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EDUCAÇÃO POPULAR ENTRE A CIÊNCIA E A FÉl : ovas Questões sobre um Velho Dilema .:.ernadete Ramos Beserra ::'.1CED/UFC INTRODUÇAO Sinônima de militância política de _.•querd a", a educação popular, em muitos ca- os, ainda subsiste como uma prática político- e duca t iv a cujo objetivo principal é o da :onscientização dos trabalhadores da sua situa- :3:0 de explorados e da necessidade de, através ':a organização em movimentos populares, su- _erar esta situação. Embora inicialmente re- cionada a atividades escolares, como a .slfabetizaçâo de adultos, por exemplo, é inte- res sante observar, salvo raras exceções, como a educação popular transformou-se quase exclu- ivamente em educação para a consciência, para _ militância, de tal modo que sob o termo edu- dores populares quase sempre encontramos os i litanres da revolução social. Naturalmente, não passam desapercebi- .:.as a muitos teóricos e militantes da educação opular", as dificuldades inerentes a uma ação "1ue pretende alienada das próprias circunstân- :ias ideológicas nas quais foi gerada. Mas lanfredi (1984:56), por exemplo, que se ori- o presente texto é uma versão revisada do texto de mesmo Itulo apresentado na XV Reunião Anual da ANPED no GT Educação e Movimentos Sociais no Campo, Caxambu, MG, etembro/92. _ Segundo Gadotti (in Do Vale 1992:7) ... até a segunda guer- ra mundial, a educação popular era concebida como a ex- tensão da educação formal para todos, sobretudo para os habitantes das periferias urbanas e zonas rurais. Depois, nos anos 50, a educação popular foi concebida como educação e base, como desenvolvimento comunitário. : Sobre as dificuldades de se construir uma prática político- ideológica das classes dominadas ou populares, vide Brandão, 1984 e 1986; Freire, 1984; Manfredi, 1984 e Gadotti, 1984. =~ Educação em Debate - Fortaleza- Ano 16· n2 27 a 28· p. 51·57 . jan./dez. 1994 erita principalmente por Gramsci (1978 e 1978a), afirma que uma das principais missões da edu- cação popular é a de ser um veículo de contra-ideo- logia caracterizado por uma prática independente e autônoma do ponto de vista ideológico (, ..) com me- tas e limites de classes. Segundo a autora, a prática da contra-ide- ologia vai, aos poucos, exorcizando as práticas po- pulares dos elementos estranhos que as permeiam e que pertencem à ideologia dominante. De modo que a conscientização acabaria por levar as classes su- balternas a atos revolucionários, isto é, que lhes favorecessem e não às classes agora dominantes . Tal prática educativa, no entanto, não poderia estar a cargo das classes dominantes, deveria, ao contrário, ser gerida pelas próprias organizações populares: práticas de educação articuladas com as lutas específicas epromovidas pelos seus próprios in- telectuais "orgânicos:": Aceito o raciocínio exposto, passa-se a vi- ver a educação popular menos como problema e mais como redenção: os educadores conscien- tes daqui levariam aos alienados ou inconscien- tes daqui e dalhures a solução e as fórmulas de superar a exploração do trabalho pelo capital. Embora não sejamos partidários das teorias do eterno retorno", nem acreditemos que a história 4 Na terceira parte deste texto trataremos dos intelectuais oro gânicos, principalmente daqueles que assumem o papel de mediadores entre as classes subalternas e os centros de po- der da sociedade. 5 Rodrigues (1994:1) explica que a teoria do eterno retorno é uma conse quência da crença que os antigos gregos tinham de que a Terra se situava no centro de diversas esferas con- cêntricas e estas giravam umas sobre as outras. Quando um ponto da Terra completasse uma volta no interior da esfe- ras, a história desse ponto retomaria ao "status quo ante". Era o eterno retorno.

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EDUCAÇÃO POPULAR ENTRE A CIÊNCIA EA FÉl :ovas Questões sobre um Velho Dilema

.:.ernadete Ramos Beserra::'.1CED/UFC

INTRODUÇAO

Sinônima de militância política de_.•querd a", a educação popular, em muitos ca-os, ainda subsiste como uma prática político-

e d u c a t iv a cujo objetivo principal é o da:onscientização dos trabalhadores da sua situa-:3:0 de explorados e da necessidade de, através':a organização em movimentos populares, su-_erar esta situação. Embora inicialmente re-

cionada a atividades escolares, como a.slfabetizaçâo de adultos, por exemplo, é inte-res sante observar, salvo raras exceções, como aeducação popular transformou-se quase exclu-ivamente em educação para a consciência, para

_ militância, de tal modo que sob o termo edu-dores populares quase sempre encontramos osilitanres da revolução social.

