim acredita que a literatura dos contos de fadas é a melhor forma de expressão do significado mais profundo da existência humana. Por meio dela a criança não só encontrará alívio para os seus conflitos existenciais como também poderá transcendê-los. Ele parte inicialmente da constatação de que a habilidade de leitura nas crianças tende a fracassar no seu desenvolvimento, devido ao fato de que os textos literários infantis em geral são pobres de significado, não permitindo, assim, que a criança se identifique com o seu conteúdo.

Segundo Bettelheim: Para que uma estória realmente prenda a

atenção da criança deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas

1 “Os contos de fadas, as histórias de fantasmas, as ameaças (‘chamo já o

policial’) que se usam habitualmente, fazem parte dos mais poderosos utensílios reacionários da reação política” (Reich, 1976, p. 47).

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ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que as perturbam. Resumindo, deve de uma só vez relacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade – e isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e no seu futuro (Bettelheim, 1979 p. 13).

Os contos de fadas, segundo Bettelheim, proporcionam à criança “recursos interiores” que facilitam a resolução dos seus conflitos existenciais. Em outras palavras, os problemas interiores (ou “existenciais”, que para Bettelheim são “psicológicos” e “emocionais”) que assolam as crianças serão mais facilmente enfrentados através da fantasia, onde elas podem encontrar significado para a complexidade de sua existência. A criança poderá, então, através dos contos de fadas, receber uma “educação moral” que influenciará a sua conduta de maneira significativa.

Bettelheim ressalta que: “(...) os contos de fadas transmitem

importantes mensagens à mente consciente, à pré-consciente, e à inconsciente, em qualquer nível que esteja funcionando no momento. Lidando com problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criança, estas estórias falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo aliviam pressões pré-conscientes e inconscientes. À medida em que as estórias se desenrolam, dão validade e corpo às pressões do id, mostrando caminhos para satisfazê-las, que estão de acordo com as requisições do ego e do superego” (Bettelheim, 1979 p. 14).

Mas o interesse de Bettelheim, entretanto, não é fazer uma análise técnica dos méritos dos contos de fadas, e sim entender porque as crianças apreciam tanto esta forma literária. Para Bettelheim, esta preferência ocorre porque os contos de fadas “começam onde a criança realmente se encontram no seu ser psicológico e emocional” (Bettelheim, 1979 p. 14). A criança apreende o significado dos contos

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de fadas por estes expressarem os problemas existenciais que a envolve e isto a auxilia na resolução deles.

A filósofa Marilena Chauí também faz uma análise dos contos de fadas. Ela reconhece existir uma “riqueza e multiplicidade de sentidos” nos contos de fadas, tais como os seus aspectos históricos, políticos, filosóficos, sociológicos, literários, políticos, etc., mas enfatiza o seu aspecto relacionado à sexualidade, pois este é o seu objeto de estudo (Chauí, 1988). M. Chauí, apesar de reconhecer alguns méritos na análise de Bruno Bettelheim, lhe dirige três críticas a saber: 1) ele desconhece o aspecto repressivo existente nos contos de fadas; 2) supervaloriza o seu aspecto pedagógico, mas limita o seu aspecto lúdico primordial; 3) não questiona a moral sexual burguesa veiculada pelos contos de fadas.

M. Chauí busca fundamentar a sua idéia de que existe um aspecto repressivo nos contos de fadas colocando alguns exemplos, tais como Os Três Porquinhos, Branca de Neve e Joãozinho e o Pé de Feijão. Segundo ela, Os Três Porquinhos demonstra o seu aspecto repressivo ao elogiar o ascetismo do trabalho em detrimento do gozo dos prazeres. Outro exemplo é o de Branca de Neve, que, segundo a autora, apresenta implicitamente a idéia de que a sexualidade feminina é algo doloroso e que isto é recompensado pela maternidade (Chauí, 1988).

O psicanalista Erich Fromm, por sua vez, também reconhece o caráter repressivo e moralista dos contos de fadas, mas, ao contrário de Marilena Chauí, afirma que para interpretar corretamente os contos de fadas é preciso inseri-lo no contexto social e histórico no qual foram produzidos. Fromm toma como exemplo Chapeuzinho Vermelho. Neste conto, apresenta-se, ao mesmo tempo, a repressão – expressa na recomendação da mãe para chapeuzinho vermelho “não sair do caminho” e “não entrar na floresta”, que segundo Fromm significa o risco de perda da virgindade – e o moralismo – expresso pelo tabu da virgindade. Mas, ainda segundo Fromm, este conto tem um significado mais profundo e é este que nos remete ao seu contexto histórico-social. É somente neste contexto que se pode descobrir o seu significado. Para ele, a simbologia sexual presente em Chapeuzinho Vermelho “é uma expressão de um antagonismo profundo contra os homens e o sexo” (Fromm, 1983, p. 175). Tal conto apresenta o conflito “macho-fêmea”. Portanto, o significado mais profundo deste conto remete à luta entre os sexos, provocada pela opressão da mulher em uma sociedade e em uma época determinadas, e não apenas à

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repressão sexual. Isto só pode ser explicado pelas relações sociais que opõem homens e mulheres e é devido a isto que a interpretação dos contos de fadas pressupõe a compreensão destas relações.

Os contos de fadas são vistos sob múltiplos aspectos e cada pesquisador enfatiza um deles, tais como o caso de Bettelheim, que enfatiza o aspecto pedagógico, de M. Chauí, que enfatiza o seu aspecto repressivo, e de Fromm, que enfatiza os aspectos histórico-sociais. Entretanto, consideramos que os contos de fadas devem ser analisados sob um duplo aspecto: 1) em primeiro lugar, deve-se reconhecer a mensagem que os seus produtores pretendiam transmitir; 2) em segundo lugar, deve-se buscar compreender as diversas interpretações que eles recebem pelos seus receptores.

Para compreendermos a mensagem que os produtores dos contos de fadas buscaram transmitir é necessário conhecer o contexto histórico e social onde foram produzidos. Os contos de fadas foram produzidos durante a idade média na Europa Ocidental. Especula-se sobre a possibilidade deles terem surgido antes da idade média, mas, de qualquer forma, a versão que chegou até nós foi produzida neste período histórico (Jolles, 1976). Isto é bastante visível nos temas, palavras, situações presentes nos contos de fadas. Neles estão presentes reis, rainhas, florestas e todo um conjunto de características próprias do mundo feudal com sua importância social delimitada. Os temas e as situações dos contos de fadas também retratam as condições de vida do mundo feudal. Isto é expresso claramente em O Pequeno Polegar e em Joãozinho e Maria que contam a aventura de crianças que eram abandonadas na floresta pelos seus pais, devido a sua situação de miséria, o que era comum nas famílias dos servos submetidos à exploração do senhor feudal2.

Os contos de fadas eram produzidos principalmente pelos servos, inclusive os domésticos. É por isso que neles, geralmente, aparece uma consciência de classe contraditória, pois na maioria desses contos está presente a oposição entre “pobres” e “ricos” e a tentativa dos “pobres” se tornarem “ricos”, tal como se vê em João Mata-Sete e Cinderela. Isto expressa uma consciência de classe contraditória, pois ao mesmo tempo em que há a busca de passagem de uma classe social à outra – de servo ou artesão à nobre –, uma expressão da submissão à ideologia dominante, também se expressa uma insatisfação com sua

2 Sobre alguns aspectos históricos da relação entre contos de fadas e

sociedade feudal, veja: Áries (1978).

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situação de classe. Entretanto, não se deve perder de vista que existem contos de fadas que possuem um caráter muito mais crítico. Este é o caso de A Roupa Nova do Imperador, onde se realiza uma crítica à hipocrisia da nobreza feudal e daqueles que se submetem a ela.

Portanto, os contos de fadas só podem ser corretamente interpretados levando-se em conta o seu processo de produção. Isto nos remete à história, às relações sociais. Desconhecer isso abre espaço para projeções de problemáticas que não estão presentes nos contos de fadas, tal como a obsessiva preocupação com a sexualidade de alguns intérpretes dos contos de fadas.

A nossa intenção aqui não é analisar a mensagem veiculada pelos contos de fadas, o que levaria a uma análise da sociedade feudal, mas sim analisar as interpretações dos contos de fadas. Entretanto, não pretendemos analisar todos os tipos de interpretações (o que nos levaria a fazer uma análise rigorosa da obra de B. Bettelheim, M. Chauí, E. Fromm, entre outros) e sim a interpretação que nos interessa para compreender o significado pedagógico dos contos de fadas, ou seja, a interpretação das crianças.

A pergunta que buscaremos responder agora é a seguinte: os contos de fadas colaboram com o desenvolvimento da consciência da criança ou não? Devemos reconhecer, tal como o fez E. Fromm, o aspecto ideológico dos contos de fadas expresso no seu “moralismo”. Mas nem todos eles são “moralistas” (e muito menos adeptos de uma “moral burguesa”, tendo em vista a época histórica em que foram produzidos – tal como alguns intérpretes colocam, descontextualizando este produto cultural). Entretanto, devemos também reconhecer que a mensagem dos contos de fadas é contraditória e não apenas conservadora. Isto surge da consciência de classe contraditória daqueles que os produziram. Já colocamos isto anteriormente. O que nos interessa aqui é ressaltar as conseqüências disso para a recepção dos contos de fadas nos dias de hoje. Para fazermos isto precisamos saber como esta contradição se manifesta. Como Cinderela passa de menina pobre à princesa? Como a mãe cabra recupera os seus sete filhotes cabritinhos da barriga do lobo? Como os injustos são punidos e os justos compensados?

A resposta é simples: através da irrupção do extraordinário3, geralmente, mas nem sempre, a ação mágica da “fada madrinha”.

3 A irrupção do extraordinário nos contos de fadas expressa a manifestação

do inconsciente coletivo, no desejo coletivo e reprimido da classe servil,

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Portanto, os contos de fadas são contraditórios: reconhece a existência de uma situação indesejável e a necessidade de superá-la, mas, ao mesmo tempo, apresenta um sentimento de impotência diante dela e a sua superação só ocorre graças a algum acontecimento extraordinário. O aspecto conservador dos contos de fadas está presente tanto no “moralismo” que eles reproduzem quanto no sentimento de impotência que eles apresentam e o seu aspecto crítico está presente tanto na sua visão do existente como algo indesejável quanto na busca da sua superação, mesmo sendo através de algo exterior.

A partir desta análise podemos dizer que os contos de fadas possuem um significado pedagógico ambíguo. Pode-se pensar que, do ponto de vista de uma pedagogia libertária, eles deveriam ser descartados. Isto, entretanto, é um equívoco, pois o significado pedagógico dos contos de fadas deve ser analisado a partir da unidade entre sua forma e seu conteúdo. Isto quer dizer que não podemos analisar o conteúdo dos contos de fadas, que é contraditório, sem observarmos os seus efeitos na sua forma.

Nos contos de fadas há o reconhecimento de uma situação indesejável e da necessidade de superá-la, mas, ao mesmo tempo, há um sentimento de impotência que torna os agentes “injustiçados” incapazes de superar esta situação por si mesmos. A resolução desta contradição ocorre graças a algo extraordinário. Esta é o principal efeito do conteúdo sobre a forma nos contos de fadas: o surgimento do inesperado, do imprevisível. E é aí que reside, a nosso ver, toda a positividade pedagógica dos contos de fadas. Do nosso ponto de vista, é preciso reconhecer a “ressonância imaginária dos contos: desenvolver a necessidade do insólito. tratar o vir-a-ser como ramalhetes de soluções imaginárias, isto é, de potencialidades” (Held, 1980, p. 18).

Não é possível compreender o significado pedagógico dos contos de fadas desconhecendo o papel da ficção e da imaginação como formas de pensar que possibilitam a emergência da visão do “ainda-não-existente” (Bloch, apud Bicca, 1987). Consideramos que o conto de fadas libera a imaginação da criança, abrindo-a para o inesperado, o imprevisível ou, em outras palavras, para o novo, a possibilidade de

obliterado pela sociedade de classes – fundada na exploração feudal. Aqui devemos esclarecer que entendemos por inconsciente coletivo não a concepção metafísica de Carl Gustav Jung (1987) e sim a concepção histórico-social esboçada por Erich Fromm (1979).

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mudança, a utopia. Esta abertura se encontra na própria estrutura dos contos de fadas, pois neles a ação dos seres fantásticos rompem com a cotidianidade e com o caráter repetitivo da realidade e assim abrem espaço para se pensar o novo. Este aspecto fundamental dos contos de fadas geralmente não é analisado.

Acontece que este aspecto possui uma importância pedagógica fundamental, pois é ele que abre espaço para o desenvolvimento da criatividade e do processo criativo na criança que assim pode romper com a aprendizagem meramente decorativa e repetitiva. Isto colabora tanto com o desenvolvimento das potencialidades da criança, principalmente sua criatividade, quanto com o desenvolvimento da capacidade de se imaginar o novo, o que tem um significado político subversivo. É por isto que consideramos que os contos de fadas possuem um significado pedagógico libertário.

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Bibliografia

ÁRIES, P. História Social da Criança e da família. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo, Nova Fronteira, 1979.

BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo, Edições Loyola, 1987.

CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: Essa Nossa (Des)Conhecida. 11.ª edição, São Paulo, Brasiliense, 1988.

FROMM, Erich. A Linguagem Esquecida – Uma Introdução ao Entendimento dos Sonhos, Contos de Fadas e Mitos. 8.ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

FROMM, Erich. Meu Encontro Com Marx e Freud. 7a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

HELD, Jacqueline. O Imaginário no poder - As Crianças e a Literatura Fantástica. São Paulo, Summus, 1980.

JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo, Cultrix, 1976. JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis, Vozes,

1987. REICH, Wilhelm. O Que é Consciência de Classe? Lisboa, Textos

Exemplares, 1976.

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O PARADIGMA DA EDUCAÇÃO AUTORITÁRIA: A Contribuição da Família

Veralúcia Pinheiro

Por mais decisivo que seja o poder que o casamento monógamo representa na história milenar da evolução humana e por mais longo e importante que seja o futuro que lhe pode ser reservado numa forma mais alta na sociedade, em todo caso nele é que se tornam visíveis as contradições entre a vida que evolui e as circunstâncias(...).

Max Horkheimer

É fundamental constatar que é próprio do senso comum conceber as instituições relativamente estáveis da sociedade, como é o caso da família, como formas “naturais” de organização coletiva ao invés de produtos históricos advindos da atividade social. Essa tendência à naturalização, que não poupa a família, deve-se à regulamentação social de atividades de base nitidamente biológica: o sexo e a reprodução.

Dentre os autores que corroboraram para a compreensão da família como fato histórico e cultural, destaca-se Lévi-Strauss (1976), que investigou as estruturas elementares do parentesco a partir do tabu do incesto, concluindo que é necessário não confundi-lo com uma elaboração cultural, fruto de exigências biológicas. Ao contrário, a proibição do incesto consiste na imposição de uma norma, sendo, portanto, uma criação social. Sua importância na reflexão sobre a família relaciona-se à destruição do mito natural da sexualidade, submetendo-o a regras e tornando-o um instrumento de criação de vínculos sociais.

O estudo da família, que enfoca aspectos culturais, históricos e sociais, implica sempre investigá-la enquanto espaço de socialização. Daí a importância de se conhecerem as formas de trabalho, de autoridade, de sexualidade, de amor, que marcaram suas manifestações e organizações em diferentes períodos. O rompimento com a visão natural e biológica da família pode ser percebido nas idéias de privacidade que se desenvolveram ao mesmo tempo que o

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modelo burguês de família, idéias. que, evidentemente, não existiam nas famílias aristocráticas e camponesas1.

Poster (1979) distingue a família camponesa da aristocrática, mostrando como o casamento de um aristocrata era um ato político, que devia garantir a linhagem e manter intactas as propriedades da família, e como tinha pouco a ver com amor ou com sexo. A centralidade da família estava no ‘status’ da casa, não na unidade conjugal. À mulher cabia ter filhos, organizar a vida social, mas a administração da casa, a criação dos filhos não faziam parte de suas preocupações.

A história da educação das crianças também fundamenta a compreensão da evolução histórica da família. Ariès (1981) descreve a escola e o colégio na Idade Média como instituições destinadas a um pequeno número de clérigos de diferentes idades, pois uma das características centrais da escola desse período era a mescla de idades num mesmo auditório. Dessa forma, assim que entrava na escola, a criança entrava imediatamente no mundo dos adultos. Somente por volta do século XV, inicia-se a conscientização da particularidade da infância e, conseqüentemente, da necessidade de tornar o colégio um instrumento para sua educação.

É claro que, em contextos tão distintos, as formas de amor e autoridade adotadas pela família burguesa são completamente diversas daquelas desenvolvidas pelas famílias aristocráticas. A importância que os nobres davam à hierarquia social os orientava no sentido de barrar as manifestações da criança em busca de autonomia, através de espancamentos similares aos de qualquer outro indivíduo de qualquer idade que buscasse os mesmos fins. Tratava-se de garantir a obediência à autoridade. Essa forma de punição era totalmente diferente das punições perpetradas pelas famílias burguesas, onde havia envolvimento emocional e se requeria da criança o controle de seu corpo em troca do amor dos pais.

Quanto à família camponesa, ela se diferenciava da aristocrática em vários aspectos. Os altos índices de mortalidade infantil não 1 Segundo Mark Poster, as casas aristocráticas eram espaços onde se

misturavam parentes, dependentes, criados e clientes, chegando a abrigar entre 40 e 200 pessoas. De uma maneira geral, as famílias aristocratas tinham mais filhos do que as famílias camponesas, em decorrência de a taxa de mortalidade infantil ser ligeiramente menor. No entanto, no período pré-industrial, o padrão de alta fertilidade/alta mortalidade se aplicava tanto à família aristocrática quanto à camponesa (Poster, 1979).

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permitiam que o número de filhos fosse elevado. No entanto, o número reduzido de filhos não apontava para famílias pequenas, pois, diferentemente do modelo nuclear, ela não tinha como unidade básica a família considerada individualmente. Ao contrário, a aldeia era espaço privilegiado de socialização dos camponeses, o pai não estava investido de autoridade e nem mesmo o afeto era individualizado. A família não era privada. Assim, estava sujeita à fiscalização da própria aldeia - mesmo as comemorações, os rituais de passagem, casamentos, nascimentos eram acontecimentos comunitários e não pertenciam a uma família isoladamente.

A partir daí, em relação à família nuclear, Poster (1979) adota como pressuposto de seu surgimento a burguesia européia de meados de 1750. Essa experiência de estrutura familiar foi totalmente diferente de qualquer outra que tenha ocorrido antes do século XVIII. Ao início da revolução industrial, a classe trabalhadora possuía uma estrutura familiar “sui generis” que, depois de dois séculos, tornou-se cada vez mais semelhante à da burguesia. As explicações para a rapidez desse processo podem estar relacionadas, de acordo com o autor, ao fato de que, durante o período, um considerável número de burgueses perdeu suas propriedades, tornando-se assalariados, transformando-se em trabalhadores qualificados, se bem que pertencentes ao universo da classe trabalhadora. Isso proporcionou a mistura dos elementos históricos que deram origem à família nuclear européia, cujo modelo é exatamente o adotado pela família contemporânea.

