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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 101-125, Jan/Abr 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES IMATERIAIS DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR 1 Claudia Alves Resumo A emergência da noção de cultura material escolar na historiografia da educação recentemente, ao mesmo tempo em descortina horizontes para novas questões e interpretações, impõe desafios que se ligam à própria construção conceitual e sua apropriação. Neste texto, partimos de uma situação vivenciada em pesquisa para discutir as dimensões imateriais que se relacionam à memória e à construção de identidades, percebidas como aspectos que podem e devem ser incorporados pelo historiador no tratamento e problematização das fontes quando pensadas como parte do acervo da cultura material escolar brasileira. Palavras-chave: cultura material escolar; memória; identidade; pesquisa. EDUCATION, MEMORY AND IDENTITY: IMMATERIAL ASPECTS OF SCHOOL MATERIAL CULTURE Abstract The recent onset of school material culture in the education historiography offers challenges connected to the conceptual construction and appropriation of the term itself and, at the same time, asks new questions and proposes new interpretations. Within this context and from a new situation in research, immaterial dimensions related to memory and identity construction are discussed and perceived as aspects that may and shall be incorporated by historians when dealing with the problem of sources as part of the material culture of Brazilian schools. Keywords: school material culture; memory; identity; research. 1 Texto apresentado no 14º Encontro Sul-Riograndense de História da Educação, sobre “Cultura Material Escolar: memórias e identidades”, de 27 a 29 de outubro de 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, em mesa-redonda coordenada por Maria Stephanou, da qual participaram, também, Ana Chrystina Venancio Mignot e Lúcio Kreutz.

EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES IMATERIAIS DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR

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A emergência da noção de cultura material escolar na historiografiada educação recentemente, ao mesmo tempo em descortinahorizontes para novas questões e interpretações, impõe desafios quese ligam à própria construção conceitual e sua apropriação. Nestetexto, partimos de uma situação vivenciada em pesquisa para discutiras dimensões imateriais que se relacionam à memória e à construçãode identidades, percebidas como aspectos que podem e devem serincorporados pelo historiador no tratamento e problematização dasfontes quando pensadas como parte do acervo da cultura materialescolar brasileira.

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  • Histria da Educao, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 101-125, Jan/Abr 2010. Disponvel em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

    EDUCAO, MEMRIA E IDENTIDADE: DIMENSES IMATERIAIS

    DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR1 Claudia Alves

    Resumo A emergncia da noo de cultura material escolar na historiografia da educao recentemente, ao mesmo tempo em descortina horizontes para novas questes e interpretaes, impe desafios que se ligam prpria construo conceitual e sua apropriao. Neste texto, partimos de uma situao vivenciada em pesquisa para discutir as dimenses imateriais que se relacionam memria e construo de identidades, percebidas como aspectos que podem e devem ser incorporados pelo historiador no tratamento e problematizao das fontes quando pensadas como parte do acervo da cultura material escolar brasileira.

    Palavras-chave: cultura material escolar; memria; identidade; pesquisa.

    EDUCATION, MEMORY AND IDENTITY: IMMATERIAL ASPECTS OF SCHOOL MATERIAL CULTURE

    Abstract The recent onset of school material culture in the education historiography offers challenges connected to the conceptual construction and appropriation of the term itself and, at the same time, asks new questions and proposes new interpretations. Within this context and from a new situation in research, immaterial dimensions related to memory and identity construction are discussed and perceived as aspects that may and shall be incorporated by historians when dealing with the problem of sources as part of the material culture of Brazilian schools.

    Keywords: school material culture; memory; identity; research.

    1 Texto apresentado no 14 Encontro Sul-Riograndense de Histria da Educao, sobre Cultura Material Escolar: memrias e identidades, de 27 a 29 de outubro de 2008, na Faculdade de Educao da Universidade Federal de Pelotas, em mesa-redonda coordenada por Maria Stephanou, da qual participaram, tambm, Ana Chrystina Venancio Mignot e Lcio Kreutz.

  • Histria da Educao, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 101-125, Jan/Abr 2010. Disponvel em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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    EDUCACIN, MEMORIA E IDENTIDAD: DIMENSIONES INMATERIALES DE LA CULTURA

    MATERIAL ESCOLAR Resumen La nocin de cultura material escolar en la historiografa de la educacin es reciente. Al mismo tiempo en que se abren horizontes para las nuevas cuestiones e interpretaciones, se plantean retos relacionados a su propia construccin conceptual y apropiacin. En este trabajo partimos de una situacin vivida en la investigacin para analizar las dimensiones inmateriales relacionadas a la memoria y a la construccin de identidades, entendidas como aspectos que pueden y deben ser incorporados por el historiador en el tratamiento y problematizacin de las fuentes que se consideran como parte de la cultura material escolar brasilea.

    Palabras clave: cultura material escolar; memoria; identidad; investigacin.