Naturalmente, não passam desapercebi-.:.as a muitos teóricos e militantes da educação

opular", as dificuldades inerentes a uma ação"1ue pretende alienada das próprias circunstân-:ias ideológicas nas quais foi gerada. Maslanfredi (1984:56), por exemplo, que se ori-

o presente texto é uma versão revisada do texto de mesmoItulo apresentado na XV Reunião Anual da ANPED no GTEducação e Movimentos Sociais no Campo, Caxambu, MG,etembro/92.

_ Segundo Gadotti (in Do Vale 1992:7) ... até a segunda guer-ra mundial, a educação popular era concebida como a ex-tensão da educação formal para todos, sobretudo para oshabitantes das periferias urbanas e zonas rurais. Depois, nosanos 50, a educação popular foi concebida como educação

e base, como desenvolvimento comunitário.: Sobre as dificuldades de se construir uma prática político-

ideológica das classes dominadas ou populares, videBrandão, 1984 e 1986; Freire, 1984; Manfredi, 1984 eGadotti, 1984.

=~ Educação em Debate - Fortaleza- Ano 16· n2 27 a 28· p. 51·57 . jan./dez. 1994

erita principalmente por Gramsci (1978 e 1978a),afirma que uma das principais missões da edu-cação popular é a de ser um veículo de contra-ideo-logia caracterizado por uma prática independente eautônoma do ponto de vista ideológico (, . .) com me-tas e limites de classes.

Segundo a autora, a prática da contra-ide-ologia vai, aos poucos, exorcizando as práticas po-pulares dos elementos estranhos que as permeiam eque pertencem à ideologia dominante. De modo quea conscientização acabaria por levar as classes su-balternas a atos revolucionários, isto é, que lhesfavorecessem e não às classes agora dominantes .Tal prática educativa, no entanto, não poderiaestar a cargo das classes dominantes, deveria, aocontrário, ser gerida pelas próprias organizaçõespopulares: práticas de educação articuladas com aslutas específicas epromovidas pelos seus próprios in-telectuais "orgânicos:":

Aceito o raciocínio exposto, passa-se a vi-ver a educação popular menos como problema emais como redenção: os educadores conscien-tes daqui levariam aos alienados ou inconscien-tes daqui e dalhures a solução e as fórmulas desuperar a exploração do trabalho pelo capital.Embora não sejamos partidários das teorias doeterno retorno", nem acreditemos que a história

4 Na terceira parte deste texto trataremos dos intelectuais orogânicos, principalmente daqueles que assumem o papel demediadores entre as classes subalternas e os centros de po-der da sociedade.

5 Rodrigues (1994:1) explica que a teoria do eterno retorno éuma conse quência da crença que os antigos gregos tinhamde que a Terra se situava no centro de diversas esferas con-cêntricas e estas giravam umas sobre as outras. Quando umponto da Terra completasse uma volta no interior da esfe-ras, a história desse ponto retomaria ao "status quo ante".Era o eterno retorno.

se repita, nem mesmo como farsa"; não há comodeixar de relacionar a ação dos conscientizadosdeste fim de século com a ação dos heróis do bemdo Ocidente contra os pagãos do Oriente. Lá, naescuridão do feudalismo, era o clero, arauto da clas-se dominante, que empreendia a rendição e puni-ção dos infiéis com a convicção de estar cumprindouma missão designada por Deus. Não é este o casodos nossos educadores populares, pois estes não seassumem movidos pela fé, ao contrário, têm garanti-as de que o que fazem é científico, e, provavelmen-te por isto, politicamente correto. Curiosamente têmgarantias, enquanto a ciência moderna tem dúvidas.É sobre essas garantias que se erigem científicos epoliticamente corretos. Corretos, convictos e, conse-quenternente, tão autoritários quanto os cruzadosque levaram (como dizem João Bosco e Aldir Blancna música Agnus Sei) ao reino dos minaretes a paz naponta dos arietes, a punição para os infiéis.

