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O Sectarianismo da Idade Axial e as Antinomias da Modernidade por S. N. Eisenstadt t 1 Gostaria, neste ensaio, de focar alguns temas que têm sido centrais na obra de Eric Voegelin e que são cruciais para a compreensão dos dinamismos da civilização moderna e suas raízes históricas na civilização Axial. O terna principal do meu ensaio será o lugar do sectarianismo e das heterodoxias na civilização Axial, no moldar da civilização moderna.' C) ponto de partida da minha análise será as antinomias básicas da Grande Civilização; e a transformação destas antinomias nas Grandes Revoluções e no programa cultural e político da modernidade. 2 II Uma das características distintivas destas civilizações é que se foram desenvolvendo continuamente no seu interior visões alternativas e transcendentais concorrenciais elas relações entre as ordens transcendental e Mundana. Estas concepções ou visões alternativas, cristalizaram-se em torno de três antinomias básicas distintas, inerentes às próprias premissas destas civilizações e no processo da sua institucionalização - a saber, primeiro em torno da consciência de urna grande variedade de possibilidades de visões transcendentais e cia sua implementação; segundo, cm torno da tensão entre razão e revelação ou fé, ou seus equivalentes, nas civilizações Axiais não-monoteístas; e terceiro, em torno da problemática da desejabiliclade das tentativas ele plena institucionalização destas visões na sua forma prístina. A consciência de uma grande gama de possibilidades cie visões transcendentais, da própria definição das tensões entre as ordens transcendental e mundana e da busca pela sua superação, i.c, cia implementação de tais visões, constitui uma parte M. A. Ph. I). Rose Lesses Professor Erncritus of Sociology. The I-Iebrew Univelsity ofJerusalem. Traduçao de Elísio Gala. I Sobre as Civilizações cia Idade Axial, ver S. E. Eisenstadt, "The Axial Age: The Emergence of Transcendental Visions and the Rise oí' Clerics", limo/cura /ournal 0/•Sociology, 23/2, 1952, pp. 294- -314.; S. N. Eisenstadt, ed., 'lhe Or/gin.s and Dir"vily o/' Axial Age Cindiu/bons, Albany, New York, Sunny Pr•ess, 1986. 2 S. N. F.ise:nstadt, " Franaeworks of lhe Great Revolutions: Culture, Social Structure, IIistory anel I-Iuman Agcncy", Inlernalionali,SaiiaiSr:ien.ce/onrnal, Vol. 133, 1992, pp. 385-401.; idem, llevolulions and lhe Trens/onnalion o/ ' ,Socielie.c. New York: Free Presa, 1978; idem, "Comparative Liminality: Liminality and Dvnanics ol C;ivilizauion", l?rligion, Vol. 15, 1985, pp. 315-338.; idem, "Cultural Traditions and Political Dynamies", lhetívh /aurnaii o/',Soeia/agy, Vol. 32, 1981, pp. 155-181.; Eric Voegelin, linlighiraenl anel llevoíui on, cdited bylohti I1. I-lallowell, Durham N. C., Duke University Presa, 1975; A. Seiigman, "Time Comparative Stndies ol' Utopias" "Christian Utopias anel Clu•istian Salvation: A General Introduction" e "The Euchau'ist Sacrilice and the Changing Utopia]) Moment. in Post Reformation Christianity" em Idem ( ecl.) orbe and Prmesrendenre, Leiden, E. J. BI Hl, 1989, pp. 1-44. 117 revlstaGTs['OLIS

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  • O Sectarianismo da Idade Axiale as Antinomias da Modernidade

    por S. N. Eisenstadtt

    1Gostaria, neste ensaio, de focar alguns temas que tm sido centrais na obra de

    Eric Voegelin e que so cruciais para a compreenso dos dinamismos da civilizaomoderna e suas razes histricas na civilizao Axial. O terna principal do meu ensaioser o lugar do sectarianismo e das heterodoxias na civilizao Axial, no moldar dacivilizao moderna.' C) ponto de partida da minha anlise ser as antinomias bsicasda Grande Civilizao; e a transformao destas antinomias nas Grandes Revoluese no programa cultural e poltico da modernidade. 2

    IIUma das caractersticas distintivas destas civilizaes que se foram

    desenvolvendo continuamente no seu interior vises alternativas e transcendentaisconcorrenciais elas relaes entre as ordens transcendental e Mundana. Estasconcepes ou vises alternativas, cristalizaram-se em torno de trs antinomiasbsicas distintas, inerentes s prprias premissas destas civilizaes e no processo dasua institucionalizao - a saber, primeiro em torno da conscincia de urna grandevariedade de possibilidades de vises transcendentais e cia sua implementao;segundo, cm torno da tenso entre razo e revelao ou f, ou seus equivalentes, nascivilizaes Axiais no-monotestas; e terceiro, em torno da problemtica dadesejabiliclade das tentativas ele plena institucionalizao destas vises na sua formaprstina.

    A conscincia de uma grande gama de possibilidades cie vises transcendentais,da prpria definio das tenses entre as ordens transcendental e mundana e dabusca pela sua superao, i.c, cia implementao de tais vises, constitui uma parte

    M. A. Ph. I). Rose Lesses Professor Erncritus of Sociology. The I-Iebrew Univelsity ofJerusalem.Traduao de Elsio Gala.

    I Sobre as Civilizaes cia Idade Axial, ver S. E. Eisenstadt, "The Axial Age: The Emergence ofTranscendental Visions and the Rise o' Clerics", limo/cura /ournal 0/Sociology, 23/2, 1952, pp. 294--314.; S. N. Eisenstadt, ed., 'lhe Or/gin.s and Dir"vily o/' Axial Age Cindiu/bons, Albany, New York, SunnyPress, 1986.2 S. N. F.ise:nstadt, " Franaeworks of lhe Great Revolutions: Culture, Social Structure, IIistory anelI-Iuman Agcncy", Inlernalionali,SaiiaiSr:ien.ce/onrnal, Vol. 133, 1992, pp. 385-401.; idem, llevolulions andlhe Trens/onnalion o/ ' ,Socielie.c. New York: Free Presa, 1978; idem, "Comparative Liminality: Liminalityand Dvnanics ol C;ivilizauion", l?rligion, Vol. 15, 1985, pp. 315-338.; idem, "Cultural Traditions andPolitical Dynamies", lhetvh /aurnaii o/',Soeia/agy, Vol. 32, 1981, pp. 155-181.; Eric Voegelin, linlighiraenlanel llevoui on, cdited bylohti I1. I-lallowell, Durham N. C., Duke University Presa, 1975; A. Seiigman,"Time Comparative Stndies ol' Utopias" "Christian Utopias anel Cluistian Salvation: A GeneralIntroduction" e "The Euchau'ist Sacrilice and the Changing Utopia]) Moment. in Post ReformationChristianity" em Idem ( ecl.) orbe and Prmesrendenre, Leiden, E. J. BI Hl, 1989, pp. 1-44.

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  • intrnseca da sua institucionalizao nas civilizaes Axiais. Historicamente, talprocesso de institucionalizao das vises transcendentais jamais foi um processosimples ou pacfico. Qualquer destas institucionalizaes continha; usualmente,elementos fortemente heterogneos e at contraditrios. Estava frequentementeligado com uma contnua luta e competio entre vrios grupos e entre as suas visesrespectivas. Por causa desta multiplicidade de vises, nenhuma podia ser consideradacomo certa ou completa. Uma vez institucionalizada numa sociedade, ou pelo menosno seu centro, a concepo de uma tenso bsica entre a ordem transcendental e amundana, ela tornou-se muito problemtica. A elaborao de uma tal visosubordinada a uma tal institucionalizao em termos totalmente articulados, gerou apossibilidade de diferentes nfases, de reaces ou interpretaes, todas elasreforadas pela existncia em qualquer fundo histrico, de uma talinstitucionalizao de mltiplas vises realizada por diferentes grupos.

    A segunda antinomia bsica inerente a estas civilizaes tem sido aquela entre,por um lado, a razo e, por outro lado a revelao e a f na tradio monotesta ealguns princpios transcendentais no Confucionismo, Hindusmo e Budismo. Aspremissas destas civilizaes - e as institucionalizaes das mesmas - implicaram umalto nvel de reflexibilidade, inclusive uma reflexibilidade de segunda ordem, sobreestas mesmas premissas. Tal reflexibilidade foi, claro, reforada pela conscincia devises alternativas. Arrastou consigo necessariamente, o exerccio da razo noapenas como uma ferramenta pragmtica mas tambm, pelo menos, como umrbitro ou guia de tal reflexibilidade, dando frequentemente origem construo darazo como uma categoria distinta, no discurso, da desenvolvida nestas civilizaes. Apartir da a razo pode ter sido facilmente dotada de uma dimenso e autonomiametafsica ou transcendental, inexistente nas civilizaes pr-Axiais - e podia tergerado confrontaes entre o exerccio autnomo da razo e revelao ou os seusequivalentes nas civilizaes no-monotestas. Tal confrontao foi historicamentemuito central nas civilizaes monotestas na medida em que tenham confrontado anica civilizao Axial - a Grega - que de facto definiu razo, logos, como o derradeirovalor transcendental. Mas confrontaes paralelas, ainda que, escusado ser dizer,aninhadas em outros termos e meios menos conflituais desenvolveram-se nascivilizaes Axiais.

