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PELOSO AUGUSTO, Paulo Roberto. (2016) Elgar: o enigma das variações. Per Musi. Ed. by Fausto Borém, Eduardo Rosse e Débora Borburema. Belo Horizonte: UFMG, n.35, p.147‐178. 147 DOI: 10.1590/permusi20163508 ARTIGO CIENTÍFICO Elgar: o enigma das variações 1 Elgar: the enigma of the variations Paulo Roberto Peloso Augusto Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. [email protected] Resumo: Reflexões analíticas sobre como as Variações Enigma de Edward Elgar inserem‐ se no epicentro de uma das técnicas mais instigantes da composição musical. A partir de uma abordagem plural, discutem‐se aspectos importantes de harmonia, análise, história da música e história da arte. No âmbito do gênero das variações com caráter de desenvolvimento, o criptograma manifesto pelo próprio compositor recebe aqui uma sugestão inédita para sua solução. Palavraschave: Variações Enigma de Edward Elgar; análise musical e criptograma; música inglesa sinfônica. Abstract: Analytical reflections on how Edward Elgar’s Enigma Variations fit into the epicenter of one of the most exciting techniques of musical composition. Departing from a plural approach, it discusses important aspects of harmony, analysis, music history and art history. In the context of theme and variations genre with developmental character, the cryptogram manifest by the composer himself receives here a novel suggestion for a solution. Keywords: Enigma Variations by Edward Elgar; cryptogram in music; symphonic English music. Data de recebimento: 12/12/2015 Data de aprovação final: 15/04/2016 1 Este artigo é parte substancial da conferência submetida à Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos exigidos para participar da prova de promoção para professor titular. Proferida em 08/05/2015 (Resolução 08/2014 do Conselho Universitário/UFRJ).

Elgar: o enigma das variações 1

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DOI:10.1590/permusi20163508

ARTIGOCIENTÍFICO

Elgar:oenigmadasvariações1

Elgar:theenigmaofthevariations

PauloRobertoPelosoAugustoUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,RJ,[email protected]:ReflexõesanalíticassobrecomoasVariaçõesEnigmadeEdwardElgarinserem‐senoepicentrodeumadastécnicasmaisinstigantesdacomposiçãomusical.Apartirdeumaabordagemplural,discutem‐seaspectosimportantesdeharmonia,análise,históriada música e história da arte. No âmbito do gênero das variações com caráter dedesenvolvimento, o criptograma manifesto pelo próprio compositor recebe aqui umasugestãoinéditaparasuasolução.Palavras‐chave: Variações Enigma de Edward Elgar; análise musical e criptograma;músicainglesasinfônica.Abstract:Analytical reflections on how Edward Elgar’s EnigmaVariations fit into theepicenterofoneofthemostexcitingtechniquesofmusicalcomposition.Departingfromapluralapproach,itdiscussesimportantaspectsofharmony,analysis,musichistoryandarthistory.Inthecontextofthemeandvariationsgenrewithdevelopmentalcharacter,thecryptogrammanifestbythecomposerhimselfreceiveshereanovelsuggestionforasolution.Keywords:EnigmaVariationsbyEdwardElgar;cryptograminmusic;symphonicEnglishmusic.

Dataderecebimento:12/12/2015

Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016

1EsteartigoépartesubstancialdaconferênciasubmetidaàEscoladeMúsicadaUniversidadeFederaldoRiode Janeiro,comopartedosrequisitosexigidosparaparticipardaprovadepromoçãoparaprofessortitular.Proferidaem08/05/2015(Resolução08/2014doConselhoUniversitário/UFRJ).

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1‐Umapropostadeintegraçãointerdepartamental

Otemadapresenteconferênciaemergiu,nãosó,porcausadocaráterinstigante,repleto

deinteressedoassuntoemquestão,comotambém,decididamente,pelodesejodereunir,

numa abordagem integrada, aspectos importantes de harmonia, análise, história da

músicaehistóriadaarte,quesãominhasáreasdeatuaçãonaEscoladeMúsicadaUFRJ.

Paramelhor compreender asVariaçõesEnigmade Elgar, compositor inglês que viveu

entre 1857 e 1934, situando‐a no contexto em que foi originada, em 1899, seria

importante investigar, inicialmente,ogênerovariaçõesenquanto formaesuastécnicas

ramificadasno âmbito da composição.A linguagemharmônica desempenhapapel não

menos importantequandosetratadeperceber,detalhadamente,aarquiteturadesons

que dão arcabouço a esta técnica, cuja primeva origem remonta aos compositores

medievais.

Oenigmaaqueserefereotítulo,tantodasvariaçõesquantoodapresenteconferência,

certamente é um aspecto artístico. Não só nesta composição, como em outras obras

musicais, a presençadeumenigma temdespertadoa atençãodevários estudiososda

música, desejosos de lhes compreender o fundamento, como num criptograma.

Certamente,quantomaiscomplexa forasoluçãoparaumenigmadeumaobradearte

provocativa,tantomaiorseráointeressepelacriptografiaenvolvida.

Comoelucidaçãodestaassertiva,mencionoatãoespeculadaemisteriosaepígrafemusical

queBeethoven inseriuno iníciodoquartomovimentodoQuartetono16op.135para

cordas,finalizadopoucotempoantesdesuamorte(KINDERMAN,1995,p.51).Epigrafou

o compositor: “A difícil decisão”, que inicia pela pergunta formulada pelo violoncelo e

viola,simultaneamente:“Temqueserassim?”,aoqueosdoisviolinosrespondem:“Tem

que ser assim!” (BEETHOVEN, 1985, p.20). Independente do fato de esta pergunta e

resposta,àmaneiradeumantecedenteeumconsequente,forneceremomaterialtemático

e subsequentedesenvolvimentoparaestemovimento,permaneceaquestão: aque se

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referiria Beethoven, nesta que foi uma de suas últimas obras conclusas? Ao destino

implacável?Aumabrincadeiraentreeleeumdevedor,quelheperguntarasetinhamesmo

quepagar?

Estáclaroquenãoéapresençadoenigmaquedásentidoàobradearte,masomesmo,

certamente, cria uma grande expectativa em torno damesma, provocando o processo

intelectual de análise da criação, como ferramenta de estudo, que se engaja emnovas

frentes,comoanteriormentefizeramKERMAN(1970),KINDERMAN(1991)eLOCKWOOD

(2004),relativamenteàobradeBeethoven.Poroutrolado,sófazsentidoapresençade

umcriptograma,seoconteúdoartístico‐musicalemqueomesmoestáimersoestiverbem

associadoaumapropostatextural,formaleharmônicaconsistentes.

2‐Presençadogênerovariaçãonahistóriadamúsica

Considerando, inicialmente, variação como a arte de comentar repetidamente uma

enunciaçãotemáticaacadavezdemaneiradiferente,percebemos,nodecorrerdahistória

damúsica,o surgimentoea transformaçãode técnicasasmais complexasenvolvendo

possibilidadesdevariações.

Somosremetidos,porexemplo,àépocadeAntoniodeCabezón,compositorespanholque

sedestacou,emespecial,nestapropostacompositiva,naprimeirametadedoséculoXVI.