Lasch (1991) acredita que, ao final do século XVIII, os principais traços do sistema familiar burguês já estavam estabelecidos na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Os indicativos principais são os casamentos arranjados pelas próprias partes e não pelos pais ou pessoas mais velhas, o número considerável de pessoas que optavam por não se casarem e a relativa idade avançada dos noivos frente aos padrões da época. Ainda em relação ao casamento e à sexualidade, o autor acrescenta que as mudanças realizadas na educação das crianças influenciaram o comportamento dos casais, pois as meninas treinadas desde tenra idade para aceitar os avanços do sexo oposto sem comprometer sua reputação acabaram inadaptadas à realidade da vida conjugal e por isso provocaram grande tensão sexual, uma vez que o casamento ocidental baseava-se na intimidade e no amor.

A contradição entre a repressão da sexualidade desenvolvida pela educação moderna e as idéias do amor romântico vão compor o pano

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de fundo da família burguesa desde sua constituição, quando ela é percebida como refúgio contra um mundo cada vez mais brutal, competitivo, marcado pelas relações impessoais. As alterações no papel da mulher, nas concepções sobre a criança, que deixa de ser considerada de forma indiferenciada do adulto, são os novos ingredientes da família.

Poster (1979) compreende que a burguesia, como nenhuma outra classe, se esforçou para protelar a satisfação sexual. Isso porque, entre os membros dessa classe, as mulheres eram consideradas seres assexuais, criaturas angélicas acima da luxúria animal. Consideradas como criaturas dóceis, frágeis, puras, porém incapazes, a elas não era permitido o exercício da sexualidade prazerosa. O sexo estava, portanto, separado de qualquer idéia de sentimento e a sua utilidade na família era apenas para a procriação. Mesmo tendo o casamento deixado de ser um arranjo dos pais e chegado ao século XX como uma livre escolha dos envolvidos, o amor romântico e apaixonado constituiu-se numa realidade de curta duração, prevalecendo as idéias de responsabilidade e respeitabilidade.

A rígida separação dos papéis sexuais exercidos pela família burguesa e divulgados como o comportamento certo do ponto de vista moral, para Poster (1979), apesar de sua grande repercussão no conjunto da sociedade, inclusive junto à classe trabalhadora, enfrentava um obstáculo concreto, qual seja, o das condições objetivas de reprodução da vida material. Ora, ao considerar a mulher burguesa, a esposa, como uma pessoa pouco racional, apta apenas para a execução das tarefas domésticas, cujas satisfações ocorriam a partir das conquistas realizadas pelo marido, o sistema capitalista, dirigido pelo mundo masculino, enfrentou a contradição de necessitar do trabalho da mulher proletária para o desenvolvimento da sociedade industrial. Dessa contradição inicial, surgiram outras que extrapolaram o nível meramente ideológico e facilmente contornável da questão. Tratava-se dos cuidados com os filhos que, na família burguesa, sempre foi de responsabilidade da mãe. Se as contradições inerentes aos discursos sobre a incapacidade, fragilidade e inferioridade da mulher foram facilmente resolvidas através da conservação de seus salários abaixo dos níveis garantidos aos homens, em relação ao desmonte dessa estrutura familiar, concebida para ter a mulher e mãe como guardiãs durante todo o tempo, a situação foi fortemente agravada, dando origem às instituições estatais criadas para dar conta das crianças filhas de famílias trabalhadoras.

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Os conflitos relacionados aos papéis da mulher e das crianças na sociedade e na família emergiram junto com as idéias inerentes ao liberalismo, que criou novos valores, novas visões de mundo. Esses fenômenos foram gestados no contexto das mudanças sócio-econômicas da nova ordem, quando a família se volta para a intimidade, delimitando espaços públicos e privados. Ela se caracteriza, então, como uma unidade de consumo, isolada da produção. Para Almeida (1987), um elemento decisivo para a constituição desse ideal de família nuclear foi a mística da natureza feminina formulada entre o século XVIII e o XIX, no limiar da revolução burguesa, que cumpriu a tarefa de divulgar que, embora os homens fossem iguais perante a lei, as mulheres eram, por natureza, diferentes.

Na esteira das grandes transformações sociais, econômicas, as alterações na configuração das famílias se evidenciam. De uma situação aberta, cuja vida cotidiana contava com a participação da comunidade formada por vizinhos, amigos e parentes em geral, onde mesmo a educação das crianças, no caso das famílias camponesas, se realizava comunitariamente pela troca ou encaminhamento de crianças de uma família para outras, para que aprendessem algum ofício ou se habilitassem na execução de atividades domésticas, passou-se para uma situação onde a interferência externa à família acontecia através de propostas pedagógicas publicadas em livros e revistas e destinadas a reprimir manifestações antes consideradas naturais (Áries, 1981). O isolamento da família, sua individualização acentuou-se cada vez mais com a separação entre o mundo da casa e o mundo do trabalho. Estava em curso a difusão das idéias sobre o novo lar burguês enquanto espaço sagrado, onde nenhuma pessoa de fora tinha o direito de intervir, e que era distante, inicialmente, inclusive das regulamentações jurídicas.

Nesse contexto, a família mudou sua estrutura e sua função, acompanhando o modo contemporâneo de produção, ou seja, as mudanças ocorreram conforme o desenvolvimento industrial e afetaram principalmente as mulheres, que perderam a rede de apoio existente na aldeia. A privatização da família e, conseqüentemente, a ascensão da autoridade em seu interior ao mesmo tempo em que contribuíram para libertar os indivíduos das restrições sociais, impuseram à mulher e à criança a dominação masculina de forma ilimitada.

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Essa situação se agravou no movimento desencadeado pelos moralistas e educadores, marcando uma extrema preocupação das famílias com a masturbação infantil. Essa característica encontra-se tanto em Ariès (1981) quanto em Poster (1979). O horror a essa prática surgiu por volta de meados do século XVIII e significou a adoção de novas concepções de educação familiar em relação aos antigos modelos, pois nem os aristocratas nem os camponeses demonstravam preocupações nesse sentido. Ariès (1981) exemplifica atitudes de aristocratas divertindo-se com a participação de criança em jogos sexuais. Quanto à família camponesa, esse distanciamento pode ser percebido nas observações de Poster (1979) sobre a hegemonia da aldeia em relação ao parentesco e à família. O autor descreve a assistência oferecida às mães pelas pessoas idosas e moças solteiras. A transmissão dos conhecimentos sobre amamentação, cura de doenças, cuidados com os filhos pequenos era dever da comunidade. A família conjugal não constituía espaço privado, pois estava integrada a outras redes de sociabilidade. Essa forma de organização ou estrutura familiar não era condizente com o controle e a idéia de posse das crianças pela família, como no período moderno.

Entretanto, o caráter comunitário da educação familiar anterior ao século XVIII não é pressuposto dos diversos pesquisadores da família e da infância para a ausência de tratamentos cruéis por parte dos adultos. Inúmeros estudos demonstram o contrário: a indiferença dos pais, os açoites, os abusos sexuais e outras formas de violência foram muito comuns naqueles tempos. A evolução da família não ocorreu de forma linear, embora o sentimento de infância descrito por Ariès e uma constante preocupação com as crianças tenham permanecido presentes desde o período de sua “descoberta” até os dias atuais. Afeto e brutalidade se revezavam e muitas vezes eram frutos das indicações de respeitáveis autoridades no trato da criança.

A inovação característica desse período (a partir do século XVIII) consiste na introdução e, às vezes, na substituição dos métodos de castigos físicos por outros que buscavam suscitar culpa nas crianças. Nesse momento, a construção da mulher como mãe por instinto, abnegada, que, embora rainha do lar, não exerce autoridade, mas se submete à do pai, assume um papel importante na família. A criança passa a ser o centro das atenções, e, sobretudo passa a existir a perspectiva de uma individualização de afeto inexistente na família patriarcal.

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Como não se tratava de uma sociedade individualizada, competitiva, a educação na família antes do advento do capitalismo não se preocupava em oferecer à criança elementos para que ela pudesse enfrentar o mundo individualmente e tomar decisões com autonomia. Como afirma Poster (1979), tratando-se de uma sociedade baseada na hierarquia e nas tradições, sem perspectiva de mobilidade social, a vida para os camponeses tinha um padrão fixo, dirigido por infinitas tradições que sequer eram questionadas pelos indivíduos. Em relação à sexualidade da família, o autor considera várias questões que dão conta das profundas diferenças entre as famílias camponesa e burguesa. Em primeiro lugar, o fato de as esposas camponesas não serem consideradas objetos sexuais ou companheiras íntimas, mas colegas de trabalho, resultou em critérios de escolha vinculados às habilidades e robustez; segundo, os camponeses não eram sexualmente restritivos e faziam poucos esforços para refrear as formas infantis de satisfação corporal; e, terceiro, como os camponeses viviam em casas de um ou dois quartos apenas, as crianças familiarizavam-se desde muito cedo com os atos sexuais. Para ilustrar essas diferenças, o autor mostra exemplos históricos que narram experiências sexuais entre crianças e babás ou mesmo iniciações sexuais bastante precoces, que eram percebidas de forma natural pelos integrantes daquela sociedade.

O historiador Philippe Ariès (1981) ressalta a inexistência de um sentimento de infância na França da Idade Média, baseando sua pesquisa na observação e no estudo de documentos, retratos de família e efígies funerárias, exposições de fotografias em museus. Sobretudo, na arte da Idade Média, ele descreve minuciosamente a passagem de uma época que não distinguia o mundo dos adultos e o das crianças, para uma sociedade onde estas, além de se encontrarem nitidamente diferenciadas, ocupavam um lugar central na família.

Essas transformações na família européia acontecem paulatinamente, embora não sem resistência de setores significativos da sociedade. Nesse sentido, a retirada da produção do espaço doméstico contribuiu para transformar o exercício da autoridade numa relação privativa, apresentando a conseqüência, dentre outras, de um maior domínio dos pais sobre os filhos ou mesmo do homem sobre a mulher, sem perspectiva de fiscalização e controle de autoridades externas. Esse processo, na esteira do desenvolvimento histórico e social, se estenderia da Europa para todo mundo, onde criaria e recriaria as estruturas familiares em tempos e espaços diferentes.

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No Brasil, não existiu a experiência da família camponesa em oposição à família aristocrática, como se verificou na Europa (Costa 1983). Lá, enquanto o desenvolvimento das cidades provocou a separação entre o público e o privado, contribuindo no processo de construção da família nuclear, aqui, o caminho percorrido foi outro. O espaço urbano também foi apropriado pelos grandes proprietários de terra, que imprimiram suas marcas na cultura das cidades, transferindo idéias inerentes à família patriarcal. À submissão garantida pela violência física, habitualmente utilizada nas fazendas será adicionado o convencimento moral em sua defesa. Assim, independente do fato de possuírem propriedades ou não, as organizações familiares adotaram os costumes senhoriais do comportamento do homem para com a mulher, dos adultos para com as crianças, reproduzindo basicamente o mesmo tipo de solidariedade adotada nas famílias dos senhores. Evidentemente, as diferenças existiam e estavam relacionadas principalmente quanto ao poder que as famílias abarcavam e que dependiam, em última instância, da extensão das propriedades, ou seja, da riqueza de seus representantes. O desenvolvimento dessa instituição no Brasil traz elementos para a análise do momento atual quando são identificadas profundas mudanças percebidas enquanto crise por uma infinidade de setores da sociedade.

Também no Brasil, o surgimento da escola, da privacidade, dos cuidados especiais com as crianças fez parte da história da construção da família nuclear. Com preocupações iniciais voltadas para as famílias ricas, o Estado, através de diferentes profissionais representados especialmente por médicos higienistas, definiu estratégias que buscaram mudar sua configuração interna e transformá-la na instituição nuclear moderna que, mais tarde, atingiu condições semelhantes às das sociedades da Europa e dos Estados Unidos.

O capitalismo tardio desenvolvido no Brasil e as relações estabelecidas pelo colonizador português definiram traços culturais e sociais bastante específicos. Em relação às características da família, inicialmente elas foram “livres”, adotaram normas e comportamentos de acordo com a cultura patriarcal, refletindo obviamente a ideologia dos colonizadores, mas sem intervenções jurídico-legais. O caráter privado da família brasileira no período colonial não possuía o mesmo sentido da privatização inerente ao modelo de família nuclear moderno que se desenvolvera a partir do século XVIII na Europa. Sua

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ampla estrutura incluía agregados, compadres, afilhados e parentes em geral que, mesmo migrando do campo para a cidade, resistiu a qualquer proposta de mudança. Essa singularidade da família no período colonial pode ser melhor compreendida na seguinte citação:

... A vida privada não se deixava codificar pelo vocabulário jurídico. Não obstante algumas de suas mais importantes funções possuírem um estatuto jurídico bem definido, a força que as movia não emanava da lei. É o caso, por exemplo, do direito esmagador do homem sobre a mulher e a prole. O poder paterno colonial alimentava-se da ética religiosa e do domínio do ‘latifúndio’ sobre o meio cultural. Foi neste terreno baldio da ordem social que o poder do pai cresceu e frutificou. E, com ele, toda a série de comportamentos e sentimentos que formavam a intimidade familiar. Em conseqüência, estes hábitos não podiam ser etiquetados de legais ou ilegais. Eles poderiam ser úteis ou nocivos, mas nunca redutíveis ao território da justiça. Só as instâncias que enunciassem os julgamentos em termos morais poderiam ser aceitas. Fora desses parâmetros, toda intromissão seria fobicamente tratada pela família como estranha à sua substância. O instrumento adequado ao controle da vida íntima deveria, portanto, ostentar insígnias de poder e saber sobre a moral. (Costa, 1983 p. 62).

As transformações na família brasileira estão inicialmente vinculadas ao sentimento de intimidade, aos rituais relacionados aos hábitos alimentares, ao pudor do corpo, que foram desenvolvidos a partir do século XIX e contaram com o auxílio planejado dos médicos que, utilizando-se do discurso da higiene, da moral e até do amor à pátria, modificaram radicalmente suas práticas. Essa aliança entre o Estado e a medicina foi fundamental, especialmente para as mudanças que aconteceram no interior das famílias ricas.

Como já se observou, a família patriarcal manteve durante muito tempo em sua estrutura uma extensa rede de pessoas fora do critério da consangüinidade ou dos laços matrimoniais, como os compadres, afilhados e outros. Sua extensão não significava obviamente autonomia ou liberdade para as pessoas envolvidas. Ao contrário,

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consistia apenas em reforço ideológico do propósito de dominação dos senhores. Assim, mesmo com características privadas, sua conduta não era condizente com uma sociedade urbana que, na perspectiva de seus ideólogos, precisava ser “europeizada”. Foi para essa família de elite que as preocupações dos higienistas estiveram voltadas inicialmente.

De acordo com Costa (1983), a família colonial mantinha sua coesão através da extroversão psicológica dos indivíduos e de sua introversão social. A pouca importância em relação ao desenvolvimento das singularidades pessoais permitia que o primado do pai e do grupo continuasse se exercendo sem conflitos. Uma nova sociabilidade, que oferecia maior autonomia aos desejos individuais, paulatinamente quebrou os suportes da antiga trama das relações familiares. A família passou a viver um impasse criado pela urbanização: ou modificava seus hábitos para acompanhar as novas regras de competição econômica e social ou continuava presa ao seu modo habitual de viver, correndo o risco de enfraquecer ou morrer economicamente. Qualquer que fosse, sua escolha significaria, portanto, desestruturação. Foi dentro desse contexto que a família aceitou a medicina como padrão de comportamentos íntimos. A higiene ajudou a família a adaptar-se à urbanização, redefinindo papéis, criando, simultaneamente, normas de convivência, novos papéis e funções, bem como reconduzindo os indivíduos à tutela do Estado.

A “nova” família nuclear rompeu paulatinamente com as raízes familiares extensas do passado, construindo em seu lugar um mundo repleto de cuidados físicos e emocionais. Desse rompimento resultou a quebra de antigos valores relacionados, por exemplo, à religião e à propriedade. Em seu lugar, valores de classe, corpo, raça e individualismo foram sendo assumidos, até chegarem às concepções modernas de educação e conservação das crianças como objetivo fundamental do lar burguês. Essas são, portanto, as origens das idéias que percebem a família enquanto local privilegiado de proteção e cuidados com a infância.

A medicina higiênica voltou-se para as famílias de elite, que possuíam condições de oferecer educação letrada aos filhos. Seus profissionais articularam uma aliança bem sucedida entre as famílias e o Estado, estruturando hábitos, comportamentos, formas de criar os filhos livres dos valores adotados na família antiga. O colégio interno

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apresentou-se como alternativa à pouca disciplina adotada no interior das famílias, especialmente no que se refere à sexualidade:

.... Na escola mais que na casa as crianças foram lentamente programadas para reagir hiperestesicamente a toda falha ou, inversamente, a toda virtude física e espiritual (...) . Essa hipertrofia da consciência individual no tocante a seu corpo e aos afetos fazia parte do plano de formação da consciência de classe e raça necessária ao progresso do Estado nacional (Costa, 1979, p. 208).

O comportamento do homem burguês foi uma construção social que, para se efetivar, necessitou retirar as crianças do convívio cotidiano dos pais. A sexualidade saudável e a harmonia física e moral, pressupostos dos ensinamentos dos colégios internos desse período, tiveram por finalidade distinguir as crianças “burguesas” das demais.

Durante o período de transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre, momento que iniciou as estratégias para alterar a estrutura da família brasileira, não houve, da parte do Estado, preocupação com a situação das famílias dos escravos, das pessoas livres e pobres em geral. Elas não constituíam motivo de inquietações para o Estado ou para os patrões. As ações estavam voltadas para as mudanças nas famílias burguesas. Mesmo quando recriminavam o aluguel das amas de leite e os abusos cometidos contra mulheres escravas, de quem os proprietários tomavam os filhos para alugar, provocando abalos emocionais graves e prejudicando o leite que era vendido às crianças de famílias ricas, havia, por parte dos médicos e higienistas, a defesa da família dos burgueses. O discurso aparentemente caridoso em relação às escravas ao final servia para mostrar os prejuízos que o leite poderia representar para as crianças ricas que dele se alimentavam.

A preocupação com as famílias das classes trabalhadoras somente se converterá em objeto de intervenção estatal a partir do período de industrialização, que trouxe os imigrantes do sul da Europa, “brancos e civilizados”, de acordo com a percepção dos emergentes industriais brasileiros, que sonhavam com operários “educados”, mas dóceis e submissos à disciplina necessária ao trabalho espoliativo da fábrica. Junto a essa massa de imigrantes, principalmente os italianos, vieram os anarquistas, com experiência acumulada com as lutas do

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movimento operário europeu, cuja cultura política propiciara idéias próprias acerca do amor, do sexo, da família, da educação das crianças, etc., que exerceram grande influência na organização e resistência dos trabalhadores e que foram duramente combatidas.

