Egas Moniz, pioneiro de descobrimentos médicos

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Biblioteca Breve SRIE PENSAMENTO E CINCIA

EGAS MONIZ

PIONEIRO DE DESCOBRIMENTOS MDICOS

COMISSO CONSULTIVA

FERNANDO NAMORA Escritor

JOO DE FREITAS BRANCO

Historiador e crtico musical

JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

JOS BLANC DE PORTUGAL

Escritor e Cientista

HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto

JUSTINO MENDES DE ALMEIDA Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de Lisboa

DIRECTOR DA PUBLICAO LVARO SALEMA

ARTUR PORTELA

EGAS MONIZ Pioneiro

de Descobrimentos Mdicos

MINISTRIO DA EDUCAO

Ttulo Egas Moniz

Pioneiro de Descobrimentos Mdicos ___________________________________________ Biblioteca Breve /Volume 70 _________________________________________ 1. edio 1983 ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao e Cultura ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________ Tiragem 5000 exemplares ___________________________________________ Orientao Grfica Lus Correia ___________________________________________ Coordenao Geral A. Beja Madeira ___________________________________________ Distribuio Comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________ Composio e impresso Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda Nova Amadora Portugal MARO 1983

NDICE SUMRIO

PREFCIO .............................................................................. 7

I / RELANCE BIOGRFICO E CARACTEROLGICO.......... 12 Um jovem inquieto e liberal numa famlia tradicional

provinciana ................................................................................. 14 De dissidente progressista a chefe do partido centrista e

diplomata .................................................................................... 17 Lente de Coimbra e Professor de Neurologia em Lisboa ... 20 Clnico afamado, homem de sociedade, orador e acadmico

...................................................................................................... 25 A vis latente das descobertas no escritor mdico .................. 30 As confidncias de um investigador cientfico................... 33

II / A REALIZAO DA ANGIOGRAFIA CEREBRAL .......... 37 A ideia da visualizao das artrias aos Raios X.................... 37 A fase experimental ................................................................... 40 A angiografia como mtodo genrico de observao

morfolgica e fisiolgica........................................................... 44 A arteriografia dos membros e da aorta e a generalizao do

mtodo angiogrfico. A escola portuguesa de angiografia .. 48 Aceitao internacional e evoluo at actualidade ........... 51

III / A CRIAO DA LEUCOTOMIA PR-FRONTAL............ 54 Vivncia pessoal do acontecimento. Uma surpresa

conceptual................................................................................... 55 A incidncia da cirurgia psiquitrica ....................................... 60 Deciso e motivaes. Da teoria prtica ............................. 65

IV / XITOS E VICISSITUDES DA CIRURGIA PSIQUITRICA .......................................................................... 71 Primeiras resistncias. Um duelo reprimido inter-pares... 71 Brevssima histria das teraputicas psiquitricas ................. 75 O Primeiro Congresso Internacional de Psicocirurgia em

1948. O prmio Nobel em 1949 ............................................. 78

Evoluo ulterior ....................................................................... 79

V / O PROBLEMA DOS EFEITOS TERAPUTICOS E ALTERAES DA PERSONALIDADE.............................. 83 A controvrsia psico-cirrgica.............................................. 84 Tambm a antipsiquiatria rejeita a leucotomia................... 88 Novas exigncias cientficas e humanas ................................. 90 A recuperao psico-scioterpica, complemento necessrio

da leucotomia ............................................................................. 93 Novos modos de existncia dos leucotomizados. Problemas

clnicos e sua interpretao ...................................................... 94

VI / A EVOLUO DA CIRURGIA PSIQUITRICA ............... 99 Novas tcnicas neurocirrgicas ............................................. 100 A esterotaxia cerebral.............................................................. 102 O futuro: superao psico-qumica da psico-cirurgia? 106

VII / A EXPERINCIA TERAPUTICA COMO FONTE DE CONHECIMENTO.................................................................. 108 Ensinamentos da cirurgia cerebral ........................................ 109 Ensinamentos da cirurgia psiquitrica .................................. 111 Perspectivas antropocientficas.............................................. 113 Implicaes epistemolgicas. Novos modelos da

personalidade e suas perturbaes ........................................ 117 Do neuronismo de Egas Moniz neuro-ciberntica.......... 119 Problemas ticos. A salvaguarda do doente ........................ 123

VIII / SENTIDO DOS DESCOBRIMENTOS DE EGAS MONIZ PARA A CINCIA E A PEDAGOGIA .............. 129 Egas Moniz, hoje ..................................................................... 129 A aprendizagem da investigao cientfica. O Museu Egas

Moniz ........................................................................................ 133 Descobrir ou inventar? ........................................................... 137

NOTAS................................................................................................... 151

TEXTOS TESTEMUNHAIS............................................................. 157

BIBLIOGRAFIA BREVE................................................................... 166

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PREFCIO

Com este estudo sobre Egas Moniz inicia-se uma srie de volumes da Biblioteca Breve sobre aspectos histricos e culturais da Medicina Portuguesa.

A atribuio em 1949 ao Professor de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa do Prmio Nobel de Fisiologia e Medicina tornou Egas Moniz o nome mais famoso e internacionalmente conhecido da histria contempornea das cincias mdicas em Portugal.

Vista no seu conjunto, a medicina portuguesa pouco tem ultrapassado as fronteiras. Sem remontar obra mdica do papa Joo XXI, Pedro Hispano Portucalense, salientam-se as contribuies ligadas s descobertas martimas, em especial o estudo naturalista das plantas medicinais e das doenas tropicais (desde os clebres Colquios de Garcia da Orta at Bernardino Antnio Gomes), e assinala-se a repercusso europeia das obras de hebreus emigrados como Amato Lusitano, Zacuto Lusitano, Ribeiro Sanches e pouco mais.

No final do sculo XIX, os grandes progressos das cincias da natureza aplicadas Medicina despertaram os nossos estudiosos, em particular na bacteriologia

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(recordem-se os pioneiros Cmara Pestana, Anbal Bettencourt e Carlos Frana), na histologia (Costa Simes, M. Atias, Celestino da Costa), na anatomia (J. A. Serrano, H. Vilhena) e as suas escolas. Vejam-se estas referncias apenas como figuras paradigmticas que abriram entre ns rumos da investigao laboratorial de cunho moderno a comentar noutros volumes desta Coleco.

No mbito da clnica superada a separao da Cirurgia e da Medicina e as respectivas ligaes sociais com a praxis e com a especulao doutrinal houve pocas em que brilharam e ficaram memorveis grandes clnicos como Sousa Martins. Faltavam porm meios materiais e o esprito da investigao moderna, rompendo a prevalncia da informao livresca. At h poucas dcadas pairava mesmo, em certos ambientes clnicos e universitrios, uma morna rotina ou um ressentido cepticismo e descrena sobre a possibilidade e as capacidades criativas dos portugueses, frente s cincias em rpida evoluo. Apesar do primeiro impulso da Junta Nacional de Estudos, instituda por Antnio Srgio em 1923, faltaram depois o apoio governamental para a organizao da pesquisa cientfica sistemtica e condies de vida para a dedicao exclusiva dos respectivos investigadores.

Apesar dos progressos no campo tcnico aplicado, esta situao mantinha-se nos anos 20-30 do nosso sculo, quando o espectacular xito de Egas Moniz um clnico distinto mas sem obra assinalada merc da sua descoberta de largussima importncia e repercusso mundial (a arteriografia cerebral) veio surpreender e porventura envaidecer a msera mesquinhez do nosso meio, na fase de regresso cultural da autocracia

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salazarista. Apesar da indesmentida aceitao internacional das aplicaes prticas da visualizao radiolgica dos vasos do crebro (entretanto alargada maioria dos rgos e dando lugar a uma autntica escola portuguesa de angiografia, com Reynaldo dos Santos, Hernni Monteiro e outros (ver Cap. II); apesar de to brilhante demonstrao das novas possibilidades de pesquisa original, foi negado a Egas Moniz e aos seus colaboradores o necessrio apoio para organizarem laboratrios, melhorar as tcnicas e poderem desenvolver as pesquisas inovadas e as suas mltiplas aplicaes prtica diagnstica e teraputica.

S mais tarde, no final dos anos 40, aps a espectacular difuso mundial do tratamento cirrgico de certas doenas mentais (a leucotomia) na verdade uma descoberta inopinada num homem de 61 anos, um feito verdadeiramente iconoclasta e surpreendente e realizado ao arrepio da cincia estabelecida da poca dando a um portugus pela primeira vez o galardo internacional mais cobiado o Prmio Nobel s ento se manifestou abertamente o reconhecimento geral. Festejou-se largamente a glria do sbio portugus e criou-se o Centro de Estudos Egas Moniz pelo Instituto de Alta Cultura. A parte clnica e cirrgica funcionou primeiro no Hospital de Jlio de Matos mas s com o auxlio da Fundao Gulbenkian se organizaram laboratrios adequados e um Museu didctico no Hospital de Santa Maria.

Pela sua natureza peculiarssima e pelas circunstncias em que ocorreu, a concesso do to desejado Prmio Nobel foi um acontecimento mpar, muito celebrado e comentado na medicina e noutros meios cientficos do nosso Pas.

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No tardou que viessem as sombras da glria A aplicao teraputica da leucotomia, motivou desde logo at aos nossos dias grandes controvrsias e debates (Cap. IV) e tornou-se um paradigma da problemtica psiquitrica e um dos pontos sensveis do progresso tecno-cientfico face aos problemas humanos (Cap. VII).

Por todos estes motivos bem merece Egas Moniz ser tratado em especial nesta coleco cultural.

No se trata aqui de uma biografia, nem de mais um panegrico do grande Mdico que tantas vezes tem sido apodado de gnio o nosso Prmio Nobel. Por ocasio do I Centenrio do seu nascimento, em 1974, a sua obra foi muito pertinentemente comemorada e celebrada (Bibl.) e continua sendo tema de frequentes estudos e congressos mdico-cientficos.

Tentaremos aqui um breve ensaio crtico do Homem e do significado das suas descobertas, numa perspectiva a que j noutros ensaios temos chamado antropocientfica. Dito mais singelamente: trata-se de situar o desenvolvimento do labor da personalidade de Egas Moniz no seu ambiente e poca histrico-cultural, tentar encontrar o sentido do excepcional e inesperado brote criativo na investigao mdica, ocorrido j depois de meio sculo da sua existncia pessoal aparentemente dispersa em muitas outras actividades e interesses.

Vrio foi o destino das suas descobertas: a angiografia tornou-se com o tempo um mtodo geral de diagnstico com as mais variadas aplicaes mdico-cirrgicas e que, apesar de outros progressos (v. g. as tomografias computadorizadas) continua a ser aceite e usado em todo o mundo.

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A cirurgia psiquitrica, depois de uma fase de grandes xitos, foi objecto de vria contestao e quase renegada. Volta de novo a renascer com novas tcnicas e perspectivas de investigao. Qualquer que seja o seu futuro teraputico como, em tantos casos, superado pelo constante progresso cientfico a leucotomia foi um fecundo fermento para a pesquisa cientfica e lanou novas luzes para o conhecimento das bases cerebrais da vida psquica normal e patolgica. De tal modo que os novos trilhos abertos por Egas Moniz vieram a levantar alguns dos mais difceis e delicados problemas que se pem ao conhecimento e tica mdicas.

nosso propsito perscrutar, embora de forma muito breve, o sentido dos descobrimentos de Mestre Egas e as possibilidades actuais da sua exemplaridade para a nossa aprendizagem cientfica no quadro, em problemtico devir, da cultura portuguesa.