Se são certezas que carregam e é de certe-zas que precisam, não é, certamente, a ciência queestá em seus horizontes, mas a fé e o seu destinomissionário. Se querem empreender suas missõesde salvação, sem um conhecimento mínimo das po-pulações alvo, não apenas estarão ratificando a suafé, como também recusando a sabedoria produzidaao longo de séculos de querelas entre os conheci-mentos científico e religioso. E isto não é semconsequências, isto é, recusar o saber científico éoptar por uma ação cuja base se encontra na igno-rância, no preconceito; e, parafraseando Eric Wolf(1984:9), a ignorância é irmã gêmea da desgraça.Por outro lado, optar pela ciência significa a dispo-sição de se submeter às limitações do seu poderque, via de regra, não opera em função de princípi-os morais nem oferece as garantias das religiões.

Embora manifeste intenção diversa, portanto,a ação da educação popular é tão manipuladora quantoa ação das políticas públicas governamentais e ambasse orientam sem consideração às especificidades dacultura das populações cujas vidas planejam, ou seja,não está em suas pautas os interesses das popula-ções, mas os seus interesses para as populações.

É objetivo do presente texto, estudar asconsequências das convicções da educação popular

6 Em "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", Marx (1980:203)afirma: "Hegel observa em uma de suas obras que os fatose personagens de grande importância na história do mun-do ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se deacrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda comofarsa." (grifo nosso).

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no caso da implantação de um assentamento da re-forma agrária no sertão do Ceará? . Iniciaremos comuma panorâmica da reforma agrária posta em execu-ção com o Plano Nacional de Reforma Agrária doGoverno José Sarney. Na segunda parte trataremosdo relacionamento do técnico em assentamento comos assentados e, finalmente, discutiremos, à luz daantropologia, as dificuldades desses projetos demodernização que não consideram as populações aque se destinam.

2 BREVE NOTA SOBREA REFORMAAGRÁRIA DO GOVERNO SARNEY

Quando, em outubro de 1985, foi promulga-do o Plano Nacional de Reforma Agrária do Gover-no Sarney, seguiu-se ao desencanto da derrota deum projeto camponês! uma certa euforia ante a pos-sibilidade de iniciar um programa de reforma agráriano País, ou seja, as metas propostas pelo PNRA nãoeram, afinal, tão desprezíveis assim. Vejamos essesnúmeros para o período 1985/1989, para o Brasil,

ordeste e Ceará, e os percentuais executados;

N° d e famílias Área (ha)

BRASIL

• Programado• Executado• Porcentagem

1.400.00077.019

5,50

43.000.0004.073.931

9,47

ORDESTE

• Programado• Executado• Porcentagem

630.00019.387

3,08

18.900.000722.780

3,82

CEARÁ

• Programado• Executado• Porcentagem

50.1003.196

6,38

1.500.000129.875

8,66

Fonte: INCRA - junho/1989

7 Os dados contidos neste texto foram coletados para a pes-quisa As práticas coletivas em assentamentos da reforma agrá-ria e o desafio de um 1IOVO aprendizado, desenvolvida pelaautora e bolsistas de Iniciação Científica do CNPq.

8 Em maio de 1985, o Ministério da Reforma e do Desen-volvimento Agrário lançou o 1° PNRA, que foi encaminha-do à apreciação das mais diversas forças sociais envolvidascom a questão agrária. Formulado por um grupo de profis-

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Considerando as estatísticas cadastrais doI~CRA para o período, isto é, a de que os beneficiá-rios potenciais? somavam cerca de 10,6 milhões detrabalhadores sem terra, propor o assentamento de1.400.000 famílias em 4 anos (1985/89) seria pratica-mente resolver o problema da terra no País, isto,naturalmente, considerando que cada família pos-sui em média 4 trabalhadores. Mas o PNRA sugeriumetas grandiosas sem propor simultaneamente as"armas adequadas de atingi-Ias. Isto é tão evidente,que ao fim do período estabelecido para a consecu-ção das metas, 1989, o que havia sido executado era,como vimos, irrisório em relação ao proposto'? .

