Elena Oneill (PUC-RJ) 2011 - O Cubismo de Carl Einstein (Anpap 2011)

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    O CUBISMO DE CARL EINSTEIN

    Elena ONeill PUC-Rio

    Resumo

    Para Carl Einstein o cubismo no apenas uma questo da ptica ou da teoria e sim umamodificao progressiva das sensaes; acredita que o cubismo no se restringe pinturae que a experincia visual no resultado ou efeito da obra e sim constitutiva daespacialidade da obra. O artigo aponta para a dinmica do pensamento de Einstein e parasua de alargar o campo da historia da arte mediante relaes plsticas que questionam opreconceito colonialista tanto como os limites do discurso esttico da arte.

    Palavras chave:

    cubismo; arte negra; alucinao.

    Abstract

    For Carl Einstein cubism is not merely an optic or theoretical problem but a progressivemodification of sensations; he believes cubism is not restricted to painting and that visualexperience is not the result or effect of the work: it is constitutive of the works spatiality. Thearticle aims at the dynamics of Einsteins thought and his attempt to widen the field of historyof art by means of new plastic relations that challenge colonialist prejudgments as well as thelimits of the aesthetic discourse on art.

    Key words: cubism; Negro art; hallucination.

    Em From frica, texto publicado no catlogo da exposio Primitivism in the 20th

    Century Art, de 1984, Jean-Louis Paudrat tenta estabelecer a data do encontro dos

    pintores Andr Derain, Maurice de Vlaminck, Henri Matisse, Pablo Picasso e

    Georges Braque com a arte negra, assim como reconstituir as colees de arte da

    frica desses artistas. Paudrat afirma que, passado o momento da descoberta,

    ainda que com diferentes abordagens, a aquisio de peas por parte desses

    pintores entre 1908 e 1914 confirma o interesse deles pela arte negra; varias

    fotografias no texto mostram as colees nos ateliers dos artistas. Paudrat tambm

    afirma que, nesse mesmo perodo, muitos dos fatos relativos escultura negra

    podem ser rastreados ou relacionados com Joseph Brummer, escultor hngaro

    estabelecido em Paris como marchand que contribuiu tanto criao do interesse

    quanto difuso da arte negra em Praga e Budapest antes da Primeira Guerra.

    Brummer freqenta colecionadores, artistas e marchands de arte moderna, entre

    eles, Daniel-Henry Kahnweiler, Paul Guillaume, Douanier Rousseau, Picasso e

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    Braque. Foi o prprio Brummer quem financiou a edio e forneceu a maioria das

    imagens do Negerplastik de Carl Einstein, publicado em 1915.

    Negerplastik o primeiro texto dedicado escultura negra entanto criao artstica.A diferena do Iskusstvo Negrov (A arte dos negros) de Vladimir Markov,1escrito em

    1914 e publicado em Petrogrado em 1919, Negerplastik traa o paralelismo, no a

    influncia, entre a problemtica do cubismo e a arte africana, destacando a

    tridimensionalidade desta. Negerplastik confronta o espectador com objetos

    originrios das colnias francesas, alems e belgas que resolvem questes

    semelhantes s que os cubistas tentavam solucionar. E,se bem que os cubistas se

    interessavam basicamente em pintura e buscavam um modo no ilusionista de

    representar o volume, a lio que eles tiram da escultura negraresulta fundamental

    para o espao criado pela escultura e sua existncia no espao como volume. O

    problema do cubismo era a representao do espao na pintura: pensemos nas

    colagens de Picasso e Braque, nas tentativas de introduzir o relevo para evitar a

    sombra simulada do chiaroscuro, no abandono da imitao, na busca da criao de

    novos signos plsticos, na superposio de planos que so a transposio, e no a

    imitao, de meios escultricos na pintura. Porm, a escultura da frica no era a

    nica referncia deles. Para o valor em si dos elementos da composio e para a

    relao das formas entre si, para criar um ordenamento libre sustentado pela viso

    interna do artista, tambm foi fundamental a avidez construtiva e a luta por conciliar

    naturalismo e construo de Czanne; sua tentativa de geometrizar os objetos, sua

    renncia perspectiva, ambiguidade espacial, multiplicidade de pontos de vista,

    seu uso estrutural da cor, sua libertao da forma natural e dos cnones

    acadmicos.