Formas por ele consolidadas, os tientos, glosados e principalmente as diferencias,

transformaram‐se, no âmbito da música instrumental em referências, influenciando

compositores,quese lheseguiram(NELSON,1962,p.8).Emespecial,asconcepçõesda

arte de variarmais empregadas, ou seja, com cesura entre uma variação e a seguinte,

tornaram‐se características por facilmente permitir a identificação individual no

referencialdeumasequênciadevariações,emgeralnumeradas.

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Favorecendo a arte da improvisação, tão cara aos compositores barrocos,

privilegiadamente,despontaramrecorrentementeaschaconas,passacalhase,sobretudo,

obassoostinatoeéclaro,posteriormente,assonatas.

Dentre a extensa amostragem de coleções de variações barrocas e clássicas basilares,

podemosdestacarasVariaçõesGoldbergdeBach,comcesurasentreastrintavariaçõese

cujo baixo se apresenta à maneira de uma chacona (SCHULENBERG, 2006, p.369).

Também as 33 Variações sobre um tema de Diabelli de Beethoven, que a tantos

impressionou por sua ousadia, como a SCHOENBERG (1969, p.91), e, segundo Alfred

Brendel, “O tema, em vez de ser confirmado, adornado e glorificado, foi melhorado,

parodiado, ridicularizado, transfigurado, erradicado e, finalmente sobrevalorizado”

(BRENDEL,2001,p.114).

AtéoséculoXVIII,oprocessodevariaçãoatuava,preferentemente,nalinhamelódica,no

acompanhamento,naharmonia,natextura,emcriaçãodelinhaspolifônicaseimitativas.

Aschamadasvariaçõesampliadoras,que,porvezes,aumentavamconsideravelmenteo

númerodecompassosemrelaçãoaotemaoriginal,tambémganharamprogressivamente

mais espaçonos conjuntos de variações, na passagempara o séculoXIX. Variaçõesno

caráterdo tema, levandoemcontaas flutuaçõesentreomodomaioreomodomenor,

assimcomovariaçõesatuandonadinâmicaenaagógica,nãoesquecendoasflutuaçõesnas

alteraçõesdecompassos,gerandoritmosdançantestãodiversos,nosdãocontadeque

antes da era romântica não havia aspecto na arte de variar que não tivesse ainda

provocadointeresse.Eassim,justamente,surgidocomoumaconquista,pelaimplantação

como prática corrente na música durante o romantismo, sedimentou‐se, como

preferência,ocarátercíclicodascomposições.Osqueseautoproclamavamcompositores

da“músicadofuturo”(ZAMACOIS,1983,p.216),que,emsuamaioria,nãoeramafeitosà

manutenção da sobrevivência do passadomusical clássico, comoLiszt, César Franck e

Wagner, entre outros, acabariam, consequentemente, por revolucionar o conceito de

variação,atéentãovigente.

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Umobjetivoimplícitodasformascíclicasé,justamente,evitarafragmentaçãododiscurso

musical,compelindo‐oaumaunidadenarrativamaiscoesa.Alémdisso,favorececomeste

procedimento,queomaterialtemático,quedáorigemacomposição,emgeralresumido,

seja explorado o mais intensamente possível. Em síntese, as técnicas de ampliação

desempenhamumpapeltãovitalnestetipodecomposição,como,porexemplo,nasonata

cíclica,quevãofavoreceraexpansão,emtodosossentidos,datécnicadodesenvolvimento

musical. Estepassa aocupar lugardeprimeiraordemna elaboraçãodamúsica e será

aclamado,juntamentecomavariação,comodoisdosprincipaisfundamentosdaartede

compor.

3‐Variaçõescomcaráterdedesenvolvimento

Setomarmos,porexemplo,asVariaçõesSinfônicasparapianoeorquestradeCésarFranck,

compostas em 1885, observaremos o que Robert NELSON (1962, p.112) chamou de

variações livres, jáqueas cesurascadenciadasnãoestãomaispresentes. Indicaçõesna

partitura prenunciam o início de algumas variações, porém fica evidente a integração

contínuaentreasmesmas,pelaausênciadefragmentação,queatéentãopulverizavaeste

tipodecomposição(DAHLHAUS,1988,p.5).Entretanto,eeisaíalgodignodenota,ocorre

a ausência do entendimento temporal da variação no sentido linear, em relação à

construção do tema principal como um todo, incorporando, até mesmo, um caráter

“rapsódico”, revestindo‐se as variações de uma configuração formal própria de um

“desenvolvimento livre” (NELSON, 1962, p.119). Ou seja, para além de variar o tema

proposto,Franckpreocupou‐seemdesenvolvercertosmotivosimpactantesdotemaem

si,associandofluentementeàtécnicadavariaçãoadodesenvolvimento.

A estruturação do desenvolvimento, que durante o classicismo ocupara um lugar

equilibrado,emespecial,naFormaSonata,passou,tempestivamente,nodionisíacoséculo

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XIX,2adesempenharopapelpredominantenascomposições,emespecialnaquelascom

caráter cíclico. Se, em acréscimo, a estas formas cíclicas o compositor impregnasse o

caráterprogramático,tãocaroàestéticaromântica,quesenutriadasfontespoéticas,a

possibilidade de redimensionar as combinações estruturais da música seria, então,

imprevisível.ApalavradeordemapartirdoúltimoquarteldoséculoXIX,emmatériade

variaçõescomcaráterdedesenvolvimento,passouaseraeconomiadeideiastemáticas,a

partirdomotivogerador,pretendendoextrairomáximopossívelderesultadosnacriação

devariações,comomínimoderecursospreviamenteoferecidos.

4‐Enigmasecriptogramasmusicaisemvoga

aotempodeElgar

Acrescentamos,poroportuno,umoutroaspectodegranderelevânciaquenosconduzirá

igualmenteà compreensãodo contextonoqual asVariaçõesEnigma deElgar estavam

imersas. Uma aproximação da natureza dos criptogramas musicais, cujos mistérios

poderiamterseduzidoElgarnotranscursodoséculoXIX,nospermitirá,quiçá,lançaruma

luznaquestãoquecontextualizouoenigma,tãoexcitantenestacomposição.

Inicialmente,umtipodecriptogramaquesetornouomaisrecorrentenamúsicadesdeo

final da IdadeMédia, foi o que imaginou associar as letras de nomes a notasmusicais

(NOTATION,1980,p.348).Entretanto,serianecessárioaguardaroperíodobarroco,para

que tal procedimento recorrente se transformasse numa prática reconhecida entre os

2 Entretanto seria interessante, para nosso objetivo, recordar variações sobre temas, que apresentamsimultaneamenteas características clássicase românticas,do livredesenvolvimento.Nas25VariaçõeseFugasobreumTemadeHändelop.24,compostasporBrahms,em1861,notam‐seperfeitamenteascesuras,àmaneira clássica, separando variações, que são numeradas. Contudo está presente com intensidade atécnica do desenvolvimento livre, a que podemos também nos referir como variações com caráter dedesenvolvimento.ComentáriosimilarpodemosinferiraoanalisarmosasVariaçõessobreumtemadeJohannSebastianBach,op.81(1904),deMaxReger,quetomouporparadigmaapropostaformalconcebidaporBrahms,masaprofundou intensamentea técnicadavariação comcaráterdedesenvolvimento (FRISCH,1984,p.24).

