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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL LUCIANA PASQUALI EDUCAÇÃO E LUDICIDADE: TECENDO ARGUMENTOS COMPLEXOS A RESPEITO DO BRINCAR Ijuí (RS) Março de 2007

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

LUCIANA PASQUALI

EDUCAÇÃO E LUDICIDADE: TECENDO ARGUMENTOS

COMPLEXOS A RESPEITO DO BRINCAR

Ijuí (RS)

Março de 2007

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LUCIANA PASQUALI

EDUCAÇÃO E LUDICIDADE: TECENDO ARGUMENTOS

COMPLEXOS A RESPEITO DO BRINCAR

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação nas Ciências – Mestrado, Departamento de Pedagogia (DePe), da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Celso José Martinazzo

Ijuí (RS)

2007

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AGRADECIMENTOS

Ao Giovanni, meu filho, fonte de inspiração para pensar este trabalho: “Mãe, já que tu lê

tanto, tu podia escrever um livro e eu desenho”.

Ao Américo, pela disponibilidade e disposição em contribuir nesta empreitada.

À minha mãe, presença constante e incentivo amoroso em mais esta etapa.

Às crianças, meus alunos, que representaram o impulso inicial desta caminhada.

Ao Celso, meu orientador, pelas contribuições, intervenções e por aceitar este desafio.

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Só o desejo inquieto, que não passa,

Faz o encanto da coisa desejada ...

E terminamos desdenhando a caça

Pela doida aventura da caçada.

(Mario Quintana)

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RESUMO

Este trabalho pretende contribuir para a reflexão a respeito da formação de docentes da Educação Infantil e de renovação das práticas educacionais, fundadas na teoria da complexidade. É como fenômeno complexo que abordamos as questões referentes à ludicidade e à formação de professores no contexto atual. Partimos do pressuposto de que as idéias do paradigma cartesiano, que fundamentam a educação, tornam-se insuficientes, pois é um pensamento que reduz e simplifica os processos de aprender e ensinar. Procuramos, com o paradigma da complexidade, buscar um referencial teórico mais ampliado para a educação e a formação profissional de professores da Educação Infantil, que comporte a complexidade dos fenômenos lúdicos. A partir dos princípios de um pensamento complexo, buscamos refletir sobre as questões relativas aos processos de aprender/conhecer/brincar essenciais, tanto para adultos quanto para crianças. Compreender o lúdico, como fator essencial na constituição das subjetividades, representa seu resgate na educação como questão fundante e estratégia de pensamento, não apenas como ferramenta de ensino. Neste sentido, propomos pensar a educação e a formação dos professores de Educação Infantil numa perspectiva complexa, como um estar em jogo, que pressupõe o envolvimento, a aceitação da incerteza e o reconhecimento de que nossas ações estão implicadas nesse processo. Palavras-chave: Educação. Formação de professores. Educação Infantil. Complexidade. Lúdico.

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ABSTRACT

This assignment intends to contribute to the reflection about the docents formation of Childish Education and about the renovation of educational practices, founded in the theory of the complexity. It is like complex phenomenon that we deal with the questions regarding to the playfully and to the teachers formation in nowadays context. We start from the presupposed that the ideas of cartesian paradigm, which fundament the education, become insufficient, because it is a thought that reduce and simplify the process of learning and teaching. We look for, as the complexity paradigm, to search for a theoretical referential more extended to the professional education and formation of Childish Education teachers, which sluice the complexity of playful phenomenon’s. From the principles of a complex thought, we look for to think about the questions relating to the process of learning/knowing/playing essential, as to adults as to children. To understand the playful, as essential factor in the constitution of the subjectivities, represents its ransom in the education as founder question and strategy of thinking, not only as a teaching tool. This way we propose to think the education and the formation of Childish Education teachers in a complex perspective, as a to be at stake, which presuppose the involvement, the acception of uncertainty and the recognition that our acts are implicated in this process. Key words: Education. Teachers formation. Childish Education. Complexity. Playful.

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SUMÁRIO

IDÉIAS INICIAIS ................................................................................................................. 7 CAPÍTULO I – A EDUCAÇÃO E O PARADIGMA DOMINANTE .................................. 13 1.1 Bases Conceituais do Paradigma Dominante .................................................................. 13 1.2 A Pedagogia ou a Formação de Professores no Contexto do Paradigma Dominante........ 19 CAPÍTULO II – A EDUCAÇÃO E UM PARADIGMA EMERGENTE.............................. 28 2.1 Teoria da Complexidade: bases conceituais de um paradigma emergente ....................... 28 2.2 A Formação de Professores no Contexto de um Paradigma Emergente........................... 37 CAPÍTULO III - A CRIANÇA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E SUAS EXPRESSÕES LÚDICAS............................................................................................................................ 44 3.1 Um Pouco da História da Infância .................................................................................. 44 3.2 A Criança da Educação Infantil ...................................................................................... 47 3.3 O Brincar da Criança...................................................................................................... 51 CAPÍTULO IV – O LÚDICO COMO POSSIBILIDADE DE CONTEXTUALIZAÇÃO DO PARADIGMA EMERGENTE NA ESCOLA................................................................ 54 4.1 Bases Conceituais do Lúdico: gênese da atividade lúdica ............................................... 54 4.2 Situando os Aspectos Lúdicos em Diferentes Tempos Históricos ................................... 59 4.3 A Dimensão Lúdica nos Cursos de Formação de Professores ......................................... 63 CONCLUSÃO – LANÇANDO OS DADOS PARA O JOGO ............................................. 67 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 69

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IDÉIAS INICIAIS

Este é um trabalho que se constitui a partir da perspectiva do jogo, com todas as

características de imprevisibilidade, incerteza e envolvimento que o jogo possui, tanto em sua

metodologia, quanto em seu produto final. Consideramos que somos jogadores; deixamo-nos

conduzir pela ludicidade para não perdermos de vista o nosso objeto e sua riqueza.

Não prometemos conclusões definitivas, queremos, antes de tudo, refletir sobre uma

realidade que está posta, mas que também é passível de mudanças a partir das discussões que

propomos. E quantos mais discordarem das idéias propostas melhor, mais teremos atingido o

nosso objetivo de deixar-nos conduzir pela ludicidade – o caminho se faz caminhando. Então,

com este trabalho, colocamo-nos a caminho, aceitando os percalços, tropeços e desafios da

caminhada e do próprio caminho. Muitas vezes, o caminho pareceu não dar em nada, mas aí

veio o olhar para trás e a descoberta de quanto foi bom caminhar este caminho, a este passo.

Passos que, por vezes, foram lentos e deixaram de existir em alguns momentos, para depois se

tornarem uma corrida sôfrega, muitas vezes, sem rumo. Mas como também o caminhar é

cíclico, retomada a passada, reconstruído o caminho, aqui estamos nós. Na continuidade de

um caminhar que se inicia com a nossa formação de magistério e de professora de Educação

Física. Tem continuidade como professora de séries iniciais e professora de Educação Física

para crianças de Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental e também para

alunos do curso de magistério. É com esta bagagem, com esta história em construção que nos

lançamos no desafio de prosseguir na caminhada, de tentar novos caminhos a passos mais

largos.

Nossa tentativa é a de apontar algumas questões sobre o lúdico e a formação de

professores de educação infantil. Não se trata de propor a inclusão de disciplinas nos

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currículos universitários. Se bem que seria muito fácil fazê-lo através de nomes, como:

Recreação e jogos; O jogo e a educação; A criança e o jogo. Sem dúvida, com a contribuição

de muitos, estes nomes poderiam ficar mais “pomposos”, deixando transparecer o árduo

trabalho de dissecação de diferentes teorias. Pois bem, já sabemos de antemão que este não é

o problema e, tampouco, a solução.

Acreditamos em uma formação profissional que contribua para que o professor seja

capaz de fundamentar sua práxis, que cada vez mais é dinâmica e recorrente. Assim, parece

oportuno o alerta que nos faz João Batista Freire (1993, p. 115-116):

Criança ri, corre, chuta, faz barulho, perturba, é perversa, bondosa, amorosa e maldosa. Que pedagogia se dirige a essa criança? Que pedagogia investe na criança que fantasia, corre, que ri, que grita...? Talvez só uma pedagogia que ainda está nascendo, em parte, na Educação Física. ... Parece uma loucura, mas é a lógica do sistema escolar: crianças não podem raciocinar se movendo; não podem refletir jogando, não podem pensar fantasiando. Então, para que se tornem inteligentes e produtivas, precisam ser confinadas e engordadas. Essa é a economia do sistema escolar.

Não se trata de negar as funções que o brincar possa assumir (ou que a ele se atribui),

pautado pelas correntes que o estudam e justificam, mas sim de situar o brincar no espaço

escolar. O processo que pretende situar o brincar na escola passa pela formação do professor

que trabalha, essencialmente, com uma visão de pedagogia do movimento1 voltada para a

infância, onde os jogos infantis merecem destaque.

Para que possamos ressignificar o lúdico na escola faz-se necessário levarmos em

conta sua evolução no processo de ensinar/conhecer/aprender, considerando todos os sujeitos

envolvidos diretamente nesse processo. Entendemos que só assim poderemos “dizer” do

brincar, sua significação, fundamentação e importância, pois realmente acreditamos que

brincar é coisa séria (para adultos e crianças). E pretendemos lançar o olhar sobre o brincar

como comportamento humano, pois, segundo Rosa (1998, p. 21), “[...] é como atividade

humana, e não estritamente cognitiva, que o brincar nos interessa e ganha relevância.” É

1 Trazemos o conceito de pedagogia do movimento fundado nas idéias de Freire (1993, 1994, 2005) como uma possibilidade de concretizar a ludicidade como fundante do humano no contexto escolar. No nosso entendimento a pedagogia do movimento aceita e convive com a mobilidade, a fantasia e o imaginário infantil, potencializando-os no processo educativo, reconhecendo que esta é a forma de o humano ser/estar no mundo. Ou seja, a pedagogia do movimento é aquela que permite a presença do vivo e do pulsante no ato de aprender; que relaciona e alicerça o conhecimento nas condições de vida presente, convivendo com o imponderável e a aleatoriedade.

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também como atividade humana e cultural que nos interessam os processos de ensinar e

aprender. A atividade lúdica, o brincar, não pode encerrar em si o objetivo único de

preparação da criança para o Ensino Fundamental, para uma vida futura; é necessário que se

constitua numa possibilidade da criança ser tratada como um ser no mundo que pensa, atua e

vive intensamente o momento de sua infância. É necessário que o educador infantil disponha

de elementos suficientes para ser mais um que joga, mais um que brinca, que facilita a

participação de todos, que coordena o processo de aprendizagem. Aprender é viver, e isso

vale também para o educador. E educar, viver e aprender são processos complexos que não

podem mais se estruturar num pensamento cartesiano de verdades absolutas e incontestáveis.

Nossa principal fonte de questionamentos reside no fato de percebermos que a escola

prioriza a imobilidade infantil, a negação da fantasia e do jogo simbólico (este como

expressão do brincar). Preocupa-nos o caráter “burrocrático” que assumem os processos de

construção de conhecimento na escola, onde o essencial consiste numa suposta produtividade

quantitativa, deixando de lado as múltiplas possibilidades de interação entre sujeitos e

conhecimento, desenvolvidas de forma lúdica e significativa. Preocupação essa acentuada no

desempenho da função do professor e da importância que a escola assume na vida da criança.

A escola constitui-se em um novo espaço de vivência, de relações sociais e de reconstrução

do conhecimento, situado fora do ambiente familiar. As experiências vividas pela criança, na

escola, são decisivas na constituição de “seu eu”:

[...] as primeiras experiências vividas no seu interior serão decisivas para a construção do seu modo de se colocar no mundo, nas relações com o outro e, considerando a escola como espaço privilegiado da cultura, diante do conhecimento e do ato criativo. Faz pensar, enfim, sobre a importância de um início “suficientemente bom” nesta nova etapa da vida da criança, representada pelo seu ingresso no mundo institucionalizado da cultura e saber humanos. (ROSA, 1998, p. 80).

Realizaremos nossa investigação buscando, na formação de professores, uma

possibilidade de inversão desse processo de encurtamento da infância, dessa imobilidade

infantil e do confinamento das crianças na escola. Não se trata, contudo, de uma visão

reducionista e simplista que aposta num aspecto da formação do professor, o lúdico, ou na

própria formação como sendo capaz de dar conta da superação dos entraves e limites da

práxis pedagógica. Mas sim, de conceber a formação do professor e, também, a ludicidade,

como uma possibilidade de romper com o paradigma cartesiano, à medida em que a

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ludicidade está permeada pela grande complexidade2 do educar. Esta é a preocupação central

deste trabalho.

Concebendo o brincar e o conhecer segundo a ótica de Winnicott (1975, 1982), o qual

afirma que o brincar é uma coisa séria e, assim como o conhecer, está sempre a meio caminho

entre a subjetividade e a realidade, acreditamos ser possível conciliar o conhecer e o brincar.

O grande desafio é vislumbrar as possibilidades dessa articulação no contexto da escola, com

toda a sua fragmentação de tempos e espaços, na real efetivação de um projeto de educação

infantil que contemple toda essa especificidade, multiplicidade e complexidade da infância,3

tão bem expressa por Marques (1999, p. 21):

Ilude-se a escola se pensa que as crianças vão a ela com o único objetivo de aprender coisas úteis à vida. Elas vão, antes de tudo, para encontrar amigos, companheiros, para se enturmarem. Estar uns com os outros, fazer coisas juntos, construir solidariedade é o que importa: o resto vem por acréscimo.

Deparamo-nos aqui com um grande paradoxo. Para Savater (2005, p. 103), “[...] o

propósito do ensino escolar é preparar as crianças para a vida adulta e não confirmá-las em

seus gozos infantis.”4 Desde sempre essa foi a função da escola, onde as relações de

conhecimento são intencionais e planejadas com vistas à formação do homem. As crianças

são enviadas para as escolas para apropriarem-se de um determinado tipo de conhecimento,

de diferentes modos de compreensão e explicação do mundo segundo uma determinada

lógica, que já não é mais a infantil. Entretanto, há uma mudança de perspectiva quando

assumimos que é necessário permitir às crianças a vivência de seus gozos infantis, como

sujeito ativo da sua condição infantil, possibilitando o enfrentamento dessa realidade; quando

entendemos como necessário o estar junto com outros (crianças ou adultos), com todas as

implicações desse estar junto. Tal mudança não está situada no âmbito das funções da escola,

mas sim na maneira como encaramos os desejos e as expectativas dos alunos. Não se trata,

portanto, de atribuir novas funções à escola, mas de se exercer de maneira nova as funções

que lhe são delegadas. Portanto, a mudança de perspectiva situa-se justamente no

2 O lúdico como atividade séria e não séria, que encerra prazer e dor, num movimento abrangente de reconhecimento da condição humana do homem. 3 Sem jamais abdicar da especificidade da escola na sua função de produtora de conhecimento. 4 Para o autor a expressão gozos infantis refere-se a uma das características da infância de certa ausência de disciplina e regramento; apontando para a necessidade de enfrentamento da realidade e d a necessidade de suportar uma disciplina, sofrer reprimendas, progredira passo a passo. Entretanto, anuncia em seu texto que esse processo não significa a negação da condição humana de vivência da ludicidade e da vida presente de ser criança.

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reconhecimento do ser-criança e da infância como etapa estruturante da vida, para que esse

contato sistemático com os sistemas organizados de conhecimento possa contribuir com bases

sólidas no processo de formação do ser humano. Ou seja, a nossa condição de seres humanos,

a nossa humanidade é, em grande parte, aprendida e só se concretiza por meio dos outros

(MARQUES, 1999; MORAES, 2003; SAVATER, 2005). No caso da criança, por meio

daqueles que ela procurará imitar: seus pais, professores; enfim, os adultos que não

constituem o seu grupo de iguais.

Estas afirmações remetem-nos à questão da formação do educador. Esse passa a ser o

foco central deste trabalho: refletir a formação do professor a partir do lúdico, como uma

atividade essencialmente humana e potencialmente criativa, portanto, também cultural.

Pretendemos investigar a participação do lúdico, do brincar, na formação do Educador

Infantil, transcendendo seu aspecto meramente pedagógico, visando à sua significação

cultural de interlocução entre pares. Sendo que, para nós, a essência do ato educativo, para

além dos aspectos estritamente pedagógicos, é ocupar-se do “viver”. Se entendermos o

“viver” como uma possibilidade de construção da autonomia e participação criativa no

mundo, teremos, a partir desta ótica, uma nova concepção dos processos de aprender e

ensinar. Segundo Rosa (1998, p. 88), “[...] educar é criar as condições necessárias ao

estabelecimento de uma ponte entre a tradição e a criação, entre o ser que eu ‘já-sou’ e o meu

‘poder-ser’.”

No primeiro capítulo fazemos uma retomada dos principais conceitos do paradigma

cartesiano, muito presente, ainda hoje, na escola. Neste capítulo apontamos os pressupostos

do pensamento cartesiano, e alguns dos efeitos do pensamento cartesiano no contexto

pedagógico.

No segundo capítulo contextualizamos um dos paradigmas emergentes, o paradigma

da complexidade. A partir das bases conceituais do paradigma da complexidade, apontamos o

que consideramos essencial para um redimensionamento da educação e da formação de

professores.

No terceiro capítulo procuramos caracterizar a criança da educação infantil e suas

vivências lúdicas; para isso, iniciamos com um resgate de alguns elementos da história da

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infância. Posteriormente, buscamos caracterizar a criança da educação infantil na atualidade, e

os aspectos relativos ao seu brincar.

No quarto capítulo propomos o lúdico como possibilidade de concretização do

paradigma emergente. Em função disso, buscamos delimitar as bases conceituais do lúdico

como gênese da atividade humana. A partir de uma rápida abordagem dos aspectos lúdicos no

decorrer da história, procuramos aproximar a dimensão lúdica dos princípios do paradigma da

complexidade.

É como profissional da educação, professora de Educação Física na Educação Infantil

e Ensino Fundamental, que lançamos olhar às questões abordadas nesse trabalho. Queremos

refletir sobre o brincar, a ludicidade, como atividade essencialmente humana e potencialmente

criativa, constituindo-se como uma possibilidade de renovação das práticas pedagógicas.