    Alm de ser um manifesto cubista, Negerplastik uma discusso com as

    noes de espao, escultura e pintura de Adolf von Hildebrand, escultor e autor de

    Das Problem der Form in der bildenden Kunst (O problema da forma na obra de arte,

    1893), e com as categorias de Heinrich Wlfflin, crtico de arte e autor de

    Kunstgeschichtliche Grundbegriffe (Conceitos fundamentais da historia da arte,

    1915). O termo plastik, que significa literalmente realidade concreta e objetiva da

    forma, pertence tradio alem e, portanto, est carregado de ressonnciasclssicas e neoclssicas que o inserem na tradio dos tericos austro-alemes,

    como, por exemplo, Fiedler, Wlfflin, Riegl e Worringer.2

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    As imagens de Negerplastik pertencem arte negra, porm Einstein no se refere

    especificamente a nenhuma das numerosas imagens de mscaras e esculturas que

    aparecem no texto. Einstein esclarece a confuso na Europa entre pictrico e

    plstico (termos empregados pelo Hildebrand em O Problema da Forma na Obra

    de Arte), estabelece como a escultura negratrata a forma e o espao, e afirma que a

    deformao pressupe um modelo. Aproximando arte moderna e escultura negra,

    analisando a arte africana a partir de categorias no-africanas, Einstein prope outro

    entendimento do objeto como forma: a partir da condensao das experincias do

    espao e no a partir de uma projeo num plano de fundo. Pressupe uma

    reestrutura da viso sem referncia a um repertrio de imagens, prprias de uma

    obra ou gnero de arte, de um artista ou de um perodo artstico. Coloca a arteafricana junto ao cubismo, entende-os como modos de pensar e ver. Nesse

    confronto, ao colocar lado a lado solues diferentes para a problemtica da

    representao do espao, alm da destruio da homogeneidade da hierarquia

    esttica dominante, se estabelecem novas relaes: objetos que at esse momento

    eram considerados de interesse passam a ser considerados de arte. No por ter

    sido visualmente imitados por alguns ou por ser objeto de fruio esttica por outros,

    mas sim pela conexo com os objetivos estabelecidos pelos cubistas: a criao derealidades plsticas com existncia autnoma e que transmitem a experincia vivida.

    A importncia do Negerplastik est na analise da escultura negra segundo

    postulados no enunciados explicitamente no texto, como, por exemplo, a

    complexidade espacial cubista. Se pensamos a viso como construo cultural e a

    perspectiva como intento de fixar processos instveis da viso e do pensamento,

    junto mudana na recepo da escultura negra, at esse momento considerada

    objeto etnogrfico, podemos vislumbrar uma mudana de paradigma, um colapso

    nos modos tradicionais de representao e viso. Se Einstein tem um olho capaz de

    entender o cubismo para alm da pintura, possvel pensar Negerplastik como

    tentativa de liberar a escultura da predominncia do plano pictrico frontal de

    Hildebrand? possvel recuperar a dimenso conceitual da experincia que

    caracterizou as investigaes de Masaccio e Brunelleschi com a perspectiva como

    modo de construo?

    Einstein afirma que

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    h alguns anos, vivemos na Frana uma crise decisiva. Graas a umprodigioso esforo de conscincia, percebeu-se o carter contestvel desseprocedimento. Alguns pintores tiveram suficiente fora para se desviar deum mtier feito mecanicamente; uma vez desligados dos procedimentoshabituais, eles examinaram os elementos da viso do espao para

    encontrar o que bem poderia engendrar e determinar. Os resultados desseimportante esforo so bastante conhecidos. Naquele momento descobriu-se a escultura negra e reconheceu-se que, em seu isolamento, ela haviacultivado as formas plsticas puras (EINSTEIN [1915], 2008, p. 167).