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compositores. Damesma forma, a partir da segundametade do século XIX, houve um

ressurgimentodestacuriosaeocultamaneiradecompor.

Zarlino,naobraLeIstitutioniHarmonichede1558,afirmaqueJosquindesPreznaMissa

HerculesDux Ferrariaede 1503, associou cada vogal deste nome a uma notamusical,

atravésdoprocessode solmização, açãoqueo teórico renascentista chamoude “tema

extraído das vogais destas palavras” (NOTATION, 2001, p.349). Quando, porém, os

criptogramaspassaramaenvolvernomescomletrasdoalfabetorestante,queescapavam

àsimplesescaladiatônicadeAaG(LáaSol)esuasoitavascorrespondentes,surgiram

duassoluçõesdiferentes,emespecial, conhecidascomométodosalemãoefrancês,que

acenderamacaloradosdebatesacercadequalseriaomaispertinente.Odespeitofranco‐

germânicoforaespevitadonocenáriosombrioàsvésperasdaPrimeiraGuerraMundial.

Coube,entretanto,aométodofrancês,decriptografarnomesemmúsica,consolidadono

finaldoséculoXIXporSaint‐Saëns,fomentareampliarolequedepossibilidadesparao

empregodosdiversosnomesemmúsica.

Aseguir,mencionamostrêsexemplosdecriptogramas.NaFigura1,observamosonome

BACHemdisposiçãocruciforme.

Figura1:Nome[B–A–C–H]emdisposiçãocruciforme.

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NaFigura2,estãorelacionadasas“esfinges”quesãoaorigemtemáticadoCarnavalOp.9

deSchumann.

Figura2:Esfinges[S–C–H–A]e[A–S–C–H]noCarnavalOp.9deSchumann.

A figura 3 ilustra o emprego das letrasmusicais ASCHBEG contidos no sobrenome de

ArnoldSchoenberg,utilizadaspeloprópriocompositornoseuKlavierstückOp.19nº1.

Figura3:ONomedeSchoenbergcriptografado[A–S–C–H–B–E–G]noseuKlavierstückOp.19nº1.

JáatabeladaFigura4demonstraaversatilidadeepraticidadefrancesaparacriptografar

nomesemmúsicanestemodeloadotadonoséc.XIX.

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Figura4:Tabelademétodofrancêsdecriptografiamusicalnoséc.XIX.

5‐“Amúsicaéumamatemáticamisteriosa”

Como nos lembra DEBUSSY (1903, p.1) na frase acima, é importante frisar que os

criptogramasmusicais não se limitam a associar letras, nomes aos sons emensagens

ocultascifradas.ApartirdoséculoXV,acomposiçãomusicalincrementouumaexcitante

aproximaçãocentradanadimensãomatemática,que,aliás,vemaserarcabouçodamúsica.

AmemóriasemprecelebraquedesdePitágoraseateoriamusicaldaGréciaClássica,a

relaçãoentrenúmerosesons,nãosóacústica,temsidoumaconstanteduranteahistória.3

DuranteaIdadeMédia,amúsicaintegravaosquatro“saberesexatos”doQuadriviumao

ladodaaritmética,dageometriaedaastronomia,emsintoniacomacondiçãodedisciplina

matemática, comoentãoera entendida.Alémdadimensão teóricaeacústica, aprática

musicaltambémincrementouprocedimentosmatemáticosnacomposição.

Entretanto,por constataruma influênciadecisivadamúsicadeBach sobreElgareem

especialnasVariaçõesEnigma,revelamosqueestecompositorbarrocointegrava,desde

1747,aSociedadedeCiênciasMusicais,fundadaem1738(GEIRINGER,1985,p.104),cujo

3 Na porta da Academia de Platão vinham escritas as seguintes palavras: Ἀγεωμέτρητος μηδεὶς εἰσίτω,significando“Nãodeixenenhumignoranteemgeometriaentrar”(PAULOS,1985,p.13).

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objetivoeraestudarasrelaçõesentremúsicaematemática.Paraaíseradmitido,compôs

umCânontriploenigmáticoaseisvozesBWV1076,denotóriacomplexidade.

Projetandoumolharemdireçãoàantiguidadeclássica,notamosque,sibilinamente,para

Vitrúvio(séculoIA.C.),oarquitetodeveriaterconhecimentosdemúsicaparaquepudesse

entender as leis das proporções matemáticas. Num contraponto arguto, exprimiu‐se

Goethe: “a arquitetura é uma música petrificada” ao que Xenákis metonimicamente

contrapõe:“amúsicaéumaarquiteturamóvel”(ZAMACOIS,1983,p.182).

6‐UmElgarenigmático

Associandoestasreflexõesaotemaoraemtela,vislumbramosoqueseráapresentadoà

frente,afirmandoqueEdwardElgarutilizounãoapenasum,masvárioscriptogramasem

suasVariaçõesEnigmaenãosónestacomposição,masemoutrasdesuaautoria(DE‐LA‐

NOY,1984,p.55).Em1897,Elgarenviouumacarta cifradaparaDoraPenny,umadas

futurashomenageadasnasVariaçõesEnigma.Consisteemumconjuntodeoitentaesete

caracteres escritos em três linhas, realizado a partir de um alfabeto de vinte e quatro

símbolos,queconsistememum,doisoutrêssemicírculos,orientadosemalgumadasoito

possíveis direções, com um ponto na terceira linha. Apesar dos esforços, estimulados

institucionalmentepelaSociedadeElgardeLondres(THEELGARSOCIETY,2014),quea

cadaanopromoveconcursoscomoobjetivodeseperscrutarosignificadodestebizarro

texto,nuncasechegouaumaconclusãosatisfatória,nemmesmoaprópriadestinatária,

Dora(RILEY,2007,p.77).

Alhures,apósElgarterdestruído,insatisfeito,omanuscritodeseuprimeiroconcertopara

violino, compôsumsegundo,que em1910,FritzKreisler estreou‐o,poisomesmo lhe

haviasidodedicadopeloautor.Apesardosesforçosparaqueesteviolinistagravasseesta

obra,coube,narealidade,aojovemYehudiMenuhinregistraremdiscopelaprimeiravez

esteconcerto.Apartituradestapeça,traz,emespanhol,umadedicatóriaenigmática:“Aqui

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está encerrada elalmade...”, uma citação extraída danoveladeAlain‐René Lesage.Da

mesma forma, esforços foram envidados para se descobrir a quem se referia esta

dedicatória, seguidamisteriosamentede cinco reticências, e porque logoemespanhol,

porémigualmentefrustradasassoluções(MENUHIN,1976,p.85).

7‐ContextualizandoElgarnamúsicainglesa

ObritânicoGustavHolst(1874‐1934)exclamou,aoouvirpelaprimeiravezasVariações

EnigmadeElgar,que“músicaassimnãosurgianaInglaterradesdeamortedePurcell”

(RUSHTON, 1999, p.1). É tempo, como se percebe, de situar o enigmático compositor

atuantenaInglaterraVitorianadofinaldoséculoXIX.Antes,nãoobstante,existeumponto

nodalaseresclarecido,quevem,aserestaafirmaçãotãosignificativadeHolst,poisentre

amortedePurcelleasVariaçõesEnigmahaviamsepassadotrezentosequatroanos.