A sociedade brasileira, especialmente os setores economicamente privilegiados, já havia passado pela transformação da família patriarcal em família nuclear burguesa moderna, transformação que implicou a substituição de um ideário naturalista por uma compreensão leiga, racional e científica. Essa racionalidade implicou ainda um processo de separação entre o público e o privado, uma segregação social com espaços bem delimitados. O tempo dos compadres de aparente entrelaçamento das classes sociais havia passado. O sentimento de intimidade, o sentimento de infância, a separação da criança do adulto (colégios internos), o confinamento da mulher no lar, a mudança na arquitetura das casas são fatos que expressam essa transformação. Na base de todo esse processo, encontra-se o modo de produção específico da sociedade capitalista. Ao separar os meios de produção do trabalhador, ao estabelecer uma profunda divisão social do trabalho, ao separar ricos e pobres, essa sociedade não podia correr o risco de permitir o desenvolvimento de outras formas de solidariedade no interior das instituições. Todos precisavam adotar a mesma racionalidade em nome do progresso e da ordem. Na verdade, esses foram os motivos principais que podem explicar por que foram banidas da vida privada dos trabalhadores as práticas consideradas promíscuas e anti-higiênicas. No universo dos valores necessários à construção da família nuclear, destaca-se o papel reservado à mulher, carregado de velhas e novas exigências, expressando as contradições vigentes na sociedade:

A invasão do cenário urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz um abrandamento das exigências morais, como atesta a permanência de antigos tabus como o da virgindade. Ao contrário, quanto mais ela escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho. Todo um discurso moralista e filantrópico acena para ela, de vários pontos do social, com o perigo da prostituição e da

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perdição diante do menor deslize. Não é a mulher esta carne fraca, presa fácil das paixões, que sucumbe sem resistências ao olhar insistente ou aos galanteios envaidecedores do sedutor? ...(Rago, 1985, p. 63).

O quadro das relações intra-familiares compôs-se a partir desse período, pela criação de um novo modelo de mulher, cuja expressão se encontra em seus diversificados papéis de esposa/dona-de-casa/mãe-de-família, que, mesmo diante da necessidade do trabalho remunerado para o sustento da família, no caso das mulheres das classes trabalhadoras, não implicou em sua valorização pessoal, profissional, política e intelectual. Pois, às mulheres, durante muito tempo, restaram os trabalhos desqualificados e, portanto, subalternos, uma vez que os cursos de especialização profissional, técnicos e universitários, permaneceram-lhes praticamente fechados, restando-lhes as carreiras de professoras primárias, enfermeiras, no caso das que tinham instrução, e domésticas, operárias, costureiras, para as de famílias pobres.

Nesse sentido, a industrialização não separou a mulher do espaço da produção, não a isolou na vida doméstica, ou pelo menos não o fez com as mulheres da classe trabalhadora. Com estas, o que ocorreu foi sua inclusão simultânea nas duas esferas, a pública e a privada. Contraditoriamente, sua condição assumiu uma característica fundamental: sua “igualdade” enquanto indivíduo no âmbito do mercado e sua desigualdade enquanto sujeito, ancorada no âmbito doméstico da reprodução e à mercê da autoridade masculina em ambas as esferas.

Além disso, no Brasil, nas décadas iniciais do século XX, o Estado transformou as questões sociais inerentes às famílias da classe trabalhadora em problemas de segurança, ou seja, de polícia. Dessa forma, foram profundamente reprimidas as formas de convivência que se diferenciavam do modo dominante de organização familiar e cultural. Enquanto nas classes abastadas o médico higienista tornou-se um aliado da mulher, colaborando para as mudanças que acreditava necessárias em relação à criação de filhos, os lares proletários foram literalmente invadidos pelos higienistas, pela fiscalização, pela assistência social, pelas campanhas de vacinação, etc.

Na visão da classe dominante, era preciso “educar” a família da classe trabalhadora para a adoção de hábitos, valores e comportamentos análogos aos da burguesia. Assim, através do

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combate à insalubridade das moradias, da promiscuidade presente nos cortiços e favelas, o Estado realizou uma intervenção, alternando repressão e assistência social para, ao final, obter uniformização nas representações acerca dos papéis e dos modelos ideais.

Pouco a pouco, o isolamento da família, seu caráter autoritário somado à idéia de propriedade dos pais em relação aos filhos e do marido em relação à mulher, formaram o pano de fundo para a permanência de atitudes cruéis dos pais, que desembocaram em situações, cuja gravidade demandou soluções que foram além do espaço privado, pois diziam respeito ao direito à vida e à dignidade. A intervenção do Estado foi vista como necessária. Rompeu-se, assim, um “pacto sagrado”, o da inviolabilidade da família. Nesse contexto, a própria visão de infância sofreu alterações e as mudanças ocorreram tanto no nível formal das instituições sociais (leis, estatutos, etc.), quanto nos aspectos relacionados à cultura, aos valores e à educação na família.

As principais inovações que esse ideal de família carregava estão relacionadas ao papel exercido pela mulher, que adquiriu importância no interior da casa ao assumir a função de iniciadora da educação infantil, deixando de ser apenas a guardiã do patrimônio do marido, e a inserção do Estado como mediador das relações familiares que, mesmo regulamentadas, não romperam com o princípio da autoridade masculina. Horkheimer contribuiu para a compreensão dessa forma de dominação na sociedade burguesa, uma sociedade que fazia questão de tornar evidentes as diferenças no exercício do poder, onde a autoridade do homem em relação à mulher e à criança precisava ser “inquestionável”:

... Por isso, esta educação para a justiça da realidade, na qual se resume toda boa vontade pedagógica nas faces mais desenvolvidas da sociedade burguesa, está presente na concepção protestante da família. Ela está no ‘pensamento fundamental mais genuíno do Luterismo, que vê a superioridade física instituída pela natureza como expressão de uma relação de superioridade desejada por Deus e a ordem firmemente estabelecida como a finalidade principal de todas as organizações sociais. O pai de família é o procurador da lei, o dono incontrolado do poder, o provedor, o cura de almas e o sacerdote de seu lar’. Este fato

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natural, a força física do pai, aparece ao mesmo tempo, no protestantismo, como uma relação moral a respeitar. O pai sendo mais forte de facto, o é também de jure (...). Diferenças impostas pela natureza são desejadas por Deus (...). O pai tem direito moral à submissão ao seu poder, não porque ele se mostre digno, mas ele se mostra digno porque é o mais forte. (Horkheimer 1990, p. 215).

No pensamento desenvolvido pelas idéias protestantes do período liberal, a autoridade que se exigiu dos indivíduos precisava ser permeada pela razão instrumental, à qual todos deviam ajustar-se e subordinar-se para não se “perderem” ou “soçobrar”. Os insubmissos estavam fatalmente condenados ao fracasso. Daí a importância de uma educação (familiar) voltada para garantir a reprodução da autoridade, para que a criança aprendesse a reconhecer e a respeitar a autoridade paterna e a entender as diferenças naturais como desígnios de Deus. Dessa forma, aprendeu-se a perceber as diferenças sociais também como acontecimentos naturais.

Para Horkheimer (1990), essa razão instrumental era reforçada pelo senso de responsabilidade econômica e social para com a mulher e os filhos que, no mundo burguês, tornou-se um traço característico do homem e fez parte de uma das funções aglutinadoras da família, como ainda se encontra hoje. O marido é preso ao estabelecimento não só pela preocupação com a própria família, mas também pela permanente advertência da mulher; e os filhos, na educação materna, experimentam diretamente a influência de um espírito dedicado à ordem vigente, mesmo correndo o risco de que o amor à mãe dominada pelo pai venha suscitar neles a perspectiva de um traço oposicionista permanente. Mas a mulher não só exerce uma função que fortalece a autoridade como também toda a sua posição dentro da família nuclear tem, necessariamente e como conseqüência, um aprisionamento de importantes energias psíquicas que podem beneficiar a reestruturação ativa do mundo.

Segundo Horkheimer (1990), para exercer sua posição influente na família, o homem precisa necessariamente exercer seu papel de provedor. Ao deixar de ganhar ou de ter dinheiro, ele perde também o seu poder. Isso ocorre não apenas porque respeito e amor costumam orientar-se pelo sucesso, mas porque o desespero de seus membros torna impossível a manifestação desses sentimentos positivos. Essa condição ainda atual da família poderá ser corroborada no decorrer da

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exposição dos dados da pesquisa, observando, no entanto, a necessidade de ressaltar que essa relação não deve ser considerada de forma mecânica, pois ela atua pela totalidade das circunstâncias, por um mútuo relacionamento de tensões e contradições, e o fator econômico pode funcionar de maneira completamente diferente de uma família para outra. Assim, a idealização da autoridade paterna como oriunda de um decreto divino, da natureza das coisas ou da razão, mostra-se, a um exame mais acurado, como a glorificação de uma instituição economicamente condicionada.

Da Matta (1985) considera que de cada tipo brasileiro de família pode-se descobrir seu lado contrário. Dessa maneira, para todo ‘androcentrismo’, pode haver uma matrifocalidade, como algo típico da família de baixo poder aquisitivo. Por isso, tanto o homem quanto a mulher podem ser utilizados como elementos englobadores do espaço social ocupado pela família, desde que se tenha em vista a faceta profundamente hierárquica dessa sociedade.

Ainda de acordo com Da Matta (1985), em alguns contextos, o mundo social é englobado pela mulher, ao passo que, em outros, o é pelo homem. Para ele, tudo o que diz respeito ao mundo da casa é feminino e deve ser englobado pela mulher; mas tudo aquilo que pertence à rua ou é de fora, que fala da economia e da política, das formalidades, é masculino. A funcionalidade do sistema parece residir na sua própria capacidade de manter diversas categorias englobadoras, que podem ser utilizadas em situações e para propósitos diferentes. Não existe, portanto, impedimento para que o sistema seja ao mesmo tempo matrifocal e patriarcal, desde que se faça a referência, respectivamente, à casa ou à rua e se queira descobrir os nexos entre esses dois espaços na sociedade.

Assim, a organização da vida familiar é uma tarefa reservada à mulher, que tem a responsabilidade de transmitir aos filhos os valores religiosos, morais, éticos. O exercício desse papel, embora considerado relevante, está submetido a uma hierarquia que considera o mundo da rua, dos negócios, assuntos para homens, superior ao mundo da casa, espaço das mulheres. A real necessidade e importância do trabalho da mulher fora de casa não destroem as concepções sobre sua inferioridade e submissão.

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RELIGIOSIDADE E LÓGICA POPULAR

Jean Paraízo Alves

Mas não haverá um dever de honestidade a nos obrigar a ouvir a religião até agora silenciosa?

Rubem Alves

Neste artigo procuro abordar a maneira pela qual os agentes dos grupos e práticas do catolicismo popular compreendem um aspecto da sociedade, o sócio-econômico, bem como tento entender o funcionamento da lógica popular, da lógica do oprimido1. Tentarei discutir as concepções populares, a “lógica popular”, enfim a cultura popular, como uma concepção/lógica/forma de resistência à dominação.

De forma mais clara quero propor uma “leitura” da maneira pela qual os sujeitos dos grupos e práticas do catolicismo popular2 vêem / representam / explicam / entendem o progresso. Proponho essa “leitura” porque acredito na existência de uma lógica popular a qual lhe dá uma diretriz.

E por que tomei os grupos e práticas do catolicismo popular como arquétipo da lógica popular, da lógica do oprimido?

Porque acredito, tal qual Carlos Rodrigues Brandão, que possivelmente a melhor maneira de se compreender a cultura popular seja estudando a religião.

Ali ela (a cultura popular) aparece vive e multiforme e, mais do que em outros setores de

1 Longe de querer dar início a obscuro e complicado debate acerca do termo

“lógica” pretendo dizer que, no âmbito deste texto, entendo por lógica popular tão-somente o discurso popular, o conhecimento popular, enfim, a visão de mundo popular.

2 A bibliografia consultada não define claramente – por “A” mais “B” – o que seria entendido exatamente por grupos e práticas do catolicismo popular. Entretanto, falo em grupos e práticas do catolicismo popular porque as práticas deste catolicismo, no mais das vezes, estão organizadas em grupos, como por exemplo, a Folia de Reis (e outras), a novena, as festas de Santos populares, etc. Porém, nem todas as práticas do catolicismo popular se dão dentro de um grupo. Como exemplo disso posso citar a benzedeira que benze na solidão de sua casa e a promessa, feita no íntimo do coração. Ler a dissertação de Jadir de Morares Pessoa (1990).

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Jean Paraízo Alves Religiosidade e Lógica Popular

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produção de modos sociais da vida e dos seus símbolos, ela existe em franco estado de luta acesa, ora por sobrevivência, ora por autonomia, em meio a enfrentamentos profanos e sagrados entre o domínio erudito dos dominantes e o domínio popular dos subalternos (Brandão, 1986 p. 15).

É bom salientar que para os agentes dos grupos e práticas do catolicismo popular o religioso constitui-se como o elemento explicador mais usual e mais acreditado que existe. Imagino que isto ocorre porque, como pensa Da Matta, a religião serve como um meio de explicação para os infortúnios, para legitimar ou justificar a maneira através da qual a sociedade encontra-se organizada e para “dar a todos e cada um de nós um sentimento de comunhão com o universo” (Da Matta, 1986, p. 11). Por outro lado, de acordo com Berger, a religião teria desempenhado ao longo da história o papel de legitimadora mais eficaz da ordem social vigente. Isso aconteceria porque a religião põe a realidade num panorama de referências sagrado e cósmico (Berger, 1985, p. 46).

Cabe ressaltar, entretanto, que concordo com a visão de Berger no sentido de assinalar a importância da religião enquanto promotora de um viés através do qual a ordem social, a vida social e seus conflitos, podem ser vistos e concatenados por um grupo social ou por uma sociedade em particular. Quando estou concordando com Berger e Da Matta, não estou concebendo a sociedade de uma forma holista, monolítica; não estou tampouco pensando numa religião que serve unicamente para uniformizar as concepções/idéias da sociedade tendo por base uma ideologia dominante – produzida tão-somente pela classe social mais bem aquinhoada – com o objetivo espúrio de reproduzir e justificar o “status quo”. Estou, isto sim, concebendo a partir das brilhantes idéias destes autores a possibilidade das classes populares produzirem, por si próprias, explicações sobre a sociedade e suas contradições internas, criando destarte uma contra-ideologia que tenha ao mesmo tempo uma visão de mundo até certo ponto autônoma e uma proposta alternativa de sociedade, de organização social, embora não seja ela una, homogênea ou inteiramente sistematizada. Assim sendo, tomo as idéias de Da Matta e Berger como suportes para a noção de que a religiosidade popular – ou mais especificamente, o catolicismo popular – oferece elementos para uma certa padronização nas explicações levantadas por seus agentes com o objetivo de

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legitimar ou não a maneira como a sociedade está estruturada e as possibilidades de sua transformação.

O catolicismo popular ofereceria, portanto, um conjunto de idéias não só legitimadoras, de uma visão conservadora da vida social, como também possibilitaria a construção de uma outra visão, exclusiva a esse agrupamento religioso, criadora de alternativas ao mundo social existente.

Daí a minha suposição de haver uma uniformidade nas explicações que os agentes dos grupos e práticas do catolicismo popular dão para a dinamização (transformação) sócio-econômica.

Essa minha hipótese é corroborada pela concepção de Brandão, segundo a qual a religiosidade popular carrega consigo um “saber” que lhe é peculiar, próprio.

O que garante, entre outras coisas, o que tenho chamado aqui de uma autonomia relativa de lógica e de prática da religião popular é que ela faz e preserva a moldura e as redes sociais de transmissão do seu próprio saber (Brandão, 1986, p. 153).

Se eu reconheço a existência desse saber religioso e vejo nele uma importante forma de resistência à dominação, posso vislumbrar então, aqui, um ato político ou, em outras palavras, um discurso coerente de um grupo social acerca da sociedade, da economia, da religião, etc.

Já que estou analisando as representações/interpretações dos grupos e práticas do catolicismo popular, tenho seguramente que passar por considerações acerca da Igreja Católica “oficial”. Aí, lato sensu, as discussões não ficam mais no âmbito das relações religião x sociedade – ou, então, no que um subgrupo religioso e submisso (o catolicismo popular) pensa sobre um aspecto da sociedade: o sócio-econômico – mas dentro do âmbito das relações intra-religião, ou, em outras palavras, nas relações ambíguas (e nem sempre amistosas) entre o catolicismo popular e o “catolicismo oficial”.

Parto, portanto, do pressuposto tão caro ao autor acima mencionado de que os elementos subalternos, ou, em outros termos, os agentes do catolicismo popular não engolem boca abaixo os “ensinamentos” do catolicismo erudito, de paróquia. Os subalternos “não só se apropriam ativamente dos modos eruditos e impostos de crenças e práticas religiosas como também criam, por sua conta e risco, os seus próprios modos sociais de produção do sagrado” (Brandão, 1985, p.18-19). Daí a idéia de que a “reconquista de

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espaços populares de religião feita com o trabalho de sujeitos subalternos, proclamada com acusações dos dominantes, é ato político de classe (...)“ (Brandão, 1985, p. 138).

Também nesse sentido, novamente Berger é importante. Quando estudo as relações entre “sistemas religiosos” ou então entre religiões diferentes vejo uma situação que Berger chama de “situação de mercado”. Aqui os vários grupos religiosos se organizam para conquistar (disputar) uma população de “consumidores” ávidos pelo consumo de bens simbólicos proporcionados pelo universo religioso:

(...) os grupos religiosos tem de se organizar de forma a conquistar uma população de consumidores em competição com outros grupos que têm o mesmo propósito (Berger, 1985, p. 150).

É o que podemos ver, por exemplo, no livro de tombo da paróquia de uma pequena cidade do interior do Estado de Goiás:

Em 1981 (...) tivemos a visita dos padres da igreja brasileira e o pedido dos mesmos para permanecerem na cidade. Movimentamos todo o povo do município para não darem cobertura a este tipo de gente. Explicamos a finalidade deles. Isto foi feito através de reuniões com pequenos grupos, celebrações, entrevistas, visitas às famílias, palestras, reuniões com as autoridades, enfim lançamos mão de todos os meios que estavam em nosso alcance (Apud, Alves, 1992, p. 36).

Se posso observar a disputa pelo mercado de bens de salvação no início da década de 80 entre o corpo burocrático da Igreja Católica Apostólica Romana e os “padres da igreja brasileira”, nessa cidade do interior goiano, posso muito bem pensar na existência de outras disputas de mercado: folião x Igreja, benzedeiras x Igreja, companhia de Folia de Santos Reis x Igreja, benzedeiras x benzedeiras (“fulana não benze bem, mas eu benzo”) de folião x companhia de Folia.

É isso que deixa transparecer, por exemplo, o depoimento do capitão de uma companhia de Folia, que “gira” na zona rural da região próxima ao Rio Turvo na divisa dos municípios de Indiara e Acreúna – GO . Quando perguntei a ele se tinha conhecimento da existência de algum grupo de folia na cidade (zona urbana) e o seu juízo a respeito

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dele, obtive a seguinte resposta: “sim (conhecia)”, entretanto, fez algumas considerações:

Eu pessoalmente não gosto de folia na cidade por que dá muita, muita cachaça, dá muito, né, pinguço, muito vadio. Às vezes a gente tá andando vem aquilo que não gosta só prá te sacaniá. Eu acho que o pessoal da roça é mais devoto que o da cidade.

Segundo esse mesmo informante existem muitos outros “capitães” que não saúdam todas as imagens de santos encontradas numa casa durante o “giro” (percurso), porém: “Eu saúdo eles (os santos), tem algum capitão que não, mas eu costumo saudar eles sempre”.

De acordo ainda com esse capitão existem muitos outros grupos de folia nas proximidades de onde ocorre o “giro” de sua companhia. Entretanto, as pessoas preferem ir assistir / acompanhar o seu grupo, haja vista que ele tem mais “tradição”.

Podemos ver, nos depoimentos acima, claros elementos indicadores de uma provável “disputa de mercado” religioso. A justificativa dada pode ser a “maior tradição” do grupo ou, então, até mesmo o fato de se saudar os santos enquanto as outras “companhias” não o fazem. O importante, porém, é que o “produto simbólico“ vendido pelo “meu” grupo é melhor. Só isso.

