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1 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE Unidade I Diversidade e diferença DIVERSIDADE E DIFERENÇA: PROBLEMAS TEÓRICOS E PEDAGÓGICOS Nilton Mullet Pereira Introdução O Brasil é um palco por onde desfila o espetáculo da diferença. Um lugar marcado por profundo sincretismo e intensa mistura étnica que tornam os brasileiros tributários de muitas histórias e diversas experiências. Ser brasileiro é estar sendo, ao mesmo tempo, de um jeito que é o acúmulo de inúmeros jeitos, modos, formas, experiências. Entretanto, é preciso considerar que, não obstante os avanços notáveis nos últimos anos, a sociedade brasileira, reconhecidamente um espaço multicultural, ainda preserva importantes manifestações de racismo, preconceito e intolerância. Já se foram os tempos nos quais a miscigenação, a mestiçagem ou a falta de uma identidade nacional fixa era considerada condição do nosso subdesenvolvimento. As análises culturais levadas a cabo por pensadores como Alfredo Bosi ou Antonio Cândido já mostravam que um país plural, diverso, crivado pela mestiçagem e pelo sincretismo, não pode ser, por isso, menos desenvolvido. Desde então, a idéia de uma pátria plural, no campo cultural, e de uma identidade híbrida passaram a ser vistas como fatores altamente positivos. O tema da diversidade cultural tem tomado os meios intelectuais, chegando muito rapidamente à televisão, ao cinema e à publicidade. Facilmente verificamos tiras publicitárias ou telenovelas que abordam positivamente o tema da diversidade, da tolerância e do respeito à diferença. Isso quer dizer que estamos mais perto da construção de uma sociedade que, por um lado, se reconheça como múltipla cultural e etnicamente e, por outro lado, reconheça as diversas diferenças que, para além do tema étnico e racial, habitam o espaço deste imenso país. Mas, importa salientar que o convívio das diferenças não tem sido experiência fácil, nem mesmo nos campos da mídia ou da produção cultural de massa, que procura mais rapidamente se adequar aos novos tempos e às novas necessidades de consumo. Na escola, o convívio ainda é mais problemático, tanto dos jovens entre si quanto entre os professores e os jovens. Isso quer dizer que muito ainda há para ser feito, de modo que aquilo que é glorificado pelos textos e pesquisas acadêmicas se converta em experiência histórica para todos os brasileiros. Nesse sentido, o curso que ora apresentamos quer colocar em pauta, no espaço escolar, não apenas a discussão sobre o racismo ou as diferentes etnicidades que cumprem a função de oferecer marcas à identidade nacional e moldá-la como plural, mas discutir as diferenças nos campos do gênero, no campo das religiosidades, no interior do universo das culturas juvenis, do tema diversidade geracional e no tema da regionalidade. Um país continental, caracterizado pela impossibilidade de desenhar uma única cara para o brasileiro, se mostra crivado pela diferença no campo das etnias, mas também em múltiplas máscaras através

Educação Para a Diversidade AULA PRISMA 6 PERIODO

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Orientações para o trabalho Educação e Diversidade.

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    EDUCAO E DIVERSIDADE Unidade I

    Diversidade e diferena

    DIVERSIDADE E DIFERENA: PROBLEMAS TERICOS E PEDAGGICOS

    Nilton Mullet Pereira

    Introduo

    O Brasil um palco por onde desfila o espetculo da diferena. Um lugar marcado por

    profundo sincretismo e intensa mistura tnica que tornam os brasileiros tributrios de muitas

    histrias e diversas experincias. Ser brasileiro estar sendo, ao mesmo tempo, de um jeito

    que o acmulo de inmeros jeitos, modos, formas, experincias. Entretanto, preciso

    considerar que, no obstante os avanos notveis nos ltimos anos, a sociedade brasileira,

    reconhecidamente um espao multicultural, ainda preserva importantes manifestaes de

    racismo, preconceito e intolerncia.

    J se foram os tempos nos quais a miscigenao, a mestiagem ou a falta de uma identidade

    nacional fixa era considerada condio do nosso subdesenvolvimento. As anlises culturais

    levadas a cabo por pensadores como Alfredo Bosi ou Antonio Cndido j mostravam que

    um pas plural, diverso, crivado pela mestiagem e pelo sincretismo, no pode ser, por isso,

    menos desenvolvido. Desde ento, a idia de uma ptria plural, no campo cultural, e de uma

    identidade hbrida passaram a ser vistas como fatores altamente positivos.

    O tema da diversidade cultural tem tomado os meios intelectuais, chegando muito

    rapidamente televiso, ao cinema e publicidade. Facilmente verificamos tiras publicitrias

    ou telenovelas que abordam positivamente o tema da diversidade, da tolerncia e do

    respeito diferena. Isso quer dizer que estamos mais perto da construo de uma

    sociedade que, por um lado, se reconhea como mltipla cultural e etnicamente e, por outro

    lado, reconhea as diversas diferenas que, para alm do tema tnico e racial, habitam o

    espao deste imenso pas. Mas, importa salientar que o convvio das diferenas no tem

    sido experincia fcil, nem mesmo nos campos da mdia ou da produo cultural de massa,

    que procura mais rapidamente se adequar aos novos tempos e s novas necessidades de

    consumo. Na escola, o convvio ainda mais problemtico, tanto dos jovens entre si quanto

    entre os professores e os jovens. Isso quer dizer que muito ainda h para ser feito, de modo

    que aquilo que glorificado pelos textos e pesquisas acadmicas se converta em

    experincia histrica para todos os brasileiros.

    Nesse sentido, o curso que ora apresentamos quer colocar em pauta, no espao escolar,

    no apenas a discusso sobre o racismo ou as diferentes etnicidades que cumprem a funo

    de oferecer marcas identidade nacional e mold-la como plural, mas discutir as diferenas

    nos campos do gnero, no campo das religiosidades, no interior do universo das culturas

    juvenis, do tema diversidade geracional e no tema da regionalidade. Um pas continental,

    caracterizado pela impossibilidade de desenhar uma nica cara para o brasileiro, se mostra

    crivado pela diferena no campo das etnias, mas tambm em mltiplas mscaras atravs

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    das quais milhares de sujeitos do sentido s suas vidas e constituem um modo singular de

    ser.

    Nosso objetivo central, ento, consiste em oferecer possibilidades didticas para auxiliar os

    professores a tornar a sala de aula e o espao da escola como o grande tubo de ensaio de

    uma sociedade diversa, mltipla e plural.

    AS POLTICAS DE IDENTIDADE

    Os estudos pioneiros no campo do multiculturalismo afirmavam que a identidade no fixa,

    ou seja, que a identidade construda historicamente, por isso, fluida, voltil e transformvel.

    Uma vez estabelecida tal assertiva, a busca interminvel pela identidade verdadeira de um

    determinado grupo ou indivduo se tornou uma empresa que resta intil. De toda a forma, a

    questo das identidades apresenta-se como atual e cotidiana, j que no se trata mais da

    tentativa de descobrir quem realmente somos ou quais as verdadeiras razes da nossa

    existncia. O que est em jogo construir referncias a partir de onde os indivduos e os

    grupos possam olhar a si mesmos como parte de algo que ultrapassa os limites do seu

    presente. Trata-se, antes de tudo, de construir memria, passado e histria a grupos e

    indivduos que, at ento, estavam fora das polticas de pertencimento. Isto , no

    pertenciam a uma histria, no tinham um passado e no partilhavam com outros uma

    memria a partir da qual pudessem ver a si mesmos de modo afirmativo. Interessante

    lembrar que, nos bancos escolares, nas aulas de histria, estivemos acostumados a

    contemplar uma histria europeia, negligenciando, ao mesmo tempo, a histria da Amrica,

    a histria da frica e outras histrias que esto intimamente ligadas formao do Brasil. A

    nossa memria, a nossa histria e o nosso passado foram, por muito tempo, submetidos ao

    imperativo do chamado eurocentrismo. Ao olhar para ns mesmos, olhvamos para o

    europeu, como se ele fosse o modelo a partir do qual construamos a nossa identidade.

    As polticas de identidade, hoje, esto ligadas a disputas polticas importantes da nossa

    sociedade. Lutas polticas de grupos tnicos, de gnero e outros, tm permanentemente

    constrangido os poderes pblicos a elaborar estratgias de resgate da memria coletiva dos

    brasileiros, das histrias especficas de cada um dos grupos identitrios. H tempos vimos

    crescer vertiginosamente a chamada parada do orgulho gay que estabelece um dia

    determinado para um desfile pblico com a participao de indivduos e grupos de todas as

    cores e de todas as tendncias. Essa marcha toma as principais cidades do Brasil e do

    mundo, num claro movimento poltico que destroa a intolerncia e registra, na memria

    social, modos de ser e de viver que fogem aos padres estabelecidos pela moral crist e

    burguesa. A presso poltica decorrente dessas manifestaes e de suas entidades polticas

    tem tido efeitos importantes nas polticas governamentais, em decises de tribunais de

    justia quanto aos direitos dos homossexuais e na luta contra a homofobia.

    Indubitavelmente, tanto a mera intolerncia quanto a homofobia so colocadas em xeque,

    mas, de modo algum, so pginas viradas da nossa histria. Interessante verificar toda uma

    srie de decises judiciais que concedem direitos a homossexuais e condenam a homofobia,

    entretanto, as decises judiciais no se convertem em leis no Brasil, como ocorre na

    Argentina, por exemplo.

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    O mesmo pode ser pensado quanto aos movimentos negro e indgena. O movimento negro

    j conseguiu estabelecer o dia 20 de novembro, Dia da Conscincia Negra, como feriado

    municipal em diversas cidades do pas e a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e

    da cultura afrobrasileira nos currculos escolares (vide Lei no 10.639, de 9 de Janeiro de

    2003). Ademais, no podemos esquecer o fato de que o racismo j fora tipificado como

    crime, previsto no cdigo penal e passvel de priso.

    A legislao, em verdade, se antecipa aos currculos universitrios que, na sua maioria,

    ignoravam ou ignoram a Histria da frica. Consequentemente, no que tange formao

    inicial dos professores de Histria, eles ainda se debatem com a necessidade de incorporar

    a Histria da frica e da cultura afrobrasileira, uma vez que, tradicionalmente, os Cursos

    abordavam apenas a questo da escravido, demonstrando um completo desconhecimento

    da religiosidade afrobrasileira, por exemplo. Neste caso especfico, adequado pensar que,

    no obstante a crtica ao eurocentrismo e a consequente ampliao do horizonte das razes

    histricas do povo brasileiro, o ensino nas escolas ainda est demasiado ligado a uma viso

    pouco afirmativa dos povos africanos e dos afrodescendentes. A aula de histria e os livros

    didticos em geral mostram uma histria do negro ligada s mazelas da escravido. Assim,

    deixa-se de abordar as prticas afirmativas, fator que poderia ser alavanca para aumentar a

    auto-estima das crianas negras. As danas, a msica, os personagens, a histria, a

    religiosidade dos afrodescendentes no Brasil precisam, aos poucos, tomar o lugar de uma

    histria marcada pela tortura e pela morte.