Uma breve análise histórica poderá auxiliar a comprovar o por quê desta situação

anacrônica.Umrecuonotempo,postoquebrevemente,embuscadefundamentaçãode

hipóteses,poderiatrazerumaluzsobreotema.Atítulodecomparação,constata‐seque

naAlemanha,duranteoséculoXVI,aReformaProtestantefoicatalisadoradeprocessos

artístico‐culturais florescentes, como a valorização cada vez mais intensa de um

nacionalismoembrionário,queiriarefletir‐sefortementenamúsica,dandoorigem,por

exemplo,ànotávelpráticadocoralluterano.Bach,seriaoexpoentedestemodusfaciendi

(GROUTePALISCA,1988,p.277).

JánaInglaterra,aReformaAnglicanaresultoureversamente,poisnumareaçãoextremada

e imprevisível, houve um tremendo choque entre a severidade da nova religião e as

práticasmusicaisentãoflorescentes,hámuitoconsolidadas,quetantosedestacaramno

cenárioContinental,levandoaumaestagnaçãodaproduçãomusicalvocaleinstrumental.

Seriaprecisoaguardarochamadorenascimentomusicalinglêsnoséc.XIX,impulsionado

pela reforma educacional deGladstone. Esta favoreceria indiscutivelmente a produção

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musical,atendendoaosanseiosdaaltaburguesiaemascensão,sequiosadelegitimar‐se

atravésdenovossímbolosmusicaisingleses,paraassistiraosurgimentodecompositores

representativos, genuinamente britânicos (HARPER‐SCOTT, 2009, p.42). Em especial,

nestemomento,destaca‐seocompositordasVariaçõesEnigma,Elgar,querepresentaeste

novoimpulsosocial,poissendooriundodeumafamíliapobre, filhodeumafinadorde

piano e autodidata, galgou uma colocação respeitável, graças a seus méritos. Era um

compositorcompletamenteprofissional,nãosubservientedeoutrostrabalhos,comoera

costume em sua época. Não obstante, no início de sua carreira, até 1890, ter

desempenhadomodestastarefaspúblicas,nuncateveumcargooficial,podendocomisso

dedicar‐seinteiramenteaoseuidealismomusical,reforçadoporumabagagemdetécnicas

eexperiênciasnãocomunsnaInglaterradaépoca(PARROTT,1971,p.24).

Estaliberdadedeexpressão,desvinculadadeamarrasoficiais,permitiu‐lhebuscaruma

formadeexpressãomusicalcommaisliberdade,maisapropriadaasualinguagem.Abriu‐

se,portanto,aoromantismoclássicodeMendelssohneBrahms,bemcomoàspropostas

deLiszt,WagnereRichardStrauss,comoprovaseuoratórioOsonhodeGerôncio,de1900,

queadmirouaopróprioStraussemDüsseldorf.Damesmaforma,ovigorharmônicodo

eslavoDvoraktranspareceu,notadamente,sobreseuConcertoparavioloncelo(HARPER‐

SCOTT,2009,p.98).

8‐AsVariaçõesEnigmaeosenigmasdecadavariação

Contextualizando, então, a inserção de Elgar no panorama do chamado renascimento

musicalinglêsnoséculoXIX,devemosinferir,queforamjustamenteasVariaçõesEnigma

que o alçaram à fama. E um dos índices deste sucesso seria testemunhar que Gustav

Mahlerseinteressoutantoporestasvariaçõesparaorquestra,quepromoveuaestreiadas

mesmas emNova Iorque, em 1910 (SIRMAN, 2006, p.32). Reforçando esta auspiciosa

constatação, os russos Rimsky‐Korsakov, notável orquestrador, e Alexander Glazunov,

então diretor do Conservatório de São Petersburgo, promoveram, entusiasticamente,

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apresentações destas variações na Rússia. Além destes, entre os seus admiradores

encontravam‐se Jan Sibelius, o programático Richard Strauss, VaughanWilliams e, na

célerelinhadotempo,ojovemIgorStravinsky(YOUNG,1973,p.23).Éprecisosaberque

esta obra, na origem, foi improvisada ao piano por Elgar, em 21 de outubro de 1898,

estandoemcasaetendosuaesposaAlicecomoouvinte,queadmiradaestimulou‐opara

queamesmafosseescrita.Estelogoaceitouasugestãoenoanoseguinteomanuscrito

estavanasmãosdeseuamigo,Jaeger,dafirmaNovello,paraimpressãoe,atocontínuo,

cativandoopúblicoemWorcestersobabatutadeHansRichter,em19dejunhode1899

(RILEY,2007,p.234). “Aosmeusamigos intimamenteretratados”(KENT,2012,p.202).

Esta é a dedicatória de Elgar aos personagens que, demaneira enigmática, aparecem

citados nas quatorze variações. Dois sucedâneos que surgem, em cada variação,

concorremparaaludira cadaamigo, comevidentedestaqueparasuaesposaAliceeo

editorJaeger.Ouseja,umtraçoemparticulardapersonalidadeassociadoaumasituação

vivenciadaporElgareoretratado,explorando,naorquestra,umaspectodescritivona

música.

8.1‐OTemaoriginal

Otemadasvariações(ELGAR,1899,p.1‐3),comoumtodo,possuidezessetecompassos,

estruturado como uma pequena forma ternária a b a’, com uma barra dupla simples

sinalizandoo fimdomaterial temáticoprincipalao finaldosextocompasso(BARLOW,

1983,p.175),doqualtudooquevemaseguiréderivado.Existeumaelisãoentreofimda

seçãoaeoiníciodaseçãob,quandooacordecomumdeSolMaiordá,aomesmotempo,o

sabordeumaterminaçãopicardaeo iníciodeumanova frasenohomônimomaior.A

partirdaí,atéofinaldotema,háumaexploração,potencialmenterítmica,mastambém

melódicadomotivogerador,queaparecejánoprimeirocompasso,noprimeiroviolino.

Os intervalos mais empregados na frase inicial são as terças e as sétimas, que serão

exploradasnodecorrerdacomposição.Otemaapresentaocarátermoltoespressivo,no

tomdeSolmenor,quesealternacomohomônimomaiornaseçãob.Segundoopróprio

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Elgar a introspecção do tema representa “o sentido de solidão do artista” (KENNEDY,

2004,p.44).Porfim,otemaseprolongaemdireçãoàprimeiravariação,semumacesura

perceptível, em virtude de dois compassos que desempenham o papel de transição

inserida.

8.2‐AsVariações

Comoditoanteriormente,asvariações(ELGAR,1899,p.4‐128),emsuagrandemaioria

são separadas por cesuras e bem cadenciadas, obedecem ao plano das variações com

caráter de desenvolvimento. O emprego do material motívico é muito distinto, tanto

rítmica quanto melodicamente, mas recursos como aumentações, diminuições,

ampliações,mudançadetonsemodulações,inversões,imitaçõeseinserçãodesegundas

melodiascontrapontísticas,sãofrequentes.Édesesalientarqueoincisoinicialdomotivo

geradordaobra,integrantedochamadoenigma,édetodaaextensãodotemaofragmento

maisutilizado,lembrandoqueemnenhummomentootemaévariadoporinteiro,como

seria a prática clássica. Curiosamente, os “amigos intimamente representados” são

designados, nos subtítulos das variações, através de abreviaturas, ou seja, pelas letras

iniciais de seus nomes ou então por codinomes, à guisa de um disfarce (KENT, 2012,

p.223).