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I / RELANCE BIOGRFICO E CARACTEROLGICO

O caso pessoal, cientfico e histrico-cultural de Egas Moniz , a muitos ttulos excepcional, no s pela grandeza da obra e pelos problemas que tem levantado e continua a levantar como, ainda, pelos contrastes primeira vista paradoxais de certas facetas geniais da sua pessoa e outras atitudes demasiado humanas

com surpresa que muitos especialistas encontram num prmio Nobel certos traos de singelismo conceptual que afinal, numa anlise mais aprofundada, se revelam como significantes e de real valor criativo, atestado pelo xito prtico, consequncias cientficas da problemtica levantada pelas suas originais e inovadoras descobertas.

Os mais maliciosos detractores chegaram mesmo a dizer que Egas Moniz descobrira a nova tcnica arteriogrfica de localizao dos tumores cerebrais por falhar demasiadas vezes no rigor semiolgico do seu dignstico clnico. E atrevera-se a intervir cirurgicamente no lobo frontal de certos doentes mentais por lhe faltarem os meios de melhor os curar por mtodos mais subtis

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O significado profundo de tais agressivos dizeres est na frustrao dos que pouco ou nada ousaram e empreenderam face vis criativa e certeira viso prospectiva de Egas Moniz mal compreendida ou negada que foi a sua originalidade pelos que se apegavam experincia rotineira e conformista e ao saber estabelecido, quando no a certos dogmas e ideologias em curso.

Pensamos que aquilo a que se pode chamar o delirar criativo (Cap. VIII) dos grandes homens, quando movido por um conjunto de qualidades no contexto de circunstncias favorveis embora faa pasmar os nscios e enraivecer os invejosos pode levar a grandes feitos. No podemos no caso deixar de sentir um certo eco dos velhos portugueses de Quinhentos: tambm contra as viagens no ignoto de Egas Moniz e porventura com alguma razo se ergueram e bradaram muitos velhos do Restelo

Mais de meio sculo de experincia veio evidenciar que, sem dvida, foi um autntico pioneiro nas duas reas a que aproou os seus descobrimentos.

1) na Neurologia a vizualizao concreta aos Raios X das artrias e outros vasos sanguneos do crebro (Cap. II), desvendando a sua anatomia viva e funcional, a patologia e a localizao de tumores e outras leses cerebrais.

2) na Psiquiatria a aplicao da neurocirurgia terapia de certas psicoses, inventando a cirurgia psiquitrica. Um feito de tal forma inesperado e chocante para muitos que veio a levantar largas polmicas e novos e difceis problemas, ainda hoje em questo.

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Que espcie de homem era este que assim nos obriga a reflectir sobre as origens e consequncias da sua obra, das possibilidades pessoais da sua efectivao?

Um jovem inquieto e liberal numa famlia tradicional provinciana

Oriundo de uma antiga famlia da nobreza provinciana, sem grandes meios de fortuna, nasceu a 29 de Novembro de 1874, em Avanca, na Beira Litoral regio que durante a vida tanto o encantou e soube pintar literariamente em belas imagens impressionistas. Veja-se desde j o contraste com o seu organicismo cientfico

Antnio Caetano de Abreu Freire Egas Moniz tal o bem sonante nome com que o padrinho o baptizou. Toda a vida ambicionou, pelo seu esforado labor, honrar o histrico apelido que usava. Logo em novo, no escondeu a sua ambio de glria e renome que veio a procurar em todos os campos, desde a poltica e a sociedade at ao professorado e investigao cientfica. Aos cinco anos saiu de casa dos pais, para ser educado pelo seu tio e padrinho, abade da aldeia. Depois, ingressou no Colgio Jesuta de So Fiel, mas recusou seguir a vida eclesistica e, mais pelas suas convices poltico-filosficas que por temperamento, afastou-se da religio praticante.

O seu bom-senso, conhecimento e simpatia pelos sentimentos catlicos do povo levaram-no, porm, quando foi ministro dos Negcios Estrangeiros no Governo de Sidnio Pais, a reatar as relaes diplomticas com a Santa S, cortadas pela Repblica.

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Na infncia viveu intensamente a vida do campo da sua regio vareira no convvio da famlia e muito ligado s tradies locais. Ele prprio nos descreve, aos 76 anos, as suas lricas recordaes desse tempo, numa obra autobiogrfica simples e familiar: A Nossa Casa a Casa do Marinheiro, hoje Casa Museu Egas Moniz em Avanca um edifcio reconstrudo com projecto de Corrodi, mobilado com muito bom gosto e onde passava as suas frias, em afectivo contacto com os velhos amigos locais e escrevendo as suas recordaes e obras literrias.

Vem dessa poca, entre outros, o seu gosto pelo jogo das cartas, com que enchia os seres da provncia. Primeiro, o velho voltarete; e, em Lisboa, o boston, que durante dcadas jogava s sextas-feiras, regularmente, com um cenculo de amadores. Aos 68 anos escreveu mesmo uma Histria das Cartas de Jogar como prefcio para um tratado do boston, ricamente ilustrado, de um dos seus companheiros de jogo.

Desse tempo vem tambm a tendncia para um certo bucolismo entre romntico e naturalista, porventura mais literrio mas muito sentido e patente nos seus escritos. Mesmo em obras como Confidncias de um Investigador Cientfico no deixa de repetir os seus ecos emotivos e coloridos paisagem dos ambientes que atravessou nas suas frequentes viagens a Frana, a Itlia e ao Brasil em busca da difuso e consagrao das suas descobertas.

Apesar de ser uma obra menor, A Nossa Casa tem interesse psicolgico e sociolgico. Certamente, como concede no prefcio, uma viso eufemstica da sua autobiografia da infncia e adolescncia, escrita

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desenfastiadamente mas repassada no culto familiar tradicional. Ali todos se juntavam em dias festivos; templo de confraternizao, amizade e harmonia em que sempre viveu a minha gente.

Egas Moniz refere ter tido em pequeno terrores nocturnos e ser muito irrequieto e folgazo, gabando-se das suas travessuras infantis (ibid., Cap. II).

Como era tradicional, foi educado antiga, de modo austero, no culto do trabalho. De comeo no foi demasiado zeloso nos estudos mas melhorou rapidamente, vivo e inteligente como era. E, fortemente estimulado, veio a ganhar medalhas e diplomas, reforados pela aprovao e alegria familiar.

Dificuldades financeiras da famlia, levando ao sacrifcio da emigrao do pai e depois do irmo para Moambique, onde faleceram sem alcanar fortuna, foram mais uma forte motivao para o seu afinco ao estudo.

Finalmente, aos 17 anos, matriculou-se na Universidade de Coimbra, fazendo, como era regra, os trs anos preparatrios de cincias e matemticas, de que deu explicaes antes de cursar Medicina. Mais do que literatura, ento em mutao, foi desde logo atrado pelo rigor das cincias em que se empenhara.

Em vrios passos da sua obra evoca, no entanto, com o mesmo esprito saudosista, o ambiente estudantil coimbro da poca dos anos 90. Descreve as repblicas coimbrs onde viveu e a grande convivncia que a teve, alm de mdicos e outros universitrios, com Augusto Gil e Afonso Lopes Vieira, e as suas falhadas primcias musicais e poticas (Cap. XXI). Nestas evocaes deixou sempre latentes (talvez no inconscientes) outros gneros juvenis de

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actividade, excepto as aventuras das trupes contra os caloiros (a que se eximiu com habilidade) e a referncia s anedotas tradicionais. Entretanto foi melhorando progressivamente o seu rendimento escolar e formou-se com 16 valores, como bacharel em Medicina, em 31 de Julho de 1899, com 25 anos, apresentando uma tese ad hoc (antomo-patologia da difteria).

Entretanto ia-se impregnando do esprito liberal de certas correntes poltico-sociolgicas da juventude naquela poca de crise ps-Ultimato.

De dissidente progressista a chefe do partido centrista e diplomata

No nos possvel, sem cair em ambiguidades, comentar de modo breve o relato acidentado e pouco feliz da carreira poltica de Egas Moniz (a quem no faltaram desgostos, conflitos, nem duelos nem ataques pessoais).

Neto de um miguelista, educado na tradio ortodoxa da famlia, cedo revelou algumas facetas contestatrias, alis habilidosamente superadas no seu ambiente familiar. Uma vez em Coimbra, desabrocha a sua independncia e aproxima-se dos que combatiam o esgotado rotativismo parlamentar da poca, criticando as estreis lutas polticas que j ento mais se travavam entre os homens do que entre as ideias. (V. o vol. Um ano de poltica). Da a sua adeso ao grupo de Jos de Alpoim de quem ficou amigo e correligionrio at sua morte em 1916 (Ibid., p. 46). Entretanto foi vrias vezes, no tempo da Monarquia, eleito deputado, entremeando os seus estudos e trabalhos universitrios com a aco poltica e a convivncia social.

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Assumiu com coragem (foi preso e esteve beira de ser deportado) a sua participao na tentativa revolucionria de 28 de Janeiro de 1908 contra o ditador Joo Franco, sem qualquer relao, alis, com as determinantes do regicdio.

Aderindo jovem Repblica, pertenceu primeira Assembleia Constituinte e primeira Cmara de Deputados onde teve intervenes brilhantes mas sem grande xito poltico. Na sua crtica factual situao (evitando querelas doutrinais) queixava-se, j na poca, da falta de respeito mtuo pelas convices e ideias de cada um (p. 38).

Em 1916 foi preso, em poca convulsiva (sempre pelas suas atitudes liberais e antiditatoriais), e em 1917 com alguns dissidentes do Partido Unionista, fundou o chamado Partido Centrista, uma espcie de terceira via invivel na poca e que apenas durou at ao advento do consulado de Sidnio Pais. De comeo, acompanhou com interesse este seu antigo colega da Universidade de Coimbra e aceitou entrar no seu Governo com os cargos, a que se adaptou rapidamente, de ministro dos Negcios Estrangeiros, embaixador em Madrid e delegado Conferncia da Paz, em Versalhes, em 1918. As vicissitudes da poltica interna (em especial o seu antagonismo a Afonso Costa) breve puseram termo a essa misso por circunstncias que, embora magoado, relata de modo objectivo, no citado volume de Memrias.

A poltica como actividade de combate pelos seus ideais de avano liberalizante (da sociedade burguesa a que pertencia) foi das grandes paixes da sua vida. Afinal uma afeio infeliz, como ele prprio confessa mas que passados os cinquenta anos de idade e

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acumulados os desgostos neste campo, parece ter sido no seu dizer uma forte motivao para a grande mutao criativa da sua existncia: a dedicao plena investigao cientfica.

Apesar de muito criticado, at pelos seus colegas mdicos, no cremos que toda essa actividade tivesse sido perdida, no s por ser coerente com os seus ideais em evoluo do anti-absolutismo liberal para uma plena repblica democrtica mas ainda por ter sido um laboratrio scio-histrico-cultural de experincia pessoal e humana de todas as pechas e virtudes dos homens evoludos e apaixonados pelo progresso e pela liberdade que se distinguiram naquela poca.