    Esta antinomia relacionava-se estreitamente com a terceira que era inerente scivilizaes Axiais, nomeadamente a que se centrava no problema da desejabilidadedo ponto de vista destas vises, das tentativas na sua plena institucionalizao na suaforma pristina. Por um lado, na maior parte destas civilizaes, enfatizava-sefortemente o facto de existir uma ntida discrepncia entre, por um lado, a ordemideal, corno prescrita ou prevista pelas vises transcendentais prevalecentes nelas,pelos mandamentos de Deus, pelos ideais de harmonia csmica, e por outro lado aordem mundana enquanto construda pelas exigncias da vida poltica e social, pelasextravagncias da natureza humana - frequentemente concebida como guiada porcondies puramente utilitrias ou por consideraes de poder ou de raison d"tatt.De acordo com o que temos visto, uma das caractersticas centrais de todas estascivilizaes foram tentativas de implementar as vises transcendentes na ordemmundana.

    Por outro lado, todavia, desenvolveram-se tambm dvidas dentro das tradies

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  • reflexivas destas civilizaes, dvidas, dada a imperfectibilidade do homem, quanto possibilidade - e at exeguibilidade - da total implementao de tal viso. Tal opiniono era inerentemente exgena s concepes bsicas e premissas destas civilizaes- era at uma componente bsica, ainda que controversa, destas premissas. O prprionfase na diferena entre a ordem transcendental e a ordem mundana arrastouconsigo tambm a viso ela inerente imperfectibilidade cio homem. Foi tambm deigual modo frequentemente enfatizado no discurso que se desenvolveu nestascivilizaes, que tais tentativas para ultrapassar totalmente a diferena entre asordens transcendentais e as mundanas, poderiam ser muito perigosas, e quepoderiam levar humanos frgeis a a tentarem ab-rogar para si mesmos o poderdivino. Nessa conformidade, desenvolveram-se rio interior destas civilizaes fortesnfases na necessidade de regular os assuntos humanos, sem tentativas de umaextrema e tot ahst.ica implementao de uma viso pristina transcendental. Os limitesadequados de uma tal implementao, o campo de aco das arenas e aspectos davicia social que deviam ser regulados de acordo com tal viso, em oposio quelasem que preocupaes mais mundanas, de poder ou econmicas deviam ser aceites -mas tambm reguladas por meios mundanos, constituiu uma das maiorespreocupaes do discurso reflexivo em todas estas civilizaes.

    A famosa distino de Santo Agostinho entre a Cidade de Deus e a Cidade doHomem uma cias melhor conhecidas ilustraes desta preocupao - bem como daresoluo deste problema na direco da separao das duas cidades - que foidesafiada por' vrios grupos heterodoxos, entre os quais os gnsticos. Discursosidnticos podem todavia ser tambm encontrados noutras civilizaes Axiais.

    Estas preocupaes estavam estreitamente relacionadas de com o problema queera central no discurso de todas estas civilizaes, nomeadamente o cia avaliao dosimpulsos hedonsticos e anrquicos e do interesse mundano dos povos. Em todos osdiscursos que se clesenvolver'ain em todas estas civilizaes, desenvolveu-se uma fortepreocupao com as relaes entre, por um lado, estes impulsos e interesses, entre osimpulsos egostas, hedonistas e anrquicos dos indivduos e grupos no mago dasociedade e, por outro lacto, o encorajamento da ordem social adequada.

    Em estreita relao com estas consideraes, desenvolveram-se em muitas destascivilizaes alguns ncleos cia ideia de contrato social, cia ideia de que a verdadeiraordem mundana, especialmente a poltica, constituda atravs de um qualquercontrato implcito entre diferentes membros de urna sociedade, ou entre eles e ogovernante. Diferentes variaes dessa ideia de contrato social poderiam serencontradas em alguns dos grandes escritos sobre questes polticas e sociais dascivilizaes Asiticas, como as de Artashartra de Katulya 3 , na obra de Ibn Khalcloun 4ou na obra de alguns pensadores chineses - como Motzu ou Hsunt-su, 5 A maioria

    3 J. C. 1-leesterrna ], 7'he Ione, Coti/lic.l o/Tuuhlinra. Essays in Imitou /l,atai, ICirags/ti/r and .Sociely,Chicago, Univeashv EChicago Press, 1985.

    Ver E, Gcllnei, A' uslirrt ,Souely, Cansbridgc, Cambridge Univrsity Press, 1981; B. B. Lawrence, ed.,'/he llrn: / /tailouu anil /sninie /denloi)', Leiden, B. J. Br1984.

    T. A. iSletzgei' Isar:a/te noto Medo moeu( - Neo-Crr./tuiortis o and Chutas M1o/111u/g Polilical Culhne, NewYork, Coluinbia IJniversity Press, .1977; W, T. DeBary, "Introduction", in W. T. DeBary and theConlercnce on 17th Ccntil'y Chinesc Thought, The Un/oh/1r1g o/Neo-Corr./itcionisnt, New York,Columbia Univcrsily Press, 1970, pp. 1-3.

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  • destas discusses enfatizava que um tal contrato com os governantes era baseado emalgumas consideraes utilitrias, bem como sobre as do medo. Tais consideraeseram usualmente vistas como sendo uma parte natural da ordem mundana, nospotenciais anrquicos da natureza humana, que tinham dc ser regulados pelas leisou costumes que embainhavam nestes potenciais anrquicos e/ou pelo poder dosgovernantes. O reconhecimento desta necessidade foi frequentemente ligado legitimao ela ordem poltica baseada em consideraes de poder. O contratobaseado em tais consideraes poderia ser visto como legtimo mas certamente nocomo vinculando a plena implementao da viso transcendental pristina; mas a sualegitimidade tambm poderia ser associada com o medo de tentativas deimplementar totalisticamente a viso transcendental pristina.

    Ao mesmo tempo todavia, foi criada a possibilidade neste discurso de que aregulao ele tais impulsos poderia ser melhor assegurada pelo exerccio da razo doque por tentativas para implementar vises transcendentais de um modo totalstico.

    IIIFoi sobretudo em redor das antinomias bsicas inerentes s premissas das

    civilizaes que analismos acima, que se desenvolveram dentro delas as vrias visesalternativas de ordem transcendental e das suas relaes com a ordem mundana,Estas vises alternativas com as suas possibilidades fortemente antinmicas,vincularam a reconstruo quer das concepes ontolgicas bsicas da realidade, daconcepo da ordem transcendental, bem como das suas relaes com a ordemmundana, especialmente a ordem poltica e as formaes sociais bsicas que estavaminstitucionalizadas nestas civilizaes,

    Algumas destas vises frequentemente negavam a validade das prpriasdefinies da realidade ontolgica sustentada nas respectivas civilizaes. Umadireco de tal negao foi a refonnulao da tenso entre as ordens transcendentale mundana, como foi o caso da reformulao Budista das premissas do Hindusmo ea reformulao Crist das premissas do Judasmo. Tais vises alternativas podiamtambm promulgar a negao ideolgica do prprio stress na tenso entre ordenstranscendental e mundana e um regresso a uma concepo pag de retorno, como sefosse para um estdio pr-transcendental e pr-Axial concepo de mtuareincrustrao do transcendental e do mundano, e por vezes a uma concepocronolgica do mundo. Outra tendncia ou viso muito forte ligada com a procurado regesso a tal reincrustrao que frequentemente se desenvolveu nestas civilizaes,Ioi a gnstica que tentou imbuir o mundo com um profundo mas escondido sentido.Esta demanda podia tambm vir a ligar-se com a nfase na autonomia da razo e alegitimidade dos esforos mundanos. To diferentes vises alternativas podiam vir aligar-se com a elaborao de uma grande variedade de orientaes religiosas eintelectuais, especialmente msticas e esotricas que foram alm da verso ortodoxa,estabelecida e rotineira ela implementao da viso transcendental.