Aceitar, portanto, as metas propostas e exigiro seu cumprimento significou uma oportunidade,para as esquerdas, de provar que a reforma agráriarenderia dividendos econômicos, além de sociais epolíticos!". Muito dessa confiança derivava do fatode que, então, as esquerdas conquistaram importan-tes espaços no Govemo e até a promulgação da Cons-tituição de 1988, estiveram, em grande parte dosEstados da Federação, em funções-chave na execu-ção do PNRA. Enfim, uma reforma agrária ampla,geral e massiva não foi possível. Entretanto, possi-

xionais, preponderantemente ligado ao movimento cam-ponês, esse plano propunha uma reforma agrária que tinhagrandes possibilidades de alterar a correlação das forçaspolíticas no campo, ou seja, poderia provocar a passagemda propriedade da terra de uma classe social (latifundiári-os) para outra (camponeses). (Cf. Mine, 1985:16). A reaçãodas classes dominantes, sobretudo os latifundiários, ao pla-no do MIRAD, foi muito forte e sua pressão para mudar ostermos do plano foi muito grande. O resultado final, oPNRA de Sarney, demonstra a Superioridade da força dolatifúndio sobre o movimento camponês. E, embora asmetas não estejam tão distantes daquelas propostas peloMIRAD, os diversos dispositivos de proteção ao latifúndionão permitem que essas metas se realizem (Martins, 1989).

9 Entre esses b eneficiár ios estariam os trabalhadores semterra. posseiros, arrendatários, parceiros, assalariados ruraise minifundistas (Cr. CEDI, 1985:18).

I () O que é irrisório em termos relativos é, no entanto, consi-derável em termos absolutos. Ou seja, a quantidade de terrareformada não é desprezível, embora as políticas deimplernentação e manutenção tenham sido precárias e in-suficientes.

11 As esquerdas observarão, e alguns efetivamente compre-enderão, que o processo -de luta é completamente diversodo processo de produção. Em muitos casos, este é até maiscomplicado, significando que a desapropriação e a imissãode posse representam um sucesso apenas no primeiro mo-mento, isto é, os trabalhadores lutaram pela terra e a con-quistaram. Mas, para além desta transitoriedade, o processorepresenta muito mais o risco do que a certeza de lucroseconômicos ou políticos.

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f)~~y~bili .~ . 1 l' d d rt'I ItOUexpenencias oca iza as e uma proposta cujabase são as práticas coletivas na organização e gestãodo trabalho e da produção. Aqui, justamente aqui,tem início essa experiência de reforma agrária, co-meçando também, a produção de um vasto materialpara uma reflexão crítica sobre as formas de educar efazer política das esquerdas.

3 REFERÊNCIAS DO MODELO COLETIVISTAversusREFERÊNCIAS DOS ASSENTADOS

Embora as experiências de organização co-munitária desenvolvidas pela igreja progressista te-nham sido a referência próxima!", tudo indica queos referenciais longínquos dos programas coletivistasde reforma ou revolução agrária do leste europeu ti-veram grande influência na escolha do modelo dereforma agrária pelo PNRA. De toda sorte, o fato éque, segundo depoimentos de alguns técnicos en-volvidos no processo de planejamento e execuçãodo PNRA no Ceará, não havia um modelo de refor-ma agrária que se desejava implementar. Havia, istosim, algumas orientações, diretrizes que podiamperfeitamente ser modificadas no curso das discus-sões com as comunidades-meta. Não é, no entanto,isto que se evidencia no caso que vimos estudandodesde 1990.

O assentamento da reforma agrária em focolocaliza-se no sertão de Quixadá e é especialmenteprivilegiado por possuir terras de excelente qualida-de, parte das quais banhadas pelo rio Choró,perenizado pelo açude de mesmo nome, sem dúvi-da, fator de fundamental importância para a produçãoagrícola, sobretudo da região, que é frequentemen-te assolada por longos períodos de estio. Além dessefator, o referido assentamento tem sido utilizadocomo espécie de assentamento-modelo pelos órgãosestatais, sendo, deste modo, espaço privilegiado tam-bém no sentido do montante de investimentos".

12 O nO 16 dos Cadernos do ISER, organizado por NeideEsterci, trata especificamente sobre práticas coop erativistase coletivistas organizadas pela Igreja Popular no campo.

13 O assentamento em questão, além de ter sido beneficiadocom créditos para investimento e custeio dos programas eprojetos que apoiam os pequenos produtores em geral, e oPNRA, em particular, foi beneficiado com créditos especiaisde investimento para a implanatação de um roçado irrigado.