O mesmo acontece, e talvez de forma mais explícita, quando o foco de análise está voltado para a disputa de mercado religioso existente entre o catolicismo popular e o catolicismo erudito. Neste caso fica evidente o fato de o catolicismo popular, de uma forma geral, ser um conjunto de práticas ambiguamente ordenadas dentro do catolicismo. A benzedeira e o rezador popular, por exemplo, estão ao mesmo tempo, fora e dentro da Igreja Católica. Eles batizam os seus filhos na igreja mas também batizam-nos na fogueira. Eles vão à missa (uns mais, outros menos), porém apresentam seus próprios rituais autóctones. O mesmo poderia dizer dos foliões de Folia de Reis, dos sujeitos participantes das festas de santos populares. Todos eles estão, a um só tempo, fora e submissos à Igreja Católica “oficial”.

Quando o assunto é a “pluralidade” católica, a importância de Gramsci se torna fundamental. Para este estudioso, a religião não é ideologicamente homogênea mas é, muito pelo contrário, um agrupamento de religiões diferentes.

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Toda religião, inclusive a católica (ou antes, notadamente a católica, precisamente pelos seus esforços de permanecer superficialmente unitária a fim de não fragmentar-se em igrejas nacionais e estratificações sociais) é na verdade uma multidão de religiões distintas, freqüentemente contraditória: há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operários urbanos, um catolicismo dos intelectuais, também este variado e desconexo (Apud. Portelli, 1984, p. 25).

Se tenho uma teologia reprodutora dos valores de um comando erudito e colonialista à distância – por exemplo, a Igreja Católica Apostólica Romana – extremamente ligada aos costumes dominantes dos opressores, eu possuo, ao mesmo tempo, uma “teologia” popular, ligada aos subalternos e oprimidos.

Do mesmo jeito que um sacerdote erudito, da Igreja Católica demora nove, dez anos para se formar, um “sacerdote popular” - um rezador, uma benzedeira, um capitão de Folia - demora vários anos, muitas vezes nove, dez anos, também, para se “formar”3 (Cf.: Brandão, 1981; 1986).

Em conversas com sujeitos dos grupos e práticas do catolicismo popular pude notar, nas suas falas, uma grande ênfase na idéia de que a cidade e o país “progrediram” muito. Assim sendo, vislumbrei uma suposição fundamental para esse estudo: os sujeitos dos grupos e práticas do catolicismo popular representam o “progresso”4

3 Entretanto, cabe ressaltar que, por outro lado, os subalternos

insistentemente exprimem a vontade e a necessidade de conhecer a cultura da classe (e às vezes da etnia) dominante, a “cultura do outro”. Eles desejam apreender concepções de seus oponentes e dominadores para poderem enfrentá-los em pé de igualdade. De acordo com José de Souza Martins, os índios e camponeses “reclamam o direito de saber o que significa aquilo que o adversário fala e faz. O pedido de escolas e cursos, insistentes, tem o sentido de apropriação dessa arma de luta pela vida que é a linguagem” (1992, p. 31).

4 Para o momento, acho bastante entender/considerar por “progresso” apenas as idéias que me foram repassadas pelos sujeitos do catolicismo popular acerca da melhora de suas cidades (regiões) e/ou do país. Conforme a opinião de meus informantes a cidade (ou o Estado de Goiás e o país) “melhorou” bastante, “progrediu”.

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(dinamização sócio-econômica) em dois tempos. Num primeiro, mítico e macro, acreditam que a sua cidade e o país melhoraram. Num segundo, específico e micro , entendem a sua situação específica como tendo piorado. Ou seja, eles acham que a cidade, a “nação”, o país “progrediram” enquanto eles “regrediram”. A cidade e o país, como um todo, melhoraram. Hoje em dia tem bancos, asfalto, supermercado, escolas, energia elétrica, etc. Entretanto, os salários não obtiveram acréscimos. Alguns indivíduos chegam mesmo a falar que “para pobre não tem melhora”, “não tem solução”.

Melhorou, agora é cidade. Antes não era uma cidade. Tanto na facilidade bancária, hospitalar, como também, no crescimento geral de todos, da juventude, do crescimento da população (capitão da Folia dos Reis. Apud Alves, 1992, p. 60).

Hoje já é uma cidade boa. Graças a Deus, viu, por que naquele tempo só criava ema (...). Agora, hoje não, hoje lá tá um colosso, uma cidade boa, de muita importância (...). Hoje é considerada uma dos lugares mais ricos aqui da região (morador da região Rio Turvo, divisa dos municípios de Acreúna e Indiara - GO).

O catolicismo popular carrega consigo um “saber” peculiar, próprio, o qual proporciona, aos seus componentes, um entendimento de algo que eles nomeiam de “progresso”. Entretanto, trata-se de um progresso percebido como sendo excludente e marginalizador.

Para finalizar saliento que não possuo ainda uma conclusão pronta e acabada. Pretendi neste momento apenas abrir caminhos para uma discussão futura. Tentei somente delinear, com as cores das teorias antropológicas e sociológicas, um horizonte vasto, bonito e sugestivo. Porém, não sei ainda onde esse horizonte vai chegar. As minhas conclusões/sugestões são, portanto, conclusões propedêuticas, iniciais.

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Bibliografia ALVES, Jean Paraízo. Vai em Frente que Santo Reis te Ajuda. Um

estudo antropológico das representações dos grupos e práticas do catolicismo popular na região de Acreúna-Go. Goiânia, UFG, 1992. (Projeto de Pesquisa).

ALVES, Rubem. O Que é Religião. São Paulo, Brasiliense, 1987. BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. Elementos Para uma Teoria

Sociológica da Religião. São Paulo, Edições Paulinas, 1985. BRANDÃO, Carlos R. Os Deuses do Povo. Um Estudo Sobre a

Religião Popular. São Paulo, Brasiliense, 1986. BRANDÃO, Carlos R. Sacerdotes de Viola. Rituais Religiosos do

Catolicismo Popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis, Vozes, 1981.

MARTINS, José de Souza. Educação e Cultura nas Lutas do Campo (Reflexões Sobre Uma Pedagogia do Conflito). In: VÁRIOS. Sociedade Civil e Educação. São Paulo, Papirus, 1992.

DA MATTA, R. O Que Faz O Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1986.

PESSOA, Jadir de Moraes. A Igreja da Denúncia e o Silêncio do Fiel. Um Estudo Antropológico das Relações entre Uma Igreja Católica Pós-Conciliar e os Diferentes Grupos e Práticas do Catolicismo Popular, na Região de Ceres, em Goiás. Campinas, Unicamp, 1990 (Dissertação de Mestrado).

PORTELLI, H. Gramsci e a Questão Religiosa. São Paulo, Paulinas, 1974.

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EDUCAÇÃO, CULTURA E DIVERSIDADE

Rosani Moreira Leitão

A existência de outras lógicas e racionalidades adequadas desafia o absolutismo das nossas próprias categorias. Em nossas escolas, uma forma peculiar de conhecimento tornou-se reificada. (...) Acreditando, portanto, que as definições predominantes de educação são limitadas, hierárquicas e repressivas, argumentamos que se compreendermos bem que a capacidade, inteligência e outras categorias são formulações históricas, feitas pelo homem, então estaremos prontos a pensar em alternativas.

Madan Sarup

Este trabalho pretende, contribuir para a ampliação do conceito de educação, via de regra compreendido como sinônimo dos processos educativos adotados pela sociedade ocidental, que tem na escola o local por excelência de transmissão do saber e de formação do indivíduo.

Propõe-se assim o questionamento e a relativização da concepção tradicional de educação presente na sociedade ocidental, que toma os valores da cultura ocidental e da sociedade burguesa como referência, mesmo quando lida com grupos ou sociedades que possuem outros universos culturais.

Diferentes tipos de sociedades constroem formas também diferenciadas de ordenação e de interpretação do mundo, bem como formas peculiares de solucionar os problemas concretos colocados pela experiência cotidiana.

Suposições baseadas no absolutismo da cultura ocidental, bem como no seu modelo próprio de educação tem legitimado através de séculos posturas evolucionistas (Da Matta, 1987) e etnocêntricas (Laraia, 1988) que concebem toda e qualquer forma de organização

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sócio-cultural que não se organiza à sua imagem e semelhança como “tecnicamente inferior”, “atrasada” ou “não-civilizada”, o que vai legitimar inúmeras formas de violência tanto física como cultural contra as mesmas.

Neste sentido a utilização de estudos antropológicos pode contribuir sensivelmente para o alargamento dos horizontes dos educadores, fornecendo aos mesmos conhecimentos sobre a diversidade cultural presente, sobretudo, no interior da sociedade brasileira. Tais conhecimentos podem possibilitar um relacionamento mais pluralista, menos autoritário, e menos preconceituoso no que diz respeito ao “outro”, “ao diferente”.

Sarup (1980) refere-se à contribuição da Antropologia e da Sociologia da educação no sentido de possibilitar o reconhecimento da existência de maneiras alternativas de ordenar não só a educação, mas também a própria vida. Tal contribuição aponta também para a necessidade da compreensão de que a existência de diferenças culturais não pode e não devem ser tomadas, no âmbito da educação como critérios para definir inferioridade ou superioridade de uma sociedade com relação à outra.

Sarup concorda, assim, que a elaboração de categorias de interpretação e compreensão do mundo, bem como do fenômeno educativo, são aspectos definidos pelo contexto histórico-social e que vão estar portanto vinculados a aspectos sócio-culturais peculiares a cada tipo de sociedade.

Florestan Fernandes também analisa a questão da vinculação da prática educativa, bem como da compreensão da educação, a contextos sócio-culturais específicos:

O processo educacional, está vinculado a configurações estruturais societárias. Dizer que uma forma social existe equivale a dizer que os homens que a compõem a afirmam de uma ou de outra maneira. Dizer que uma forma social persiste equivale a dizer que ela é capaz de mobilizar novas pessoas que a vão compondo, numa constante renovação desta afirmação (1965, p. 165).

Destaca-se aqui o caso das sociedades indígenas, que são produtos de processos históricos e sociais distintos daqueles que marcaram as sociedades ocidentais, possuindo, por isso, concepções de mundo peculiares e adequadas aos seus modos de vida. Tais sociedades,

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organizadas, predominantemente em moldes comunitários, adotam formas de educar os seus “cidadãos” ou de torná-los completos membros da sociedade, baseando-se em padrões culturais reconhecidos por todos e colocados em prática através das atividades cotidianas, pela vida social global, através da oralidade e da tradição (Fernandes, 1965).

O presente trabalho discute também a transferência (e imposição) do modelo ocidental de educação para o âmbito das sociedades indígenas, bem como a importância que adquire esta educação para estas sociedades na realidade atual.

Ainda que a socialização das gerações mais novas passe pelos caminhos da tradição, dos ritos de iniciação e do aprendizado das técnicas tradicionais do grupo e que não exista, nas sociedades indígenas, no que se refere a afirmação da identidade e dos seus costumes, nada que se assemelha à escola, a educação escolarizada é capaz de fornecer-lhes as armas culturais dos brancos, que devem ser assimiladas pelos indígenas para permitir a própria sobrevivência do grupo.

A Educação nas Sociedades Indígenas A educação nas sociedades indígenas é concebida tradicionalmente

como o processo de socialização das gerações jovens de forma a torná-las membros autênticos dos seus grupos.

Embora ocorram aspectos que diferenciam cada sociedade em particular no que diz respeito à “educação” dos seus jovens ou dos seus “cidadãos”, a maioria destas sociedades adota comportamentos semelhantes a esse respeito.

De acordo com Alcida Ramos nestas sociedades, de modo geral o aprendizado social tem como fase privilegiada a infância, quando as crianças são totalmente integradas na vida comunitária. “Não há lugar, onde uma criança indígena não possa ser admitida, nem há recintos ou assuntos impróprias para menores” (1986, p. 58).

Os brinquedos, objetos de socialização das crianças são entre os grupos indígenas, miniaturas dos instrumentos dos adultos e raramente, bonecas ou jogos de armar. Alcida Ramos compara as crianças indígenas com “adultos em miniaturas” e não um segmento “incapaz e segredado” da sociedade, quando observa que as mesmas manuseiam com impressionante habilidade e competência, (desde quatro ou cinco anos) facas, terçados, fazem fogueiras, sem incorrerem em acidentes (1986, p. 59).

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Quanto ao aprendizado das regras sociais, a autora acima citada ressalta a grande paciência e tolerância, bem como a atitude de respeito dos mais velhos, e principalmente dos pais para com as crianças, que quase nunca são punidas e nunca são vítimas de castigos físicos.

“Desde muito cedo, sem instrução formal e sem violência, as crianças indígenas aprendem as regras do jogo social. O que pode e o que não pode ser feito e as formas de controle social aplicadas àqueles que infringem seriamente a estas regras do jogo” (Ramos, p. 59).

Entre a maioria dos grupos indígenas, o aprendizado, seja relacionado à transmissão das técnicas de elaboração da cultura material e das atividades práticas que preenchem o dia-a-dia, seja relacionada à transmissão da cultura e da tradição desses povos, tem como canal privilegiado a cultura oral. É a oralidade que vincula o passado ao presente mantendo viva a tradição de um povo (1974). A memória da cultura oral é dinâmica e esse dinamismo evita o rompimento com o passado e atualizando-o constantemente o resgatando para o presente. Neste processo de atualização do passado são selecionados os elementos relevantes para a tradição e descartados aqueles elementos que não tem significados para a realidade atual (Lima, 1990; Lima, 1987).

Enquanto em nossa sociedade o processo de formação do indivíduo ocorre, fundamentalmente em ambiente especializado (e de forma sistemática onde existem “profissionais da educação”), o processo de socialização entre os grupos indígenas, via de regra, é realizado pela passagem lenta e progressiva por uma série de estágios que envolvem um investimento social da comunidade como um todo. Esse processo exige necessariamente uma coerência profunda entre formação moral, intelectual e comprometimento social dos indivíduos dentro da comunidade.

Fenelon Costa (1978) observa que entre os índios Karajá o aprendizado não obedece a formas rígidas e institucionalizadas, embora seja orientado por uma certa padronização que é mais perceptível na fase “pós-pubertária”. É nessa fase que os indivíduos do sexo masculino são submetidos aos principais “ritos de passagem” (Costa, 1978, p. 80) ou de iniciação à vida adulta e que as moças recebem todas as informações necessárias a uma “conduta social

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aceitável”. É a partir dessa fase que elas passam a participar das danças de Aruanã (Costa, 1978; Filho, 1990).

Em oposição ao nosso modelo de educação, os conhecimentos na sociedade em estudo, tanto relacionados à tradição como às atividades práticas do dia-a-dia são transmitidos em todos os momentos da vida cotidiana. E observando pais, avós, parentes, enfim, e imitando-os, que crianças e jovens Karajá são formados para trabalhar e viver em sociedade.

Também entre os índios Apinayé a transmissão do conhecimento e da cultura como um todo, das gerações adultas para jovens e crianças utiliza-se de mecanismos parecidos aos acima mencionados, bem como possui significado semelhante.

Roberto Da Matta (s/d) observa que desde o nascimento até a vida adulta, os indivíduos Apinayé são socializados por meio de um complexo e lento processo que envolve várias fases e grupos sociais, embora sejam os pais os “responsáveis mais diretos pela criação dos filhos”, o processo de socialização envolve a comunidade como um todo e especialmente os parentes mais próximos. Existem porém grupos mais ou menos definidos encarregados pelo processo de socialização que desempenham papéis específicos no dia-a-dia bem como durante os rituais que marcam a passagem de um estágio social para outro ou a saída de determinados grupos e ingresso em outros, o que vai ser determinado por posições de status, estado civil, classes de idade, etc.

Neste sistema, no decorrer da sua existência o indivíduo Apinayé recebe um conjunto fixo de nomes que, (ao contrário da nossa sociedade, onde através do nome a criança é individualizada e recebe uma posição única no sistema), são como títulos que situam os indivíduos socialmente. Estes nomes possibilitam ao indivíduo a participação em certos grupos cerimoniais básicos para vida social e cosmológica da sociedade.

A partir da análise de documentos: crônicas, relatórios de viagens, descrições etnográficas, Florestan Fernandes analisa a forma como os índios Tupinambá, grupo que desapareceu após o contato com o colonizador europeu, utilizavam a educação e de acordo com ele:

A própria estrutura da sociedade Tupinambá convertia a educação em meio de mobilização, de canalização e de utilização de quaisquer aptidões individuais que fossem elaboráveis social e culturalmente (...) Mesmo numa

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sociedade tão pouco diferenciada e tão homogênea (...) os homens diferem muito entre si, sendo essencial para a sobrevivência deles e de sua herança sócio-cultural resguardar tais diferenças, exatamente para ajustá-los aos complexos mecanismos da organização da esfera social e da vida humana. Em suma, uma educação que integra também é uma educação que diferencia (1965, p. 175).

Dentro deste contexto, segundo Fernandes a capacidade pessoal

entre os Tupinambá está fortemente vinculada aos “padrões ideais de comportamentos e de organização da personalidade” onde os mesmos dependem de fatores externos, de ordem sócio-cultural. Apenas o princípio da divisão sexual do trabalho produzia algumas separações visíveis nos processos de transmissão de conhecimentos e habilidades bem como de aspirações sociais.

Os grupos de idade não chegaram a se desenvolver a ponto de dar origem a “estruturas rígidas e formais” bem como a institucionalização da cultura. Dentro dos princípios gerais de sexo e idade as técnicas sociais conhecidas eram compartilhadas e acessíveis a todos e, apesar de algumas restrições já mencionadas, não existia a formação de “grupos fechados” dotados de privilégios ou de direitos especiais. Mesmo sendo os velhos os “portadores por excelência” dos conhecimentos e das tradições tribais, o relativo monopólio por eles exercido não era rígido e fechado.

A própria continuidade da ordem tribal exigia a transmissão aberta da herança cultural, com a sucessão das gerações na apropriação daqueles conhecimentos, técnicas e tradições (Fernandes, 1965, p. 179)

Nota-se pois que, ali, a possibilidade de monopólio do conhecimento, ou de técnicas sociais específicas, é excluída. Mas são os velhos que devem “dar o exemplo” desempenhando papéis de “autênticos mestres”, na sua paciente tarefa de transmitir o “legado dos seus antepassados e o conteúdo prático das tradições” (Fernandes, 1965, p. 177-178).

Nota-se ainda que dois principais aspectos marcam a educação entre o povo Tupinambá. Em primeiro lugar está o sentido comunitário da educação no seio desta sociedade e em segundo lugar

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o caráter igualitário no que se refere à participação na cultura que se processava, “através de intercâmbio cotidiano, por contatos pessoais e diretos, sem recurso a técnicas de educação sistemática e a criação de situações sociais caracteristicamente pedagógicas” (Fernandes, 1965, p. 178).

Enfim, de acordo com a análise de Florestan Fernandes, a aprendizagem entre os índios Tupinambá, não sendo realizada de forma sistematizada nem de forma especializada, se confundia com o processo de formação para a vida. Assim, cabia aos “mestres da vida” transmitirem às gerações mais novas não apenas “o saber” mas também como:

Produzi-lo e usá-lo com propriedade ou eficácia e avaliá-lo apropriadamente à luz de sua significação, diante das tradições tribais (...) estamos, literalmente, diante de uma situação histórico-cultural na qual a educação forma o homem sob todos os aspectos e em todas as direções possíveis (Fernandes, 1965, p. 185).