    DUCATION, MMOIRE ET IDENTIT: DES DIMENSIONS IMMATRIELLES DE LA CULTURE

    MATRIELLE SCOLAIRE Rsum La notion de culture matrielle scolaire dans l'historiographie de l'ducation est rcente. Elle ouvre des horizons pour de nouvelles questions et interprtations en mme temps quelle pose des dfis qui se lient sa propre construction conceptuelle et appropriation. Dans cet article nous partons d'une situation vcue dans la recherche afin de discuter des dimensions immatrielles qui se rapportent la mmoire et la construction des identits, vues comme des aspects qui peuvent et doivent tre incorpores par l'historien dans le traitement et l'interrogation des sources considres comme faisant partie de notre acquis de la culture matrielle scolaire brsilienne.

    Mots-cls: culture matrielle scolaire; mmoire; identit; recherche.

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    A emergncia da noo de cultura material escolar, referida a um conjunto de artefatos, cuja existncia, uso e significado se ligam historicamente ao processo de escolarizao e conseqente disseminao da forma escolar, vem ganhando espao na escrita recente da histria da educao. Dessa forma, os suportes e utenslios que, em diferentes tempos e espaos, foram inventados, mobilizados, transpostos, difundidos para e pela escola, passam a integrar parte do acervo em que os historiadores recortam as fontes de pesquisa para suas questes, assim como ajudaram no surgimento de novos problemas de investigao.

    O conceito que precede, antecipa e abarca a noo em foco o de cultura escolar, amplamente debatido nos meios da histria da educao brasileira nas ltimas dcadas, onde chegou pela vertente francesa de sua configurao. Recuperando a histria da emergncia desse conceito, Diana Vidal (2005, p. 7-12) destacou a circulao de textos de Jean Hbrard, Andr Chervel e Claude Forquin, na dcada de 1990, por meio da revista Teoria & Educao. Embora a autora tambm faa referncia aos textos de David Hamilton, Thomaz Popkewitz, Michael Apple e Ivor Goodson, seu relato demonstra que o intercmbio, desenvolvido a partir da USP, com os pesquisadores do Institut National de Recherche Pdagogique, e a presena marcante da reflexo historiogrfica de Roger Chartier foram elementos decisivos na adoo do conceito pelos historiadores brasileiros. O artigo de Dominique Julia que abriu a publicao da Revista Brasileira de Histria da Educao transformou-se, por fim, na referncia mais citada a esse respeito.

    Apesar das nuanas nos modos de operar com o conceito, a materialidade dos suportes da atividade escolar portadores dos indcios das prticas educativas, mas tambm de sua normatizao, das formas de controle, bem como dos contedos selecionados no conjunto de saberes eleitos pela escola imps-se como parte da problemtica da pesquisa histrica em educao, acompanhando a incorporao dos estudos em torno da cultura escolar. Decifrar os

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    ngulos da cultura escolar implicava debruar-se sobre os diferentes instrumentos de ensino da leitura, do clculo, dos conceitos e os diversos suportes da escrita, assim como os ambientes pensados e construdos para abrigar as atividades da escola, a partir da segunda metade do sculo XIX.

    Recortada na ampla rede de relaes culturais que constri a escola e suas prticas, a cultura material escolar no pode, portanto, ser pensada fora delas. Entretanto, o fascinio da memria materializada, a partir da qual se constituem as fontes do historiador, v-se acrescido de uma especie de intimidade quando se agrega aos objetos um pertencimento cultura material escolar. H um risco de que se tornem excessivamente prximos, muito conhecidos. Naturalizados por uma especie de identidade comum.

    Por isso, o recurso s contribuies do debate historiogrfico mais amplo permite encontrar parmetros de anlise que articulem a materialidade da escola produo cultural que envolve outros mbitos da vida social. Pensar a cultura material escolar implica construir problemas de investigao impregnados de escolhas tericas que exigem a aproximao dos trnsitos e das vertentes que, a partir das dcadas de 1980 e1990 se desenharam no estudo histrico da cultura material. Como lembra Souza (2007, p. 169),

    preciso ter em vista que os artefatos so produtos do trabalho humano e apresentam duas facetas: eles tm uma funo primaria (uma utilidade prtica) e exercem funes secundarias, isto , simblicas. Significa considerar que os artefatos so indicadores de relaes sociais e como parte da cultura material atuam como direcionadores e mediadores das atividades humanas, o que confere aos objetos um significado humano.

    Concordando com esse ponto de vista, Gonalves e Faria Filho (2005, p. 52) argumentam que nosso olhar e perguntas devem nos levar a perceber, nos indicios, nos sinais, na materialidade, as prticas de que os objetos so portadores e/ou que formalizam...

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    Um repertorio dos elementos materiais da cultura escolar, desde os prdios at as lousas, passando por manuais, uniformes, cadernos escolares, instrumentos de escrita e os mais diversos materiais, vem sendo construdo, paulatinamente, como resultado de pesquisas e projetos de preservao de acervos escolares. Tom-los como portas de entrada para a compreenso dos processos educativos que ocorrem no espao escolar exige o movimento de conect-los s prticas que os circunscrevem.

    Essas prticas so de diferentes ordens, situadas em momentos distintos da historicidade dos artefatos e contextos materiais. Produo, circulao, recepo so mbitos que comportam, cada um deles, um conjunto de prticas que, mesmo que no se iniciem no espao escolar, para ele confluem e dele se espraiam, instaurando e/ou reforando novas aes e significados, fortalecendo discursos, estimulando posturas, interditando outros tantos discursos e posturas.

