20
EIXO BIOLOGIA, SOCIEDADE E CONHECIMENTO

EIXO BIOLOGIA, SOCIEDADE E CONHECIMENTOnead.uesc.br/arquivos/Biologia/mod4bloco2/bsc2/10EixoBSC_UD02.pdf · seguinte o mesmo autor o utiliza no título de um livro: ... de amar e

Embed Size (px)

Citation preview

EIXO

BIO

LOG

IA, S

OC

IED

AD

EE

CO

NH

ECIM

ENTO

Unidade 2A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

Autor: Lenise Garcia

Sumário

I. Introdução

II. A “ciência da sobrevivência”

III. Gravidez

IV. Células- tronco

V. Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia

VI. Tratando questões de bioética na sala de aula

VII. Referências

172 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

#M4U2

#M4U2

I. Introdução Como você terá percebido, muitos dos temas de que tratamos neste módulo

não podem ficar apenas em uma abordagem técnica, mas demandam uma abordagem ética. A ética perpassa a problemática ambiental, a biotecnologia, a vida humana, da concepção à morte. São tantas as questões biológicas envolvendo aspectos éticos que se cunhou um novo termo: Bioética.

Atividade Complementar 1

É mais fácil citar exemplos dessas questões do que definir Bioética. Comece por fazer uma listagem dos assuntos atuais da Biologia que têm sido abordados também pela vertente da Bioética. Depois, procure conceituá- la.

Ultimamente, tem sido freqüente ouvirmos falar em questões de Bioética. Mas, o que é Bioética? Uma nova área do conhecimento? Uma ciência antiga que co-meça a ter novas aplicações? Sem dúvida, seja qual for a definição que dermos, ela ganhou relevância em função do desenvolvimento de técnicas que envol-vem profundamente o ser humano, particularmente na Medicina e na Genética.

O termo Bioética é de origem relativamente recente. Nasceu na língua inglesa (bioethics) e sua rápida tradução em todos os idiomas e a difusão de seu uso, inclusive fora do ambiente acadêmico, mostra a real necessidade deste novo (?) campo do saber.

Quem o usou pela primeira vez foi o oncólogo Van Resselaer Potter, em um artigo intitulado “The science of survival” (a ciência da sobrevivência), em 1970. No ano seguinte o mesmo autor o utiliza no título de um livro: “Bioethics, bridge to the future” (Bioética, ponte para o futuro).

O surgimento de diversas linhas de pensamento, com diferentes compreensões da bioética em seus princípios e aplicações, foi também muito rápido. Nem sempre os autores são explícitos quanto à linha da bioética à qual aderem e, logicamente, há também os que mesclam princípios de linhas diversas – inclusive de modo pouco coerente. Esse contexto pode dar a impressão de que a bioética é um campo aberto a qualquer tipo de opinião, perdendo- se as suas raízes científicas e humanísticas, e cain-do no subjetivismo. Para uma melhor compreensão da questão, procurarei dar aqui uma visão sintética dos princípios orientadores e alguns exemplos práticos relativos à temática desta Unidade.

A minha posição pessoal é pública e conhecida, e penso que não seria coerente tentar fazer uma abordagem “neutra”, que aliás nunca é possível. Explicitarei, por isso, o meu modo de pensar, mas fazendo o contraponto com visões alternativas exis-tentes em outros autores, usando para isso as suas próprias palavras, em citações e referências.

II. A “ciência da sobrevivência” O pioneirismo de Potter em “The science of survival” não foi ato isolado. A pala-

vra “bioética” foi uma síntese feliz de uma preocupação bastante generalizada, espe-cialmente nos Estados Unidos, com o perigo que representa para todo o ecossistema a separação entre as chamadas “ciências naturais” e as “ciências humanas”. Partindo de uma visão comum, essa preocupação gerou, paralelamente, linhas de pensamento que evoluíram para os aspectos mais ambientais ou “ecológicos” (no sentido em que

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

173Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

se popularizou essa palavra) e os aspectos “bioéticos” que, em sentido mais estrito, di-zem respeito à biotecnologia e às questões trazidas pelo avanço das ciências médicas.

Potter trata conjuntamente ambos os aspectos, mesmo porque, sendo oncolo-gista, tratou da relação entre o câncer e a ação do homem sobre o ambiente. Segundo o seu modo de pensar, a dicotomia entre valores éticos (ethical values), que fazem parte de uma cultura humanística, e os fatos biológicos (biological facts) propicia um desenvolvimento científico -tecnológico indiscriminado e que ultrapassa limites não percebidos como tais, pondo em risco a humanidade e a própria sobrevivência da vida sobre a terra. O único caminho para refrear e encontrar soluções para essa catástrofe iminente é a construção de uma “pon-te” entre as duas culturas, a científica e a humanístico- moral. O “instinto” de sobrevivência não é suficiente, é necessária a elaboração de uma “ciência da sobrevivência”, que ele identifica com a bioética.

Conceito de Bioética

A conhecida Encyclopedia of Bioethics (New York 1978, v. I, p. 19) define-a como “estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e do cuidado da saúde, examinada à luz dos valores e dos princípios morais”. Essa de-finição cobre aspectos importantes, embora vários autores considerem que deve ser repensada, mas não abandonada.

Analisemos, assim, essa definição.

Em primeiro lugar, ela se refere a um estudo sistemático da conduta humana... examinada à luz dos valores e dos princípios morais. Percebe-se, portanto, que se trata de um “braço” da ética geral. Sua tarefa não é elaborar novos princípios éticos gerais, mas aplicar os princípios existentes ao âmbito das ciências da vida e do cuidado da saúde, em especial aos novos problemas que estão surgindo.

A tarefa não é simples, por diversos motivos.

Por um lado, perdeu-se clareza sobre o que sejam valores e princípios morais. Nesse aspecto, o mundo vive hoje uma grande contradição: ao mesmo tempo em que se recupera a necessidade da ética, por exemplo, na Educação – vejam-se os Parâme-tros Curriculares Nacionais vivemos uma crise não só de valores, mas uma crise do valor.

Entendemos aqui, por “crise do valor”, uma dificuldade em torno ao próprio conceito do que seja “valor”. Para clarear a discussão, é preciso distinguir entre os as-pectos objetivos e subjetivos, ou seja, se algo tem valor “em si” ou se tem valor “para mim”. Esses aspectos não são contrapostos, mas muitas vezes se complementam.