O relato que Egas Moniz nos d destas actividades mostra o seu gosto pelo concreto e objectivo da documentao. No conjunto, traduz um rasgo de claridade e sinceridade, embora estas fossem prejudicadas por uma certa inexperincia, quando no ingenuidade poltica. Alm do estilo, peculiar aos doutrinadores da Primeira Repblica, notveis pela generosidade, e exactamente por isso, faltaram tambm a Egas Moniz aquele maquiavelismo frio e o mpeto, crueza e mesmo dio (e outros sentimentos pseudo-racionalizados em convices inautenticamente democrticas e em ideologias desvariadas) que, no fundo, repugnavam a um verdadeiro esprito democrtico de cariz humanstico, em contacto com as realidades do viver e do sofrer dos homens, e mais ainda ao cientista em formao.

Hbil como sempre foi, soube porm aproveitar as lies das negociaes e do convvio inter-pessoal dessa experincia, enriquecendo a sua natural facilidade

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de relaes humanas. Inatas qualidades de simpatia e comunicabilidade e os grandes dotes oratrios (manifestos logo em estudante) puderam depois ser canalizados noutras formas de aco, em especial no ensino e na clnica no tratamento de doentes nervosos, para que se mostrou altamente dotado, embora sem inovar tcnicas psicoterpicas especiais. Essa experincia e qualidades vieram tambm a exprimir-se no seu trabalho universitrio como grande Mestre que foi, sempre defensor dessa outra forma de progresso: a cincia e a investigao.

Lente de Coimbra e Professor de Neurologia em Lisboa

Terminado o curso aos 25 anos, logo um ano depois (1901) fez provas para o ttulo de Doutor, aprovado com 17 valores (muito bom) o que lhe dava direito a concorrer a lente substituto (1902). S em 1911, ao ser transferido para Lisboa, com Sobral Cid, tambm professor em Coimbra, foi promovido a catedrtico de Neurologia a nova especialidade instituda pela Reforma Universitria da Repblica. A Sobral Cid coube, ao lado de Jlio de Matos, vindo do Porto, o ensino da Psiquiatria. Egas Moniz libertava-se assim da pretenso da omniscincia polivalente dos velhos lentes coimbres No lhe agradava, como substituto, ter de reger cadeiras variadas (anatomia, histologia, fisiologia, oftalmologia) e parece no ter ento primado nesses anos pela assiduidade (informao de Maximino Correia).

Entretanto o mpeto de auto-afirmao e auto-realizao alm dos citados voos polticos tinham-

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no movido, desde o comeo da carreira, a procurar novas experincias mdico-cientficas em ambientes mais evoludos e especializados. Ainda em Coimbra resolveu e sempre foram firmes as suas decises cultivar a Neurologia, estimulado pelo seu notvel mestre Augusto Rocha, um dos raros empreendedores da pesquisa laboratorial da Faculdade de Coimbra da poca, o qual muito acertadamente previu o interesse da nova disciplina e o mrito do jovem discpulo.

Foi em Frana que procurou fazer a sua formao neurolgica. Trabalhou primeiro em Bordus, com Pitres e Abadie e, mais tarde, em psiquiatria com Rgis (que estudara a fundo as psicoses de base txica e orgnica a que Egas Moniz deu sempre mais ateno). Em Paris aprendeu com os grandes neurologistas do tempo: Raymond, Pierre Marie, Djerine e Babinski.

Hauriu, ento, aqueles eflvios do esprito francs a que sempre prestou culto. Testemunhava especial afecto e gratido a Babinski, que, posteriormente (1931), lhe veio a prefaciar o primeiro volume em francs sobre o diagnstico dos tumores cerebrais e a prova de encefalografia arterial; e tambm a Sicard, cujos fundamentos originais da mielografia (obteno de contrastes radiolgicos por uma soluo oleosa iodada injectada no canal raquidiano) de certa maneira Egas Moniz transps para a obteno de contrastes na circulao cerebral (ver Cap. II). curioso notar como, apesar das diferenas de temperamento, se encontrava intimamente com Babinski, tambm em comuns afinidades gastronmicas que ambos cultivavam com mestria e requinte.

S em 1911, transferido no sem oposio de alguns clnicos da Capital para a nova Universidade

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de Lisboa, pde iniciar a sua carreira docente e clnica de neurologista.

Merece ser posto em destaque para honra de ambos a forma rara como na pequena Clnica Neurolgica do Hospital Escolar de Santa Marta se processaram as relaes de Egas Moniz com Antnio Flores chegado na mesma poca de um longo estgio na Alemanha e na Frana, onde trabalhou profundamente com todos os grandes neurologistas do tempo (alm dos citados, O. Vogt e Oppenheim) e tambm com psiquiatras do quilate de Kraepelin. A. Flores tinha uma preparao sistemtica slida e publicara um trabalho modelar sobre mieloarquitectnica cerebral. Certos colegas tentaram lanar a candidatura de Flores contra Egas Moniz Sendo j lente da Universidade este ltimo prevaleceu na disputa, ficando Flores como professor auxiliar, leccionando a Semiologia em que era exmio cabendo a Egas Moniz a Clnica. A natural emulao e rivalidade entre ambos tiveram sempre uma face civilizada, superadas que foram pela conscincia da dignidade da sua posio como autnticos universitrios. Estas relaes exemplares vieram a culminar na colaborao dedicada de Flores na verso alem de um volume sobre a angiografia cerebral.

Falta-nos espao para analisar a obra neurolgica de Egas Moniz antes do advento da angiografia. Clnico arguto, da escola francesa basicamente clnico-descritiva mas dotado de intuio clara e segura, abordou ento grande nmero de temas: a tabes juvenil, reflexos hemiplgicos, seringomielia, tumores da protuberncia e do ngulo ponto-cerebeloso, mioclonias, sindromo bulbar, poliencefalite, abcessos cerebrais, doena de Reklinghausen, parkinsonismo ps-

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encefaltico, sindromo talmico, epilepsia jacksoniana, paquimeningite espinhal, etc. (ver Bibl.). Ocupou-se tambm de outros temas, em parte psiquitricos, como o perigo alcolico, as bases da psicanlise, a vida sexual, o hipnotismo, simuladores e exageradores, etc., alm de assuntos mdicos afins, como a acromeglia, o trofoedema de Meige, etc. quase todas contribuies casusticas de real interesse numa poca em que a neurologia comeava a ser ensinada regularmente e como Cadeira autnoma no Curso Mdico e divulgada na Clnica como especialidade quase sempre associada psiquiatria.

Como professor, pelas suas qualidade pessoais reforadas pela aprendizagem com os seus mestres franceses, Egas Moniz sabia aliar a facilidade e elegncia verbais com as justas qualidades de observador concreto, realista e objectivo. Lograva assim apresentar os casos clnicos, nas aulas de neurologia, com tal arte e mestria que logo se imps aos seus alunos e colaboradores. Apesar de exibir sem disfarces, a sua pugnaz veia oratria de parlamentar, sabia temper-la com a necessria exactido cientfica de modo que o efeito era no s brilhante como efectivamente pedaggico (Cap. VIII).

Ao escrever estas linhas encontrei um colega do meu tempo e logo vieram as recordaes dos grandes Mestres da poca (final dos anos 20), desde H. Vilhena, Atias, Celestino da Costa, Slvio Rebelo e Simes Raposo at Pulido Valente e F. Gentil, sem falar em Ricardo Jorge, Sobral Cid e outros grandes professores da Faculdade, muitos deles entrados em 1911. Egas Moniz deu ento (1927) grande brado, para alm da sua oratria aliciante, pela demonstrao nas aulas das

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primeiras radiografias mostrando os vasos cerebrais, feitas pelo seu mtodo, e a certeira localizao dos tumores, considerada ento muito difcil e aleatria, mas bem demonstrada na operao ou na autpsia, assim como de outras leses e anomalias dos vasos, por exemplo, a sua dilatao nos aneurismas, etc. Todas estas leses viam-se convincentemente nas arteriografias (Cap. II).

Sabia muitas vezes contrastar a secura e frieza destes trabalhos com exposies mais literrias das neuroses, vistas luz do freudismo ou da psicopatologia francesa, em especial de P. Janet. A histeria ainda fazia espectculo (apesar do desmascarar da sugesto por Babinski contra Charcot). Embora de modo crtico, foi dos primeiros neuropsiquiatras a divulgar, entre ns, a doutrina ento quase ignorada de S. Freud e as suas aplicaes teraputicas. S dcadas depois (anos 40) que as tcnicas psicanalticas se difundiram no nosso pas ao mesmo tempo que os restantes progressos psiquitricos.

Os ouvintes enchiam a transbordar as salas de aula e de conferncias, perpassando, por vezes, na atmosfera laivos de tragdia: o pranto incontinente de um amolecido cerebral, a euforia transbordante de um paraltico geral, a linguagem escandida e outras perturbaes da fala dos diferentes doentes neurolgicos outros tantos motivos para uma certa teatralidade das suas aulas.

parte uma bela semiologia (a mais racional e transparente de toda a patologia) a neurologia da poca era uma especialidade do maior interesse cientfico (grandes progressos da neuropatologia e da neurofisiologia) mas com limitadas possibilidades

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teraputicas e pouco atraindo os jovens clnicos prticos.

A neurocirurgia, para cujo avano a angiografia de Egas Moniz tanto contribuiu, s nos anos 30 entre ns com Almeida Lima e seus continuadores (J. Imaginrio, Vasconcelos Marques, Cu Coutinho e outros) veio a adquirir a importncia actual na prtica e tambm na investigao (Cap. II).

Clnico afamado, homem de sociedade, orador e acadmico

Merc de circunstncias pessoais, foi-nos dado conhecer Egas Moniz desde a nossa infncia. Aureolado j de prestgio intelectual, clnico e professor afamado, ao mesmo tempo que poltico e orador empolgante, nunca vimos nele o sbio convencional, distante do real imediato, inacessvel, rgido e frio.

Recorda-nos que uma tarde, sada do consultrio (face esttua de Ea de Queirs, na Rua do Alecrim) mostrando-se condescendente para com o jovem aluno do liceu, tradicional maneira coimbr, deu-nos o Mestre, vencendo a nossa timidez, a honra de nos sentar sua direita no seu magnfico automvel e nos entreter afavelmente com agradvel conversa. Chegavam-nos ento aos ouvidos os rumores dos seus discursos parlamentares, participao no Governo e trabalhos diplomticos; abalava-nas mesmo, veladamente, a aurola de um livro seu tido por secreto, sobre A Vida Sexual. Tnhamos ouvido falar de duelos, de prises, de revolues, de disputas polticas e no compreendamos como se poderia tratar do mesmo homem que ao mesmo tempo pontificava na Ctedra e na Academia

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das Cincias, cuidava serenamente dos seus doentes e ia publicando obras sobre obras acerca dos mais variados assuntos como escritor mdico que foi.

Passados anos, conhecemos o homem de sociedade, amabilssimo, excelente gourmet, recebendo principescamente no seu palacete estilo D. Joo V, Avenida Lus Bivar, onde est agora a Nunciatura. Tinha uma linda Biblioteca em dois pisos e salas opulentas com preciosidades artsticas de vria ordem. Alm de recepes formais, onde conhecemos personalidades e artistas ilustres da poca (por exemplo Carlos Reis) no devo omitir, como nota pinturesca, as alegres festas de famlia que oferecia e at os bailes de Carnaval onde juntava os filhos dos seus muitos amigos. Casado e sem filhos, dava o justo realce a sua afectiva esposa, mas era ele efectivamente a alma de todas estas iniciativas.

