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1 RELAÇÕES DE PODER, DOMINAÇÀO E RESISTÊNCIA O MST E OS ASSENTAMENTOS RURAIS

Eliane Brenneisen Relacoes de Poder Thesis Protegido

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    RELAES DE PODER,DOMINAO E RESISTNCIA

    O MST E OS ASSENTAMENTOS RURAIS

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    2002 by Eliane Cardoso Brenneisen

    Edunioeste

    Universidade Estadual do Oeste do ParanRua Universitria, 1619

    Jardim Universitrio Cascavel - PR

    CEP: 85814-110 - Caixa Postal 801Tel.: (45) 220-3000Fax: (45) 225-4590

    [email protected]

    Coleo Thsis

    DiretoresMarcos Antnio Lopes

    Pery Francisco A. Shikida

    Capa e projeto grficoMarcos Antnio Lopes

    Paulo Cezar Konzen

    Reviso tcnicaMarcos Antnio Lopes

    Preparao de originaisPaulo Cezar Konzen

    Apoio editorialLuis Cesar Yanzer Portela

    Apoio tcnicoAntonio da Silva JniorDouglas L. S. GananaJoaquim dos Santos

    Ficha catalogrficaMarilene de Ftima Donadel (CRB 9/924)

    Imagem da capa(Antrum Platonicum)

    Brenneisen, Eliane CardosoB838r Relaes de poder, dominao e resistncia: o MST e os assentamentos rurais / Eliane Cardoso Brenneisen. -- Cascavel : Edunioeste, 2002.

    300 p. -- (Coleo Thsis)

    ISBN : 85-86571-58-X

    1. Assentamentos rurais 2. Movimentos sociais 3. Reforma Agrria 4. Movimento dos Trabalhadores Sem Terra I. T. II. S.

    CDD-20.ed. 303.484098162 333.31098162

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    Eliane Cardoso Brenneisen

    RELAES DE PODER,DOMINAO E RESISTNCIA

    O MST E OS ASSENTAMENTOS RURAIS

    EdunioesteCascavel

    2002

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    relaes de poder, dominao e resistncia

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    AGRADECIMENTOS

    As contribuies recebidas foram muitas e se manifestaramde diversas maneiras. Mesmo sem poder enumer-las,manifestamos aqui agradecimentos a todos aqueles quecontriburam direta ou indiretamente para a realizao destetrabalho.

    De uma maneira especial agradecemos: Vera Lcia Michalany Chaia, cuja solidez intelectual nos

    auxiliou nesta trajetria e, sobretudo, pela pessoa humana que ,pois, muito mais que orientar uma tese, foi nossa principalincentivadora, proporcionando ao mesmo tempo, autonomia eliberdade para que construssemos nosso prprio caminho.

    Comisso Examinadora desta tese de doutoramento,composta pelos professores Zander Navarro, Leonilde Srvolo deMedeiros, Luiz Eduardo W. Wanderley e Maria Lcia Carvalho daSilva, cujas contribuies foram valiosas no sentido de abrir novaspossibilidades de pesquisa e anlise.

    Universidade Estadual do Oeste do Paran (Unioeste), peloapoio recebido; Capes pela concesso da bolsa de estudos quepermitiu a realizao desse curso.

    Ao Paulo, meu esposo, pelo estmulo continuidade de maisuma etapa de vida; Paula Carolina, minha filha, que, ainda topequena, soube compreender minhas constantes ausncias.

    Ao Clio Escher, pelo trabalho de revisoE, por fim e no menos importante, agradecemos a todos

    aqueles, indistintamente, lideranas e base do MST, quegentilmente nos concederam as entrevistas, os documentos, e asinformaes de que necessitvamos, sem as quais no seria possvela realizao deste trabalho. A eles nosso agradecimento especial erespeito, desejando que, de alguma maneira, as avaliaes crticasfeitas nesse trabalho possam contribuir com a causa que mobilizasuas vidas.