    O mesmo ocorre em relao ao ensino da Histria Indgena, por anos relegada ao dia 19 de

    abril, quando crianas eram fantasiadas de indgenas na quase totalidade das escolas (vide

    Lei no 11.645, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da Histria e Cultura Indgena).

    Hoje, ainda podemos citar o avano significativo da educao indgena, que se prope a

    ensinar as novas geraes desses povos a partir dos elementos da sua cultura.

    Efetivamente, movimentos importantes de identidades tm sacudido as tradicionais

    maneiras de ver e dizer o Outro, de ver e dizer a diferena. Pensar o outro exige, hoje, um

    saber novo, exige uma postura poltica nova diante da possibilidade de se viver em um

    mundo diverso e plural. Entretanto, apesar de verificarmos que efetivamente nossas

    tradicionais formas de ver e dizer a diferena tm sido colocadas em xeque, precisamos

    avanar sobremaneira para a construo de uma nova memria, que inclua novos saberes

    sobre a diversidade e sobre a diferena. Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental.

    Indubitavelmente, ainda que os movimentos dos homossexuais estejam cavando espao

    nas ruas, a homofobia permanece sendo uma realidade em nossa sociedade. Ainda que o

    racismo seja tipificado como crime, nem o racismo, nem os esteretipos tnicos nos

    abandonaram. Ainda que a histria e a cultura indgenas sejam parte obrigatria dos

    currculos, professores cantam e pintam o rosto dos estudantes sem saber o significado da

    pintura. Ainda que o Brasil se reconhea como uma pluralidade de formas de vida regionais,

    o preconceito contra o nordestino no deixou de existir.

    Ainda que a juventude tenha se tornado um conceito dos estudos acadmicos, muitos

    professores se mostram incapazes de conhecer e aceitar as culturas juvenis. Enfim, no

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    obstante as polticas de identidade que se avolumam e levam a efeito uma luta poltica para

    o reconhecimento das diferenas, ainda muito necessria uma inverso dos padres da

    nossa memria. Sculos de histria no se movem da noite para o dia, preciso um trabalho

    demorado no mbito da memria social do brasileiro a fim de destruir os esteretipos, os

    modelos, os preconceitos.

    Nesse sentido, o papel da escola se torna indispensvel, uma vez que, no espao escolar,

    no apenas se vive diariamente o preconceito e a diversidade, mas tambm esse o espao

    privilegiado para desconstruir traos cristalizados da nossa memria. Ora, atualmente a

    escola acolhe a todos, sem qualquer distino. A escola para todos foi uma vitria de uma

    luta de longa data, e a educao inclusiva hoje uma realidade. Isso quer dizer que no

    apenas a escola est aberta a todos as diferenas possveis em nossa sociedade, mas na

    escola

    Piotr Lewandowski , Stock Xchng.com que essas diferenas devem ser acolhidas e

    integradas a um sistema que lhes permita marcar sua singularidade em meio diversidade.

    assim que vemos a escola como espao que pode permitir o aprofundamento da vida

    democrtica, na medida em que ela possa se tornar um espao realmente pblico e que

    ensine e enseje a construo de outros espaos pblicos, onde a diferena pode ser vivida

    e experienciada sem a marca do julgamento alheio.

    A ESCOLA E O ENSINO DE HUMANIDADES

    A escola , desde ento, o lugar por excelncia onde se poder aprender sobre e com

    diferentes identidades, isto , a escola precisa se tornar um locus de alteridade, um espao

    pleno de diversidade e de tolerncia.

    O currculo escolar deixou de ser visto como mero acmulo de contedos de diferentes

    disciplinas. Nem mesmo se constitui em um conjunto coerente de mtodos e estratgias de

    ensino. O currculo produtivo. Ele espao de constituio de identidades, lugar onde se

    produz memria, modos de ser e de conviver. O currculo um territrio onde se aprende

    matemticas, mas tambm formas de relaes consigo mesmo e com os outros. Esse

    territrio capaz de mostrar pertencimentos identitrios ou produzir silncios; ao mesmo

    tempo, ele pode construir passado e histria ou, simplesmente, apagar marcas e

    singularidades; ele pode uniformizar formas de existncia ou mostrar o espetculo da

    diferena. Nesse sentido, os currculos escolares podem ser vistos como lugares em

    construo, assim como espaos de puros devires, de onde no se pode supor forma

    acabada, marca perene. Os currculos, como espaos de devir, so o lugar da diferena,

    onde no h definio prvia do que se pode ou se deve vir a ser. Assim, o currculo deixa

    de ser espao de formao, de engavetamento do indivduo em um invlucro que constitui

    sua identidade, mas abre a possibilidade de os indivduos terem experincias diversas.

    O currculo escolar, particularmente, os currculos das chamadas humanidades, constitui-se

    em espao frtil para a compreenso da diversidade, para a visibilidade do mltiplo e para

    a apresentao da diferena. no interior de uma disciplina como a Histria que diversos

    estudantes podem ver a si mesmos como parte de um conjunto determinado de referncias

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    culturais, reconhecendo-se como pertencentes a um grupo determinado, com uma histria

    especfica e com um passado comum. Mas, a partir do currculo dessa e de outras

    disciplinas como a Sociologia e a Geografia ou mesmo o Ensino Religioso, que os

    estudantes podem debater-se com a diferena, com traos culturais estranhos ao seu

    prprio modo de vida.

    O que queremos afirmar que o currculo escolar, em geral, e das humanidades, em

    particular, produtivo, na medida em que estabelece um territrio de reconhecimento e de

    estranhamento, levando os indivduos tanto a um territrio quanto a um processo de

    desterritorializao a partir do qual cada um se despedaa na direo da diferena. Ao

    mesmo tempo em que enseja que a diversidade que reina na sala de aula possa ser vista

    no interior do conjunto dos contedos gerados por cada disciplina e, nesse sentido, cada

    um, na sua especificidade, ver-se no interior desse currculo, tendo respeitada sua existncia

    como etnia, como gnero, como regionalidade, o estudante pode contemplar a diferena,

    mirar o outro e aprender com experincias que lhe so estranhas.

    Mas, a diversidade e a diferena no esto apenas no contedo apresentado pelo professor.

    Estabelecer o jogo entre identidade e diferena, entre pertencimento e estranhamento,

    uma atitude poltica que, em nossa contemporaneidade, se exige do professor.

    Logo, pensamos que o currculo no apenas constitudo de contedos, mas de modos de

    ser e fazer, de vises de mundo, de posturas pedaggicas, de formas de tratamento e de

    relaes com os estudantes, isto , de lugares onde os estudantes podem se ver. Alm

    disso, o currculo tambm feito de no-lugares, de possibilidades de vir a ser, de potencias

    criativas que levam os indivduos a caminhos sempre incertos, mas inevitavelmente novos.

    Eis o que poder permitir a produo de novos relacionamentos.

    As relaes professor-aluno so constitutivas do currculo. Assim, mister compreender que

    o modo como um professor se refere aos seus alunos ou a grupos determinados interfere

    na formao subjetiva dos estudantes. Posies preconceituosas, despercebidas pelo

    prprio professor e expressadas, sobretudo, atravs da linguagem, tm um efeito importante

    na extenso e continuidade do preconceito e no desrespeito diferena. Tomemos como

    exemplo as clssicas expresses em relao aos indgenas ou aos judeus ou aos negros,

    que povoam fartamente nossa memria coletiva e, por vezes, a sala de aula, expresses

    claras de um etnocentrismo velado e demasiado impregnado em nossa cultura.

    No cotidiano da nossa linguagem se tem reproduzido, continuamente, a associao do judeu

    com o mal. Clia Szniter Mentliki demonstrou como, ainda hoje, nossa linguagem est

    carregada de uma percepo preconceituosa do judeu, na medida em que o portugus

    coloquial utiliza o verbo judiar como fazer o mal, prolongando uma prtica social e lingustica

    que pode ter aparecido no perodo inquisitorial ibrico.

    Nas nossas escolas estivemos acostumados a brincar de ndio. Sempre ao dia 19 de abril,

    inclusive nos dias de hoje, crianas e professores pensam celebrar os verdadeiros donos

    desta terra ao criar fantasias de ndios e imitar supostos rituais indgenas ao som da

    msica Vamos brincar de ndio da Xuxa. Ora, sabemos bem que a abordagem do ndio

    como ingnuo e criana remonta o modo como os europeus olharam para os povos que

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    encontraram na terra onde hoje o Brasil. De Pero Vaz de Caminha aos Jesutas, se

    concebeu a ideia de que os ndios no eram nem infiis, nem hereges, mas simplesmente

    eram ignorantes quanto verdadeira crena religiosa. Tal como as crianas, os pobres e os

    miserveis, os ndios eram, portanto, passveis de moralizao, de catequizao e de

    aculturao.

    As religies afro-brasileiras tm sido, ao longo do tempo, consideradas menos religies e

    mais um conjunto de supersties que, via de regra, realizam cultos e oferendas com

    objetivos malignos. A escola tem reforado essa ideia na medida em que os livros didticos

    mostram caractersticas religiosas de gregos, romanos, persas, cristos, mas dificilmente

    fazem referncia a uma religio africana ou a religies afro-brasileiras. Esse silncio

    produto do estranhamento e do etnocentrismo. Se o estranhamento no pode ser

    considerado nem negativo nem positivo, mas um dado do espao de dilogo cultural, o

    etnocentrismo negativo na medida em que reduz a cultura do outro ao signo da

    incompletude, da anormalidade e da falta.

    Essa relao dual construda pelos europeus o Eu e o Outro tem funcionado ainda para

    construir nossas noes acerca de culturas diversas como a dos judeus, dos negros e dos

    ndios.

    Se nos detivermos no caso brasileiro, percebemos que, via de regra, h expresses em

    nossa linguagem que servem para estabelecer formas de ver e de dizer os nordestinos em

    geral ou os baianos em particular, por exemplo. Esse preconceito velado constitui-se em

    uma forma ainda bastante usada de no aceitar a diversidade e a diferena. Se sairmos do

    campo especificamente cultural, podemos pensar que esse modelo que nos leva a olhar

    para o Outro igualmente se aplica a toda e qualquer diferena. A lgica tem sido a de julgar

    a diferena a partir de uma referncia, de um modelo.

    O ensino de humanidades na escola pode muito bem se constituir em um espao pblico

    privilegiado para trabalhar com esse grande patrimnio que nossa sociedade, aos poucos,

    tem se acostumado a preservar a diversidade. Embora, certamente, esse seja um trabalho

    que exige muito flego e pacincia, inadmissvel que no se possa tornar a escola, no

    mnimo, o lugar onde se valoriza modos de vida, jeitos de fazer, experincias, grupos etc.

    No podemos esquecer que vivemos no apenas em uma sociedade plural, do pondo de

    vista cultural, mas vivemos e ensinamos em um mundo desigual socialmente, e essa

    desigualdade precisa ser pensada pelo mesmo vis que a diversidade. Por vezes, as lutas

    sociais se implicam em lutas de diversos grupos por voz e visibilidade; por vezes, no h

    implicao alguma. O que importante preservar o carter transformador das lutas sociais

    e, ao mesmo tempo, o carter especfico de determinadas demandas de grupos de gnero,

    tnicos, regionais etc.