    Todas estas vises com as suas fortssimas potencialidades antinmicas foramgeralmente articuladas por agentes especiais que se apresentaram como osportadores das religies pristinas e/ou das vises civilizacionais destas civilizaes.Ilustraes de tais portadores so os homens santos da antiguidade, os ascetas

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  • Indianos ou Budistas, os monges Cristos - em outras palavras, os virtuosos religiosos,que frequentemente permaneceram em relaes ambivalentes ou dialcticas com asvias existentes de institucionalizao das vises transcendentais, frequentementeagindo do ntimo de situaes liminares e que frequentemente surgiram no magode grupos distintos - sectores, ordens que se poderiam tornar heterodoxias. 6

    Estes agentes souberam frequentemente combinar as tentativas de implementartais vises com mais vastos movimentos sociais, especialmente com movimentos deprotesto. Como consequncia, tais vises alternativas tornaram-se de facto muitofrequentemente combinadas com os temas perenes do protesto social, com tentativasde suplantar ou substituir os predicamentos e limitaes da existncia humana emgeral e da morte em particular; a tenso e dificuldades inerentes institucionalizaocia ordem social; especialmente a tenso entre igualdade e hierarquia; a tenso entrea complexidade e a fragmentao das relaes humanas inerentes em qualquerdiviso institucional do trabalho e a possibilidade de alguma participao total,incondicional e no mediada nas ordens social 'e cultural; e a tenso entre ademanda de uma participao significativa nas principais arenas simblicas einstitucionais pelos vrios grupos na sociedade e a limitao no acesso a tais arenas.

    Um elos mais importantes resultados das combinaes de tais vises alternativas,com os problemas da implementao das respectivas vises transcendentais, com ostermos universais de protesto, foi a emergncia nestas civilizaes Axiais de visesutpicas de tuna ordem cultural e social alternativa. 7 Essas concepes utpicas, essasvises, continham muitas vezes fortes elementos milenrios e revivalistas que tambmpodem ser encontrados em civilizaes da Idade pr-Axial ou no-Axial tal como oJapo; mas estas vises utpicas vo alm das milenaristas combinando-se com abusca por urna melhor ordem alternativa para alm da dada, uma nva ordem social ecultural que ser construda de acordo com os preceitos de uma mais elevada ordemtranscendental e que negar e transcender a existente. Tais vises utopistas . tambmfrequentemente continham componentes ou vises fortemente gnsticas eescatolgicas. 8

    NEstas vises alternativas com as suas fortes potencialidades antinmicas, no

    estavam confinadas ao domnio puramente intelectual - tambm podiam ter maisamplas implicaes institucionais e polticas. Estas implicaes estavam enrazadas nofacto de que estas vises frequentemente vinculam orientaes muito. fortes para a

    6 Para alguns exemplos do lugar dos intelectuais nos processos de eles-Axialiao ver: P. Cohen,Christianity and Buddhisnt in Thailand: The "Battle of the Axes" e "Contest of Power" in SocialCorra/nas.s, 38 (2) 1991, pp. 115-190.7 A. Seligman "The Cornparative Studies of Utopias " , ."Christian Utopias and Christian Salvation: aGeneral lntroduction" e "The Puc:harist. Sacril'ice and the Changing Utopian Moment in PostReformation Christianity", op. cit.; S. N. Eisenstadt "Comparative Liminality; Liminality andDynaruirs of Civilizat.ion", op. cila.8 E. Voegelin, 77te Neto Sciente (ri Polilics, Chicago, Uuiversity of Chicago Press, 1952; idem,_DiePolil srhen. lleligtonen, Munchen, Wilhei o Fink Verlag, 1996; N. Cohn, Ia lhe Pontal o/ lhe Milleniunt,New York, 1-l

  • (oca

    construo do mundo mundano dando origem ao potencial de discrdia pelosdetentores destas vises. Mas alm disto, estas vises tal corno foram experimentadaspelos vrios actores - especialmente pelos virtuosos religiosos, seitas ou potenciaisheterodoxias, podiam tambm ter mais especficas, directas - e potencialmente maisamplas - implicaes institucionais e polticas. A promulgao destas vises estavaestreitamente ligada luta entre diferentes elites - tornando todas estas elites - paraseguir a designao de Weber cios antigos profetas Israelitas - em demagogos polticosque tambm podiam desenvolver distintos programas polticos pessoais. Taisprogramas podiam em princpio - e sob condies propcias - tornar-se desafios

    rmuito fortes dos regimes existentes, aos sistemas polticos e religiosos. 1Tal potencial poltico destas seitas e elas vises alternativas por elas promulgadas

    estava enraizado nos problemas emergentes de qualquer institucionalizao concretaelas civilizaes Axiais, acima da ligao de tal institucionalizao s concepes ciaresponsabilidade cios governantes perante uma ordem maior, especialmente dasrelaes de tal responsabilidade com os problemas e as possibilidades e limites daimplementao das vises pristinas transcendentais. Qualquer destasinstitucionalizaes naturalmente arrastou algum compromisso de uma aproximaoprist:ina ou viso com a realidade poltica, social e mundana; a aceitao daimpossibilidade de uma total unio que ultrapassasse o abismo entre a ordemmundana e a ordem transcendental; o estreito entrelaamento de uma talimplementao parcial com a ordem poltica, e a nfase concomitante e aimportncia da manuteno da ordem poltica em vista a manter inclusive a possvelparcial implementao da viso transcendental. Ao mesmo tempo foi exactamenteesse compromisso que pde constituir o topo da crtica da diferena sobretudo dosmovimentos sectrios utopistas - movimentos que promulgaram vises utpicasvisando a total anulao cio abismo entre ordem transcendental e ordem mundana,da plena implementao cias vises transcendentais e construo de uma ordempoltica que asseguraria uma tal plena implementao.

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    Apesar destas vises alternativas, o sectarianismo e as tendncias para aheterodoxia cristalizaram em todas estas civilizaes, desenvolvendo grandesdiferenas entre si quanto extenso do desenvolvimento de tais utopias ehet:erodoxias e ao seu impacto na cena poltica para a qual o institucional e polticoexistente constituiu um foco central de tais orientaes e actividades sectriasortodoxas, especialmente das vises utpicas e escatolgicas. Tais diferenas estavamrelacionadas com as concepes e critrios de responsabilidade dos governantes,especialmente at ao grau em que os governantes eram vistos como responsveis pelaimplementao, na sociedade, das vises transcendentais, bem como para aespecificao das leis institucionais e processos mediante os quais essaresponsabilidade possa ser realizada 10

    9 S, N. Eisenstadt, "I-Ieterodoxies and Dynamics of Civilizations", Uigtienes, Vol. 120, 1982, pp. 3-25;idem "Comparative Li minalit.y, L.iminality and Dynamics of Civilization", op. cit.10 s. N. Eisenstaclt, "Cultural Traditions and Polil:ical Dynamics" op. cit.; "The Axial Age: TheEme' geme of 'rianscendental Visiona and Rise ol' Clerics", op. cit.; idem, (ecl.), lhe Origines and

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  • Os diferentes modos em que as concepes da responsabilidade dos governantesera concebida nestas civilizaes, estava estreitamente relacionada primeiro quetudo, com as concepes ontolgicas bsicas da natureza do abismo entre as esferastranscendentais e mundanas e dos modos de ligar este abismo - i.e. as diferentesconcepes da viso transcendental que eram predominantes nestas civilizaes.Segundo, estas estavam ligadas a e influenciadas pela concepo do lugar da arenapoltica na implementao das vises transcendentais; e terceiro, pela extenso daaceitao e possvel legitimao cias dimenses utilitrias e egostas da naturezahumana.

    Quaisquer que fossem as diferenas entre estas civilizaes Axiais, os vriosgrupos sectrios heterodoxos, constituam um componente contnuo na dinmicadestas civilizaes. Na esfera das civilizaes Europeias-Crists, eles constituram umcomponente temia] na cristalizao da civilizao moderna, da modernidade, medida que ela cristalizava no Iluminismo e nas Grandes Revolues.Contrariamente a algumas interpretaes simplistas da tese da tica Protestante deWeber, estas orientaes sectrias no originaram o capitalismo ou a modernacivilizao eco geral. Pelo contrrio, sol) condies institucionais e geopolticas muitoespecficas e distintivas, constituram urna componente importantssima nestacristalizao da civilizao ll - uma componente que implicou simultaneamente umacontinuao e uma radical transformao do lugar dos movimentos sectarianistas eprato-fundamentalistas na dinmica das Grandes Civilizaes.

    VIAs Grandes Revolues podem ser vistas como o culminar cias potencialidades

    heterodoxas sectaristas que se desenvolveram nas civilizaes Axiais - especialmentenaquelas em que a arena poltica era vista como, pelo menos, uma das arenas deimplementao da sua viso transcendental, incluindo outros componentes verbaisou orientaes. Tal transformao vinculou a reviravolta - ainda que em termosseculares - da hegemonia da viso Agostiniana, e a tentativa concomitante deimplementar as vises heterodoxas gnsticas, e as vises sectrias que queriam trazer aCidade de Deus para a Cidade do Homem.