    Se a produo de materiais no algo prprio do espao escolar, prioritariamente caracterizado pelo consumo tanto de artefatos confeccionados para o seu uso embora possam ser apropriados fora dos muros das escolas (por exemplo, o livro didtico, cartilhas de alfabetizao, cadernos, carteiras etc.) (SOUZA, 2007, p. 177) como produzidos para usos sociais os mais diversos e para ela canalizados, uma dimenso produtiva pode ser apreendida nas formas como, no interior da escola, se criam e recriam determinados elementos da cultura material escolar. Os livros escolares, por exemplo, enquanto objeto material, so, em geral, produzidos por editoras, mas os historiadores da educao tm demonstrado a participao ativa dos professores como autores, o que implica uma concepo originaria da atividade de ensino. Mesmo o objeto em si pode ser produzido dentro da escola, quando se trata de uma proposta pedaggica que assim o determine.

    Enfatizamos essa dimenso porque se trata de um aspecto importante no presente texto. Escolhemos discutir as relaes entre cultura material escolar, memria e identidade a partir de

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    um exemplo emprico em torno de um artefato mais abordado pelos historiadores como registro e, portanto, testemunho do passado, do que por seu carter educativo, participante do conjunto de dispositivos mobilizados pela escola no seu intento de cumprir uma dada funo social.

    Com essa escolha, objetivamos contribuir com o debate acerca da problemtica referente delimitao de fronteiras para o que denominamos como cultura material escolar e a necessria operao, j assinalada por outros autores, de pensar esses artefatos a partir do seu uso social, que toma a escola como locus. Para isso, precisamos ter ateno com o que entendemos por atividade educativa, tendo em conta que a escola ensina muito mais do que os contedos prescritos, e o processo de socializao parte dos mecanismos que constroem e reafirmam os lugares sociais e as representaes que os justificam.

    Esse um aspecto fundamental na reflexo sobre as relaes entre cultura material e o papel da memria na construo de identidades. A questo que trazemos ao debate : Como a cultura material escolar pode nos auxiliar a entender a inscrio de atitudes, de autoconceitos, de pertencimentos, de identidades? Qual o lugar da memria nesse processo? Longe de ambicionar responder s questes em toda a sua complexidade, partimos aqui de uma situao coletada em ambiente de pesquisa histrica, enfocando alguns aspectos dessa relao.

    A fotografia escolar como exemplo

    Para discutir algumas das relaes que podem ser percebidas entre os trs termos que esto no ttulo educao, memria e identidade e a cultura material escolar, retomo aqui uma narrativa que fruto de uma pesquisa de uma de minhas orientandas de mestrado. Na busca de compreender a construo de identidades de mulheres negras, Giane Elisa Sales de Almeida (2009) empreendeu a coleta de depoimentos memorialsticos de

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    um grupo de mulheres de uma cidade mdia brasileira, que viveram parte da infncia e adolescncia nas dcadas de 1950 e 1960, quando a expanso da educao pblica comeou a criar oportunidades mais significativas de incluso das classes populares. Intentava-se verificar as oportunidades reais de acesso escola, vividas por esse grupo, alm de interrogar os modos como a escola, por meio das aes de seus sujeitos, lidava com a presena desse pblico.

    Um desses depoimentos trouxe tona um acontecimento muito significativo para uma delas, mas que, por contraste, ajudou a traduzir um interesse recorrente demonstrado pelo grupo. A depoente contou que um fato significativo em sua vivncia de escola envolveu o dia marcado para a produo das fotografias individuais dos alunos, aquelas que se tornaram clssicas, em que as crianas, portando seus uniformes sentavam-se frente de uma mesa ou carteira escolar, com os bracinhos sobrepostos, s vezes com um sorriso no rosto, a representao do globo terrestre ao lado, um mapa ou quadro-negro ao fundo, enfim, a criana envolta em vrios signos da cultura material escolar, pronta para ser imortalizada pelas lentes de um fotgrafo.

    Mas aquela menina negra, que tinha sado de casa arrumadinha e penteada pela me, no resistiu s brincadeiras e, no momento de ser fotografada, j estava completamente despenteada. A professora, que estava penteando as demais crianas para a foto, na vez dela, recusou-se a pente-la, dizendo: Seu cabelo no tem jeito de se pentear. E a menina no tirou a fotografia.

    Esse caso elucidou, para a pesquisadora, a forma insistente como as outras mulheres entrevistadas dentre as que tinham efetivamente freqentado a escola por algum tempo, que no era a maioria voltavam fotografia escolar, que aparecia como um registro sempre positivado, como uma espcie de trofu dentre os objetos significativos da memria dos tempos de escola. Em verdade, a foto era um trofu, no sentido de que, para obt-la,

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    mesmo que as depoentes no demonstrassem conscincia disso em suas falas, tinham superado barreiras que, na experincia de uma delas, demonstraram-se intransponveis. O conjunto de sentidos associados fotografia escolar fazem, ento, emergir as delicadas e intricadas relaes entre memria, identidade e cultura material escolar, que s so percebidas na pesquisa que penetra nas prticas cotidianas, aquelas que subvertem intenes e sentidos institucionalizados, ao mesmo tempo em que os reafirmam. Derivada dos saberes e prticas destinados disciplinarizao do corpo infantil, a fotografia escolar aparece, no fato narrado por aquela mulher negra, como a ferramenta eficaz de imposio de padres de comportamento, beleza, infncia, corpo, individualidade, identidade.