Com o objetivo de assessorar a organizaçãodos assentamentos da reforma agrária, o InstitutoNacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA,criou a figura do técnico em assentamento, cuja fun-ção seria a de ajudar os assentamentos a solucionaros problemas decorrentes da prática de novas expe-riências de gestão e organização do trabalho e da pro-dução. Esse técnico deveria morar, durante um oudois anos, no assentamento, tempo considerado su-ficiente para os assentados "aprenderem" a solucio-nar os problemas que surgiriam a partir da imissãode posse.

O empreendimento, sem dúvida, é compli-cado. Primeiro porque se quer que esses trabalha-dores rurais passem a se orientar por regrascompletamente diferentes daquelas a que estavamacostumados e, segundo, porque, considerando isto,tem a pretensão de ensinar aos camponeses um novomodo de vida. Mas se o que está em jogo é a assimi-lação de um novo modo de vida, é claro que os cam-poneses precisam de "professores". Ainda assim, ouseja, a despeito da violência que encerra a pretensãode ensinar o outro a viver, é, sem dúvida, ingenuida-de achar que se "ensina a viver" da noite para o dia,como se as comunidades que formam esses assenta-mentos não tivessem uma história ou uma cultura.Além disso, se os fundamentos desse novo modo devida não são os mesmos da cultura burguesa, domi-nante, como acreditar que as pessoas que conhecemas experiências socialistas, quando muito, apenasatravés de literatura, sejam capazes de compreendê-Ias, vivê-Ias e ensiná-Ias? Ou, ainda, como acreditarna possibilidade de forjar um modo de vida comple-tamente disvinculado do contexto mais amplo queo produziu?

Temos, portanto, três problemas bastantecomplicados e que não são considerados nem pelostécnicos planejadores e menos ainda pelos executo-res: 1. Os planejadores sempre raciocinam em fun-ção de sua própria lógica, desconsiderando as lógicasdos técnicos executores e a lógica camponesa; 2. Ostécnicos executores, que procuram imprimir ao em-preendimento uma tonalidade socialista, em geral,não conhecem o socialismo além das referências en-contradas nos manuais das tendências políticas àsquais são vinculados e 3. Estes técnicos, não aten-tando para o contexto no qual a reforma se dá, criamexp3ectativas impossíveis de se cumprirem nos li-mites dados, o que confunde ainda mais os trabalha-dores assentados, criando problemas desnecessários.

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No assentamento, objeto dessas reflexões, otécnico" chegou logo após ter sido aprovado o Pla-no de Ação Imediata (espécie de plano agroeco-nôrnico de emergência que se faz logo após a imissãode posse) e participou de todo o processo de decisãosobre que pessoas deveriam ser beneficiárias do fo-mento, verba destinada a alimentação das famíliasassentadas no primeiro ano. As dificuldades do téc-nico iniciaram, consoante os depoimentos, a partirdesse momento.

Os dados que se seguem são fundamentaispara a compreensão. Senão vejamos.

1. O assentamento em estudo é constituídopraticamente por ramificações de três troncos fami-liares descendentes de ex-escravos dos primeiros pro-prietários da terra.

2. Ao longo de quase dois séculos, algumasdas diversas famílias nucleares que se foram forman-do, a partir dos três troncos básicos, foram se dife-renciando, de tal modo que, quando ocorreu oprocesso desapropriatório, havia famílias que possu-íam mais bens (benfeitorias, gado e miunças!") doque outras.

3. Apesar de a comunidade ser composta ba-sicamente por parentes, o lider é ura forasteiro.

4. Na sede da fazenda, onde reside a maiorparte das famílias, também residem famílias não-assentadas porque essa área foi doada à paróquiapelos antigos proprietários. Desse modo, temos umaespécie de território livre no meio de uma proprie-dade privada. Isto cria problemas de gerência dosrecursos naturais (lenha e água principalmente) edificuldades nas relações interpessoais porque osque começam a possuir alguma coisa (os assenta-dos) se sentem cotidianamente questionados pelossem terra.

S. Nem todos os ex-moradores, ou seja, aque-les que residiam e trabalhavam na propriedade, par-ticiparam da luta que obteve como recompensa adesapropriação da terra e o posterior direito à trans-formação em assentamento da reforma agrária.

14 A despeito da quantidade de técnicos com que esse assen-tamento se envolveu, este artigo se detém a discutir espe-cificamente a prática do técnico em assentamento com acomunidade. Este, um educador popular no sentido de mi-litante e um intelectual orgânico, de acordo com Gramsci,1978.