A muitos, a própria palavra moral parece trazer arrepios, como se significasse algo retrógrado e incômodo, ligado a regras e proibições arbitrárias; outros a usam em um sentido tão relativo, tão cambiante, que perde qualquer significado. Assim, quan-do se fala que “isso é uma questão ética”, alguns parecem interpretar como “isso é um assunto em que qualquer um pode dar palpite e ter a opinião que quiser”.

Essas visões refletem dois extremos, mas nenhuma delas tem uma perspectiva adequada da ética. Como dissemos anteriormente, é preciso verificar os aspectos obje-tivos e subjetivos a serem considerados.

174 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

1. Os aspectos objetivos:

A ética e a moral apóiam-se em algo muito concreto, nada cambiante, que é o próprio ser do homem. Não nos referimos aqui a tantos aspectos em que o homem e a mulher mostram uma maravilhosa variabilidade em seus modos de ser. Estamos falando daquilo que temos em comum, que faz com que cada um de nós seja um ser humano e não qualquer outra criatura.

Esse ser do homem é algo perdurável, que independe de tempo e lugar, raça, religião, concepção da vida... Por isso é possível destacar princípios éticos e morais permanentes e imutáveis, como fez a ONU na Declaração dos Direitos do Homem, que recentemente completou 50 anos. É certo que nesses 50 anos esses direitos conti-nuaram a ser violados em muitas partes, mas pelo menos foram explicitados, para que pudessem ser erguidos como uma bandeira pelos batalhadores da ética.

Existem, portanto, valores objetivos e imutáveis que podem guiar o educador em sua árdua tarefa de fazer uma educação para a ética.

2. Os aspectos subjetivos:

Mesmo que algo tenha valor em si mesmo – como é o caso do ser humano – pode variar bastante o modo como esse valor é percebido por diferentes pessoas e sociedades. Principalmente quando é preciso fazer uma opção excludente entre dois valores costuma haver grande controvérsia.

Essas controvérsias nunca serão sanadas totalmente. Mas pode haver uma maior convergência do pensamento e, portanto, o estabelecimento de normas éticas claras e acertadas, quando existe o diálogo aberto e construtivo e uma atitude de busca sincera do valor em si, sem deixar-se levar, por exemplo, por argumentações e condu-tas interesseiras.

Um valor ético não pode ser imposto a uma sociedade. Usamos este “não pode” em um duplo sentido: não se deve fazer isso (estamos aqui falando de uma ética da ética) e, além disso, é impossível fazê-lo realmente, pois se os princípios éticos não estiverem interiorizados dificilmente se cumprem. Mas isso não quer dizer que cada sociedade possa estabelecer arbitrariamente o seu referencial de valores.

A humanidade vem construindo a sua conduta ética, com avanços e retroces-sos, ao longo de milênios. Pensemos, por exemplo, quanto tempo foi necessário para que se superasse a mentalidade escravocrata. Podemos até perguntar-nos se ela estará realmente superada. Pensemos, também, na noção de igual dignidade entre homem e mulher, preservando, porém, suas peculiaridades. Foi um longo percurso e em muitos lugares do mundo ainda não se reconhece essa igual dignidade.

Ao dizer que essa igual dignidade não é reconhecida, estou partindo do pres-suposto de que este seja um valor objetivo. Podemos admiti-lo ou não, mas não se trata de dar valor, como se este dependesse de mim. Como você vê essa ques-tão? A dignidade humana (da mulher, do índio, do negro, do embrião...) existe, mesmo quando não reconhecida por uma sociedade?

O desenvolvimento biotecnológico coloca na pauta de discussão questões total-mente novas, que não trazem esse amadurecimento de milênios. Os antigos filósofos gregos, obviamente, nada disseram sobre clonagem. A ética de Aristóteles não se po-sicionou sobre o projeto Genoma ou sobre a reprodução assistida. Na atualidade, não poucos estão questionando, diante de avanços da Medicina e da Genética, a própria concepção clássica de ser humano.

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

175Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

Como responder a isso? Será que ao receber transfusão de sangue (humaniza-do) de um porco alguém se tornaria “meio suíno”, ou ao receber meia dúzia de órgãos artificiais se tornaria “meio robô”? Penso que essa preocupação está ba-seada em uma concepção muito pobre e materialista do que seja o ser humano. Mesmo os que não crêem em uma alma imortal em geral concordam em que existe no homem um algo que transcende o nosso corpo, que nos faz capazes de amar e de raciocinar, de pasmar-nos ante uma obra de arte ou de criá-la. Por isso os grandes artistas são chamados “imortais”...

Esse aspecto espiritual é o que faz com que cada ser humano tenha valor pró-prio, individual, intransferível. Por isso, cada pessoa merece respeito, um respeito que marca os limites da técnica. Esses limites não devem ser vistos como proibições que poderiam retardar o desenvolvimento da Ciência, mas como um norte que faz com que a Ciência se desenvolva em prol do ser humano e não contra ele.

Voltando ao que dissemos de início, é preciso lembrar que existem princípios perenes, à luz dos quais os novos problemas devem ser examinados. Não se trata de inventar ou mesmo descobrir novos princípios, mas de perceber novas aplicações dos já existentes e aceitos. Os avanços da Medicina não mudam o conceito de ser humano, assim como os nossos foguetes não mudam as leis da gravitação, mas apenas as apli-cam de modos originais.

Na verdade, é preciso distinguir a Bioética da Ética Médica, embora logicamen-te haja estreita relação.

Em fevereiro de 1991, em um Congresso Internacional realizado em Erice, com o tema New trends in forensic haematologv and genetics. Bioethical problems, foi fir-mado um documento, denominado “Documento de Erice” que definiu a com-petência da bioética nas seguintes áreas (SGRECCIA, 2002):

a) os problemas éticos das profissões sanitárias;

b) os problemas éticos emergentes no âmbito das pesquisas sobre o homem, ainda que não diretamente terapêuticas;

Reprodução as-sistida é utilizada para viabilizar a fertilização e gesta-ção em mulheres com dificuldade de engravidar. Exis-tem duas técnicas principais usadas: Inseminação arti-ficial (técnica mais antiga) e fertiliza-ção invitro.

Saiba mais...