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    relaes de poder, dominao e resistncia

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    prefcio

    SUMRIO

    LISTA DE SIGLAS............................................................................ 09

    PREFCIO....................................................................................... 11

    INTRODUO................................................................................. 13

    CAPTULO IEMERGNCIA E CONSOLIDAO DO MST NO CENRIO POLTICOBRASILEIRO................................................................................. 371.1 A reorganizao da luta pela terra: a fase inicial...................... 381.2 A fase intermediria (1986-1993)............................................ 481.3 O Movimento na atualidade.................................................... 53

    CAPTULO IIA FORMAO DO COOPERATIVISMO NO MST............................. 652.1 A organizao do cooperativismo no MST................................. 652.2 Orientao poltico-ideolgica da organizao da produo nosassentamentos rurais................................................................... 722.3 O pensamento poltico-ideolgico-leninista e o modeloorganizacional proposto pelo MST................................................. 82

    CAPTULO IIIORGANIZAO SOCIAL E PRODUO NO ASSENTAMENTOVITRIA........................................................................................ 973.1 Formao do assentamento e trajetria de vida da populaopesquisada.................................................................................... 973.2 Experincias organizacionais................................................... 1033.2.1 Os grupos coletivos.............................................................. 1053.2.2 As associaes..................................................................... 1123.3 Os agricultores individuais e o assentamento na atualidade.... 116

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    CAPTULO IVA FORMAO DE UMA CPA NO ASSENTAMENTO VERDUM......... 1294.1 Formao do assentamento e trajetria de vida da populaopesquisada....................................................................................1304.2 A experincia de formao de uma CPA.................................... 1384.2.1 A organizao inicial............................................................. 1384.2.2 O laboratrio organizacional de campo.................................. 1444.2.3 A continuidade do processo.................................................. 1524.3 Da utopia realidade.............................................................. 1554.4 A reorganizao do assentamento sobre novas bases............ 168

    CAPTULO VA ORGANIZAO NOS NOVOS PROJETOS DEASSENTAMENTO: DA RESISTNCIA S REDEFINIES.............. 1855.1 Fazenda Boi Preto: da ocupao s definies organizacionais 1855.1.1 O processo de ocupao da fazenda Boi Preto...................... 1855.1.2 Da proposta de formao de uma CPA escolhade um modelo misto..................................................................... 1915.2 Fazenda Mitacor: da ocupao s definies organizacionais. 2015.2.1 O processo de formao....................................................... 2015.2.2 De uma fazenda modelo a um assentamento modelo....... 208

    CAPTULO VIDOMINAO E RESISTNCIA....................................................... 2216.1 Luta pela terra e utopia socialista............................................ 2216.2 Construo da resistncia....................................................... 2366.3 Entre a persistncia do passado e a emergncia de umanova cultura poltica...................................................................... 2496.3.1 Terra, liberdade e autonomia................................................. 2506.3.2 Clientelismo e autoritarismo.................................................. 2566.4 Da resistncia da base s mudanas possveis......................... 266