Percebe-se assim, que concebida como formação para a vida a educação entre os Tupinambá atinge a todos indiscriminadamente. O seu caráter não especializado permite o acesso igual de todos os membros ao saber produzido socialmente pelo grupo e acumulado ao longo de gerações, não admitindo a possibilidade de monopólio do saber especializado ou de privilégios de alguns segmentos sociais quanto ao acesso, bem como o uso do mesmo. A Imposição de Modelos Ocidentais de Educação em Sociedades

Indígenas Após ter apresentado, embora rapidamente, alguns aspectos das

formas tradicionais de educação em algumas sociedades indígenas, cabe ressaltar que, tais formas, baseadas na oralidade e na tradição, têm dividido espaço ao longo de séculos com a educação institucionalizada característica das sociedades ocidentais. Ressalte-se a importância que adquire esta forma de transmissão do saber, bem como a apropriação do mesmo não só para as camadas marginalizadas da população brasileira mas também para a conquista da autodeterminação política, econômica e cultural das sociedades indígenas. Sociedades que, compartilhando com a sociedade brasileira o mesmo território, historicamente se encontram em uma situação de colonialismo interno (Oliveira, 1978).

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Diante das dificuldades em dominar as nações indígenas tradicionalmente instaladas nas áreas atingidas pela colonização, projetos de pacificação são colocados em prática que tornassem viável a permanência e exploração em territórios tribais pelas nações colonizadoras.

Os famosos aldeamentos (Chaim, 1983) construídos em várias regiões do país no século 18 reuniram grande número de índios, constituídos por indivíduos de etnias diversas. Esses aldeamentos tinham como objetivo promover a “aculturação” do índio e a sua conseqüente integração à sociedade nacional. Próximo a estes aldeamentos foram construídos presídios, igrejas e escolas (corpo ideológico da sociedade “envolvente” responsável pela integração).

Desde o período colonial, igrejas e escolas em particular, desempenharam um papel importante no sentido de promover a aculturação progressiva, necessária e tão almejada pelos grupos dominantes da sociedade envolvente (Leitão, 1991).

A concepção etnocêntrica da sociedade nacional, partindo de concepções alheias àquelas que orientam a vida nas sociedades indígenas e ignorando a lógica própria de organização social e costumes morais dessas sociedades, empenha-se em introduzir entre as mesmas instituições que se prestariam à “civilização dos selvagens”.

Mas como diz Maia (1975), via de regra toda postura etnocêntrica esconde atrás de si interesses de ordem econômica.

Para Brandão (1986), o esforço no sentido de tornar o diferente em semelhante ou em outras palavras, quando as relações colonialistas se empenham em alterar hábitos, costumes, crenças e valores dos povos dominados, querem na verdade, reduzir as diferenças que obstaculizam a dominação:

O artifício do domínio (...) é o trabalho de tornar o outro mais igual a mim para colocá-lo melhor ao meu serviço (...). É importante que o escravo fale a língua do senhor para compreendê-lo e saber obedecer. É preciso que tenha a mesma fé para que no mesmo templo faça e refaça as mesmas promessas de obediência e submissão aos poderes ocultos da ordem social consagrada (...). Aos índios se reduzia, se aldeava, se civilizava. Não para serem iguais aos brancos, sendo índios; mas para serem desiguais sem tantas diferenças e

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assim servirem melhor mortos ou subjugados aos interesses dos negócios dos brancos. (Brandão, 1986, p. 2).

Resta ressaltar porém que os projetos de “integração” e de “aculturação” colocados em prática pelos grupos dominantes da sociedade nacional, nem sempre foram bem sucedidos. Se por um lado instituições como a escola, por exemplo, pretendem funcionar como mecanismos de aculturação e assimilação dos índios pela sociedade nacional, por outro lado parece haver um esforço no sentido de incorporar estes elementos à tradição por parte das sociedades indígenas, que se mantêm, embora de forma reelaborada.

A suposta reestruturação do universo simbólico de acordo com a experiência vivida permite a tais sociedades, inclusive a apropriação do aparato técnico e intelectual da cultura ocidental como a linguagem escrita e a educação formal, não no sentido da “aculturação” e sim como mecanismos de resistência cultural, de luta pela autodeterminação política e de reafirmação da indianidade.

É neste sentido que atualmente (depois de longos anos de resistência) as próprias comunidades indígenas reivindicam, junto às autoridades competentes a educação escolarizada para suas crianças, sendo que atualmente a maioria das aldeias indígenas conta com esse serviço público. Mas a escola solicitada por estas comunidades é uma escola diferente (do modelo presente na sociedade ocidental) específica, pensada com a participação dos próprios índios e adequada a realidade cultural de cada povo envolvido (Bragio, 1989; Leitão, 1991). Praticada com base no bilingüismo, princípio garantido, inclusive pela Constituição Federal de 1988 (cap. 8) e especificado na legislação indigenista de 1993.

Tais sociedades conscientes da inevitabilidade do contato com a sociedade nacional e da necessidade da convivência com o ensino institucionalizado imposto pela mesma, procuram apropriar-se deste ensino como instrumento de orientação das suas relações com a sociedade dominante (Ramos, 1987).

Martins (1992), analisando a relação entre educação e cultura entre as sociedades camponesas menciona o desejo do camponês em que seu filho assimile a cultura erudita e faz referência também à questão indígena.

... índios e camponeses freqüentemente manifestam o desejo e a necessidade de conhecer a cultura do branco ou a cultura do outro, do

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inimigo. (...) querem se apropriar dessa cultura, pedem para ser alfabetizados, dizem claramente que querem saber como o outro pensa, que raciocínio utiliza. (...) podemos acreditar que essa curiosidade indica o desejo de ser aculturado, de renúncia às próprias concepções e valores. O desenrolar das lutas indígenas e camponesas mostra que a orientação que adotam tem o sentido oposto. (...) Querem conhecer as concepções de seus adversários e dominadores para se moverem com segurança no território do inimigo; pois é nesse território adversário que a luta e o conflito lhes são impostos – nos tribunais, nas repartições públicas, nas cidades dos brancos, nas delegacias de polícia, nos partidos políticos (Martins, 1992, p. 31).

Dentro desta perspectiva os insistentes pedidos de escolas e cursos por parte das comunidades camponesas e indígenas junto às autoridades locais expressam a consciência da necessidade de dominar a língua do adversário, pois é através da mesma que índios e camponeses são obrigados a falar, para negociar ou mesmo para renderem-se. E a descoberta de que esta linguagem erudita constitui em arma poderosa contra eles utilizada e que, inclusive o português cotidiano não atende a essa necessidade: “Reclamam mais do que o direito de ouvir (e falar). Reclamam o direito de saber o que significa o que o adversário fala e faz” (Martins, 1992, p. 31).

A escolarização das sociedades indígenas apresenta-se assim como uma “faca de dois gumes” ou com dois sentidos opostos: Por um lado, da forma como foi concebida pelo poder oficial, pretendia integrar culturalmente o índio para mais facilmente submetê-lo às mesmas regras e leis às quais estão sujeitos os “cidadãos brasileiros”. Por outro lado, as sociedades indígenas passam a percebê-lo e utilizá-lo como um mecanismo de resistência. Ou seja: Aprende-se a língua e a cultura do branco para continuar existindo enquanto índio.

Assim, deve ficar claro que a adoção do modelo ocidental de educação pelas sociedades indígenas, não pode ser interpretada como um desejo de aculturação, e sim como forma de se apropriar dos símbolos e armas do dominador, de conhecer a sua cultura e as suas leis para melhor saber como lidar com elas, uma vez que não se pode evitá-las.

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EDUCAÇÃO, ESTRUTURA E DESIGUALDADES SOCIAIS

Cleito Pereira dos Santos

A questão das desigualdades perante o sistema educacional tem-se constituído em um fenômeno central para a compreensão da estratificação social e ocupacional nas sociedades capitalistas contemporâneas. Isto se explica talvez pelo fato de que, durante um certo período, teorias e ideologias atribuírem à educação o papel de redentora das disparidades sócio-econômicas e culturais presentes nas sociedades de classes ocidentais (Petitat, 1994).

Tal perspectiva, no entanto, é contrariada pela permanência das desigualdades sociais mesmo com os ganhos educacionais verificados nas últimas décadas nas mais variadas sociedades do mundo ocidental. Isto significa que, muito embora a educação tenha possibilitado a maiores contingentes populacionais o acesso a níveis mais elevados de escolarização, alfabetização ou anos de estudos, a situação das populações branca e negra continua marcada pela desigualdade, tanto educacional quanto ocupacional e de renda.

Faremos uma incursão pelas teorias que procuram explicar este fenômeno, tendo em vista a construção de um modelo crítico-analítico capaz de interpretar e explicar satisfatoriamente as desigualdades educacionais. Inicialmente, demonstraremos as características do sistema de ensino observadas por Bourdieu e Passeron e, em seguida, passaremos ao modo como as desigualdades sociais operam no sentido da construção e manutenção de determinadas hierarquias sociais.

Educação, Estrutura e Reprodução Social Desvendar a relação entre o sistema de ensino, a estrutura social e

sua reprodução é uma questão que se torna premente. Assim podemos levantar a pergunta: de que forma a educação opera como mecanismo de legitimação de uma determinada cultura no interior da sociedade? Respondendo a esta questão apreenderemos a função do sistema educacional como, antes de mais nada, socializador e integrador dos indivíduos no contexto de uma cultura dotada de várias significações e imposta, por classes sociais ou grupos e camadas organizadas. Entraremos, então, na discussão do simbolismo presente no processo de construção da legitimação do consenso no interior da sociedade contemporânea.

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De acordo com Bourdieu, “(...), a cultura escolar propicia aos indivíduos um corpo comum de categorias de pensamento que tornam possível a comunicação” (Bourdieu, 1998, p. 205).

Em outros termos, a escola funciona como um mecanismo de adequação e solidificação de uma cultura determinada e que assume contornos de imposição. Dessa forma, o papel central do sistema de ensino é garantir uma formação durável aos indivíduos, aquilo que Bourdieu chama de habitus:

O princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, destas orientações comumente descritas como “escolhas” da “vocação”, e muitas vezes consideradas efeitos da “tomada de consciência”, não é outra coisa senão o habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas (Bourdieu, 1998, p. 201-202).

Esse termo, habitus, pode ser compreendido como um dos aspectos centrais de uma cultura sobre os quais os membros do grupo social possuem determinado controle o que lhes permite decifrar os códigos da cultura dominante. Assim:

Caso se admita que a cultura e, neste caso particular, a cultura erudita em sua qualidade de código comum é o que permite a todos os detentores deste código associar o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos e às mesmas obras e, de maneira recíproca, de exprimir a mesma intenção significante por intermédio das mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das mesmas obras, pode-se compreender por que a Escola, incumbida de transmitir esta cultura, constitui o fator fundamental do consenso cultural nos termos de uma participação de um consenso comum entendido como condição da comunicação. O que os indivíduos devem à

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escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas comuns (Bourdieu, 1998, p. 206-207).

Portanto, dentro desta perspectiva teórica, fica evidenciada a preocupação em apontar a função básica da escola enquanto veículo de inculcação de um arbitrário cultural através da legitimação, da dominação. No entanto, como bem ressalta Bourdieu, a cultura não pode ser tomada apenas como a expressão exata das questões comuns colocadas pela sociedade, mas deve ser vista como uma articulação de esquemas particulares a partir de um esquema comum e evidentemente aplicado a situações particulares. Por isso a cultura possui uma estrutura dinâmica que, em cada período, apresenta-se válida às questões colocadas pela sociedade. Dessa forma:

A cultura não é apenas um código comum nem mesmo um repertório comum de respostas a problemas recorrentes. Ela constitui um conjunto comum de esquemas fundamentais, previamente assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo uma “arte da invenção” análoga à da escrita musical, uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares (Bourdieu, 1998, p. 208-209).

O meio primordial de transmissão de uma cultura válida – arbitrário cultural, imposição de códigos e símbolos de uma cultura – é apresentado por Bourdieu como estando centrado no sistema de ensino, pois as relações que possibilitam a legitimação de uma cultura, de um arbitrário cultural, estão presentes na escola. Compreende-se, então, que:

É pela maneira particular segundo a qual ele realiza sua função técnica de comunicação que um sistema escolar determinado realiza além disso sua função social de conservação e sua função ideológica de legitimação (Bourdieu & Passeron, 1982, p. 114).

A função técnica de comunicação, vista como elemento associado à conservação e legitimação do habitus dominante, notadamente a

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forma particular de se realizar tal comunicação, traz implícito o modo de garantir a imposição da cultura dominante. A escola, então, irrompe como lugar específico onde são gerados “esquemas particulares” (Bourdieu, 1998, p. 211) aplicáveis a “campos diferentes do pensamento e da ação” (Bourdieu, 1998, p. 211).

Enquanto “força formadora de hábitos”, a escola propicia aos que se encontram direta ou indiretamente submetidos à sua influência, não tanto esquemas de pensamento particulares e particularizados, mas uma disposição geral geradora de esquemas particulares capazes de serem aplicados em campos diferentes do pensamento e da ação, aos quais pode-se dar o nome de habitus cultivado (Bourdieu, 1998, p. 211).

Nesse sentido, a escola organiza um sistema de pensamento capaz de dar eficácia ao funcionamento da cultura dominante, seja ela de uma classe social, de um grupo ou camada determinada. Para tanto, estabelece-se uma comunicação adequada para a transmissão daquilo que é digno de ser conhecido; os símbolos, os códigos e os valores que devem ser transmitidos ou inculcados e que têm, na escola, o veículo fundamental na constituição de um habitus capaz de orientar as ações dos indivíduos no interior da sociedade.

Educação e Desigualdade Social Algumas teorias dão ênfase à compreensão da escola como meio

fundamental para a reprodução da ordem social. Estas interpretações buscam entender o fenômeno educacional tendo em vista o fato de, no interior da sociedade, existir uma estratificação social, um sistema de hierarquias que deve ser reproduzido a todo instante para manter o funcionamento da estrutura social.

O sistema de ensino aparece como central na determinação e distribuição das oportunidades ocupacionais, de renda, de distribuição de poder, de prestígio e de status. A educação opera como mecanismo de reprodução das condições de dominação e subordinação de determinadas camadas, grupos ou classes sociais. Nessa perspectiva, o foco de análise está centrado na questão da dominação e de sua reprodução pelo sistema de ensino e refere-se, portanto, à maneira como a sociedade industrial, capitalista, produz a desigualdade social, racial, sexual, expressa em termos de subordinação e inserção social desigual.

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Como enfatizam Bourdieu e Passeron (1982), existem mecanismos de seleção no sistema de ensino que determinam a posição futura do indivíduo no interior da sociedade. Para identificá-los tomamos como ponto de partida as diferentes formações a que estão sujeitos os estudantes. Estas formações, o capital cultural, determinarão posições ou ocupações na estrutura social.

As relações entre grupos e classes sociais são reproduzidas pelo sistema de ensino institucionalizado uma vez que:

Todo sistema de ensino institucionalizado deve as características específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social) (Bourdieu & Passeron, 1982, p. 64).

Nesse sentido, o trabalho escolar só pode ser compreendido como forma de institucionalizar uma determinada maneira de ver o mundo e, portanto, de organizar a atividade intelectual de acordo com “as condições institucionais de seu exercício” (Bourdieu & Passeron, 1982, p. 68).

Sendo assim:

Toda cultura escolar é necessariamente homogeneizada e ritualizada, isto é, ‘rotinizada’ pela e para a rotina do TE [trabalho escolar – CPS], isto é, por e para exercícios de repetição e de restituição que devem ser bastante estereotipados para que repetidores tão pouco insubstituíveis quanto possível possam fazê-los repetir indefinidamente (...) (Bourdieu & Passeron, 1982, p.68).

A reprodução da vida social realizada pela escola necessita do sistema de hierarquias como forma de impor a dominação. Os valores,

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os padrões comportamentais, os modos de vestir, sentir, pensar, caracterizam a imposição de determinados grupos ou classes sociais. A escola cria aqueles indivíduos que irão ocupar as diversas posições na hierarquia social.

A violência simbólica aparece com a imposição de uma significação, de um conjunto de valores simbólicos que representam as expectativas de uma classe social. Nesse contexto, a educação emerge como um fenômeno de inculcação de crenças, idiomas, línguas e, conseqüentemente, a eliminação de outras crenças, de outros idiomas. Segundo Petitat:

A universalidade da violência simbólica une-se a outro dado universal: as relações de dominação, observáveis em qualquer sociedade, entre os grupos ou classes que a compõem. O grupo dominante ou a classe dominante tem um papel eminente na seleção e na imposição da violência simbólica, e serve-se disto para manter-se em posição dominante (Petitat, 1994, p. 32).

As relações de força são dissimuladas através da legitimação da dominação. Nesta acepção, o poder é basicamente a capacidade que um grupo ou classe social tem para selecionar e impor significações e dissimular o poder que seleciona e impõe.

A seleção de uma cultura arbitrária que, por sua vez, é imposta como legítima, configura, neste caso, uma violência simbólica capaz de dissimular e legitimar uma cultura específica ,dando-lhe o caráter de universal. A sociedade, dentro desta perspectiva, é o terreno da imposição cultural que tem no sistema de ensino o veículo, por excelência, da transmissão da ideologia e da reprodução de um arbitrário cultural (Bourdieu & Passeron, 1982).

Para Sarup o sistema de ensino, como meio de reprodução social, produz:

Muitas das qualificações técnicas e cognitivas para a realização adequadas das tarefas. A escola produz e rotula características pessoais relevantes para o preenchimento de posições na hierarquia. Recompensa certas capacidades, enquanto impõe penalidades a outras. As escolas produzem traços de personalidades e formas de consciência que

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facilitam a integração, livre de problemas, nas formas hierárquicas existentes. Acima de tudo, os trabalhadores devem ser dignos de confiança e diligentes. Há também modos de auto-apresentação como a maneira de falar, de vestir, que adquirem um caráter de classe social. O sistema educacional, através do padrão de distinções e status que estimula, reforça a consciência estratificada em que se baseia a fragmentação das classes subordinadas. As escolas fornecem prontamente mão-de-obra às empresas dominantes e fortalecem a segmentação racial, étnica, sexual e de classe da força de trabalho (Sarup, 1986, p. 151).

Esta perspectiva marxista da educação toma a escola como local privilegiado de reprodução das relações e da hierarquia sociais e, por extensão, como espaço privilegiado da inculcação de valores de determinados grupos ou camadas dominantes. Dentro desta perspectiva, a educação aparece como um conjunto de práticas ideológicas que reproduzem a engrenagem da dominação. Assim, aquilo que é ensinado na escola aparece como a legitimação da dominação de classe.

Dessa forma, a escola constrói as características adequadas para a integração do indivíduo à sociedade. A maneira de falar, de vestir e de ver o mundo serão impostas pela escola como fundamental à reprodução da vida social. Nesse sentido, características como cor da pele, sexo e idade, serão amplamente difundidas pelo sistema educacional, pois situam o indivíduo no sistema hierárquico da sociedade, uma vez que:

... é preciso observar que a estrutura da distribuição das classes ou frações de classe segundo a parcela reservada aos consumos culturais corresponde, com desnível mínimo(....), à estrutura de distribuição segundo a hierarquia do capital econômico e do poder (Bourdieu, 1998, p. 297).