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CAPÍTULO I – A EDUCAÇÃO E O PARADIGMA DOMINANTE

1.1 Bases Conceituais do Paradigma Dominante5

Para compreender a questão do conhecimento no mundo moderno é necessário viajar

um pouco no “sonho” de Descartes, um dos filósofos mais importantes do século XVII. Sua

contribuição foi decisiva (e marcante) para o advento da modernidade, tendo grande

influência na formação e no desenvolvimento do pensamento moderno. Descartes é

caracterizado como dualista e filósofo da descontinuidade (ruptura), pois pretendeu instaurar

um divisor de águas entre sua filosofia e a tradição. O racionalismo cartesiano do século XVII

surge em oposição ao ceticismo e ao empirismo, pois considera a razão humana como única

forma de conhecer a verdade. Ou seja, sugere um deslocamento fundamental no pensamento

moderno: se antes existiam as coisas,6 a partir de Descartes afirma-se o pensamento como

certeza indubitável e ponto de partida do conhecimento. Sua grande obsessão era comprovar a

necessidade de uma representação da realidade que pudesse eliminar os sentidos, pois para ele

não havia possibilidade de que se pudesse confiar nos sentidos como condição de

possibilidade de conhecimento.7 Daí podermos afirmar que Descartes é dualista, pois admite a

existência de duas realidades separadas: a alma e o corpo (a substância pensante e a

substância extensa) ( DESCARTES, 1983). Sendo que há uma independência do pensamento

com relação à extensão, a qual é abordada mecanicamente (pela física e pela matemática),

pois não há nada no corpo que pertença à alma e vice-versa. Corpo e alma são duas

5 As denominações paradigma emergente e paradigma dominante estão presentes nos estudos de Maria da Glória Pimentel a partir de Boaventura Santos. Passaremos a utilizá-las por considerar que expressam a necessidade de uma virada epistemológica. 6 Para os gregos a preocupação filosófica estava centrada no ser, a filosofia era a ciência do ser. 7 Considera a razão como algo independente das experiências sensíveis, sendo que a única autoridade, digna de crédito e confiável, é concedida à razão. É preciso desqualificar o real e também as características individuais (empíricas) dos sujeitos.

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substâncias completas e até mesmo opostas por essência (as idéias são separadas das coisas).

De acordo com Silva (1993, p. 7), “essa separação significa ainda [...] tomar o sujeito como

ponto de partida do conhecimento.”

Mas, afinal, que sujeito é esse que serve de ponto de partida do conhecimento? O

sujeito é o pólo irradiador da certeza, e a partir do que se encontra nele é que se constitui o

conhecimento. Para Descartes, o sujeito é exclusivamente pensamento (intelecto). “Sendo o

intelecto, de agora em diante, o único princípio do conhecimento, a realidade sensível do

mundo material terá que ser de alguma forma demonstrada no nível do intelecto, da idéia,

para que possa vir a possuir algum valor.” (SILVA, 1993, p. 7-8). Ou seja, um dos grandes

impactos do pensamento cartesiano é a exclusão dos dogmas, preconceitos, censuras e

sentidos, pois só a razão tem o poder de conhecer, a razão só tem um apoio – ela mesma. O

papel da experiência sensível é reduzido e o objeto passa a ser subordinado à razão, pois a

realidade se encontra primeiro no espírito. Se a realidade está primeiramente no espírito (no

sujeito), então esse tem uma função ordenadora do conhecimento, e é essa a grande

modificação na filosofia, operada por Descartes. É a busca de uma verdade primeira, que não

pode ser colocada em dúvida, impondo-se como certeza absoluta.

A ruptura de Descartes com a tradição decorre de sua aposta no exercício

independente da razão, em detrimento da autoridade da cultura antiga. Assim, desconfia “de

quase tudo o que havia aprendido ao longo de seus anos de estudos.” (SILVA, 1993, p. 15).

Visando encontrar outro tipo de saber, estuda em si mesmo e no livro do mundo, inteirando-se

do que são as coisas e os costumes, observando-os por si mesmo ao longo “das oportunidades

que a vida oferece.” (SILVA, 1993, p. 15).

Descartes apostava na simplicidade, pois, para ele, o verdadeiro aparece naturalmente

como claro e sem complicações. Ainda de acordo com Silva (1993, p. 15):

[...] há, no entanto, algo de mais profundo sob esse culto da simplicidade e da clareza: é a crença na autonomia do pensamento, a idéia de que a razão, bem dirigida, basta para encontrar a verdade, sem que precisemos confiar na tradição livresca e na autoridade dos dogmas. O espírito humano tem em si os meios de alcançar a verdade, se souber cultivar sua independência e conduzir-se com método.8

8 Constituem-se, assim, o sujeito e o objeto do conhecimento. O método, para Descartes, é condição essencial para se evitar o erro.

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Descartes incorpora o desafio da dúvida, que se manifesta nas instituições de sua

época. O objetivo da dúvida cartesiana é encontrar uma verdade primeira. Trata-se de uma

dúvida metódica: para atingirmos a verdade é necessário colocarmos todas as coisas em

dúvida. Descartes aceita o desafio da dúvida, para combatê-lo. Montaigne, filósofo

considerado cético, afirmava que “o decisivo campo de batalha entre a certeza e a incerteza é

o próprio eu.” (DESCARTES, 1983, p. XIV). Nesse sentido, Descartes, ao sondar suas

próprias idéias, constata que as que parecem referir-se a objetos físicos são instáveis e

obscuras e facilmente atingíveis pela incerteza; outras, ao contrário, apresentam-se ao espírito

com grande nitidez e estabilidade – e essas são exatamente as utilizadas pelas matemáticas

(como ‘figura’ e ‘número’). As idéias claras e distintas, de acordo com o pensamento

cartesiano, são concebidas por todos da mesma maneira, o que parece mostrar que elas

independem das experiências dos sentidos (individuais e mutáveis), constituindo o substrato

inato da pensée. Essas idéias inatas satisfazem plenamente o ideal de construir uma

‘matemática universal’, que passará a ser o objetivo de Descartes.

Foi a partir de Descartes que as matemáticas passaram a constituir-se como modelo de

conhecimento científico, fazendo valer a quantidade do conhecimento abstraído,

estabelecendo, então, uma nova norma: saber é poder9, pois é tarefa do homem conhecer,

dominar e modelar o mundo. Portanto, a filosofia cartesiana é uma filosofia eminentemente

utilitarista, pois, segundo seus princípios e métodos, temos, a partir de então, a possibilidade

de prever o futuro e dominar a natureza por nossas ações. Trata-se de uma filosofia

mecanicista que exclui do mundo (natureza) a imprevisibilidade, e do sujeito toda a

criatividade, sensibilidade, sugerindo a existência de um mundo mecânico, feito

exclusivamente de matéria em movimento.

Dessas proposições e pretensões é que constatamos várias críticas ao cartesianismo, ao

seu método para a epistemologia e suas conseqüências no contexto da sociedade industrial,

dos últimos quatro séculos. Como um exemplo breve, lembramos Adorno e Horkheimer, e

sua “Teoria Crítica da Sociedade”. Pode-se afirmar que uma das preocupações desses autores

é o tema do iluminismo ou esclarecimento (aufklãrung). Como indica Bárbara Freitag (1988,

p. 34):

9 A máxima “saber é poder” é atribuída a Francis Bacon (1561 – 1626) que, segundo os historiadores, é inventor do método experimental, fundador da ciência moderna e do empirismo. Compartilha com Descartes pela ciência e técnica que emergia na época. Da mesma maneira faz uma crítica à escolástica, aos “conhecimentos desinteressados” da teoria grega a respeito do valor do conhecimento puramente teórico e contemplativo.

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A Dialética do esclarecimento descreve uma dialética da razão que em sua trajetória, originalmente concebida como processo emancipatório que conduziria à autonomia e à autodeterminação, se transforma em seu contrário: em um crescente processo de instrumentalização para a dominação e repressão do homem.

Não custa lembrar que Kant (1985), no texto O que é o esclarecimento? projetava na

razão a possibilidade de liberação do homem, a sua autonomia (ou maioridade). Para ele, os

homens deveriam assumir com coragem e competência o seu próprio destino.10 “Deveriam

fazer uso da razão para tomarem em mãos sua própria história.” (FREITAG, 1988, p. 34). O

que denunciam Adorno e Horkheimer é de que “o saber produzido pelo iluminismo não

conduziu à emancipação, e sim à técnica e ciência moderna. [...] A razão que hoje se

manifesta na ciência e na técnica é uma razão instrumental, repressiva.” (FREITAG, 1988, p.

35). Assim, para o autor, a razão emancipatória (abrangente e humanística, a serviço da

liberdade e emancipação dos homens) transformou-se em razão instrumental, servindo ao

controle totalitário da natureza e à dominação incondicional dos homens.

Sublinhamos aqui que o método cartesiano serve de pano de fundo à razão

instrumental, referida pela Teoria Crítica, à medida que visa um conhecimento objetivo (e

neutro) da natureza e do homem, pois o objetivo primeiro do método é separar a razão dos

sentidos. Quer dizer: a busca pela objetividade na pesquisa experimental inspira, a partir do

século XIX, as ciências humanas e sociais, a buscarem um ideal semelhante ao das ciências

naturais com relação ao conhecimento do homem e da sociedade. Nota-se a atualização do

ideal de conhecimento claro e distinto de Descartes no moderno positivismo, o qual propõe

que o conhecimento do homem e da sociedade deve inspirar-se no método utilizado para

conhecer a natureza (como pretendia Durkheim, abordar a sociedade pelo mesmo viés da

química, ou seja, como “coisa”).

Na interpretação de Horkheimer, a teoria tradicional, que se estende do pensamento

filosófico de Descartes à filosofia e ciência modernas, preocupa-se em formar sentenças que

definem conceitos universais. Para tal procede dedutiva ou indutivamente, e defende o

princípio de identidade, condenando a contradição. As manifestações empíricas da natureza e

da sociedade devem e podem, segundo essa orientação teórica, ser subsumidas nas sentenças

gerais, encaixando-se no sistema teórico montado a priori (com o auxílio da dedução) ou a

10 Daí podermos deduzir que para Kant, a pessoa crítica é a que tem idéias, posições refletidas e independentes, não aceitando como verdadeiro o que foi estabelecido por outros.

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posteriori (através da indução). Entre as sentenças gerais e os fatos empíricos existe uma

hierarquia de famílias e espécies de conceitos, à semelhança da moderna biologia,

estabelecendo-se em todos os momentos uma relação de subordinação e integração. Os fatos

tornam-se casos singulares, exemplos ou concretizações do conceito ou da lei geral. Não há

diferenças temporais entre as unidades do sistema (FREITAG, 1988, p. 38).

Por seu lado, a Teoria Crítica possui uma lógica que se propõe abarcar a dimensão

histórica dos fenômenos, dos indivíduos e das sociedades. Ainda, de acordo com Freitag

(1988, p. 41):

Enquanto para a teoria tradicional a necessidade do trabalho teórico significa o respeito às regras gerais da lógica formal, ao princípio da identidade e da não-contradição, ao procedimento dedutivo ou indutivo, à restrição do trabalho teórico a um campo claramente delimitado, a noção de necessidade para a teoria crítica continua presa a um juízo existencial: libertar a humanidade do jugo da repressão, da ignorância e inconsciência. Esse juízo preserva, em sua essência, o ideal iluminista: usar a razão como instrumento de libertação para realizar a autonomia, a autodeterminação do homem.

A noção de sujeito, que denominamos aqui de “estreita”, no esclarecimento, reduz-se

ao procedimento matemático. E a natureza, objeto passível ante a abordagem desse sujeito, é

mera objetividade. Porém, este eu lógico abstrato (ou matemático), não deixa intactos os

aspectos ético-valorativos. Atravessa ambas as racionalidades: a teórica e a prática.

Enfatizamos, neste sentido, que, principalmente a partir do século XVII, há a

passagem da razão contemplativa para a razão instrumental, com reflexos tanto na prática

teórico-científica quanto na sociedade liberal que se desenvolve até nossos dias.

Nas relações entre homem e mundo, e homem com outros homens, notamos o caráter

operante e utilitarista das ações. Evidenciamos a subordinação do conhecimento científico à

utilidade, à adaptação e ao controle, bem como a modelação da prática científica pela ação

instrumental. A teoria do conhecimento complexificou-se desde Descartes. Neste havia uma

razão contemplativa que perseguia os fundamentos absolutos do conhecimento na visão

interna – suas idéias claras e distintas obtidas pela intuição pura. Já no século XX a

epistemologia e a prática de pesquisa abraçam a instrumentalidade do conhecimento.11

11 Os procedimentos e técnicas científicos são determinados com o rigor e o controle dos testes e cálculos, na busca de verdades primeiras, aplicáveis a qualquer situação.

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Desde o início da modernidade (século XVII) houve as mesmas preocupações com a

natureza interna (a subjetividade), se comparada com o conhecimento do mundo externo (ou a

realidade, ou natureza). Havia a necessidade de se conhecer as inclinações do próprio sujeito,

que o conduzem ao erro e à ilusão, pois as mesmas se constituem em obstáculo para o avanço

da atividade científica. Vemos, a partir do pensamento de Descartes, que o cientista deve

submeter-se à disciplina do método, e a dúvida metódica como procedimento fundamental

para a ciência. Existe, para o pensamento cartesiano, um pequeno número de regras, que se

forem seguidas efetivamente, nos garantirão a “verdade primeira e indubitável”.12 Portanto,

cabe ao homem dar sentido às coisas, pois ele é o centro irradiador da certeza, sendo a

natureza (o mundo) um mero objeto manipulável.13 Descartes introduz o conceito de máquina,

o que vai produzir uma função extremamente utilitarista ao ser vivo, à natureza, ao mundo, ou

seja, tudo tem um fim em si mesmo (FENSTERSEIFER, 2001).

O conceito de máquina, introduzido por Descartes, vai influenciar toda a estruturação

da sociedade e, posteriormente, seus princípios serão criticados ou reforçados por diferentes

correntes filosóficas. O pensamento pedagógico será fortemente influenciado não apenas

pelas alterações econômicas e sociais provenientes dessa maquinização, mas também, e

diretamente, pelo estado em que se encontram as discussões filosóficas. O século XIX passa a

ser um terreno fecundo quanto à propagação e surgimento de novas teorias e fundamentações

científicas e pedagógicas. O progresso das ciências, fundado nos conceitos de Descartes

desencadeia transformações “tão sensíveis que parecem marcar a origem de uma nova

História Universal.” (LARROYO, 1974).

O século XX é tributário das idéias dos séculos que o precederam. Neste sentido, no

decorrer do texto percorremos de maneira breve a história da educação, da filosofia e da

pedagogia. O entendimento que buscamos construir encontra seus fundamentos na crítica ou

valorização de alguns desses aspectos históricos.

12 São as regras da: evidência, análise, síntese e verificação. Ou seja, deve-se garantir que não haja possibilidade de se colocar os princípios em dúvida; há necessidade de decompor o problema para melhor resolvê-lo; realizada a análise necessitamos partir do mais simples para o complexo; e, por fim, verificarmos se nada foi omitido. Estes conceitos foram facilmente aplicados às escolas pelos pedagogos e especialistas em educação. 13 O que se torna essencial para que o homem possa conhecer o mundo, visando domina-lo e transformá-lo. Ocorre, então, uma banalização das dimensões subjetivas.

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1.2 A Pedagogia ou a Formação de Professores no Contexto do Paradigma Dominante

As questões que estamos abordando acompanham a humanidade desde antes da

escola, enquanto local sistemático de conhecimento. Nas sociedades primitivas, mesmo não

existindo escola, existia a educação com o objetivo de promover o ajustamento da criança ao

seu ambiente, no sentido da aquisição dos conhecimentos necessários para a vida e a

integração dos mais jovens à cultura do grupo social. Essa aquisição dava-se através da

imitação consciente ou inconsciente e dos ritos de iniciação, e eram tais ritos que possuíam

um valor educativo especial e estavam cercados de mitos e mistérios. Portanto, cabe dizer que

os primeiros professores, os mais primitivos, eram as pessoas às quais cabia a direção das

cerimônias de iniciação; primeiramente, os chefes de grupos familiares e, posteriormente, os

sacerdotes, que poderíamos classificar como os primeiros professores profissionais.

Já as civilizações primitivas construíam seu sistema educacional com base em formas

de pensar bem próprias de sua época e que serviam aos interesses e desafios daquele tempo. A

maior preocupação era com a subsistência e a perpetuação da raça; para isso era necessário

que as crianças fossem educadas em modelos que garantissem esse sistema. Se fizermos uma

viagem através dos tempos veremos que os paradigmas nascem como possibilidade de

equacionamento das necessidades de cada cultura em diferentes épocas.

Vários são os registros históricos que apontam para o fato de que as preocupações com

a educação já se encontravam nos livros sagrados das civilizações orientais. De acordo com

Manacorda (1989), os registros mais antigos e ricos sob diversos aspectos da civilização e,

particularmente, da educação, são originários do Egito.14 Torna-se necessário considerar que

esse povo vivia às margens de um rio, possuía uma agricultura bem desenvolvida e avançada,

o que poderia levar-nos a intuir sobre a existência de escolas intelectuais e práticas dos vários

ofícios (MANACORDA, 1989, p. 10). Mas o que há são registros que provam a existência de

um processo de inculturação reservado às classes dominantes; é uma “escola de formação

para a vida política, ou melhor, para o exercício do poder.” Assim, vemos que nesse período

há uma relação pedagógica em que o mestre ensina ao discípulo as regras ideais de conduta e

orientação para o enquadramento nos sistemas religiosos e morais.

14 Conforme este mesmo autor, o Egito aparece no início de nossa história, se reconhecermos a nossa origem histórica na antiguidade clássica greco-romana.

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Deparamo-nos com alguns temas pedagógicos fundamentais dessa época (que

poderiam ser facilmente aplicados hoje): a educação para falar – falar bem é o conteúdo e o

objetivo do ensino, tendo como pressuposto a palavra que convence, a obediência e o valor da

educação. Posteriormente, além de falar bem, incorpora-se o escrever bem como ideal de

educação. E a palavra escrita acaba por inaugurar o pensamento abstrato, pois os mitos

registrados em papel podiam ser lidos, relidos e analisados (MARQUES, 2002). Os períodos

que se sucedem nos mostram, por um lado, a continuidade de vários aspectos; por outro lado,

ocorrem inovações da educação, tais como: indícios de uma educação institucionalizada, e os

jovens sendo entregues a uma pessoa profissionalmente dedicada a eles. A escola, agora,

apresenta-se melhor definida: “o mestre sentado na esteira e os alunos ao redor dele.”

(MANACORDA, 1989, p.19). Começa a surgir a figura dos primeiros professores (enquanto

função específica e institucionalizada), que são “funcionários” subordinados ao poder

burocrático; e na formação desses é que se consolidam as estruturas do momento educativo,

caracterizado na época pelo processo sistemático, a existência de um encarregado da

formação de jovens, a repetição como método de aprendizagem, dentre outros.

A escola torna-se um espaço diferenciado, onde a criança aprende a imitar um adulto.

O jovem precisa ir à escola e se submeter a um processo institucionalizado.15 Nesse processo

surge a figura do escriba com um ofício diferenciado e, assim, a passagem da sabedoria para a

cultura de erudição, pois sábio é aquele que conheceu a tradição nos livros. Esse processo

passa pela figura do escriba que a partir de então se torna o mestre dos grandes com acentuada

valorização das obras literárias. A educação, que gira em torno, essencialmente, do conteúdo

livresco, tem valor quando surge como possibilidade de o homem melhorar sua natureza. O

método utilizado é o da repetição, até serem decorados os conteúdos, que são casos concretos

da vida. Já nessa época são encontrados, nos registros arqueológicos, um caráter de

arbitrariedade e absurdo que, conforme Manacorda (1989), será conservado pelos exercícios

escolares durante milênios, pois o fundamental era assimilar o automatismo (durante muito

tempo ferramenta primordial da pedagogia).

15 Sobre este aspecto, Manacorda (1989, p. 23) nos traz exemplos de textos desse período recuperados por pesquisadores. Um desses textos diz: “É útil para ti um dia de aula: seu trabalho dura eternamente, como uma montanha”. E outro refere-se à seriedade com que se deve tratar a escola e os ensinamentos: “Se estás saindo da escola após ter sido indicado o meio-dia e estás voltando do edifício (escolar), pára somente quando tiveres chegado ao teu destino. Quem deixa a escola com gritos de alegria, seu nome será efêmero.”