8.3‐VariaçãoI“C.A.E.”

Dedicada à sua esposa, Caroline Alice Elgar, que se casou com o compositor contra a

vontadedopai,quenãoaprovavaasdiferençasreligiosas,elaanglicana,elecatólicoepor

causadofuturopoucopromissor,naépoca,dofilhodeumafinadordepianos.Osrelatos

são,entretanto,deumcasamentomuitobem‐sucedido.Estavariaçãoapresentanãosóum

caráter expressivo, como traz ummotivo secundário composto por quatro notas, que

representaumassobiolúdicoecúmplicecomqueElgarseautoanunciavaaochegarem

casafazendo‐senotarporsuaesposa.

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Segundo suaprópria afirmação, “aprimeiravariaçãoé realmenteumaprolongaçãodo

tema, que flui romanticamente com delicadas adições. Aqueles que conheceram C.A.E.

entenderãoestareferênciaàquelacujavidaeraromânticaededelicadainspiração”(DE‐

LA‐NOY,1984,p.89).

8.4‐VariaçãoII“H.D.S‐P”

OretratadoaquiéHewDavidSteuart‐Powell,queeraumconhecidopianistaeintérprete

demúsicade câmara. Seuhábito dededilhar e improvisar, explorando a extensãodo

teclado,antesdecomeçarqualquerexecução,éaquihumoristicamenterepresentadocom

umalongasucessãodesemicolcheias,sugerindoumatoccatacromática.

8.5‐VariaçãoIII“R.B.T.”

OutroamigodeElgar,RichardBaxterTownshend,professordeOxford.Avariaçãoprocura

descreverumhomemidoso,comvozgrave,masàsvezescomunsagudosdesoprano,em

falsete. Sua figuraexcêntrica,deumhomemqueseserviadeumtriciclo comsininhos

chegandoemOxfordparaasaulas,despertavaaatenção.Ouseja,háumalinhamelódica

paradescreveravozinstáveldopersonagemeoutradistintaparafigurarseuexcêntrico

passeioemtriciclo.Oambientegeralremeteaogostoaristocráticotípicodaépoca.

8.6‐VariaçãoIV“W.M.B.”

WilliamMeath Baker, fazendeiro emHasfield, um apreciador deWagner, que se auto

reconheciacomoalguémenérgicoeríspido.Éavariaçãomaiscurtadetodas.

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8.7‐VariaçãoV“R.P.A.”

OpianistaamadorRichardPenroseArnoldéaquirepresentadopordesenhosmelódicos

ascendentesedescendentestípicosderápidaspassagenspianísticas.Estavariaçãonão

termina por uma cadência, mas se insere na seguinte. Em um esboço referindo‐se ao

personagemaludido,Elgaranotamaisumaenigmáticacitação:TheImportanceofbeing

Earnest,comédiadeOscarWilde,comtraduçãoambíguaemportuguês:Aimportânciade

serErnesto;ouHonesto,jáquesetratadeumtrocadilhoeminglês.Defato,nãopareceser

umaalusãosimpáticaaoretratado,poisnestapeçaWilde,comhumorcáustico,satirizaa

sociedadevitoriana,seuspreconceitos,suahipocrisiaeseugostopelasaparências.Dois

rapazesquefingemsechamarErnestoparaconquistarumamoça,quegostadehomens

assimchamados,sãoopanodefundoparaseevidenciarumaeliteparasitária,orgulhosa

donadaquerepresenta.

8.8‐VariaçãoVI“YSOBEL”

IsabelFittoneraumaviolista,alunadeElgar,queaquiérepresentadaporumafrasena

violasolista,atravésdeumexercíciotípicoparaosprincipiantesdesteinstrumento,cuja

dificuldade vai aumentando, progressivamente, através de um processo de variação.

Notar, entretanto, que o caráter associado à mesma é inegavelmente amoroso. Esta

variação,emDóMaior,trazumcontrapontofeitoàbasedoincisoinicialdotemaprincipal,

enigma.

8.9‐VariaçãoVII“TROYTE”

ArthurTroyteGriffith, arquitetoepintordepersonalidadeagitada,eraumdosamigos

mais íntimos de Elgar. Bem ao estilo damúsica programática, esta variação descreve

burlescamente, nos tímpanos e cordas graves, sua total incompetência como pianista

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amador.Fragmentosdotemasãoaídesenvolvidos,comumavibrantetransformaçãode

dinâmicanosmetais,pararepresentarumaintensatempestadequeossurpreendeuaoar

livre,forçando‐osabuscarabrigo.

8.10‐VariaçãoVIII“W.N.”

WinifredNorburyeraumadassecretáriasdaSociedadeFilarmônicadeWorcester.Nesta

variação,aimpressãoaristocráticaoriundadoséculoXVIII,secontrapõenofinalàtípica

risadinha,quecompunhaumdostraçosdapersonagemretratada.Umanota–Sol–faza

ligaçãoentreestaeapróximavariação.

8.11‐VariaçãoIX“NIMROD”

Talvez sejade todas a variaçãomais conhecidae expressiva.Nimrodéo codinomedo

melhoramigodeElgar,quetrabalhavaparaacasaEditoraNovellodeLondres.Háuma

correlaçãocuriosaassociandoNimrod,ocaçadorrebeldecitadonoGênesiseosobrenome

deAugustusJaeger,queéorepresentadoaqui,poisJaegeremalemão‐Jäger‐querdizer

caçador.Maisumenigma,estefacilmentedecifrável.Ahistóriaqueinspirouestavariação

teveuma importânciadecisivaparaavidaartísticadeElgar.Emmaisdeumaocasião,

referiu‐seaofatoque,numparticularmomentodedepressão,pensandoemabandonara

carreiradecompositor, emvistadasevidentesdificuldadesqueamesmaapresentava,

recebeuoestímulodecisivodoamigoeeditorJaeger.InsistindocomElgar,paraquenão

largasse de maneira nenhuma a composição, apesar de todos os revezes; num

determinado momento, mencionou Beethoven, a quem não faltaram desgostos, mas

semprecompunhacadavezmaise intensamente.Paracompletardisse:“Eéassimque

você temque proceder!” e cantou amelodia inicial do segundomovimento da Sonata

PatéticadeBeethoven (PARROTT,1971,p.53).Tal impressãoexerceusobreElgaresta

intervenção,que,posteriormente,aocomporapresentevariação,aí introduziulogono

início uma ligeira referência à referida melodia de Beethoven. Disse ele a sua amiga

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Dorabella:“Nãoaouvelogonoinício?Somenteumadica,nãoumacitação”(RUSHTON,

1999,p.158).Porisso,chegou‐seaacreditarqueestapequena“dica”serianarealidadeo

enigma central da peça como um todo. Atualmente, esta variação isoladamente é

executadanoReinoUnidoemmomentosdegrandecomoção.