    Segundo Einstein, o cubismo e os cubistas defendem a autonomia do quadro e a

    capacidade de inveno e transformao do real, indissociveis de um novo modo

    de olhar. O ato visual, ao apagar a dicotomia sujeito-objeto, cria uma nova

    realidade e no uma metfora, o primeiro cubismo em vez de mostrar o resultado

    de uma observao, mostra o resultado de uma viso no interrompida pelos

    objetos.3Para Einstein, necessrio restituir ao homem sua capacidade criadora.

    Para captar a complexidade do cubismo em seus comeos, consideramos

    fundamental a figura de Daniel-Henry Kahnweiler. Junto com Carl Einstein, ele

    manteve um intercambio intelectual intenso com Derain, Vlaminck, Braque, Picasso,

    Leger e Gris; tambm, segundo o prprio Kahnweiler, ele manteve uma amizade de

    mais de 30 anos com Einstein. Na carta que escreve a Kahnweiler em junho de

    1923, Einstein esboa seu engajamento com uma arte capaz de criar uma realidadeformal autnoma e afirma a liberdade do homem.

    Nessa carta, Einstein afirma que

    h muito tempo que isso que chamamos de cubismo supera de longe pintura. O cubismo no pode se sustentar sem criar equivalentes psquicos.Os literatides mancam real e lamentavelmente a reboque da pintura e dacincia com seu lirismo e suas pequenas sugestes de cinema. Eu sei hmuito tempo que possvel no apenas transformar a percepo mastambm transformar o equivalente lingstico e as sensaes [...]

    Veja bem, cada um sente em si mesmo a variao da sensao do tempo,aumentar e diminuir, em fora, durao, na interpretao do sentido dotempo, etc. E a combinao das palavras e dos acontecimentos sedesenvolve nos romances como se um acontecimento se desliza-se apsum outro no mesmo ritmo, com a mesma significao Temporal, etc.Colocamos o sentimento no lugar da sensao do tempo: qualquer um selembra de sua amada ou se entrega consideraes. Mas, em realidade,observando bem, vivemos as coisas de outro modo. Ao mesmo tempo, paramanter a expresso lingstica, e por medo linguagem, no arremetemoscontra a experincia vivida, e sim colocamos palavras que expressamobjetos em vez de sensaes, como se tudo se jogasse sobre uma telapsquica, sobre a superfcie de um filme, como em Brgson ou nosFuturistas. por esse motivo que eu quis escrever esse relato [ Bebuquin],

    despedaar a palavra, para mostrar como um homem simples luta contraessa linguagem convencional. Porque no acredito que as convenescontinuaro sendo sempre aquilo que o mais simples, apenas porque umdia, talvez, elas foram-no [...] Examine ento a forma de viver as

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    experincias, a profundidade da experincia, em outras palavras, acomplexidade temporal que alcanada em um nico lance e logofragmentada e descrita. No me refiro dinmica bergsoniana, anlise,mas justamente ao fato de que exclumos elementos importantes daexperincia na representao, provavelmente sem necessidade. De onde

    se deduz a insuficincia da linguagem. (In: EINSTEIN, 1993, p.48-51.Traduo livre).

    Para Einstein, o cubismo no apenas uma questo ptica: uma questo visual. A

    viso no apenas a percepo do mundo exterior pelos rgos da vista: olhar

    agir e ver significa ativar o real ainda invisvel; 4 ver para Picasso uma luta

    dialtica para suprimir a realidade mediata.5 Se para Einstein o cubismo uma

    experincia visual, pertinente apontar para o fato que seu entendimento do

    cubismo no era um formalismo. Segundo Meffre (1996), Carl Einstein valia-se do

    termo vision, emprestado do francs e utilizado freqentemente em alemo, porque

    designava tanto o ato de ver como aquilo que visto.