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................. 287

    REFERNCIAS ........................................................................... 293

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    LISTA DE SIGLAS

    ACT Associao de Cooperao TcnicaAmop Associao dos Municpios do Oeste ParanaenseAssessoar Associao de Estudos, Orientao e Assistncia RuralBndes Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e SocialCCA Cooperativa Central dos AssentadosCcps Cooperativa de Comercializao e Prestao de ServiosCoara Cooperativa de Comercializao e Reforma Agrria do Oeste do ParanConcrab Confederao das Cooperativas de Reforma AgrriaContag Confederao Nacional dos Trabalhadores na AgriculturaCoodetec Cooperativa Central Agropecuria de Desenvolvimento Tecnolgicoe Econmico Ltda.Coprac Cooperativa de Produo Agropecuria Camponesa LtdaCPA Cooperativa de Produo AgropecuriaCPS Cooperativa de Prestao de ServiosCPT Comisso Pastoral da TerraCresol Cooperativa de Crdito de Interao SolidriaCUT Central nica dos TrabalhadoresEmater Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso RuralIncra Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaMastes Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do ParanMastro Movimento do Agricultor Sem Terra do Oeste ParanaenseMDA - Ministrio do Desenvolvimento AgrrioMepf Ministrio Extraordinrio de Poltica FundiriaMST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem TerraPDA Plano de Desenvolvimento Sustentvel do Assentamento.Pnra Plano Nacional de Reforma AgrriaProcera Programa Especial de Crdito para Reforma AgrriaPronaf Programa Nacional de Apoio a Agricultura FamiliarSCA Sistema Cooperativista dos AssentadosSema Secretaria de Meio AmbienteUDR Unio Democrtica Ruralista

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    relaes de poder, dominao e resistncia

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    PREFCIO

    Este um livro to particular que qualquer apresentao quese tente fazer dele no conseguiria reproduzir sua riquezasociolgica. So tantas as nuances interpretativas, mltiplosdetalhes histricos e instigantes indicaes para a reflexo, que sa leitura do texto integral poderia satisfazer o leitor. Eliane CardosoBrenneisen, estudiosa da temtica das lutas sociais no campo hlongos anos, realiza um estudo exaustivo sobre algunsassentamentos rurais implantados pelo MST (Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra) na regio Oeste do Estado doParan. Para tanto, reconstri a histria destes movimentos eaprofunda o estudo das suas origens no cenrio poltico brasileiro.

    Mas a autora vai alm desta reconstruo, ao buscar as razesda proposta de cooperativismo do MST, analisando as concepesideolgicas que estruturam a organizao dos assentamentosfundados por este movimento naquela regio do Paran.Simultaneamente, a autora retoma criticamente a bibliografia dotema pesquisado e problematiza as verdades absolutas expressaspor determinados autores.

    A partir destes esclarecimentos propiciados pela pesquisabibliogrfica, o estudo da autora se concentra em casos deassentamentos rurais bastante diferenciados, devido s formaese relacionamentos especficos que estabeleceram com o MST. Aautora visitou os assentamentos, entrevistou os assentados e, comcoragem e determinao, desfez a rede de proteo que os cercavam,descrevendo-os em todos os seus acertos e erros. As divergnciasentre alguns dos assentados e a direo do MST ficam explcitas eas tentativas de resistncia de certos assentamentos ganham lugarimportante na conjuntura poltica.

    um trabalho corajoso, muito bem realizado e comprometido

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    com os rumos da democracia. Neste sentido, Eliane assume aposio da liberdade e da autonomia destas populaes envolvidasnas relaes que estruturam estes assentamentos. Alm da sriaanlise que nos oferece, a autora tambm avana em direo apreocupaes futuras (sabe que a luta continua), defendendo apertinncia das divergncias ideolgicas para a construo de umprojeto nacional alternativo. Valorizando o trabalho intelectualinterpretativo ela nos indica que somente conhecendo os desejos eas aspiraes dos trabalhadores rurais, pode-se tornar efetiva aparticipao destes setores, na plena realizao da sociedade.Enfim, este um livro que enfrenta o tema dos movimentos sociaise dos assentamentos com competncia e coragem, instigando nossavontade de conhecer e afirmando a necessidade da atuao nadiversidade no nos deixando esquecer da urgncia dacompreenso da histria e da ao permanente no mbito social.

    Vera Chaia

    Professora Livre-Docente doPrograma de Estudos Ps-Graduadosem Cincias Sociais da PontifciaUniversidade Catlica de SoPaulo

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    INTRODUO

    No incio da dcada de 1980, com o processo de aberturapoltica, diversos movimentos populares emergiram no cenriopoltico brasileiro, porm muitos deles desmobilizaram-se aps oatendimento, ainda que parcial, de suas demandas. O Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), diversamente de outrosmovimentos organizados no mesmo perodo, tem-se destacado peloseu dinamismo e continuidade j se vo quase vinte anos defecunda existncia no s em razo do atendimento insuficientede suas demandas ou devido to somente ao uso eficaz dedeterminadas estratgias organizacionais empreendidas nosltimos anos mas principalmente porque a luta pela terra no seencerra com o atendimento de sua reivindicao imediata, ou seja,com a conquista da terra.