    As Grandes Revolues podem de facto ser vistas corno a primeira ou pelo menosa mais dramtica e possivelmente a mais bem sucedida tentativa na histria dahumanidade de implementar, numa escala macro-societria, a viso utpica comfortes componentes gnsticas. Esta viso partilhava muitas caractersticas com osmovimentos proto-fundamentalistas - excepto que nas revolues eram sobretudovises orientadas para o futuro que se tornaram predominantes e componentescentrais do programa cultural da modernidade. Foi de facto o grande discernimentode Eric Voegelin - ainda que o tenha apresentado de um modo bastante exagerado -o apontai para aquelas razes profundas do programa poltico da modernidade nastradies het:erocloxo-gnsticas da Europa medieval. 17 O programa cultural e

    Divo):vily o/Amai Age (:ivilizaliotas, op. cit.11 Ver S. N. Eisenslacll, "Origins of lhe West. The Otigins of the West in Recent MacrosociologicalTheory. The Protestant Echic Rec:onside.red", Ctliuru.l Dynamics, Leiden, E. J. Br1991, pp. 113-147.12 E. Voegelin, Tile Neto ,S'cience o/

    +, op. cit.; idem Die 1'olilisr;hr^'t Relinzonert, op. cit.

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    revisiad E t'OLTS

  • poltico moderno, o programa cultural e poltico tal como cristalizou com aRenascena, a Reforma e o Iluminismo, e sobretudo nas Grandes Revolues foi defacto grandemente influenciado pelos movimentos sectrios proto-fundamentalistasda era medieval tardia e da era moderna primeva. So estas razes histricas dasGrandes Revolues e as suas transformaes na sua forma moderna, que estoestreitamente relacionarias com algumas das suas caractersticas distintas que asclifeiencianl de outros movimentos de rebelio, protesto''ou mudanas degovernantes que podem ser encontrados na maior parte cias sociedades. Estascaractersticas cias Grandes Revolues so tambm muito importantes para acompreenso das relaes entre estas Revolues e os regimes e processos polticosque cristalizaram aps estas revolues.

    VIIEsta transformao das actividades sectrias que teve lugar na Grande Revoluo

    esteve estreitamente relacionada com o desenvolvimento de um novo tipo deactivistas polticos e de liderana.

    O componente mais central de tal liderana, o componente mais central nestesprocessos revolucionrios - e um que provavelmente constitui as suas caractersticasmais distintas - o lugar de grupos especficos, culturais religiosos ou seculares eacima de tudo de intelectuais e activistas polticos, entre os quais se salientavam osdepositrios da viso grn.,l c.a cio trazer o Reino de Deus, ou alguma sua visosecularizada, para a Terra. Os puritanos Ingleses e numa extenso diferente ospuritanos americanos; os membros dos clubes Franceses to brilhantementedescritos por Albert Cochim e mais tarde por Franois Furet 13 , Mona Ozouf, eoutros dos vrios grupos da intelligentzia Russa", so as ilustraes melhores e maisconhecidas deste tipo social. Foram frequentemente estes grupos que forneceram oelemento distintivo que transformou rebelies em revolues.

    Foi de facto o papel central em todas estas revolues de intelectuais autnomosque mostrou uma transformao radical, das actividades polticas e orientaes dasmais signifcativas heterocloxias e seitas medievais, cia natureza do processo poltico edo lugar elos intelectuais neste processo. A essncia desta transformao foi a que severificou contra a supresso ou abolio das actividades mais radicais, sectrias eheterodoxas e orientaes em espaos especiais e altamente controlados ( tal comoos mosteiros, o que era caracterstico na cena medieval ), estas actividades eorientaes foram transpostas, nas Revolues e no moderno processo polticosubsequente, para a arena poltica central.

    A Reforma constitui, deste ponto de vista, o ponto crucial de transformao dosectarianismo Catlico numa orientao deste mundo: a famosa frase de Lutero detransformar o mundo inteiro num mosteiro - enquanto manifestamente orientado

    I A. Cochiri, Lrr /?1volul,lon el la libre luense, Paris, Plon-Nourrit, 1924; idem, 1, es/nit eiu jacobinisrnr.,Paris Pr esses tiniversi1aires cie Fruice, 1979; F. Fure., l''renclr Revobrlion, New York, Macniillan, 1970;idem, lidei rrelin lhe Pirenc/r llre,o/,uli,nra, Cambridge, Caiu bridge University Press, 1981; M. Ozouf, I,aPele Revolutioncnn.ire, Paris, Gallimard, 1982.14 V. C. Nahirny, 'l'ute Rrr.csin.n. Iralelligenlsia: 1'rorn 'I 'orrmrn.l lo ,Sileu.ce, Rut.ger's, N. J. TransactionPublicarions.

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  • contra as ordens monsticas existentes - denotava a radical transformao das atento prevalentes tendncias hegemnicas em actividades sectrias na Cristandade.Tal transformao foi levada a cabo ainda mais energicamente, tanto pela Reformaradical como pelo Calvinismo - em que se desenvolveu uma muito forte nfase nojuntar a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. Mas o Luteranismo no deu, no seutodo, origem a actividades polticas autnomas, e a Reforma radical e o Calvinismoforam bem sucedidos - e s por perodos relativamente curtos em comunidadesrelativamente pequenas - em Gnova, em algumas seitas Holandesas c Escocesas eem algumas das primeiras colnias Americanas.

    Tudo isto forneceu de facto um pano de fundo crucial para o desenvolvimentodas Grandes Revolues. Mas foi somente nas revolues que tais actividadessectrias foram retiradas, na sociedade em geral e os seus centros. Foi s nasrevolues que estas orientaes sectrias radicais se tornaram entrelaadas comrebelies, levantamentos populares, movimentos de protesto e com a luta poltica nocentro e foram transpostas para o centro. Nesse entrelaamento, as aptidesideolgicas, propagandsticas e organizacionais destes intelectuais ou elites culturaisforam de crucial importncia ideolgica e organizacional.

    VIIIFoi atravs das actividades desses activistas e intelectuais que o programa cultural

    moderno, os programas culturais e polticos cia modernidade com as suas distintasantinomias, desenvolveram, como bem sabido, este promulgado programacultural. 15

    Os componentes mais importantes deste programa foram primeiro a supremaciapotencial da razo na explorao e at no moldar do mundo; a naturalizao elohomem, sociedade e natureza; e a nfase na autonomia do indivduo.

    O homem e a natureza tenderam a tornar-se naturalizados, tenderam a serprogressivamente percebidos no como directamente regulados pela vontade deDeus, como nas civilizaes monotestas, no por alguns superiores princpiosmetafsicos transcendentais, como no Hindusmo e Confucionismo, nem pelo logosuniversal, como na tradio Grega. Ao invs, foram concebidos como entidadesautnomas reguladas por algumas leis internas que podiam ser plenamenteexploradas e compreendidas pela razo e inquirio humana. Foi tal naturalizaocio cosmos e cio homem que constituram o ponto de viragem central da viso pr--moderna para as modernas viso e concepo cosmolgicas e ontolgicas.

    ConcomitanLemente, central a este programa cultural foi a nfase na crescenteautonomia do indivduo; na emancipao dele ou dela, mas neste programacertamente a emancipao dele das cadeias cia autoridade tradicional, poltica ecultural e a contnua expanso cio domnio da liberdade e actividade pessoal einstitucional. Tal autonomia arrastou duas dimenses - primeira, a .reflexibilidade e a

    15 S. 'roulmin, Cot s, New York, Free Press, 1990; J. I-Iabermas, 7lie P/iilosophicral Diseouste o/Alnrlrrrarly, (:iam bridge, M. 1. T. Press, 1987; H. Blumenberg, Die I egilinaal der Neuzeil, Frankful t,Suhrkamh, 1987; S. N. rsisenstad1, ecl., Po.rl-71odilioran.l ,Soraelies, New Yoik, Norton, 1972; C, Taylor,i/egel anU / l/re Morte) n Soriell', Canthridge, Cantbridge Uoiversity Press, 1989; idem, Sourres o/l/ae.Sel/ 1/teAlohr.rr.go/lheA!odern. /rlea/.ily, Gani briclgz, Lu vai UniversityPress, 1989.