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Por volta do século V a.C. foi criada a palavra grega Paidéia que, inicialmente,

significou a criação dos meninos. Essa idéia sustentou toda a educação romana, que pode ser

subdividida em três modelos:16 a Educação Homérica, a Educação Espartana e a Educação

Ateniense.17 Surgiu, assim, a figura do pedagogo, geralmente um escravo idoso, o qual

conduzia o menino até os locais de ensino. A função do pedagogo era acompanhar o menino

o dia inteiro, ensinando-o a conduzir-se na vida e no mundo, e esta era, segundo Marques

(2002, p. 32), “[...] tarefa mais importante que a da palestra, onde se cultivavam o corpo e a

conduta moral, e que a didascaléia, onde o mestre-escola (gramático) ensinava a leitura, a

escrita e os rudimentos do cálculo.” Interessante notar que esse processo ocorria somente

depois de o menino ter vivenciado os brinquedos no seio da família.

Dando continuidade ao percurso histórico, encontramos na pedagogia romana alguns

traços da pedagogia e da educação grega, tanto na desvalorização do trabalho manual, quanto

na restrição da atividade intelectual (que é direcionada à aristocracia). Por outro lado,

encontraremos, também, traços diferenciais fundamentais. Mas, segundo Manacorda (1989, p.

73), o que caracterizou a educação em Roma foi sua característica de educação na família,

sendo que a figura “do primeiro educador é o pater famílias”.

Vários textos descrevem como, sob o cuidado da mãe ou da nutriz, a criança crescia em casa e com os colegas, entre brinquedos e as primeiras aprendizagens, dos quais ficaram muitos testemunhos escritos e iconográficos. Entre os jogos, por exemplo, Horácio enumera a brincadeira de construir casinhas, de amarrar ratos a um carrinho de tirar par ou ímpar, de andar a cavalo em uma cana; Pérsio lembra o jogo de nozes e, até, o parar de brincar como sinal do fim da infância. (MANACORDA, 1989, p. 75).

Nessa educação com base na família percebemos a importância do caráter lúdico para

a aprendizagem das crianças, mesmo como simples representação e imitação do mundo

adulto. Assim, até os sete anos as crianças permaneciam sob a responsabilidade da mãe;

depois, as meninas permaneciam em casa e os meninos eram entregues à tutela do pai, para

serem instruídos no saber e nas tradições familiares e pátrias.

16 Aqui no sentido de formas de pensar, concepção de educação. 17 Citadas aqui como exemplos de diferentes concepções de uma mesma ação, educar meninos, em diferentes grupos sociais. A Educação Homérica visava à formação do cortês nobre com as características do guerreiro bom e belo. Já a Educação Espartana era mais severa e voltada para a formação militar. Na educação Ateniense, ao lado dos cuidados com a educação física, tornava-se importante também a educação intelectual e artística.

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Com a invasão bárbara, a cultura greco-romana foi quase destruída, sendo preservada

em parte pela influência da Igreja Cristã; ou seja, pela religião foi possível educar os novos

povos. As escolas organizaram-se pelo poder e influência da igreja; a instrução nessa doutrina

e a prática do culto substituíram o elemento cultural. Portanto, a Idade Média caracterizou-se

pela preocupação com a formação do homem de fé, através do ensinamento de regras e

normas de conduta, num processo disciplinador.

Nesse período, a educação nada mais foi do que um meio de se buscar um fim

supremo e determinado: a salvação da alma e a vida eterna. Passou a assumir um cunho

catequético e dogmático, onde o modelo de homem a ser buscado é aquele que se aproximava

de Deus, distante dos prazeres mundanos e das coisas corpóreas. Sendo assim, o corpo,

considerado pecaminoso, necessitava ser dominado para que a alma alcançasse sua salvação.

Mais tarde, com o Renascimento, o mundo subjetivo das emoções, que foi ignorado no

Período Medieval, passou a ter maior valorização. Com a propagação da educação integral do

homem, o ideal educativo passa a ser a educação do homem para o mundo. Novos valores

foram sendo construídos em oposição aos do Período Medieval, portanto, a noção de homem

passou a ser a de um homem completo (de corpo e alma), que retorna às coisas da vida, do

cotidiano. Nas palavras de Montaigne (1984, p. 78; 80-81):

[...] não há outro caminho: quem quiser fazer do menino um homem não o deve poupar na juventude nem deixar de infringir amiúde os preceitos dos médicos: “que viva ao ar livre e no meio dos perigos”.18 Em suma, quero que seja esse o livro do nosso aluno. A infinita diversidade de seitas, juízos, opiniões, leis ensina-nos a apreciar sadiamente os nossos, a reconhecer suas imperfeições e fraquezas naturais, o que já não é pouco.

Consideramos importante situar esses aspectos neste trabalho, pois a nossa cultura e,

por conseqüência, a nossa educação estão permeados pela cultura dessas civilizações mais

antigas. A escola, ao longo dos tempos, em muito reproduziu o sistema de educação grega (e

também no sistema grego encontramos aspectos da educação no antigo Egito), sustentando

sua postura nos paradigmas vigentes em cada época.

18 Montaigne é um dos grandes pensadores dessa época, apesar de não ter produzido uma obra especificamente pedagógica; no seu texto Ensaios acaba por dedicar alguns capítulos à educação. Sua maior preocupação residia no fato de que a educação de sua época encontrava-se desligada da vida.

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A pedagogia do século XVII, por exemplo, estava articulada com o iluminismo, que

partia do emprego da razão como única forma de juízo, não aceitando o que não fosse

explicado pela inteligência humana. Nessa perspectiva de pensamento vamos encontrar as

idéias de Hume, para quem tudo se explicava por associação de idéias (numa posição

claramente empirista); e também de Wolff, que assinalou que a educação tinha que ter um

caráter utilitário e estar a serviço da felicidade humana (LARROYO, 1974).

Vico situou a crítica ao Iluminismo e à pedagogia cartesiana a partir da idéia de que a

pedagogia fundamenta-se na ordem histórica, onde predominam, primeiro, as etapas do

sentido e da fantasia e, depois, as da razão. Processo inverso ao dos cartesianos que, segundo

Vico, colocavam as verdades primeiras e abstratas à frente de todas as imagens sensíveis. Para

ele as crianças são poetas antes de realizarem raciocínios lógico-abstratos. Vico vislumbrou o

método ativo de ensino a partir da concepção de que só se conhece verdadeiramente o que se

faz, e de considerar o homem de maneira concreta, iniciando uma nova idéia de um homem

como microcosmos19 (LARROYO, 1974).

Outra grande contribuição foi a de Rousseau, que desmistificou a idéia de que a

criança é um adulto pequeno, um estágio transitório, alguém que ainda vai ser. Rousseau é

considerado o profeta do romantismo por colocar-se radicalmente contra o intelectualismo da

época das luzes. Combater o extremo artificialismo na educação só é possível a partir da

compreensão e da valorização da existência de acordo com a natureza, e para este autor a

natureza é entendida como vida original, sem influência das convenções sociais. Rousseau

concebe os princípios de uma educação como processo vital, que dura a vida toda, pois é

constituinte do ser humano e tem valor em si mesmo e não como preparação futura, eviden-

ciando que a essência da educação reside no fato de ensinar a criança a aprender a pensar.20

Tais concepções, de determinados períodos históricos, retratam os paradigmas

vigentes e emergentes em cada época. Demonstram o esforço e a busca de uma compreensão

dos procedimentos de ensinar, aprender e conhecer em cada época. E, à medida que se

institucionaliza, a escola enquanto produtora de conhecimento, a função do professor, enquan-

to sujeito que coordena os processos de conhecer, torna-se a grande questão da educação.

19 Talvez aqui se encontrem os primeiros indícios de possibilidade de um pensar complexo em se tratando de processos educacionais. 20 Rousseau foi muito criticado por seus pensamentos de cunho naturalista, por ter se preocupado com uma educação de certa forma elitista; entretanto, apresenta significativas contribuições para a educação de sua época.

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Desde há muito tempo as mudanças nas relações entre os homens torna a educação suscetível

a transformações e vice-versa. Entretanto, essas mudanças são realizadas a partir de funda-

mentações até certo ponto contraditórias e ambíguas, pois muitas vezes a educação enquanto

processo efetivado na prática não condiz e até se contrapõe às aspirações teóricas. Assim,

muitas das idéias presentes na educação foram sendo incorporadas às práticas e aos discursos.

Há uma urgência em redimensionar a práxis pedagógica que se apresenta e justifica a

partir do reconhecimento de que vivemos um momento de crise: crise de valores e de

paradigmas. Uma crise que atingiu não somente a educação, mas que se configura como a

crise da modernidade, pelo fato desta optar pelos dualismos21 que se acentuam com o

paradigma cartesiano. Quando esse paradigma começa a entrar em crise, surge a necessidade

de reestruturação da educação a partir de uma abordagem mais complexa que considere as

diferentes possibilidades de pensamento e de um sujeito que se constitui enquanto ser

histórico.

O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível com uma reorganização do saber; e esta pede uma reforma do pensamento que permita não apenas isolar para conhecer, mas também ligar o que está isolado, e nela renasceriam, de uma nova maneira, as noções pulverizadas pelo esmagamento disciplinar: o ser humano, a natureza, o cosmo, a realidade. (MORIN, 2001, p. 104).

Todavia, devemos considerar que toda a formação do educador foi alicerçada em um

paradigma da simplificação, da disjunção e da redução, fundado em verdades absolutas e que

primou pela lógica da produção. O paradigma cartesiano deixou-nos muitas heranças,

algumas das quais positivas se consideradas isoladamente, outras com conseqüências e

implicações sérias. O pensamento cartesiano, como já vimos anteriormente, é alicerçado na

decomposição do todo em partes mais simples para que a verdade seja alcançada. Supõe que a

disposição dos fatos em ordem lógica e a matematização são os caminhos para se alcançar o

conhecimento, reforçando a supremacia da capacidade mental e da abstração. Instaura-se,

assim, o dualismo corpo e mente, com a supremacia da mente sobre o corpo, pois somente ela

é capaz desse raciocínio abstrato, necessário ao conhecimento técnico-científico.

Dentre as conquistas do pensamento cartesiano estão os inúmeros e significativos

avanços tecnológicos da modernidade. O risco torna-se eminente quando a este paradigma é 21 Os pressupostos cartesianos fazem emergir não só o dualismo corpo/mente, mas também outros tantos decorrentes: normal/patológico, velho/novo, louco/sensato, entre outros.

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delegado o poder da verdade absoluta, e seu método passa a ser o único com caráter de

reconhecimento. Esta proposição provocou a fragmentação de nossa maneira de conhecer,

direcionando a nossa educação a uma supervalorização de algumas disciplinas em detrimento

de outras (MORAES, 2003b). E foi esse o caminho trilhado pela educação em geral e, mais

especificamente, pelos cursos de formação de professores, que nas últimas décadas têm

encontrado suas raízes em dois grandes eixos: nos conteúdos a ensinar e em como atuar com

eficácia em sala de aula. É nesse período que surgem os cursos de capacitação, alicerçados no

treinamento, nas fórmulas facilmente aplicáveis e que pressupõem o resultado perfeito. Há

uma profunda dicotomização entre aqueles que “pensam”, quer seja os avanços científicos e

tecnológicos ou a educação, e aqueles que executam ou põem em prática essas idéias. Em

nome de uma racionalidade técnica e instrumental, surge a tecnocracia, ou a aplicação de uma

tendência tecnicista quanto ao planejamento e organização do trabalho pedagógico.22

Acima da questão da formação dos educadores coloca-se freqüentemente o problema dos métodos mais adequados ao ensino, numa concepção ritualística de método, cujo receituário exigiria apenas dóceis e hábeis aplicadores em práticas definidas por outrem. (MARQUES, 2000, p. 15).

Surge a figura do professor como mero “aplicador” de técnicas para que os alunos

possam melhor aprender o que está determinado como essencial e importante. Diversos cursos

de formação de professores (tanto em nível de magistério no ensino médio, quanto os cursos

universitários), são produto e produtores desse discurso e dessa prática. Segundo Lampert

(2000, p. 38), a universidade tem dado uma grande contribuição neste sentido: “a

universidade, durante seus novecentos anos de existência, tem sido influenciada pelos

modelos paradigmáticos vigentes, ao mesmo tempo que ela também os influencia.” Não se

trata, portanto, de buscar culpados na tentativa de encontrar uma possibilidade de solução para

os problemas, mas de identificarmos as situações problemáticas e, a partir de então, buscar

novas possibilidades.

O século XX também se configura como um terreno riquíssimo quanto à produção

educacional e pedagógica, que passa a receber os efeitos da psicologia, do conhecimento dos

processos de pensamento da criança (aluno), tendo como conseqüência imediata a

22 Para Marcondes (1997, p. 234), são os pensadores da Escola de Frankfurt, inspirados na obra de Marx, que vão construir uma teoria crítica do conhecimento e da sociedade. A crítica fundamental é direcionada à racionalidade técnica e instrumental e contra ela seria necessário desenvolver uma razão emancipatória fundada na crítica da dominação e “em nome da comunicação e do consenso entre indivíduos racionais livres.” O que se constitui em uma grande contribuição para a discussão do papel da educação neste século.

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preocupação com os métodos de ensino. Vários são os estudiosos dessa época preocupados

com a educação e com a escola. Dentre eles, Dewey.23 Para este filósofo, o conhecimento não

tem um fim em si mesmo, encontra-se voltado para a experiência. As idéias têm caráter

instrumental no sentido de elucidar os problemas advindos da experiência humana; neste

sentido, a escola não é preparação para a vida, mas é a própria vida. Encontramos nas idéias

desse filósofo os primeiros indícios de construção de uma autonomia dos sujeitos, quando ele

preconiza o estímulo ao espírito de iniciativa e independência, fortemente marcado pelo ideal

de democracia da época.

A partir deste panorama histórico, não podemos deixar de considerar que chegamos no

momento de crise na formação de professores. Várias são as questões levantadas e as

possibilidades sugeridas pela atualidade, mas nos parece que a questão fundamental a ser

definida é: em que consiste ou de que depende uma atividade docente comprometida com os

desafios da educação deste século? Não acreditamos ser possível uma única resposta, o que

significaria estarmos cientes de que o pensamento cartesiano ainda responde aos conflitos

atuais. Mas se o modelo cartesiano de conhecimento e de formas de conhecer é insuficiente,

que novas bases são necessárias? Se não são mais suficientes a formação técnica e

instrumental de especialistas limitados à aplicação de técnicas, como transpor essa barreira?

Que possibilidades podemos vislumbrar para os processos educacionais, sem cairmos no

reducionismo dos receituários e da aplicação de técnicas?

Tantos entraves poderiam levar a crer que é chegado o momento de esgotamento da

concepção de modernidade, de educação, do papel do educador e de sua formação, um fim

anunciado próximo ou já instalado. Estaríamos, assim, assumindo mais uma vez uma postura

simplista de um paradigma fechado, que nos normatiza e descarta qualquer possibilidade de

reflexão. Não teríamos, então, necessidade de pensar os desafios da educação contemporânea,

pois vivemos (sob esta ótica) um caos, sem espaço para discussões e construções.

Entendemos que a questão fundamental da educação apresenta-se no contraponto

dessa lógica, na negação desse princípio de fim e acabamento, de verdades absolutas e fecha-

das. Acreditamos ser este o grande desafio da educação: buscar novas alternativas de pensar o

23 Filósofo americano, John Dewey contribuiu na construção dos princípios da Escola Nova. Faz uma crítica à supremacia do intelectualismo e à memorização na educação, e preconiza que o esforço e a disciplina são conseqüências do interesse de quem aprende.

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conhecimento, a educação, a formação do educador e os processos de aprender/ensinar/

brincar. Neste sentido, o que se apresenta é uma nova lógica, fundamentada na interação dos

sujeitos envolvidos nos processos de produção/sistematização do conhecimento, sendo

necessário considerar todas as dimensões aí implicadas. Processo esse, o da interação, que se

efetiva no campo fecundo da comunicação entre os sujeitos, num constante compartilhamento

de saberes, constituídos a partir do mundo da vida de cada um e de todos os sujeitos.

Aqui situamos o que consideramos ser uma das grandes questões da educação

contemporânea: como dar conta dos desafios que se apresentam? Que respostas ou caminhos

construir para uma experiência que é única e complexa, que se dá a cada nova interação, a

cada mediação?

Para compreendermos a importância fundamental que estas questões assumem é

necessário considerarmos que, a partir da segunda metade do século XX, o paradigma

moderno não corresponde mais às exigências e expectativas da leitura e compreensão da

realidade. É premissa básica fundamentar o conhecimento numa racionalidade complexa,

sendo que, para Morin (1986, p. 142), o “uso pleno da racionalidade efetua-se no diálogo com

um real que não é totalmente racionalizável.”

A realidade de nossas escolas e da educação é multifacetada, por vezes contraditória,

mas extremamente fecunda do ponto de vista da construção/reconstrução de saberes, dos

processos de aprender e ensinar, considerando os elementos da cultura. É nesse espaço que

“acolhemos” as crianças, que pretendemos dar conta do ingresso no mundo institucionalizado

e ordenado, sem perdermos de vista a magia e o encantamento da infância.

Concluindo estas reflexões, podemos dizer que não é mais o acúmulo de

conhecimentos a única função dos cursos de formação de professores, assim como não é mais

viável a obsessão do mundo moderno por evitar o erro. Acreditamos que os princípios que se

enunciam exigem uma educação e um processo de formação de professores diferentes do que

conhecemos hoje. O que implica uma mudança nas relações entre professor/aluno/

conhecimento, mudança que necessita estar fundamentada em outras bases, capazes de

superar a barreira do conhecimento enquanto componente teórico e instrumental-prático.

Portanto, no capítulo seguinte traçaremos as bases conceituais do que consideramos ser uma

alternativa para superara tais entraves.

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CAPÍTULO II – A EDUCAÇÃO E UM PARADIGMA EMERGENTE

2.1 Teoria da Complexidade: bases conceituais de um paradigma emergente

Tomemos por paradigma emergente o da complexidade. Mas como defini-lo? O

paradigma da complexidade encontra sua fundamentação nas idéias de Morin,24 que preconiza

a necessidade de um pensar complexo, tanto com relação ao mundo, à sociedade, quanto,

como no caso específico deste trabalho, com relação à educação, à ludicidade e ao brincar. E

para que possamos pensar a questão do paradigma emergente e da educação existem alguns

aspectos fundamentais, os quais necessitamos aprofundar.25 Tais aspectos dizem respeito à

questão do método, ao sentido da noção de complexidade e à noção de que vivemos em uma

era planetária.