Será a Bioética, realmente, uma área nova do saber? Poderíamos considerar o co-nhecido “juramento de Hipócrates”, por exemplo, um texto de Bioética? Para uma versão do juramento de Hipócrates: http:/ / pt.wikipedia.or g/ wiki/ Hip% C3% B3crates

Curiosidade

176 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

c) os problemas sociais relacionados com as políticas sanitárias (nacionais e in-ternacionais), com a medicina ocupacional e com as políticas de planejamento familiar e de controle demográfico;

d) os problemas relativos à intervenção sobre a vida dos outros seres vivos e plantas, microorganismos e animais e, em geral, sobre o que se refere ao equilí-brio do ecossistema.

Mais recentemente, centrando- se em aspectos legais, surgiu a disciplina do “Biodireito”, estreitamente relacionada também à Bioética.

III. Gravidez A gravidez sempre esteve relacionada a questões éticas, como o fato da criança

ser concebida ou não no contexto de uma estrutura familiar estável. O desenvolvimen-to científico -tecnológico trouxe diversas outras questões complexas, como diferentes formas de contracepção, diagnóstico pré -natal que possa envolver a alternativa do aborto, outras possibilidades de recurso ao abortamento, reprodução assistida, parto natural ou cesariana... Certamente não podemos, nesta Unidade, aprofundar em cada uma dessas questões. Diversas delas, como a reprodução assistida, serão também con-sideradas no Módulo 5.

Destacamos os vídeos da série “Vida no Ventre”, um documentário da Natio-nal Geographic, que podem ser vistos no site sugerido ao lado, mostrando semana a semana o desenvolvimento do embrião. O que vocês viram em esquemas, na Unidade de Embriologia, pode ali ser visto em imagem real, tridimensional, graças às novas técnicas que permitem isso.

O debate sobre o aborto O melhor conhecimento do desenvolvimento do embrião e do feto, assim como

das relações que se estabelecem entre mãe e filho(a), tanto biológicas como psicológi-cas, têm interferido bastante nos debates sobre a licitude (ou não) do aborto. Não há como negar que a temática é complexa, e que o mundo inteiro está envolvido nessa discussão. Nos países em que o aborto é ilegal (como o Brasil, embora a legislação abra algumas exceções de não -punição), há grupos que tentam legalizá-lo. Nos países em que é permitido, há grupos que tentam proibi-lo ou ao menos limitá-lo, com maior ou menor sucesso.

Exemplo recente dos contrastes foi o Uruguai, no qual uma lei que liberaria o aborto foi aprovada (com bastante questionamento quanto à tramitação do projeto, que pareceu ter irregularidades) pelo Parlamento, mas vetada pelo presidente. Em sua justificativa para o veto, o Presidente Tabaré Vasquez disse:

Há consenso em que o aborto é um mal social que se deve evitar. Entretanto, nos países em que se liberalizou o aborto, estes aumen-taram. Nos Estados Unidos, nos primeiros dez anos, triplicou -se, e a cifra se mantém: o uso se instalou. O mesmo aconteceu na Espanha.

A legislação não pode desconhecer a realidade da existência de vida humana em sua etapa de gestação, tal como de maneira evidente o revela a ciência. A biologia evoluiu muito. Descobrimentos revolu-cionários, como a fecundação in vitro e o DNA com a seqüência do genoma humano, deixam em evidência que do momento da concep-

#M4U2

Um site muito interessante de Portugal, dirigi-do às grávidas, mostra os diversos aspectos envolvi-dos no desenvolvi-mento do feto, com explicações cien-tíficas e também abordagem ética: http:/ / www.fede-racao vida.com.pt/ gravidez/

Internet

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

177Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

ção existe ai uma vida humana nova, um novo ser. Tanto é assim nos modernos sistemas jurídicos incluído o nosso DNA se transformou na ‘prova rainha’ para determinar a identidade das pessoas, inde-pendentemente de sua idade, inclusive em hipótese de devastação, ou seja, quando virtualmente já não fica nada do ser humano, até logo depois de muito tempo.

O verdadeiro grau de civilização de uma nação se mede por como se protege aos mais necessitados. Por isso se deve proteger mais aos mais débeis. Porque o critério não é já o valor do sujeito em função dos afetos que suscita em outros, ou da utilidade que oferece, mas sim o valor que resulta de sua mera existência.

Por seu lado, a argumentação dos que são favoráveis à liberação do aborto ten-de a focar mais a mãe do que o feto. Algum limite costuma ser colocado em relação à semana de gravidez na qual se permite o aborto. Em Portugal, por exemplo, recen-temente foi aprovada legislação que permite o aborto até à 10 a semana da gestação.

Atividade Complementar 2

Há países que permitem o aborto até à 10ª, 12ª ou 24ª semanas de gravidez. Verifique, na Unidade de embriologia ou nos sites indicados nesta Unidade, ou em outras fontes, o estágio de desenvolvimento do embrião ou feto nessas semanas. Qual é, a seu ver, o embasamento biológico para que esses estágios de desenvolvimento sejam escolhidos como um limite temporal para o aborto? Você estaria de acordo com algum desses limites?

Um caso específico: o aborto de embrião ou feto com anencefalia

A discussão sobre essa questão específica, no Brasil, foi levantada por uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF movida em 2004, junto ao Su-premo Tribunal Federal, por uma entidade de classe de agentes de saúde e apoiada por algumas ONGs. No momento em que se redige este texto, o assunto ainda não foi a julgamento. A íntegra da ADPF 54 pode ser consultada em nosso material on- line.

Segundo Moore e Persaud (2004), o termo meroanencefalia (mero = parte e a = sem) seria nome mais adequado que o popularmente usado, anencefalia, que pode induzir a um erro de interpretação (anencefalia = sem encéfalo). Os meroanencéfalos são crianças que sofrem de uma malformação do fechamento da parte anterior do tubo neural ocorrida na quarta semana do desenvolvimento embrionário. Possuem apenas parte do encéfalo, havendo ausência ou restos de estruturas telencefálicas e diencefálicas (encéfalo anterior conhecido como cérebro), mas com presença do tronco encefálico e cerebelo em graus varáveis de desenvolvimento. Em muitos fetos com anencefalia, partes do encéfalo anterior e posterior estão presentes, embora incomple-tamente desenvolvidos; autores de estudos a esse respeito dizem “rejeitar que a área cerebrovasculosa é totalmente desorganizada e que a anencefalia seja caracterizada pela ausência do encéfalo anterior” (BELL; GREEN, 1982).