    Einstein defende uma viso ativa e autnoma, uma alternativa frente crena

    ingnua de que o espao e a viso so estveis e constantes. Em vez de variaes

    metafricas de um modelo idealizado ou observado, o cubismo oferece o resultado

    de um processo visual no interrompido pela verificao do objeto. Segundo ele, a

    perspectiva renascentista prejudicou a viso plstica ao confundir massa comvolume, e chama isso de preenso pictrica do volume.6O volume no se identifica

    com a massa e sim com a totalidade dos movimentos oculares descontnuos. O

    cubismo no imita o volume: incorpora os atos oculares simultneos ao trabalho

    (que tinham permanecido inconscientes at ento). Para Einstein, o projeto cubista

    a figurao pictrica de processos visuais e mentais, no a representao do objeto.

    Em Georges Braque, de 1934, Einstein afirma que a fixao do espao a partir da

    perspectiva renascentista tornou a arte em um meio ao servio da ordem, o que

    envolve uma rejeio pejorativa de todas as camadas inquietantes ou ativas fora do

    domnio da razo.7 A exigncia formal do cubismo a decomposio da forma,

    passa pela redefinio dinmica da experincia espacial e pelo estmulo ao

    pensamento. O cubismo diz a respeito percepo do espao e do processo da

    viso, que Einstein chama de intervalo alucinatrio. No se refere a uma iluso e

    sim a uma intensificao dos sentidos, a um acesso a outro estado de conscincia;

    consiste em levantar as barreiras da conscincia. Segundo Einstein, o projeto

    cubista no a representao do objeto. O projeto cubista aponta para o processo

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    visual e mental de desmontar trabalhosa e minuciosamente o espao unificado da

    perspectiva. Um outro processo visual por parte do observador remonta outro

    espao, aberto, descontnuo, heterogneo. O objeto, resultado desses processos,

    autnomo, independente, desligado do aspecto real. O objeto se transforma em

    resistncia s tentativas de normatizar a experincia.

    Aproximadamente da mesma poca que os textos de Carl Einstein, Passagens

    (1927-1940), de Walter Benjamin, um compndio de situaes e experincias

    urbanas justapostas que refletem a estrutura arquitetnica, a fantasmagoria, as

    arquiteturas de vidro e ao e as galerias de Paris. Benjamin radicaliza e politiza o

    conflito entre arquitetura burguesa e arquitetura industrial. Segundo ele, as vistas

    da cidade desde as construes de ao so privilgio exclusivo de engenheiros e

    proletrios e, valendo-se de um pensamento potico, reconstri o passado atravs

    de fragmentos e detalhes. De modo semelhante, referindo-se a Breton, afirma que

    ningum havia percebido de que modo a misria, no somente social como a

    arquitetnica, a misria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes,

    transformavam-se em niilismo revolucionrio.8Essas imagens dialticas, definidas

    por Benjamin como lampejos ou epifanias, so extradas de um tempo histrico

    homogneo e de uma escrita lineal da histria, para se tornar memria assombrada

    por uma revoluo falida, permeada pela melancolia; a histria para Benjamin a

    histria tal como permanece na sua memria, no a histria tal como aconteceu. A

    experincia vivida para Benjamin a crise, a decadncia, a conscincia lcida

    imersa na catstrofe: uma experincia que se vale da alegoria e da metfora.