Assim como Descartes inaugura as bases do pensamento moderno com a questão do

método como única possibilidade de se chegar às certezas indubitáveis, para Morin a questão

do método também é de fundamental importância na compreensão do pensar complexo. A

grande preocupação do pensar complexo (como base fundamental do paradigma da

complexidade) é, justamente, a desconstrução da concepção clássica de método, alicerçada

nas idéias de Descartes pois, para Morin (1996), o método é muito mais uma atitude

estratégica do pensamento que pressupõe um fazer-se no caminho. A idéia de estratégia está

relacionada à de aleatoriedade, tanto no objeto quanto no sujeito. O objeto, por ser complexo,

24 Edgar Morin desenvolveu estudos universitários em direito e, como autodidata, em diversas outras áreas (história, filosofia, geografia e sociologia). Nasceu em 08 de julho de 1921, em Paris, e pôde testemunhar todas as revoluções e reviravoltas do século XX. É em 1999 que suas obras vão abordar mais especificamente as questões educacionais, quando ele é convidado a auxiliar nas reflexões acerca das necessidades para a Educação do novo Milênio. 25 Esses aspectos são essenciais para que possamos elaborar o que seria a síntese do pensamento complexo, sem cairmos na simplificação.

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e o sujeito porque necessita dessa característica (aleatoriedade) para prosseguir na construção

de um pensar complexo. O que acaba por estabelecer uma diferença crucial entre método e

metodologia, sendo que esta, nos parece, tem seus fundamentos no método de Descartes. Para

Morin (2003a), o método surge, como já escrevemos, como estratégia de pensamento e não

como um conjunto de disposições e regras a serem seguidas impreterivelmente na busca de

resultados. Diferentemente, o método para Morin (2003a) considera a coexistência de

determinismos e acasos, ordem e desordem, sendo necessária, à atividade pensante, a

experiência e o ensaio. O pensar complexo pressupõe a experiência do ensaio, pois a mesma

nos permite a tomada de consciência durante a jornada, e o reconhecimento do caráter

provisório de todo o conhecimento, resistindo ao fragmento e à totalidade. Já não podemos

alicerçar nossas buscas e descobertas em certezas e verdades absolutas, produto e produtoras

de conhecimentos e saberes que permitem a construção de um processo de aprendizagem

fragmentado e reducionista. Ou seja, essa experiência pressupõe que nossa busca seja pautada,

também, pela ausência de certezas e fundamentos inquestionáveis e inabaláveis.26 O que

poderia ser explicado pela afirmação de que “o fundamento de nosso método reside na

ausência de qualquer fundamento.” (MORIN, 2003a, p. 20). Inicia-se, a partir destas idéias,

um embate conceitual contra a racionalização do método, preconizado pelo pensamento

moderno e pelo paradigma da simplificação.

A palavra “método” possui, como significados fundamentais: qualquer pesquisa ou

orientação de pesquisa, ou uma técnica muito particular de pesquisa. Podemos então

considerar que, originalmente, a palavra “método” significa um caminho a ser seguido para

chegar a algum lugar. O que não equivale a dizer que o caminho será sempre o mesmo, e que

já sabemos por antecipação onde vamos chegar; tampouco podemos considerar que essa

concepção de método tenha como pressuposto básico a improvisação, o estar a caminho sem

perspectivas, mas sim o reconhecimento de que esse caminho e essas perspectivas se

dissolvem e se refazem no próprio caminhar. O caminho só existe quando por ele passamos e

isso mostra a complexidade da vida e do educar, fazendo-nos compreender que se o método

existe (é essa a aposta que fazemos), ele necessita de estratégia, iniciativa, invenção e arte;

portanto, só pode ser construído no processo para ser formalizado no final.

O método, para Morin (1996), passa a ser uma busca que só concretiza seu papel

fundamental a partir da intervenção do sujeito; ou seja, é a práxis subjetiva e concreta, a 26 Não se trata de fazer a negação de conhecimentos e verdades, mas sim reconhecermos o caráter provisório e transitório dos mesmos e de nossa capacidade de tudo conhecer.

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atitude pensante e consciente, que assume características de reflexividade, constituindo-se em

uma atividade reorganizadora necessária à teoria. Portanto, esse é um sujeito diferente do

proposto pelo pensamento cartesiano, é um sujeito que participa da construção do

conhecimento utilizando não apenas a razão, mas também as sensações e intuições. Ou seja, é

um sujeito que necessita colocar-se no centro de seu próprio mundo e ocupar seu lugar de

“eu” (MORAES, 2003b). Originariamente, o indivíduo, do latim individuum, significa, em

sentido físico, “o indivisível, o que não pode mais ser reduzido pelo procedimento de análise”

(ABBAGNANO, 2003). E para o paradigma da complexidade e o pensar complexo, o

indivíduo não pode mais ser concebido a partir da ótica dualista corpo/mente, razão/emoção.

A virada conceitual encontra seu eixo fundante no fato de que somos uma unidade, mais que a

soma de particularidades. Corpo/mente, razão/emoção, são constituintes de um ser individual

dotado de qualidades de sujeito. Para tanto, Morin (2000, p. 108) considera o indivíduo a

partir de sua evolução, centrado nos aspectos biológicos, como suporte para outras discussões.

Assim, refere-se ao homem (indivíduo) como “sapiens/demens”, caracterizando-o como:

[...] um ser duma afectividade intensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário [...] um ser subjectivo cujas relações com o mundo objectivo são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e à vagabundagem, um ser úbrico que produz desordem.27

O indivíduo é constituído pelo erro, pela certeza, pela incerteza, pela ordem e pela

desordem, é um ser que se encontra em permanente estado de evolução, construção e recons-

trução, num processo de auto-organização. Quando fala da natureza humana, Morin (2000, p.

145) lança uma pergunta: “O que é o homem?”, encontrando explicações para além das

fronteiras biológicas e evolucionistas, ressaltando a necessidade de ligarmos o homem, antes

dicotomizado: Precisamos de ligar o homem razoável (sapiens) ao homem louco (demens), ao homem produtor, ao homem técnico, ao homem construtor, ao homem ansioso [...] numa cara com muitas facetas, em que o hominídeo28 se trans-forme definitivamente em homem. [...] Esta diversidade só pode ser compre-endida a partir de um princípio simples de unidade. Ela só pode encontrar-se na unidade de um sistema hipercomplexo (MORIN, 2000, p. 145).

27 Esta caracterização surge como explicação para o fato de Morin considerar o homem como sendo, ao mesmo tempo, sapiens e demens, da categoria da ordem e da desordem, objetivo e subjetivo. 28 A esse respeito vale ressaltar que Morin considera que a ciência do homem ainda não surgiu, mesmo que o homo sapiens existia há cerca de 100.000 a 50.000 anos, que a cidade e o estado existam há cerca de 10.000 anos e a filosofia há 25.000 anos. Segundo ele, vivemos ainda na idade de ferro planetária (MORIN, 2003a).

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O grande embate conceitual situa-se, também, nessa perspectiva de sujeito que se

constitui a partir de suas vivências e experiências, decretando o fim de uma noção de homem

desvinculado da natureza (sua própria) e possuidor de uma visão pretensiosa e exacerbada de

sua própria racionalidade (MORIN, 2000). Para o paradigma da complexidade, é impossível

separarmos a espécie, o indivíduo e a sociedade29; é preciso compreender que a verdadeira

realidade do homem “se encontra não só nesses três termos, mas também nas suas inter-

relações.” (MORIN, 2000, p. 196). Além disso, é necessário considerarmos que essas relações

são sempre de caráter complementar, antagonista e incerto, e o homem é exatamente o

produto desse “jogo incerto”, sendo que sua ação torna-se produtora desse jogo (MORIN,

2000, 2003a, c).

Há algo mais a ser considerado nessa concepção de indivíduo, no paradigma da

complexidade. “É preciso considerar, na feição do homem, o mito, a festa, a dança, o canto, o

êxtase, o amor, a morte, o despropósito, a guerra.” (MORIN, 2000, p. 200). Ou seja, é na

dialética desses opostos, não contraditórios, mas complementares, que se encontra o homem.

O homem constitui-se, também, na incerteza, na desordem e nas sensações, que por muito

tempo foram excluídas do processo de busca do conhecimento. O sujeito constitui-se a partir

da unidade, mas também da diversidade humanas. Ainda vivemos um dilema quanto às

questões da diversidade e unidade, sendo difícil não incorrermos no equívoco de

considerarmos a extrema diversidade dos indivíduos a ponto de negar sua individualidade ou,

por outro lado, a de individualizarmos tanto que não seja possível assumir uma identidade de

grupo, tornando-se algo muito heterogêneo. Há que se reconhecer que, mesmo com

características individuais, fazemos parte de um todo, do qual somos produto e produtores.

Não rejeitando esses aspectos do indivíduo, estaremos entrando no fecundo terreno da

complexidade, que parte do pressuposto de que o sujeito se constitui nesse caminho de ida e

volta, nessa possibilidade de reconhecer o positivo no negativo, na conexão entre opostos que

não elimina, nem anula a oposição e, tampouco, determina a obrigatoriedade de conexão entre

esses opostos. Portanto, conhecer o humano, o sujeito, não é separá-lo da sociedade, do

universo, mas situá-lo nesse contexto.

A partir dessas afirmações, assumimos a possibilidade de uma transfiguração, pois

qualquer experiência e qualquer método trazem em si a “bagagem vivida”. E quando

29 No paradigma dominante (cartesiano) a separação é imprescindível, sendo a espécie remetida à biologia, o indivíduo à psicologia e a sociedade à sociologia, numa fragmentação de saberes e conhecimentos.

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passamos à formalização do método, retornamos ao início de nossa viagem, mas aí já não

somos mais os mesmos: ao retornarmos, marcados pelas experiências e descobertas, somos

outros. Fica então a pergunta: que implicações pode ter para a educação essa nova perspectiva

de sujeito? Um sujeito capaz de lançar-se na busca, reconhecendo a complexidade e o caráter

provisório e frágil das verdades descobertas? Na busca destas respostas não podemos

esquadrinhar o método, reduzi-lo a um programa, normas ou a constatação pessoal. Transpor

a barreira dos pragmatismos, dos reducionismos e da trivialidade do discurso acadêmico, da

formação de professores, dos processos da vida, requer um pensar que assuma o risco, o erro e

a transitoriedade.

Outra perspectiva se apresenta então, a perspectiva complexa, que necessita de uma

melhor compreensão, para não cairmos novamente no reducionismo de afirmar que tudo é

complexo, no sentido de complicado. O termo complexidade deriva do adjetivo complexo, do

latim “com+plexus”, que significa tecido junto, o que nos sugere a idéia de algo entrelaçado e

indivisível, com a intenção de conexão. É a partir daí que se estruturam o que podemos

chamar de pilares fundantes da complexidade, princípios30 inovadores e que exigem uma

reviravolta epistemológica (MARTINAZZO, 2002). Isso porque trazem para a discussão

concepções que não se enquadram nos moldes do pensamento moderno, de uma razão

extremamente técnica e instrumental. Além de não excluir as variações, os “ruídos”,

pressupõe um conhecimento que se opõe às idéias reducionistas, permitindo um

conhecimento de processos reguladores do próprio conhecimento.

Pensar as questões da educação sob esta ótica requer um esforço no sentido de romper

com alguns conceitos, reestruturando-os. Pode parecer, a princípio, que todo o pensamento

complexo estrutura-se num caos absoluto, onde nada é certeza, nada é dúvida, e tudo está por

se fazer e desfazer, não existindo teoria. É necessário compreender que o pensar complexo

supõe uma outra lógica de estruturação do pensamento, um olhar as coisas a partir de outra

perspectiva. Pensar a partir dos princípios da complexidade propostos por Morin não significa

a negação de teorias, verdades, métodos e conhecimentos; pensar sob o olhar da

30 Em várias de suas obras Morin destaca como pilares da complexidade os princípios: sistêmico ou organizacional (liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo), hologramático (a parte está no todo e o todo inscrito na parte), do círculo - recursão organizacional (os efeitos não são resultantes de uma só causa e vice-versa), do circuito reversivo (os produtos e os efeitos são produtores e causadores daquilo que os produz), da auto-eco-organização (autonomia/ dependência – só é válido para os humanos – viver de morte e morrer de viver), dialógico (pressupõe a existência de duas lógicas antagônicas, porém não excludentes) e da re-introdução do conhecimento em todo conhecimento (opera a restauração do sujeito).

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complexidade requer uma mudança de referencial. Um método não é um guia para a pesquisa,

ele se constrói nela; a teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimento: a teoria não é

uma solução mas sim a possibilidade de se tratar um problema (MORIN, 2003b). A teoria

passa a ser vista, também, como possibilidade de um ponto de partida, e não somente um

ponto de chegada; possibilidade de se tratar um problema, e não como solução do mesmo. Ou

seja, a teoria só existe a partir da atividade mental do sujeito, conferindo ao método um papel

indispensável. Fica estabelecida uma relação recursiva entre método e teoria, ou seja, o

método que é gerado pela teoria regenera a própria teoria, tornando-os, método e teoria,

componentes indispensáveis e indissolúveis do pensamento complexo.

Esta outra perspectiva de conceitualização da teoria pressupõe outro aspecto

fundamental do pensamento complexo, que é a precariedade do pensar e a incorporação do

erro no processo de construção de conhecimento. Se antes não nos era permitido errar, pois as

verdades eram absolutas, agora se faz necessário considerarmos o erro a partir de uma visão

diferente da verdade. E aqui trabalhamos com a perspectiva de que os conceitos são

possibilidades, traduções e interpretações do real, construções humanas suscetíveis ao erro. O

erro passa a ser um problema prioritário, que transforma o problema da verdade, mas não o

destrói; o que se configura é que o “caminho da verdade é uma busca sem fim” (MORIN,

2003a, p. 27). Assim, reconhecemos um dos pressupostos de um pensamento complexo para a

vida, que é a dependência da verdade às condições de sua própria existência (com a morte de

todos os sujeitos não existirá mais verdade). O método surge, assim, como estratégia de

pensamento e sua complexidade situa-se na perspectiva de que ele também é conhecimento,

gera suas próprias estratégias e, portanto, pressupõe a reflexividade. A reflexividade é uma

propriedade dos sujeitos,31 como possibilidade de conhecimento e aprendizagem num

processo de ensaio de estratégias para respostas às incertezas. Entretanto, o método não é

somente estratégia dos sujeitos.

A complexidade encontra seu fundamento nessa perspectiva ou nesse princípio de

ambigüidade, de algo que é produto e produtor, da possibilidade de romper com a

simplificação sem rejeitá-la, do reconhecimento da impossibilidade e da necessidade da

síntese. Podemos chamar esse processo de essencialmente dialógico,32 “a tragédia do saber

31 O sujeito está inserido na realidade que procura conhecer, é produto e produtor dessa realidade, portanto, não é possível pensarmos em método sem sujeito ou vice-versa. 32 Dialógico porque pressupõe a presença de duas lógicas a princípio antagônicas e contraditórias.

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moderno” (MORIN, 2003a, p. 40); podemos também ignorar essa tragédia ou reconhecer as

perspectivas do paradigma da complexidade. Quando falamos em educação, aprendizagem e

ensino, não podemos desconsiderar o princípio do inacabamento, pois é no reconhecimento

dos limites, das dificuldades, no ensaio do erro, que se encontra a riqueza do processo de

conhecer.

À medida que aceitamos o princípio de inacabamento do conhecer, corremos o risco

de acreditar que a complexidade pressupõe o descomplicar, acatando todas as possibilidades

numa confusão, num caos teórico. Trata-se de superar a visão causa e conseqüência no

interior de um sistema de análise linear (para cada causa uma conseqüência isolada e vice-

versa). Existe uma relação entre complexo e confuso, complicado, mas essa definição não nos

interessa, a não ser sob o ponto de vista da perplexidade, de seu aspecto perturbador no

sentido de modificar, desarranjar, da desordem e da ambigüidade porque o que é complicado

pode reduzir-se a um princípio simples: a aplicação de algumas regras básicas estruturadas

cartesianamente seriam suficientes para explicar, por exemplo, por que o mundo é

complicado. Considerando estas explicações lógicas e formais como suficientes, cairíamos

num reducionismo teórico. Pode-se afirmar que o que é complexo recupera o mundo

empírico, a incerteza e a incapacidade de se conhecer a ordem absoluta (MORIN, 2003a, b).

Faz-se necessário trabalhar com outra categoria de conceitos, pois o complexo

compreende um conceito mais rico do que o da lei do determinismo, ao considerar a

inconstância e o movimento do sistema no qual está inscrito. Existe, sim, uma ordem

presente, mas uma ordem que não se constrói em regras de linearidade; é, antes, uma ordem

produtiva. De acordo com os princípios da complexidade, ao complexificar-se a idéia de

ordem se relativiza, pois rompe com a idéia de que há ciência apenas do geral, a qual pode ser

explicada por regras, fórmulas e argumentos genéricos.

Impõe-se uma das grandes questões para aqueles que se envolvem com a educação e

os processos de aprender na atualidade, nestes tempos de pós-modernidade: qual a missão da

educação, na era planetária?33 É necessário que pensemos esta e outras questões a partir da

33 Morin alerta-nos que para entender a era planetária é preciso conceber uma história geral da humanidade. De acordo com o autor, a era planetária começa com a descoberta de que a terra não é mais do que um planeta e de que há comunicação entre as diversas partes desse planeta. Por estar enredada na violência, a era planetária caracteriza-se pela destruição, exploração. Morin caracteriza essa como a idade de ferro planetária, na qual ainda nos encontramos, para isto situa: o processo de ocidentalização do mundo; a mundialização das idéias do

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possível emergência de uma sociedade-mundo que demanda solidariedade. A idéia de uma

sociedade-mundo, de uma era planetária, de uma sociedade planetária, está inscrita na noção

de terra-pátria, que “significa a matriz fundamental para a consciência e sentimento de

pertença que liga a humanidade com a Terra.” (MORIN, 2003a, p. 89). Da pertença a uma

pátria é que emerge o conceito de comunidade fraternal, como uma idéia de filiação afetiva.

Entretanto, o “planeta ainda não é Terra-Pátria”. De acordo com Morin, a sociedade-mundo

encontra-se em processo de gestação, e é aqui que podemos situar o papel importante da

educação nesse processo.

É de fundamental importância que a educação constitua-se em força propulsora da

construção dessa sociedade-mundo, onde os sujeitos estejam conscientes de seu inacabamento

e de seu papel de produtores da sociedade. Afirma-se mais uma vez a noção de complexidade

também na educação, pois a complexidade é muito mais um problema, um desafio, e não uma

resposta. E aos educadores caberá encontrar os caminhos possíveis, encarando sua práxis não

como mera função ou profissão, mas sim como tarefa política por excelência, uma missão de

transmissão de estratégias para a vida (MORIN, 2001, 2003a, c). Entra em cena o que não

encontramos em nenhum manual ou referencial teórico, que é o prazer pelo ensino, o amor

pelo conhecimento e pelos alunos. Então, do que depende uma atividade docente

pedagogicamente competente e politicamente comprometida com o paradigma da

complexidade? Que docentes formamos hoje?