8.12‐VariaçãoX“DORABELLA”

Estecodinomeitalianorefere‐seaDoraPenny,umaamigadequemocompositorretratou

nasmadeirassuainsistentegagueira,àmaneiradeumaparódia,porémcarinhosa.Elgar

confidenciou‐lheváriosdetalhesdacomposiçãodasvariações,menos,éclaro,doenigma

principal.Masdisse‐lhecertavez:“Vocêaindanãoadivinhou?Experimentedenovo.Bem,

euestousurpreso.Eupenseiquedentretodasaspessoasvocêadivinharia.”Nãoquereria

dizer com isso que a filha de um clérigo, habituada às citações bíblicas, deveria estar

familiarizadacomasoluçãodoenigma?(PARROTT,1971,p.47).Maisàfrenteretornarei

aestaideia,desenvolvendo‐a.

8.13‐VariaçãoXI“G.R.S.”

OperfeccionistaGeorgeRobertSinclair,organistadaCatedraldeHereford,dispunhade

umatécnicaextraordináriadepedaleira.Masaocontráriodoquesepoderiaimaginar,esta

variaçãonãoseocupadeórgãos,virtuosismooudecatedrais,massimdeumbulldog,cão

do organista e que era muito querido por Elgar. Certa vez presenciaram uma cena

pitoresca em que o cão caia de um barranco num rio, nadava contra a correnteza e

finalmente alcançava a terra firme com evidente satisfação. “Coloque isto emmúsica”,

disse‐lheSinclair(RUSHTON,1999,p.48).Elgarfê‐lonestavariação,ondeotemaprincipal

vem transfigurado, dividido em três elementos, com as seguintes representações: no

primeiro o bulldog caindo no rio, com o tema precipitando‐se descendentemente. No

segundo,o cãonada rioacima, cujoagitadomovimentoéumacitaçãoclaradomotivo

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inicial do Exercitium para pedaleira em Sol menor (BWV598) de Bach. E no terceiro

momento,achegadafelizdocachorro.

8.14‐VariaçãoXII“B.G.N.”

Outro músico camerista, amigo do compositor. Desta vez Basil George Nevinson,

renomadovioloncelista,comquemElgarfrequentementetocava.Assim,decididamente,o

violoncelotemaquisuapredominância.Semumapausadeencerramento,ofinaldesta

variaçãoattaccaaseguinte.

8.15‐VariaçãoXIII(***)Romanza

OutroenigmadeElgar,qualseriaoamigointimamenteretratadonestavariação?Temum

subtítulosugestivoRomanza,masafinalaquemserefere?Muitoseespeculousobreas

probabilidades e possivelmente deve referir‐se a uma mulher, dada a indicação da

Romanza.

Arazãodenãorevelaronometalvezseprendaàsuperstiçãodonúmero13,popularna

Inglaterra.Masexistemdoisoutrossinaisquemostramtratar‐sedeumaamiga,realizando

umaviagemdenavio,talvezderetornoàInglaterra.Especulou‐setambémacercadeum

amorsecreto...Aprimeira,emuitoevidente,éacitaçãoanotadaentreaspaspelopróprio

Elgarnapartitura,queéextraída indubitavelmentedaAberturaemRéMaiorop.27de

Mendelssohn,intituladaMarcalmoeviagempróspera(BARLOW,1983,p.302),naqualo

compositoralemãoinspirou‐seemdoispoemasdeGoetheparacompô‐la.Osegundosinal,

nãotãoevidente,masmuitológico,éolongoecontínuorufardetímpanosempppque

aparecefrequentementenesta13avariação,quesuscitaalembrançadoruídosurdoda

antiga maquinaria dos navios a vapor. O ambiente geral é de grande melancolia

(PARROTT,1971,p.67).

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8.16‐VariaçãoXIV“E.D.U.”

Destavez,opróprioElgarvemretratado,utilizandooapelidoalemão,comquesuaesposa

ochamava,Edu(Edoo).Acitaçãomotívicadoassobio,ouvidona1avariaçãoéoqueo

caracteriza musicalmente, mas dois outros trabalhos temáticos são ouvidos com

frequência neste finale, que conclui triunfalmente. Certamente a relembrança das

variações,quesereferemaosdoispersonagensmaisadmiradosporElgar,têmpresença

destacadaaqui, adesuaesposaeadoamigo Jaeger.Masdevemos jásublinharquese

tratamdevariaçõesdestasduasvariações,bemcomoasdosdemaisamigos,queaparecem

emmenorgrau.

9‐Oenigmaprincipaleumapropostadesolução

A partitura autógrafa desta composição traz simplesmente o título de “Variaçõespara

OrquestracompostasporEdwardElgarop.36”.Porém,acimadotemainicial,aparecea

palavra “Enigma”, adicionada a mão, presumivelmente a pedido de Elgar, pelo editor

musical Jaeger, o “Nimrod” da variação IX, que trabalhava, como dito, para a Editora

NovellodeLondres.Nestalocalização,otermo“Enigma”nãoseriaotítulodacomposição,

mas uma sugestão para o tema, talvez os primeiros compassos. Contudo, na partitura

impressaem1899,quetrazotítulo“VariaçõessobreumTemaOriginal”,otermo“Enigma”

aparececentralizado,logoabaixode“Variações”,implicandoumaforteconexãoentrea

palavraeaobraporinteiro(ELGAR,1899,p.1).Umavezqueestaprimeiraediçãotinha

completa aprovaçãodeElgar e elepróprionuncadeixoude estimular as especulações

acercadoenigmapresenteemsuaobra,nãohárazãoparanegarapresençarealdeum

criptograma,jápresentenotemainicial,equeseestendeeseconectaportodaaobra.

Certamente,nuncafaltaramoscéticos,quecolocaramemdúvidaenegaramapresençade

tal enigma, alegando muitas vezes tratar‐se de uma trama burlesca por parte do

compositor.

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Aqueseaplicariatalenigma?Assim,éimportantesaberquetodaadiscussãooscilaem

tornodomistério,segundooqualotemaoriginal,quedáorigemàsquatorzevariações

seguintes,éderivadodeumaoutramúsica,aqualElgarnuncarevelouaidentidade.Pode‐

seinferirdaíqueotemaprincipal,elemesmo,poderiaserumapossívelvariaçãodeuma

peçadesconhecida,eisentãoacaracterizaçãodoenigma,queéoquefinalmenteproporei.

Elgarlevouparaotúmuloasoluçãodestemistério,porémreferiuaDoraPowell,queé

retratada na variação X, que “é tão conhecida estamelodia, que é extraordinário que

ninguémtenhaaindadescoberto”(PARROTT,1971,p.32),reforçandoainda,nestemesmo

momento,queoenigmanãosetratavadealgoextramusical.IstolevouTroyteGriffith,o

retratadonasétimavariação,adizerqueotemaocultodeveriaseramelodiamaisfamosa

da Inglaterra, ou seja, o God Save the King, ao que Elgar afirmou peremptoriamente:

“certamente,não.Maséextraordinárioqueninguémtenhaencontrado,ainda”(PARROTT,

1971,p.33).Ouseja,asoluçãoenvolveria,aparentemente,umamúsicaquedeveriaser

conhecida.EoseditoresdaObraCompletadeElgarsempreopinaram:“oqueestáoculto

éessencialmentemusicalenãopodesertraduzidoempalavras”(PARROTT,1971,p.33).