    Entretanto, para Einstein, a experincia vivida tanto a experincia pessoal do

    criador como a tenso entre experincia da arte e sua teorizao, experincia naqual o homem cria a realidade e reinventa o mundo. O desafio de Einstein colocar

    em palavras a experincia espacial vivida e tentar ultrapassar os limites da

    linguagem e da realidade. Em 1930, a propsito de Picasso, Einstein afirma:

    poderamos dizer que a condio fundamental de suas pesquisas e descobertas a

    destruio dialtica da realidade.9A uma forma realista, Picasso ope o realismo da

    forma: nem copia nem reproduz objetos, ele os cria. Inventa seu prprio bestirio:

    um mundo de seres mitolgicos pertencentes a um imaginrio coletivoaparentemente simples, construdo disciplinadamente e apresentando mltiplas

    configuraes espaciais. Os seres mitolgicos articulam processos psquicos e

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    formas estticas que atuam como barragens, eliminando as barreiras intelectuais da

    conscincia; permitem acessar as camadas mais profundas da psique, evitam

    experincias onricas que isolam. A existncia autnoma da obra de arte se

    relaciona com o mundo entanto objeto formal inserido no mundo. O quadro atua

    como funo, encruzilhada de foras.

    Embora esse Picasso seja diferente do Picasso das colagens, tambm o inclumos

    dentro do cubismo. Primeiro, porque na mesma carta a Kahnweiler citada acima,

    Carl Einstein diz que o cubismo no se sustentaria se fosse apenas uma questo

    visual. Segundo, porque a ativao das camadas psquicas mais profundas a que

    se refere Einstein no est restrita tcnica da colagem. Por outra parte, Kahnweiler

    se refere a Bebuquin como romance cubista. Nesse romance, Einstein desafia as

    leis da escrita na tentativa de renovar o signo, toma distncia frente s estruturas e

    mentalidade da poca e participa do acontecimento vivenciado pelo autor (sugerido

    pela presena constante de espelhos). Bebuquin no admite nenhum narrador,

    nenhuma intriga, nenhuma histria; o protagonista/anti-heri uma hiptese no

    plausvel de ser comprovada, Bebuquin no um personagem de carne e osso.

    Bebuquin, oder die Dilettanten des Wunders (Bebuquin, ou os diletantes dos

    milagres) consta de vrios episdios, complementares ou dspares, sem origem nem

    fim precisos, atravessados por reflexes sobre a morte, a ideia platnica, Deus e

    outros conceitos.

    Pensar o cubismo de Picasso como a destruio dialtica da realidade, ao mesmo

    tempo em que a dialtica se confronta com o mundo da vida, as formas cubistas se

    tornam vises concretas e autnomas, livres de qualquer intento de verificao. A

    viso se torna uma luta dialtica para suprimir a realidade mediata, nas palavras deEinstein.10Pensar as formas cubistas como manifestaes das contradies sociais

    e como desafio s convenes do passado, agentes ativos de ordens do passado

    que continuam a estruturar nossa experincia do mundo. Para Einstein, as formas

    cubistas so construes tectnicas, inventrio de experincias novas, signo de uma

    metamorfose: a recusa do mundo dos sentidos entanto condio da pintura, o fim

    da unidade otimista entre realidade e quadro; esta no era mais uma alegoria, nem a

    fico de outra realidade [...] podemos falar de uma ascese anloga dos msticos,de uma recuada ao territrio da viso autnoma.11

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    Einstein defende uma arte direcionada contra a ordem visual existente. Para

    Einstein, a verdade na arte (se que podemos cham-la verdade) radica no homem

    que constri e inventa uma realidade mediante processos visuais, atividade subjetiva

    e intelectual. O cubismo parece ter o potencial para desintegrar essa ordem

    existente e ser o signo de um ser humano visualmente ativo. Para ele, a capacidade

    de transformao do cubismo indissocivel de uma viso nova, de um espao

    pictrico gerado por solues tcnicas novas: o cubismo mostra algo que no existe

    antes do ato da viso. Ao separar a imagem do objeto, ao excluir a repetio, ao

    abolir a tautologia, ao eliminar a memria como mecanismo para adaptar objetos e

    noes, o quadro no se torna fico de uma outra realidade, e sim uma realidade

    com suas prprias condies.12A sombra no um duplo do objeto, mas uma dasnumerosas emanaes do homem que lhe so dialeticamente contrrias. um

    antagonista, e Janus no mais o reflexo do Eu e sim um signo de contradio e

    metamorfose.13

    Esta interpretao do cubismo por parte de Carl Einstein pode parecer contraditria.