A sua figura e semblante pouco iam mudando, apesar dos repetidos ataques de gota de que tanto sofria. Era bem o homem que podemos hoje evocar no belo retrato de Malhoa, existente no Museu Egas Moniz. Figura me, formas arredondadas, expresso aberta, francamente simptico, seguro de si, sereno, cavalheiresco, de contacto pessoal pronto e efusivo, sabia ocultar a debilidade articular num porte senhoril sem altanaria, comunicativo e natural. A sua conversa era fluente e agradvel em todos os tons, desde o estudantil e folgazo at ao diplomtico ou quando necessrio empolgado e agressivo ou grandiloquente. Ao discursar assomava-lhe a vis parlamentar e tornava-se um tanto barroco e retrico mas sem excessos, bem matizado, sempre sereno, seguro e firme, dominando completamente as situaes.

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Nas polmicas sabia ferir o adversrio com calculada frieza, embora com urbanidade e elegncia. No poupava, por outro lado, elogios aos amigos, com clida generosidade. Na vida comum tratava muito interesseira e objectivamente dos problemas financeiros e prticos, os mais banais (ele prprio fazia as compras das suas iguarias preferidas).

Embora sem qualquer enfatuamento, apresentava-se sempre com natural superioridade e distino. Alguns viam nele excessiva vaidade, outros bondade e afabilidade. Como homem multifacetado e sintonizante, sabia extasiar-se, elegaco, em lricas tiradas verbais, perante as belezas da poesia, da pintura e da paisagem, arrebatar-se em ecos patriticos e em arroubos verbais altissonantes, e, tambm, em momentos cruciais em que perigava a sua vida (v. g. aps o atentado de que foi vtima) ou o seu prestgio, sabia manter estica serenidade e a mais serena reflexo.

Durante o nosso curso mdico ouvimo-lo dissertar no Congresso de Medicina, em 1927, sobre os primeiros resultados da sua prova da encefalografia arterial. Tinha nessa altura 53 anos e adquirira a plena maturidade, conscincia de si e domnio seguro da sua refulgente inteligncia. Orientado ento por completo no sentido objectivante e naturalista, o seu discurso sobre a descrio radiolgica dos vasos cerebrais e os mtodos de investigao adoptados tornara-se clara e racionalmente exemplar, concentrando-se com o maior rigor, persistente e tenaz, sobre os dados concretos e objectivamente demonstrveis dos doentes e das suas originais radiografias do crebro com o nitidssimo desenho das artrias (fig. 1 e 2) uma peculiar obra de arte da natureza, assim explicitada por uma descoberta

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tcnica. Apesar destes xitos, no desistiu de continuar a ocupar-se de outros e muito variados temas, nem deixou estiolar o seu verbo eloquente, abandonada j ento em hora feliz para a Medicina portuguesa a sua disperso pela poltica parlamentar. Datam dessa poca vrias oraes acadmicas, no seu estilo caracterstico: a pretensa necrofilia de Camilo Castelo Branco (1925), o Papa Joo XXI, vrios estudos sobre Malhoa, o escultor Maurcio de Almeida e outros.

Em contraste coma elegncia requintada, exigncia conceptual, profundidade psicolgica e pureza das aulas de Psiquiatria do nosso outro grande mestre, Sobral Cid, no podemos deixar de evocar as suas preleces. Os interessados acotovelavam-se para o ouvir. A voz quente e empolgante, sugestivo e brilhante, apresentava os problemas e os casos clnicos de forma plstica, impressionista, porventura em certos casos de modo excessivamente histrinico, mas sempre coerente e comedido. Avesso a sistematizaes conceptuais, rigidez doutrinria e a lucubraes teorticas e filosficas, gostava, no entanto, de dissertar com rigor e simplicidade. Evocamos ainda a sua apresentao mulo de Charcot de dois casos com alteraes dos ncleos centrais, um com riso, outro com choro espasmdico, num trgico contraste das cambiantes da vida humana em desintegrao. Fazia, ento, leves incurses (perturbadoras da muito reprimida juventude estudantil da poca) sobre a sexualidade infantil e do adulto, sobre as tnebras do inconsciente, luz da psicanlise que aplicava, alis, mais com carcter literrio do que na prtica psicoterpica. Abandonada a hipnose (1914) na clnica, utilizava sobretudo os mtodos sugestivos, e,

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por vezes, o torpedeamento elctrico e em especial a terapia (que hoje compreendemos ser mais de relao) mediada pela electricidade esttica, em que os seus colegas de consultrio (Antnio A. Fernandes, Romo Loff, A. Cancela de Abreu e outros, cooperavam dedicadamente).

Durante o resto da sua vida continumos a ouvir os seus conselhos ponderados e realistas (por exemplo: sobre as dificuldades prticas e o atraso da psiquiatria que, nas circunstncias asilares da poca, nos desaconselhou. Egas Moniz via os problemas a direito, na sua natural crueza e objectividade, com entusiasmo e um certo idealismo progressista e f no futuro, mas sem iluses, criticando a tacanhez e limitaes do meio cientfico-mdico e a falacidade das promessas e embustes de certos homens. Dotado de natural bondade e benevolncia, jamais perdeu a confiana nos amigos e colaboradores, distinguindo com segurana as boas e ms intenes. No desanimava ante as pechas humanas, nem as dificuldades da orgnica social. Acima de tudo, com firme crena na cincia e nas suas promessas, sabia comunicar o seu ardor pelo trabalho e persistncia na investigao e tinha quase como imperativo moral contribuir para o progresso cientfico e em especial para o bem-estar e as melhoras dos que sofriam e nos cabia ajudar. O seu entusiasmo e optimismo eram contagiosos e aliciantes. Todos ns, os seus colaboradores e discpulos, lhe devemos os melhores incitamentos para o nosso labor.

Trabalhou sem interrupo at vspera da morte (1955) na clnica particular e no hospital e presidiu durante largos anos (em alternativa com Jlio Dantas) Academia das Cincias de Lisboa, onde se repetiam as

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suas conferncias sobre os mais variados temas: alm dos citados, o lugar do Padre Faria na Histria do Hipnotismo, a parte mdica na obra de Gil Vicente e na do Padre Antnio Vieira, o elogio dos poetas Joo de Deus, Teixeira de Pascoaes e Guerra Junqueiro, de artistas como Malhoa, Silva Porto, Abel Salazar e outros; e, ainda, o panegrico de personalidades ilustres: Lavoisier, Charcot, Roentgen, Ramon y Cajal, Afrnio Peixoto, Babinski, o Abade de Baal, Magalhes Lemos, Belo Morais, Ricardo Jorge, Sobral Cid, Barbosa de Magalhes, Jlio Dantas, Wohlwill, etc.) em evocaes vivas, sentidas, coloridas e naturalistas como um quadro de Malhoa, emocionais como os poetas seus queridos.

A vis latente das descobertas no escritor mdico

Falta-me competncia e sairia da linha deste volume analisar a obra literria de Egas Moniz. Referimos ao II Volume do Centenrio, no qual o tema largamente glosado (entre outros por Pacheco e Silva, Soares Amora, Ildio Amaral, Braga Paixo) como antes o fora por Ricardo Jorge e na Academia das Cincias, entre outros, por Joaquim Leito e Jlio Dantas.

Pelas obras j citadas ressalta a fecundidade da sua pena, em eco da facilidade oratria. Aliados estes dotes s suas criaes cientficas, multiplicaram-se os panegricos da sua multifacetada genialidade um conjunto, alis, harmnico entre o escrever e o falar, com mais ou menos empuxe, mas sempre fluido, cristalino, aliciante, com menos pretenses analticas e lgicas do que propriamente literrias incluindo nestas a leveza, colorido e a fcil comunicabilidade. A grafia, a linguagem e o gesto eram consonantes com o

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todo da sua personalidade que, neste e outros aspectos, no podemos deixar de tipizar como sintnica (com leves oscilaes ciclotmicas) 1 (v. Notas). O atmosfrico, o que est entre a pessoa e os outros e as coisas, era nele transparente e comunicativo.

Dos muitos escritos no mdicos, o professor de literatura em So Paulo, Soares Amora, valoriza a sua contribuio para o estudo sobre Jlio Dinis e o romantismo portugus, feito j em superao da escola crtica realista de Tefilo Braga. Filia porm a obra de Egas Moniz numa linha de comportamento e de consideraes de ordem puramente espiritual e afectiva, embora se sinta algo do analismo e descritivismo dos seus trabalhos cientficos.

Maria de Lourdes Belchior sublinha tambm em Egas Moniz o rigor do investigador escrupuloso, que em cada escrito procurava actualizar as suas informaes. De facto, so muitas as obras publicadas (Ao lado da Medicina, 1940) em conferncias, biografias e alocues que vo desde os pintores da loucura a divagaes sobre a arte (v. g. os belssimos estudos sobre Malhoa) at aos mdicos no teatro vicentino. A destacar ainda, de interesse para a anlise do saudosismo portugus, o discurso Do Valor e da Saudade e em especial a conferncia sobre o Papa Joo XXI e a (no) necrofilia de Camilo Castelo Branco.

Recordaramos ainda, se o espao o permitisse, o seu ptimo estudo sobre o Padre Faria na Histria do Hipnotismo, como o primeiro que contra os grandes da poca (final do sculo XVIII) acentuou os aspectos psicolgicos (e no magnticos) dessas tcnicas teraputicas que ento tiveram voga

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excepcional. Tal um precursor de Charcot, Faria mostrou que o magnetismo animal era pura sugesto.

Mais uma vez relevamos a tese de que em Egas Moniz mesmo literato, porventura retrico e acadmico, impressionista e lrico estavam latentes os propsitos e as atitudes do investigador.

Os seus detractores comentavam a falta de metodologia especfica e actualizada de tais escritos, enquanto crticas literrias. H nelas, porm, algumas intuies (por exemplo sobre a relevncia cultural e cientfica da Idade Mdia (acentuada por M. L. Belchior), alm de copiosos dados de investigao bibliogrfica e at sociolgica e psicolgica, como no seu melhor trabalho do gnero, com cinco edies (1924-28) Jlio Dinis e a sua obra. Teve ento a iniciativa de usar conceitos psicanalticos (porventura pela primeira vez na crtica literria portuguesa) e d-nos algumas boas pinturas mdico-psicolgicas dos clebres personagens de Jlio Dinis. Note-se que, estabelecendo a identificao do prof. Gomes Coelho (o escritor Jlio Dinis) com o personagem Daniel das Pupilas, identificava-se ele prprio, Egas Moniz, com ambos o jovem clnico e o escritor todos irmanados no ambiente vareiro da regio aveirense que um e outro tanto amaram e se deleitaram em descrever, espelhando recursivamente a paisagem e as pessoas.