    Entre outros fatores, a luta pela terra desdobra-se na lutapela manuteno da terra conquistada. Portanto, logo a partir dosprimeiros assentamentos instalados, a organizao da produotornou-se preocupao central por parte da direo do Movimento,uma vez que no bastava garantir o acesso terra, era precisobuscar alternativas de viabilizao da produo no interior dessesassentamentos. Assim, a busca da eficcia econmica nosassentamentos de reforma agrria tornou-se central para a direodo Movimento, tanto no sentido de garantir a sobrevivncia dignados trabalhadores rurais assentados, como tambm no intuito dedemonstrar para a sociedade, como um todo, o sucesso econmicodos assentamentos rurais por meio da cooperao agrcola.

    Nos assentamentos, a partir da dcada de 1990, o perodo marcado pelo processo de consolidao do modelo cooperativistaque j vinha sendo gestado ao longo desses anos, principalmente apartir de 1986, quando foi publicado, nos cadernos de formao do

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    Movimento, um artigo que constituiria a orientao metodolgicapara o desenvolvimento do cooperativismo no MST.

    Este trabalho, originalmente uma tese de doutoramento,defendida junto ao Programa de Estudos Ps-graduados de CinciasSociais da PUC-SP, procura analisar a organizao social e daproduo em assentamentos rurais de reforma agrria, com nfaseno estudo das relaes que se estabeleceram no interior dessesassentamentos em funo do desenvolvimento de projetoscooperativistas e ou associativistas, fundamentadosideologicamente na organizao coletiva da produo. A anliseconcentra-se na investigao de como se reproduzem as relaesde dominao e de poder no interior dos assentamentos rurais e acontraface dessas relaes representada pela resistnciacamponesa. Busca-se, portanto, analisar as contradies inerentess escolhas organizacionais e os limites que impem democratizao das relaes sociais no campo e conquista plenada cidadania pelos trabalhadores rurais.

    Para a anlise, selecionamos dois assentamentos ruraisAssentamentos Vitria e Verdum e dois projetos de assentamentoem processo de instalao efetivamente, poca da pesquisa decampo, tratava-se de duas ocupaes , o da Fazenda Boi Preto eo da Fazenda Mitacor, todos localizados na regio Oeste do Paran.A escolha de duas ocupaes para a anlise se deve ao fato de que asdefinies organizacionais normalmente tm ocorrido ainda por ocasioda ocupao, portanto, antes da instalao efetiva do projeto deassentamento. A anlise, cujo recorte scio-poltico, concentra-senas especificidades histricas de cada um dos assentamentos ouocupaes, nos enfrentamentos, cises e reorganizaes que ocorreramfrente ao projeto centralizado de organizao social e da produo,definido pela direo do Movimento, a partir dos anos 1990.

    A regio em que se situam os assentamentos e ocupaesselecionadas para este estudo foi alvo, em diversas fases, de polticasde colonizao empreendidas pelo Estado. Uma referncia aosprocessos de colonizao empreendidos e s demais caractersticasda regio torna-se fundamental no sentido de inserir o objeto deestudo em questo, ainda que sinteticamente, no contexto histricoregional. A colonizao da regio Oeste paranaense ocorreu a partirde quatro frentes de conquista e ocupao do territrio.1 Nunca

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    demais lembrar que o processo de ocupao do territrio e aexpanso do capitalismo no Brasil, nas suas diversas fases e facesassumidas, efetivou-se a partir dos mais variados processos deexcluso e explorao e, particularmente na regio Oeste do Paran,como em tantas outras regies do Pas, esses processos se deram,predominantemente, a partir da dominao pela violncia.