A hipótese mais comum para a etiologia do problema é a malformação precoce do mesênquima entre o 18° e 20° dias, que provocaria falha de fechamento do tubo neural (veja a figura 18 da Unidade de Embriologia; na última etapa, o fechamento é incompleto). Sem o correto desenvolvimento da cobertura crania-na, haveria perda tecidual cerebral pela ação do líquido amniótico e da pressão intra -uterina aumentada.

Para ver a legisla-ção aprovada em Portugal, que per-mite o aborto até a 10° semana de gestação, acesse o site: http:/ / www.portaldasaude.pt/ NR/ rdonlyres/ 45E9069CD6E-4416FAEDD06B-4B3EF7198/0/ GuiaInformativoI-VG_DGS.pdf

Internet

Retorne à unidade de “Desenvolvi-mento Embrioná-rio” para relembrar do desenvolvimen-to das estruturas neurais.

Saiba mais...

178 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

Assim, a anencefalia não é um fenômeno de “tudo ou nada”, mas um espectro de malformações. Essa variabilidade se reflete na possibilidade de sobrevida do anencéfalo, que vai de alguns minutos a dias, semanas, meses ou mesmo mais de um ano.

A ADPF 54 usa basicamente o argumento de que solicita apenas a “antecipação terapêutica do parto” de crianças que, na verdade, não têm nenhuma expectativa de vida. A esse respeito, diz a Doutora Débora Diniz, presidente da ANIS, ONG que deu apoio técnico e institucional à ação:

Primeiramente, a anencefalia sustenta seu reinado dentre as patolo-gias por seu caráter clínico extremo: a ausência dos hemisférios cerebrais. Mas esta, no meu entender, não é a razão suficiente para fazer dos fetos portadores de anencefalia a metáfora do movimento em prol da legitimação do aborto seletivo. A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum “a ausência de cérebro”, torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível do humano. Ou, como prefere JACQUARD (A herança da liberdade. São Paulo, Martins Fontes, 1989. p. 163 74), aqueles não aptos a compartilharem da “humanitu-de”, a cultura dos seres humanos. Os fetos anencéfalos são, assim, alguns dentre os subumanos os que não atingiram o patamar mínimo de desenvol-vimento biológico exigido para a entrada na humanitude aos quais a discus-são da ISG (interrupção seletiva da gravidez) vem ao encontro.

[...]

Poderíamos refinar a discussão e adentrar em idéias citadas nos tre-chos acima selecionados, tais como de pessoa ou de anormalidade. Consi-dero, no entanto, que para fins deste ensaio basta agrupá -las sob a égide da subumanidade. Os subumanos são aqueles para quem a vida é fadada ao “fracasso” como considera DWORKIN (Life’s dominion; an argument about abortion, euthanasia and individual freedom. New York, Vintage Books, 1993), um jurista liberal norte-americano estudioso do aborto ou para quem, no mínimo, o conceito de vida não se adequa. Os subumanos são a alteridade humana extrema, aqueles não esperados pelo milagre da procriação. Nesse contexto, a situação clínica da anencefalia é esclarecedo-ra: os anencéfalos são fetos que não possuem o órgão- sede que, por seu desenvolvimento evolutivo, diferencia os seres humanos de outros animais. (DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Revista Bio-ética, Brasília, 5 (1), 1997).

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

179Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

Trago, contrapondo-me a essa argumentação, artigo de minha autoria, publica-do no “Jornal da Ciência” (setembro/ 2008):

Dois olhares distintos

No debate sobre a licitude, ou ilicitude, do aborto (sim, é aborto) de crianças anencéfalas, é difícil não só o consenso, mas o próprio entendimento no sentido lite-ral desta palavra. Ele envolve duas visões de mundo totalmente distintas.

Um grupo de opiniões move-se com parâmetros pragmático -utilitaristas. Pergunta-se para que”serve”,qual é a”utilidade” de uma criança que provavelmen-te terá pouca sobrevida.

O outro grupo, no qual me incluo, raciocina tendo por princípio a dignidade humana. Considera que a vida humana tem valor em si mesma, deve ser respeitada em todas as circunstâncias, mesmo as mais difíceis e dolorosas. Recusa-se a catego-rizar os seres humanos de acordo com sua “utilidade”.

Isso não quer dizer que não se tente argumentar na perspectiva do outro.

Para deixar asalvo, na aparência, a dignidade humana,”desumaniza- se” o anencéfalo, como se um casal pudesse gerar criatura que não fosse humana. Ou nega-se que esteja vivo, absurdo fácil de contestar, uma vez que o anencéfalo, ao nascer, é registrado, e depois de falecido recebe a certidão de óbito, ficando devida-mente certificados o seu nascimento com vida e o seu falecimento. Assim, tanto do ponto de vista médico -biológico quanto do jurídico, o anencéfalo sempre foi reconhe-cido como um ser humano vivo.

Argumenta-se, também, como se a sua perspectiva de vida extra -útero fosse nula. Mas não é isso que os dados mostram. É verdade que a porcentagem é peque-na, mas há anencéfalos que vivem uma semana, alguns meses e mesmo alguns anos. O caso da menina Marcela de Jesus tornou-se emblemático, e por isso agora tentam descaracterizá -la como anencéfala, contrapondo-se a todos os diagnósticos oficiais, e corretos. Entendamos porque não houve erro de diagnóstico no caso de Marcela:

A anencefalia é causada pelo incompleto fechamento do tubo neural, e diag-nosticada, por ultra-som, entre a décima e décima -quarta semanas de gestação, quando o corpo do embrião ou feto tem entre 3 e 9 cm de comprimento. Irá de-senvolver-se, portanto, ainda muito. A lesão encefálica também está em formação, juntamente com a criança. Se o diagnóstico de anencefalia é preciso, por se verificar a falha de fechamento na região craniana, é impossível saber, a essa altura, a gravi-dade da lesão, e se evoluirá para um caso de holoanencefalia ou meroanencefalia, se haverá um aborto espontâneo ou sobrevida de alguns meses. Por melhor que seja o médico (ou mesmo uma junta médica), ele não é futurólogo.

180 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

Como nos meses finais da gestação as imagens ecográficas perdem resolução, somente com o nascimento da criança é possível avaliar melhor o caso, e mesmo assim não é possível prever quanto tempo viverá, como ficou explicitado no caso de Marcela, que aliás não morreu em decorrência direta de sua deficiência. Com pala-vras que sei que são duras, mas que estimo verdadeiras, tive ocasião de comentar, em uma das audiências públicas no STF, que um médico só sabe com certeza quando morrerá uma criança se é ele quem marca dia e hora para matá-la no ventre de sua mãe.