    O ensino das humanidades pode muito bem ser o veculo de constituio de subjetividades

    capazes de conviver em uma sociedade que se apresenta, ao mesmo tempo, desigual, do

    ponto de vista social, e diversa, do ponto de vista cultural.

    REFERNCIAS

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    http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4958132-EI16410,00-homofobia+

    tambem+e+racismo.html. Acesso em 27 de fevereiro de 2011.

    HALL, S. A identidade cultural na ps-modernidade. Trad. Toms Tadeu da Silva, Guacira

    Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 103 p.

    MENTLIKI, C. S. Histria, linguagem e preconceito: ressonncias do perodo inquisitorial

    sobre o mundo contemporneo. In: Revista Histria Hoje. So Paulo, n 5, 2004, p. 01-17.

    SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introduo s teorias do currculo. Belo

    Horizonte: Autntica, 1999. 156 p.

    ESTERETIPOS

    Luis Fernando Verssimo

    Zero Hora, 27/06/2010

    Os ingleses espalharam algumas coisas boas pelo seu imprio, como o futebol e o rgbi,

    alm do parlamentarismo e o ch das cinco. Em compensao, tambm inventaram e

    propagaram o crquete, certamente o esporte mais aborrecido do mundo depois do beisebol

    americano, aquele em que os jogadores passam mais tempo ajeitando o bon do que

    jogando.

    Era compreensvel que no futebol e no rgbi algumas ex-colnias inglesas acabassem

    jogando melhor do que a metrpole, mas tambm no crquete um jogo feito para

    cavalheiros ingleses vestidos de branco se exibirem para suas, todas elas chamadas Fiona

    os nativos tomaram conta. Hoje jogado por gente de todas as cores, do Paquisto

    Nova Zelndia. Aqui mesmo na frica do Sul ocupa um bom espao do noticirio esportivo

    e tem suas celebridades, festejadas como as do futebol e do rgbi.

    O que s prova como os esteretipos raciais e culturais valem pouco. Houve um tempo em

    que, no Brasil, se atribua a superioridade do nosso futebol nossa mistura racial

    (elasticidade natural do, herdada da sua convivncia ancestral com feras na frica, aquelas

    bobagens) e cintura dura do resto do mundo. Quando o Brasil perdia para um time de

    cintura dura era porque no jogara brasileiramente, no fizera valer o seu ritmo e a sua

    ginga. O esteretipo no explicava a habilidade argentina, por exemplo, nem a surpresa da

    seleo hngara do Armando Nogueira, como o Nelson Rodrigues chamava a seleo que

    assombrara todo o mundo, e o Armando do que todos, na Copa de 54. Mas persistia.

    Persiste at hoje, e no apenas entre brasileiros. No raro ver o time do Brasil chamado

    aqui de The Samba Kings. Geralmente como preldio para a pergunta: que fim levou o

    samba?

    Ainda causa o mesmo espanto ver uma Eslovquia jogando como joga quanto deve ter

    causado a primeira viso de um paquistans jogando crquete como um ingls. O jogo da

    Holanda contra Camares, na quinta, no valia nada, mas valeu pela estreia na Copa do

    jogador Robben, que estava lesionado. Robben, mais branco do que a rainha da Holanda,

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    com sua careca precoce e sua cara de professor de trabalhos manuais, seria o prottipo do

    jogador sem cintura que nunca poderia jogar futebol. Joga muito.

    Unidade 2

    Igualdade, diferena e equidade

    IGUALDADE, DIFERENA E EQUIDADE:

    EQUIVALNCIAS FUNDAMENTAIS

    Liane Saenger

    Introduo

    Tirania, democracia, academia... Palavras to utilizadas em nossos dias produziram suas

    prprias histrias com os muitos significados que foram recebendo, tantos e to variados

    quanto diversos os lugares e os tempos em que se foram manifestando. Como assim? Como

    ligar questes polticas ao delrio da cultura fsica da atualidade? Qual o vnculo possvel

    entre eles? A obsesso pela beleza da Grcia clssica? A imposio do corpo sarado nos

    fazendo sentir culpados por no frequentamos algum templo da sade e nos exercitarmos?

    O peso na conscincia pela pouca ao diante das lutas perdidas em prol da coisa pblica?

    Estaramos nos referindo ao olhar tolerante que nos tem sido exigido para com o que nos

    deixa desconfortveis? Uma relativizao absoluta dos acontecimentos?

    Essa viagem inicial um convite a que nos afastemos do consagrado para nos

    aproximarmos do que deveria ser sagrado: a felicidade coletiva dos sujeitos. Seriam tirania

    e democracia lados opostos de uma mesma moeda? E por que academia se agrega aos

    conceitos aqui apresentados?

    O que segue um convite a pensar sobre o que parece bvio, a analisar o que no parece

    necessrio e a gerenciar possveis dvidas em direo a algumas certezas, mas,

    principalmente, a lanar olhares mais ampliados sobre possibilidades de convvio social.

    DEMOCRACIA: GARANTIA DE EQUILBRIO?

    Pensemos: se sempre a maioria vencer em suas demandas o que, de certo modo, a

    democracia preconiza no haver injustia para com as minorias, sempre numericamente

    perdedoras? Perder sempre pode ser estimulante? Poderia um tirano promover o bem estar

    de uma populao?

    Criado na Grcia Antiga, o conceito de Democracia carrega alguns desvios de compreenso:

    se hoje ele se pretende justo, porque atendendo s demandas dos cidados de um pas, em

    tempos originais o propsito era o mesmo, ainda que no contemplasse a todos,

    principalmente se fossem mulheres, escravos e estrangeiros. Como assim? Falamos de um

    lugar em que cada cidade o que hoje consideramos um Estado, onde a ideia de nao

    ainda no se construiu e onde, portanto, o vizinho de um lugar prximo um estrangeiro.

    Falamos de um lugar em que poucos teriam tempo e condies para participar das longas

    discusses peridicas onde se tomavam decises associadas coisa pblica. Falamos de

    um lugar em que foi grande o empenho de alguns governantes como Pricles, por exemplo,

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    em estabelecer condies para tornar possvel a participao poltica dos cidados no

    governo da cidade.

    Mas quem tem direito e capacidade de decidir o que melhor para sua sociedade? O que

    uma sociedade se no o conjunto de conjuntos de associaes reunidas para tentar dar

    suporte razovel aos seus componentes? Quando a identidade coletiva pode ser

    considerada democrtica?

    O individualismo, fonte de responsabilidade pessoal pela sua conduta de vida, tambm

    fonte do egocentrismo. Este se desenvolve em todos os cantos e tende a inibir as

    potencialidades altrusticas e solidrias, o que contribui para a desintegrao das

    comunidades tradicionais (MORIN, 2005, p. 26).

    Mas o individualismo, reconhecidamente de m fama, que Alain Touraine (2006, p. 95)

    aponta como o princpio capaz de impedir nossas sociedades de naufragar numa extenuante

    concorrncia generalizada. E o autor utiliza a obra inteira para argumentar a favor dessa

    ideia, passando pela incontrolvel multiplicidade de atos e ideias que se vo apresentando

    em nossos dias, atravs de colonizados obtendo sua libertao, e por minorias nem to

    alienadas quanto parecia. Adota a noo de etnicidade, capacidade que um indivduo ou

    um grupo tm de agir em funo de sua situao e de suas origens tnicas. Trata-se,

    portanto, [...] de uma orientao da ao e no de uma situao do indivduo (Idem, p. 200-

    201).

    Espaos dos interesses, ou da tica pessoal, e espaos pblicos, com sua tica coletiva,

    formam lados de uma balana social supostamente apoiada sobre valores de justia.

    Carregam componentes fundamentados no reconhecimento e na identificao que, por sua

    vez, vem sendo naturalmente pautados por elementos ligados a conflitos humanos e

    distributivos. Distribuio dos custos e benesses sociais define-se segundo critrios

    estabelecidos pela tradio, pelos interesses e at pela fora.

    O que partilhar, e com quem, passa a caracterizar muito os processos tidos como mais ou

    como menos democrticos, dependendo da concepo de justia quanto ao que pode ser

    considerado igual, diferente, necessitado ou merecedor. A concepo de Democracia segue

    se modificando em sua historicidade e passa a exigir que seja falada no plural: democracias,

    as democracias de cada lugar em cada tempo.

    TIRANIZAO DE SI E DOS OUTROS

    Pensando sobre tirania comecemos pela primeira pessoa: em quais situaes nos sentimos

    tiranizados? Posso gostar dessa ou daquela msica sem ser rotulado? Meu sotaque me

    denuncia ou me caracteriza? Minhas vivncias me integram ou me confrontam com quem

    convivo?

    Temos, na palavra tirania, a ideia de algo que nos submete e maltrata. Segundo o que se

    ouve por a, a maioria de ns tiranizada, entre outras muitas variveis, pelo consumo, pela

    necessidade de sermos jovens, pelas avalanches de informao. Estaria algum por trs

    disso, arquitetando formas de nos submeter em seu benefcio?

  • 10

    Estamos diante de situaes em que as capacidades de alguns sujeitos so desafiadas a

    ampliar seu potencial de seduo ou dominao pela fora para tornar hegemnico seu

    pensamento e sua forma de ver a vida. Nesse embate se agregam e distanciam os sujeitos

    da coisa pblica.

    Quando Tirania se torna uma forma de governo, algum se impe como dominante por

    diferentes condies: prestgio pessoal, apoio militar ou de outros, fraqueza dos estamentos

    inferiores, geralmente incapazes (ou assim mantidos) de protestar ou vislumbrar outro modo

    de organizao poltica, sujeitos com vantagens econmicas escusas etc. s vezes at por

    suas propostas agregadoras, conciliadoras ou, mesmo, progressistas (?). Mesmo inaceitvel

    nos dias atuais e na maioria dos pases, esse modo de governar ainda se manifesta. Refletir

    sobre ele pode trazer-nos argumentos que nos ajudem a pensar em modos de neg-lo como

    ideal.

    POTENCIAL DE ACADEMIA

    Compreender as aes humanas e explic-las a ns mesmos um propsito da cincia

    filosfica. Encontrar na palavra Academia uma forma de aproximar o que se vem lendo acima

    possvel mediante a importncia da sade fsica e mental dos indivduos e dos grupos.

    Ambas so estimuladas em lugares que compartilham esse ttulo, tanto por sua origem

    quanto por sua atualidade: academias de cultura, como as Universidades e as de Letras, e

    academias de ginstica.

    Somos todos acadmicos junto s universidades, e as academias dos nossos tempos

    lotam em busca do aperfeioamento corporal. Apresentam-se separados corpo e mente

    como segmentado tem ficado nosso Conhecimento, nossa capacidade de compreenso do

    todo e nossa viso de mundo.