    Mas, para alm dessa funcionalidade, essa narrativa tomada, aqui, como provocao ao debate a respeito de alguns aspectos da relao entre memria, identidade e cultural material escolar, partindo do pressuposto de que ela construda no s na interface, mas tambm como parte da produo social de cultura, que implica, para a escola, sua participao nos movimentos de apropriao, releitura, recriao de elementos da cultura material em geral.

    Selecionamos quatro aspectos para os quais queremos chamar a ateno, em se tratando da fotografia escolar.

    Primeiro aspecto: das relaes entre escola e fotografia

    O primeiro deles diz respeito forma particular como a escola se relaciona com a fotografia em geral, e com o retrato, neste caso particular. A fotografia enquanto resultado de cincia, tcnica e arte (CIAVATTA, 2002, p. 15), integra a visualidade2

    2 Utilizamos aqui o conceito tratado por Meneses, que entende que a visualidade deve ser entendida como objeto detentor, ele tambm, de historicidade e como plataforma estratgica de elevado interesse cognitivo (2003, p. 11).

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    que caracteriza o oculocentrismo do mundo moderno (MENESES, 2003, p. 13). Isso significa dizer que, para alm de ser entendida como monumento (LE GOFF, 1992), operao fundamental no seu tratamento como fonte para a pesquisa histrica, a fotografia parte de um tempo histrico em que a sua materialidade instaura formas de viver, sentir, olhar e atuar sobre o mundo, ao mesmo tempo em que resulta de processos que, embora esparsos temporalmente, nela aparecem concentrados.

    Vidal (1998, p. 77), baseando-se nas anlises de Pierce, nos alerta sobre as diferentes dimenses que nela se imbricam: a de cone, que ao representar um referente o congela na imagem; a de indcio que nos auxilia a perceber a forma de olhar de um certo tempo histrico; a simblica, que nos d conta do quanto sua representao atuante na construo-transformao do real.

    Pensar as relaes entre escola e fotografia exige, ento, a considerao desses aspectos tericos e histricos. A fotografia como elemento de registro dos prdios escolares monumentais de fins do sculo XIX e incio do XX, registro de atividades pedaggicas, de facetas educativas da escola e representao de seu projeto educativo, registro dos sujeitos da escola, professores e alunos, como construtores da nacionalidade e da modernidade, tem sido muito til e provocado questes para a histria da educao que no pretendemos abordar neste artigo.

    Vale a pena, entretanto, tentar perceber algumas distines que demarcam o nosso recorte. Uma primeira distino diz respeito escola fotografada na sua dimenso pblica e da fotografia de mbito privado presente na escola. Essa distino no simples, nem pode-se tom-la como expresso de uma fronteira previa e claramente estabelecida, sobretudo quando se leva em conta as tnues demarcaes entre pblico e privado na histria brasileira. Mas, para os objetivos deste texto, trata-se de um risco necessario.

    As fotografias dos espaos, artefatos e prticas escolares, realizadas com fins de registro pelo poder pblico, seja para

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    documentao e/ou propaganda ou produzidas por agentes privados com objetivos de divulgao pblica como no caso da imprensa possuem, a nosso ver, um carter de produo, guarda e circulao que as diferencia do tipo de fotografia de que tratamos no caso presente. A fotografia escolar, objeto de nossa reflexo, define-se por ter sido produzida no espao pblico da escola, em geral por um agente privado, e com a previso de circulao e preservao em espaos privados, as habitaes familiares.

    Como objeto histrico, portanto, insere-se numa linha de tradio que, integrando a visualidade contempornea, produz-se na interface com a forma escolar enquanto modo de socializao caracterstico do mundo moderno, onde ganhou preponderncia sobre outros modos de socializao (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 11). Entendida dessa forma, torna-se possvel compreender o seu potencial educativo, no no sentido da sistematizao de saberes que parte da ao escolar, mas no de insero no mundo social, com todas as suas foras de manuteno e os movimentos idiossincrticos que isso comporta.

    Os registros pblicos dos espaos e atividades escolares datam, no Brasil, da segunda metade do sculo XIX. Acompanhando os avanos tcnicos e a difuso de seu uso3, conhece-se registros fotogrficos de escolas, antes mesmo que o registro fotogrfico se irradiasse como prtica corrente4 dos agentes pblicos e privados. Mas h um itinerrio, ainda pouco historiado, entre esse registro pblico e a introduo da fotografia de carter privado no espao escolar. Como o tema bastante

    3 Alguns historiadores assinalam o surgimento da fotografia em 1833, com difuso bastante restrita at 1850, quando a inveno do carto de visita fotogrfico, no rastro da produo em srie de instatneos, contribui para sua penetrao, atingindo inclusive as classes menos abastadas (VIDAL, 1998, p. 79). 4 Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Julia Falivene Alves, por exemplo, localizaram fotografias desde os anos 1860, no trabalho de pesquisa que deu origem ao lbum Escolas Profissionais Pblicas do Estado de So Paulo: uma histria em imagens (lbum Fotogrfico). Centro Paula Souza, 2002.