Contraste-se esta perspectiva psicologstica com as indagaes concretas que Egas Moniz nos transmite sobre a filosofia das Summulae, do mdico e professor de Medicina, Pedro Julio ou Pedro Hispano Portucalense, falecido como Papa Joo XXI. No deixa de exprimir as tendncias mais fundas do seu esprito ao acentuar o desassombro da orientao mdica do Papa portugus

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na elaborao das bases fisiolgicas da vida anmica. Deu-nos ento (1929) notcia (p. 161) da descoberta (por Grabmann) do estudo De Anima uma exposio sistemtica de psicologia emprica e de metafsica do sculo XIII.

O clnico Egas Moniz releva sobretudo os lados concretos de obras mdicas deste notvel portugus, que alguns situariam a par de um Dante, mas que ficou na histria como o Papa Joo XXI. As obras de Pedro Hispano Portucalense esperam edio e estudo dos portugueses.

Curioso para Egas Moniz que tal erudito fosse no s professor de medicina (em Montpellier e Pavia) mas mdico prtico; escreveu coisas ainda hoje de interesse sobre dietas e medicamentos, etc., um tratado de oftalmologia e at a obstetrcia lhe no foi estranha.

Egas Moniz como em todas as suas obras, evita embrenhar-se na filosofia da Summulae (por demais escolstica). Epistemlogo sem o desejar e, no fundo, naturalista positivante (mais que positivista) sublinha, no seu modo leve, o af do Padre Julio pela conquista da verdade e o progresso das cincias mdicas (Cap. VII).

As confidncias de um investigador cientfico

Chegamos ao ponto crucial deste relance biogrfico. Como aconteceu, afinal, que esta personalidade plurifacetada e multidotada se tornou efectivamente num investigador de mrito e fama excepcionais?

Assim como no que respeita sua vida familiar (como obra A Nossa Casa) tambm Egas Moniz quis ele prprio dar uma resposta a esta interrogao, construindo uma verso autobiogrfica da sua

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preparao e da deciso plenamente consciente e intencional de tentar a pesquisa cientfica sistemtica: o desejo de obter factos novos que acalentava desde o incio dos seus estudos mdicos, a nsia de concorrer para o patrimnio cientfico.

Com tal propsito, j com 74 anos, escreveu uma obra que far histria: Confidncias de um investigador cientfico, um livro de 622 pginas com muitas ilustraes, na qual, em 45 captulos, relata a sua formao, actividade de pesquisa e os resultados alcanados. Confessadamente inspirado em Ramon y Cajal (os clebres Consejos) e porventura em Claude Bernard, um dos mais significativos escritos da sua pena, sem par na literatura cientfica portuguesa.

Como texto exemplar reproduzimos, no final, parte do Captulo XVIII (pgs. 217-222) Os iniciados na investigao cientfica: como me fiz investigador. um vero testamento cientfico aos seus colaboradores que merece reflectida meditao (Cap. VIII).

Tais conselhos aparecem, porm, ao longo de toda a obra, ao sabor da narrao e sem rigorosa sistematizao. A leitura torna-se assim aliciante e viva, como viva e aliciante foi a sua pessoa. Por exemplo: no captulo citado salta para referncias concretas edio alem da angiografia cerebral, nas quais aproveita a ocasio para referir as suas relaes com as obras e as personalidades dos grandes neurocirurgies, em especial O. Foerster, de Breslau, que o convidou a difundir as suas investigaes em lngua alem.

Na maioria dos captulos ocorre tal divagao, dada com naturalidade associativa, do relato factual e informativo, ou mesmo literrio-memorialista para breves reflexes crticas, enaltecendo sempre o seu

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fito primacial: a investigao. No conjunto uma obra de fundo exemplar como explanao do processo cerebral das suas descobertas e suas razes histrico-biogrficas.

A pg. 16 refere que algum lhe perguntara a razo de se ter feito investigador cientfico apenas aos 51 anos. No quis deixar de responder tambm ele prprio e d-nos uma autoverso, com grande interesse, da gnese, desenvolvimento e efectivao desse projecto diramos ns de autocriao da intensa e mais fecunda fase da sua pessoa cultural, concentrada na pesquisa do novo mundo cientfico.

Claro que do ngulo psicolgico profundo se podem pr reservas s suas explanaes, necessariamente elaboradas, racionalizadas e mesmo sublimadas a posteriori, com a fora que lhe d a interpretao dos acontecimentos passados luz dos xitos indesmentveis que ia alcanando.

Os exigentes de maior sobriedade e conteno criticaro que toda a obra esteja pejada de referncias autolaudatrias e de gravuras em que a sua pessoa sobressai espectacularmente (por exemplo: p. 104): a minha conferncia na Faculdade, a meu lado o doente em que se obteve a primeira arteriografia cerebral (28 de Junho de 1927). Entre a assistncia os Professores Salazar de Sousa, Custdio Cabea, Ricardo Jorge, Lopo de Carvalho, Cancela de Abreu. H muitas outras fotografias de recepes solenes, banquetes, medalhas oferecidas, placas comemorativas, etc. certo que no faltam dados cientficos bem documentados (arteriografias, o desenho do aparelho o leuctomo com que se fazia a psico-cirurgia, esquemas

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cerebrais, etc.) dados apenas como ilustrao e sem feio sistemtica.

Face a to excepcionais feitos veros descobrimentos cientficos sentimo-nos tentados a penetrar no seu entendimento. sabido que, alm do intelecto, se considera actualmente, entre as disposies psicolgicas (diferenciadas no todo da personalidade), a chamada criatividade. O gnio criador seria a sntese destas capacidades congregadas de modo harmonioso e ligadas ao movimento histrico-cultural, no ambiente da poca. Algo fica, porm, em cada caso individual que se apresenta como inexplicvel pelas circunstncias e pelas condies determinantes o acto de descobrir o novo e seria apenas compreensvel como fruto da imaginao, da intuio ou da fantasia, da inventiva e outros aspectos, a rever no captulo final. Poder-se-ia passar, de modo mais ou menos claro, por uma fase daquilo a que se pode chamar delirar criativo, o fantasiar rompendo o real concreto e imediato constituindo-se novas relaes e inesperados nexos significativos, descobrindo-se novos dados com valor cientfico e pragmtico (Cap. VIII).

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II / A REALIZAO DA ANGIOGRAFIA CEREBRAL

A ideia da visualizao das artrias aos Raios X

Por volta de 1924, Egas Moniz compreendeu que o progresso da sua especialidade, a Neurologia, deveria acompanhar os avanos dos outros ramos da Medicina: 1) pelo aprofundamento das cincias bsicas (alm da clssica anatomia patolgica, a antomo-fisiologia do sistema nervoso, a electrofisiologia e a bioqumica cerebral, etc.) para o que lhe faltavam meios e especialistas; 2) pelo desenvolvimento das tcnicas auxiliares de diagnstico cada vez mais usadas na medicina geral. Comeavam na poca a celebrizar-se a radiologia especializada dos rgos, a electrocardiografia, os mltiplos exames laboratoriais (alm dos bacteriolgicos, a qumica dos lquidos orgnicos, o sangue, lquido cfalo-raquidiano, etc.) e os estudos da morfologia e das funes dos rgos e aparelhos (circulatrio, digestivo, etc.) divulgando-se na prtica as respectivas provas funcionais quantificadas. Tambm neste campo comeava a dominar a tecnocracia

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As doenas orgnicas do sistema nervoso (hemorragias, amolecimentos, tumores, infeces, afeces degenerativas, etc.) de que se ocupavam especificamente e com impressionante mincia e rigor os neurologistas (e no das neuroses, como vulgarmente se cr) continuavam pouco acessveis s teraputicas ento conhecidas. Comeava-se, com entusiasmo, com a neurocirurgia na senda dos xitos da cirurgia de outros rgos (aparelhos digestivo, genital, etc.). Um dos problemas mais difceis para os neurocirurgies era o da localizao dos tumores do encfalo, quer dizer: determinar com exactido a rea do crebro onde se desenvolviam para os poder alcanar, abrindo caminho (por trepanaes) atravs do ossos do crnio e das meninges. O crebro no dava qualquer opacidade aos Raios X (como outros rgos, em especial os ossos). Pensou-se nos meios de contraste. Foi o que se fez desde o comeo do sculo (W. Cannon) para o aparelho digestivo, ingerindo papas com bismuto ou outras substncias opacas aos Raios X.

Na neurologia comeou-se (Dandy, 1918) por injectar ar nos espaos aracnoideus, substituindo o lquido cfalo-raquidiano: obteve-se assim nas radiografias, por contraste, o desenho das cavidades (ventrculos) cerebrais a chamada encefalografia gasosa.

Face s dificuldades e insuficincias do mtodo (que no especificaremos aqui), Egas Moniz pensou ento a sua grande descoberta: uma ideia nova que parece ningum ter congeminado antes de Egas Moniz como escreveu o famoso neurologista francs Babinski (conhecido de todos os mdicos pelo sinal de leso da vida piramidal que tem o seu nome) no prefcio obra princeps de Egas Moniz sobre o diagnstico dos

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tumores cerebrais e a prova da encefalografia arterial (Paris, 1931).

A hiptese de trabalho era clarssima: se se conseguisse injectar nas artrias do crebro atravs das cartidas, que principalmente o irrigam uma substncia radiologicamente opaca e miscvel com o sangue circulante que permitisse, sem causar danos, visualizar os vasos atravs das paredes do crnio seria possvel observar, no vivo, as modificaes da forma, da situao e ramificaes da rede cerebral, as quais mostrariam as deslocaes e alteraes determinadas pelo tumor; assim se tornaria muito mais exacta a sua localizao nas diferentes reas do crebro.

Nas suas Confidncias (pg. 22) relata Egas Moniz: quantas vezes falei com Sicard, Marinesco e outros, sobre a necessidade de obter para o crebro um processo palpvel de localizao dos tumores, similar queles que Sicard obtivera para as compresses medulares (injeco de um soluto iodado gorduroso no canal medular). A vantagem seria nesse caso muito maior, pois os meios neurolgicos j bastavam, na maioria dos casos, para a localizao exacta das neoplasias intra-raquidianas (tumores da medula, etc), ao passo que o diagnstico do lugar dos tumores cerebrais s em limitado nmero de casos se podia fazer com segurana. J era conhecida a descoberta da ventriculografia, mas, em Frana era quase ignorada na prtica. E todos ns lanvamos as nossas vistas para a opacificao dos vasos cerebrais como supremo recurso.

E mais adiante: Desde essa poca nunca mais se apartou do meu esprito o propsito de contribuir para essa soluo. Era quase uma obsesso. Acentuamos

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expressamente que a descrio feita nos Cap. II a VII das Confidncias dos pormenores das suas rduas pesquisas merece ser lida no s pelos especialistas mas por quem se interesse por aquilo que muitos pensam ser o mais extraordinrio de uma descoberta cientfica: primeiro, o processo mental da sua concepo; depois, o plano de trabalho e a metodologia a usar; e por ltimo os esforos prticos e dificuldades de toda a ordem que levantava a sua efectivao. Sem esquecer, alis, os problemas emocionais do prprio investigador. Nessa sequncia escreve (pg. 23): Era preciso injectar a cartida interna! Quando essa ideia surgiu ntida no meu pensamento, quase senti arrepios Pensou ento noutras solues: impregnar o organismo de brometos que se fixavam no crebro e poderiam torn-lo opaco aos Raios X; tentar algo de semelhante que opacificasse os tumores. Dado o insucesso dessas tentativas, voltou ao projecto de visualizar as artrias. Comeou ento a fase verdadeiramente experimental, realizada de forma sistemtica com rigoroso mtodo e cautelas para jamais prejudicar os doentes.