    DA EQUIDADE

    Equidade uma proposta de relaes interpessoais, um ponto de vista inclusivo, um

    comportamento intelectual que atualiza uma das questes apontadas no incio desse texto,

    pondo em dvida a democracia como garantia de justia. Expresses como ser mais real

    do que o rei nos lembram do quanto o bom senso deve acompanhar a aplicao das regras

    para que no se cometa injustia em nome do genericamente estipulado. Justia para ambas

    as partes o que a equidade produz, ainda que aplicando modos diferenciados de

    tratamento.

    Decises sobre a quem dar mais, de quem tirar mais, a quem considerar ou no, por serem

    difceis de ser tomadas no coletivo, podem gerar poder excessivo e novas dominaes caso

    no sejam pautadas pela aceitao coletiva. Mas tambm podem fazer toda a diferena

    quando direcionadas a quem precisa e a quem merece.

    Mesmo sem a inteno de aprofundar muito cada um dos conceitos aqui destacados, torna-

    se essencial associ-los ao discurso iluminista, to interessante quanto contraditrio, pois

    protesta por liberdade, igualdade e fraternidade, no entanto, pretende atingir seus ideais

    impondo suas ideias.

  • 11

    disso que falam John Rawls e Frei Beto, refletindo sobre a possibilidade de justia com

    equidade e trazendo mais um componente essencial a essa exposio que o fator

    Liberdade.

    UM FECHAMENTO IMPOSSVEL

    Uma frase de Jos Saramago, citada exausto e ao ponto de se ter perdido a sua fonte

    original, sacode a forma condescendente com que temos considerado tolerncia uma grande

    virtude: Tolerar a existncia do outro e permitir que ele seja diferente ainda muito pouco.

    Quando se tolera, apenas se concede, e essa no uma relao de igualdade, mas de

    superioridade de um sobre o outro. Deveramos criar uma relao ente as pessoas, da qual

    estivessem excludas a tolerncia e a intolerncia.

    Educar-se aprender sobre a vida para poder viver com relativa autonomia. compreender

    a existncia do outro como elemento de troca e de complementaridade. trazer para si a

    tarefa de produzir-se e aos outros com vistas a criar plataformas elevadas de compreenso

    de mundo. Ser livre sem eliminar a liberdade dos outros, tratar com igualdade justa aos

    demais sem critrios de puro interesse pessoal, usar a fraternidade como elemento chave

    da socializao pode parecer um propsito piegas, mas precisa estar entre nossas utopias.

    Ns, seres humanos, sempre fazemos o que queremos, mesmo quando dizemos que somos

    forados a fazer algo que no queremos. O que acontece nesse ltimo caso, que queremos

    as consequncias que iro se dar se fizermos o que dizemos que no queremos fazer. Isso

    assim porque nossos desejos, conscientes e inconscientes, determinam o curso de nossas

    vidas e o curso de nossa histria humana [...] por isso que frequentemente no queremos

    refletir sobre nossos desejos. Se no vemos nossos desejos podemos viver sem nos

    sentirmos responsveis pela maior parte das consequncias do que fazemos (MATURANA,

    2001, p. 196).

    Educar-se passa a ser a constatao de responsabilidades para alm da aprendizagem

    formal, nos tornando os seres sociais e sociveis que precisamos e devemos ser para o bem

    de nossa prpria sobrevivncia.

    REFERNCIAS

    CORRA, V. A. A democracia moderna na concepo de Norberto Bobbio. Disponvel:

    . Acesso em 16 de abril de 2011.

    JARDIM, H. V. A origem da palavra academia. Disponvel:

    . Acesso em 28 de abril

    de 2011.

    JUNGES, M. Niilismo e mercadejo tico brasileiro. Disponvel: .

    Acesso em 28 de abril de 2011.

    MATURANA, H. Cognio, Cincia e Vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001.

    MORIN, E. O mtodo 6: tica. Porto Alegre: Sulina, 2005.

  • 12

    MOTA, R. O Iluminismo - Trevas na poca das luzes. MONTFORT Associao Cultural.

    Disponvel: . Acesso em 28 de abril de 2011.

    Nascimento da Democracia na Grcia Antiga. Disponvel:

    . Acesso em 28 de

    abril de 2011.

    OLIVEIRA, A. H. S. A justia como equidade na viso filosfica de John Rawls. Disponvel:

    . Acesso em 28 de abril de 2011.

    O que tirania? Disponvel: . Acesso em 28

    de abril de 2011.

    RAWLS, John. Equidade e justia. Disponvel:

    Acesso em 28 de abril

    de 2011.

    SILVA, V. L. S. A viso de totalidade da Biologia Humana na Educao Fsica.

    Disponvel:. Acesso em 28 de abril de 2011.

    TOURAINE, A. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrpolis: Vozes,

    2006.

  • 13

    PRECONCEITOS

    Liane Saenger

    Preconceitos so formas de ver as coisas e as pessoas. So adquiridos, aprendidos ou

    desenvolvidos ao longo dos contatos sociais que se vai fazendo. s vezes, esto

    involuntariamente presentes em nossos pensamentos e aes e podemos at nos assustar

    quando os percebemos em ns mesmos. A quebra de modos de pensar e agir, mesmo

    quando a consideramos necessria, pode ser traumtica ao voltar-se contra algo no qual

    sempre se acreditou ou contra a forma de algum muito prximo a ns pensar e agir. Muitos

    conflitos podem ser ocasionados em funo disso.

    Algumas temticas em torno das questes de igualdade, diferena, equidade e, certamente,

    justia social precisam ser delicadamente tratadas quando alunos, principalmente os

    menores, esto envolvidos. H crianas e adolescentes que chegam escola com conceitos

    dados como nicos e imutveis. No aceit-los, ou neg-los, pode inviabilizar o necessrio

    respeito na relao entre professores e alunos. E pode provocar srios problemas entre a

    escola e os responsveis pelos alunos. Muitas vezes, todo um trabalho anterior junto

    comunidade precisa acontecer para que seja possvel a aceitao de que h diversidade de

    pensamentos e de posicionamentos dos indivduos e grupos em relao a diversas

    questes. Esse apenas um primeiro passo em direo a aprendizagens a partir das quais

    cada pessoa e grupo podem modificar seu modo de pensar e agir, principalmente, em

    relao aos outros.

    No entanto, essa tarefa no significa convencimento de que sempre se devam aceitar formas

    de pensar e agir de outras pessoas e grupos. Existem condies, comportamentos e valores

    de ordem mais geral que extrapolam as caractersticas locais, tais como o respeito vida, e

    precisam receber seu devido empenho de manuteno.

    Programas de televiso, tanto de canais abertos quanto pagos, so um grande formador de

    opinio. Mesmo nessa poca de sacralizao do digitalizado, grande parte do tempo livre

    dos sujeitos se passa em frente a essa telinha que pode ser muito informativa, mas tambm

    muito deformativa.

    s vezes essa bab eletrnica exerce sua funo de acalmar crianas na mais tenra idade.

    Jovens, quando com recursos um pouco maiores, a dividem com as telas de computadores,

    e adultos a tm como uma vlvula de escape relaxante pelo pouco ou nada exigente que

    no sentido de desenvolver raciocnios mais complexos. Mesmo assim, ela no tem sido parte

    muito significativa do currculo escolar.

    Ento, observar o poder de interferncia desse elemento no humano, mas altamente

    significativo, na produo do pensar dos sujeitos muito importante. Aqui est um convite a

    que isso ocorra de forma intencional.

  • 14

    Unidade 3

    Diversidade religiosa e laicidade de estado

    ESPAOS PBLICOS E ESPAOS PRIVADOS:

    CONSTRUINDO REGRAS DE CONVIVNCIA E RESPEITO

    Fernando Seffner

    Um dos traos mais importantes da escola caracterizar-se como um espao pblico, e o

    professor ou a professora, como servidores pblicos. Em geral, este o primeiro espao

    pblico em que a criana transita, e nele que ela deve aprender um conjunto de regras,

    disposies e valores que orientam a construo e manuteno do espao pblico. A escola

    pblica brasileira cumpre papel muito importante nesta socializao das crianas e jovens

    no ambiente pblico, que difere muito dos ambientes privados da casa, da famlia, das

    igrejas, dos clubes fechados, dos grupos de amigos, das associaes e outras formas de

    organizao de carter mais ou menos exclusivo. A construo das regras de gesto e

    convvio no espao pblico, os compromissos que ele mantm com a sociedade, sua

    importncia para a consolidao de regimes democrticos, sua importncia para a formao

    cidad, todas estas caractersticas e muitas outras tornam a vivncia escolar uma

    oportunidade de aprendizados que vo muito alm das disciplinas.

    Todos temos as nossas preferncias e fomos educados para nos sentirmos mais vontade

    com esta ou aquela pessoa, neste ou naquele grupo, pertencendo a um ou outro partido

    poltico, confessando determinada crena religiosa (ou no confessando nenhuma crena

    religiosa), comparecendo a determinadas festas na cidade em tal ou qual local, e no em

    outras, preferindo pessoas da nossa idade ou de idade diferente, e assim por diante.

    Podemos gostar mais de um determinado shopping, porque ali vo pessoas que tm mais

    a ver conosco, e no gostamos de outro, porque no encontramos ali pessoas que nos

    agradem. Preferimos bairros, ruas, cores, filmes, msicas, estilos de roupa, atores, novelas,

    livros, e muito mais, e provavelmente no haver acordo possvel nisso em uma discusso,

    pois a diversidade de gostos e opinies gigantesca e faz a riqueza do mundo.

    Uma boa maneira para abordarmos a importncia dos espaos pblicos e privados na

    sociedade brasileira pensar na casa e na rua. O que permitido fazer em casa, e que no

    podemos fazer na rua? E vice versa? De que modo nos comportamos em casa, e de que

    modo nos comportamos na rua? Ser que algum igual na casa e na rua? Voc acha a

    casa melhor do que a rua, ou a rua melhor do que a casa? Qual a importncia que tem estes

    dois grandes ambientes, casa e rua, para entender nossa discusso de espao pblico,

    diversidade religiosa, laicidade e escola pblica brasileira? Vale pensar no que significam

    para ns, brasileiros, casa e rua:

    Quando digo ento que casa e rua so categorias sociolgicas para os brasileiros, estou

    afirmando que, entre ns, estas palavras no designam simplesmente espaos geogrficos

    ou coisas fsicas comensurveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ao

    social, provncias ticas dotadas de possibilidade, domnios culturais institucionalizados e,

  • 15

    por causa disso, capazes de despertar emoes, reaes, leis, oraes, msicas e imagens

    esteticamente emolduradas e inspiradas (DA MATTA, 2000, p. 15).

    A rua nos desperta certas emoes e possibilidades, e a casa, outras. Existe uma moral das

    ruas, e uma moral das casas. Dentro de nossa casa, h certas leis de comportamento, na

    rua h outra legislao. Muitas vezes, gostaramos que a rua fosse to bem organizada

    quanto a nossa casa. Outras vezes, gostaramos que a nossa casa tivesse um pouco do

    brilho e da liberdade das ruas. Quando digo a palavra rua, voc pensa num conjunto de

    imagens. Quando digo a palavra casa, lhe aparece outro conjunto de imagens, bem como

    de recordaes. Em nossa abordagem, como recurso de anlise, vamos aproximar o espao

    da rua ao espao pblico, e o espao da casa ao espao privado, reconhecendo que a

    situao mais complexa do que isso.