Vivemos numa época, ao mesmo tempo, profícua e contraditória, porém, pensamos de

forma linear, objetiva, alicerçada nos princípios de um pensamento fragmentado, que exclui o

contraditório e o diferente, que serviu e serve ainda de fundamento para nossa formação de

educadores. Mas não é possível parar o barco, analisar os mapas e seguir viagem depois de

acertada a rota mais segura, mesmo porque os ventos nem sempre sopram a nosso favor e as

correntes marítimas se modificam constantemente. É necessário termos algumas estratégias

traçadas e Morin aponta alguns eixos estratégicos para que possamos organizar a informação

humanismo (no séc. XVIII o humanismo das luzes confere a todo ser humano um espírito apto para a razão, conferindo-lhe igualdade de direitos); a teoria evolucionista de Darwin, que torna todos os seres humanos descendentes de um mesmo primata; a tendência em separar as raças numa hierarquia de valores. O progresso torna-se a grande lei da evolução humana, alicerçado na ciência e na razão. Morin segue na sua caracterização da idade de ferro da era planetária citando grandes acontecimentos históricos, como a primeira Guerra Mundial, a Guerra Fria, a deterioração do mito do socialismo real, procurando analisar os efeitos dos mesmos na evolução da humanidade. De acordo com Morin, no início do século XXI “os erros e horrores da Idade de Ferro Planetária não se dissipam e sim ganham maior violência ao lado de outro fenômeno mundializado: o terrorismo global.” (MORIN, 2003a, p. 81).

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e a dispersão do conhecimento na busca dessa sociedade-mundo. Tais eixos estratégicos estão

enraizados nos princípios da complexidade e do pensar complexo, e supõem a capacidade de

trabalho com duas lógicas, a princípio antagônicas e excludentes, como a da ação

conservacionista e da ação revolucionante que, para o pensamento complexo, são antagônicas

e complementares. A idéia de ação conservacionista supera a ação de preservar as

diversidades culturais e naturais, preservando também a vida da humanidade. Uma ação

revolucionante sugere a idéia de mudança. Também supõe a resistência ao retorno dos

aspectos de barbárie da era planetária, configurando-se num vínculo recursivo dialógico entre

resistência, conservação e revolução. Para tanto, faz-se necessário problematizar e repensar o

desenvolvimento, considerando-o do ponto de vista antropológico, porque o verdadeiro

desenvolvimento é o desenvolvimento humano.34 O desenvolvimento humano, enquanto

tarefa da educação, encontra suas bases nos processos que permitem a reinvenção do futuro e

o regresso do passado, pois a “renovação e o aumento da complexidade da relação

passado/presente/futuro deveriam inscrever-se como uma das finalidades da educação.”

(MORIN, 2003a, p. 106).

Em educação temos a tendência de trabalharmos num lapso de tempo, onde sempre

pensamos criticamente o passado e projetamos euforicamente o futuro. Falta-nos a capacidade

de viver o tempo presente, sem a carga da explicação linear disjuntiva e redutiva.35 Estamos

sempre olhando para trás com o objetivo de não repetir no futuro os erros cometidos,

esquecendo-nos de pensar a nossa ação presente de maneira reflexiva. Para que possamos

ultrapassar os limites de uma reforma paradigmática superficial, que encontra eco apenas em

discursos, é inevitável que mergulhemos nas possibilidades do real, do possível, pois assim

seremos capazes de produzir o sonho e buscar o que agora parece ser impensável. A reforma

da educação, para a busca desta sociedade-mundo e da efetivação de um pensamento

complexo no educar, é urgente e demanda novas ferramentas conceituais e metodológicas,

sendo que aqui compreendemos o método sob a ótica da complexidade, abordado

anteriormente.

34 Para Morin, a Educação deve colaborar para a superação da simplificação, para o abandono da concepção de progresso como certeza histórica; reforçar o respeito pelas culturas, reconhecendo seu caráter de imperfeição. 35 O tempo presente nunca é só o agora, está impregnado do passado e tem uma perspectiva de futuro, numa pertença a um dos princípios da complexidade. O princípio do círculo ou circuito reversivo que preconiza que os produtos e os efeitos são produtores e causadores daquilo que os produz.

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Os ideais existem para ser buscados, mas essa possibilidade só se efetiva a partir da

consciência do real, do reconhecimento de nossas possibilidades e limitações. Romântico

demais, dirão os mais céticos, os mais estudiosos de métodos e conceitos, aqueles a quem

tecemos todas as honras de serem os pensadores da educação e quem sabe até aqueles que

estão por demais mergulhados no real – os, por assim dizer, fazedores da educação. Os

primeiros não acreditam nesta possibilidade, pois têm o pé fincado no ideal, no sonho e na

utopia; os segundos não acreditam porque conhecem demais o real, a vida como ela é. E

assim ficamos no eterno embate, o eterno conflito entre o que deveria ser e o que é, sem que

consigamos construir a ponte para a efetivação do paradigma da complexidade. É exatamente

nesse vazio que se encontra a formação de professores. Melhor dizendo, a formação de

professores é exatamente o vão, o abismo que se ergueu entre a ação e o pensar dos

educadores, a tão famigerada relação teoria e prática, o dualismo a ser rompido e superado

com o pensamento complexo.

A urgência maior da educação de nossos tempos é a de recompor a dimensão da

função docente, do trabalho do professor pela perspectiva de um indivíduo aprendente. Fazer

valer a crise de paradigmas, tão anunciada, fazer valer a perspectiva de uma mudança

conceitual, de uma mudança de visão de mundo, pode constituir-se numa possibilidade de

princípio de construção da ponte sobre o abismo, em que se tem caracterizado a formação de

professores. Concluindo, é importante termos presente que os reducionismos e fragmentações

em educação transportam-nos para longe do real e da possibilidade de articulação de um novo

olhar sobre a educação.

2.2 A Formação de Professores no Contexto de um Paradigma Emergente

Importante para a compreensão dessa discussão é o entendimento de que a formação

de professores, pelos princípios da teoria da complexidade, não pode ser entendida fora do

aspecto contínuo, de um fazer-se fazendo. Queremos neste trabalho abordar a educação de

uma nova perspectiva, fundada no paradigma da complexidade. Não é possível pensarmos a

formação do professor única e exclusivamente do ponto de vista de uma formação acadêmica,

universitária ou formação inicial. Mesmo porque, enquanto indivíduo que se constrói em um

universo cultural e histórico, o professor inicia sua formação antes mesmo da universidade; o

ser professor vai se constituindo a partir da relação com o mundo, não como algo já dado, mas

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como possibilidade de um vir-a-ser. A partir desse pressuposto podemos pensar em uma

formação que seja contínua e reflexiva, estando o sujeito (professor) consciente de seu

inacabamento e das possibilidades de uma realidade complexa. Ou seja, é o sujeito restaurado,

consciente de que “todo conhecimento é uma reestruturação/tradução por uma

mente/cérebro36, numa cultura e num tempo determinados.” (MARTINAZZO, 2002).

Algo que já é corrente no senso comum e no meio acadêmico necessita urgentemente

impregnar as universidades e as escolas. As produções e discussões pedagógicas já anunciam

as perspectivas e possibilidades de mudança, a necessidade de que os conhecimentos sejam

contextualizados e interligados, como bem aponta Martinazzo (2002, p. 89; 94):

O processo educacional, em qualquer dos níveis de ensino, deve levar os educandos a desenvolver a competência para contextualizar os conhecimentos, integrando-os e globalizando-os em seus conjuntos. O conhecimento liga-se ao todo: não é insular, mas peninsular.37 É necessário levar em conta a intercomplementaridade dos conhecimentos implicados e que só podem ser apreendidos num olhar pluri, multi e transdisciplinar.

Essa é uma das idéias centrais da formação de professores no paradigma da

complexidade, a idéia de que as coisas encontram-se todas interligadas e interdependentes.

Somente agora, talvez com um sério atraso, as escolas começam a discutir e tentam

implementar os inícios desse pensamento complexo, a partir dos estudos sobre

interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Mas para que esse processo seja concretizado

temos que pensar a questão fundante, que é a formação dos professores.

Como poderiam efetivar-se esses processos complexos, se cada professor ensina uma

disciplina específica e diferente? E como poderiam os professores ensinar algo diferente?

Tais respostas parecem simples de se alcançar: é só mudar a formação dos professores

e pronto. Isso parece ser fácil, pois já estamos acostumados a revisar currículos, refazer

objetivos e “virar para o lado que o vento sopra”. E, hoje, os ventos sopram mudanças. Menos

mal que essas mudanças não sejam assim tão simples. Ainda bem que não estamos mais tão

36 Cabe ressaltar que esta designação mente/cérebro não possui caráter reducionista e nem preconiza a supremacia da mente, pois considera abolido o dualismo corpo-mente. 37 No sentido de que o conhecimento não é solitário, incomunicável, separado da condição de humanidade dos sujeitos e da própria sociedade.

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sujeitos às relações de causa e efeito linearmente definidas. Algo mais se impõe nesse

caminho. Precisamos repensar a educação? O ensino? A formação de professores? A resposta

é sim, mas necessitamos também encontrar os caminhos para a efetivação dessa possibilidade

que é a complexidade.

Seria muito reducionismo apostarmos que reformulando o sistema universitário

estaremos contribuindo para a implementação do paradigma da complexidade. O que é

fundante para esse paradigma é o resgate do sujeito de conhecimento, e isso só será possível a

partir do reconhecimento do caráter cultural e social de todo conhecimento. Mas voltemos à

questão inicial, pois, em última instância, as universidades têm sido responsáveis por uma

etapa importante do processo de formação dos professores, que é justamente o aspecto formal.

Partimos do pressuposto de que a universidade, através de seus cursos de formação de

professores, não pode apenas pretender formar profissionais de ensino, pois sua função é mais

ampla e não se restringe ao aspecto profissionalizante.38 Para Marques (2000, p. 58), “Todo

professor/educador deve ser esse profissional especializado em educação, educador por

inteiro, capaz de conduzir o inteiro processo educativo.” Acreditamos que o caminho se faz a

partir da convivência desses fundamentos do conhecer, o ensino e a pesquisa, constituídos

como processo dialógico e em interação. Este é o desafio da complexidade: construir a

consciência de que há elementos em jogo39, em interação, diversificados e complementares.

Se pensarmos a educação como um processo de construção/significação de um todo –

no caso, o sujeito indivisível, inseparável – não é necessário que ela seja um processo

constituído pelos princípios da complexidade?

Ao considerarmos estas questões, assumimos nossa posição no sentido de considerar a

educação como um sistema aberto, onde tudo está em constante movimento e que, portanto,

pressupõe processos transformadores onde é necessária a interação. Por isso acreditamos que

a formação de professores não pode ser encarada como processo único, exclusivo, inicial ou

final. Os cursos de formação de professores representam a formalização de alguns processos

38 Isso equivale a dizer que não existe um manual de regras de como ser um bom professor, existe algo mais implicado nesse processo. Há, também, uma questão subjetiva. 39 Talvez seja necessário retomarmos a definição de jogo, do latim jocus, “uma atividade que se exerce ou se executa por si mesma, e não pela finalidade à qual tende ou pelo resultado que produz.” (ABBAGNANO, 2003, p. 588). Ou seja, possui processos auto-reguladores que necessitam ser considerados.

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do ser professor. Não existe nesse processo um final, pois cada final representa um novo

começo, um crescimento em espiral, pois a formação de professores é um processo contínuo.

Torna-se necessário, então, um pensamento com muita flexibilidade, criatividade e grande

capacidade inovadora.

Considerando os cursos de formação de professores como uma etapa da constituição

do ser professor, acreditamos que a formalização dos processos deva acontecer de forma a

privilegiar o pensar complexo.

O desenvolvimento da autonomia, da cooperação e da criticidade é o que há de mais fundamental num mundo em permanente evolução, onde a transitoriedade, o incerto, o imprevisto e a mudança estão cada vez mais evidentes e são características que deverão estar presentes nos ambientes de aprendizagem no que se refere ao perfil tanto ao aluno quanto do professor. (MORAES, 2003b, p. 223).

Talvez o grande desafio da educação, e também da formação de professores, seja

justamente buscar novas alternativas de pensar o conhecimento, a educação, a formação do

educador e os processos de aprender/ensinar. Então, é necessária uma lógica fundamentada na

interação dos sujeitos envolvidos nos processos de produção/sistematização do conhecimento.

Processo esse, o da interação, que se efetiva no campo fecundo da comunicação entre os

sujeitos, num constante compartilhamento de saberes e experiências, constituídos a partir do

mundo de vida de cada um e de todos os sujeitos. É o desafio de conceber a educação e a

formação de professores como um processo complexo e único.

A vivência de processos criativos e reflexivos, no seu processo de formação,

possibilitará ao professor mais elementos na busca de soluções para os enfrentamentos de sua

ação.

Para tanto, precisamos repensar a escola, o currículo, as metodologias, os ambientes de aprendizagem, a necessária formação de professores nessa área, de forma a incluir estratégias que cultivem a imaginação, a atividade criadora na sala de aula e incentivem a espontaneidade, a iniciativa, o senso de humor, a curiosidade, o questionamento de si mesmo, criando condições favoráveis para que eles possam criar um espaço para a fantasia e o jogo imaginário [...]. (MORAES, 2003b, p. 166).

Desde já assumimos, com a perspectiva lúdica na formação dos professores, as

possibilidades de um pensamento complexo, multidimensional, que promova o diálogo entre

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diferentes níveis de conhecimento. Esses diferentes níveis de conhecimento, assim como a

possibilidade de um sujeito inacabado e capaz de se auto-organizar, permeiam a atividade

lúdica e são também a essência dos processos de aprender/ensinar. Talvez o primeiro passo

para essa ressignificação na formação de professores, nesse caso a formação acadêmica, seja

incorporar o discurso e a prática de que todo professor é um eterno aprendiz em constante

processo de construção que, não tendo certezas absolutas, considera como fundantes de sua

ação a indeterminação e que procura compreender a complexidade da vida.

Nos valemos de uma expressão formulada por Montaigne, retomada por Morin: “Mais

vale uma cabeça bem-feita que bem cheia.” Para Montaigne, a educação das crianças era

tarefa complexa, na qual residia a maior e mais importante dificuldade da ciência humana.

Podemos também considerar esse princípio como um dos responsáveis para a reestruturação

do ensino universitário e, no caso específico, dos cursos de formação de professores. Esse

princípio traz a síntese do pensar complexo, pois uma cabeça bem-feita significa que “em vez

de acumular o saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de: uma aptidão geral para

colocar e tratar os problemas; princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes

dar sentido.” (MORIN 2000, p. 21).

Considerando a educação e a formação de professores sob a perspectiva do

inacabamento, interessa-nos bem mais um professor de “cabeça bem-feita” do que um de

“cabeça bem cheia”. Isso porque a primeira perspectiva está permeada pela segunda, sem

fixar-se em seus limites conceituais e teóricos, e nos permite viver a imprevisibilidade da

educação e dos sujeitos nela envolvidos.

[...] seria útil que se escolhesse um guia com cabeça bem formada mais do que exageradamente cheia e que, embora se exigissem as duas coisas, tivesse melhores costumes e inteligência do que ciência. Mais ainda que exercesse suas funções de maneira nova. (MONTAIGNE, 1984, p. 77).

Precisamos de um professor que indique caminhos e que, por isso, necessita provar as

coisas e saber escolher, discernir. Portanto, às vezes, será necessário indicar-lhe um caminho

sem, no entanto, reduzir suas possibilidades. Um professor que não fale sozinho, mas que

permita que outros falem, também se constitui a partir das trocas com os outros, o que se

constrói a partir de um sistema aberto de educação. Para que ele possa transgredir a rigidez

dos programas e conteúdos, e consiga dar sentido e substância ao processo de conhecer, é

fundamental que ele viva esse processo, ou seja, consiga traçar novos rumos pela experiência

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e testemunho da vida e não, simplesmente, pela memória. De acordo com Montaigne (1984,

p. 78): “Saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à memória para guardar. Do

que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o

livro.”

É necessário construir uma outra inteligência, que saiba ler um mundo complexo, que

seja capaz de perceber, compreender e interagir com o contexto e o complexo, pois na

atualidade o conhecimento progride muito mais pela capacidade que os sujeitos possuem de

contextualizar o próprio conhecimento, do que pela fragmentação. O grande desafio da

complexidade na formação de professores é, justamente, romper com os reducionismos da

fragmentação e da linearidade. Para educar, na era planetária, não existem receitas, métodos

ou metodologias pré-determinados. Buscamos identificar, nos princípios da teoria da

complexidade, o que consideramos ser elementos essenciais para a formação/constituição

desses sujeitos professores.

Uma grande questão que surge é de que necessitamos de um professor que saiba

pensar, ou seja, sua inteligência deve transpor a barreira do instrumental teórico para

encontrar o que poderíamos chamar de sabedoria. De acordo com Abbagnano (2003, p. 864),

a sabedoria refere-se a uma conduta racional, a uma possibilidade de dirigir as atividades

humanas da melhor maneira. Portanto, ela está relacionada “à esfera dos afazeres humanos, e

pode-se dizer que é constituída pelas técnicas antigas ou novas de que o homem dispõe para a

melhor conduta de vida.”

A sabedoria pode, também e por isso mesmo, estar impregnada do prazer de “saborear

o conhecimento”. Essa falta de prazer em conhecer está presente em vários níveis de nosso

sistema educacional, e também na formação de professores. O primeiro passo em direção a

um pensar complexo, no nosso entendimento, é o resgate da sabedoria no conhecimento, no

sentido de recuperar um pouco a paixão por esse processo de aprender/ensinar. Uma das

formas deste resgate encontra sua centralidade na ludicidade e de uma pedagogia que permita

uma valorização do ser (da condição humana). Estar realmente implicado nesse processo vital

que é a educação, de forma a perceber que o acúmulo de saber torna-se insuficiente sem a

aptidão (sabedoria) para tratar os problemas, dando-lhes sentido e significação; ou seja, é

preciso superar a austeridade pedagógica construída a partir de um conhecimento técnico-

instrumental.

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A idéia da complexidade, do paradigma emergente, resgata um pouco a questão de que

o ensino é, de certa forma, uma missão, uma missão de transmissão que requer além de

técnica, competência e arte (MORIN, 2001, 2003c). Há uma questão posta que remete ao

amor pelo conhecimento, à paixão pelo ensinar. Morin apresenta alguns pontos essenciais da

missão de ensinar, todos eles fundamentados nos princípios da complexidade, tendo em vista

a formação de um sujeito criativo e responsável, dentre os quais destacamos:

[...] fornecer uma cultura que permita distinguir, contextualizar, globalizar os problemas multidimensionais, globais e fundamentais, e dedicar-se a eles; preparar as mentes para responder aos desafios que a crescente complexida-de dos problemas impõe ao conhecimento humano. (MORIN, 2001, p. 102).

As idéias de Morin sugerem uma reforma do pensamento que vai gerar um

pensamento do contexto, superando uma visão de educação essencialmente instrumental. Um

pensamento que seja capaz de unir e reaproximar conhecimentos separados; recolocar o

sujeito na sua condição de produto e produtor de conhecimento; reaprender a sonhar.

Uma formação de professores, alicerçada nos princípios do paradigma emergente, será

sempre uma educação contestadora que busca a superação de limites e voltada para a

ressignificação do conhecimento. Essa formação procura resgatar a unidade entre história,

conhecimento e sujeito, que se perdeu no processo de maquinização da modernidade. Há uma

preocupação muito maior com o aspecto significativo do conhecimento do que com o aspecto

quantitativo; entram em jogo, nesse processo de formação, a pluralidade e intersubjetividade.

Então, no terceiro capítulo abordaremos de forma breve, elementos essenciais no processo de

constituição do sujeito da educação infantil, a criança.