No lado oposto, os que raciocinamos na perspectiva da inviolabilidade da dignidade humana, podemos argumentar, a partir de belos depoimentos dos seus pais, que também essas crianças são “úteis”, que fazem com que suas famílias vivam mais profundamente o amor desinteressado, que a sua curta vida tem um significa-do profundo. Efetivamente, temos depoimentos de mães cujos filhos viveram poucos minutos, que testemunham que essa gravidez mudou muito as suas vidas, para melhor. Fazer isso, entretanto, é fugir ao cerne da questão.

Defender a visão de mundo centrada na dignidade humana, além de garantir o direito dos anencéfalos, é um fim em si mesmo. É a afirmação de um princípio inviolável, cláusula pétrea da Constituição brasileira, o direito à vida.

Não se trata de mais um caso de aborto necessário, para salvaguardar a saúde da mulher. É preciso falar claro, seria um aborto eugênico.

IV. Células- tronco O debate no Brasil sobre a possibilidade do uso de células -tronco embrionárias

humanas em pesquisa ocorreu num contexto bastante diferente do usual. Talvez por não termos até hoje uma legislação regulamentando a reprodução assistida. Esse de-bate ocorreu no âmbito da aprovação da Lei de Biossegurança no Congresso Nacional. Importa-os em especial, neste assunto, o artigo 5 o:

Art. 5 o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de com-pletarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1 o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2 o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou tera-pia com células- tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

§ 3 o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este ar-tigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Para compreendermos melhor a problemática, é necessário aprofundar um

pouco sobre os vários tipos de células- tronco.

#M4U2

Pais que passam pela dificuldade de ter um filho anencéfalo podem encontrar apoio na experiência de outros pais que passaram pelo mesmo problema. Por isso, um casal tomou a iniciativa de abrir um site, no qual se podem encontrar outros esclarecimentos sobre o assunto: http:/ / www.anen-cefalia.com.br

Internet

A íntegra da Lei Debiossegurança, e n.11.105, pode ser vista no seguinte endereço:http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/ _Ato20042006/2005/ Lei/ L11105.htm

Internet

Para ler a Lei n. 9.434/ 1997 na íntegra, acesse o site:http://www.planalto.gov.br/ civil_03/ LEIS/ L9434.htm#art15

Internet

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

181Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

Células -tronco embrionárias O corpo humano é constituído por cerca de duzentos tipos celulares distintos,

todos eles desenvolvidos a partir de uma única célula: o zigoto. Desde que o zigoto é formado, até a fase de blastocisto, o novo ser humano é composto por células apa-rentemente sem diferenciação, que vão se multiplicando (ver figuras 7 e 8 da Unidade de Embriologia).

Desenvolvimento embrionário: do zigoto à criança.

Essas células não diferenciadas são as chamadas células -tronco. Este nome foi dado em analogia ao que ocorre em uma árvore: um tronco de árvore tem a capacida-de de originar diversos galhos e, mesmo que haja uma poda, há a capacidade de uma espécie de “regeneração” da parte cortada. No desenvolvimento normal, essas células tronco do embrião, com o passar do tempo, diferenciam-se em células com funções determinadas, formando assim os “duzentos” tipos celulares encontrados.

No caso do ser humano, apenas nos primeiros dias do embrião encontram- se células- tronco capazes de se transformar em qualquer tipo celular. Por isso são deno-minadas totipotentes. Na verdade, alguns pesquisadores da área questionam a totipo-tência, mesmo nessa fase. Magdalena Zernicka -Goetz publicou em 2002 um artigo em que mostra que já na primeira divisão do zigoto há assimetria.

Ao longo do processo, as células se multiplicam e começam a formar os tecidos, órgãos e demais estruturas do corpo humano. À medida que vai ocorrendo a diferen-ciação celular, diminui o número de tipos celulares que podem ser obtidos a partir de cada célula, ou seja, depois das primeiras fases de desenvolvimento cada célula tron-co embrionária passa a ser pluripotente. Por outro lado, essa célula está mais próxima e é mais parecida com a célula a que vai dar origem.

Podemos reproduzir in vitro, de modo direcionado e controlado, esse processo de diferenciação para qualquer célula do organismo? Para embasar -se, leia no-vamente a seção Indução, territórios presuntivos e gastrulação, na Unidade de Embriologia.

Essa é uma pergunta que ainda não tem resposta. A Biologia do Desenvolvi-mento, que é a área que estuda os processos de diferenciação celular, está em franca evolução, mas existem ainda muitos aspectos fundamentais que nos são desconhe-cidos. É com base na esperança de que esse desenvolvimento in vitro possa ser feito que muitos cientistas pretendem utilizar as células tronco embrionárias para o cultivo controlado de partes do corpo humano, visando a cura de doenças como o diabetes, doenças pulmonares, Mal de Parkinson, Mal de Alzheimer, lesões na medula verte-bral e outras.

O Instituto Nacio-nal de Saúde dos Estados Unidos tem uma página oficial na qual explica so-bre os vários tipos de células-tronco e as pesquisas que estão sendo realizadas. Em inglês: http:/ / stemcells.nih.gov/Outras informações e discussões são encontradas no site espanhol http:/ / www.arvo.net

Internet

Uma interessante discussão sobre totipotência, pode ser vista, em inglês, acessan-do o site: http:// www.freerepu blic.com/ focus/ news/ 727699/ posts

Internet

182 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

No debate e reflexão sobre as o uso de células- tronco embrionárias, será que de-vemos prestar atenção apenas nos questionamentos éticos? Que outras questões são também importantes?

A resposta é essa mesma que você certamente já deu. Ao se pensar no uso de células embrionárias, além dos questionamentos éticos, há, sim, outros problemas a serem considerados. Entre eles destacamos:

1. A possibilidade de formação de células tumorais.

Várias tentativas de uso de células -tronco embrionárias, em experimentos com animais, relatam esse problema, o que, aliás, era previsível, pois tumores cancerígenos são células que “regrediram” a um estado menos diferenciado, ou seja, mais próximo do embrionário. A formação de tumores em camundongos é o principal motivo pelo qual, até hoje, ainda não se permitiram testes clínicos em humanos com células- tronco embrionárias. Há pesquisadores da área que acreditam que tais experimentos talvez nunca sejam possíveis. Assim explica a Drª. Cláudia Batista, da UFRJ:

As células tronco embrionárias humanas se comportam de forma “controlada” quando são cultivadas em laboratório (in vitro). Mas quando são transplantadas para um organismo vivo, isto é, quando entram em con-tato com vários fatores existentes apenas in vivo, seu comportamento pode mudar drasticamente e de forma imprevisível.