A fase experimental

Quem se interesse pelos pormenores, alm da consulta bibliogrfica, que visite o Museu Egas Moniz (Cap. VIII) onde se expem sistematicamente as diferentes fases da experimentao at se ter obtido a primeira arteriografia do homem vivo, em 28 de Junho de 1927.

No se pode, porm, deixar de recordar aqui alguns passos histricos, alis exemplares da experimentao mdico-biolgica no homem.

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Em primeiro lugar: a pesquisa das substncias no txicas que poderiam dar contraste radiolgico injectadas na circulao arterial; depois, ensaios no crnio isolado, dentro do qual se colocavam tubos cheios de solues de sais de bromo em concentraes crescentes at obter imagens opacas nas radiografias. A seguir as tentativas no animal vivo (o co) para estudar a picada por agulhas das artrias do pescoo (cartidas), a reaco injeco dos brometos, as concentraes necessrias e suportveis, etc. Depois as primeiras injeces desses solutos nas veias do homem (em doentes epilpticos que poderiam beneficiar do efeito teraputico dos brometos). Logo a seguir, um passo importante: ensaios feitos no cadver permitindo a radiografia da cabea, injectadas pelas cartidas, e a verificao dos resultados (viu-se ento, pela primeira vez, numa radiografia o desenho ntido da cartida, entrando no crnio e descrevendo uma curva (baptizada por Egas Moniz como sifo carotdeo) e ramificando-se em vrias artrias (ver Fig. 1).

Assinalamos logo nesta fase dois aspectos fundamentais para a realizao de tais trabalhos: a existncia de meios laboratoriais suficientes e a cooperao de uma equipa de investigadores e auxiliares tcnicos. toda a tragdia dos aspirantes pesquisa cientfica: a falta de meios e de colaboradores idneos. Quanto aos primeiros, Egas Moniz no tinha laboratrios nem aparelho de Raios X no seu servio do Hospital de Santa Marta; teve de recorrer ao velho servio geral de radiologia e de pedir hospitalidade ao Instituto de Anatomia (Prof. Henrique de Vilhena) para poder obter cabeas de cadveres e ao Instituto

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Rocha Cabral (Prof. Ferreira de Mira) para as experincias em animais.

A sua tenacidade e persistncia venceram diplomaticamente essas dificuldades, no sem acidentes, at macabros (como o transporte de cabeas de cadveres no seu automvel, do Campo de Santana (Instituto de Anatomia, onde no havia Raios X) para o Hospital de Santa Marta.

Colaborao dedicada, eficaz e persistente teve-a Egas Moniz no seu discpulo Almeida Lima, que foi o primeiro neurocirurgio portugus especializado e em 1957 em dura competio com o neuropsiquiatra Diogo Furtado veio a suceder a A. Flores na Ctedra de Neurologia inovada por Egas Moniz.

Alm de Almeida Lima, sempre presente, activo e eficaz em todos estes trabalhos, teve Egas Moniz dezenas de colaboradores que com ele publicaram numerosos trabalhos. Destacaram-se, entre eles, Almeida Dias, Eduardo Coelho, Lus Pacheco, Romo Loff, Vtor Fontes, Lopo de Carvalho, Cancela de Abreu, Fernando de Almeida, Diogo Furtado, Joaquim Imaginrio, Joo Lobo Antunes, Abel Cancela de Abreu, Cruz e Silva e Ldia Manso Preto.

No faltam a todas as descobertas alguns precalos, vicissitudes e desastres; tambm neste caso houve muitas hesitaes e falhas na localizao e tcnica da injeco da cartida com inciso cutnea cirrgica ou por picada directa no vaso, quanto s solues opacas a adoptar (dos brometos passou-se aos iodetos e mais tarde ao thorotrast e produtos iodados orgnicos). Na soluo destas complicaes, teve Egas Moniz outros preciosos colaboradores: os cirurgies Antnio Martins (inventor de uma pina especial), Amndio Pinto, Abel

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Alves, Ruy Lacerda e os radiologistas Pereira Caldas e Aleu Saldanha.

Logo no comeo houve um caso de morte de um doente, alis com parkinsonismo grave e incurvel. Egas Moniz fez a sua auto-crtica e descreve, muito emocionado, os erros cometidos. Reuniu ento os seus amigos, alm de A. Lima, A. Flores, Cancela de Abreu e Antnio A. Fernandes, que o animaram a prosseguir.

A histria da Medicina o enlaar progressivo de tais desastres e feitos gloriosos. Refeito do desnimo, prosseguiu, aproveitando a experincia, at que num doente com um tumor da regio hipofisria se alcanou a to desejada Eureka!, gritada por Eduardo Coelho na cmara escura de revelao das chapas radiolgicas, ao ver pela primeira vez resultados concretos.

L estavam os vasos cerebrais bem ntidos e situados em posies anormais (desfeita a curva do sifo carotdeo, as artrias cerebrais empurradas para cima pelo tumor). Depois do desalento, a reaco feliz, (loc. cit.) do Autor, como ele prprio diz. Estudado o caso a fundo, logo se mete no Sud-Express para Frana, para mostrar os filmes aos seus mestres Babinski, Souques e Sicard e fazer com xito a comunicao da novidade diagnstica Sociedade de Neurologia e Academia de Medicina de Paris.

A prova da arteriografia arterial, como primeiro se chamou, divulgou-se nos meios cientficos e pouco depois era ensaiada e reconhecida internacionalmente. Tambm aqui Egas Moniz se revelou poltico hbil. S depois da aceitao pelos grandes nomes da Neurologia francesa que, j seguro da situao, comunicou os seus achados em Portugal, em especial Academia de Cincias e Faculdade de Medicina. Fora ele um tmido

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e recatado investigador, talvez tivesse desistido ante as dificuldades e crticas (bastas vezes invidiosas) dos seus pares. (O Egas anda a injectar cacau, etc. nas artrias era um doesto da maledicncia local)

Em cerca de metade das suas Confidncias, descreve Egas Moniz minuciosamente todos estes trmites, no estilo a que j nos referimos, entremeando o relato dos dados mdicos e das discusses cientficas com saborosas anedotas e a pintura dos ambientes. Claro que nas publicaes mdicas especializadas era sobriamente cientfico na exactido descritiva e na exposio lgica e crtica dos resultados.

Sobre o assunto, alm de trs volumes em francs, um em alemo e um em espanhol, publicou, em grande parte com os colaboradores citados, uma vastssima bibliografia, primeiro coligida por Antnio A. Fernandes (Bibl.).

A angiografia 2 como mtodo genrico de observao morfolgica e fisiolgica

A finalidade imediata da descoberta tinha sido a do diagnstico da localizao dos tumores cerebrais um tema clnico a no desenvolver aqui.

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Fig. 1 Arteriografia normal: C. S. Sifo carotdeo; S. G.

artrias do grupo slvico; P. C. art. pericalosa; P. P. art. parietal posterior; T. P. art. temporal posterior; C. P artria cerebral posterior; G. A. art. da prega curva; C. M. art. calosa marginal

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Fig. 2 Arteriografia de um angioma artrio-venoso do lobo parietal e occipital do lado esquerdo. Muitos vasos anormais e deslocados (comparar com a Fig. 1)

Egas Moniz, porm, soube explorar sistematicamente a sua descoberta: tanto aperfeioando as tcnicas, estudando as indicaes, efeitos acessrios e contra-indicaes, como estendendo o mtodo a outras reas da circulao cerebral, alm dos ramos que vm da artria cartida interna. Criou ento a angiografia da fossa cerebral posterior (contendo o cerebelo, o bulbo, etc.) acessvel pela artria vertebral. Deu-lhe mesmo um significado mais geral: os exames angiogrficos como mtodo genrico de investigao: anatmica e antomo-patolgica, fisiolgica e fisiopatolgica, aplicvel na clnica e em estudos experimentais (da circulao e outros).

O grande volume que publicou em alemo (convidado pelo clebre neurocirurgio e experimentado clnico O. Foerster) intitulava-se: A Arteriografia e Flebografia Cerebral (1940) e contm o inventrio sistemtico das contribuies do seu mtodo:

1 Para a anatomia normal dos vasos do crebro provenientes da cartida interna; alm dos ramos arteriais, as veias e os chamados seios venosos e tambm dos ramos da cartida externa, irrigando reas exteriores da cabea e a face. Ficaram clssicos os esquemas que fez do grupo slvico dos seios da dura mater, marcando mais rigorosamente a posio e importncia das mltiplas artrias e suas anastomoses, as relaes e anastomoses entre os hemisfrios direito e esquerdo, etc. V. Fig. l, pg. 46;

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2 Alm dos deslocamentos dos vasos do crebro causados pelos tumores (e outras neo-formaes intracranianas, como hematomas e outras hemorragias, quistos, etc.) obtiveram-se indicaes sobre a localizao e relaes destes com os diferentes vasos e assinalou-se o desenho das artrias prprias de certos tumores (o que veio dar preciosas indicaes sobre a sua natureza e facilitar a abordagem e cuidados cirrgicos); note-se, ainda, um dos principais achados: aparecem nas radiografias, com extraordinria nitidez, os tumores formados por vasos (angiomas venosos e artrio-venosos) e as anomalias e dilataes patolgicas dos vasos (aneurismas e varizes). V. Fig. 2, pg. 47;

3 Um leigo no assunto perceber tambm, desde logo, que qualquer obstruo das artrias, assim radiografadas em contraste, se torna muito ntida nos angiogramas. o que acontece com os vasos de maior calibre alterados por arterioesclerose e noutras doenas (periartrites, etc.). o que acontece nas tromboses da prpria artria cartida por onde passa a maior parte do sangue que irriga o encfalo. Em certos casos de paralisia dos membros de um dos lados do corpo (hemiplegias) descobriu Egas Moniz, com Almeida Lima e R. Lacerda, a existncia, at ento no descrita, de tromboses da cartida interna (mais tarde acessveis cura cirrgica), atrasando ou impedindo o acesso do sangue aos hemisfrios cerebrais do respectivo lado e paralisando o lado oposto.

4 A apreciao anatmica dos angiogramas foi desde logo pensada por Egas Moniz de modo ,funcional e no apenas descritivo-morfolgico como era tradicional na poca. Importa aqui acentuar as relaes com os neurnios do encfalo (que no vivem

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mais que um a dois minutos sem o oxignio que o sangue lhe carreia atravs dos vasos). Mais especificamente, e no mesmo sentido, destacam-se os estudos sobre a circulao feitos por meio de radiografias em srie (e mais tarde cinematogrficas, etc.). A angiografia tornou-se assim um novo e original mtodo de estudo da velocidade da circulao do sangue, no s no encfalo como nas meninges e nas partes moles do crnio (pele, etc.). Recordemos apenas o interesse que tem, at para a psico(pato)logia saber que a circulao enceflica das mais ricas do organismo e se faz de modo muito mais rpido (2/3 segundos) no crebro do que nas partes moles da cabea e noutros rgos;

5 A aplicao a outras doenas e anomalias cerebrais (por exemplo, nos atrasados mentais onde h anomalias dos vasos e leses adquiridas no curso do desenvolvimento pr e ps-natal (observaes de Barahona Fernandes e Abel Alves).