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    abrangente e foge aos limites do presente trabalho, nossa inteno restringe-se a assinalar que pode-se inferir que, na relao entre escola e fotografia, h um percurso em que o registro fotogrfico transitou de documentos produzidos com vistas a comporem o acervo de memria pblica, para registros que integrassem o acervo pessoal de memria de professores e alunos, parte da constituio de memria da vida privada.

    Segundo aspecto: o retrato como imagem de si

    Tratamos inicialmente da fotografia, procurando enfocar a historicidade desse artefato no mbito da visualidade que caracteriza a modernidade, mas tambm de como essa visualidade se realiza na escola e a envolve como objeto e partcipe na multiplicao de imagens. Introduzimos, ento, uma primeira distino que incorporamos ao debate sobre a fotografia escolar como parte da cultura material escolar: o carter pblico ou privado de sua produo, guarda e circulao. Uma segunda distino torna-se importante nessa aproximao da fotografia escolar: a especificidade do retrato no mbito do registro fotogrfico.

    O retrato remete materializao da imagem de si, uma imagem a ser preservada, uma imagem que rompe a barreira do tempo, imortalizando aquela frao de vida, e, com ela, um pouco da prpria pessoa. Trata-se de um gesto que remete a uma tradio que, na Antiguidade, associava-se escultura e aos afrescos, e ganhou, no Renascimento, a conquista tcnica da pintura. Retratar-se ou fazer-se retratar, associando a imagem a um nome, uma trajetria, uma vida, uma obra, constituiu-se como prtica cultural de pequenos crculos, de figuras notveis, de gente poderosa, econmica e politicamente, com recursos para garantir essa execuo. No que homens e mulheres de outros extratos sociais deixassem de ser retratados em imagens de cenas cotidianas de trabalho, ambientes familiares ou de diverso. Mas estavam l

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    annimos. So annimos para ns, o pblico que olha para essas imagens.

    A inveno da fotografia introduziu a popularizao, a partir do sculo XIX, dessa possibilidade de ser retratado. Numa sociedade em que a dimenso privada da vida social j havia configurado espaos e grupos familiares restritos, a fotografia logo passou a integrar o acervo de memrias das famlias, penetrando gradativamente com seus saberes, ferramentas, objetos e normas (MAUAD, 1997). Na vida pblica, substituiu, em grande parte, a pintura, na sua funo de imortalizar os poderosos, alm de ser requisitada para integrar o arsenal de estratgias acionadas para legitimar projetos de governos em suas construes de hegemonia. O caso do fotgrafo Augusto Malta, contratado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, quela poca capital da Repblica, para registrar as grandes transformaes no panorama urbano no inicio do sculo XX, emblemtico desse tipo de uso pblico (CIAVATTA, 2002).

    Mas a fotografia tambm exigia recursos materiais para ser produzida ou adquirida. A foto mercadoria, que resulta de outras mercadorias: a mquina, o papel, os agentes qumicos, os suportes dos negativos, parte delas em processo de desaparecimento nos dias atuais. As fotografias se tornaram parte do patrimnio das famlias e a quantidade que constitui o acervo um demonstrativo, tambm, da condio de classe dos indivduos que as compem5. No Brasil das dcadas de 1950/60 possvel imaginar que o acesso aos retratos de famlia entre negros pobres fosse bastante restrito, a despeito do desenvolvimento industrial e urbano que comeava a caracterizar o pas.

    Apropriado pela escola, esse tipo de retrato passava a constituir parte da cultura material a ela associada. Como no estamos tratando da fotografia em geral, essa prtica se inscreve

    5 Algo semelhante pode-se dizer a respeito dos filmes domsticos, enquanto documentos imagticos em acervos privados.

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    como geradora de um produto que tangencia o ncleo, propriamente dito, da cultura material escolar, que, poderamos dizer, constitudo por cadernos, lpis e correlatos, lousas, livros, quadros murais, carteiras, enfim, materiais diretamente associados ao ensino, utilizados com a finalidade de fazer acontecer o saber escolar no aluno. Por outro lado, a dimenso educativa desse tipo de retrato inegvel. Uma gama de valores se insere no gesto de retratar os alunos, ao conceder-lhes um lugar particular na histria, como portadores dos atributos que s a escola lhes poderia conferir. No mesmo gesto, fortifica os padres de comportamento que lhe so pertinentes, retoma o enquadramento do retrato impregnando-o das intenes que compem a escolarizao.

    Neste debate, queremos chamar ateno para a forma como a cultura material escolar, gerada na interface da produo cultural em geral, torna possvel uma apropriao particular de produtos culturais, acentuando e explicitando sua funo educativa, nas exigncias postas pela escolarizao.

    Terceiro aspecto: o objeto situado nas relaes sociais

    Um terceiro aspecto que cabe no presente debate o de que, no caso da escola brasileira, embora no seja exclusividade dela, preciso analisar as formas especficas como um pressuposto profundamente anti-democrtico encontra formas de atualizar-se na materialidade da escola, ora conformado por sua cultura material, ora denunciado por ela. No caso relatado, a interdio fotografia aparece como a revelao do racismo, persistente como herana de sculos de escravido negra.