    A primeira frente refere-se ao perodo que compreende osculo XVII, quando bandeirantes portugueses, procura de pedraspreciosas e com o objetivo de aprisionar ndios para o trabalho naslavouras do litoral, embrenharam-se pelo interior do Pas. Tantonessa regio Oeste do Paran, como no Oeste do Rio Grande doSul, bem como na atual provncia de Missiones na Argentina e noParaguai, a presena desses bandeirantes e de colonizadoresespanhis foi dramtica para os milhares de nativos integrantesde diversos povos indgenas. Essa regio, pelo Tratado deTordesilhas, celebrado ainda em 1492, pertencia Espanha. Emvista disso, nos primrdios da colonizao, ocorreram sucessivasdisputas entre portugueses e espanhis, por isso houve o empenhoda coroa portuguesa em tomar a si o territrio ocupado pelosespanhis. Por outro lado, padres jesutas passaram a organizarredues, com destaque, nessas imediaes, para a reduojesutica do Guayr. Essas redues foram palco de sucessivosataques de bandeirantes, cujo objetivo era aprisionar ndios parautiliz-los como escravos nas lavouras do litoral. Especificamentea reduo do Guayr comeou a ser atacada por bandeirantesportugueses no ano de 1629 e, no ano de 1632, j no restavamseno runas, obrigando os sobreviventes ao xodo constante, pelasmargens e imediaes dos Rios Uruguai e Paran em busca derefgio. Ao longo dos sculos XVII e XVIII, todas as reduesexistentes foram destrudas, restando somente runas do que foium dia o embrio (ainda que sob o signo da dominao) daconstruo de uma organizao social comunitria.

    Outra fase da colonizao refere-se ao tropeirismo,desenvolvido no sculo XIX, e que consistia na aquisio etransporte de muladas do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina,passando pelo Paran, na regio de Campos Gerais, chegando atCuritiba, para, de l, alcanar a regio de Sorocaba, onde eramcomercializadas. A passagem de tropeiros ensejou a criao de locais

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    de pouso, originando muitas cidades paranaenses. Nesse perodo,que compreende o sculo XIX, os ataques aos ndios aindaimperavam, no mais pelos bandeirantes, mas por colonos quetomavam seus territrios e os expulsavam. Esses resistiam comopodiam, mesmo em extrema desvantagem pelo poder de fogo dasarmas inimigas, redundando, como hoje se convencionou chamar,numa verdadeira limpeza tnica. Hoje, desses povos queatravessavam o caminho dos tropeiros e colonos, s restamalgumas reservas indgenas. No Paran, atualmente, a populaoindgena encontra-se distribuda em dezessete reservas e reduz-se a pouco mais que 9.000 pessoas, remanescentes das etniasKaingang, Guarani e a apenas seis indgenas remanescentes dopovo Xet.

    No final do sculo XIX, entram em cena as obrages,companhias estrangeiras inglesas e argentinas que receberam dogoverno imperial grandes extenses de terra para explorao. Emcontrapartida, as obrages deveriam desenvolver a infra-estruturanos locais pretendidos para instalao. Essa infra-estruturaconsistia principalmente na abertura de estradas e construo deestradas de ferro. Essas companhias tornaram-se, na verdade,muito mais companhias exploradoras de erva- mate e madeira,descumprindo sua parte no acordo. Mesmo assim, nos locais ondeconstruram entrepostos de coleta da erva-mate ou extrao damadeira, desenvolveram-se ncleos habitacionais. Como no foramcumpridos os objetivos para os quais foram instaladas, colonizar edotar a regio de infra-estrutura, durante a vigncia da primeirarepblica, as obrages foram extintas.

    Ainda no final do sculo, outro fator de destaque nacolonizao da regio foi a fundao da Colnia Militar de Foz doIguau, em 23 de novembro de 1889.