A arteriografia dos membros e da aorta e a generalizao do mtodo angiogrfico. A escola portuguesa de angiografia

Uma faceta fundamental desta descoberta de Egas Moniz foi a de no ter ficado acantonada ao encfalo e de ter sido o ponto de partida para uma cadeia de investigaes e descobertas noutras reas corporais, tambm feitas no nosso pas por um conjunto de investigadores que se veio a chamar a Escola portuguesa de angiografia.

Comeou por outra personalidade fulgurante: o cirurgio e crtico de arte Reynaldo dos Santos. Ao ouvir Egas Moniz expor e demonstrar os seus achados,

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pensou logo que o mtodo angiogrfico seria igualmente aplicvel s artrias dos membros. Egas Moniz, contra o incitamento de Bettencourt Raposo, no quis entrar nesse campo e disse com razo que a parte cerebral lhe bastaria para o ocupar o resto da vida, comentando a propsito: s se podem obter resultados vantajosos fixando-nos exclusivamente numa ideia, fazendo ela parte integrante da nossa vida. Assim aconteceu. E mesmo depois da nova e perturbante descoberta da leucotomia (1936) at ao fim da vida publicou uma vastssima casustica angiogrfica.

Reynaldo dos Santos comeou logo os seus ensaios e publicou, em 1929, com Lamas e Caldas, as primeiras arteriografias dos membros, acentuando o interesse do mtodo no s nos tumores, mas tambm noutras doenas, cujas alteraes patolgicas se deveriam repercutir sobre os vasos e evidenciar-se morfolgica e funcionalmente nas imagens arteriogrficas.

Logo a seguir, com ousadia injustamente criticada, Reynaldo dos Santos desenvolveu a teraputica por via arterial e picou a aorta atravs da regio lombar; injectando iodeto de sdio em soluo concentrada, obteve ento a sua representao radiolgica a tambm famosa aortografia visualizando com fins diagnsticos as suas ramificaes, os vasos do rim e outras vsceras.

Seguiu-se-lhe a radiologia das veias safenas nos membros inferiores (flebografia) feita com grande argcia por Joo Cid dos Santos (1933), a qual veio a ter larga aplicao na clnica e na cirurgia das perturbaes orgnicas e funcionais do sistema venoso.

Na mesma dcada estendeu-se a angiografia a outros territrios do organismo: aos pulmes (Lopo de

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Carvalho); aos linfticos (Hernni Monteiro, lvaro Rodrigues), veia porta (portografia e mais tarde hepato-portografia de Sousa Pereira); noutra perspectiva, logrou-se a visualizao do tecido adiposo (Aleu Saldanha) e outros. Ayres de Sousa abrangeu ainda os vasos menores, com a microangiografia, uma tcnica com grandes possibilidades na investigao vascular dos tecidos.

Abria-se assim uma nova era da radiologia que persiste com grande interesse clnico e para pesquisa cientfica.

Visto agora no conjunto da histria da Medicina portuguesa, foi este um caso excepcional de florescimento sistemtico de uma obra pioneira: a visualizao no vivo dos vasos, tanto na sua expresso morfolgica como fisiolgica, no seu funcionamento normal e patolgico.

Outros grandes mdicos do passado, como Garcia da Orta, Amatus Lusitanus e Ribeiro Sanches e mesmo os introdutores da moderna Cincia Mdica em Portugal (Sousa Martins, Serrano, Bento de Sousa, Ricardo Jorge) no tiveram em Portugal a dita da continuao e expanso das suas obras em trabalhos sistemticos de pesquisa pelos seus colaboradores.

S j no sculo XX, alm dos grupos do Porto e Coimbra, Atias e Celestino da Costa, A. Bettencourt, Gama Pinto, H. Vilhena, Slvio Rebelo, Sobral Cid, Pulido Valente, Fernando Fonseca e poucos mais promoveram, em graus muito diversos, grupos consequentes de investigao.

A ndole deste escrito no permite o desenvolvimento do tema, muito bem tratado nos dois volumes do Centenrio de Egas Moniz (1978) em especial por Abel Sampaio Tavares, Albano Ramos, Aleu Saldanha, Cndido de Oliveira, Vasconcelos Marques, J.

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Cid dos Santos, Ribeiro Rato, Landivar, Miller Guerra e Almeida Lima.

Digno de nota o facto de, alm da escola de Lisboa, tambm no Porto se terem desenvolvido consideravelmente os estudos angiogrficos, a partir do impulso dado pelo notvel anatomista Hernni Monteiro e continuado at hoje pelos seus discpulos (Melo Adrio, Roberto de Carvalho, Lino Rodrigues) e tambm pelos cirurgies lvaro Rodrigues e Sousa Pereira, Joaquim Bastos, Jos Garrett, o radiologista lvaro Ramos e outros. A este fecundo grupo de trabalho devem-se muitos e importantes estudos experimentais sobre circulao linftica e artrio venosa. Alm do seu estudo na clnica tornou-se relevante a importncia da angiografia na investigao experimental.

Em Coimbra, Maximino Correia e discpulos estudaram a circulao das artrias coronrias. Apesar destes e outros ensaios (lvaro Rodrigues e all.), a visualizao do corao no vivo (cardiogramas sistemticos por sonda atravs das veias do brao e depois por outras tcnicas) foi uma das poucas reas que falharam criatividade dos portugueses.

Aceitao internacional e evoluo at actualidade

Facto tambm pouco comum na histria da Medicina, a angiografia teve desde logo a melhor aceitao internacional, em especial na Europa e mais tarde na Amrica do Norte e comeou a ser largamente praticada, em especial pelos neurocirurgies em cooperao com os neuroradiologistas duas

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especialidades que (em parte por mais esta tcnica) muito se desenvolveram e se tornaram florescentes.

Ao contrrio da leucotomia (Cap. IV), a angiografia foi muito pouco contestada pelos investigadores. Houve, certamente, dificuldades com as tcnicas da abordagem cirrgica e, depois da puno directa dos vasos atravs da pele, com a sua extenso s artrias e veias das partes moles da cabea e outras regies, com a colheita das imagens radiolgicas (depois feitas em sries e, mais tarde, filmadas, tomadas em estereografia, por tcnicas automatizadas, combinadas com outros mtodos, etc.); e, em especial, com a escolha de novas substncias de contraste. Depois dos brometos, Egas Moniz fixou-se no iodeto de sdio e em 1931 no thorotrast, o qual teve de ser abandonado pelos seus graves efeitos radioactivos e substitudo por compostos orgnicos incuos que actualmente se usam sem risco.

Logo depois das primeiras comunicaes de Egas Moniz, os autores Sai na Itlia (1929), Saito no Japo, Ducuing em Frana, Norman Dott em Inglaterra e Olivecrona na Sucia iniciaram uma srie de trabalhos e comunicaes a congressos internacionais, que continuaram at ao presente.

A angiografia tornou-se, em consequncia, uma rotina nos servios neurolgicos e em especial neurocirrgicos e mantm at data essa posio, com alguns aperfeioamentos tcnicos mas sempre baseada e nunca esquecendo a obra princeps de Egas Moniz.

notvel como outras tcnicas extremamente sofisticadas no destronaram a angiografia, nem mesmo a espectacular descoberta (tambm Prmio Nobel) da tomografia axial computorizada, hoje em pleno florescimento, a qual d sries de cortes de contraste em

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todo o organismo, inclusive no crebro (sem necessidade de substncias estranhas). Nos tumores e leses vasculares, a angiografia continua porm, ainda hoje, a ser o mtodo soberano de diagnstico (at da natureza da leso) do qual os especialistas afirmam no se poder prescindir para a preciso da indicao e do prprio acto operatrio.

Poucas vezes a histria premiou deste modo uma inovao, na aparncia meramente tcnica mas com largas repercusses na pesquisa antomo-funcional do organismo.

porventura o seu interesse dinmico (fisiolgico) que, superando o estatismo morfolgico dos clssicos, mantm a sua relevncia cientfica e aplicaes pragmticas.

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III / A CRIAO DA LEUCOTOMIA

PR-FRONTAL

Na breve sinfonia deste ensaio vai prevalecer o tema central da psico-cirurgia. No o digo s por ter colaborado com o seu criador nem to pouco por ser psiquiatra e, como tal, mais sensvel ao progresso cientfico e teraputico nessa rea, mas porque o tema , por um lado originalssimo, e por outro exigindo a maior prudncia e crtica, tanto no que concerne ao rigor cientfico como valorao tica das intervenes sobre a Mente e o Esprito dos homens perturbados que nos so confiados para ajuda e tratamento. Extraordinariamente valiosas foram ainda as inferncias cientficas e pedaggicas do mtodo Cap VIII).

Tem-se repetido que as trepanaes cranianas (rituais? teraputicas?) vm da pr-histria. Glosam-se a fbula e as burlas da operao da pedra da loucura, feita por charlates (recordem-se os sugestivos quadros de Jan de Bray). Havia vagas notcias, j desde os romanos, de que, em ferimentos profundos da regio fronto-orbitria, acontecia melhorarem certos doentes mentais Referimos literatura especializada para a

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histria das investigaes anatmicas, fisiolgicas, antomo-patolgicas e clnicas sobre as funes do lobo frontal. Desde o sculo XIX que ficou conhecido o doente Phineas Gages, descrito por Harlov, cuja personalidade mudou depois de uma ferida frontal. Recordamos a nossa prpria experincia e as observaes bsicas do nosso Mestre K. Kleist e seus contemporneos e opositores (Goldstein e Gelb), as suas rigorosas localizaes das funes psicolgicas (iniciativa para actos verbais e motores) em reas bem delimitadas do cortex cerebral. De todo este saber no tinha brotado, porm, qualquer inferncia teraputica (alm dos ensaios, logo esquecidos, de excises do cortex temporal de Burckhardt (1890) e, mais tarde, de Puussepp (1906).

Com Almeida Lima, o A. dos nicos sobreviventes que acompanharam Egas Moniz logo no comeo desta gesta herica que foi o descobrimento da cirurgia psiquitrica expresso que por motivos bvios preferimos de psico-cirurgia.

Vivncia pessoal do acontecimento. Uma surpresa conceptual

Depois de um estgio de estudo nas clnicas alems, vim de frias a Lisboa no final de 1935. Logo visitei o meu mestre Egas Moniz para lhe contar o adiantamento dos meus trabalhos. Senti, desde logo, que o grande neurologista estava inusitadamente interessado pelos progressos do tratamento das doenas mentais. Alm dos sedativos e estimulantes, muito usados e mal conhecidos, dos banhos permanentes, j em descrdito, do tratamento da paralisia geral pela malarioterapia (que

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j se fazia em Lisboa desde a sua descoberta por Wagner von Jauregg, em Viena de ustria, nos anos 20) e parte os novos mtodos psicoterpicos muito mais praticados e ensinados efectivamente fora das clnicas e hospitais pouco mais efectivamente digno de nota se podia referir, alm da teraputica pelo trabalho e, noutro plano, a preveno da Sade Mental e os primeiros ensaios de terapia extra-muros (a doentes no internados) apoiada na assistncia social.