    A fotografia escolar, ento, precisa ser analisada considerando-se um conjunto de gestos, de saberes e de sentidos implicados na sua produo. O que a foto enquadra um cenrio produzido na e pela escola. A seleo de objetos seguiu critrios afinados com os valores que a escola tem compromisso de

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    difundir, os smbolos que deve cultuar. Essa seleo impe-se como parte das estratgias que se dirigem s famlias das crianas em processo de socializao. A ao educadora confere escola o papel de reafirmar, por meio do seu modo especfico de socializao, valores e posturas consoantes com as formas de dominao. A escola situa-se e chamada a colaborar na construo de um campo de tenses articulado s relaes que sustentam a vida social. Sua ao estende-se para alm do aluno, atingindo a rede social em que ele est inserido.

    A relao entre famlia e escola, longe de constituir-se de forma pacfica e harmoniosa, construiu-se a partir de disputas e negociaes que mobilizaram foras sociais e intelectuais. Esforos de intelectuais engajados em tornar a escola uma realidade presente na vida de crianas dos mais diversos grupos sociais geraram discursos, projetos e aes apontados para consolidar o elo entre famlia e escola. A crena no poder da escola em modelar o comportamento familiar, idealizado a partir de uma representao moderna do ncleo familiar, moveu iniciativas presentes no Brasil desde princpios do sculo XX, e que ganharam consistncia medida que a escola se institua como elemento aceito e incorporado como espao de socializao da infncia (MAGALDI, 2007, p. 11-24).

    Nas dcadas de 1950/1960, quando se passou o fato narrado pela depoente, a escola j se havia imposto como autoridade frente ao poder da famlia. Muitos traos de modelagem dos corpos, dos gestos, das expresses j se encontravam assimilados por boa parte da sociedade, mesmo pelos segmentos que ainda no conseguiam acesso educao escolar. A expanso do modo de vida urbano e do trabalho industrial facilitavam essa difuso trazendo para os espaos de convivncia as prescries da cultura escolar, ao mesmo tempo em que levavam para a escola os produtos culturais produzidos em diferentes tradies, e que passavam a ser repaginados luz dos princpios de organizao e circulao dos saberes escolarizados.

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    No discurso pedaggico constroem-se representaes da famlia, muitas vezes tida como incapaz, despreparada para lidar com a educao dos filhos, ao mesmo tempo em que se buscam formas de aproximar a famlia da escola (FARIA FILHO, 2002, p. 82). Embora o impacto desses discursos na prtica cotidiana possa ser relativizado, a percepo da famlia como instituio secundaria na educao das crianas j havia se difundido fortemente naquele perodo. possvel inferir, ainda, que o novo pblico atingido pela escola, de camadas sociais mais pobres, fosse o alvo privilegiado desse tipo de representao.

    A produo da fotografia escolar se transformava, ento, em mais uma oportunidade de reafirmar, para a famlia, o padro esperado de higiene, cuidado com a aparncia, conteno nos gestos. Cuidado e disciplina passam a ser tomados como indicadores do pertencimento a um grupo. No caso da fotografia, sua produo inclua o filtro que designava quem poderia ser retratado. Na medida em que a escola oferecia uma alternativa que, em princpio, seria para todos, a implementao prtica fazia emergir outras estratgias de reconverso desigualdade. No caso brasileiro, desigualdade associada ao lugar histrico construdo para os negros e difcil incorporao desse pblico, num processo de idas e vindas (DVILA, 2006; MLLER, 2008; VEIGA, 2008).

    A cultura material escolar precisa ser analisada, ento, como fruto de relaes, assim como componente delas. O objeto se interpe entre as pessoas, podendo ser elo de ligao ou fronteira. Tanto pode aproximar como afastar. Constitui lugares, hierarquias, assinala diferenas e desigualdades. Penso que esse um vis importante a ser resgatado na crtica quelas perspectivas pedaggicas que acreditam que materiais mais bem elaborados podem dar conta da tarefa educativa. Tambm deve fundamentar argumentos que se contraponham viso de que a tecnologia , por si s, elemento de democratizao do acesso ao conhecimento.

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    Quarto aspecto: cultura material, memria e identidade

    Um quarto aspecto que considero interessante nessa reflexo o que se refere fora das memrias de vivncias escolares. Dependendo da gerao, do grupo social, da localizao geogrfica, do gnero, isso comporta diferenas, s vezes, bastante acentuadas. Entretanto, entre os indivduos que freqentaram os espaos escolares, a fora de socializao que eles portam imprime marcas profundas na construo de identidades, e esse fato pode ser constatado nas memrias recolhidas em atividades de pesquisa.

    Esse aspecto pode nos conduzir a vrias questes que emergem das relaes entre cultura material escolar, memria e identidade, e seria impossvel abordar todas elas neste artigo. Mas pontuaremos algumas, dentre as muitas que podem ser incorporadas anlise de nosso caso emprico, entendendo que essa discusso s faz sentido se mantiver, como horizonte de referncia, a reflexo sobre a escola brasileira na relao com os diferentes grupos sociais.