Isso sugere fortemente que terapias celulares com este tipo de células sejam inviáveis em humanos pelo fato de apresentarem um comportamen-to, muitas vezes, caótico. Mas aí muitos diriam: exatamente por isso preci-samos pesquisar: para entender como estas células se comportam e, assim, desenvolver terapias com elas.

Vejamos o raciocínio. A Oceanografia Física aprende como o clima do planeta muda ao se estudar os fatores que influenciam as correntes ma-rinhas. No entanto, não se conhecem todos estes fatores e, assim sendo, a Física estuda-os, vendo os acima de tudo, com cautela. É totalmente absur-do pensar que, pelo fato de estudarem-se hoje os fatores que influenciam o clima do planeta, possa -se garantir, num futuro próximo ou não, que os cataclismos climáticos serão previstos e evitados.

Da mesma forma, pode-se aprender que uma célula -tronco embrio-nária humana torna-se inviável para terapias, ao se estudar o seu comporta-mento imprevisível dentro de um ambiente que não é o seu (um organismo vivo) e no qual, centenas, ou milhares de fatores desconhecidos atuam mu-dando caoticamente a sua conduta. A ninguém passa pela cabeça garantir que, no futuro, será possível termos terapias celulares desenvolvidas a par-tir de células -tronco embrionárias humanas. (comunicação pessoal).

2. A possível rejeição dos pacientes aos órgãos ou tecidos cultivados in vitro

Como forma de solucionar o problema da rejeição, alguns defendem a possi-bilidade de se clonarem células do paciente e utilizar os embriões formados para a obtenção apenas das células -tronco. Trata se da chamada “clonagem terapêutica”. Entretanto, é preciso considerar que não existe mais de um procedimento de clona-gem, como pode parecer ao se falar em clonagem reprodutiva e clonagem terapêutica. O que difere é o destino dado ao embrião formado, que pode ser implantado em um útero ou ser cultivado in vitro tendo seu metabolismo desviado para a formação do tecido desejado. A legislação brasileira proíbe qualquer tipo de clonagem humana.

Um importante apanhado das pesquisas com células-tronco embrionárias, hu-manas e animais, pode ser visto, em inglês, em http:/ / www.nature.com/ nature/ focus/ ste-mcells25years/

Internet

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

183Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

As células -tronco adultas

Há órgãos que têm grande capacidade de regeneração, ou mesmo que estão sendo constantemente alimentados por novas células, como a pele e o sangue. Com base nessa observação, os cientistas pesquisaram durante décadas sobre a hemato-poiese (produção, na medula óssea, das células do sangue). Constatou-se a existência de células, hoje denominadas de multipotentes, presentes não só no tecido hemato-poiético como também no cérebro, na pele, no intestino, no tecido adiposo etc.

As células multipotentes, encontradas em animais já adultos, individualmente não têm uma capacidade regenerativa tão ampla quanto as pluripotentes; porém, devido à sua abundância no corpo humano, somadas as possibilidades, é possível que sejam capazes de regenerar ou gerar toda e qualquer estrutura, assim como as células embrionárias. Na verdade, podemos pressupor que isso acontece, uma vez que exis-tem processos de regeneração em todos os nossos tecidos.

Por exemplo, as células-tronco multipotentes da medula óssea (tecido hemato-poiético) geram as linhagens precursoras mielóide e linfóide que, por sua vez, dão origem às hemácias e linfócitos; porém não são capazes de gerar quaisquer células. Contudo, foi constatado que além da produção de hemácias, elas podem também re-generar um músculo esquelético.

Em um experimento feito por intermédio da injeção dessas células tronco em um paciente imunodeficiente, elas migraram até a região lesada e regeneraram o mús-culo. Em julho de 2002, pesquisadores conseguiram através de células -tronco adultas de ratos, in vitro, gerar o timo, o que pode ajudar pacientes com câncer em tratamento de quimioterapia, que torna o organismo mais suscetível a infecções. Também pa-cientes com AIDS, que apresentam depleção diminuição dos linfócitos T pela ação do vírus, poderiam ser beneficiados por esse tratamento.

Há ainda outras vantagens no uso das células -tronco adultas:

• o sacrifício de embriões faz-se desnecessário, já que as células são retiradas de um paciente adulto, não de um embrião;

• torna-se inexistente o risco de rejeição, uma vez que a célula retirada para ser utilizada no tratamento provirá do próprio paciente;

• a célula já está parcialmente diferenciada, sendo menor o percurso a ser feito até à célula que se quer obter. Em razão dessas vantagens, já há mais de 20.000 pacientes em teste clínico para

pelo menos 73 doenças diferentes, em vários países do mundo. (Fonte: http:/ / www.stemcellresearch.org/ facts/ treatments.htm).

Células- tronco pluripotentes induzidas

No segundo semestre de 2007, dois importantes trabalhos científicos, um dos quais de um grupo norte-americano liderado pelo Dr. Thomson – o primeiro a obter uma linhagem de células -tronco embrionárias humanas (Science 30/ 11/ 2007) –, e outro, coordenado pelo Dr. Yamanaka, no Japão (Cell 30/ 11/ 2007), mostraram a pos-sibilidade de se obter, a partir de células adultas do próprio paciente, células -tronco humanas pluripotentes sem destruir o embrião. Esses estudos levaram Ian Wilmut, o “criador” da ovelha Dolly, e uma das autoridades líderes no processo de clonagem por transferência nuclear em células somáticas, a anunciar que ele e sua equipe esta-vam abandonando, por questões técnicas, a pesquisa em clonagem para fixar-se na investigação de reprogramação celular, que em suas palavras, apresenta “muito mais potencial”.