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    revista(:ISI'01 is

    egI=2=D

  • r I

    explorao, e depois a construo activa, domnio da natureza e da sociedade. Mas sea nal',.eraleo do cosmos foi sobretudo concebida corno sendo governada poralgumas leis ou foras inerentes - quer as leis da natureza que podiam e deviam sercientificamente exploradas, ou alguma espcie de essncia ronantica interior, asituao foi mais complicada no respeitante autonomia do homem. A naturalizaoe a autonomia do homem foi concebida em duas diferentes e contraditriasdireces, corno Kant mostrou. Por um lado, o homem era tambm visto comosujeito s leis da natureza, as quais ele mesmo podia explorar. Por outro lado ele, eracaracterizado pela autonomia moral - parecendo pelo menos transcender estas leis eprecedendo uma forte orientao crtica como componente bsico desta ordem.

    A explorao da natureza e a busca pelo seu potencial domnio, tambm tendeu,pelo menos em algumas verses desta nova tradio, especialmente em algunssectores do Ilurninismo, para extravasar para alm das esferas tcnicas e cientficaspara a esfera social. Uma tal perspectiva conduziu quase naturalmente ao nfase naexplorao e na investigao da natureza humana e da sociedade. Podia vir a estarligada com a nfase na importncia e possibilidade de uma crescente aplicao deum tal conhecimento prpria esfera social; na relevncia da informao econhecimento para a gesto dos assuntos da sociedade e a construo da ordemscio-poltica.

    Tal esforo consciente podia-se desenvolver em duas direces - por vezescomplementares, outras vezes conflituantes. Uma foi a direco tecnocrtica, baseadana presuno de que aqueles que eram detentores do conhecimento, os quedominavam os segredos e os arcanos da natureza e do homem, podiam imaginar osesquemas apropriados, as apropriadas disposies institucionais para aimplementao elo bem humano, da boa sociedade. A segunda destas direces psum grande nfase na implementao de tal viso mediante o esforo moral-racionaldos homens.

    Fora das conjunes destas diferentes concepes ou orientaes desenvolveu-seno interior desta nova moderna tradio ou programa cultural, a crena napossibilidade de formao activa pela actividade e participao da conscinciahumana e pela reflexo crtica dos aspectos culturais das ordens social, cultural enatural. A prpria sociedade tornou-se um objecto das actividades humanas doesforo humano consciente orientado para a sua reconstruo. Tal reconstruo foitambm frequentemente vista como um componente bsico da possibilidade dealargar o domnio dos indivduos do seu prprio destino.

    IXNo mbito deste novo programa cultural, desenvolveu-se o especfico programa

    poltico cla modernidade. 19As novas concepes ontolgicas promulgadas no programa cultural da

    modernidade transformaram necessariamente as caractersticas e orientaes bsicasda tradio e da autoridade; os parmetros e premissas da ordem poltica, da sua16 L. Shils, "Cenl.er anel Periphcry; and Society and Societ.ies - The Macrosociological Vicw", inidem, eci., CenGer anil Pcvi/dum, hssays ia Ma(rosor:iolohy, Chicago, University of Chicago Press, 1975,pp. 3-11.; C. Ler(r1 te, Uerrrocrary nnd Polilirel7''heomy, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1983.

    revistaCT:PUI,IS

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  • legitimao, e das concepes da responsabilidade dos governantes; bem como as daestrutura das relaes centrais e centro-periferia. Este novo programa poltico, emestreita relao com os programas culturais que se enraizaram em revolues e nainstitucionalizao de novos regimes polticos que cristalizaram no seu incio,implicou uma transformao radical das prprias concepes de poltica. Deuorigem, talvez pela primeira vez na histria da humanidade, crena napossibilidade de ultrapassar, atravs cla aco poltica, o hiato entre as ordenstranscendentais e mundanas, de realizar nas ordens mundanas, na vida social,algumas das vises utpicas e escatolgicas, e na possibilidade de transformao dasociedade atravs da aco poltica guiada por uma viso distintiva. Num programacultural mais vasto ela modernidade tal viso podia ser uma viso tecnocrtica, deengenharia que implicava a perspectiva de que a comunidade poltica uma entidadeauto-constitutiva e auto-reflexiva, que a sociedade pode, mediante aces polticasreconstituir-se continuamente de um modo conscientemente reflexivo.

    Ao mesmo tempo, em estreita relao com o comportamento utpico na vidapoltica moderna, vastas transformaes enrazadas no imaginrio das GrandesRevolues, ocorreram no simbolismo e estrutura dos centros da poltica moderna,enquanto comparadas com as suas predecessoras ou com os centros de outrascivilizaes. O ponto capital desta transformao foi a carismatizao clo centrocomo o portador elas vises transcendentais inerentes no programa cultural damodernidade e a concomitante incorporao de ternas e smbolos de protesto comoum bsico e legtimo componente das premissas destes centros, e das suas relaescom as periferias das suas respectivas sociedades. 17

    Em contraste com quase todas as anteriores civilizaes, temas e smbolos deigualdade, participao e justia social tornaram-se no s elementos de protestoorientado contra o centro existente, mas tambm um importante componente dalegitimao poltica de exigncias de ordem pela periferia no centro. Eles tornaram-secomponentes centrais ela viso transcendental que promulgou a autonomia dohomem e da razo. Protesto e a possibilidade de transformar alguns aspectos ciaspremissas institucionais da sociedade deixavam de ser considerados ilegtimos ou, nomximo, aspectos marginais do processo poltico. Eles tornavam-se componentescentrais do discurso e prtica poltica moderna. A incorporao de ternas de protestoconstitui um componente importante do moderno projecto de emancipao dohomem, um projecto que procurou combinar igualdade e liberdade, justia eautonomia, solidariedade e identidade. Foi de facto a incorporao destes ternas nocentro que epitomizou o seu estatuto como componentes centrais da visotranscendental da modernidade e que anunciou a radical transformao da visosectria, utpica em componentes centrais do programa poltico e cultural.Concomitantemente, desenvolveram-se tendncias contnuas ao permear dasperiferias pelos centros e ao impacto das periferias nos centros, da concomitanteclesfocagem das distines entre centro c periferia, e da incorporao dos smbolos eexigncias de protesto nos smbolos centrais da sociedade.

    17 s. N. Eisenstadt, Alordernizaldora, I'roiesi and Choram, Englewood Cliffs, Prentice Ilall, 1966; ideai el.Amura, cieis., Soci adisn, and "/iarliiorr, New York, I-Iumanities Press, 1975.

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    revislaC E I l ILIS

  • iXA cristalizao e institucionalizao deste programa com as suas mltiplas e

    sempre mutveis implicaes institucionais desde o sc. XVIII, com a sua expansoda Europa Ocidental para as Amricas, Europa Oriental, e depois para a Asia efrica, implicou, tal como aconteceu com a institucionalizao de qualquer grandeviso transcendental da ordem social, mltiplas antinomias, tenses e contradies,dando origem a um dos mais intensos discursos e dinmicas sociais e polticas nahistoria da humanidade - discursos e dinmicas que naturalmente se intensificaramcom o contnuo desenvolvimento e expanso da modernidade.

    1'or detrs destas antinomias e tenses surgiram algumas muito poderosas aindaque por vezes escondidas, diferentes meta-narrativas ela modernidade - segundo afeliz expresso de E, Tiryalcian - a Crist, no sentido de afirmao deste mundo emtermos de uma mais elevada, no totalmente realizada viso, a gnstica que tentaimbuir o mundo de um profundo sentido escondido, e a ctnica que enfatiza a plenaaceitao da palavra dada e da vitalidade das suas foras. 18

    Estas antinomias e tenses bsicas no programa cultural e poltico damodernidade tiveram as suas razes nas civilizaes Axiais que analismos acima,especialmente na tenso entre, por um lado, a busca pela implementao da visotrarrscenclental no mundo mundano e o reconhecimento da imperfectibilidade dohomem que naturalmente se apoia na possibilidade de tal implementao noprograma cultural da modernidade. No programa cultural da modernidade, estasantinomias e tenses transformaram-se radicalmente naquelas entre as diferentesinterpretaes da autonomia e hegemonia do homem e da razo, e da prpriapossibilidade de fundar a moralidade e a ordem moral numa tal autonomia ehegemonia. As premissas bsicas deste programa constituiram , os temas culturais decontnuos cliscursos e crticas que se focavam nestas antinomias e suas relaes comos desenvolvimentos institucionais nas sociedades modernas.