A teraputica convulsiva de v. Meduna (primeiro pelo cardiazol e s mais tarde (Cerletti) pelo electrochoque) e a terapia de Sakel pelo choque insulnico, que entretanto tinham sido descobertas coetaneamente com a leucotomia (o que curioso: tambm na ustria, como a malarioterapia) ainda no estavam difundidas e s se tornaram conhecidas e usadas mais tarde e tambm nos anos 60 severamente criticadas, ao mesmo tempo que o mtodo de Egas Moniz.

As minhas preocupaes, ao tempo, andavam pela patologia cerebral e suas relaes psiquitricas a patofisiologia e a psicopatologia dos sintomas psiquitricos (em especial psico-motores). Tentava ento a convergncia (dialctica e antropolgica) das escolas neurolgicas e das escolas psicolgicas em contnuo debate e infecunda competio, por divergncia de mtodos e recproca incompreenso, a que no eram estranhos preconcebimentos ideolgicos. Pois eu tenho c uma grande novidade disse-

me Egas Moniz no tom quente e afvel que lhe era peculiar e sem esconder a sua satisfao. Vocs, os psiquiatras, continuam embrenhados

nos complexos inextricveis e obscuros meandros da

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dialctica, presos dos fenmenos puramente subjectivos da psicopatologia mais ou menos a roar pela metafsica. Apenas Kleist, com quem vens de trabalhar em Francforte, vinca uma posio bem definida na psiquiatria, como eu a entendo de carcter organicista, baseada no estudo objectivo do crebro e das funes.

Expus-lhe ento a nova carta das localizaes cerebrais que Meist publicara na sua clebre Gchirnpathologie (1934), relacionando desde logo certas reas frontais, a regio orbitria e o cingulum (na face interior do cortex cerebral) e ainda a cama ptica e o eixo cerebral com determinadas funes da personalidade; referi tambm as vistas discordantes de Jaspers e outros que rejeitavam todas estas aquisies como mitologias, as reservas de K. Schneider, Bumke, Lange e dos anatomistas Scholz, Peters e outros com quem convivera na Alemanha. Pois eu penso que a vida psquica tem como base

antomo-fisiolgica a actividade das clulas cerebrais e as suas conexes recprocas, adentro do sistema nervoso no seu conjunto. O funcionamento destas ligaes (as sinpses) essencial. pela sua multiplicidade que os influxos nervosos redemoinham constantemente causando a grande mobilidade da vida psquica. Algumas destas conexes podem-se fixar em actividades mentais automatizadas. Em certos doentes mentais deve dar-se uma fixao anormal destes agrupamentos clulo-conectivos e da a dominncia de certas ideias que absorvem todas as outras laboraes psquicas.

Assim me desvendou Egaz Moniz a sua teoria da vida psquica, rescendendo a um monismo materialista tido na poca por ultrapassado. E, noutros aspectos,

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parecendo a renovao, em bases histolgicas, mediante as conexes dos neurnios cerebrais, do clssico associacionismo psicolgico. Para modificar as ideias mrbidas fixadas na mente dos enfermos e for-los a seguir por outras vias necessrio alterar as conexes destas sinpses assim mal ajustadas e o caminho errado dos seus impulsos.

Tal foi a intemerata e completamente inesperada proposta teraputica do Mestre que em princpio, embora com resistncias, poderia ser aceite pelo neuro-psiquiatra aberto neuro-biologia que eu era, mas em que sentia faltarem os fundamentos mais concretos da experincia clnica e da antomo-fisiologia, em grande progresso na poca.

Era, realmente, uma ousada e surpreendente novidade que no futuro muito iria dar que falar. O que importa que decidi operar certos doentes

baseado nestas ideias. E j tenho resultados muito favorveis. Nos melanclicos desaparece subitamente todo o sofrimento depressivo e a ansiedade. Os obsessivos e certos delirantes desinteressam-se das suas ideias mrbidas

Explicou-me, ento, como durante mais de dois anos tinha pensado e discutido com Almeida Lima, que, se cortasse cirurgicamente as fibras nervosas na profundidade da substncia branca do lobo frontal (em seu entender, a rea cortical mais relevante para a vida psquica) poderia interromper os circuitos anormalmente fixados nos doentes e obter as suas melhoras.

Tal era o fundamento em que baseava a ousadssima operao da leucotomia pr-frontal que estava ensaiando.

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O Mestre era condescendente e liberalmente aberto discusso, mesmo com jovens ousados e entusiastas dos novos conhecimentos e experincia que traziam da Europa Central, ento o centro principal da investigao psiquitrica. As nossas objeces irrompiam no estilo prprio de qualquer psiquiatra ou psiclogo a partir dos conhecimentos da poca: no se conheciam as leses cerebrais das psicoses que pretendia curar dessa forma; nem concretamente quaisquer alteraes significativas da fisiologia dos circuitos neuronais das sinapses ou das prprias clulas nervosas. A experincia, alis muito fecunda, da patologia cerebral das doenas orgnicas em comparao com sintomas idnticos nas psicoses (Wernicke, Kleist), mostrava haver certamente relaes de correspondncia entre as reas consideradas por Egas Moniz e certos grupos de funes psicolgicas do lobo frontal e orbitrio com as actividades cognitivas e valorativas, do crebro interior e profundo com as funes emocionais e os impulsos, etc. Nada autorizava, porm, prever que cortes cirrgicos na espessura do encfalo na substncia branca onde se entrecruzam as fibras de associao da regio frontal anterior com outras reas pudessem modificar no sentido das melhoras os desvios mrbidos da actividade cerebral nas psicoses ditas funcionais sem leses orgnicas demonstrveis. Egas Moniz mostrou-se aberto s novas informaes e anotou no seu livro, interpretando-as a seu modo, muitas destas e outras observaes e experincias. No se abalava, porm, na sua deciso operatria e ripostava: Os factos esto a. Os doentes operados

melhoraram e no houve consequncias graves.

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Nomeio-te censor psiquitrico dos resultados clnicos alcanados.

Pude depois observar os vinte primeiros doentes operados, verificar as modificaes clnicas produzidas e inserir os meus exames na obra bsica de Egas Moniz, Tentatives opratoires dans le traitement de certaines psychoses, que pouco depois (1936), com espanto e certa reserva dos meios cientficos, foi publicada em Paris.

A incidncia da cirurgia psiquitrica

Assim nasceu a leucotomia no pensamento fecundo de Egas Moniz, como ideia nova, contrria s posies cientficas prevalecentes no seu tempo. Ideia totalmente imprevisvel e discordante do saber feito e estabelecido. De facto, no foi pela arteriografia alis uma descoberta tcnico-diagnstica concreta e de utilidade comprovada (Cap. II) mas expressamente por esta problemtica tentativa teraputica que lhe foi conferido o Prmio Nobel: por ter criado novas e originalssimas possibilidades de melhorar certos casos de doentes mentais que no respondiam a qualquer tratamento anterior; e ainda, em especial, por ter aberto caminhos inesperados para novos conhecimentos sobre o encfalo e as suas relaes com a personalidade humana. Um descobrimento to extraordinrio e inovador via a luz do dia no extremo ocidental da Europa, longe dos centros dominantes da investigao mdica, surgia inopinadamente como uma ousada viagem no desconhecido.

Efectivamente foi um feito ocorrido em circunstncias peculiares e obra de uma personalidade prenhe de originais potencialidades como estamos mostrando.

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Antes de mais reflexes, sintetizemos sem pormenores especializados a situao da teraputica psiquitrica em Portugal, e o contexto cientfico e mdico-cultural da poca em que o caso aconteceu.

Depois dos xitos diagnsticos da angiografia e dos progressos consequentes da neurocirurgia, outro territrio, mais vasto e difcil, se deparava ao esprito de Egas Moniz, curioso do desconhecido e vido por o desbravar: as doenas mentais. Tanto mais quanto, como todos os neurologistas, era na clnica muito procurada por doentes nervosos (neurticos e outros casos mitigados, tantas vezes temerosos dos psiquiatras, tidos ainda por alienistas, mdicos dos loucos).

Depois de certo interesse pela histeria, pelo hipnotismo e, episodicamente pela psicanlise, Egas Moniz afastou-se das correntes dominantes da psicologia e da psicopatologia clnica, representadas na poca por Sobral Cid e seus discpulos, entre os quais nos contamos. A subjectividade e a interioridade da compreenso vivencial da fenomenologia psicopatolgica na relao mdico-doente rimava mal com a exigncia racionalista do concreto e objectivo em que o Mestre se firmava. Tinha o gosto, em todos os campos, at na arte (Cap. I) pelos dados detectveis por mtodos objectivantes, muito ao modo naturalista de feio predominantemente descritiva (morfolgica), orientao esta que em cincia era materializante. As vivncias constituam uma dificuldade, pelo menos uma impreciso. Egas Moniz recusava-lhes rigor cientfico e apenas as considerava no ngulo literrio

Est aqui, alis, o problema metodolgico basilar da psiquiatria: a apreenso das diferentes categorias de

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dados e a sua integrao, sem reducionismos, quer nos fenmenos subjectivos, quer nos objectivos. Egas Moniz cria muito mais na anatomia e na fisiologia como cincias fundamentais (ento florescentes) do que na psicologia e na psicopatologia, no seu dizer ainda muito presas tradio espiritualista. Para ele era ponto de f (bem explcito!) que a vida mental provinha directamente da actividade do encfalo; era tambm do crebro que deveriam provir as perturbaes mentais. Na sua exigncia de claridade e economia conceptual, recusava-se complexificao das interaces em causa e toda a sua problemtica epistemolgica (Cap. VII).

Assediado como era, pela sua fama, tanto na clnica privada como no Hospital de Santa Marta, por numerosos casos j muito tratados e desiludidos (em especial neurticos obsessivos e depressivos) sentia-se, como todos naquele tempo, insatisfeito por no poder ajudar mais eficazmente doentes to exigentes de cuidados e atenes. Os meios teraputicos eram precrios e os sedativos, estimulantes, agentes fsicos, etc., com o tempo tornavam-se inoperantes. No se tinham ainda divulgado os electrochoques, alis s indicados nas estruturas depressivas daqueles casos.

Num ambiente neurolgico (e bastante neurocirrgico) no poderia haver o esprito, a disposio, a convico e a preparao o clima prprio para finas e prolongadas intervenes psicoterpicas eficazes nos casos referidos. A grande histeria ia rareando (curada por sugesto, torpedeamentos, etc.) e as neuroses iam-se complexificando pelas mutaes scio-culturais, exigindo outra espcie de terapias.

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Egas Moniz pensou, durante anos, na hiptese de ser tambm possvel operar doentes mentais com eficcia teraputica. Quase nada se sabia do assunto que fundamentasse tal ousadia. Embora relutante a problemas metafsicos (relaes corpo-alma, melhor: crebro-psiqu-esprito) procurou no fugir ao fundo da questo. As bases orgnicas do pensamento e das perturbaes estariam nas ligaes (sinpses) entre os neurnios cerebrais. Sempre disse ter-se inspirado principalmente nos trabalhos histolgicos de outro Prmio Nobel peninsular, Ramon y Cajal um dos investigadores a quem maior culto rendia e tambm na fisiologia cerebral de Pavlov (outro Prmio Nobel) cujas ideias aduz de modo genrico para mostrar os nexos neuro-fisiolgicos de estmulos e actividades tidas por psquicas (Cap. VII). digno de nota jamais se r