Visite o site em inglês voltado à divulgação de informações sobre os avanços nas pesquisas com células-tronco adultas: http:/ / www.repairste-mcells.org/

Internet

184 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

As chamadas células pluripotentes induzidas (iPSCs, sigla do inglês) são obti-das diretamente de células adultas, acrescentando-se um pequeno número de fatores nessas células em laboratório. Esses fatores remodelam as células ma-duras convertendo-as em células- tronco com características funcionais equiva-lentes às células obtidas de embrião. Essa técnica pode ser usada, por exemplo, para gerar linhagens específicas de células- tronco para pacientes com doenças genéticas.

A reprogramação de células humanas é um dos achados científicos mais sig-nificativos da atualidade; mais importante do que a clonagem da ovelha Dolly. Como diz o próprio Ian Wilmut, a reprogramação direta é “extremamente animadora e sur-preendente”. O poder da reprogramação direta é tal que gera células- tronco genetica-mente iguais às do paciente doador (a partir de células da pele, por exemplo). Ainda têm a grande vantagem de não serem rejeitadas e comprovadamente não gerarem tumores, de acordo com o recente anúncio de resultado positivo em experiência cien-tífica feito em publicação especializada pelo grupo coordenado pelo Dr. Yamanaka em fevereiro de 2008. No mesmo mês, foi apresentada uma significativa melhora no método de obtenção das células iPSC, num encontro sobre células- tronco, em Nova York, por John Sundsmo, presidente da PrimeGen, Irvine, CA, EUA. De acordo com Sundsmo, células de pele, de rim e retina incorporaram partículas de carbono que transportavam em suas superfícies proteínas responsáveis pela transformação dessas células em células pluripotentes, mais rapidamente e com eficiência muito maior, sem riscos de produzirem cânceres e sem haver manipulação genética. O processo está sendo patenteado.

Em 7 de abril de 2008, a Harvard Medical School, EUA, publicou a obtenção de iPSC a partir de células da pele de pacientes com oito doenças diferentes. As células foram criadas a partir de tecidos de pacientes com males como doença de Huntington e distrofia muscular.

O debate no Supremo Tribunal Federal – STF O artigo 5 da Lei de Biossegurança foi questionado pela Procuradoria Geral da

República como inconstitucional, por violar, no seu entendimento, o direito à vida. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n. 3510 acabou por ser rejeitada pelo plenário do STF, por uma votação de 6X5, no dia 29 de maio de 2008. A votação foi precedida por amplo debate e, inclusive, pela primeira audiência pública realizada pelo STF para ouvir especialistas, em 20 de abril de 2007. No artigo abaixo, publicado no site da UnB (http:/ / www.secom.unb.br/ unbagencia/ ag0407 45.htm), comento a minha participação nessa audiência.

A ovelha Dolly foi o primeiro mamífero a ser clonado a partir de uma cé-lula adulta (células mamárias), no ano de 1996. Em 1999 foi divulgado que por ter sido criada a partir de célu-las adultas, seus telômeros seriam menores que os de um adulto normal, ocasionando num envelhecimento precoce. No ano de 2003 ela foi abati-da para evitar uma morte dolorosa causada por infec-ção pulmonar. Seu corpo foi empalha-do e está exposto no Royal Museum of Scotland, em Edinburgo.

Saiba mais...

Com tantos avan-ços, não surpre-ende que James Thomson, o pionei-ro da pesquisa com células-tronco em-brionárias huma-nas, tenha abando-nado essa linha de investigação para investir exclusiva-mente nas iPSC, no Morgridge Institute for Research. Uma notícia sobre isso (em inglês):http:// www.morgrid geinstitute.org/ news/index.php? category id=3700& subcategory _id=5079

Saiba mais...

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

185Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

A que espécie pertence o embrião humano?

Lenise Garcia

O Supremo Tribunal Federal (STF) realizou na sexta-feira, dia 20 de abril, a sua primeira Audiência Pública, e senti-me muito honrada de estar entre os es-pecialistas que foram consultados. Louvo e agradeço a atitude do Ministro Carlos Ayres Britto, ao abrir-nos esse espaço democrático. O respeitoso e excelente embate científico que se travou na Audiência mostrou a sua utilidade e mesmo necessidade.

Está em discussão no STF, por iniciativa da Procuradoria Geral da Repúbli-ca (PGR), um tema tão importante quanto espinhoso, tão delicado quanto contro-verso: os direitos do ser humano em seus primeiros estágios de vida.

Os membros da PGR e os Ministros do STF possuem, amplamente, a neces-sária competência para avaliar os aspectos éticos e jurídicos da questão. Coube a nós, os especialistas convidados para a Audiência Pública, embasá -los com os aspectos biológicos.

A pergunta que nos foi feita pelo STF foi clara: “quando se inicia a vida humana?” Igualmente clara, e fundamentada cientificamente, foi a resposta dada pelos que integrávamos o grupo convidado pela PGR: cada vida humana inicia-se com a fecundação.

É interessante notar que, embora essa fosse a pergunta central, muitos dos que se posicionaram a favor do uso de células- tronco embrionárias abstiveram-se de respondê-la, não fazendo qualquer menção a ela. E, entre os que a mencionaram, alguns trataram o assunto como “insolúvel” ou referiram que“poderíamos discutir aqui dias sem chegar a uma conclusão”.

Se analisarmos historicamente, veremos que a dúvida sobre a “humanidade” do embrião em seus primeiros dias só surgiu depois que ele começou a ser obtido in vitro. Mesmo depois disso, os livros de embriologia são praticamente unânimes em manter a fecundação como o momento inicial da vida, o que está plenamente justi-ficado por formar-se, nesse processo, um indivíduo humano único e irrepetível, com uma carga genética que se expressará em todas as suas células, sendo mantida até o final da sua vida.

O verdadeiro debate é ético e jurídico, não biológico. O que está em questão não és e esse indivíduo é humano, como pretendem alguns. Como questionei em minha apresentação, “se o embrião não é humano, a que espécie pertence?” Foi uma pergunta que não obteve resposta.

186 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

O que está em questão é se todos os indivíduos humanos, mesmo que micros-cópicos, possuem a mesma dignidade e os mesmos direitos. Transformando a questão em biológica, poderíamos ter para ela uma solução técnica. Mas fica evidente que essa solução técnica não existe. O problema é ético, e assim tem de ser encarado. Somente assim poderá haver clareza sobre os princípios e valores que estão sendo debatidos e sobre as possíveis conseqüências, atuais e futuras, das decisões que, como sociedade, tomarmos.