    A quarta e ltima frente colonizadora foi a responsvel, defato, pela colonizao da regio e corresponde, sob os auspcios doEstado, ao das companhias colonizadoras. J no incio do sculoXX, as companhias colonizadoras comearam a demonstrarinteresse pela regio e, a partir das propagandas que faziam dafertilidade das terras do Oeste paranaense, comearam a atrairmigrantes para essa regio. Os primeiros a chegar foram ospoloneses, seguidos, posteriormente, pelos italianos que, uma vez

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    instalados, dedicaram-se cultura do milho e criao de sunos.Mas foi, somente, na segunda dcada do sculo que, de fato, deu-sea marcha para o Oeste, a partir da ao dessas companhias quepromoveram a migrao de colonos descendentes de italianos ealemes, que saram de seus estados de origem, Rio Grande do Sule Santa Catarina, em busca de novas terras. Esses migrantes, comovimos, so, em sua maioria, filhos de migrantes italianos ealemes que, por sua vez, no final do sculo XIX e incio do sculoXX, deixaram seus pases de origem e instalaram-se no Rio Grandedo Sul e Santa Catarina, adquirindo pequenas colnias (o quecorresponde a 25 hectares de terra), para o desenvolvimento daagricultura familiar. medida que os filhos foram crescendo, aterra que possuam tornou-se insuficiente para abrigar toda afamlia, restando aos filhos desses migrantes deixarem seus pais eseu Estado de origem, em busca novas terras.

    Portanto, os agricultores que se dirigiram para esta regiodesbravaram a terra e enfrentaram os grileiros e jagunos com oobjetivo precpuo de reproduzirem sua existncia comohistoricamente estavam habituados: com base na agriculturafamiliar. Na atualidade, a populao dessa regio de cerca de ummilho e cem mil habitantes e ocupa uma rea de 20.000 km2,correspondendo aproximadamente a 10% do Estado do Paran. Amaior parte desse contingente populacional concentra-se nosmunicpios de Foz do Iguau e Cascavel que, juntos, possuem cercade quinhentos mil habitantes. Esses dois municpios soconsiderados plos regionais, no s pelo nmero de habitantes,mas, tambm, pela sua importncia econmica. Foz do Iguaudestaca-se pela sua vocao turstica, e Cascavel, como plo debase, predominantemente, agrcola (Amop, 1998, p. 22).

    Na verdade, a regio toda se caracteriza pela atividade agrcola,vocao natural em funo da fertilidade de suas terras e fator deatrao para milhares de colonos que migraram para a regio nosanos 1940/1960. Dos 45 municpios que compem a Associaodos Municpios do Oeste Paranaense (Amop), 41 deles dedicam-se, predominantemente, atividade agrcola e apenas quatro, atividade pecuria. Portanto, a base produtiva predominante naregio encontra-se no setor primrio da economia, com destaque,na atualidade, para as culturas da soja, trigo e milho.

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    A regio distingue-se pela sua localizao estratgica, o quefavorece a exportao e a instalao de agroindstrias voltadas parao Mercado Comum dos Pases do Cone Sul (Mercosul). A facilidadede acesso hidrovia Tiet e a existncia de uma ferrovia (Ferroeste)at o porto de Paranagu constituem outro fator de destaque para oescoamento da produo agrcola regional. Porm, tanto no que dizrespeito atividade agrcola como ao potencial turstico da regio,muitas aes ainda precisam ser desenvolvidas com vistas ao seudesenvolvimento. Especificamente no que diz respeito atividadeagrcola, alm das aes tradicionais de assistncia tcnica eextenso rural desenvolvidas pela Emater, outras tm sidodesenvolvidas, por meio de acordos e parcerias entre governoestadual, municipal, universidade e sociedade civil organizada,porm, ainda, so aes localizadas e parciais, necessrias, masque pouco podem fazer diante da insuficincia de polticas pblicaspara o desenvolvimento da agricultura familiar.

    dentro deste contexto regional que se formaram, graas ao do MST, diversos assentamentos rurais de reforma agrria.Ao todo, so 17 assentamentos rurais. Destes, como j afirmamosanteriormente, selecionamos, para esta pesquisa, doisassentamentos e tambm duas ocupaes: respectivamente, osAssentamentos Vitria e Verdum e as ocupaes das Fazendas BoiPreto e Mitacor.