    Os estudos a respeito da memria, no campo historiogrfico, tm procurado nutrir-se do conhecimento produzido, sobretudo, por estudos em psicologia social (S, 2005), enquanto a discusso em torno da identidade tem fortes referentes na psicanlise, na antropologia, na lingustica e, tambm, na filosofia e na histria (CLAVAL, 1999, p. 12-14). A questo fundamental da subjetividade na sua relao com os processos sociais e culturais atravessa esse amplo debate.

    Os fenmenos da subjetividade, envolvendo sentimentos e pensamentos pessoais, no podem ser compreendidos a partir de uma perspectiva puramente individual. Embora guardem distines, subjetividade e identidade so conceitos que, em larga medida se superpem. Por isso, aparecem utilizados de forma intercambivel. Precisando melhor os dois conceitos temos que:

    Subjetividade sugere a compreenso que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as emoes

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    conscientes e inconscientes que constituem nossas concepes sobre quem ns somos. A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. Entretanto, ns vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura do significado experincia que temos de ns mesmos e na qual nos dotamos de identidade. Quaisquer que sejam o conjunto de significados construdos pelos discursos, eles s podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos so, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles proprios, assumi-lo como indivduos que, dessa forma, se posicionam a si proprios. As posies que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (WOODWARD, 2007, p. 55)

    A construo de identidades envolve, ento, processos subjetivos, de internalizao de construes simblicas. Essas construes, longe de serem naturais, so construes culturais e sociais que buscam, em elementos exteriorizados, materiais, formais, rituais, o meio de sua expresso. A lingustica e a antropologia estruturalistas frisaram o compromisso com os dualismos presente nas estruturas de pensamento. Embora esse ponto de vista merea as crticas que recebeu pela generalizao que embutiu em suas concluses, a percepo de certas oposies binrias pode nos ajudar a refletir sobre a forma como se constroem identidades que demarcam lugares sociais.

    No caso que trazemos para nosso estudo, a fronteira entre os que poderiam e os que no poderiam ser retratados parte de uma construo identitria que implica a delimitao da diferena. Todo processo de construo de identidades pressupe a linha demarcatria entre o eu e o outro, ou entre ns e os outros. Agregam-se sujeitos em torno de algo que assumido como comum, em oposio a outros que no partilhariam daquele mesmo atributo. Por isso, Silva escreveu que assim como a identidade depende da diferena, a diferena depende da identidade. Identidade e diferena so, pois, inseparveis (2007, p. 75).

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    Como essa determinao do que prprio e do que difere entrelaa-se a critrios que hierarquizam os componentes de um certo universo, as marcas que so selecionadas para a composio de um padro identitrio tambm aparecem impregnadas de critrios de valor que as qualificam como superiores em relao s que se posicionam como externas ou opostas. Se pensarmos no retrato escolar como um artefato cuja produo no interior da escola fortalece a construo da identidade do estudante como partcipe de uma comunidade educada, as prticas envolvidas na sua produo ganham sentido. H um confronto estabelecido e fomentado entre os iguais e os diferentes.

    Essa produo identitria que encontra na escola um lcus de realizao, entretanto, como vimos frisando, no esgota nela mesma, nem responde a finalidades puramente escolares. A idia de identidade legitimadora (CASTELLS, 1999, p. 24) pode nos ajudar a pensar essa produo tendo como referncia o prprio lugar que a escola foi chamada a ocupar no projeto nacional republicano. A adeso dos sujeitos a essa comunidade imaginada que a nao (ANDERSON, 2005) resultou de muito investimento cultural, em que todo um sistema simblico foi mobilizado para sua configurao. conhecido o potencial de violncia conjugado a essas aes, e o caso de que tratamos emblemtico nesse sentido.

    A memria, como produo do momento presente denuncia o quanto algumas experincias so decisivas e ficam retidas como ncoras no psiquismo individual. Le Goff (1984, p. 476) nos lembra que a memria um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje... Essa relao, entretanto, no pacfica, posto que a propria construo da identidade tambm no o . A memoria constitui-se como campo de disputa (POLLAK, 1989): das disputas que esto na origem de sua elaborao s disputas que, no presente, desenham as lutas por sua apropriao, seu apagamento, sua ocultao.

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    Memria e identidade so conceitos que remetem a processos sempre inacabados e continuamente confrontados com as circunstncias scio-culturais dos tempos que se sucedem. Por esse motivo, a perspectiva terica mais aceita para sua utilizao a construtivista, ou seja, aquela que descarta a possibilidade de chegar a uma essncia, um ncleo fixo e definitivo de sua constituio. Isso no significa, entretanto, que sejam to mutantes que no possamos apreend-las. So construes histricas, ligadas a lugares institucionais, que organizam a experincia pessoal e social (HALL, 2007, p. 108-111). Remetem a jogos de poder, estruturas e mecanismos de dominao.

    No caso do retrato, um elemento que pode, ainda, ser associado nessa anlise o da visualidade nessa constituio de memria e identidade. Meneses (2003, p. 17) chama a ateno para as especificidades que caracterizam as imagens nos processos de produo de sentido:

    ... nossa postura habitual pertinente imagem analgica, como muitos j notaram, fundamentalmente uma relao sentimental.