    Porm, acredita numa arte viva que assume o risco da metamorfose e da crise:

    detrs da aparente incoerncia e descontinuidade entre as colagens e o bestirio de

    Picasso, continua agindo a destruio dialtica da realidade. Porque, como

    descobriu Bebuquin, no fim de uma coisa no se encontra o seu superlativo e sim o

    seu contrrio (EINSTEIN [1912], 1987, p. 98).

    1 Vladimir Markov (1877-1914), pintor, terico da arte e membro fundador da Sojuz Molodezbi (Sindicato daJuventude) de So Petersburgo, sociedade de artistas da vanguarda russa responsvel de exposies,conferncias, espetculos, trs nmeros de uma revista e diversos textos e manifestos . Segundo Paudrat, asimagens de Iskusstvo Negrov (A arte dos negros), fora as reprodues dos Anais do Museu do Congo Belga

    (1905), as fotografias originais correspondem a objetos que pertenciam a colees etnogrficas pblicas devrias cidades, com exceo de duas fotografias de um mesmo objeto, pertencente a Joseph Brummer. Asimagens de Negerplastik, a diferena das do texto de Markov, pertencem a objetos de colees privadas. Jean-Louis Paudrat e Ezio Bassani identificaram e localizaram a origem das obras apresentadas em Negerplastik.2Segundo Liliane Meffre, a exceo de D.H. Kahnweiler, estes tericos eram desconhecidos no circuito de Paris.Outro crtico de arte, Waldemar George, tambm reclamava do fato de os crticos franceses no passaram porcursos de esttica (MEFFRE, 1989, p.8-9). Se bem que nada impede que as obras de arte respondam a leis,como tentavam demonstrar os modernos, de fato a arte responde espontaneamente a leis, independentemente emuitas vezes por motivos contrrios inteno dos crticos.3EINSTEIN, Carl. Notes sur le cubisme [1929]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p.30.4Segundo Liliane Meffre (1996) esta citao foi agregada mo no manuscrito alemo de Georges Braque,Werke 3, p.253. In: Les Cahiers du Muse Nationale dArt Moderne N 58, p. 29. Note sur le Trait de la Visionde Carl Einstein .5EINSTEIN, Carl. Picasso [1930]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p. 39.6Em Notes sur le cubisme, de 1929, Einstein define o volume como a totaliza o dos movimentos pticosdescontnuos. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p. 30.7EINSTEIN, Carl. Georges Braque[1934], 2003, p.71.8BENJAMIN, Walter. In: Obras escolhidas. Magia e tcnica, arte e poltica, 1996. O surrealismo. O ltimoinstantneo da inteligncia europia(1929), p.25.

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    9EINSTEIN, Carl. Picasso [1930]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p.38. Na nota de rodap, Meffre dizque esse texto faz parte da revista Documents n3(1930), dedicada a Picasso. Marcel Mauss e Eugne Jolas,editor da revista transitions, entre outros colaboradores regulares da revista e amigos do prprio pintor,participam da homenagem a Picasso.10

    EINSTEIN, Carl. Picasso [1930]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p.39.

    11EINSTEIN, Carl. Notes sur le cubisme [1929]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p. 28.12EINSTEIN, Carl. Notes sur le cubisme [1929]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p. 31.13EINSTEIN, Carl. Picasso [1930]. In: Ethnologie de lart moderne, 1993, p.38. Janus um deus romanorepresentado por duas faces opostas (nota de L. Meffre).

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    1930). Traduo, apresentao e notas de Liliane Meffre. Marseille: Andr Dimanche

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    Elena ONeill

    Arquiteta pela Universidad de la Repblica, Uruguay, e Mestre pelo PPGARTES/UERJ.Atualmente doutoranda em Historia Social da Cultura pela PUC-Rio.