Seja qual for o veredicto do STF, penso que a Audiência Pública trouxe uma grande contribuição para que o debate fosse colocado nos termos adequados. E de-monstrou que esse recurso democrático tem enorme potencial para embasar os grandes debates da nação.

Coloco, como contraponto, a opinião da Drª. Débora Diniz, que também parti-cipou da audiência pública e também se posicionou pelo site da UnB (http:/ / www.secom.unb.br/ unbagencia/ ag0407 46.htm).

Para os que queiram aprofundar, estamos disponibilizando no material on- line os arquivos de 2 votos opostos, o do relator, Ministro Carlos Britto, e o do Ministro Lewandowsky.

V. Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia Se o início da vida humana (e o domínio que atualmente a técnica nos permite

ter sobre ele) traz uma série de questionamentos, o mesmo ocorre com o momento da morte. Aqui, é preciso distinguir bem três conceitos recentemente criados:

Eutanásia (etimologicamente “boa morte”) é a morte suave provocada por um ato mortífero; é, em nossa legislação, considerada homicídio, mas alguns países têm aberto exceções. Pode ser: ativa, quando induzida no paciente com o uso de uma droga, por exemplo; ou passiva, quando se recusam ao paciente os meios ordinários de subsistência, como a alimentação e hidratação.

Distanásia (etimologicamente o oposto de eutanásia) é a morte dolorosa por obstinação terapêutica; os médicos não desistem de lutar contra a morte inevi-tável, fazendo o paciente sofrer inutilmente.

Ortotanásia (etimologicamente “morte correta”) significa não colocar ou sus-pender os meios extraordinários (aparelhagem de UTI, por exemplo) quando se vê que não produzem efeito e dado que o paciente ou seu representante legal o permitam. O Brasil está discutindo a legislação em torno da possibilidade da ortotanásia. É freqüente que apareçam na mídia casos- limite internacionais. Colocaremos

dois, como exemplo, para que se possa aprofundar na problemática. O primeiro deve ser lido no link, e reproduzimos o segundo:

Caso Terry Chiavo:

http:/ / www.ufrgs.br/ bioetica/ terri.htm

Caso Hannah Jones

http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL864336 15605,00 MENINA+DE+ANOS+GARANTE+NA+JUSTICA+O+DIREITO+DE+MORRER.ht ml

#M4U2

Para saber como o debate se trava em nível internacional acesse:http:/ / www.aceprensa.pt/ articulos/ 2008/ oct/ 04/ oem-briomuitomaisdo-queumpunhadode-clulas/

Internet

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

187Consórcio Setentrional de Ensino a Distância

Menina de 13 anos garante na Justiça o direito de morrer Hannah precisa de um transplante de coração.

Uma decisão da justiça britânica causa polêmica em todo o mundo. A menina Hannah Jones, de apenas 13 anos, precisa de um transplante de coração, mas não quer ser operada. E as autoridades médicas têm que respeitar a vontade da paciente.

A história de Hannah virou tema de vídeos e debates em toda parte e também na internet. Ela teve leucemia aos 4 anos. Passou por 12 cirurgias e incontáveis ses-sões de quimioterapia. A leucemia regrediu, mas os tratamentos abriram um buraco no coração de Hanna, que funciona mal e pode parar a qualquer momento.

Se a menina recebesse um coração novo, correria o risco de desenvolver leuce-mia novamente, como conseqüência dos remédios usados para evitar rejeição ao órgão transplantado.

Em pouco anos, precisaria de um segundo transplante.

Hannah então convenceu os pais de que cansou de tanto tratamento. Agora, quer ficar em paz.

“Ela tem esse direito”, diz a mãe.

Os médicos tentaram recorrer à Justiça para fazer a operação. Mas na Grã-Bretanha o conselho tutelar pode determinar se um adolescente tem ou não autonomia sobre a própria saúde. A resposta, no caso de Hanna, foi sim. No Brasil, uma decisão como essa caberia somente aos pais ou responsáveis pelo adolescente.

“As normas estabelecem que cabe aos pais, principalmente, até os 18 anos a responsabilidade de decidir se acata ou não o tratamento. Isso está até em código de ética da medicina brasileira”, aponta José Ribas Vieira, professor de Direito Consti-tucional da PUC/RJ.

Na minha percepção pessoal, o caso Terry Chiavo caracteriza eutanásia passiva, proibida no Brasil (e que assim deveria permanecer). Já o caso Hannah Jones é a legíti-ma recusa de um tratamento extraordinário, não chegando a caracterizar nem mesmo a ortotanásia, e evitando uma possível situação de distanásia.

VI. Tratando questões de bioética na sala de aula

O debate sobre questões éticas costuma ser bastante valorizado pelos alunos. É algo que proporciona um importante aprendizado, tanto no que se refere ao tema em si como às competências de argumentação, respeito à opinião alheia e outras.

Para que o debate seja produtivo, é importante que seja fundamentado. Ele pode ser um grande incentivo para que se estudem a fundo os aspectos mais técnicos. Pode acontecer como uma simples discussão orientada ou lançando mão de estraté-gias pedagógicas que facilitam a formação e explicitação de opinião.

Algumas escolas têm tido ótimos resultados trabalhando com a estratégia de júri simulado, no qual dois grupos argumentam por diferentes posições. Filmes que tratem a temática também enriquecem o debate.

#M4U2

188 Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento

A vida humana da concepção à morte: aspectos éticos

#M4U2

Atividade Complementar 3

Volte à listagem de assuntos e ao conceito de Bioética que você registrou no início deste capítulo. Reflita sobre alguns desses assuntos, tendo em conta o que dissemos aqui. Registre as suas percepções.

VII. Referências

BELL, J. E.; GREEN, R. J. Studies on the area cerebrovasculosa of anencephalic fetuses. J. Pathol. 137(4): 315 28, 1982.

MOORE, K. L.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica, 2004, 7. ed., Elsevier, Rio de Janeiro, p. 466 504.

POTTER, V. R. Bioethics, the science of survival. Perspectives in Biology and Medicine, v. 13, p. 127 153, 1970.

POTTER, V. R. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1971.

SGRECCIA, E. Manual de bioética: fundamentos e ética biomédica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

CARVALHO, A C C. Células -tronco: A medicina do futuro. Ciência Hoje, v. 29, n. 172, p. 26 31, jun. 2001.

#M4U2

B

P

BSCEixo Biologia, Sociedade e Conhecimento

189Consórcio Setentrional de Ensino a Distância