    Quando a criana vai para escola, ela est bastante acostumada com as regras e normas

    da famlia, e muitos de ns gostamos de dizer que a escola como uma famlia, que a escola

    uma segunda famlia, e que a professora como se fosse uma tia. Nada mais equivocado.

    A escola uma instituio pblica, e no uma famlia, e a professora uma educadora, em

    geral uma servidora pblica, e no a me da criana ou sua tia. As famlias gostariam que

    seus filhos fossem tratados na escola como seres especiais, tal como so tratados na famlia.

    Dessa forma, uma me gostaria que a professora tratasse sua filhinha de modo especial,

    com todas as atenes. Mas a professora tem que tratar a todos por igual, portanto, a

    ateno que ela vai dar a uma criana deve ser igual quela que dar a outra, na medida do

    possvel, mesmo reconhecendo que alguns precisam de mais ateno. A professora, como

    verdadeira educadora, tem que ser justa nas atenes, e no pode dedicar todo seu tempo

    a uma determinada criana, apenas porque a me desta criana veio lhe pedir isto. Sei que

    esta uma frase forte, mas penso que devemos refletir bem sobre ela: na famlia, a criana

    UMA criana; na escola, a criana MAIS UMA criana. No digo isso para desfazer ou

    maltratar esta criana, mas esta uma marca do espao pblico: estamos nele como um

    indivduo dotado dos mesmos direitos e obrigaes que os outros. As instituies pblicas

    (a escola pblica brasileira, o posto de sade, a justia, o servio de previdncia etc.) devem

    tratar a todos por igual, sem discriminao. Dessa forma, no podem cobrir alguns de

    privilgios e atenes, e a outros reservar apenas alguns momentos de ateno.

    Esta marca do espao pblico est consagrada no princpio da igualdade, expresso na

    Constituio Brasileira de 1988. No temos como imaginar um pas democrtico, um estado

    de direito, um pas com justia, sem lutar contra a discriminao de sexo, raa, cor, origem,

    crena religiosa, idade e outros atributos. Mas podemos pensar que, em nossa casa, no

    gostamos de receber pessoas de certa religio, de certa origem ou, at mesmo, de certa cor

    ou orientao sexual. Temos esse direito, em nossa casa. Mas, no espao pblico, a regra

    a da tolerncia, e vale lembrar que toleramos os outros para tambm sermos tolerados.

    Ou seja, todos ns temos alguns atributos que podem desagradar a outros. Posso no gostar

    de evanglicos, mas, se sou gordo, haver pessoas que no gostem de gordos. Posso no

    gostar de quem escuta msica de forr, mas, certamente, haver muita gente que no goste

    dos estilos musicais de que gosto. Nunca agradamos a todos. Nunca encontramos algum

  • 16

    que nos agrade em tudo. A vida em sociedade comporta certo grau de tolerncia e respeito

    pela diversidade, e essa uma das grandes marcas dos espaos pblicos.

    No Brasil, o espao pblico sofre em funo de muitos problemas. Em geral, costumamos

    pensar o espao pblico como lugar da desorganizao, da sujeira, do perigo. Muitas vezes,

    ns mesmos colaboramos para isso. Em casa, no cuspimos no cho nem jogamos lixo

    pelos cantos. Na rua muitas vezes fazemos isto. H pessoas muito calmas e sensatas em

    casa, mas, quando saem rua para dirigir seu carro, se transformam em quase guerreiros.

    Para muitos de ns, a cordialidade algo que acontece entre iguais, no mundo da casa; no

    na rua, onde temos que mostrar cara feia, pois no conhecemos as pessoas. A casa

    limpeza, organizao, atenes. A rua sujeira, desorganizao e baguna, servios

    impessoais e annimos. Mas, temos muitas experincias exitosas de boa conservao do

    espao pblico e das instituies pblicas, e vale lembrar que, sem um grande espao

    pblico, no conseguimos assegurar um pas justo e democrtico.

    Um segundo problema que sofre o espao pblico no Brasil que gostamos de achar que

    ele deve funcionar como uma famlia, uma grande famlia. Isso muito frequente na escola.

    Repito o que j disse acima: a escola um espao pblico, que deve acolher a diversidade

    cultural dos alunos e fazer respeitar a todos e a cada um. Logicamente, aceitar a diversidade

    no significa que cada um possa fazer o que deseja na escola. A escola tem um projeto

    poltico-pedaggico, um regimento. Como todo espao pblico, ela tem regras de

    funcionamento, no se trata de achar que o espao, porque pblico, corresponde a uma

    terra de ningum, sem lei. Dessa forma, no deve causar espanto a ningum que a escola

    tenha, em seu regimento, algumas disposies com as quais muitas famlias no

    concordam. A escola no um local que possa se regrar do mesmo modo que uma famlia

    se regra. Certamente, algumas das regras escolares no sero do agrado de algumas

    famlias, mas elas devem entender que estas regras so necessrias para que todas as

    crianas possam viver com respeito no espao pblico. Estas famlias devem lembrar que,

    na escola, estudam crianas muito diversas, filhas de famlias muito diferentes, e que todas

    devem aprender a conviver e a se respeitar.

    O que tem isso tudo a ver com o tema da diversidade religiosa e do estado laico? Na casa

    e nas associaes religiosas, nos reunimos com outras pessoas por conta desta afinidade

    das crenas. Buscamos um templo catlico, um terreiro afro, um centro esprita, uma igreja

    protestante, um templo evanglico, um local para prtica do budismo, uma sinagoga judaica,

    o salo do reino das testemunhas de Jeov, um templo mrmon, uma casa de adorao da

    F Bahi, uma mesquita muulmana, um santurio, um mosteiro, uma casa de orao, ou

    qualquer outro lugar consagrado ao servio de uma f religiosa. Ali estamos entre pessoas

    que tm a mesma crena, acreditam nas mesmas verdades e usam os mesmos smbolos

    religiosos. Alguns de ns somos mais frequentes aos templos religiosos, outros se limitam a

    comparecer em algumas cerimnias, em datas festivas, outros nunca comparecem a

    associaes religiosas, e outros sequer sentem necessidade da crena em um deus.

    A escola pblica no est a servio de uma determinada religio. Ela acolhe alunos e alunas,

    professores e professoras, que tm mais de uma crena religiosa e, por vezes, modos muito

    diferentes de pertencer mesma crena religiosa. Basta ver que costumamos dividir os

  • 17

    catlicos em catlicos praticantes e no praticantes. Na atualidade, no apenas temos

    grande nmero de opes de pertencimento religioso, como temos diferentes modos de

    pertencer a uma religio. Alguns seguem as regras religiosas de modo mais estrito, outros

    de modo mais frouxo. Temos muitas pessoas que, ao longo da vida, mudam de

    pertencimento religioso um fenmeno cada vez mais frequente, e temos tambm pessoas

    que pertencem a mais de uma religio ao mesmo tempo, pois sentem que, deste modo,

    esto mais amparadas nos momentos difceis. E temos, alm disso, um contingente de

    pessoas que no sente necessidade de pertencimento religioso numa certa fase da vida ou

    por toda vida.

    Todas estas diferenas esto presentes na escola pblica brasileira. E ela tem o dever de

    acolher e promover o respeito entre indivduos to diferentes em termos de crenas, o que

    no tarefa nada fcil. De acordo com o que est afirmado na Constituio Brasileira de

    1988, o estado brasileiro laico (veja-se o Artigo 19 entre outros). Ou seja, ele no professa

    nenhuma religio e deve assegurar que todos possam ter liberdade de professar a sua

    religio. A escola pblica brasileira, como parte do estado brasileiro, e como legtimo espao

    pblico, tem tambm este dever o de assegurar que alunos e professores tenham as mais

    amplas liberdades de conscincia, de crena e de associao e manifestao religiosa. Vale

    dizer que uma das possibilidades de manifestao religiosa o indivduo declarar-se ateu,

    demonstrando, com isso, que tem uma posio vlida a qual deve ser respeitada no tema

    das religies. Por todos estes motivos, a escola pblica brasileira no deve privilegiar uma

    religio em detrimento das outras, pois o Brasil um pas que no tem religio oficial. Dizer

    que uma escola pblica laica significa dizer que, nela, temos um regime social de

    convivncia harmnica das diferenas de crena e de conscincia, e uma das modalidades

    mais frequentes desta convivncia a tolerncia religiosa.

    Mas, vale tambm lembrar que a liberdade de conscincia envolve muitos outros aspectos.

    Por exemplo, a escola deve assegurar que alunos e alunas e professores e professoras de

    diferentes opinies em poltica partidria convivam em regime de respeito. Dessa forma, a

    escola, como tal, no pode apoiar um determinado partido poltico numa eleio, e muito

    menos um candidato. Mesmo que tenhamos uma situao em que todos os alunos e

    professores gostem do mesmo candidato, a escola como instituio no pode apoiar este

    candidato, mas cada um pode fazer isso, pois da sua liberdade de crena e de conscincia.

    O estado laico e a escola pblica laica surgem para defender a liberdade de conscincia e

    de crena. Estas liberdades tm uma conexo direta com a democracia, com o estado de

    direito e os regimes de justia. E isto se torna cada vez mais importante no mundo por conta

    da proliferao dos contextos multiculturais e da globalizao, que coloca distintas culturas

    em contato. H vinte anos atrs, no conhecamos de perto nenhuma mesquita no Brasil,

    hoje temos mesquitas rabes em todas as capitais e, em muitas cidades brasileiras, os

    muulmanos alugaram uma sala e ali realizam suas prticas religiosas, mesmo sem a

    construo da mesquita. O estado laico protege melhor as minorias. O estado laico se liga

    ao pluralismo cultural.

    Termino este texto bsico, enfatizando que a escola cumpre um papel muito importante na

    formao de cidadania das novas geraes, ensinando-as como se constitui e se mantm o

  • 18

    regime de diversidade, tolerncia e respeito que caracteriza o espao pblico, fundamental

    para a democracia. Esta tarefa da escola , certamente, muito difcil e enfrenta as presses

    das famlias. Se uma famlia fortemente catlica, vai querer, no fundo, que sua filha estude

    numa sala de aula apenas com colegas catlicos, e no vai ver com bons olhos a presena

    de afro religiosos, pentecostais, espritas etc. Mas dever da escola ensinar a estas

    crianas, e a estas famlias, que, no espao pblico, todos tm o direito de expressar suas

    crenas, sendo esta uma das salvaguardas da vida em sociedade.

    REFERNCIAS

    DA MATTA, R. A Casa & a Rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

    BRASIL, Constituio Federal, 1988.

  • 19

    Unidade 4

    Diversidade de gerao

    ENTRE O INDIVIDUAL E O SOCIAL: TRAJETRIAS DE

    VIDA, QUESTES DE GERAO E POSSIBILIDADES

    PARA O DILOGO INTERGERACIONAL

    Carla Beatriz Meinerz

    Nenhum indivduo deve ser compreendido fora da perspectiva cultural em que se constitui.