IS Miunças ou miuças é designação dada pelos sertanejos doNordeste ao gado caprino e ovelhum. CL Ferreira(1982:931 ).

ões, o) Pla-

o nosso técnico estava diante de uma difíciltarefa: trabalhar com gente de carne e osso, com his-tória e com problemas. Pessoas bastante diferentesdaquelas que encarnava a mãe no romance de Gorki.

eparando-se dos demais residentes da Vila do San-10, aqueles que eram ex-moradores e que participa-ram da luta!", obteve-se o conjunto dos assentadosdaquela propriedade. Esses critérios, no entanto, nãoos igualavam, isto é, além desses pontos de seme-lhança, restavam as positividades de cada trabalha-

or, de cada família.Trabalhar com essa diversidade foi o primeiro

grande problema do nosso técnico que procurousolucioná-lo da forma mais elementar, ou seja, seguiuo velho e irônico adágio: se o dedo dói, corte-se o dedo.

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"Ele queria que nós todos fosse igual... mas não pro-urou saber porque um tinha um carneiro e outro

não, porque um tinha um sítio mais bonito e outrossó tinha o roçado ... "(assentado, 56 anos).

I ba-

o nosso educador popular não percebeu quehá história. Fala em materialismo histórico e não com-preende que a diversidade é constitutiva de toda equalquer sociedade, grupo, etc. Não compreendeque o fato de uma determinada família, que possuimais braços, possuir um cavalo ou um rádio a maisque a outra, que possui a metade dos braços, nãosignifica que a primeira seja classe dominante e aou tra classe dominada, isto é, não significa que a lutade classes esteja presente dentro daquela comunida-de!". Cheio de boas intenções - não temos dúvidassobre isto - o técnico em questão não se deu contaJe que, se havia alguém que poderia representar asclasses dominantes, a cultura capitalista e a sua ra-zão instrumental, essa pessoas era ele. Por isto pro-punha o absurdo de todos os assentados renunciaremàs suas histórias e às conquistas materiais e particu-lares. Queria todos iguais. Tão grave quanto quererque esses homens se transformassem em tábulas ra-

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I() Para um estudo sobre a luta como elemento de classifica-ção dos assentáveis e marco do novo modo de vida, videBe serra, 1995.

17 Embora a ideologia camponesa seja fortemente influenci-ada pelas ideologias da sociedade dominante nos termospropostos por Cardoso de Oliveira (1983:119), isto é, "deque os sistemas interétnicos parecem tender a produzirideologias étnicas influenciadas fortemente pela socieda-de: dominante", a d esnaturalização das regras que são es-p e cíficas da comunidade: produz, entre seus membros,novos conflitos e disputas.

pe-narm-sei,

doua

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sas era querer que, partindo de um mesmo pontotodos chegassem iguais a um certo lugar que nin-guém sabia qual era. Quria que todos crescessemjuntos, mas nunca procurou verificar se os planosque produzia para eles tinha algo a ver com os dese-jos deles. Os sonhos deles, dos camponeses, certa-mente estariam contagiados pela ideologia burguesa:individualista, egoísta e isto tornava-se evidentequando eles expressavam (contrariando a expectati-va do técnico) o desejo de possuir, cada um, a suaterrinha ou quando não se submetiam, de bom gra-do, às propostas de organização coletiva do trabalho.Incapazes até de sonhar, esses camponeses precisa-vam e certamente ainda precisam de professores devida. É esta a idéia dos planejadores, apesar do dis-curso pluralista, e será esta, portanto, a função que onosso técnico desempenhará: a de professor de vida.

As classes dominantes apostam tudo e inclu-sive investem muito nos estereótipos que, instru-mental e etnocentricamente, conferem capacidadee importância a elas próprias - e às suas práticas evalores, e incapacidade às minorias étnicas ou às clas-ses e categorias economicamente dominadas. Masqual o significado de os que se dizem redentores,ou mensageiros da redenção, agirem de forma tãosemelhante àqueles que combatem?