    Embora o autor esteja discutindo as dificuldades que se apresentam aos pesquisadores que lidam com imagens, possvel utilizar a mesma observao para o poder da imagem na construo da memria e da identidade. Para alm, ento, da problemtica que envolve o retrato escolar, como artefato da cultura material escolar, o seu atributo de visualidade imprime-lhe uma fora constitutiva de significados que no pode ser desconsiderada em nossa anlise.

    Finalmente, um ltimo aspecto que queremos frisar, por outro lado, o potencial contraditrio que necessitamos perceber em todos esses processos. A cultura material escolar, seja em manifestaes particulares, ou pensada no seu conjunto, no possui o poder absoluto de conformar modos de pensar, sentir, dizer e agir. As formas de percepo e elaborao dos mecanismos

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    postos em marcha, pela escola, por parte dos diferentes grupos nas suas construes identitrias comportam uma dialtica que permite surgir o imprevisto, o que subverte. Retornando narrativa exemplar de que partimos, aquela mesma vivncia que poderia reforar o lugar subalterno para o qual foi empurrada pela atitude da professora, atuou como um dos fatores de indignao que levaram aquela menina a se tornar militante do movimento de defesa dos direitos das populaes negras, contra todas as formas de racismo.

    No que se deva apostar nesse efeito contrrio para justificar ou minimizar os efeitos perversos que esse tipo de experincia possui nos sujeitos. Mas queremos encerrar frisando que a cultura material escolar tem sua historicidade marcada por um campo de relaes, que rico, mltiplo, contraditrio, e merece ateno dos pesquisadores.

    Consideraes finais

    A fotografia escolar, tomada como indcio da cultura material escolar, provoca diversas questes ao pesquisador de histria da educao, algumas das quais tentamos discutir neste texto. Interessou-nos, particularmente, a problemtica da pesquisa que se prope a tomar os artefatos da cultura material escolar para a compreenso das relaes entre escola, memria e identidade.

    Alguns cuidados destacam-se como componentes importantes dos procedimentos de pesquisa, para os quais intentamos chamar a ateno. O primeiro deles diz respeito necessria relao entre a cultura material escolar, tomada como vestgio de prticas associadas sua produo, uso, circulao e apropriao. Os objetos, assim como os edifcios, para produzirem sentidos, participam de sistemas simblicos integrados em amplos circuitos de produo scio-cultural.

    Por outro lado, participam diferentemente, de maneiras que guardam relaes com suas funes de uso, suas caractersticas

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    materiais e os tempos/espaos de sua presena como dispositivo escolar. Em nosso caso particular, o artefato imagtico, encaminhou-nos a buscar os aportes terico-metodolgicos pertinentes ao seu tratamento na pesquisa. A observao de Menezes (2003, p. 29) sintetiza um conjunto de preocupaes em torno desse objeto:

    Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em vrias dimenses, usos e funes. O emprego de imagens como fonte de informao apenas um dentre tantos (inclusive simultaneamente a outros) e no altera a natureza da coisa, mas se realiza efetivamente em situaes culturais especficas, entre vrias outras. A mesma imagem, portanto, pode reciclar-se, pode assumir vrios papis, ressemantizar-se e produzir efeitos diversos.

    Essa observao parece-nos bastante adequada preocupao que orientou nosso texto. No nosso estudo, interessou-nos, sobretudo, o que a imagem escondia, ou melhor, a ausncia daquela imagem no acervo de memrias de uma determinada famlia. Essa percepo s foi possvel, porque a pesquisa no se restringiu aos artefatos, mas chegou a eles por meio dos depoimentos coletados, com vistas a garimpar memrias de um grupo especfico: mulheres negras de uma certa faixa etria de uma determinada cidade. A delimitao tornou-se, aqui, o parmetro que nos permitiu acessar riqueza de uma experincia capaz de provocar questes ainda caras aos educadores brasileiros.

    Se, de um lado, essa cultura material se interpe nas relaes sociais, de outro, possvel pensar que a sua simples presena um indcio de muitas relaes que esto para alm da escola, mas para ela confluem. Quando me refiro a isso, penso no fenmeno do empobrecimento radical das escolas pblicas nas periferias metropolitanas. Em conferncia pronunciada em simpsio promovido pela UFF e UERJ sobre Estado e Poder, o historiador argentino Juan Javier Balsas referiu-se forma como est se consolidando, entre os jovens de pases latino-americanos a

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    naturalizao de que as escolas pblicas so para os pobres, escolas particulares so para a classe mdia e os ricos devem estudar em escolas especiais, de alta tecnologia, dirigidas s suas necessidades.

    Perguntaramos: como a pobreza material das escolas pblicas colabora para construir identidades conformadas dentre os grupos subalternos, ao reafirmar, de forma evidente, que eles no tm direito a uma escola materialmente rica?

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    Claudia Alves Doutora em Histria Social pela USP. Professora Associada da Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminense. Presidente da Sociedade Brasileira de Histria da Educao na gesto 2007-2009. E-mail: [email protected].

    Recebido em: 05/11/2009 Aceito em: 20/12/2009