Ainda segundo Bourdieu:

(...), a estatística de freqüência ao teatro, ao concerto e sobretudo ao museu (...) basta para

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lembrar que o legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas gerações anteriores, pertence realmente(embora seja formalmente oferecido a todos) aos que detêm os meios para dele se apropriarem, quer dizer, que os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais(ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los. Em outros termos, a apropriação destes bens supõe a posse prévia dos instrumentos de apropriação. Em suma, o livre jogo das leis da transmissão cultural faz com que o capital cultural retorne às mãos do capital cultural e , com isso, encontra-se reproduzida a estrutura de distribuição do capital cultural entre as classes sociais, isto é, a estrutura de distribuição dos instrumentos de apropriação dos bens simbólicos que uma formação social seleciona como dignos de serem desejados e possuídos (Bourdieu, 1998, p. 297).

Em outros termos, a reprodução da cultura imposta necessita da adequada apropriação dos instrumentos e dos códigos que permitem decifrar os significados dos bens culturais. Tal processo depende da aquisição da cultura imposta como legítima, pois enquanto estrutura de distribuição do capital cultural, a transmissão de valores e significados faz com que os bens culturais circulem no interior das classes sociais ou dos grupos que detêm a chave para penetrar nos códigos e símbolos da cultura legitimada.

As Desigualdades de Oportunidades A sociologia da educação tem se lançado já há algum tempo na

procura de explicações sobre a natureza das desigualdades educacionais no sentido de compreender a estratificação social das sociedades modernas e contemporâneas.

Dentro desta perspectiva podemos citar os trabalhos de Boudon (1978), Bourdieu e Passeron (1982), Petitat (1994) e Sarup (1982) que caracterizam esta preocupação com o sistema de ensino revelador de tais desigualdades.

A sociedade moderna, inaugurada com o advento do capitalismo industrial, alterou radicalmente a composição social até então prevalecente. Novas classes sociais, novas composições culturais e novos sistemas políticos redefiniram a ordem social.

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A partir da segunda metade do século XIX, nos países capitalistas liberais, a educação passou a ser vista mais efetivamente como meio para a ascensão social.

(...), a escola adquire significados diferentes para diferentes grupos e segmentos de classes, em função do lugar que ocupam nas relações sociais de produção. Neles, a escola é valorizada como instrumento real de ascensão e de prestígio social pelas classes médias e pelas elites emergentes (Patto, 1993, p. 25-26).

A sociedade industrial criou outras formas de organizar as relações entre os homens e instituiu também um sistema de ensino capaz de transmitir as mais variadas qualificações para os indivíduos. A escola tornou-se o meio que, por excelência, que iria possibilitar a mobilidade social dos indivíduos.

Para Petitat: A industrialização e o sistema de salários

acarretam a dissolução das relações feudais e escravagistas e dos privilégios do ‘sangue’. Dentro deste imenso movimento, assistimos à decomposição de antigas desigualdades e à recomposição de novas, sobre outras bases. A aspiração à igualdade de oportunidades, que pode ser encontrada em todos os movimentos destinados a abolir os privilégios de nascimento, encontra sua realização parcial, atestada pelos estudos sobre a mobilidade social. As sociedades modernas industriais modernas são sociedades móveis, muito mais do que todas as outras que as precederam. Elas oferecem oportunidades reais ao indivíduo de subir ou de cair na escala social, tomando todo tipo de via, dentre as quais a escola (Petitat, 1994, p. 214-215).

A conseqüência lógica deste processo é que a capacidade, o talento e a competência apareceram como elementos definidores do sucesso do indivíduo. As oportunidades sócio-econômicas passaram a ser vistas como possíveis a todos.

Assim, talento e mérito pessoal tornaram-se: (...) ingredientes fundamentais do sucesso.

Isto supõe necessariamente uma competição,

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uma luta pela vida, e o ideal é que nenhum concorrente parta à frente nesta corrida geral, seja em razão de sua classe de origem, de sua raça, de seu sexo, etc. (Petitat, 1994, p. 215).

No entanto, como observam alguns autores, a igualdade de oportunidades numa sociedade desigual surge como uma ideologia e não pode, evidentemente, ser realizada enquanto as condições sociais que geram as desigualdades não desaparecerem. O que transparece nesta concepção da igualdade de oportunidades que, supostamente, estaria presente na sociedade moderna-industrial é o não reconhecimento das origens das desigualdades sócio-econômicas. Em outras palavras, a sociedade industrial inaugura novas formas de desigualdades sociais fundadas em uma estrutura de classes onde a mobilidade social está presente.

No século XX, a crença no papel da escola como elemento que possibilitaria a realização dos homens sofreu um forte abalo.

A crença no poder da escola foi fortemente abalada pela primeira guerra mundial. O século XX tem início desmentindo a idéia de que a escola obrigatória e gratuita viera para transformar a humanidade, para redimi-la da ignorância e da opressão. A posse do alfabeto, da constituição e da imprensa, da ciência e da moralidade não havia livrado os homens da tirania, da desigualdade social e da exploração. Este conflito mundial desferiu um duro golpe nos liberais que acreditavam nos superpoderes da escola e os levou a investirem contra a pedagogia tradicional, na elaboração de uma pedagogia que promovesse espiritualmente o ser humano (Patto, 1993, p. 27).

A pedagogia liberal propôs, então, alterações significativas no sistema educacional que estabelecessem uma “sociedade de classes igualitária” (Patto, 1993, p. 28) e democrática. Em outras palavras, “uma sociedade no qual os lugares sociais seriam ocupados com base no mérito pessoal”(Patto, 1993, p. 28).

Em outra perspectiva, como observa Sarup, a educação aparece como a forma essencial para integrar o indivíduo à sociedade através da distribuição das ocupações.

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O ensino escolar é o mecanismo essencial da função integrativa, que aloca os indivíduos às posições econômicas.(...). O principal papel da educação é a produção de uma força de trabalho adequada num sistema de produção hierarquicamente controlado e estratificado em classes (Sarup, 1986, p. 150).

Portanto a função da escola é produzir e preservar uma hierarquia das ocupações no interior da estrutura social. As desigualdades sociais, nesta perspectiva, estão na origem da sociedade moderna e capitalista, uma vez que a estratificação social se dá em função da existência de uma dominação de classes.

Sendo assim, a escola funciona como um meio de reprodução das desigualdades. Isto ocorre à medida que os bens culturais são distribuídos desigualmente pelo sistema de ensino, fazendo com que os indivíduos tenham acesso desigual a eles. A estratificação, então, ocorre nos mais variados níveis da vida social, gerando uma estratificação racial, sexual e etária permanentemente produzida e reproduzida pelo sistema de ensino através da escola.

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Bibliografia

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BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. 5a edição, São Paulo, Perspectiva, 1998.

PATTO, Maria Helena S. A Produção do Fracasso Escolar: Histórias de Submissão e Rebeldia. São Paulo, T. A . Queiroz, 1993.

PETITAT, André. Produção da Escola/Produção da Sociedade: Análise Sócio-Histórica de Alguns Momentos Decisivos da Evolução Escolar no Ocidente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994

SARUP, Madam. Marxismo e Educação. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.

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VIOLÊNCIA E ESCOLA

Nildo Viana

A corrente impetuosa é chamada de violenta

Mas o leito do rio que a contem Ninguém chama de violento.

A tempestade que faz dobrar as betulas É tida como violenta

E a tempestade que faz dobrar Os dorsos dos operários na rua?

Bertold Brecht O presente ensaio aborda um tema bastante atual e que vem sendo

amplamente debatido, a relação entre violência e escola. No entanto, consideramos que tais debates confundem duas questões distintas: a violência na escola e a violência escolar. Por isso iremos, em primeiro lugar, tratar da violência em geral e expor a necessidade de compreensão da especificidade de cada forma de manifestação da violência. Após isto, iremos tratar da violência escolar, sua especificidade, suas determinações, suas formas de manifestação. Em seguida, faremos algumas breves considerações sobre a violência na escola. Por último, realizaremos uma abordagem crítica de diversas análises realizadas a respeito da violência na/da escola e colocaremos a necessidade e elementos componente de um projeto alternativo de transformação das relações sociais geradoras da violência.

A Violência e suas Formas A questão da violência vem sendo tratada sob as mais diferentes

abordagens. Pesquisadores das mais variadas especialidades (sociólogos, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, antropólogos, filósofos, biólogos, cientistas políticos etc.) vêem analisando o fenômeno da violência. Isto traz, juntamente com a complexidade própria do fenômeno, um conjunto de problemas, a saber: a) o que é a violência?; b) A questão da diversidade das formas de violência; c) o problema da gênese da violência.

A violência tem sido definida/concebida sob as mais variadas formas. Não iremos aqui apresentar diversas definições mas tão-somente colocar a que consideramos a mais adequada. Consideramos a violência como uma relação social. Trata-se de uma relação na qual algo é atingido por outra coisa. Assim, a modificação interna de um ser não é expressão de violência, mas tão-somente quando existe uma

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ação externa. Toda relação pressupõe os seres que se relacionam e, no caso da violência, há uma relação entre o agente e o sujeito1 da violência. A violência é uma relação social, e, por conseguinte, não tem valor explicativo para os fenômenos da natureza (neste caso cai bem o conceito de força ou qualquer outro2). Assim, a violência é uma relação social caracterizada por uma imposição de algo realizada por um indivíduo/grupo social a outro indivíduo/grupo social contra sua vontade ou natureza (Viana, 1999, p. 224).

Este conceito possui, evidentemente, um alto grau de generalidade. No entanto, ele exclui fenômenos naturais que alguns consideram como sendo atos violentos. No sentido acima apresentado, a violência não pode ser confundida com força, com rispidez, com choque, com explosão, com catástrofe. Sendo um fenômeno social, não ocorre na natureza. A violência é, no entanto, uma forma específica de relação social, que é aquela na qual se defrontam indivíduos e/ou grupos sociais. Nesta relação, um indivíduo ou grupo impõe qualquer coisa a outro indivíduo/grupo contra a vontade e a natureza deste último. O caráter impositivo da violência expressa a subjugação/sujeição de um indivíduo/grupo por outro indivíduo/grupo. Está implícito nesta

1 A palavra sujeito possui dois significados, que carregam sentidos

antagônicos. Em um caso, o sujeito é um agente, um ser ativo ou um ser, como na doutrina jurídica, dotado de direitos; em outro caso, ele é passivo, está submetido a sujeição, sendo equivalente ao escravo. Utilizamos a expressão sujeito nos dois sentidos simultaneamente. O sujeito da violência é aquele que é vítima da violência. Sendo assim, ele é, ao mesmo tempo, aquele que foi sujeitado a violência, sendo passivo, mas tem a possibilidade e a necessidade de reagir, ou seja, de ser ativo, de tornar-se agente ou “reagente”. Isto pressupõe também que a violência é uma relação desigual, mas conflituosa e que pode ser invertida, seja momentaneamente ou definitivamente. A violência daqueles que detém o poder é uma violência geralmente permanente e a violência daqueles que estão submetidos ao poder é esporádica, temporária. Somente no caso do agente se tornar sujeito e vice-versa temos uma inversão da relação, que significa a substituição da desigualdade e não sua abolição, pois neste caso simplesmente se realiza uma troca de posição. Enquanto não ocorre tal inversão, a violência do sujeito é esporádica e a do agente é permanente. Uma terceira possibilidade é a abolição desta relação, na qual ambos deixam de existir, o que significa a instauração de uma nova relação social, fundamentada na igualdade.

2 Sendo assim, não se pode falar em “a violência da tempestade” ou do vulcão, mas tão-somente de sua força, explosão etc.

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definição de violência que nem sempre os agentes da violência realizam a subjugação/sujeição conscientemente, percebendo-a como ato violento. Nem sempre também existe intencionalidade. Tal consciência e intencionalidade existem nos casos mais diretos mas nem sempre em relações sociais complexas. Nestas últimas, a subjugação/sujeição é realizada no interior de uma camada obscurante de ideologias, valores etc. que faz com que tanto os agentes quanto os sujeitos da violência não a percebam, nem que a desejem ou a repudiem.

Intimamente ligado ao problema do que é a violência está a questão da diversidade de formas da violência:

Este conceito amplo de violência nos permite pensar as suas diversas formas de manifestação: violência física, simbólica, sexual, etc. Porém, a classificação das formas de violência é bastante problemática, pois ela pode variar de acordo com o critério utilizado e existem diversos critérios. A violência pode ser classificada de acordo com as características comuns de suas vítimas (violência contra a criança, contra a mulher, etc.), pelas características comuns dos agentes da violência (violência policial, realizada pelos policiais; violência criminal, realizada pelos criminosos; violência estatal ou institucional, realizada pelo Estado, etc.), pelo local onde ela ocorre (violência urbana, violência no campo, violência doméstica, etc.), pela forma como ela se realiza (simbólica, sexual, física, etc.), pelo seus objetivos (violência revolucionária, cujo objetivo é a revolução; violência repressiva, cujo objetivo é a repressão, etc.), pelos grupos sociais envolvidos (violência racial, étnica, de classe, etc.), pelas suas “motivações inconscientes” (violência reativa, violência vingativa, violência compensatória, violência recreativa) (Viana, 1999, p. 225).

Assim, torna-se necessário compreender as formas de manifestação da violência, bem como a especificidade de cada uma delas. A especificidade das formas de violência é derivada da especificidade das relações sociais que as engendram e reside na forma assumida por ela devido a este engendramento. A violência urbana, por exemplo,

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não é toda e qualquer violência realizada na cidade mas sim aquela gerada pela organização do espaço urbano capitalista – e tal organização é um conjunto de relações sociais –, ou seja, determinadas relações sociais (no caso, o espaço urbano capitalista) geram outras relações sociais específicas (no caso, a violência urbana) (Viana, 2002). Os conflitos urbanos, tal como no exemplo da luta pela moradia, revela uma relação duradoura de imposição, uma violência permanente, exercida por aqueles que detém o poder, e uma relação esporádica, uma violência contestadora, exercida pelos explorados e oprimidos.

Desta forma, é possível compreender a violência urbana, sexual, policial etc. A violência contra as crianças, por exemplo, é uma relação social derivada de outras relações sociais e sua especificidade se encontra nas relações sociais que a engendra e na sua forma assumida graças a elas.

Uma outra questão importante é a da gênese da violência. A questão das determinações (“causas”) da violência é de importância crucial e é objeto de inúmeras análises. Para alguns, os intintualistas (ou instintivistas) como Freud, Klein, entre outros, a fonte da violência se encontra nos instintos; para outros, como os filósofos Hobbes e Weil, se encontra na natureza humana; para outros sua fonte é a pobreza, a dominação etc. (Viana, 1999). Em outra oportunidade criticamos o uso da idéia de causalidade para compreender o fenômeno da violência (Viana, 1999) e, em outro texto, questionamos a idéia de causalidade numa perspectiva metodológica (Viana, 2001). A contribuição de Marx foi fundamental para se entender os limites da idéia de causalidade e para superá-la. Marx colocou em evidência a necessidade de entender um fenômeno concreto descobrindo suas múltiplas determinações e, principalmente, sua determinação fundamental (Viana, 2001).

Assim, a gênese da violência só pode ser entendida através de suas determinações e isto requer uma análise de sua situação concreta. Por conseguinte, cada forma de violência possui seu conjunto de determinações específicas.

A partir do exposto, podemos agora abordar a forma específica de violência que é o tema do presente trabalho: a violência escolar.

A Violência Escolar

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Muitas vezes se confunde violência na escola com violência escolar, assim como se confunde violência na cidade com violência urbana. Isto obscurece a especificidade da violência escolar e tem um claro papel ideológico3.

A violência escolar é uma forma específica de violência. Ela é gerada pela instituição escolar, ou seja, é a escola4 que gera esta forma específica de violência. A violência escolar é realizada tanto por aqueles que detém o poder quanto pelos que estão submetidos a ele. No primeiro caso, temos a violência institucional, e, no segundo, a violência contestadora, realizada pelas vítimas da violência original, fundadora, que é justamente a primeira.

Para entender a violência escolar é preciso, antes de tudo, entender o que é a escola. A escola é uma instituição que realiza a socialização e/ou ressocialização dos indivíduos, ou seja, busca moldá-los para viverem e reproduzirem determinadas relações sociais. Tais relações sociais são as da sociedade capitalista, o que significa que é uma socialização repressiva e coercitiva, ou seja, violenta5.

A escola realiza a socialização repressiva/coercitiva dos indivíduos, reprimindo e produzindo determinados comportamentos e

3 A confusão entre “violência na cidade” e “violência urbana” tem o papel

ideológico de considerar todos os atos de violência ocorridos na cidade como derivados do aglomerado urbano – concebido de forma fetichista – sendo um reducionismo ligado aos interesses dos especialistas do “urbano” e, simultaneamente, da classe dominante, que oblitera a determinação fundamental do fenômeno, a luta de classes. Assim, se dilui a violência na cidade numa metafísica “violência urbana”. A estratégia ideológica no caso da violência na escola é justamente a contrária: dilui a violência escolar na violência na escola. Trataremos das razões disto mais à frente. A palavra “confusão”, aqui, significa uma fusão entre duas coisas distintas (realizando, nos casos colocados, a abolição de um, só lhe restando a expressão formal), o que é um procedimento ideológico e gerado por valores e interesses determinados.

4 Por escola entendemos todas as instituições formais voltadas para o processo de socialização e ressocialização dos indivíduos na sociedade capitalista, o que inclui escolas públicas e privadas, as escolas do ensino básico até as universidades etc.

5 Retomamos aqui a distinção realizada por Michel Lobrot entre repressão – ação que impede a manifestação de algo – e coerção – ação que suscita a manifestação de algo, ou seja, a repressão é proibitiva e a coerção é afirmativa (Lobrot, 1977).

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idéias6. É por isso que a violência institucional escolar assume duas formas básicas: a violência disciplinar e a violência cultural (violência “simbólica”, segundo Bourdieu e Passeron), embora elas estejam intimamente entrelaçadas.

A violência disciplinar busca garantir a ordem e a disciplina institucional, o que significa, simultaneamente, produzir um indivíduo disciplinado e, portanto, preparado para atuar em qualquer outra instituição disciplinar (empresa, estado etc.). Tal como colocou Foucault, a disciplina controla as atividades, o tempo, minuciosamente, com riqueza de detalhes:

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva os seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (Foucault, 1983, p. 153).

A violência disciplinar utiliza-se de diversos recursos, como a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. A vigilância hierárquica se expressa através de um “olhar disciplinador” que busca vigiar tudo a partir de um ponto central. A disciplina, graças a tal vigilância:

6 “A prática educacional impõe aos estudantes sistemas de pensamento

diferenciais, predisposição de ações, segundo certo código de normas e valores, que os caracterizam como pertencentes a um grupo ou classe” (Motta, 1979, p. 71).

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Torna-se um sistema “integrado”, ligado do exterior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede “sustenta” o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio. A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados (Foucault, 1983, p. 158-159).

Aqui discordamos de Foucault no que se refere à sua indistinção entre quem executa e tem interesse na vigilância e na violência disciplinar e quem é sua vítima. Este é um problema crucial em Foucault: a sua concepção metafísica de poder, no qual ele é apresentado como uma relação mas não se coloca em evidência quem são os seres que a realizam7.

A sanção normalizadora é o regime penal, punitivo, da violência disciplinar:

7 Sobre a concepção metafísica de poder em Foucault, veja: Viana, 2000;

sobre sua visão da educação, Ferreira, 2001.