Tudo indica que essa semelhança se deve aofato de que, como as classes dominantes, os educa-dores populares também se sentem porta-vozes deconvicções inabaláveis, ou seja, embora em camposopostos, ambos se orientam por convicções ideoló-gicas, pouco importando o conhecimento maisaprofundado das situações com as quais lidam. Masnão é apenas isto. Os educadores, assim como as clas-ses dominantes, têm interesses bastante concretosem relação a esses camponeses e a outros grupossociais considerados órfãos. É notório, por exemplo,o interesse que os intelectuais orgânicos têm de repre-sentar e usufruir político e materialmente da repre-sentação dessas classes socialmente órfãs. Inclusive,esse direito de representação tem sido umaconsequência quase obrigatória do seu desempenhonesse papel de intermediário da liberdade. Espéciede recompensa pelo seu esforço de levar a consciên-cia às mais recônditas plagas e populações.

De toda sorte, o nosso consciente técnico,educador popular, a despeito dos seus interesses eboas intenções, se esquece ou desconhece um dadofundamental: os valores que carrega consigo foramproduzidos sob a razão ou irracionalidade burguesa,para quem as minorias sociais e étnicas são culturas

menores, subculturas, cujas soluções só são percebi-das quando proclamadas pela moda e pelo marketingdominantes, que naturalmente se utilizam de argu-mentos da ciência, é certo, mas não antes de fazer ascontabilidades próprias.

Por outro lado, não são apenas os valores quecarrega consigo que são burgueses, burguês tambémé o contexto em que se dá a reforma agrária que eleestá ajudando a implementar. Mas o técnico parecesó se dar conta disto quando muitas reivindicaçõesdos assentados, incitadas por ele próprio, esbarramnos limites da reforma agrária historicamente permi-tida. Este, portanto, é um problema adicional e tam-bém não considerado pelos planejadores: o técnicoem assentamento quer aproveitar o ensejo da refor-ma agrária possível para realizar a reforma agrária ide-al, ou o seu ideal de reforma agrária, criando, destemodo, ainda mais dificuldades para os assentadospois, como se não bastasse o desafio do aprendizadode um novo modo de vida, têm o desafio do apren-dizado de dois: o da reforma modemizante e o dosocialismo do técnico.

Vejamos o nosso técnico em outras cenas:queria que todos fossem iguais a si, ao menos numprimeiro momento? Pode até ter querido isto, masnão promoveu ações concretas nesse sentido, bastadizer que nem as letras, uma das mais importantesarmas da nossa civilização ocidental, foram ensina-das a esses camponeses.

4 CONCLUSÕES

Como vimos, o nosso educador popular selimitou a procurar promover o seu pobre ideal deigualdade a partir da tentativa de destruição de for-tes e remotas relações sociais que havia e há entre ossujeitos componentes desse assentamento. O pro-blema é que ele não percebeu que aquele conjuntode famílias era uma comunidade, quase uma tribo edesse modo, tinha uma história e uma cultura co-mum e, além disso, certas convicções (sobre si e tam-bém sobre o nosso incauto herói), que não poderiamser destruídas subitamente, apenas porque conside-radas alienantes. Afinal, esses camponeses - aos nos-sos olhos de dominadores - ignorantes, pobres, frágeise em extinção, mostraram-nos que tinham capacida-de de produzir os próprios líderes, as próprias res-postas às exigências do sistema dominante. E, afinal,

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o socialismo, se é que podemos nomear assim a novaorganização que ali se constituiu, submeteu o mo-delo longínquo e quimérico à prova das necessida-des e da realidade concreta. Aliás, é isto que costumaacontecer aos processos sociais e/ou individuais demudança onde os sistemas culturais dominantes nãose impõem às expensas da exclusão absoluta does)sistema(s) cultural(is) antcriortes), mas através dealterações graduais e pontuais que, em diversos rit-mos, modificam os sentidos e a relação de posiçãoentre as categorias culturais, provocando, destemodo, mudanças em todo o sistema cultural. Masessas mudanças serão sempre sínteses singularesporque decorrentes de experiências e interesses so-ciais singulares 18 •

De toda sorte, se o que queremos são trans-formações que permitam a superação do nosso esta-do de miséria precisamos mais que das certezas dareligião, das dúvidas da ciência que, neste caso, nosensinam que cultura não é apenas um conceito an-tropológico e que, se queremos compreender o Ou-tro, é necessário que tenhamos a humildade de noscolocar no seu lugar e reconhecer que as explicaçõesideológicas da cultura ocidental não são capazes nemsuficientes para a comprensão de tudo.

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18 Cf. Sahlins, 1985:9-10.

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