    A mais radical crtica deste programa - enraizada nas meta-narrativas acimamencionadas e nas premissas e antinomias das civilizaes Axiais pr-modernas - negoua validade elas reivindicaes cios promulgadores destes programas para fundamentaras suas premissas - e a sua institucionalizao - em princpios metafsicostranscendentais bem como para os ver como eptomes da criatividade humana. Oponto central da maior parte destas, enquanto crticas radicais, externas desteprograma, foi a negao da possibilidade de fundamentao de qualquer ordemsocial e moralidade, bem como da criatividade humana na premissa bsica doprograma cultural da modernidade; especialmente na autonomia do indivduo e nasupremacia da razo. Estreitamente relacionada estava a negao das reivindicaesde que o desenvolvimento institucional da modernidade se enraizava numa visotranscendental e podia ser visto como a implementao de uma tal viso e dacriatividade humana. Estas crticas afirmaram que, ao contrrio destas reivindicaes,a institucionalizao destes programas negava a criatividade humana; rebaixava aexperincia humana e conduzia desintegrao ou eroso cla ordem moral, dasmorais - e transcendentais - bases da sociedade, e alienao do homem, da natureza

    18 E. Tirvalciarr, "Three Meta Cultores o!Moderuity: Chiist.ian, Gnostic, Chtonic", 'nem)! (iulsoe n,vulSociety, Vol. 13, N' 1, 1996, hp. 99-118.

    revista(: I.; I'(t 1, I S

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  • e da sociedade.Estas crticas radicais podiam n ser consideradas cie dois pontos de vista opostos,

    ainda que por vezes curiosamente complementares. O primeiro era o religioso ou otradicional - que sublinhava a primiciedade da tradio e da -autoridade religiosasobre as reivindicaes da razo e da autonomia humana. A outra crtica da primaziada razo podia vir daqueles que proclamavam que tal primazia nega a autonomia davontade e criatividade humanas.

    Lado a lado com estas crticas radicais externas e de facto muito estreitamenterelacionadas com elas, desenvolveram-se tenses e contradies no interior doprograma cultural da modernidade entre as suas vrias premissas e entre estaspremissas e o desenvolvimento institucional das sociedades modernas. Maisimportante que essas tenses e antinomias foram, primeiro, entre concepestotalizadoras e mais diversificadas ou pluralistas dos componentes mais relevantesdeste programa - da prpria concepo de razo e do seu lugar na vida e sociedadehumana, e da construo ela natureza, da sociedade humana e sua histria; segundo,entre a reflexibilidade e a construo activa da natureza e da sociedade; terceiro,aquelas entre as diferentes avaliaes de dimenses mais relevantes da experinciahumana; e, quarto, entre o controle e a autonomia, entre disciplina e liberdade.

    O foco central da dicotomia entre vises totalizadoras c pluralistas tem sidoaquele entre a viso que aceita a distino de diferentes valores e racionalidades,enquanto contra a viso que conflitua as diferentes racionalidades num modototalizador, que basicamente subsume a racionalidade-valorativa ( Wertrationalitat )ou racionalidades, sob a racionalidade instrumental ( Ztoee eralionalitat ) quer nas suasverses tecuocrticas ou moralistas utpicas. Esta tenso desenvolveu-se primeiro quetudo no respeitante concepo de razo e ao seu lugar na constituio dasociedade humana. Era manifesto por exemplo, cmo Stephen Toulmin mostrouainda que exac:erbadamente, na diferena entre as concepes mais pluralistas deM:ontaigne ou Erasmo e a viso totalizadora da razo promulgada por Descartes. 19

    Esta tenso entre concepes totalizadoras e pluralistas da existncia humana eda viela social desenvolveu-se tambm na concepo e construo do curso dahistria humana - especialmente por algumas vises totalizadoras guiadas pela razoou pelo esprito das diferentes colectividades contra a nfase na multiplicidade de taiscaminhos. As concepes utopistas escatolgicas inerentes crena na possibilidadede unir ligar os abismos entre as ordens transcendental e mundana, implicou,tambm algumas ideias muito especficas de tempo, especialmente enquantorelacionadas com o curso da histria humana. Entre as mais importantes destasconcepes, moitas delas enraizadas na escatologia Crist, que tambm constituramnela transformaes de grande alcance, esteve primeiro uma viso do progressohistrico e da histria como processo mediante o qual o programa cultural damodernidade, especialmente a autonomia individual e a emancipao devia serimplementado. Tal progresso foi definido sobretudo em termos de valoresuniveisalistas da racionalidade instrumental, como razo, cincia e tecnologia. Nestaconcepo desenvolveu-se uma tendncia muito forte para fazer confluir cincia etecnologia com os valores ltimos, para fazer confluir a Wertrationalitat e a

    19 S. Toulmin, Cosrn.nhnlis, op. cit.; J. Habermas, hePhilosophicalDi.scourse. o/Morlern.ity, op. cit.

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    revistaC E DOEIS

  • Zweckral.ionai.lall humana com a nacionalidade instrumental e at tcnica. Mas todaviaquanto para o futuro estivesse orientado este programa, ele tambm desenvolveureferncias a um comum e passado imaginrio humano. Ele tinha tambm uma forteorientao evangelista c que, juntamente com as suas verbalizadas orientaes, lhedeu um muito furte mpeto para a expanso.

    Como que contra tais vises totalizadoras cia histria desenvolveram-se diferentesvises - talvez melhor representadas por Vico, e mais tarde por Herdei' - da existnciade mltiplos caminhos de histrias de diferentes sociedades. Esta maior tendnciacontrria (romntica) enfatizou a autonomia das emoes c da distino dascolectividades primordiais, mas partilhou com o novo maior pi grama muitas dasconcepes fortemente utpicas, escatolgicas, ainda que no c c rtamente a ideia deprognesso, 20

    A segunda tenso que se desenvolveu no interior cio programa foi aquela entreditei entes concepes de autonomia humana e cia sua relao com a constituio dasociedade e cia natureza - especialmente entre por um lado a reflexibilidade eexplorao e por outro a construo activa ou mestria cia natureza e da actividadehumana e da sociedade; entre a engenharia tecnocrtica e as mais exploratrias,reflexivas, crticas e moralmente autnomas concepes de construo da sociedadee atitude para com a natureza. O nfase na construo activa da sociedade e domnioda natureza pode tornar-se estreitamente ligado com a tendncia, inerente sconcepes instrumentais cognitivas para enfatizar a radical dicotomia entre sujeitoe objecto, e entre homem e natureza - reforando a crtica radical que reclamava queo programa cultural ela modernidade necessariamente implicou uma alienao ciohomem, cia natureza e da sociedade.

    A terceira tenso mais significativa que se desenvolveu no interior do. programacultural da modernidade foi a respeitante relativa importncia ou primazia dediferentes dimenses ela existncia humana. De especial importncia neste contexto,tem sido a avaliao da relativamente importante autonomia e predomnio da razoe como que contra a dimenso emotiva cia existncia humana, a segunda sendofrequentemente estreitamente relacionada ou identificada com a esttica, ou comvrias foras vitais, bem como com os chamados componentes primordiais naconstruo das identidades colectivas. Estreitamente relacionadas estavam tensesentre diferentes concepes das bases da moralidade humana, quer tal moralidadepossa ser baseada ou enraizada em princpios universais enraizados acima de tudo naracionalidade, instrumental da razo, quer nas experincias concretas das diferentescomunidades humanas.

    20 Mark Lilla, Ma/An.g o/ ao Anli-Modera, Cambriclge, Harvard Univeisily Press, 1933; idem, 'Mas is(Gegenaulldarcnrg?", ira 111a/c!cr, N" 566, 1966, pp. 900-411; 1, Berlim, "Two Conceprs of. Liberty", irahurra hssay.v ou l,ihrrly, L,ondon, Oxford liniveisily Press, 1975, pp. 118-172; idem, Vico and Herda; NewYork, 1976; idem, Againsl lhe Carteia, New York, 1980; idem, 7'he Cr'oohed ninho, o/ Hurannily, NewYork, 1991; G. Vio, 'lhe New S'r:ienre o/ Ciarahallisla Viso, Abriged and Rev. Ed., Graden City N. Y.,Ancho' I3ooks, 1961;.J. LTarder, /. C. Herde ou Social rtnrl Polilical Culli'nr'e, Cambridge, CambridgeUnivcrsity Press, 1969.

    revislaC E Pl I I,I ti

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  • XICortando atravs destas tenses ou contradies no programa cultural da

    modernidade, desenvolveu-se no seu interior e acima de tudo com a suainstitucionalizao uma forte tenso contnua entre controle e autonomia, entredisciplina e liberdade.

    Esta tenso tem duas razes bsicas; a primeira, a mais geral foi o facto de que ainstitucionalizao de qualquer viso ontolgica que por definio implica limitaesmediante o exerccio do controlo social, em que poder e confiana esto ligadoscom a distribuio dos recursos, limitaes na criatividade humana'. 21 Mas alm destefacto geral e num sentido mais central para a compreenso das dinmicas damoder'nidacle, esta tenso tem sido enraizada nas contnuas - ainda quecontinuamente mudando - contradies entre as premissas bsicas do programacultural da modernidade e os mais relevantes desenvolvimentos institucionais dassociedades modernas, que eram at a algum ponto pelo menos inerentes a esteprograma.