    Esta pesquisa, que ora desenvolvemos, teve como ponto departida uma pesquisa anterior, realizada na mesma regio Oestedo Paran, concluda no ano de 1994, intitulada: Luta pela terrano Oeste paranaense. Do movimento ao assentamento: limites econtradies de um projeto coletivo de produo (Cf. Brenneisen,1994). A pesquisa realizada correspondeu a uma primeira incursona temtica dos assentamentos rurais e buscou compreender aluta pela terra no Oeste paranaense, desde a emergncia dosmovimentos conquista da terra, at a organizao econmica epoltica num assentamento rural de reforma agrria. Nesse trabalho,em primeiro lugar, procuramos fazer um resgate da luta pela terrano Oeste paranaense desde o Movimento Justia e Terra, organizadoem funo das desapropriaes para a construo da HidreltricaItaipu, at a organizao do Movimento do Agricultor Sem Terra doOeste Paranaense (Mastro) em 1981.

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    Em seguida, procuramos analisar um assentamento rural,denominado Svio-Dois Vizinhos, formado no ano de 1986, o nicolocalizado no Oeste do Paran com agricultores provenientes doMastro, e por isso mesmo alvo de expectativas por parte daslideranas do Movimento. Buscamos compreender as razes dofracasso de uma tentativa por parte da direo do Movimento dese desenvolver uma organizao coletiva da produo nesteassentamento, nos primeiros anos que se sucederam suainstalao.

    A continuidade das anlises, na atualidade, teve porreferncia os muitos questionamentos suscitados nessa primeiraincurso na temtica dos assentamentos rurais, diante daconstatao que fizemos, j ao finaliz-la, de que o MST haviapriorizado, nos anos 1990, nos novos projetos de assentamento, aorganizao coletiva no seu formato Cooperativa de ProduoAgropecuria (CPA):

    Esse modelo pressupe a ida para um novo assentamento deagricultores que aceitem a proposta de uso, produo ecomercializao coletiva da terra. O acesso terra est diretamentecondicionado aceitao da proposta. E aqui se interpem algunsquestionamentos para reflexo e reavaliao das posturas adotadas.Os que no se enquadram neste modelo, de antemo estabelecido,no teriam direito terra? Alm disso, este modelo pressupe umestgio ideal e avanado de conscincia. E os que ainda noatingiram a conscincia ficaro de fora? A imposio de um modelo,ainda que eficaz do ponto de vista econmico e racional noreproduziria as relaes verticais de dominao a que os excludosda terra historicamente tm se submetido? No estariam osmediadores e lideranas contribuindo para a reproduo dessasrelaes de dominao? O carter impositivo, autoritrio, excludentee centralizador, assumido pelo MST, no reproduz hoje um modelode sociedade, com a ntida separao entre dirigentes e executantes?(...) No estariam as lideranas do Movimento assumindo umapostura vanguardista e elitista, modelo historicamente fracassadode direo das massas? (Brenneisen, 1994, p. 190-191).