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CAPÍTULO III - A CRIANÇA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E SUAS EXPRESSÕES

LÚDICAS

3.1 Um Pouco da História da Infância

A idéia de um “ser-criança”, reconhecido enquanto tal, é uma construção dos tempos

modernos. Até então a criança era considerada a partir de seu caráter incompleto, na

perspectiva de um vir-a-ser adulto. Mesmo que desde os tempos mais remotos estivesse

presente a preocupação com a educação das crianças, é no mundo moderno que a preocupação

dos adultos com as crianças ganha destaque (BOTO, 2002).

Segundo Ariès (1981), até por volta do século XII (Idade Medieval), não há um

sentimento da infância, sendo que nos registros da época (especialmente os artísticos) as

crianças são representadas por figuras de adultos em escala reduzida40. Não há nada que

lembre as feições de uma criança. As crianças são caracterizadas como adultos em miniatura,

o que representa uma recusa em aceitar, não só a morfologia infantil, bem como suas

características como distintivas do adulto. Ou seja, a criança é tida como um adulto

incompleto; é muito delicada e frágil para se juntar aos adultos; portanto, necessita ser

educada para chegar a ser de fato. Tanto nos registros de obras de arte, quanto na literatura,

esse é o perfil da criança: alguém que se tornará um adulto e que só é reconhecida enquanto

ser incompleto.

40 O que não significa dizer que as crianças não eram bem cuidadas ou eram maltratadas. Para Ariès, o sentimento da infância difere do significado de afeição pelas crianças. O sentimento da infância representa o reconhecimento das particularidades do mundo infantil.

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Ao darmos um salto em nosso percurso histórico, vamos tratar de uma época

marcante, no que diz respeito ao reconhecimento da infância, encontrada nos relatos de como

era a vida de uma criança no início do século XVII41. Dá-se grande importância ao canto e à

música, com associação de movimentos ritmados. Há, também, referências às brincadeiras,

que passam a rechear o universo infantil como representação do mundo adulto. Por volta dos

sete anos de idade a criança é encorajada a abandonar os brinquedos da primeira infância, sob

o pretexto de que agora é um menino grande e não mais uma criança (ARIÈS, 1981, p. 46).

Por volta de 1600, a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância; depois dos três ou quatro anos, ela se atenuava e desaparecia. A partir dessa idade, a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas brincadeiras dos adultos, quer entre crianças, quer misturada aos adulto. (ARIÈS, 1981, p. 49).

As crianças participavam dos jogos de adultos, como os jogos de azar e a dinheiro,

bem como os adultos participavam de jogos que hoje classificamos como pertencentes ao

universo infantil. A separação do mundo adulto e infantil encontrava-se em processo inicial.

E, no que se refere à questão dos jogos e divertimentos, não diferem totalmente, pois são os

mesmos. É importante assinalarmos o lugar que os jogos ocupavam nesse período; de acordo

com Ariès (1981, p. 51), “[...] os jogos e divertimentos estendiam-se muito além dos

momentos furtivos que lhes dedicamos.” Nas sociedades antigas não estava presente o culto

ao trabalho e à produção; estes não tinham o valor que têm para a sociedade atual.

Constrói-se, então, um quadro às avessas, o que antes era totalmente ignorado, passa a

ser extremamente valorizado. Nas palavras de Ariès (1981, p. 100): “Um novo sentimento da

infância havia surgido, em que a criança, por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava

uma fonte de distração e relaxamento para o adulto, um sentimento que poderíamos chamar

de paparicação.” Alguns educadores do século XVII combatiam essa excessiva “paparicação”

da criança e a afeição exagerada dos pais aos filhos, recomendando moderação e

determinando os fundamentos da educação das crianças até o século XX.

Montaigne nos traz uma contribuição importante quanto à valorização da criança

como sujeito que necessita ser respeitado em suas particularidades, considerando que estas

41 Ariès faz referência ao diário do médico francês Heroard, onde constam relatos da vida de uma criança (o futuro Luís XIII).

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estão sempre em evolução. Nossa valorização do mundo infantil não pode significar a

infantilização da criança. Amar as crianças não é um passatempo:

Uma afeição sincera e justificável deveria nascer do conhecimento que nos dão de si e com esse conhecimento crescer, a fim de que então, se o merecerem, e desenvolvendo-se de par com o bom senso essa disposição para as amar, cheguemos a uma afeição realmente paternal.[...] Dir-se-ia mesmo que o ciúme de as ver em boas condições na sociedade, na hora em que já nos cabe abandoná-la, torna-nos mais parcimoniosos e avarentos; como se temêssemos tê-las aos nossos calcanhares a nos empurrarem para fora. (MONTAIGNE, 1984, p. 182).

De uma proposição inicial, que considerava a criança como um “não-ser adulto”,

progride-se para o reconhecimento de suas particularidades. Temos, a partir de então, dois

sentimentos com relação à infância: o primeiro caracterizado pela “paparicação” das crianças,

oriundo do meio familiar; e o segundo preocupado com a disciplina e os costumes da época.

Embora sensibilizados com a imagem de um mundo infantil, acreditavam que as crianças

deveriam ser preservadas e disciplinadas (ARIÈS, 1981).

Um dos grandes responsáveis pela valorização da criança em suas particularidades foi

Rousseau, pois ele descobre os princípios psicopedagógicos de um ensino ativo e funcional,

de uma educação auto-ativa; tornando a criança o verdadeiro fator do processo educativo

(LARROYO, 1974, p. 519):

Ninguém, antes de Rousseau, havia acentuado com tal força o valor intrínseco da infância, nem havia deduzido, com melhor acerto, as conseqüências pedagógicas desse fato. Desde Rousseau a doutrina educativa impôs a exigência de “partir da criança”, de ver nela o centro e fim da educação; em outras palavras, chegou-se ao conceito da educação paidocêntrica.

Neste sentido, afirmava que na educação da criança deveria ser conservada sua

condição (natureza) de criança, ou seja, não podemos ficar procurando no menino o homem,

não é possível substituir a infância por nós mesmos.

Essas concepções, tão significativas, influenciaram e determinaram a nossa construção

de concepção de infância na modernidade. As crianças são caracterizadas a partir da categoria

aluno, sendo que aos colégios cabe a tarefa de educá-las. Submetidas à rotina escolar, que se

encontra impregnada dos conceitos de tempo, trabalho e produtividade da modernidade, lhes

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são furtados o seu próprio ritmo e tempo. Para Weschenfelder (2000, p. 185), o corpo da

criança “é confiado à escola para que seja ensinado e educado.” O ser-criança é agora o ser-

aluno, com todas as suas implicações. Por isso, pensar sobre a criança e a infância é,

necessariamente, refletir sobre as questões educacionais e a condição do ser-aluno.

3.2 A Criança da Educação Infantil

Uma das características da infância é justamente a intensidade da atividade motora e a

fantasia. E, mesmo que na atualidade, as crianças estejam, por motivos diversos, confinadas42,

sem o espaço ideal para a realização de seus jogos e vivência da experiência lúdica, sua

linguagem está longe de ser a do silêncio, da imobilidade ou da extrema racionalização. A

linguagem das crianças é a da ludicidade, do movimento, sendo que sua maior especialidade

é brincar, viver a experiência lúdica. Portanto, as crianças necessitam de um espaço e um

tempo que lhes permita a liberdade de pensar e agir de maneira imaginária ou simbólica. Para

que isto se efetive é necessário que as escolas, os currículos escolares, sejam construídos em

bases que respeitem essas características infantis, na construção das aprendizagens. Esse

respeito se justifica a partir da necessidade de vivência das características infantis para o

crescimento e desenvolvimento da criança. É interessante que os professores construam um

conhecimento a respeito da infância, tendo consciência de que, mesmo com a evolução dos

anos e as mudanças promovidas na humanidade, algumas características essenciais da

infância, do “ser criança”, permanecem.

A este respeito, vários estudiosos procuraram estabelecer as características da criança

segundo seus aportes teóricos, quer seja pela psicologia, a biologia ou a sociologia. Não é

nosso objetivo fazer uma análise apurada e detalhada de cada um desses aspectos; entretanto,

julgamos ser necessária uma caracterização quanto às necessidades e possibilidades das

crianças da educação infantil. Para tanto, nos utilizaremos de alguns aspectos que julgamos

interessantes nas construções teóricas desses autores.

Para que possamos caracterizar com maior propriedade a criança da Educação Infantil,

precisamos situá-la no contexto educacional. É a partir de 1994 que a Educação Infantil passa 42 Os fatores de confinamento das crianças encontram seus indícios no trabalho infantil, na falta de segurança, na violência urbana, nas exigências e agendas de atividades a que se são submetidas, dentre outros.

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a ser considerada como etapa importante da educação básica, destinando-se à educação das

crianças de zero a seis anos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, em

seu artigo 21, determina que a educação escolar é composta pela educação básica (Educação

Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio) e pela educação superior. Nos artigos 29 e 30 a

lei define as características da Educação Infantil:

Art. 29. A Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. Art. 30. A Educação Infantil será oferecida em: I – creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II – pré-escolas, para crianças de quatro a seis anos de idade (Lei 9.394, 1996).

Sabemos que as leis, muitas vezes, são elaboradas por técnicos (iluminados pela

racionalidade técnica), o que não descaracteriza o grande avanço que constitui a referência de

um espaço privilegiado para a educação infantil. Entretanto, por si só essa determinação não é

garantia de que se efetive a experiência lúdica na pré-escola, caso específico deste trabalho.

Contudo, sinaliza para a importância de se considerar as características próprias da infância,

na faixa etária dos três aos seis anos.43

Dos muitos estudos realizados sobre a infância, podemos caracterizar a criança da

educação infantil (no âmbito da escola) a partir de diferentes referencias teóricos, num

exercício de esquadrinhamento das características infantis que, sem dúvida, em muito

contribui para o reconhecimento do ser-criança. Entretanto, consideramos ser necessária e

suficiente, para os propósitos deste trabalho, uma caracterização ampla e menos fragmentada;

no que compartilhamos com Larrosa (2001, p. 188) a idéia de que “não reduzamos a infância

a algo que, de antemão, já sabemos o que é, o que quer ou do que necessita.” Pois sempre que

falarmos da infância, enquanto coletivo de sujeitos, estaremos falando de forma genérica, pois

há sempre em jogo uma individualidade construída a partir das experiências de vida de cada

criança.

43 Para o ano de 2007 haverá modificações quanto à delimitação de faixa etária da Educação Infantil, sendo que as crianças, a partir dos seis anos, passarão a integrar o ensino fundamental. É importante também lembrar que a utilização da faixa etária, no que diz respeito a este trabalho, é apenas um critério de agrupamento das crianças (a partir de suas características mais gerais).

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A criança, da Educação Infantil, vive num mundo em que tudo é contato pessoal, pois

seu mundo é feito de pessoas e interesses pessoais, seus próprios, que não estão sujeitos a um

sistema fechado de leis ou fatos. Portanto, aquilo que atrai seu interesse constitui, no

momento, todo o universo e demanda toda sua atenção. Entretanto, esse mesmo universo se

desfaz e refaz com rapidez, evidenciando mais uma vez sua característica de sujeito complexo

inserido num contexto que é vivo e não estático. Para Smolka (2002) é nessa tensão que se

constitui a infância, como produção orgânica, biológica, mas também e fundamentalmente

como produção simbólica.

Podemos afirmar, dessa maneira, que as crianças da Educação Infantil possuem um

modo de pensar que lhes é particular: são extremamente curiosas, às vezes, beirando a

teimosia em suas convicções. Em seus estudos, Piaget acabou por classificar esse pensamento

das crianças como egocêntrico (o que é muito diferente de egoísta, pois não é um conceito

moral, mas uma maturidade intelectual), isto porque elas possuem uma perspectiva própria de

encarar os fatos que acontecem, e consideram que todas as outras pessoas (crianças ou adul-

tos) têm a mesma perspectiva que elas. “O raciocínio infantil não é nem dedutivo nem induti-

vo, mas transdutivo, indo do particular ao particular.” (PIAGET, 1983, p. X). Nessa fase da

vida a criança não considera a perspectiva do outro (pensamentos, sentimentos e vontades).

Consideramos relevante apontar alguns aspectos quanto ao desenvolvimento da

criança da Educação Infantil. Quanto à motricidade, muitas vezes, a criança pode ser

considerada desajeitada no que se refere aos movimentos corporais, pois estão em

desenvolvimento o equilíbrio e as agilidades no movimento, bem como a habilidade de

segurar começa a amadurecer e há um maior desenvolvimento dos grandes músculos

(GOMES, 1994).

A criança dessa faixa etária possui as capacidades imaginativas e imitativas bem

acentuadas, o que a predispõe às narrativas consideradas fantasiosas e exageradas. O que nos

remete a uma necessidade do desenvolvimento infantil que o uso de diferentes formas de

linguagem: oral, escrita, artística e corporal, dentre outras. Sua capacidade de imaginação e

criatividade é tão acentuada que é comum nessa fase da vida o surgimento dos amigos

imaginários (OLIVEIRA, 2000). Eles assumem várias funções no processo de maturação da

criança: realizam o que elas não conseguem fazer, são companheiros nas horas de solidão,

auxiliando assim no enfrentamento dos conflitos.

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O pensamento simbólico e imaginário, característica fundamental das crianças dessa

faixa etária, necessita ser estimulado. Permitir à criança que viva seus momentos de

“devaneios” pode significar a experiência de modelagem da vida interior no processo de

constituição do ser-criança. Smolka (2002, p. 124) reafirma essa necessidade quando

considera que “conceituar a infância, ou teorizar sobre o desenvolvimento... faz parte de um

gesto de conhecimento tornado possível pela produção de significação característico do

próprio Homo – Faber, Simbolicus, Duplex.”

Encontramos nas palavras de Marques (1995, p. 4), a caracterização da criança e a

função da escola quanto ao aspecto de seu desenvolvimento geral:

A Educação Infantil visa à superação do animismo egocêntrico da criança pela vivência da alteridade social no grupo de iguais, onde se faz possível a percepção das reciprocidades entre o EU, o TU e o ELE (isto ou aquilo). Cumpre à escola propiciar este lugar de encontro de iguais e esta percepção das alteridades distintivas e da identidade de cada um no seu grupo.

Se a função primeira da Educação Infantil é atender às necessidades e aos interesses

das crianças, devemos nos perguntar que interesses e necessidades são esses. A primeira

resposta que encontramos é de que as crianças têm necessidade e interesse pelas atividades

lúdicas. E para que possa compreender a realidade numa esfera mais ampliada, a criança

necessita agir sobre elas e isso se dá através da experiência lúdica. Portanto, se pretendemos

conhecer as crianças e o universo infantil, necessitamos construir um conhecimento a respeito

de suas experiências lúdicas. Daí concluímos que esse deve ser o eixo norteador dos processos

desenvolvidos nesse nível de ensino. Esse deve ser, no nosso entendimento, o espaço de

recuperação do ser criança, que com o processo de industrialização e o progresso que

alcançamos44 assumiu novas características.

Podemos valer-nos do pensamento de Dewey (1985, p. 138), para compreender o que

constitui e como se caracteriza o mundo infantil:

A criança vive em um mundo em que tudo é contato pessoal. [...] O seu mundo é um mundo de pessoas e interesses pessoais, não um sistema de fatos ou leis. Tudo é afeição e simpatia, não havendo lugar para a verdade, no sentido de conformidade com o fato externo.

44 Não se trata de amaldiçoar o progresso e os avanços conquistados pela sociedade, mas de resgatar a atividade lúdica como atitude de enfrentamento dos desafios propagados pela sociedade moderna. Um deles é o fato de que apenas recentemente adultos e crianças separaram-se em seu convívio, nas suas atividades lúdicas e nos jogos.

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Para ela aquilo que prende seu espírito constitui, no momento, todo o universo, que é assim fluido e fugidio, desfazendo-se e refazendo-se com espantosa rapidez. Esse, afinal, é que é o mundo infantil. Tem a unidade e a integridade da própria vida da criança.

A criança é, para nós, um ser cognoscente e, como tal, sujeito das suas aprendizagens

e processos de constituição de sua subjetividade. É um ser que necessita ser reconhecido

enquanto tal, no sentido de vida presente e não apenas de preparação para o futuro; pois essa

preparação esta implicada pelo reconhecimento da infância. Para Larrosa (2001, p. 184), “[...]

a infância é sempre um outro: aquele que, sempre além de qualquer tentativa de captura,

inquieta a segurança de nossos saberes.” Pensar essa inquietação é a perspectiva de devolver à

infância a sua presença enigmática.

3.3 O Brincar da Criança

É através da brincadeira que a criança descobre o mundo, e também podemos desço-

brir (enquanto adultos: pais, professores) como ela constrói suas relações com o mundo e vai

se constituindo enquanto sujeito da ação. Muitas vezes, é através do brincar que a criança

expressa seus pensamentos, muito mais do que com palavras; o brincar constitui-se como uma

linguagem secreta e própria da criança. E mesmo que pareça aos adultos, nenhuma criança

brinca somente para passar o tempo (mesmo que ela também não tenha consciência disso).

Podemos considerar que o brincar da criança tem seu fim em si mesmo: na afirmação do EU.

As atividades e expressões lúdicas das crianças dão-se de forma simbólica, através da

imitação e representação do mundo adulto, contribuindo para a estruturação de seu

pensamento de forma complexa. Ou seja, brincar faz parte de seu esforço de compreender o

mundo e requer envolvimento emocional, movimento e contato, tanto com outras crianças

quanto com adultos. A atividade lúdica é a expressão de liberdade, de vida e de sentimentos; é

a base da capacidade de pensamento: uma criança que não brinca é um sujeito que não sabe

pensar (tanto em sua condição de infância, quanto em projeção de adulto). É fundamental,

para nós educadores, reconhecermos as expressões lúdicas da criança como atividades

criativas, essenciais para a constituição da subjetividade. E assim, a nossa intervenção,

quando necessária, deve ser de maneira a não comprometer o caráter fundamental da

atividade lúdica.

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Não nos deixemos enganar pela primeira e verdadeira impressão de que as crianças

brincam porque é divertido, lhes traz felicidade e satisfação. Há um componente na atividade

lúdica da criança que nos remete ao imprevisível, ao instável em que se configura a grandeza

do homem como ser autônomo e criativo. Entra aqui um componente essencial (porém, não

imprescindível) da atividade lúdica, que é o prazer. Quando envolvidas em tais atividades as

crianças sentem-se absortas pelas mesmas, expressando-se de maneira corporal intensa. Esse

prazer, quase que imediato provocado pelas atividades lúdicas, vai construir a personalidade

do ser criança e se constituirá, possivelmente, no prazer pela vida, na alegria de viver, pois a

fonte desse prazer é a satisfação do desafio vencido, do obstáculo superado, a perspectiva de

novas possibilidades (MORAES, 2003a).

Quando do enfrentamento de situações e problemas de difícil resolução, é através do

componente lúdico, de forma simbólica, que a criança avançará na superação dos desafios. É

através das experiências lúdicas que as crianças vão construir os marcos de referência para o

conhecimento do mundo dos objetos, o mundo dos outros e o seu próprio mundo. Assim, as

atividades lúdicas estimulam o desenvolvimento da criança em todos os aspectos (processo

esse que necessita ser profundamente conhecido pelos professores). O exercício da

persistência e da repetição, tão necessários à criança que brinca, constituem-se na ferramenta

essencial para que ela compreenda o mundo real (estabelecendo a ponte entre a fantasia, o

imaginário e a vida real).