    A primeira destas contradies foi aquela entre por um lado a nfase naautonomia e por outro lado a dimenso de controle fortemente restritivo enraizadaem concepes tecnocrticas e/ou morais visionrias de institucionalizao desteprograma - uma dimenso de controle energicamente analisada - ainda que de unimodo exagerado - por Norbert Elias e Michel Foucault. 22 Entre as mais importantesmanifestaes desta dimenso de controle estavam as tendncias homogeneizadorasdos estados modernos, especialmente a ps-revolucionria nao-estado e aconcepo do que significa ser civilizado na sociedade burguesa cristalizada,

    Estreitamente relacionadas tem sido as contradies to fortemente enfatizadaspor Weber. Assim, a segunda desta contradies foi aquela entre a dimenso criativainerente s vises que conduziram cristalizao da modernidade, as vises daRenascena, Reforma, Iluminismo e as Revolues e o esvaziamento destas vises, odesencaniamentn do mundo inerente crescente rotinizao acima de tudo nacrescente burocratizao do mundo moderno.

    Terceira foi a contradio tambm acentuada por Weber, entre uma visoexcessiva mediante a qual o mundo moderno se torna com sentido e fragmentaode tal sentido gerada pela crescente autonomia, as diferentes arenas institucionais - aeconomia, a poltica e a cultural."

    Quarta, foi a contradio entre a tendncia para a auto definio e construo de

    21 Ver em maior detalhe S. N. Eiscnstadt, Foram 7ittsl and Meanin/,; Chicago, University of ChicagoPress, 1995, especialmente o captulo Ill.22 N. Elias, 77te Colo/ Soriely, Oxford, B. Blackwell, 1983; iclem, 7'/te Civilizing' Pr'orrs.; New York,Urizen Books, 1978-1982; M. Foucault, 7/te /3irl/t o/ lhe Clinic: An Atc/tneolooy o/ Medicai P gue/nion, NewYork, Vintage Books, 1973; idem, Terlenologies oi' l/te Sel/i A Sevreinar wilh Multei /"oucaull, Amherst,University of Massachussetts Press, 1988; idem, Surveiller el Punir: Naissance de la Prison, Paris,Cal1nunard, 1975; idem, Mradne.ss atui Cirrilizalion: A lcisloiy o//rc.sanily in lhe Age o/' Reccsaa, New York,Pantlaeon Books, 1965.23 1:'ara titia muito boa ;an..lise destes problemas ver M. Weber, On C/carisma and /n.slil,ulion Jinilding:Selecied Pa./reis, Chicago, Universiiy of Chicago Press, 1968; idem, "Wissenschaftt. ais Beru(", in idem,Cesnrnnushe ,In/salze zn 11/issen.scha%lslehte, Tubingen: J. C. B. Mohr, ed. 1973, pp. 582-613; idem,"Politik ais Bei u", in idem Cesnrarrudle Poliltsc/ce Sr./tri/llen, Tubingen, , l. C. B. Mohr, 1971, pp. 505-560.

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    II

    q i i ^

  • unidades polticas autnomas - acima de todos os estados e estados-nao e ocontnuo crescimento das foras internacionais acima do controle de tais unidadespolticas auto-constitudas, aparentemente autnomas. Dadas as contnuas mudanassociais e polticas inerentes ao desenvolvimento das sociedades modernas, estatenso entre controle e autonomia constitui - como Peter Wagner mostrou - umcomponente contnuo destes desenvolvimentos. 24

    XIIEstas tenses e contradies surgiram tambm na arena poltica e tornaram-se

    manifestas nela. O trazer junto, sobretudo no despertar do Iluminismo e dasGrandes Revolues em esquemas culturais institucionais comuns, das vriasorientaes ideolgicas e institucionais e tenses institucionais que se tornaramcomponentes inerentes do programa cultural e poltico da modernidade, dadinmica poltica dos regimes modernos. Estas tenses foram grandementeintensificadas pela sua combinao com as tendncias de carismatizao do centro, absolutizao das mais significativas dimenses da existncia humana com odesenvolvimento das novas relaes centro-periferia e de um novo tipo de processopoltico nas sociedades modernas.

    A primeira destas tenses foi aquela entre a aproximao construtivista quevisiona a poltica como o processo de reconstruo da sociedade e especialmente dapoltica democrtica - para seguir as formulaes de Glande Lefort ou JohannArmason como uma activa auto-construo da sociedade igualmente como uma visoque aceita a sociedade na sua corporao concreta. 25

    A segunda destas tenses, estreitamente relacionada com a que se desenvolveu natotalidade dos programas culturais da modernidade, foi aquela entre uma visoglobal totalizando frequentemente vises utpicas e/ou comunais, frequentementeimplicando uma forte aproximao construtivista, ou, por outro lado, uma viso maispluralista que, ainda que no necessariamente negando uma aproximaoconstrutivista poltica, implica a aceitao de muitos padres de vida, de tradies econcepes de interesses sociais que se desenvolveram no seu interior. Esta tensofrequentemente aderiu com aquela entre os componentes civis e utpicos naconstruo elas modernas arenas e processos polticos, entre poltica revolucionria enorma/ e por outro lado a aceitao da sociedade na sua composio concreta,

    XIIIEstas tenses cristalizaram no domnio da ideologia poltica entre por um lado a

    legitimao da pluralidade dos interesses discretos de indivduos e grupos, e pordiferentes concepes da vontade comum, da liberdade para seguir tais interesses econcepes, e por outro lado, em orientaes que negaram a legitimidade dosinteresses privados c de diferentes concepes de bem comum e que enfatizaram areconstruo total da sociedade atravs de aces polticas. foco central destas24 Pcter Wagner, A Sociolo%y AV odern.ily, ^ iberGV and 1)isci/!f'i'ne, London, Roudedge, 19942t' C. Leforte, /)nnoemo, cevar/ l'olidcal, Themy, op. cit.; ver tambm .j. P. Arnason, "The Theory ol'Modernity anil lhe Probleniatic oIDenroceacy" Thesis 8leven, N''-' 26, 1990, pp. 20-46.

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  • tenses foi o problema do lugar da pluralidade dos interesses ( individuais ) e as suasrelaes com a constituio da vontade geral nas constituies e trabalho dosregimes democrticos modernos extremamente constitucionais.

    Os depositrios elas concepes pluralistas consideraram que quaisquer quefossem as possveis resolues entre estas concepes, elas sero alcanadas atravsdo processo poltico tal como focado no trabalho das instituies representativas ejudiciais e mediante o contnuo entrelaamento entre a sociedade civil e o estado.

    A imagem cie espelho destas vises pluralistas, das diferentes concepes dalegitimidade de mltiplos interesses privados individuais ou grupais, e de diferentesconcepes de bem comum, que se desenvolveram em ligao com as tensesinerentes ao programa poltico ela modernidade, foram o que pode ser chamadovrias orientaes colectivas ou ideologias que desposaram a primazia dacolectividade e/ou de viso colectiva. Dois destes tipos amplos de orientaes ouideologias foram especialmente importantes. Um foi alguma forma de ideologiaenfatizando a primazia da colectividade baseada em comuns atributos primordiaise/ou espirituais cia - acima de tudo - colectividade nacional. A outra e possivelmentedistinta orientao ou ideologia moderna enraizada na ideologia revolucionria, temsido a Jacobina, A essncia de tais orientaes Jacobinas ou a crena na possibilidadeele transformar a sociedade mediante uma aco poltica totalstica. Estasorientaes, as razes histricas que recuam s fontes escatolgicas medievais,desenvolveram-se plenamente em conjunto com o programa poltico damodernidade e epitomizaram a moderna transformao cias atitudes sectrias nasantinomias das c:iviliza.es Axiais.

    Os componentes Jacobinos cio programa poltico moderno tem sido manifestosnuma muito grande nfase no activismo social e cultural, na capacidade do homem,para reconstruir a sociedade de acordo cota algumas vises transcendentais, com aestreitamente ligada e muito forte tendncia para a absolutizao das maissignificativas dimenses cia experincia humana, bem como com as maioresconstituintes ou componentes da ordem social e com a concomitante ideologizaocia poltica. Tais orientaes Jacobinas tendem a enfatizar a crena na primazia dapoltica e na capacidade poltica para reconstituir a sociedade. As pristinasorientaes e movimentos Jacobinos tem sido caracterizadas por uma fortepredisposio, para desenvolver no s uma viso totalstica do mundo, mas tambmideologias totalitrias que enfatizam uma total reconstituio da ordem social epoltica e que desposaram uni forte zelo missionrio, ainda que no semprefrequentemente universalista.