Assim,umalegiãodeadmiradoresdestapeça,matizadaporsuaambiguidadeoculta,se

empenharamdesdeaestreiadamesmaem1899,atéopresentemomento,adecifrarqual

seriaoenigmaportrásdestasvariações.AlémdofamosoGodSavetheKing,Elgarainda

refutououtrassugestões,taiscomoAuldLangSyne,quenoBrasiléconhecidocomoaValsa

dadespedida,emversãode1941feitaporBraguinha.DiscordouaindadoNoturno6o,em

SolmenordeChopin.Aliás,sendoestedeclaradamenteseutompreferido‐Solmenor‐

insuflouquesevoltassemasatençõesparaobrasdeBach,expressivas,nestemesmotom.

Assim, o Coral para órgão, em Sol menor deste compositor, também não obteve a

aprovaçãode Elgar, enquanto fonte temática, não obstante fosseBach seu compositor

favorito(PARROTT,1971,p.35).

Inopinadamente,muitassugestõesforamapresentadas,desdeamortedeElgar,em1934,

e,conseguintemente,foramrefutadasporsuasinconsistências,sejaporoutrosmúsicos,

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associaçõesoumesmoaSociedadeElgardeLondres,quesemantémativaempublicações,

mantendoacesaamemóriadomúsico(THEELGARSOCIETY).

Entreestasfontestemáticasencontram‐se:UnabelaserenatadaóperaCosifantuttede

Mozart; o próprio nome Elgar em música, seguindo os criptogramas anteriormente

descritosetranscritoparaotomdeMimenor;umtemaextraídodaQuartasinfoniade

Brahms;Twinkle,Twinkle,LittleStar,quenadamaisédoqueaversãoinglesadacanção

francesaAh vousdirais‐je,Maman,queMozart empregou em suas doze variações; um

cânondeThomasTallise,ainda,comojámencionado,asprimeirasnovenotasdavariação

Nimrod.Estassugestõesseenquadramnacategoriadecontraponto,ouseja,amelodia

ocultaagiriacontrapontisticamentecomotemadasvariações(TURNER,1999,p.121).

Entretanto, jásemocarátercontrapontístico,outrastantashipóteses foramaventadas,

taiscomo:aconhecidaáriaparasoprano,quedáconclusãoàóperaDidoeEneasdePurcell;

oAgnusDeidaMissaemSimenordeBach;reiteradamente,oiníciodosegundomovimento

daSonataPatética op.13deBeethoven;oContrapunctusXIV daArtedaFuga deBach,

quando o nome BACH aparece como motivo principal; Rule Britannia!, um dos hinos

patrióticosingleses;AveMarisStelladeJohnDunstable;QuatrocançõessériasdeBrahms;

oDiesIraedoGradualGregorianoeaMarchaparaoCalváriodeGounod(TURNER,1999,

p.122).

Uma frase de Elgar, entretanto fez com que muitos inferissem uma subserviência

extramusical.Disseeletratar‐sede“algooculto”(BYRON,2000,p.40), logopoderiaser

tantoumacitaçãobíblica,comofoi levantado,comotambém,polemizaEdmundGreen,

poderiaseroSoneto66deShakespeare,sendootermoenigma,narealidade,umdisfarce

paraaDarkLadydosSonetos(GREEN,2004,p.3),musamisteriosadeShakespeare,cujos

PoemasdeAmorforam,noBrasil,traduzidos,pelaespecialistanobardoinglês,Bárbara

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Heliodora4.Aventou‐seaprobabilidadedesertambémonomecifradodesuafilhaCarice

(DE‐LA‐NOY,1984,p.50).

Recentemente,aobservaçãodequeasprimeirasnotasdotemaenigmasãoosgraus3–1

–4–2daescala,levantounovamenteaperspectivadeumcriptograma,emqueabaseda

soluçãoseriaaconstantematemáticaπ[3.14159265358979...](SANTA,2010,p.112),mas

comoéumnúmeroirracional,muitoscontraargumentaramaarbitrariedadeflagrante:

por que deveria o número π encerrar então no terceiro dígito? Houve ainda quem

correlacionasseoenigmadestasVariaçõesaodocitadoConcertoparaviolino:“Aquiestá

encerradaelalmade...”,quetemcincoreticências,quebempoderiamserascincoletras

donomeElgarequecorresponderiaàsugestãoenigmáticadasprópriasvariações(DE‐

LA‐NOY,1984,p.50).

Nãopassouemdesapercebidoatantos,plausivelmente,quetudonãoteriapassadodeum

delicioso gracejo, por parte do próprio Elgar, espírito fino e bem‐humorado, que quis

troçar,quiçá,comoscontemporâneoseaposteridade.Certamente,nãopertençoaeste

grupocético.

Seriainteressanterecordaroimpactoqueesteenigmaexerceusobreacriaçãoartísticae,

comoexemplo,citoacélebrepeçateatraldeÉricEmmanuelSchmitt,estreadaem1996no

ThéâtreMarignydeParis,quetemonomesugestivodeVariationsÉnigmatiques.

“Quemamamosquandoamamos?Saberemosalgumavezqueméoseramado?Oamor

partilhadonãoseráafinalumfelizmal‐entendido?”(ÉRIC‐EMMANUEL‐SCHMITT,2014).

Divisamos em tornodestesmistérios eternosdo sentimento amoroso, doishomens se

defrontando:AbelZnorko,PrêmioNobeldeliteratura,queviveisoladodomundonuma

ilhaperdidanomardaNoruega,onderecordaasuapaixãoporumamulhercomaqual

4Nãotemolhossolaresmeuamor;Maisrubroqueseuslábioséocoral;Seneveébranca,éescuraasuacor;Eacabeleiraaoarameéigual.(SHAKESPEARE,2000,p.32)

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trocouumalongacorrespondênciaeErikLarsen,umjornalistaquearranjouopretextode

umaentrevistaparaseencontrarcomoescritor.Masqualomotivodesteencontro?Qual

aligaçãosecretaentreeleeamulherpelaqualZnorkosedizaindaapaixonado?Eporque

équeummisantropocomooescritorafinalacedeuemrecebê‐lo?AmúsicadasVariações

Enigma de Elgar está presente para, enfaticamente, acentuar o clima de mistério

envolvente.OelencodeestreiatrouxeAlainDeloneFrancisHustercomoprotagonistase

a peça conheceu umperíodo de enorme sucesso em vários países (ÉRIC‐EMMANUEL‐

SCHMITT,2014).

10‐Reunindodadosparaumapossívelsolução

Ao longo desta exposição, não restou dúvida quanto à admiraçãode Elgar por Johann

SebastianBach.Em1850,surgiaemLeipzigaBach‐Gesellschaft‐SociedadeBach–como

objetivodepublicaraobracompletadestecompositoralemão,queentão intitulava‐se

Bach‐Gesellschaft‐Ausgabe–EdiçãodaSociedadeBach.Apartirde1900estasociedade

erarefundada,agorasobonomedeNeueBachgesellschaft‐NovaSociedadeBach.Elgar,

elepróprio,eraumpesquisadorinteressadonacoleçãocompletadaobradeBach,tendo

entusiasticamente ofertado esta integral à Universidade de Birmingham, em 1905

(MCVEAGH,2013,p.79).AvariaçãoXIapresenta,inclusive,comojárelatado,umacitação

temáticaextraídadoExercitiumparapedalBWV598,emSolmenor,deBach.