Todo esse processo, do qual fazem parte as experiências lúdicas, pressupõe tempo e

paciência, o que nem sempre é possível no espaço/tempo limitado em que está organizada a

escola.45 A tarefa de autodescoberta empenhada pela criança exige, por parte do professor,

uma sincera pré-disposição à observação e escuta do fazer infantil. As experiências lúdicas

não podem ser relegadas a segundo plano, ocupando um espaço secundário, furtado das

tarefas consideradas sérias e importantes. Se forem assim organizadas, perdem seu poder de

contribuir na constituição da criança de maneira significativa.

As experiências lúdicas são importantes para a criança, pois ela as leva a sério,

ganhando assim significação e sentido. É no momento de sua realização que essas atividades

45 A noção de espaço/tempo enquanto aspecto de delimitação física adequado à brincadeira, é um problema que se apresenta do ponto de vista do adulto. Para a criança essa questão assume outra dimensão; o espaço e o tempo são o que se faz neles. Qualquer espaço e qualquer tempo são passíveis de vivências lúdicas.

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se efetivam, e onde se configura seu valor educativo (não no sentido restrito da transmissão de

conhecimentos). Através das experiências lúdicas a criança acaba por colocar em jogo

funções que a razão prática considera inúteis. Nos processos da experiência lúdica a criança

aprende a diferenciar a realidade da fantasia, vivenciando-as; sendo que essas atividades vão

adquirindo características sociais, introduzindo as brincadeiras de regras. A evolução dos

níveis e tipos de brincadeiras vão se dando em harmonia com o crescimento da criança.

O brincar é, portanto, universal e possui um papel insubstituível no processo de

constituição da criança, pois representa a possibilidade de encontro consigo mesma e com os

outros. É através das experiências lúdicas que a criança vai assumindo o papel de autora de

sua própria história, construindo sua autonomia e os princípios de uma convivência autêntica.

Para Oliveira (2000, p. 104), “vivências lúdicas tanto com educadores como com os pais

podem levar a um melhor conhecimento de si e do grupo como um todo.”

No quarto capítulo abordaremos a questão do lúdico como possibilidade de

contextualização do paradigma emergente na escola. Para tanto, traçaremos suas bases

conceituais nos diferentes tempos históricos, problematizando sobre a dimensão lúdica na

educação.

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CAPÍTULO IV – O LÚDICO COMO POSSIBILIDADE DE CONTEXTUALIZAÇÃO

DO PARADIGMA EMERGENTE NA ESCOLA

4.1 Bases Conceituais do Lúdico: gênese da atividade lúdica

Vários autores têm como objeto de estudo o jogo, o lúdico46, tentando caracterizar ou

definir esse campo da atividade lúdica e até mesmo estabelecer uma diferenciação entre jogo,

lúdico e brincadeira. A atividade lúdica tem sido estudada estética, psíquica, biológica e

culturalmente, sendo que o pensamento lúdico (como pensamento filosófico) surge, muitas

vezes, em oposição às doutrinas ou pensamentos excessivamente rígidos e dogmáticos. Dentre

os autores podemos citar Huizinga, Brougère, Piaget, Wygotsky, Winnicott que se dedicaram

a esses estudos a partir de seus aportes teóricos, muitas vezes diferenciados, procurando

definir algumas características essenciais da atividade lúdica, buscando a sua gênese com

relação à infância e à cultura. Freire também procura identificar esses aspectos do lúdico e

traça algumas críticas a alguns de seus antecessores, reconhecendo, também, as contribuições

dos mesmos para os avanços dos estudos acerca do lúdico. Entretanto, nenhum desses autores

consegue definir com clareza o campo das atividades lúdicas. Ou seja, as questões que

envolvem o lúdico são complexas e devem ser abordadas a partir desses princípios.

46 No decorrer do texto tomaremos o jogo e o lúdico como fenômenos pertencentes ao mesmo referencial teórico, podendo ser utilizados como sinônimos sem que se perca sua ampla caracterização. Isto porque o lúdico, do latim ludus, significa jogo ou divertimento, assim como jogo também encontra sua significação como brinquedo, passatempo ou divertimento. Jogo, do latim jocus, significa gracejo, zombaria e acabou por tomar o lugar de ludus em nossa cultura. Assim, também o brincar passa a fazer parte do mesmo campo referencial, pois se situa no âmbito do divertimento, do entreter-se e ocupar-se em jogos.

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Nas idéias de Huizinga (1980) encontramos os fundamentos dos elementos lúdicos47,

sendo que para ele, o jogo, a atividade lúdica, pode ser considerada universal pelo fato de

estar presente nas mais diferentes culturas, e ser anterior à cultura48. Já no prefácio da obra há

uma referência às designações da nossa espécie como homo sapiens e, com o passar do tempo

e a compreensão de que não somos tão racionais, como homo faber. Cabe ressaltar que estes

registros datam de 1938. De lá para cá poderíamos identificar várias outras designações para a

espécie humana: Homo técnicus, Homo demens49, Homo socius. Hoje é necessário que

abandonemos a visão unilateral que procura definir o homem, quer seja pela racionalidade,

pela técnica ou pelo utilitarismo. O sujeito de nossa época é complexo e traz em si uma

multiplicidade de características antagônicas: é sapiens e demens, faber e ludens, empiricus e

imaginarius, economicus e consumans, prosaicus e poeticus. “Somos seres infantis,

neuróticos, delirantes e também racionais. Tudo isso constitui o estofo propriamente

humano.” (MORIN, 2003c, p. 58-59).

Huizinga pauta toda sua discussão sobre o lúdico (jogo) retomando seu aspecto

cultural: “[...] o jogo é mais que um fenômeno fisiológico ou reflexo psicológico [...]. É uma

função significante.” (HUIZINGA, 1980, p. 3). Não podemos ignorar essa representatividade

do jogo, essa qualidade instituinte do sujeito enquanto função significante para sua formação.

Não se trata de apostar num processo utilitarista do jogo, mas reconhecer sua importância para

a formação do ser humano, considerando aqui, a proposição de que a educação vive de

imediatismos, da aplicabilidade, de resultados práticos e rápidos. A perspectiva de extrema

pedagogização do lúdico (o lúdico única e exclusivamente como facilitador de aprendizagens)

revela uma visão pragmatista. Em contrapartida, para Savater (2005, p. 102), “[...] não há

dúvida de que, aproveitando a inclinação de todas as crianças para o jogo, podem-se ensinar-

lhes muitas coisas.” Preferimos conceber o lúdico sob a perspectiva de sua importância

enquanto constituinte do sujeito, e aqui a questão da aprendizagem também como constituinte

desse sujeito.

47 Johan Huizinga é autor de Homo Ludens – o jogo como elemento da cultura. O autor viveu no período de 1872-1945, e este referencial é necessário para que possamos situar alguns de seus conceitos. 48 Pois os animais também brincam, brincar faz parte do processo vital dos seres vivos. 49 Um conceito amplamente trabalhado por Edgar Morin, que afirma que somos obrigados a ver o homo sapiens como homo demens (demente). Ou seja, o homem é um ser complexo, que abarca em sua constituição diferentes facetas, no sentido de que não é mais possível opor razão e loucura. “O homem é louco-sensato. A verdade humana comporta o erro. A ordem humana comporta a desordem.” (MORIN, 2000, p. 110).

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Huizinga (1980) reconhece que várias teorias tentaram mostrar a extrema importância

do jogo, valendo-se das mais diferentes idéias; mas em todas elas prevalece, segundo o autor,

um elemento comum, ou seja: o jogo encontra-se ligado a algo que não é o próprio jogo, no

sentido de buscar uma definição ou função biológica para o jogo. Diferentes teorias se

perguntam sobre o porquê e o objetivo do jogo, e as respostas de todas elas, segundo o autor,

não nos aproximam de uma compreensão do conceito de jogo. Dessa maneira, o autor

justifica que só se torna possível pensar e compreender o lúdico quando rompermos com o

determinismo absoluto do cosmo.

Quando tratamos dos aspectos lúdicos há sempre uma determinação social, de

construção cultural, muito mais do que a definição através de um termo lingüístico. Os

fenômenos lúdicos se inserem no campo da cultura, onde se conjuga a tradição com a

inovação permanente. Entretanto, sabemos da importância de definir o sentido e o significado

da expressão “lúdico”, e reconhecemos que ela está sempre em transformação. A palavra

“lúdico” traz sempre uma mudança de significação, não possui um significado único e

definitivo. Portanto, limitá-la a uma única explicação seria um reducionismo, apesar de

podermos falar de uma definição específica para um caso em particular, sem a pretensão de

universalizá-la. Podemos saber do que estamos falando e definir nosso campo teórico sem os

riscos de um conceito delimitado e um raciocínio dicotômico.

Encontramos, nas idéias de Huizinga (1980), os primeiros indícios de caracterização

do lúdico, sendo que para ele este é um fenômeno cultural. Para esse autor, as atividades

lúdicas possuem características bem próprias e distintas das demais atividades. Porém, os

elementos citados como diferenciais do lúdico não servem para distingui-lo das demais

atividades humanas. A absorção completa dos participantes, por exemplo, também pode ser

encontrada em situações de trabalho; assim como as limitações de tempo e espaço, a alegria, a

ordem e a desordem também são inerentes a diferentes atividades humanas (FREIRE, 2005).

O jogo é livre e ele próprio liberdade, mesmo quando regido por regras e normas, pois estas

estão também em jogo. Ele não é vida corrente, nem vida real, distingue-se da vida comum

tanto pelo lugar quanto pela duração. Outra característica inerente ao jogo é o fato de ser

desinteressado, pois se situa fora do mecanismo de satisfação imediata dos desejos e

necessidades.

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É correto afirmar que o jogo possui algo de mágico, transitando pelos campos do ritual

e do culto, no domínio do sagrado. Em se tratando de um fenômeno cultural, o lúdico passa a

ser uma vivência, uma necessidade, uma descoberta e um processo por vezes aleatório.

Mesmo depois de chegado ao fim, o jogo permanece como criação nova e, quando

transmitido, torna-se tradição e pode ser repetido. Essa repetição está sempre impregnada das

vivências de seus participantes, ou seja, um jogo não será sempre o mesmo jogo.

A precariedade50 das relações que estão em jogo no brincar é que determinam sua

importância na constituição dos sujeitos. Essa precariedade situa-se no campo da magia e do

fascínio que a atividade lúdica exerce em seus participantes – e aqui podemos situar os

princípios da teoria da complexidade. O princípio da recursividade – dinâmica autoprodutiva

e auto-organizacional; princípio da retroatividade, rompendo com a causalidade linear; todos

esses princípios, da teoria da complexidade, estão implicados no processo lúdico. A atividade

lúdica é um desafio, um ponto de desequilíbrio que gera autoconhecimento e, por

conseqüência, novas aprendizagens (inverte-se a lógica: o brincar não está relegado a segundo

plano, é a atividade central e estimuladora). A experiência lúdica pode então assumir,

também, um caráter assustador; mas é, sobremaneira, uma experiência criativa – uma forma

básica de viver51 (WINNICOTT, 1975, 1982).

O brincar serve de base para a construção da existência experiencial do homem.

Podemos afirmar que experienciamos a vida no campo das atividades lúdicas, mesmo que

estas sejam diferenciadas da vida real. Existe um elemento simbólico presente nas atividades

lúdicas entre o sentir e o fazer. Há uma região que se amplia, onde as coisas são

transformadas, que é o campo de construção simbólica. “Dentro do círculo do jogo, as leis e

costumes da vida cotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes”

(HUIZINGA, 1980, p. 15). Também a este respeito Wygotsky, segundo Oliveira (2000) e

Freire (1994), traz a idéia do brinquedo como representação da atividade lúdica, e nesse

sentido como fator essencial para a construção das relações com o mundo e a realidade do

presente. É a partir da atividade lúdica, com seus ingredientes de criatividade e imaginação,

que a criança constrói as bases para sua ação e constituição da sua subjetividade através das

trocas com os outros (adultos ou crianças). Uma de suas grandes contribuições para a

50 “O jogo tem por natureza um ambiente instável.” (HUIZINGA, 1980, p. 24). Esta afirmação pode nos dar a dimensão da complexidade das atividades lúdicas, pois aqui não existem verdades absolutas e inquestionáveis. 51 Princípio do circuito reversivo – conhecimento em espiral, não há um fim único e determinado, são sempre novas possibilidades.

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compreensão da atividade lúdica como complexidade encontra fundamentos no fato dele não

considerar o prazer com característica exclusiva e definitiva das atividades lúdicas.

Para Piaget, no entendimento de Freire (2005, p. 53), “[...] o jogo integra um

fenômeno lúdico mais geral, assim como este se inclui na atividade humana como um todo, e

só assim, no contexto da totalidade humana, poderia ser compreendido.” Ou seja, o lúdico se

configura como um processo de construção e desenvolvimento da atividade simbólica,

fundamental para os processos de aprender. O jogo é estudado a partir da imitação e da

representação simbólica, surgindo de início como complementação da imitação. De acordo

com Winnicott (na linha da psicanálise), o brincar localiza-se no espaço potencial da

criatividade, é uma experiência sempre criativa e uma forma básica de viver (ROSA, 1998).

Brincar é, portanto, coisa séria e faz parte do campo de constituição das subjetividades,

configurando-se como atividade complexa no momento em que transita entre as questões de

ordem e disciplina, e também numa organização nem sempre linear e objetiva.

Mesmo que caracterizemos o lúdico como uma atividade desvinculada da vida real,

ela é, sem dúvida, uma possibilidade de compreensão dos elementos culturalmente

constituídos, assim como de sua perpetuação52. Ou seja, o jogo encontra-se separado da vida

cotidiana, sendo que essa separação pode ser tanto real, concreta, quanto imaginária, ligada

aos aspectos da fantasia. As idéias de Huizinga remetem-nos à possibilidade de um elemento

lúdico na cultura, alicerçado nos rituais e mitos. Essa ligação com os rituais encontra-se

claramente presente no brincar infantil, quer seja na escola ou fora dela. Desnecessário dizer

que ao longo de sua escolarização, a criança vai perdendo esse encantamento e com ele vão

junto as questões referentes à imaginação e criação.

Descartamos desde já a hipótese de que o lúdico possa ser compreendido pela antítese

entre sabedoria e loucura, ou pela oposição entre a verdade e a falsidade. Consideramos o

lúdico sob o aspecto dialógico entre opostos que não são excludentes entre si.

Da mesma maneira como seria inútil tentar compreender o jogo afirmando cada um de seus componentes (o jogo é livre, é voluntário etc.), igualmente o seria negando-o por partes (o jogo não é trabalho, não é sério...).

52 Podemos situar neste contexto as idéias de ação conservacionista e ação revolucionante, que são fundamentos essenciais do pensar complexo e também da complexidade do elemento lúdico e que foram abordadas no capítulo II.

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Numa ou noutra dessas direções estaríamos reduzindo o jogo às suas particularidades, portanto, deixando escapar aos poucos a idéia daquilo que ele verdadeiramente é: uma atividade complexa. (FREIRE, 2005, p. 55).

As atividades lúdicas não deveriam ser consideradas como situações diferenciadas da

vida, com características tão exclusivas que não seriam encontradas em outras atividades

humanas. Não é pela oposição de idéias que conseguiremos definir o espaço lúdico, mesmo

porque esse espaço não é totalmente delimitado. Como bem nos faz lembrar Freire (2005, p.

58), “[...] duvido que as fronteiras do jogo e do trabalho sejam impermeáveis a ponto de não

se deixarem penetrar, a do jogo por elementos do trabalho e a deste por elementos do jogo.”

Vale ilustrar essa perspectiva, mais uma vez, com as idéias de Morin (2003c, p. 23; 67):

A patologia da razão é a racionalização que encerra o real num sistema de ideais coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe nem que uma parte do real é irracionalizável, nem que a racionalidade se encarrega de dialogar com o irracionalizável. [...] a biologia do conhecimento mostra-nos, com efeito, que não há nenhum dispositivo, no cérebro humano, que permita distinguir a percepção da alucinação, o real do imaginário; existe igualmente incerteza sobre o caráter do conhecimento do mundo exterior [...].

A complexidade dos fenômenos lúdicos, como não poderia deixar de ser, está

intimamente relacionada aos processos de ensinar/aprender/conhecer, que são essenciais na

construção da nossa condição de humanidade.

4.2 Situando os Aspectos Lúdicos em Diferentes Tempos Históricos

Para compreender o lugar que o lúdico ocupou e ocupa atualmente faz-se necessário

que tenhamos em mente as características do pensamento cartesiano, trabalhadas no capítulo

I. O lúdico sempre esteve presente como contraponto do pensar, como uma atividade

desqualificada que, muitas vezes, só fazia rir.

É de grande valia a análise da contribuição de alguns filósofos quanto à definição de

jogo e dos aspectos lúdicos. No pensamento de Aristóteles encontramos uma noção de jogo

que adquire sentido a partir da oposição ao trabalho e, por isso, sendo complementar a ele

(BROUGÈRE, 1998). Ou seja, o jogo não possui um fim em si mesmo e está submetido ao

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trabalho, que o justifica, sendo essa oposição indissociável. O jogo só deve ser buscado por

sua utilidade à atividade séria, seu caráter catártico e de relaxamento: ele é necessário; porém,

não é valorizado como uma atividade em si mesma. Na República (de Platão) encontramos

uma conexão entre o jogo e a educação, sendo que o jogo é apresentado como um poderoso

meio pedagógico. A educação passa a ser vista, sob o aspecto lúdico, como uma atividade não

coercitiva, contando com uma maior participação das crianças (BROUGÈRE, 1998). Mesmo

assim percebe-se que o filósofo determina uma diferenciação entre o lúdico (passatempo) e o

jogo como atividade sujeita a regras. Segundo ele, o jogo de divertimento afasta as crianças

do ideal de educação, enquanto o jogo sério encaminha a criança ao ideal educativo.

No pensamento cristão53 surge uma outra definição, a do lazer, que constitui um fim

em si mesmo, não significando outra coisa do que uma forma diferente de trabalho. O jogo

passa a ter um fim formal: o repouso do espírito para que possamos nos dedicar novamente às

coisas sérias. Essa perspectiva ficou, se ainda não está, impregnada no sistema escolar durante

muitas décadas. Os jogos entravam na escola pelo viés da contraposição lúdico/trabalho, ou

seja, era preciso “amansar” os corpos para educar as mentes. Assim, o jogo continuava

submetido à hierarquia de uma atividade mais séria e produtiva.

Gilles Brougère (1998) sugere uma espécie de análise do emprego da expressão “jogo”

nas civilizações, a começar pela romana. Segundo ele, o nosso termo “jogo” deve ser

considerado como derivado do ludus latino. E continua afirmando que se o nosso jogo deriva

de jocus (divertimento), ele freqüentemente traduz ludus. O termo ludus serve para designar

tanto uma atividade livre e espontânea como o jogo, quanto uma atividade imposta e dirigida,

como o trabalho escolar. A utilização da palavra lúdico pode, então, designar a escola e

também aparecer como oposição a esta (enquanto instituição). Portanto, a mesma palavra é

utilizada para representar a diversão das crianças, seus estudos e o lugar (a escola onde se

instruem).