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Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora (Foucault, 1983, p. 160).

Tudo que se afasta das regras estabelecidas, todo desvio da norma, é penalizado. A penalidade disciplinar é, ao mesmo tempo, artificial, instituída por regulamentos e planejamentos, e “natural”, definida por processos naturais e observáveis:

As crianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa “lição” de que ainda não são capazes, pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada; entretanto a duração de cada estágio é fixada de maneira regulamentar e quem, no fim de três meses, não houver passado para a ordem superior deve ser colocado, bem em evidência, no banco dos “ignorantes”. A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência jurídico-natural. (Foucault, 1983. p. 160).

Isto não ocorre apenas nas escolas cristãs a que se refere Foucault. Se lembrarmos a ideologia piagetiana dos “estágios do desenvolvimento infantil” (e de diversas outras concepções do desenvolvimento infantil) e o próprio processo de ascensão e seleção escolar, veremos que isto é válido de forma muito mais ampla.

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A penalidade disciplinar também tem o papel de corretivo, buscando diminuir os desvios, provocando o arrependimento. A violência disciplinar não usa apenas a sanção, mas também a gratificação, sendo que a primeira tem caráter repressivo e a segundo um caráter coercitivo. Isto serve para distinguir entre os “bons” e os “maus”, criando um pólo positivo e um pólo negativo. Também se cria uma divisão classificatória que, simultaneamente, registra os desvios, as competências, as hierarquias e aptidões, por um lado, e castiga e recompensa, por outro.

Duplo efeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante: distribuir os alunos segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola; exercer sobre eles uma pressão constante, para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos juntos “à subordinação”, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina. Para que, todos, se pareçam. (Foucault, 1983, p. 163).

O exame, terceiro elemento da violência disciplinar, segundo Foucault, “combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza” (Foucault, 1983, p. 164).

É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível (Foucault, 1983, p. 164-165).

Quem exerce a violência disciplinar na escola? A burocracia, isto é, os dirigentes da escola. Os membros inferiores na hierarquia escolar também a praticam, em menor grau, e, ao mesmo tempo, a sofrem.

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Até mesmo algumas de suas vítimas permanentes que, ao introjetar a disciplina, acaba cobrando-a de seus iguais, o que significa praticá-la8.

A violência escolar praticada pela burocracia é uma “violência totalitária”, tal como coloca Michel Maffesoli:

A burocracia, seja qual for sua cor e credo, age do mesmo modo: o povo deve ser educado, suas paixões e seus sentimentos continuam imprevisíveis e infantis, e convém levar-lhe de fora uma clara consciência das suas necessidades e aspirações. Em resumo, a vida é uma coisa por demais séria para que se deixe ao bel-prazer dos que a vivem, e é o objeto do controle social que pretende, nos mínimos pormenores, ocupar-se de tudo o que se refere, fora do tempo de trabalho, à formação, ao lazer, à cultura, ao esporte, ao consumo etc” (Maffesoli, 1981, p. 228).

A violência escolar também se manifesta como violência cultural. Sem dúvida, Bourdieu e Passeron desenvolveram a análise clássica daquilo que eles denominaram “violência simbólica” (Bourdieu & Passeron, 1982; Cunha, 1979) e que preferimos chamar de violência cultural. No entanto, tal como no caso de Foucault, não é possível concordar in totum com sua concepção, além da questão terminológica. Bourdieu e Passeron afirmam que:

Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é,

8 “Procura-se formar indivíduos para uma sociedade de organizações. A

lealdade e a responsabilidade, a alta tolerância à frustração, a capacidade de adiar recompensas e o desejo de ascender socialmente são valores que se traduzem não em mero discurso, mas nos jogos e exercícios da própria escola” (Motta, 1979, p. 73); “As pessoas que se submetem ao padrão dos outros para medir seu crescimento pessoal próprio, cedo aplicarão a mesma pauta a si próprios. Não mais precisarão ser colocadas em seu lugar, elas mesmas se colocarão nos cantinhos indicados; tanto se espremerão até caberem no nicho que lhes foi ensinado a procurar e, neste mesmo processo, colocarão seus companheiros também em seus lugares, até que tudo e todos estejam acomodados” (Illich, 1979, p. 77).

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propriamente simbólica, a essas relações de força (Bourdieu & Passeron, 1982, p. 19).

Isto significa que, para Bourdieu e Passeron, a violência simbólica significa imposição de significações e sua simultânea legitimação. A violência simbólica é a imposição de um “arbitrário cultural”, que é a cultura de um grupo ou classe social.

São os grupos ou as classes dominantes que escolhem, arbitrariamente, as significações dignas de serem reproduzidas pela ação pedagógica. Essas significações são delimitadas pelos grupos ou classes dominantes, pela seleção daquilo que deve constar do conteúdo da ação pedagógica, e pela exclusão do restante, mas sempre dentro da sua própria cultura (arbitrária) (Cunha, 1979, p. 86-87).

A partir destas colocações podemos reconsiderar a tese da violência simbólica, alterando-a para uma nova denominação: violência cultural. A violência cultural é uma relação social na qual um grupo/indivíduo realiza a imposição de uma cultura (idéias, valores etc.) a outro grupo/indivíduo contra sua vontade e/ou natureza.

No caso da violência cultural realizada na escola (que é uma instituição capitalista), trata-se da imposição, pela burocracia (classe auxiliar da burguesia), da cultura dominante (axiologia, ideologia, representações cotidianas ilusórias) ao grupo social composto pelos estudantes. Neste sentido, é mais adequado denominá-la como violência cultural, pois discordamos da generalidade que o termo simbólico assume na obra de Bourdieu e Passeron. Tal imposição está presente nas grades curriculares, nos programas, nos livros e textos adotados, no discurso da burocracia e dos membros do corpo docente etc. O sucesso da violência cultural está garantido, a priori, pela violência disciplinar e esta é legitimada por aquela.

Quais os objetivos dessas duas formas de violência institucional? A violência disciplinar visa manter a ordem na instituição, sua hierarquia, suas regras, pois este é o interesse da burocracia. A violência cultural visa garantir a reprodução do saber escolar. Seu objetivo é, portanto, realizar a reprodução da própria instituição, tal como ela é. No entanto, além destes objetivos imediatos, existe um objetivo profundo: reproduzir a sociabilidade e as relações de produção capitalistas. A violência disciplinar prepara o indivíduo para atuar disciplinadamente na empresa ou qualquer outra instituição

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capitalista e a violência cultural produz um indivíduo que possui uma cultura adequada para a reprodução da sociedade capitalista. Ambas preparam o indivíduo para cumprir um determinado papel na divisão social do trabalho9. Nas universidades, prepara para a inserção na divisão social do trabalho significa formação de força de trabalho especializada, ou seja, para a inserção em determinada categoria profissional, o que pressupõe imposição cultural específica (o economista, o sociólogo, o psicólogo, o pedagogo, o biólogo, o filósofo, o matemático, o físico, o engenheiro, o médico, o odontólogo etc. devem conhecer e valorar a economia, a sociologia, a psicologia, a pedagogia, a biologia, a filosofia, a matemática, a física, a engenharia, a medicina, a odontologia...) que requer investimento pessoal no processo de formação, caso contrário esta ressocialização profissionalizante pode falhar, o que significa ou o abandono da formação ou sua conclusão que não resulta em exercício profissional (sem dúvida, dois elementos são fundamentais para o sucesso desta ressocialização: em primeiro lugar, a predisposição do indivíduo – sua “opção vocacional” –, que demonstra seu gosto – forma de valoração – pela profissão; e, em segundo lugar, o capital cultural herdado de sua formação anterior).

A violência cultural impõe a cultura dominante mas o faz ao lado da imposição de uma forma específica assumida por esta: o saber

9 “Pode-se perceber que o saber que é transmitido nas escolas não está

relacionado apenas à divisão técnica do trabalho existente na sociedade, como também à divisão social correspondente. Da escola sairão os burocratas, mas também os operários, os empresários e os ideólogos. A escola reproduz, também, o seu próprio corpo docente, na medida em que é das diversas áreas do sistema escolar e do percurso pela carreira acadêmica que saem os professores. A escola com os seus professores pode ser um lugar de desmascaramento de conflitos, mas, via de regra, ela tem uma posição orgânica na sociedade, que implica em um trabalho sutil e continuado de preservação da ordem estabelecida e das desigualdades nela contidas. Porém, é preciso lembrar que um número mais ou menos elevado, de acordo com uma determinada formação social, não passa pela escola, e sua socialização faz-se, portanto, por outras vias. Desnecessário insistir que essas pessoas advêm das classes inferiores. Para os já privilegiados, que passam pela escola, a socialização dá-se pela subordinação, pela inculcação de valores compatíveis com sua futura posição na divisão técnica e social do trabalho” (Motta, 1979, p. 72-73).

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escolar10. Este carrega determinados valores, inclusive de sua própria superioridade, e isto é introjetado mesmo por aqueles que não foram vítimas da escolarização. O saber escolar se fundamenta na axiologia11 e assume níveis de complexidade diferenciados, dependendo do grau de escolarização em questão. No ensino superior, trata-se de ideologia, ou seja, uma falsa consciência sistematizada. O saber escolar reproduz a cultura dominante mas o faz de uma forma específica, pois se fundamenta numa complexidade e abstração maiores do que das representações cotidianas (“senso comum”), embora em muitos casos não o ultrapasse e sua distinção destas se torna mais forte nos níveis mais elevados de escolarização (o que varia também com a “qualidade de ensino”). Assim, a violência cultural tem o papel de inculcar as representações falsas da realidade e a ideologia dominante, o que significa a imposição da axiologia. Obviamente, isto significa a inculcação de um saber funcional (“técnico”) que tem uma utilidade indiscutível na sociedade capitalista, juntamente com os valores dominantes, que são duas faces da mesma moeda, pois o saber funcional é axiológico (e o formalismo e tecnicismo que lhe acompanham revelam alguns valores dominantes) e a axiologia é funcional em nossa sociedade.

10 Nossa concepção mantém semelhanças – e diferenças – em relação à tese

do “conhecimento escolar”, abordada por Madan Sarup: “O que Michael Young propõe é um enfoque da relação entre a estratificação social e a estratificação do conhecimento, isto é, o valor social atribuído a diferentes áreas e tipos de conhecimento (...)”; “Então, como que para nos dar um exemplo, ele formula certas perguntas sobre a organização e transmissão do conhecimento que tem um ‘alto status’ em nossa sociedade. Observa que tal conhecimento é transmitido às crianças ‘mais capazes’, habitualmente em grupos homogêneos, sendo em seguida avaliado formalmente. Sugere que os currículos acadêmicos, o conhecimento de alto status, tende a ser ‘abstrato’, a ter um elevado nível de alfabetização, uma correlação mínima com atividades não-escolares e uma ênfase sobre o desempenho individual. Essas dimensões são definições sociais do valor educacional e persistem porque são as escolhas que concordam com os valores e crenças do grupo dominante num determinado momento. Mas esses mesmos valores legitimam a organização existente do conhecimento de tal modo que mesmo a discussão de alternativas em nossa sociedade é, por muitas razões, difícil” (Sarup, 1980, p. 23).

11 Axiologia, tal como definimos em outro texto, é uma determinada configuração do padrão dominante de valores (Viana, 2002b).

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A violência escolar, no entanto, tem uma outra face: a violência daqueles que recusam a violência disciplinar e cultural. Iremos chamar esta de violência contestadora, que é um tipo de violência reativa, pois ela nasce em resposta a uma violência que lhe é anterior. Neste sentido, o ditado popular é correto: violência gera violência12. A violência contestadora é aquela que contesta, nega, a violência realizada por outro. Logo, faz parte do processo de ação dos indivíduos/grupos explorados/oprimidos. São os sujeitos da violência que realizam a violência contestadora. A denominação violência contestadora foi inspirada em Erich Fromm, que trabalha com a idéia de “violência reativa”. Segundo ele, “por este nome entendo a violência empregada na defesa da vida, da liberdade, da dignidade ou da propriedade – de si próprio ou de outros” (Fromm, 1965, p.26).

No entanto, Fromm acaba, na sua concepção de violência reativa, caindo numa concepção psicologista. Iremos, partindo de sua contribuição, dar um significado preciso ao conceito de violência contestadora: é uma relação social não qual um grupo/indivíduo impõe, momentaneamente, algo a outro grupo/indivíduo contra sua vontade/natureza em resposta a uma violência anterior provocada por este mesmo grupo/indivíduo13.

12 Além da violência disciplinar e cultural, existe também a diferenciação

social entre as instituições escolares – existindo as escola dos privilegiados e a dos explorados –, que, no caso das classes exploradas, é uma escola marcada por problemas específicos, tal como a superlotação da sala de aula, a deficiência na execução da violência cultural e disciplinar – que tanto cria mais liberdade para a violência contestadora quanto traz em diversos alunos o descontentamento com sua “ineficácia” – debilidade no quadro administrativo e docente, falta de recursos e estrutura física etc. Isto, sem dúvida, promove um maior índice de violência nas escolas das classes exploradas.

13 Outro elemento interessante que podemos extrair de Fromm e que se mantém próximo à nossa concepção de violência contestadora reside na relação que ele faz entre violência e frustração: “outro aspecto da violência reativa é o tipo de violência produzido por frustração. Encontramos comportamento agressivo em animais, crianças e adultos, quando um desejo ou necessidade é frustrado. Esse comportamento agressivo constitui uma tentativa, se bem que às vezes fútil, de alcançar o objetivo frustrado pelo uso da violência. É nitidamente uma agressão a serviço da vida, e não por amor à destruição. Como a frustração de necessidades e desejos tem sido um acontecimento quase universal na maior parte das sociedades até hoje, não há razão para surpreender-se de serem constantemente produzidas

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Na instituição escolar, a violência contestadora se manifesta como violência antidisciplinar e anticultural (no sentido de negar a cultura dominante). Ela contesta a disciplina e o saber escolar. A violência contestadora é uma recusa da escola e, ao mesmo tempo, é um produto dela, que exerce violência disciplinar e cultural14.

Portanto, a violência escolar se manifesta como violência disciplinar, violência cultural e violência contestadora. As duas primeiras formas de violência são praticadas, na maioria das vezes, pela burocracia enquanto que a terceira é realizada pelas vítimas das anteriores. Segundo Áurea Guimarães, referindo-se a duas escolas pesquisadas por ela:

Apesar do controle institucional que permeava as duas escolas, uma delas, ao valorizar os “pequenos nadas” do seu cotidiano (poder ficar conversando com os colegas no final das aulas, ocupar a quadra mesmo após o expediente, colocar música no recreio etc.), permitia – acredito que mesmo sem o saber – a expressão do desejo irreprimível de “estar-junto” a partir e em torno de um território. Na outra escola, por sua vez, os próprios alunos se encarregavam de dificultar o êxito completo da dominação a que estavam submetidos, através da formação de “turmas”, das brigas, das depredações, enfim de toda ação que lembrasse a eles a necessidade de não sacrificar o sentimento que os unia enquanto grupo. As camisetas das “gangues”, seus emblemas, seus versos, as tatuagens, marcavam o corpo e em todos os corpos do grupo a recusa à escola

e demonstradas violências e agressão” (Fromm, 1965, p. 27-28). A nossa concepção de violência contestadora também se assemelha ao que Maffesoli denominou “violência anômica” (Guimarães, 1996), embora haja mais diferenças do que semelhanças.

14 Existe também uma contra-violência realizada na escola, expressa no desinteresse, na apatia, na não-aprendizagem, o que se aproxima do conceito de “violência banal” apresentado por Maffesoli (Guimarães, 1996). No entanto, do nosso ponto de vista, tal forma de reação diante da escola não constitui violência, pois não há nenhuma imposição, mas tão-somente a recusa passiva dela.

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enquanto instituição uniformizadora (Guimarães, 1996, p. 149).

A Violência na Escola A violência escolar é uma relação social específica gerada pela

instituição escolar e se difere da violência na escola. Esta última se refere a toda e qualquer forma de violência que ocorre na escola mas que não é produzida por ela. Sua fonte é extra-escolar.

Uma das formas de violência na escola ocorre devido à “interferência de grupos externos”:

Nos últimos anos é possível observar o crescimento significativo da presença e do poder do narcotráfico nos grandes centros urbanos. No Rio de Janeiro, a partir dos anos oitenta, estes grupos tornam-se mais visíveis e se intensifica sua intervenção em diferentes espaços públicos, incluída a rede de ensino (Lucinda, Nascimento e Candau, 1999, p. 28).

Outros “grupos externos”, tal como grupos de jovens, ex-alunos, policiais etc., também provocam atos de violência na escola (Lucinda, Nascimento e Candau, 1999). Também a violência ocorrida na esfera familiar contribui para a violência na escola, pois realiza uma banalização da violência e cria uma agressividade na sua vítima, que tende a descarregá-la em outras pessoas. A ação de assaltantes, que buscam roubar objetos existentes na escola também se inclui aí.

Outros problemas extra-escolares que atingem os indivíduos, tais como problemas psíquicos gerados pela sociedade repressiva, situação social de pobreza e conflito, dificuldade de acesso à escola, podem gerar atos de violência na escola.

Assim, diversas determinações exteriores à escola podem gerar violência em seu espaço institucional. Por isso, várias formas de violência podem se manifestar na escola sem ter como determinação fundamental a instituição escolar, embora ela possa agudizar e influenciar tais manifestações, tal como elementos extra-escolares podem agudizar e influenciar a violência escolar. Em outras palavras, a violência escolar é gerada pela própria instituição escolar, mas pode ser intensificada por determinações extra-escolares, bem como a violência na escola pode ser intensificada pela própria dinâmica da instituição escolar. Há uma relação recíproca e de intensificação entre violência escolar e violência na escola.

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Violência, Escola e Ideologia As diversas publicações sobre violência e escola acabam

produzindo uma indistinção entre violência na escola e violência escolar. A maioria das abordagens trata da violência na escola sem relacioná-la com a instituição escolar. Trata-se de um discurso ideológico que concebe todas as manifestações de violência na escola como produtos exteriores a ela. Assim, temos uma excessiva valoração da escola e a responsabilização pela violência no seu interior pelas vítimas da violência original, a produzida pela própria escola.

Vejamos alguns exemplos. Vicente Barreto coloca que a crise da educação se encontra na falta de perspectiva cultural e espiritual que abriu espaço para a influência positivista, o que gerou uma concepção tecnicista da educação. Assim, segundo este autor, se retirou qualquer possibilidade de análise sobre a natureza moral da educação. Ele acrescenta:

Quando se analisam os efeitos dessas políticas “a-valorativas”, voltadas para atender às hipóteses economicistas e do mercado de trabalho, na grande massa da população brasileira constatamos o grau de exclusão social atingido no Brasil através da educação. Excluem-se da escola os que não conseguem aprender; excluem-se do mercado de trabalho os que não têm capacidade técnica, porque antes não aprenderam a ler, escrever e contar; e excluem-se, finalmente, do exercício da cidadania esses mesmos cidadãos porque não conhecem os valores morais e políticos que fundam a vida de uma sociedade livre, democrática e participativa (Barreto, 1994, p. 59).