    Estas orientaes tornaram-se visveis acima de tudo nas tentativas de reconstruiros centros das suas respectivas sociedades; na quase total confluncia do centro eperiferia, negando a existncia de instituies intermedirias e associaes - do quepode por vezes ser chamado a sociedade civil, fazendo confluir a sociedade civil como todo da comunidade. As tendncias de hegemonizao promulgadas pela maioriadas modernas naes-estado, especialmente aquelas que cristalizaram depois dasRevolues eram fortemente imbudas por tais orientaes Jacobinas.2626 Sobre os elementos Jacobinos nas polticas modernas ver: A. Cochin. I,a 11evolulion. el la I,ihrePerrsee, op. cit.; idem. 1,"ter/rril rlu larohirzisme, op. cit.; e J. Baechler, prefcio em idem, pp. 7-13.;F. Furet. 1lelhin/ciu;; lhe Mear :h llevoiulioo, op. cit. J. L. Talmon, 'l'he Orzpris ol'7'olalilnrianism Dento( rac ,

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  • As orientaes Jacobinas na sua , pristina forma moderna ou nas suas versesdesenvolveram-se nos vrios movimentos revolucionrios esquerdistas quefrequentemente confrontaram a primazia da poltica com a implementao doprogresso e razo. A componente Jacobina tambm apareceu em diferentesaparncias concretas e em diferentes combinaes com outros componentespolticos ideolgicos. Assim de facto, tal como Norberto Bobbio tem muitofi'eguencernente enfatizado nos. seus trabalhos, a componente Jacobina tem estadopresente quer nos movimentos socialistas, nacionalistas e fascistas, estas orientaespodem vir a tornar'-se estreitamente interligadas tal como foi em muitos movimentosfascistas e Nacional-Socialistas, com os movimentos enfatizando a primazia dascomunidades primordiais. 27 Os componentes Jacobinos tambm constituramcomponentes muito fortes de muitos outros movimentos. Tambm podiam tornar-seestreitamente ligados como nos movimentos fundamentalistas com o apoio daprimazia da autoridade religiosa. Esta componente tambm se podia tornarmanifesta em modos mais difusos, por exemplo, na peregrinao intelectual paraoutras sociedades, em tentativas de encontrar a o pleno florescimento clo idealrevolucionrio utpico 2 " e em muitas atitudes totalitrias que floresceram emdiferentes movimentos sociais e na cultura popular. Em todos estes cenrios, acomponente Jacobina ligou-se com a sua posio intelectual no respeitante sdiferentes antinomias da modernidade desenvolvidas dentro delas.

    XIVSo estas diferentes concepes da relao entre a ordem individual e social, dos

    diferentes modos de legitimao dos regimes polticos modernos, que geraramalgumas das tenses bsicas no discurso poltico moderno e na sua dinmica. Foi nointeresse da estrutura bsica do discurso poltico da modernidade que as tensesconcretas nos programas polticos da modernidade se desenvolveram -nomeadamente aquelas entre liberdade e igualdade, entre a nfase numa viso daboa ordem social e os acanhados interesses de sectores individuais da sociedade, entrea concepo do indivduo como um soberano autnomo e a nfase na comunidade,entre os componentes r-cleionais e processuais deste programa; e as estreitamenterelacionadas tenses entre poltica revolucionria e normal, e entre diferentes bases delegitimao destes regimes. No programa poltico da modernidade, estas tenses e

    New York, Ih'aeger, 1960; Ver tambm J. L. Salvadori e N. Tranfaghia ( eds ), Il Modelo PolilicoGiaco/ino e le Itivoluzione, Firenze, La Nova Italia 1984; e M. Salvador, Entope, Amrica, Marxismo,Torino, Einaudi; 1990, captulo VII. Ver tambm E. Frankel. "St.r'ukturdefekte der demokratie unddcrcn unberwindung" e "12atenmythos und soziale selbstbestimmung". In Frankel Ernest Denlsclulandanil die Wesliclreru Dem.olrralien, Frankfurt: am Main: Suhrkamp, 1990, pp. 68-95. e 95-137.,respectivamente. Um testemunho muito forte contra o nfase na " vontade comum" cm nome da"emancipao" pode ser encontrado cm 1-1. Lubbe: lxreilueil, 6all Amanzialionszwang. Die Liber'alen7)rurllolion.err und dos lvnde dei' A'lar.xislischeri Illusionen, Zuricb: Edition Interfrom, 1991.27 N. Bobbio. ll Mauro Deliu .l)eraocrazzio, Torino: Giulio Einaudi Editore, 1984:; idem, "Postfazione"In Bobbio N. Pro/ilo ldeolo{rco de/ Novecenio Ilaliruruu, Torino: Gitilio Einaudi, 1986, pp. 177-185.; N.Maueucci. "Democrazia e autocrazia mel pensiero cli Norberto Bobbio", In Per una l eoria Geniais rlellaPolilirn, Scritti dcdicatti Norberto Bobbio. Firenze: Passignili Editori, 1983,'pp. 149-179.28 S. N. Eisenstadt, '/ranscenderulol Visions, op. cit.

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  • antinomias coalesceram sobretudo na forma, para seguir a terminologia de Luebe,entre liberdade e emancipao que em alguma extenso coincide tambm com adistino de Isaiah Berlin entre liberdade negativa e positiva. 29

    Estas vrias tenses no programa poltico da modernidade estavam estreitamenterelacionadas com aquelas entre os diferentes modos de participao ou legitimaodos regimes modernos, especialmente mas no s dos polticos constitucionais edemocrticos nomeadamente entre por um lado a legitimao processual emtermos de adeso civil s regras do jogo e por outro lado em termos substantivosdiferentes; e por outro lado unia muito forte tendncia para promulgar outrosmodos ou bases de legitimao - acima de tudo, para usar a terminologia de EdwardShils, algumas primordiais sagradas - religiosas ou seculares - componentesideolgicas."

    A contradio entre por um lado a nfase numa viso circundante revolucionriaou tecnocrtica e por outro lado a aceitao da possibilidade de mltiplas vias sobreassuntos polticos e sociais, e da legitimao de mltiplos padres de vida einteresses, e o forte nfase nas regras processuais que so da essncia dos regimesconstitucionais, e as outras tornaram-se totalmente visveis nas posteriores revoluesRussas, Chinesas e Vietnamitas, mas os seus ingredientes podiam ser identificadosbastante explicitamente nos grupos jacobinos e ideologia , na Revoluo Francesa emais implicitamente, em alguns grupos puritanos, na Inglaterra, Estados Unidos,Holanda, e ele modo mais tortuoso em Frana. Em todas as sociedades posteriores foia opo constitucional republicana que ganhou o dia, 31 O reconhecimento dalegitimidade de mltiplos interesses desenvolveu-se apesar das origensrevolucionrias - na maioria destes regimes democrticos constitucionais. De facto,um dos problemas mais importantes na anlise dos modernos regimes democrtico--constitucionais, o perceber como o reconhecimento ela legitimidade de mltiplasvises da boa sociedade se podia desenvolver de tais origens revolucionrias. Masainda quando tal reconhecimento se desenvolveu ele no podia obliterar o medo dapotencial divisibilidade que podia surgir do desenvolvimento de mltiplasconcepes de interesse geral, bem como cia nfase nos interesses mltiplos ediferentes.

    Quaisquer que fossem as manifestaes concretas destas orientaes Jacobinas,ela constitui um componente contnuo do discurso moderno, do discurso damodernidade. E de lacto a contnua confrontao entre o componente e orientaoe as orientaes mais pluralistas, bem como entre diferentes ideologias Jacobinas queconstitui um dos magos centrais clo discurso da modernidade.

    O desafio da contradio, entre a viso de uma circundante, totalstica,potencialmente totalitria colectividade primordial, e/ou um compromisso com aspremissas pluralsticas constituiu um elemento inerente destes regimesconstitucionais e uri componente bsico de dinmicas polticas da era moderna.Nenhuma elas modernas democracias constitucionais e/ou liberais tem inteiramente

    29 I. licri ii. "Two Coneeprs ol Libcrty", op. cit.; H. Lubbe: 'rei/eil .dall /imanziationsztoang. Diel,iberrefro,. Tua/ilha/eu um/ das lure der 114arxislisclnrn Illusione'n, Zuric.h: Edition Lrterfrom, 1991.30 E. Shils, "Primordial, Personal, Saercd, anel Civil Ties", op. cit.31 B. Foi alia, ed., 'lhe Inventam o/' lhe Modera llepublic, Cem bridge, Carnbridgc University Press,1994.

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    revislaGE' 115

  • Ir)I

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    o

    dado - ou poder at ciar - com, quer componentes jacobinos, especialmente com asua dimenso utpica, a orientao para alguns componentes primordiais daidentidade colectiva, ou com os apelos para a ceiitralidade da religio na construode identidades colectivas ou na legitimao da ordem poltica.

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