    Ao pensarmos que a diversidade uma caracterstica das relaes que se estabelecem na

    contemporaneidade, tambm a ideia de fazer parte de uma gerao com caractersticas

    homogneas deve ser relativizada. Os seres humanos no repetem em suas vidas um ciclo

    nico e universal, categoricamente dividido em etapas, em que infncia, juventude, adultez

    e velhice se sucedem em vivncias similares e independentes dos contextos em que se

    desenvolvem. Ao contrrio, a vida humana a possibilidade de traar trajetrias prprias

    conforme o contexto social e histrico em que se realiza. Isso implica afirmar que um sujeito

    pode ser considerado jovem independente da sua faixa etria, dependendo da sociedade

    em que se constitui como tal. A experincia dessa juventude ser matizada pela posio

    social ocupada, assim como questes de gnero, racialidade, entre outros.

    Se h uma heterogeneidade nas vivncias das variadas geraes, igualmente as relaes

    intergeracionais sofrem transformaes. E justamente no mundo contemporneo que se

    observam as mudanas mais expressivas na forma como se relacionam distintos grupos

    nessa perspectiva. Diferentes pocas escolheram idealizar ou menosprezar determinados

    perodos da vida. Atualmente, vivemos a valorizao da juventude como referncia de

    melhor fase da existncia humana e um consequente desejo de prolongamento dessa

    experincia nas trajetrias sociais e individuais. Partindo dessa constatao, enfatizamos,

    nas reflexes a seguir, o tema da juventude para mediar a compreenso das questes

    geracionais na contemporaneidade. Tal escolha revela-se importante tambm para a anlise

    das relaes que acontecem no espao escolar, uma vez que o componente da convivncia

    intergeracional parte da prtica cotidiana nesse ambiente.

    Falaremos mais em juventude e culturas juvenis do que em jovens isoladamente, assim

    como trataremos de conectar suas prticas com as experincias sociais que os envolvem,

    especialmente marcadas pelas relaes com os adultos enquanto referncias vitais. O jovem

    no tratado de forma isolada, mas enquanto juventude e, dentro da perspectiva da

    diversidade de culturas juvenis existentes, compreendido como sintoma cultural. Atravs do

    jovem pensaremos a criana, o adulto e o idoso.

    Falar em juventude falar em diversidade, sendo que a mudana e a possibilidade de pensar

    sobre ela so caractersticas fundamentais para a compreenso dos jovens numa

    perspectiva social e histrica. A dificuldade em construir uma definio dessas categorias

    vem sendo apontada por muitos autores brasileiros na rea da educao, que inovaram ao

    vislumbrar, nesse campo, o jovem para alm da categoria de aluno.

  • 20

    Circulam, em nossa sociedade, diferentes representaes sobre ser jovem. O senso comum,

    assim como parte da tradio cientfica moderna, tende a uniformizar tal conceito em torno

    da varivel idade e da ideia de etapa transitria e conflituosa da vida humana. Ao mesmo

    tempo, se reivindica a juventude como tempo ideal e se constri uma produo simblica,

    especialmente atravs da mdia e dos apelos consumistas, investida de valores vinculados

    a determinadas caractersticas como a beleza corporal, o estilo de se vestir, o esprito

    empreendedor ou desconhecedor de limites no campo das relaes e da comunicao via

    novas tecnologias. Tratando dessa reivindicao, a psicanalista Maria Rita Kehl afirma que:

    O efeito paradoxal do campo de identificaes imaginrias aberto pela cultura jovem que

    ele convoca pessoas de todas as idades. Quanto mais tempo pudermos nos considerar

    jovens hoje em dia, melhor. Melhor para a indstria de quinquilharias descartveis, melhor

    para a publicidade melhor para ns? O fato que nas ltimas dcadas viramos jovens

    perenes. Por que no? (KEHL, 2007, p. 47).

    H claramente a produo de objetos de consumo material e simblico nessa perspectiva

    (roupas, aparelhos eletrnicos, grupos musicais, propagandas, filmes, comunidades virtuais,

    entre tantos), mas h igualmente variadas formas de praticar e incorporar tal produo,

    possibilitando o surgimento de diferentes grupos, tribos dentro das chamadas culturas

    juvenis.

    Essa idealizao est tambm relacionada com as condies econmicas e sociais

    contemporneas, em que as possibilidades de ingresso no mundo do trabalho escasseiam

    e a necessidade de qualificao cresce cada vez mais, acompanhada de instabilidade e

    incertezas quanto ao futuro. Reconhecemos as exigncias dessa materialidade, articulando

    a questo geracional com as de origem social, de gnero, de racialidade, de territorialidade,

    entre outras.

    Nem o critrio da idade nem a perspectiva de transitoriedade podem ser tomados como

    variveis independentes. Do ponto de vista poltico-administrativo, as fronteiras entre

    infncia, adolescncia, juventude e vida adulta, no Brasil, baseiam-se nos dados do Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), que confirmam a adolescncia na populao

    compreendida entre a faixa etria dos doze aos dezoito anos, e a juventude, dos dezoito aos

    vinte e quatro anos. Os estudos de juventude, entretanto, alargam esse tempo para os 29

    anos de idade. Outro referencial importante o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA),

    que define a faixa etria dos doze aos dezoito anos incompletos para as medidas de

    proteo e ateno integral criana e ao adolescente.

    Quanto questo da transitoriedade, no se pode negar que a adolescncia e a juventude

    esto relacionadas com a vivncia de uma experincia que oscila entre as exigncias do

    mundo infantil e as do mundo adulto. Os critrios para demarcar esse perodo no so,

    todavia, apenas biolgicos. As modificaes corporais aparecem mais ou menos em todas

    as sociedades na mesma faixa etria. Por outro lado, a integrao do indivduo no mundo

    dos adultos varia nas diferentes sociedades e, dentro delas mesmas, nas diversas

    experincias e prticas socioculturais. Jovens com a mesma faixa etria vivem esse perodo

    de diferentes maneiras, conforme a cultura em que esto inseridos.

  • 21

    Em quase todas as culturas existem ritos de passagem da vida infantil para a adulta, e a

    antropologia nos proporciona muitos relatos sobre rituais que marcam essa mudana. O

    exemplo dos ndios Tkuna do Alto Solimes, Amazonas, narrado pelo antroplogo Ari

    Pedro Oro (1977), pode ser uma referncia. Segundo o autor, as crianas, a partir dos seis

    ou sete anos de idade, deixam de brincar juntas e cada uma passa a participar da vida adulta

    de seus sexos, at chegar o perodo do rito maior de passagem, que marca o novo

    comportamento social e status, iniciando nova vida. Para as meninas, existe a Festa da

    Menina-Moa.

    Quando aparece a primeira menstruao, a menina recolhida e fica isolada, enquanto os

    parentes preparam uma festa. Durante a comemorao ela libertada, tem seus cabelos

    arrancados e recebe conselhos das ancis. A partir de ento, o grupo esperar um

    comportamento adulto da moa. Embora na sociedade ocidental e contempornea, tal

    passagem no tenha um tempo ou um rito nico e determinado, igualmente as famlias

    possuem rituais, como o baile de debutantes ou a primeira sada para uma festa sem a

    presena dos pais. A prpria escola pode ser analisada como um possvel lugar de

    passagem nessa perspectiva.

    A passagem, quando no bem delimitada, pode gerar uma prolongao dessa experincia

    vital, criando-se um perodo em que o sujeito v postergada sua entrada no mundo adulto,

    no assumindo responsabilidades vinculadas ao trabalho, constituio de famlia, entre

    outras.

    Historicamente, o reconhecimento de uma fase da vida, distinta da infncia e da vida adulta,

    nas sociedades ocidentais crists, desenvolve-se com nitidez entre o final do perodo

    moderno e a inaugurao do perodo contemporneo, surgida da revoluo industrial e das

    revolues burguesas, refletida nos novos processos dentro da cincia e da escolarizao.

    At o sculo XVIII, confundia-se infncia e juventude, sendo que a ltima era sinnimo de

    vagabundagem e, por isso, se confirmava a necessidade social de impor educao e

    trabalho s geraes mais novas, livrando-as das caractersticas negativas, vinculadas ao

    cio e libertinagem. A escola recebe a tarefa de evitar tais vnculos, educando para a vida

    em sociedade, ou seja, para o trabalho intelectual e manual, conforme a posio social

    ocupada pelo sujeito. Somos herdeiros de um projeto pedaggico delineado sob tal

    argumentao, e a maneira como lidamos com os jovens, ainda hoje, apresenta

    caractersticas desse tipo de representao social. Da decorre o dilogo intergeracional

    precrio que se estabelece nas relaes pedaggicas cotidianas, expresso nas dificuldades

    crescentes das relaes entre professores e alunos, assim como na limitada troca de

    saberes entre os mesmos.

    A partir do sculo XVIII, buscou-se definir as fronteiras entre o mundo infantil e o mundo

    adulto, a esfera do estudo e da preparao para o futuro, de um lado, e o mundo do trabalho

    e da formao de uma famlia, de outro. O mundo da liberdade de escolha, por uma parte,

    e das opes sedimentadas, por outra. A passagem, no entanto, na atualidade est

    ameaada por uma nova indefinio dos limites entre esses mundos, agravada pela

    desigualdade na possibilidade de escolher, de selecionar, de produzir trajetrias de vida,

    dependendo da condio social do sujeito.

  • 22

    Podemos pensar que a juventude um perodo constitudo pela mudana como

    centralidade, em que o corpo, a afetividade, as referncias sociais e grupais se constituem

    num novo patamar da experincia vital. Somos convocados/as a dizer quem somos e quem

    poderemos ser, do que gostamos, de quem gostamos, enfim, fazemos aprendizados que

    so significativos para o resto da vida. A mudana contnua e, especialmente, a capacidade

    de lidar com isso o que se pede ao adulto em sua experincia individual e social. Essa

    perspectiva desloca a ateno dos contedos da experincia para os processos da

    construo de cada sujeito ou grupo. Ao invs de descrever os contedos prprios dessa

    fase da vida e explicar os sujeitos a partir deles, busca-se compreender os processos

    vivenciados pelo sujeito, envolto em seu entorno cultural e histrico. Um exemplo desse

    modo de compreenso dos sujeitos a importncia atribuda juventude entre os grupos

    populares como tempo de opes fundamentais, uma vez que uma escolha pelo trfico de

    drogas ou pela gravidez, nessa poca, pode resultar em situaes emblemticas para a vida

    inteira.

    Se as geraes mais novas convivem com adultos que tampouco consolidaram suas

    existncias socialmente, vivendo a instabilidade e as incertezas em seu cotidiano, ou so

    inbeis para lidar com as mudanas, cria-se um dilema. Esse dilema prprio do contexto

    contemporneo, destacando-se que, segundo Fabrinni e Melluci,

    Deve ser reconhecido, ento, que as caractersticas atribudas ao adulto maduro, que

    parecem referir-se a um tipo de estabilidade adquirida e duradoura, no tm uma resposta

    efetiva na experincia de nenhuma pessoa real. Os problemas que se encontram pela

    primeira vez na adolescncia: escolhas, dilemas, relao com mudanas contnuas, no so

    superados na adolescncia, mas iniciam a partir dela a fazer parte do panorama existencial

    de cada um. So tenses atuais para cada adulto s voltas com a vida [...] (FABBRINI;

    MELUCCI, 2004, p. 7).