A partir disto o autor chega à seguinte conclusão: Neste ponto é que ocorre, a meu ver, a

ligação entre o mundo educacional e o mundo da violência. Há como uma integração recíproca entre essas duas esferas da atividade humana que, aparentemente, estão bem distantes uma da outra. No caso brasileiro, a crise da educação vem sendo agravada pela inserção da violência em suas diversificadas formas no mundo

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racional da escola, derrubando os alicerces da educação, desde a autoridade do professor até o abandono de exigências mínimas de aprovação dos alunos. Na sociedade, o fracasso da escola básica manifestou-se na criação de um caldo de cultura propício às manifestações do que Kant chamou de aspecto “patológico” da natureza humana (Barreto, 1994, p. 59-60).

Não é difícil perceber quais são os valores por detrás desta concepção. A valoração da moral (dominante), da “cidadania”, da “sociedade livre, democrática e participativa”, da escola, isto é, da sociedade capitalista, suas instituições e ideologias. A partir desta valoração não é possível perceber as verdadeiras fontes da violência – sendo uma manifestação do que Marx denominou “limites instransponíveis da consciência burguesa” (Marx, 1988) – e por isso elas devem ser encontradas em outro lugar: na natureza humana. O autor apela para a filosofia de Pierre Weil, que concebe a natureza humana de forma metafísica, como tendo dois pólos: a razão e a violência. Barreto conclui:

O “domínio da moral”, que é o domínio do antiviolência, não é uma abstração, uma ens ratio. Situa-se na ordem da razão, da qual a educação é o instrumento na sociedade democrática. Quando essa ordem de valores éticos é rompida ou não é transmitida às novas gerações, instala-se a violência, tornando inviável a vida social, política e cultural (Barreto, 1994, p. 64).

Temos, assim, uma ideologia que vê a gênese da violência na natureza humana – enquanto possibilidade – e na “crise de autoridade” e da “moral”, e, por conseguinte, do “sistema educacional”, que seria o responsável por sua transmissão. A solução seria, no final das contas, aumentar a violência disciplinar e cultural na escola, tal como é o interesse da classe dominante (embora seja uma faca de dois gumes, pois o aumento da violência institucional provoca irrupções mais fortes da violência contestadora). Obviamente que o autor em questão não utiliza tal linguagem, pois para ele trata-se de reforçar a educação moral nas escolas. Esta ideologia não pode reconhecer a existência da violência disciplinar – a verdadeira determinação fundamental da “crise de autoridade” – e da violência cultural, pois

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assim não poderia realizar seu objetivo, que é condenar a violência contestadora. O autor culpa a escola pela violência, não por sua natureza e caráter, por ser uma instituição produtora de violências, e sim por insuficiência em cumprir o seu papel (de exercer violências...).

Esta posição extremamente conservadora e ideológica não é a única. Vejamos mais exemplos. Uma autora que também trata da relação entre violência e escola, e utiliza a contribuição de Bourdieu e Passeron, faz a seguinte afirmação: para a população, segundo uma pesquisa feita com base em entrevistas, “pouco importa se a escola, ao prepará-lo (o menor pobre – NV) para o exercício de uma profissão, beneficia o capital” (Paiva, 1994, p. 68). Afirma ainda que:

Os segmentos entrevistados nada têm contra a “imposição de um arbitrário cultural através da violência simbólica”: se é meramente simbólica e, além desta vantagem, mostra-se eficiente, assegurando a integração disciplinada do menor à sociedade, este tipo de violência suave é mais que desejável (Paiva, 1994, p. 69).

Quem disse que esta violência “é mais suave”? Ou que “é desejável”? A autora não citou nenhuma entrevista para confirmar sua interpretação, além de usar termos desconhecidos pela população entrevistada (uma coisa é dizer que a população aceita a escolarização como necessária, outra é dizer que “não tem nada contra a violência simbólica”, pois neste caso seria necessário saber o que significa tal coisa – ou seja, pressupõe a consciência do que seja a violência simbólica – e, se soubessem, poderiam ser contra...). Seria o mesmo que entrevistar um operário e lhe perguntar o que ele acha do seu salário e ao obter a resposta de que o salário é baixo mas precisa dele para viver, interpretar dizendo que o operário não tem nada contra a mais-valia, pois ela é “suave” e “desejável”...

Outra autora (Zaluar, 1994) considera que a criminalidade e a violência não têm nada a ver com a pobreza e que a dimensão da escola enquanto geradora de valores e de projetos familiares foi abandonada por uma concepção instrumentalista. Isto está diretamente relacionado com a criminalidade, pois é a escola que deve preparar o cidadão para exercer a sua cidadania15. Segundo esta autora, é preciso

15 Aqui não temos espaço para criticar a ideologia da cidadania, amplamente

usada nos discursos conservadores e “progressistas” atuais, mas devemos

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enxergar a autonomia individual e a responsabilidade moral como elementos importantes na explicação da violência: “(...) na afirmação, sem nuances nem mediações, da determinação do social, perde-se a dimensão da autonomia individual ou da responsabilidade moral”. O curioso é que esta afirmação parte de uma antropóloga, que, mais do que ninguém, deveria reconhecer que a própria autonomia individual e a responsabilidade moral (e a moral em si mesma) são produtos sociais. A violência e criminalidade são, assim, naturalizados, e nesta ideologia, somente existe uma solução tríplice: reprimir-punir-moralizar (“prevenir”), sendo que este último ponto seria tarefa principalmente da escola.

Também podemos citar uma autora (Fukuy, 1994) que considera que é preciso difundir a noção de “bem público” como antídoto à depredação escolar, deixando subentendido que é a falta desta noção que produz tais atos destrutivos16. Outros autores (Lucinda, Nascimento e Candau, 1999) encontram as fontes da violência na escola no que denominam “crise do processo civilizatório” e na “crise de identidade da escola”, que é reforçado pela “negligencia com os prédios escolares” e pela “atuação da mídia”. A crise do processo civilizatório, que as autoras retomam de Peralva, que, por sua vez, se inspira em Norbert Elias, segundo o qual tal processo foi proporcionado pela centralização do poder no Estado Moderno, pela criação de um padrão de comportamento social interiorizado pela população e pela adesão voluntária dos indivíduos à “civilização”. Deixando de lado o caráter eurocêntrico e ideológico desta concepção17, devemos esclarecer que a crise deste processo, para as autoras, se expressa no enfraquecimento do Estado (neoliberalismo, nome não dito pelas autoras), a crítica realizada às convenções sociais a partir da década de 60 e debilitamento do interesse dos indivíduos em aderir à ordem “civilizada”, tendo em vista a fragmentação desta ordem e a “exclusão social”. Esta crise do processo civilizatório se manifesta também na escola, produzindo sua crise de identidade, pois

alertar brevemente de que este termo revela tão-somente uma ideologia (inversão da realidade) cujo objetivo é facilitar a integração do indivíduo na sociedade burguesa.

16 “A necessidade de difundir o conceito de ‘bem público’ entre os usuários das escolas torna-se a cada dia mais urgente e de primordial importância” (Fukuy, 1994, p. 111).

17 Uma crítica à concepção de Norbert Elias pode ser vista em: Viana (2001b).

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o enfraquecimento do poder estatal se reflete duplamente na escola (no investimento que ele faz e na autoridade que ele repassaria), a crítica das convenções atingiria as relações no interior da escola e a adesão à ordem escolar também acaba se dissipando no ar pois ela deixa de ser vista como meio de ascensão social.

Os valores por detrás de todas estas análises são por demais visíveis. A fragilidade da ideologia que elas produzem também. Temos aqui todo um discurso moralista em favor da “cidadania”, da “democracia”, do “bem público”, da “escola”, e nenhuma crítica à instituição escolar e à sociedade capitalista. A violência na escola não tem nada a ver com a escola em si mesma. Não existe uma violência disciplinar e cultural e, mesmo quando se reconhece isto, tal violência institucional é benéfica e “desejável”. Só existe a violência contestadora, que perde, assim, o seu caráter contestador, e a violência extra-escolar. Assim, a ideologia transforma os sujeitos da violência em seus agentes e nesta inversão da realidade ela responsabiliza os oprimidos pelos atos de violência. Segundo a maioria de tais abordagens, não existe violência institucional (disciplinar, cultural) e por isso só se trata da violência contestadora e da violência extra-escolar. A primeira e a segunda, portanto, são oriundas não da escola (ou, no máximo, da deficiência da escola, o que significa dizer, da deficiência da escola em exercer a violência disciplinar e cultural...), e, portanto, devem se encontrar em outro lugar. Para uns, a fonte da violência se encontra na “autonomia individual” e “responsabilidade moral” e da própria escola que não transmite isso, ou na natureza humana e na escola (pelo mesmo motivo) ou na crise do processo civilizatório ou desconhecimento da idéia de bem público e seus reflexos na escola. Por conseguinte, todas estas concepções atribuem a violência escolar e extra-escolar a elementos externos à escola, misturando duas formas distintas de violência, e à deficiência da escola em inculcar a cultura dominante (seja falando de moral, violência simbólica ou qualquer outro nome). Ao confundir – ou seja, fundir – a violência na escola e a violência escolar (no caso, a violência contestadora) se abre mão de qualquer crítica radical da escola (em troca temos a crítica amena de sua ineficácia) e do seu papel na sociedade e de sua violência fundadora, fonte da violência derivada que é a contestadora. Assim, legitimamos a escola e a sociedade capitalistas. Nos casos em que se apela para a “autonomia individual” e “responsabilidade moral” ou para a “natureza humana”, metafisicamente definida, ainda há a ideologia adicional de

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responsabilizar os indivíduos pelos atos violentos, o que justifica mais repressão, punição, moralização e a escola assume o papel fundamental de moralizar a sociedade, não esquecendo que se trata aqui da moral dominante e hipócrita – seria como pedir aos pobres e miseráveis que respeitem os bens “públicos” (estatais), a propriedade, a autoridade, enquanto os próprios membros da classe dominante e suas classes auxiliares destroem os bens “públicos” transformando-os em privados (através da privatização e da corrupção), respeitam apenas a propriedade própria, e a autoridade que lhes convém. Aqui poderíamos lembrar a afirmação citada anteriormente de Maffesoli: o credo da burocracia é que o povo deve ser educado, suas paixões e sentimentos são imprevisíveis e por isso é preciso inculcar-lhe a moral, controlar detalhadamente e cotidianamente sua consciência, valores, atos etc.

Poucos são os textos sobre a violência nas escolas que conseguem ultrapassar este véu ideológico e nebuloso a serviço daqueles que detém o poder. No entanto, mesmo aqueles que conseguem ir mais longe nem sempre escapam da ideologia. Tomemos os dois melhores livros sobre violência e escola que encontramos. O primeiro mérito destas obras está em que tratam da violência escolar e reconhecem a violência fundadora da instituição escolar. Um texto produzido por pedagogos franceses nos coloca algumas verdades:

A violência que as crianças e os adolescentes exercem, é antes de tudo, a que o seu meio exerce sobre eles. Podemos ver que durante um ano, as situações ficam bloqueadas, aparecem atos de vingança, como se alguma coisa não chegasse a ser dita. Sabemos muito bem como a escola-caserna é vivida como um lugar trancado, que impõe aos corpos uma ordem uniforme, hierarquizada, à qual não há meio de fugir: regras, controles, punições, dominação, são os meios habituais de disciplina (Colombier, Mangel & Perdriault, 1989, p. 17-18).

Também temos aqui uma crítica aos conservadores: Não negamos a violência nos colégios. E,

mesmo, não a evitamos. Não a consideramos como o mal absoluto que seria preciso conter por meio de sanções. “mais disciplina,

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severidade, cuidado, repressão...” Quem não conhece este refrão de todos os reacionários? Agir assim seria acreditar que se pode eliminar o problema e logo se expor ao retorno do que foi recalcado. É o círculo vicioso da revolta e da repressão (Colombier, Mangel & Perdriault, 1989, p. 18).

Mas qual é a solução apresentada? Uma nova pedagogia, uma pedagogia do desejo. Esta é a pedagogia institucional (autogestão pedagógica). Em que pese ser muito melhor do que qualquer outra pedagogia, não resolve nenhuma questão. A autogestão pedagógica só pode ser efetivamente praticada no interior de um coletivo que quer – não apenas discursivamente, mas efetivamente – a transformação social, em um contexto não repressivo. Estas condições faltam na escola. Autogestão pedagógica na escola é um projeto, que precisa da participação coletiva de estudantes, professores, comunidade, bem como deve estar aliado com um projeto de transformação da escola e da sociedade. Enfim, a autogestão pedagógica é um projeto e não uma realidade. Se for colocada em “prática” no atual contexto escolar, será deficiente e deformada. Os relatos no próprio livro não deixam margens para dúvidas.

Vejamos uma outra abordagem crítica da relação entre violência e escola. A cientista social e filósofa Áurea Guimarães apresenta uma concepção crítica deste tema, se fundamentando em um referencial teórico inspirado em Michel Maffesoli. Partindo da concepção deste autor, Guimarães trata de três formas de violência: a violência dos poderes instituídos, a violência anômica e a violência banal. A primeira forma de violência é realizada pela burocracia e as demais pelas vítimas da primeira forma de violência. Assim, temos uma visão crítica da violência na escola. A violência dos poderes instituídos (o que denominamos violência disciplinar) é que gera a violência anômica e banal (o que denominamos violência contestadora e contra-violência, respectivamente). Mas a análise se limita a isto. A autora a todo momento busca afirmar que não faz o elogio da violência: “este trabalho não é um elogio à violência, nem uma denúncia, mas um ponto de partida que tenta apreender, na ambigüidade deste fenômeno, suas singularidades e os modos específicos de sua manifestação (Guimarães, 1996, p. 26).

Aqui encontramos, lado a lado, o velho discurso positivista da neutralidade e a indefinição do pós-estruturalismo (ou, como dizem

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alguns, do “pós-modernismo”), o que gera, por sua vez, o descompromisso e a falta de um projeto, de uma afirmação. Isto é visível no seguinte trecho:

E, se a escola é a expressão de um eterno conflito, a violência que daí resulta deve ser objeto de uma negociação constante, cotidiana, enquanto as coisas estiveram acontecendo, e não através de planos que manipulem as ações das pessoas com a finalidade de elas descarregarem suas energias e, deste modo, serem mais pacíficas, obedientes e submissas (Guimarães, 1996, p. 51).

O que temos aqui? A violência se torna um “eterno conflito”, objeto de “negociação constante, cotidiana”. Esta concepção é a que podemos denominar concepção circular de violência. A violência possui a tendência real de circularidade (“violência gera violência”, ou seja, um ato de violência provavelmente irá gerar uma reação violenta e isto irá reforçar o primeiro ato e assim sucessivamente) numa sociedade baseada na luta de classes. O problema reside em considerar o que é – uma determinada realidade histórica e transitória – em “o que sempre será”, eternizando algo histórico. Segundo Kalina e Perel:

A teoria dos sistemas que inclui uma metodologia baseada na aceitação da causalidade circular como método do estudo nos mostra como “mais da mesma coisa” leva ao mesmo, e como dentro de um sistema do qual não há retroalimentação positiva, não é possível uma mudança autêntica e, ao final, se pode chegar a um modelo “gatopardista”, quer dizer: “mudar para que nada mude”. Só saindo do círculo é possível instalar outro modelo interacional (Kalina e Perel, 1987, p.17).

A proposta de Guimarães é a da “negociação” interna nestas relações sociais violentas, o que significa reconhecer a violência e a relação de opressão existente entre os grupos sociais envolvidos sem propor a ruptura com ela, o que leva a eternizar a violência. A proposta da instituição escolar possui o mesmo sentido: reprimir mais ainda a violência contestadora, o que significa aumentar a violência institucional, e que gera mais violência contestadora... ou seja, estamos diante de um círculo vicioso. O problema da abordagem de

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Guimarães se encontra na sua não visão do novo, a falta de um projeto de transformação, que faz dela uma ideologia crítica e nada mais do que isso. Uma ideologia crítica significa uma inversão da realidade que traz elementos de crítica desta realidade, mas continua presa a ela, não consegue ultrapassar seus próprios limites, não consegue atingir o ponto da ruptura, da transformação. É por isso que as duas obras aqui citadas são ideologias críticas, o que significa que ainda são ideologias, embora elas consigam, devido seu caráter crítico, desvendar muitos elementos de verdade em suas análises.

Considerações Finais: Um Projeto Alternativo Para superar as concepções ideológicas e as ideologias críticas da

relação entre escola e violência, é preciso superar não só a falsa explicação da violência no espaço escolar como também apresentar um projeto alternativo.

A violência institucional (disciplinar e cultural) gera a violência contestadora e a contra-violência. No entanto, nem a violência contestadora nem a contra-violência produzem uma alternativa, um real processo de transformação. A contra-violência é passiva, não produz nada. No máximo, produz o “fracasso escolar” dos estudantes, o que significa a não integração destes na instituição, que, por sua vez, pode significar, também, sua não inserção no mercado de trabalho ou uma inserção subordinada. A violência contestadora significa uma manifestação de um descontentamento legítimo, de uma recusa da escola, tal como a contra-violência, mas também não apresenta uma real alternativa. Ela é esporádica, destrutiva, segregadora (não consegue fornecer uma união com outros setores descontentes na escola, pois cria um auto-isolamento). Ela é assim por não carregar em si um projeto alternativo de escola e sociedade e por não ter uma percepção clara do que está em jogo na instituição escolar e na sociedade. Aqui o descontentamento se une a incompreensão da sua fonte e dos objetivos contidos nela.

Qual alternativa seria possível? A alternativa seria canalizar tal descontentamento presente na contra-violência e na violência contestadora em um sentido diferente do projetado pelos ideólogos conservadores. Ao invés de se buscar a integração e adaptação do indivíduo à instituição escolar ou de transformar esta numa moralizadora da sociedade, seria necessário fazer avançar a compreensão da situação na instituição escolar buscando a auto-organização dos estudantes no sentido de uma contestação da instituição escolar que apontasse para sua transformação, rompendo

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com a violência disciplinar e cultural existente no seu interior. Ao lado disso, e apresentando uma verdadeira alternativa, seria necessário transformar a escola de instituição conservadora/moralizadora em instituição crítica/transformadora, que significa articular as lutas no interior da escola (de estudantes, professores etc.) com as lutas exteriores, pela transformação social. O descontentamento não seria canalizado para atos violentos e infrutíferos e sim para atos de construção de coletivos e formas alternativas de socialização, não repressiva, não conservadora (o que pressupõe a transformação dos indivíduos em agentes ativos do processo e não mais receptores passivos da disciplina e imposição cultural). Isto tudo inclui um conjunto de transformações, desde na esfera pedagógica (a autogestão pedagógica) quanto na organização institucional e no conteúdo do que é vinculado na escola. Mudança curricular, pedagógica, cultural, organizacional, relacional. Este seria o objetivo18 que, juntamente e articulado com o objetivo da transformação social, podem transformar a escola de instituição violenta em instituição criadora, fomentadora de um mundo radicalmente diferente.

18 Obviamente que, entre a produção do objetivo e sua realização, existe um

caminho a ser seguido, mas a própria escolha do objetivo e a luta por sua concretização já é o embrião do mundo novo que se busca construir. Assim, as lutas por sua concretização são elementos embrionários de um mundo novo, embora num estágio inferior ao do objetivo concretizado. As lutas pela transformação da escola, inicialmente, se dão no interior da atual instituição escolar, utilizando e transformando os meios existentes no seu interior, tal como as organizações estudantis de base (e somente estas, pois as grandes organizações estudantis já foram corrompidas e seu processo de reorganização significaria sua destruição na forma atual), entre outras.

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