ÉprecisonãoesquecerocarátermísticodeElgar,quesendoadeptodocatolicismoestava

igualmentebementrosadocomospraticantesdoanglicanismodesuaépoca,areligião

majoritáriadaInglaterra,daqualsuaesposaAliceerapraticante.Tambémnotamoscomo

umtraçorecorrentedocaráterpessoaldestecompositor,ogostopelacriptografia,que

surgenãosóemcomposiçõesdistintas,comotambémemescritospessoais.

Dirigindo‐nosaumapossívelinterpretaçãodoenigmacentraldasvariações,acrescento

um outro dado que aqui julgo relevante. Até a implantação da reforma litúrgica que

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aconteceudepoisdoConcílioVaticanoII,dentrodocalendáriodascelebrações,odomingo

imediatamente anterior à quarta‐feira de cinzas era conhecido como Domingo da

Quinquagésima, por estar a cinquenta dias do domingo de Páscoa. Esta celebração

coincidiacomoDomingodeCarnaval.

Aindanoiníciodadécadade1960,oscatólicos,anglicanoseluteranospartilhavamnoseu

calendário litúrgico, entre outras celebrações, a do domingo da Quinquagésima, cujas

leiturasnestediaeramcomunsàstrêsconfissões.SemprecausouforteimpressãoaElgar

umfragmentodaprimeiraleituradamissadestedia(MESSENGER,2008,p.132),retirada

dos trezeversículos iniciaisdocapítuloXIII,da1aEpístoladeSãoPauloaosCoríntios.

Assimse lênoversículo12: “Porqueagoravemospor espelho, emenigma,masentão

veremosfacea face;agoraconheçoemparte,masentãoconhecereicomotambémsou

conhecido”(1Cor.13:12).Ora,apalavra‐chavedoenigmaaquiéapalavragrega“αἴνιγμα”,

quepodesertraduzidapor“aquiloquedificilmentesecompreende”.

Logo,poraquiseaduzoporquêdeElgarrepresentartodosospersonagensmencionados

emsuasvariaçõesatravésdeprocedimentosdeintrincadapercepção.Possivelmente,ele

aplicavaaspalavrasdeSãoPaulo,quetencionamdarsentidoanossaexistênciarepletade

interrogações, aos próprios amigos representados, pois teriam que se auto desvelar,

confusamente,emumespelho,comonumenigma.Certamentequehánissoumsentido

existencialefilosófico,maséinegávelquehá,outrossim,umaboadosedehumornestas

charadasmusicais. Entretanto, procurando unir estas evidências ora apresentadas, de

maneira original, buscando uma interpretação própria sobre qual a origem do tema

principaldasVariaçõesEnigma,devemosmaisumaveznos referir a JohannSebastian

Bach.Poisestecompositoremsuaextensacoleçãodeobrasvocais,publicadasnaEdição

da Sociedade Bach, dedicou nada menos que quatro cantatas ao Domingo da

Quinquagésima,tambémconhecidoporDomingoEstoMihi.Estasduaspalavrasextraídas

daVulgata,emlatim,fazemreferênciaaoprincípiodointroitodestedia,EstoMihiinDeum

protectorem, que se traduz por “Sê paramim umDeus protetor”. Já o texto inicial do

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evangelho deste dia, centralizado, em alemão, por Bach no frontispício da cantata e

servindode letraaomovimento introdutório, iniciavacomaspalavras: “Jesus tomouà

parteosdoze”.

Esta curiosa confluência de dados levou‐nos a investigar as quatro cantatas acima

referidas,sendoqueadenúmero22,apresentaoprimeiromovimentojustamentenotom

preferido de Elgar: Sol menor (BACH, 1992, p.2‐3). Deparando‐nos com a introdução

orquestraldestemovimento,cujaorquestraçãoéconstituídaporoboé,violinosIeII,viola

econtínuo(Figura5),detecteiasimilaridadenuméricaentreossetecompassosiniciais

do temadeaberturadacantata,quesãoequivalentesaosdaseção inicialdo temadas

VariaçõesEnigma(Figura6).

Figura5–IníciodaCantataDominicaEstoMihiemSolMenordeJ.S.Bach.

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Figura6‐IníciodasVariaçõesEnigmaemSolMenordeEdwardElgar.

É realmente muito significativo que este tema esteja em uma relação harmônica

correspondente com a frase inicial de Bach, ao mesmo tempo em que se verifica a

complexapresençadeumcontrapontoinvertívelàoitavaentreotemadeElgareasvozes

do oboé, violinos I e II e a viola. Assim, propomos uma escuta da junção da trama

contrapontística da cantata de Bach simultaneamente à melodia do tema de Elgar.

Sucessivamente, oportunamente recorrendo à característica central do contraponto

invertível,substitumosemcadaumdosinstrumentoscitadosoenigmáticotema(Figura

7). Este exercício gerou uma crescente e gratificante surpresa de notar um perfeito

entrosamentodasduasobrasemváriosníveis.Aofinal,umasoluçãoparaoenigmade

Elgarpodeserlocalizadopelomenosumséculoemeioantesdesuaescrita,emBach.

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Figura7–Umapossívelsoluçãoparao“enigma”deElgar:ocontrapontoinvertíveldeBachnaCantata

DominicaEstoMihideJ.S.BachemSolMenor.

Co

ntr

apo

nto

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ível

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Bac

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Tema do “enigma” de Elgar

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11–Consideraçõesfinais

Assim, retornava‐nos à lembrança a frase de Elgar, em uma de suas poucas e nada

esclarecedorasentrevistassobreanaturezadoenigma:“otemaéumcontrapontosobre

umabemconhecidamelodia,aqualnuncaéouvida”(TURNER,1999,p.121).Etambém:

“...Entãootemaprincipalnuncaaparece.Omesmoaconteceemalgunsdramasrecentes,

como por exemplo, O intruso e as sete princesas de Maeterlinck, quando o principal

personagemnuncaaparecenopalco”(MESSENGER,2008,p.145).Destamaneira,nossa

pretensãoaquinão foiesgotaradiscussãoemtornodesteassuntopalpitante,quenos

induziu a fazer tantas abordagens diferentes no decorrer da conferência, para

contextualizarabsolutamenteaproblemáticapretendida.Não,maisdoqueumaresposta,

ambicionamosexercitar a integração entreas técnicasdevariação, linguagemmusical,

texturas, desenvolvimentos motívicos, criptogramas, bem como a rediscussão de

renovadasformasdeexpressãoemcadacontextohistórico.

É necessário integrar a música através da história, aproximando‐a das demais

manifestaçõesartísticas,paraqueastécnicasdeanáliseserevistamcontinuamentedeum

novosentido.E,certamente,háumaseduçãonaartedoenigma,poiscomodisseGeorge

Orwell, “se quiser guardar um segredo, terá também que escondê‐lo de si próprio”

(MOODIE,2004,p.101).

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