    A contradio e a mudana so parte da condio humana, cuja capacidade criativa se

    revela na produo da cultura, mesmo em condies sociais adversas, na reinveno do

    cotidiano e na fabricao de estratgias de sobrevivncia. Michel de Certeau (1994) uma

    referncia importante para pensar nessa perspectiva da vida cotidiana enquanto mediadora

    fundamental na historicidade da sociedade.

    Pensar o jovem como sintoma cultural significa compreender, em suas experincias, traos

    de uma sociedade que se multiplica em questes e problemticas sociais complexas.

    Desloca-se a identidade juvenil historicamente vinculada gerao de problemas sociais

    para a de especial vtima da sociedade em que vive. Alguns dados lanados pelas pesquisas

    constitutivas do Mapa da Violncia no Brasil/2011 evidenciam a crescente vitimizao dos

    jovens brasileiros. So eles que morrem em maior quantidade, assassinados ou vtimas de

    acidentes de trnsito.

    Dessa forma, ao mesmo tempo em que o jovem modelo ideal nas produes simblicas,

    tambm representativo do grupo mais atingido pelas incertezas e problemas da nossa

    sociedade. Isso porque nossa organizao social inclui uma opo de desenvolvimento em

    que a criana e o velho pouco contam, por serem parcial ou totalmente improdutivos. o

  • 23

    adulto a referncia para a construo de polticas pblicas em geral, do lazer segurana e

    justia. A criana, o jovem e o velho esto num segundo plano, embora algumas aes e

    iniciativas floresam no tecido social mais atual. Tendemos a afirmar que o idoso aquele

    que mais sofre com a experincia da falta de um lugar social reconhecido, justamente no

    momento em que teoricamente o amadurecimento desse perodo da vida qualificaria

    enormemente a relao com as demais geraes.

    O tema das relaes intergeracionais deve ser entendido a partir da diversidade cultural das

    experincias geracionais, para, ento, proporcionar alguns questionamentos sobre a

    qualidade dessas relaes, no sentido do respeito e da troca de saberes entre si.

    justamente na escola onde diferentes geraes tm a oportunidade de se encontrar

    cotidianamente e construir a possibilidade de um dilogo qualificado. Mas isso o que

    acontece? Crianas, jovens, adultos e velhos interagem no sentido do respeito mtuo e da

    troca de saberes nesse ambiente? O professor age como um adulto e, portanto, uma

    referncia para seus alunos? O professor v no seu aluno o jovem, a criana ou o velho em

    suas experincias concretas?

    A escola um espao sociocultural e as relaes sociais presentes nesse ambiente esto

    conectadas com as experincias socioculturais e com a forma como os sujeitos se apropriam

    das mesmas. Sabemos que a escola e seu papel social so diariamente colocados em

    questo. Assim, uma das primeiras coisas a fazer reconhecer que nossas prticas se

    inserem numa instituio no explicada s pelo presente, mas que tem uma tradio e uma

    memria histrica que a engendram. Na cultura desenvolve-se tambm a educao. No

    sculo XX, nos aproximamos de algo que podemos chamar de cultura mundial e da

    possibilidade de convertermo-nos em cidados totalmente conscientes do mundo. A

    antroploga Margaret Mead (1971) aponta para a constatao de que estamos vivendo uma

    experincia nica na histria da humanidade. Trata-se do aparecimento de um novo tipo de

    cultura em que os mais jovens assumem uma nova autoridade e representam o porvir, o

    futuro ainda desconhecido. Para a autora, h culturas posfigurativas em que os jovens

    aprendem dos adultos, culturas cofigurativas em que adultos e jovens aprendem juntos e

    culturas prefigurativas em que os adultos aprendem dos mais novos. No mundo atual,

    convivem as trs experincias culturais, mas a tendncia hegemnica de que a juventude

    assuma um papel cultural fundamental o que pode ter grandes repercusses para a

    instituio escolar.

    A educao uma experincia antropolgica presente em qualquer cultura, independente

    da existncia de instituies escolares. A escola de hoje uma resposta s necessidades

    de complexificao das sociedades contemporneas, resultantes das demandas da

    industrializao e da urbanizao, podendo ser reinventada na medida em que esses

    processos se aceleram cada vez mais, ao passo que os sujeitos sociais agem sobre eles.

    Os processos de escolarizao modernos e contemporneos esto relacionados com os

    processos civilizatrios e com os processos de socializao, que incluem a adaptao do

    indivduo sociedade vigente ou emergente. Porm, os seres humanos individuais ligam-se

    numa pluralidade, configurando algo novo: a sociedade. A indissociabilidade de ambos e, ao

    mesmo tempo, a singularidade de cada um, o que desafia a nossa compreenso. nessa

  • 24

    complexidade que devemos pensar ao tratar das relaes intergeracionais na escola,

    construindo o caminho do dilogo e da troca de saberes entre diversificadas experincias de

    geraes.

    REFERNCIAS

    CERTEAU, M. A Inveno do Cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1994.

    DAYRELL, J. A Escola Como Espao Scio-Cultural. In: ______. Mltiplos Olhares Sobre

    Educao e Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996.

    ______. A Msica Entra em Cena: o rap e o funk na socializao da juventude em Belo

    Horizonte. So Paulo: USP, 2001. Tese (Doutorado em Educao) Programa de

    Ps-Graduao da Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2001.

    FABBRINI, A; MELUCCI, A. A Idade de Ouro. Traduo livre. [S.l.: s.n.], 2004. Texto digitado.

    KEHL, M. R. A juventude como sintoma cultural. Revista Outro Olhar, Belo Horizonte, ano

    V, nmero 6, 2007.

    MEAD, M. Cultura y Compromiso: estudios sobre la ruptura generacional. Buenos Aires:

    Granica, 1971.

    ORO, A. P. Tkuna: vida ou morte. Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre, Escola Superior de

    Teologia So Loureno de Brindes, 1977.

    SPOSITO, M. P. Consideraes em Torno do Conhecimento Sobre Juventude na rea de

    Educao. In: ______. Juventude e Escolarizao. Braslia: INEP, 2001. (Srie

  • 25

    Unidade 5

    Diversidade tnico-racial: indgenas

    POVOS INDGENAS E EDUCAO AUDIOVISUAL

    Cludio de S Machado Jnior

    Quando pensamos nas origens da cultura brasileira, quase sempre nos remetemos noo

    de miscigenao tnica e, consequentemente, destacamos a importncia das culturas

    nativas americanas (denominadas comumente como indgenas), africanas e europeias.

    Tudo isso de maneira bem genrica, sem considerar a diversidade existente dentro destes

    grupos. Geralmente, e mesmo na contemporaneidade, ignoramos que h uma diversidade

    de quase duas centenas de etnias indgenas no Brasil. Tambm desconhecemos, em grande

    parcela, a diversidade cultural, religiosa e poltica que caracteriza o atual e imenso continente

    africano. E, por fim, remetemos a uma ideia vaga sobre a tradio da cultura europeia,

    caracterizando, na maioria das vezes, uma suposta pureza tnica, muito embasada em

    teorias racistas do passado, que contrariam a prpria experincia de miscigenao e trocas

    culturais da histria da Europa.

    O que quase nunca fazemos uma reflexo sobre a origem de nossos pensamentos, como

    estabelecemos pr-conceitos sobre aquilo que julgamos conhecer ou simplesmente

    desconhecemos a existncia. No caso da caracterizao de uma cultura brasileira, como

    mencionado no pargrafo anterior, muito pouco refletimos sobre a origem das constataes

    sobre a nossa cultura, e quase nunca o fazemos no que diz respeito cultura dos outros.

    Trata-se de um exerccio de reflexo que apontaria para um provvel sentimento de

    pertencimento que temos com relao a determinadas culturas e etnias em que nos

    imaginamos inseridos pela experincia cotidiana. E de onde vem esse nosso conhecimento?

    Podemos pensar em algumas instituies sociais que so responsveis pela manuteno

    de um denominado patrimnio cultural da humanidade, entre elas a escola e os meios de

    comunicao de massa, responsveis pela difuso do conhecimento e da informao,

    especialmente na contemporaneidade.

    Uma provocao pode ser lanada: ser a escola, espao de nossa experincia discente e

    docente, um local por excelncia da produo de conhecimento? A resposta pode ser sim.

    Ou no. Se considerarmos apenas a experincia infantil, comumente as crianas brasileiras

    dedicam apenas um turno para a realizao de atividades escolares. Em outros turnos,

    temos uma srie de instituies que exercem influncia sobre a sua formao: suas relaes

    de sociabilidade em crculos de amizade, a participao em atividades de instituies

    religiosas, a influncia de jornais impressos, programas televisivos e, mais recentemente,

    contedos especficos da internet. Isso para citar apenas alguns elementos com os quais a

    escola disputa pela ateno da criana.

    No caso de adultos, muitos deles j passaram pelos bancos escolares, alguns com Ensino

    Fundamental completo, outros incompleto, valendo o mesmo para o Ensino Mdio. Nem

    todos do prosseguimento aos estudos ou mesmo optam, ou no tm a oportunidade, de

  • 26

    cursar o Ensino Superior. neste sentido que gostaria de enfatizar a importncia de outras

    instituies que se encontram paralelas escola e que exercem uma influncia significativa

    na sociedade. Alguns sero abordados nos mdulos do presente curso. De nosso interesse

    especfico, lanaremos alguns olhares sobre o cinema, espao por excelncia de projees

    flmicas, e a televiso, instituio responsvel pela transmisso de contedo variado, que se

    popularizou significativamente em todas as partes do mundo, especialmente no Brasil.

    Nosso contraponto ser a construo de identidades especficas criadas dentro destes

    recursos audiovisuais. Mais especificamente, e de nosso interesse direto, nos deteremos

    nas representaes que remetem comumente s origens de nossa identidade nacional,

    embasada na figura dos povos indgenas. Veremos alguns exemplos de construo de

    imagens desta cultura no audiovisual: como ocorre, que esteretipo valoriza, se considera a

    diversidade tnico-cultural, e se cumpre, em determinadas circunstncias, um papel

    pedaggico sobre a existncia e respeito destes povos na contemporaneidade, e no

    somente vinculada a uma histria do passado.

    HISTRIA BRASILEIRA E LEITURAS CULTURAIS

    Uma anlise sobre a construo da histria brasileira destaca os chamados documentos

    histricos como fontes importantes de acesso a informaes do passado. No caso dos

    primeiros anos do perodo colonial brasileiro, essas fontes constituem-se em grande maioria

    por cartas e relatos de viagem, produzidos por detentores do domnio da escrita e,

    consequentemente, carregadas de subjetividade a partir da experincia de quem os escreve.

    Uma descrio da terra e dos povos que aqui foram encontrados no sculo XVI, portanto,

    est carregada de uma subjetividade que tem como ponto de partida a prpria experincia

    social e da escolarizao europeia, que, em muitos dos casos, se caracterizou como

    essencialmente catlica.