O jogo surge aí como representação da vida cotidiana e é visto sob a perspectiva do

espetáculo, uma encenação do mundo; portanto, sob esse aspecto, o universo do ludus é o

universo do não sério, do sem conseqüência. Mas, sob o aspecto da representação, ele é

também um espaço de aprendizagem, é pertencente ao universo do sério. Entretanto, devemos

53 Pensamento de Tomás de Aquino.

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considerar a incompletude e a simplificação de tal determinação. Ou seja, a dicotomização do

sério e não sério nos conduz, novamente, ao mesmo reducionismo imposto no pensamento

cartesiano, com o dualismo corpo e alma.

Não podemos nos esquecer de que o jogo, a atividade lúdica, também pertence ao

domínio do sagrado, do ritual religioso. E o jogo, com suas regras, pode inserir-se no domínio

do rito. Há uma especificidade no jogo utilizável pela ordem religiosa, ou seja, conforme

sustenta Huizinga, ele não pode ser a origem da religião ou de qualquer outra coisa.

Na Grécia são empregados vários termos: athlos (luta, concurso); agon (assembléia,

instalações desses jogos); paidia (derivado de criança, jogo infantil, diversão). Podemos

concluir que “as palavras distinguem nitidamente a esfera do concurso e da infância.”

(BROUGÈRE, 1998, p. 39).

Segundo Brougère (1998, p. 40), os Jogos Olímpicos surgem com caráter imaginário

de rito, culto, pois “permitem a reanimação da natureza, fonte de vida, e o poder real.”

Podemos afirmar, então, que o jogo, assim determinado, constitui-se em um universo

específico.

Já a cultura medieval, como vimos anteriormente, é pensada a partir dos pressupostos

religiosos; é como tal que o lúdico, a brincadeira, ganham importância. Como repouso da

alma ou, em seu uso didático, como descanso para os alunos. Tanto para Tomás de Aquino,

quanto para Agostinho, representantes das idéias pedagógicas da época, o brincar é necessário

para a vida humana. Em suas orientações para os educadores da época havia claras

recomendações quanto à observância da jovialidade, da alegria e também das brincadeiras.

Nos tempos modernos perde-se um pouco o contato com o ritual sagrado da religião e

do mito; então, o lúdico parece viver às margens desse domínio. Entretanto, preservará muitas

de suas características e definições construídas até aqui. A atividade lúdica, mesmo oposta ao

trabalho, não era considerada frívola por essa capacidade de proporcionar relações entre as

pessoas e conseqüente aprendizagem.54

54 O jogo no século XVII caracterizava-se como uma atividade do mundo adulto, como os jogos de azar e as apostas.

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O jogo é associado à idéia de recreação, e seu valor se estabelece a partir de seu

caráter catártico, como um prazer necessário. Ora, todo prazer é necessário. Então, o jogo

torna-se motivo de desconfiança – há algo nele que o torna desmerecedor de crédito (devido à

extrema racionalidade utilitarista de nossa sociedade e, por extensão, da educação). O jogo

não tem mais sentido religioso, não está ligado ao culto; é uma atividade individual, o que faz

desmontar sua função social. Portanto, ele não é mais digno de crédito.

Talvez o papel atribuído ao lúdico em nossos dias, e os estudos que são realizados a

seu respeito, estejam intimamente ligados à valorização do mundo infantil, que ocorre com as

idéias de Rousseau, na pedagogia do Emílio55. Para Rousseau (1987), os objetivos da

educação eram o desenvolvimento das potencialidades naturais das crianças e seu afastamento

dos males sociais.

Nesse sentido, ganharam força as concepções do lúdico utilitarista, como meio

pedagógico, mesmo que antes do século XIX o jogo não fosse pensado como possibilidade

educativa nos moldes que hoje se apresenta56. Ou seja, uma tentativa de, através do lúdico,

tornar prazerosas as atividades relacionadas à aprendizagem, sem que estas percam seu caráter

de seriedade (que foi construído a partir dos pressupostos do pensamento cartesiano).

O jogo é, como vemos, uma das mais educativas atividades humanas, se o considerarmos por esse prisma. Ele educa não para que saibamos mais matemática ou português ou futebol; ele educa para sermos mais gente, o que não é pouco. (FREIRE, 2005, p. 87).

Temos então, a partir desse panorama, um paradoxo: por um lado o jogo é visto como

algo não-sério, inútil, e que se opõe à seriedade, ao trabalho e ao real; por outro lado parece

integrar-se ao domínio de algo sério por excelência – como, por exemplo, a religião. Portanto,

ele encerra valores ambíguos e, por vezes, contraditórios (BROUGÈRE, 1998). Sua riqueza

reside justamente em sua ambigüidade, que pode ser contraditória, sem ser excludente. O jogo

vai ganhar significação pelo uso que se faz dele, justamente por admitir diversas

interpretações e variações em sua definição. O comportamento lúdico não é herdado, mas

construído culturalmente através das vivências e influências que sofremos no nosso processo

55 O Emílio é um ensaio pedagógico sob a forma de romance, e nele são traçadas as linhas gerais a serem seguidas com o objetivo de fazer da criança um adulto bom. 56 É somente a partir dos séculos XIX e XX que o estudo científico do jogo ganha novas dimensões.

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de evolução. Ele é produto e produtor de uma cultura lúdica, que foi se construindo em

diferentes tempos históricos.

4.3 A Dimensão Lúdica nos Cursos de Formação de Professores

A urgência maior de nossos tempos é a de recompor a dimensão da função docente, do

trabalho do professor, pela perspectiva de um indivíduo aprendente. Ou seja, a formação de

professores será redimensionada em outras bases, buscando uma outra perspectiva e

significação, quando der conta dos processos que constituem a si mesma e possibilitar aos

sujeitos a constituição de si mesmos como seres em processo. Nesses aspectos é que se

configura a capacidade de agir e refletir, tão necessária na profissão docente, pois a tarefa

educacional (quer seja no âmbito da escola ou da universidade) é a de garantir condições que

possibilitem a ampliação da ação/reflexão (MATURANA; REZEPKA, 1995). E aí, talvez,

seja necessária uma reestruturação das funções do professor e uma nova perspectiva dos

saberes docentes.

Encontramos o fundamento da nossa proposta de trabalho na perspectiva de uma

formação com bases lúdicas, por entendermos que os aspectos fundantes da categoria do

lúdico encontram-se permeados e entrelaçados pelos princípios da teoria da complexidade.

De acordo com Arroyo (2000, p. 44), “O dever-ser que acompanha todo ato educativo e todo

educador exige reflexão, leitura, domínio de teoria e método. Porém, não se esgota aí seu

aprendizado, porque se situa no campo dos valores, da cultura.” Acreditamos que o lúdico,

com seus elementos específicos (dimensão imaginária, interação criativa, afetividade, desejo),

possa contribuir para a construção de uma proposta de formação de professores na perspectiva

de saberes de outra natureza. Pois a formação do professor pressupõe aprender saberes,

conhecimentos, conteúdos e ensiná-los; esses saberes são necessários, porém não suficientes

(ARROYO, 2000).

Considerando estes elementos, parece importante pensar em uma vivência lúdica, uma

formação lúdica, a partir da interação do real com o imaginário e vice-versa. Seu fundamento

essencial é o de que o lúdico encontra suas bases na atualidade (que está permeada pelos

aspectos históricos), ocupando-se do aqui e do agora, sem a efetiva e exclusiva preocupação

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de preparação para um futuro. Essa perspectiva contribuirá para deixarmos de ver os

professores como recursos, recuperando sua condição de sujeitos da ação educativa

(ARROYO, 2000, p. 10). Marcado ludicamente, o educador será capaz de lidar com a

incompletude e o caráter provisório do conhecimento.

É nessa mesma direção que Morin apresenta a teoria da complexidade, ou o pensar

complexo, onde convivem a harmonia e a desordem, o homo demens e o homo sapiens; há

uma espécie de ordem dialógica: assim como o lúdico é ordem, cria ordem e, ao mesmo

tempo, possui um caráter de imprevisibilidade. Portanto, é necessário lançarmos o olhar para

seu caráter estético e criativo.

A obra de Huizinga (1980) pretende detectar o momento lúdico enquanto inerente a

toda cultura. Segundo ele, a própria cultura é um jogo – surge no jogo, enquanto jogo, e nunca

mais perde este caráter. Surge em contraposição a uma extrema valorização do homo sapiens,

que se constitui exclusivamente pela sua capacidade de conhecer através de elementos

racionais, excluindo toda e qualquer outra possibilidade. Também, a esse respeito, Morin

defende que “aquilo que chamamos homem deve ser encarado como um sistema genético-

cérebro-sociocultural” (MORIN, 2000, p. 88). Esses elementos, conforme Morin, já nos são

há muito tempo conhecidos, faltando-nos a capacidade de associar a espécie, a sociedade e o

indivíduo.

A tentativa de Huizinga é a de deslocar o foco para outras possibilidades de relação

com o conhecimento, pois a tendência é de que um dos aspectos seja colocado em evidência

em detrimento dos demais. Isto resulta da nossa incapacidade de pensá-los juntamente,

mesmo que um deles refira-se ao outro sem que seja possível considerá-los um fim em si

mesmos (MORIN, 2000, 2003). Ou seja, há um elo recursivo entre espécie, sociedade e

indivíduo que pode ser considerado a partir da perspectiva lúdica como elemento de cultura e

constituição do homem.

No momento do jogo, na vivência lúdica, o ator (participante do jogo) cria um espaço

próprio, onde convivem, de certa maneira, o dia-a-dia, ao mesmo tempo em que surge um

espaço que, no momento, constitui em si mesmo um conjunto de sentido. Podemos afirmar

que o jogo se realiza enquanto jogado, ao passo que a formação de professores em seus

diferentes aspectos só se efetiva no fazer-se. Segundo Morin, para que possamos conceber a

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complexidade do real faz-se necessário que o sujeito se coloque no centro do próprio mundo e

ocupe seu lugar de sujeito, ou seja, esteja jogando. Sendo que, neste estar em jogo, prevalece

o caráter de imprevisibilidade e incerteza, que são inerentes à atividade lúdica, ou seja,

podemos ou não chegar a um resultado previsto anteriormente.

A perspectiva de uma formação lúdica do educador infantil, no nosso entendimento,

não está situada, unicamente, no âmbito da instrumentalização técnica; o que seria

menosprezar a vivência lúdica das crianças. Não é para ensinar as crianças a jogar e a brincar

que defendemos a formação lúdica. Para Savater (2005, p. 43), “As crianças são os melhores

professores de outras crianças em coisas nada triviais como o aprendizado de diversos jogos.”

A perspectiva lúdica, nos cursos de formação de professores de educação infantil, se apresenta

como uma capacidade aberta57, de domínio gradual e infinito, que pressupõe um caráter

subjetivo.

Quando abordamos a formação de professores, estamos apostando nesta perspectiva

de atualidade, de um fazer-se fazendo, de um eterno constituir-se e significar-se, o que, no

nosso entendimento, é a singularidade lúdica. E aqui talvez encontremos a grande resistência

em se pensar o lúdico58 na formação de professores: parece que a dificuldade maior está em

transpor a barreira do teórico e do instrumental-prático, pois a educação vive da aplicabilidade

das idéias e, por conseqüência, necessita de resultados rápidos. Temos, além disso, que

considerar que a formação de professores está alicerçada nestes dois grandes pilares, que são

o mundo das idéias e as situações práticas. Há um certo imediatismo nas situações pertinentes

à educação, ao mesmo tempo em que não podemos dar o passo seguinte na sistematização,

apropriação e domínio dos conceitos essenciais para a constituição dos sujeitos. E é

necessário que consideremos que a escola vive dessas contraposições, da existência desses

discursos que, a princípio, podem parecer contraditórios e abarcar a negação dos princípios

um do outro. É nesse ir e vir de discursos e idéias que a escola constitui seu rumo e sua

identidade. Assim, também, os cursos de formação de professores têm buscado sua identidade

própria, seu rumo, talvez nem tão certo e nem tão preciso, mas capaz de se reconstruir no

percurso.

57 Savater (2005, p. 49-50) traz a idéia de capacidades abertas e fechadas, formulada por John Passamore, como uma possibilidade alternativa para a dicotomia ensino e instrução. Estabelece uma diferenciação entre capacidades abertas e fechadas. As capacidades fechadas estão relacionadas aos aspectos treináveis; já as capacidades abertas não possuem essa característica, pois não podem ser dominadas de forma perfeita. 58 O lúdico significando capacidade a criativa de pensamento.

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Não cabe mais, na formação de nossos professores, o acúmulo de conteúdos a serem

transmitidos e as técnicas para a efetivação desse processo; faz-se necessário um passo maior

no sentido de saber lidar com todo esse instrumental teórico e prático.59 O professor e, no caso

específico deste trabalho, o professor de Educação Infantil, necessita mais do que

metodologia e prática, necessita ter a compreensão do quadro histórico, da constituição da

subjetividade e dos aspectos relativos à constituição do sujeito infantil. É neste sentido que

reforçamos um processo de formação fundamentado nos elementos lúdicos e nos princípios

da teoria da complexidade, a partir de uma vivência reflexiva desses, pois, para ser professor,

é necessário mais do que a superposição de camadas pedagógicas, conteudísticas,

psicológicas. Há que se construir uma consciência profissional, ou seja, o professor se

constitui para além e a despeito de uma formação específica.

Há uma intencionalidade no ofício de professor, ou seja, para ser professor temos que

considerar as questões de método e teoria, enunciando quais são os pressupostos que

fundamentam nosso discurso, em que acreditamos. E dizer algo pressupõe o dizer a partir de

si (o sujeito), para alguém (vida social – sociedade – escola) e dizer sobre (representação das

idéias que defendemos). Ou seja, quando enunciamos uma crise, os problemas na formação de

professores, estes problemas não estão nas coisas em si, mas surgem porque nossos critérios

de análise são diferenciados. E só existem critérios diferenciados a partir de um desejo,

produzido pela falta. Portanto, é importante produzir o convencimento do que é ensinado,

sempre permitindo margem para a dúvida e o questionamento. Assim, é importante termos

presente que os reducionismos e fragmentações em educação transportam-nos para longe da

complexidade e diversidade do real e da possibilidade de articulação de novos olhares sobre o

processo de formação de professores. Acreditamos que os princípios de uma teoria da

complexidade60 podem ser os primeiros passos em direção ao rompimento desses

reducionismos, da fragmentação e da linearidade, tão nocivos em se tratando de processos

educacionais.

59 Não no sentido da aplicabilidade de regras e conceitos, mas na compreensão desse conhecimento que vai sendo construído pelo sujeito e é fundante de sua subjetividade. Um conhecimento que o constitui, enquanto sujeito epistemológico, como social neste mundo complexo e interdependente em que vivemos. 60 E aqui também o lúdico como elemento de cultura e possibilidade de articulação das diferentes dimensões do ser humano.

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CONCLUSÃO – LANÇANDO OS DADOS PARA O JOGO

Se pretendemos formar professores numa perspectiva lúdica, os cursos de formação

necessitam ter em seus currículos a temática do brincar como parte da formação profissional.

Não somente na perspectiva de instrumentalizar o professor mas, sobretudo, de valorizar e

intensificar suas próprias vivências lúdicas, quer resgatadas da infância, quer como

representação do ser adulto. Partimos do pressuposto de que é brincando e refletindo sobre o

brincar (infantil e seu próprio) que o professor vai construindo a consciência sobre a

importância das atividades lúdicas.

Situamos o aspecto da ludicidade no âmbito do viver, e temos como pressuposto que

viver não é um desenrolar de fatos espontânea e aleatoriamente postos; o viver implica ter

vivido, saber viver. E é nesse sentido que apontamos ser necessária a valorização de uma

formação lúdica dos professores de Educação Infantil. Contribuir na formação de

profissionais que sejam capazes de brincar, que conciliem os objetivos pedagógicos com os

desejos dos alunos, que contribuam para o desenvolvimento da sua subjetividade.

Uma formação profissional com bases lúdicas é aquela em que as características do

brincar estão presentes, enquanto atividade criativa, imprevisível e não centrada na

produtividade. Uma formação nessas bases desafia o professor (enquanto aluno de cursos de

formação de professores) a situar-se como sujeito do processo pedagógico. Não basta,

portanto, construir um referencial teórico extremamente recheado da importância do brincar,

das características da infância. A formação com bases lúdicas contribuirá tanto mais na

efetivação do novo paradigma, quanto for a capacidade de inter-relação entre a teoria e a

prática do educador, na construção de um saber que torna possível o viver.

Acreditamos numa formação profissional em que a ludicidade é o fator marcante; que

se ocupe do viver dos sujeitos envolvidos, como nos termos de um jogo, como bem definiu

Freire (2005, p. 119):

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O jogo é uma coisa nova feita de coisas velhas. Quem vai ao jogo leva, para jogar, as coisas que já possui, que pertencem ao seu campo de conhecimento, que foram aprendidas anteriormente em procedimentos de adaptação, de suprimento de necessidades objetivas. Os ingredientes do jogo, portanto, são coisas velhas fechadas pela objetividade que marcou sua aprendizagem. No entanto, quando do jogo, o jogador lança-as como lançaria as pedrinhas a esmo, reabrindo-as para novas disposições.

A educação é um jogo que necessita ser jogado com o envolvimento direto de seus

participantes, sendo que, para nós, o professor é um dos participantes desse jogo. Esse “jogo”

começa bem antes da formação inicial, mas é ela que sistematiza suas “regras” e potencializa

suas possibilidades de ação. É um jogo que não tem fim, pois cada final é um novo recomeço,

cada desafio vencido é uma nova possibilidade.

Partimos da premissa de que o professor de Educação Infantil deseja ensinar crianças.

As motivações podem ser as mais distintas possíveis; entretanto, ele não pode esquecer uma

das características fundamentais da infância: a curiosidade. Característica essa marcada pela

criatividade e pela capacidade de admirar-se pelas coisas mais simples (o que para a cultura

grega significava o início do pensamento), e que se configura através da experiência lúdica.

Portanto, o professor deve ser capaz de recuperar essas características em seu processo de

formação e atuação profissional, na perspectiva de que todos, adultos e crianças, estão

jogando o “mesmo” jogo, cada um marcado por suas experiências anteriores.

Tem de haver vida nas escolas, pois educar é viver; portanto, tem de haver vida na

formação dos nossos professores. Uma vida construída nos princípios da complexidade e

também das experiências lúdicas. Consideramos que a formação de professores tem como

questão centralizadora a mesma questão da aprendizagem dos alunos: a perspectiva de um

aprender constante. E como aprendemos? Aprendemos na nossa interação com os outros

sujeitos, com o mundo; na dialética do subjetivo com o objetivo. E esse é o campo das

experiências lúdicas, tanto para o professor quanto mais para as crianças.

Acreditamos, com as questões abordadas nesse trabalho, contribuir para a reflexão e

para a instauração de um processo de ensino e aprendizagem que favoreça a formação de

sujeitos capazes de, na interlocução com seus pares, ressignificar conceitos, espaços, tempos e

intervenções. Significa a necessidade ou o desejo de fazer emergir uma nova concepção de

infância, uma nova cultura de escola, uma nova cultura da profissão de professor.

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