    As interpretaes do sculo XVI sobre os povos que habitavam a Amrica, e que foram

    genericamente chamados de ndios, tinham, portanto, como ponto de partida, o juzo de

    valor de quem exerceu a autoridade do discurso. E neste sentido que percebemos a

    construo de uma identidade sobre o outro que parte do ponto de vista do eu, e que

    caracteriza, por exemplo, o diferente, o extico, o errneo comportamental e o predisposto

    converso crist. A leitura de um trecho de carta enviada Coimbra em 1549, pelo padre

    jesuta Manuel da Nbrega, um dos lderes da primeira misso da Companhia de Jesus no

    Brasil, deixa claro uma impresso criada sobre a cultura nativa local como vinculada a maus

    costumes, que se contrapunham ideologia do comportamento condicionado catlico e

    lgica da prpria organizao das instituies educacionais do sculo XVI.

    Convidamos os meninos a ler e escrever e conjunctamente lhes ensinamos a doutrina christ [...],

    porque muito se admiram de como sabemos ler e escrever e tm grande inveja e vontade de

    aprender e desejam ser christos como ns outros. Mas somente o impede o muito que custa tirar-

    lhe os maus costumes delles, e nisso est hoje toda a fadiga nossa (NBREGA apud FARIA, 2006,

    p. 68).

  • 27

    Por se tratar de uma cultura muito embasada na tradio oral, alm de considerarmos

    tambm a influncia do condicionamento poltico imposto pelos colonizadores, dificilmente

    encontraremos documentaes de poca produzidas pelos prprios nativos brasileiros. E,

    assim, temos, ao longo de toda a nossa histria, a construo de vrios discursos sobre um

    segmento de nossa populao que de protagonista passou a ocupar uma posio

    secundria em nossos livros didticos, carregados, muitas vezes, por um descuido de

    compreenso sobre as circunstncias da criao de determinados discursos, ou mesmo

    imbudos de um sentimento de discriminao e preconceito diversidade cultural, que no

    nos remete necessariamente a perodos to remotos de nossa experincia social.

    A observao sobre a trajetria dos documentos que referem a ideia da construo da

    alteridade dos povos indgenas brasileiros remeter percepo de um discurso que se

    deteve prioritariamente na forma escrita, com algumas incurses pelo universo da

    representao pictrico-artstica. Assim, desenhos, pinturas e esculturas procuraram dar

    conta, em algumas situaes, de uma interpretao sobre a caracterizao de nossa

    sociedade. E, no que diz respeito aos povos indgenas, interessante a constatao da

    criao de representaes que quase sempre se remetem a um contexto inicial de

    colonizao, especialmente a partir do sculo XIX, quando a questo tornou-se um problema

    que se confundia com a necessidade de incorporao de mo-de-obra rural.

    ROTEIROS PARA UMA NARRATIVA: A QUESTO INDGENA

    Ao observarmos a histria do audiovisual, especialmente no Brasil, encontraremos amplas

    dificuldades de evidenciar um protagonismo indgena no que diz respeito sua formao.

    Isso porque o nosso processo de desenvolvimento das comunicaes, ou mesmo das

    telecomunicaes, indissocivel de nossa histria econmica, social e poltica. Nossa

    experincia de formao passa pelos traumas de uma nao que se desenvolveu atravs

    da colonizao, seja ela efetiva ou simblica. No foram criados mecanismos de integrao

    social em todo o perodo colonial e imperial, e na repblica, aps mais de uma centena de

    anos de experincia poltica, somente assistimos na contemporaneidade aes

    governamentais, pressionadas por movimentos sociais (essencialmente), que buscaram a

    valorizao da diversidade cultural e tnica, em suas mais diversas instncias.

    A participao da cultura indgena no contexto do desenvolvimento do audiovisual brasileiro

    se caracterizou pela condio de povos em pauta de filmagem, e no povos que realizaram

    filmagens. Algo semelhante com o que ocorreu, ao longo de toda a nossa histria, com a

    documentao escrita e pictrica da qual se valem muitos historiadores contemporneos e

    que engendrou um ponto de vista sobre o outro sem que, necessariamente, esse outro

    tivesse uma participao efetiva no discurso visual ou verbal. No vis mais tradicional e

    pedaggico: uma histria indgena contada pelo europeu, e no pelos prprios povos

    indgenas. A mesma situao que pode ser percebida em outras instncias tnicas, de

    classe social, de origem religiosa, e at mesmo de gnero, especialmente numa sociedade

    patriarcalista.

    No contexto republicano, a criao, no ano de 1910, do SPILTN, Servio de Proteo ao

    ndio e Localizao de Trabalhadores Nacionais, j demonstra que a questo indgena no

  • 28

    Brasil se apresentava como um problema comportamental, de necessidade de adequao

    engrenagem moderna do trabalho, especialmente no interior do pas, onde a mo de obra

    se fazia mais escassa. As expedies financiadas pelos governos brasileiros, e inclusive

    estrangeiros, revelavam a imagem de um Brasil que, at ento, se desconhecia. A

    antropologia, nesse sentido, trabalhou em prol de interesses de Estado, pelo menos em um

    primeiro momento, adquirindo autonomia e criticidade de pensamento somente anos depois.

    Posteriormente denominado apenas como SPI, foi somente em 1967 que o rgo foi extinto

    para a criao da FUNAI, a Fundao Nacional do ndio. Contraditoriamente, como poderia

    se pensar, a FUNAI surgiu justamente no perodo de no democratizao da poltica

    brasileira, remontando aos acontecimentos de 1964 e consequente anulao dos direitos

    constitucionais, imposta por mais de uma dezena de atos institucionais. Na legislao da

    poca, cabe destacar o incio do primeiro artigo que remete sua lei de criao, conforme

    consta no trecho a seguir.

    Art. 1. Fica o Governo Federal autorizado a instituir uma fundao, com patrimnio prprio

    e personalidade jurdica de direito privado, nos termos da lei civil denominada Fundao

    Nacional do ndio, com as seguintes finalidades: I - estabelecer as diretrizes e garantir o

    cumprimento da poltica indigenista, baseada nos princpios a seguir enumerados: a)

    respeito pessoa do ndio e s instituies e comunidades tribais; b) garantia posse

    permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas

    as unidades nelas existentes; c) preservao do equilbrio biolgico e cultural do ndio, no

    seu contato com a sociedade nacional; d) resguardo aculturao espontnea do ndio, de

    forma que sua evoluo socioeconmica se processe a salvo de mudanas bruscas

    (BRASIL, Lei 5.371 de 05/12/1967).

    A questo indgena, no Brasil, foi objeto de preocupao muito grande no que concerne

    questo da propriedade. A FUNAI surgiu como um rgo responsvel pela regulao e

    acompanhamento deste problema que envolveu comunidades indgenas e grandes

    fazendeiros, ou mesmo empreiteiros, em srios conflitos, deflagrando um confronto entre um

    provvel desenvolvimento econmico e o direito terra pela tradio cultural. Anos depois,

    com a abertura lenta e gradual do regime militar e a formao de uma Assembleia

    Constituinte para restaurar a lei magna da nao, novamente a questo indgena retomou a

    pauta de discusses polticas. E a prpria Constituio que assegurou aos povos indgenas

    o direito educao especfica e diferenciada, com nfase no ensino proferido na lngua da

    comunidade e na caracterizao de processos prprios de aprendizagem. Caso ainda no

    conhea, segue abaixo o trecho da Constituio Brasileira sobre a questo supracitada.

    Art. 210. Sero fixados contedos mnimos para o ensino fundamental, de maneira a

    assegurar formao bsica comum e respeito aos valores culturais e artsticos, nacionais e

    regionais. 1 - O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir disciplina dos horrios

    normais das escolas pblicas de ensino fundamental. 2 - O ensino fundamental regular

    ser ministrado em lngua portuguesa, assegurada s comunidades indgenas tambm a

    utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem (BRASIL,

    Constituio Federal, 05/10/1988).

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    Assegurar direitos escolares conforme a cultura de cada comunidade , de certo modo, fazer

    com que as instituies de ensino se adequem aos interesses da sociedade, e no o

    contrrio. Certamente, a situao contempornea do ensino pblico no Brasil suscita muitas

    crticas e discusses, mas interessante saber que existem escolas no Brasil organizadas

    de modo diferente no que refere questo indgena tanto nas esferas federais quanto

    estaduais e municipais.

    No final do sculo XX, assistimos a reformulao tambm do campo educacional brasileiro

    com a elaborao e a publicao de uma terceira verso da Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao, a LDB. A lei da educao complementar prpria Constituio de 1988, que

    teve seus debates ampliados e somente veio a ser promulgada em 1996. Mais de uma

    dcada depois, uma nova redao foi atribuda parte da LDB, conhecida como Lei

    11.645/2008, que tornou obrigatrio nas escolas a incorporao de temas relacionados

    histria e cultura dos povos indgenas e afro-brasileiros. A abordagem deve ser realizada

    em todas as disciplinas escolares, com destaque para as disciplinas de Histria, Educao

    Artstica e Literatura.

    A Lei 11.645 impulsionou a necessidade de se reestruturar a formao de professores no

    Brasil que, durante toda a sua escolarizao, Bsica e Superior, no tiveram contato com

    este tipo de abordagem. O presente curso fruto deste movimento de reestruturao. Algo,

    infelizmente, que se fez ausente em praticamente toda a histria da educao brasileira.

    Vale a pena darmos mais uma olhada na referida lei nacional.

    Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mdio, pblicos e

    privados, torna-se obrigatrio o estudo da histria e cultura afro-brasileira e indgena

    (Redao dada pela Lei n 11.645, de 2008). 1o O contedo programtico a que se refere

    este artigo incluir diversos aspectos da histria e da cultura que caracterizam a formao

    da populao brasileira, a partir desses dois grupos tnicos, tais como o estudo da histria

    da frica e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indgenas no Brasil, a cultura negra

    e indgena brasileira e o negro e o ndio na formao da sociedade nacional, resgatando as

    suas contribuies nas reas social, econmica e poltica, pertinentes histria do Brasil

    (Redao dada pela Lei n 11.645, de 2008). 2o Os contedos referentes histria e cultura

    afro-brasileira e dos povos indgenas brasileiros sero ministrados no mbito de todo o

    currculo escolar, em especial nas reas de educao artstica e de literatura e histria

    brasileiras (Redao dada pela Lei n 11.645, de 2008) (BRASIL, Lei 9.394, 20/12/1996).

    A questo indgena, portanto, tornou-se algo constitutivo do currculo escolar. No

    simplesmente por ser inerente tambm prpria histria brasileira, mas por se tratar de uma

    questo contempornea. Alguns se espantam, por desconhecimento, quando se fala na

    existncia de mais de duzentas sociedades indgenas no Brasil atual, abarcando quase o

    mesmo nmero no que diz respeito s lnguas faladas, segundo a FUNAI. A ideia, de certa

    forma simples, de que todos que nascem no Brasil falam a lngua portuguesa fica sem

    sustentao quando defrontada com estes dados.

    Feitas algumas con