    A continuidade das investigaes, portanto, tem, porreferncia, a constatao de que, apesar dessa primeira experinciafracassada no Oeste paranaense e de tantas outras que tiverampor fundamento a organizao coletiva da produo empreendidasem diversos assentamentos organizados pelo pas, o Movimentocontinuou a insistir na adoo desse modelo, atribuindo a falncia

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    dessas primeiras experincias falta de um projeto maisconsistente. Segundo a avaliao dessas lideranas, o problemano estava no prprio modelo, mas na pouca experincia doMovimento no desenvolvimento de projetos dessa natureza e nafalta de uma estrutura que definisse a organizao da produonos assentamentos rurais. No entanto, como a pesquisa procurardemonstrar, as dificuldades apresentadas no se devem a essesfatores, mas relacionam-se tipologia organizacional escolhida e fundamentao poltico-ideolgica que lhe d sustentao.

    As muitas questes suscitadas nessa primeira incurso nosestudos dos assentamentos rurais, e no suficientementerespondidas no mbito daquela pesquisa, demonstraram-nos anecessidade de novas investigaes luz de uma pesquisa empricaque envolvesse outros assentamentos e as especificidades dasexperincias organizacionais desenvolvidas ou em desenvolvimentoem cada um deles, alm da utilizao de outros documentos quepossibilitassem uma anlise mais profunda da fundamentaopoltico-ideolgica do modelo cooperativista desenvolvido pelo MST.2

    Especificamente no Oeste do Paran, o Movimento teminsistido na organizao de assentamentos no formato Cooperativasde Produo Agropecuria (CPA), que tem por base a organizaocoletiva da produo nos mais amplos aspectos, e a imposio dessemodelo por parte da direo do Movimento tem-se constitudo numaverdadeira camisa de fora para os agricultores assentados que,de diversas maneiras, tm resistido a submeter-se a umaorganizao da produo e da vida cotidiana fundamentada emparmetros alheios a suas histrias culturais. Os embates eenfrentamentos tm produzido seqelas que dificultam areorganizao do assentamento aps o rompimento total ou parcialdo modelo proposto.

    A possibilidade de aprofundamento dos questionamentossuscitados recebe importantes contribuies de diversas pesquisas,debates e reflexes sobre movimentos sociais e assentamentosrurais empreendidas nos ltimos anos, sendo que algumas delasforam realizadas paralelamente ao desenvolvimento deste trabalho.

    Parte das pesquisas sobre movimentos sociais produzidasna dcada de 1980, de certa forma, superdimensionaram o potencialde transformao e de democratizao dos movimentos sociais que

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    emergiram nos anos 1980. Consideramos que os movimentossociais rurais e urbanos constituem-se em fundamentais agentesde transformao e de democratizao da sociedade brasileira,porm esse processo est permeado por contradies, avanos erecuos, como se procurar demonstrar nesta pesquisa.

    O MST, em especial, organiza-se como uma reao s relaesde dominao historicamente impostas ao homem do campo, pormo rompimento dessas relaes torna-se algo extremamente difcil,mesmo porque muitas dessas relaes autoritrias, clientelsticas,de mando e obedincia, constituem-se em elementos incrustadosna cultura poltica brasileira e continuam reproduzindo-se, emalgum grau, ainda hoje, no meio rural brasileiro.

    Diante de uma realidade que se apresenta permeada pormltiplas faces e relaes, busca-se, sobretudo, a partir doconhecimento produzido, discutir os posicionamentos poltico-ideolgicos que fundamentam a prtica poltica do MST cuja facemais evidente, justamente pelos conflitos que engendra, encontra-se no modelo organizacional que tem sido priorizado nosassentamentos rurais de reforma agrria. Nossa pretenso, com adiscusso dessa temtica e das anlises que dela advierem, a desomar esforos na continuidade do debate, que consideramos aindano superado - pois, na prtica, como a pesquisa demonstrar,continua-se a insistir na adoo do modelo em questo e, qui,contribuir para determinadas mudanas que consideramosrelevantes no processo de construo da cidadania e dademocratizao das relaes sociais no campo.

    O objeto de estudo em questo considerado, porpesquisadores, como um processo social complexo, em que nocaberiam, como escolha metodolgica, categorias analticas oumodelos tericos unvocos que, segundo eles, ao invs dedesvendarem o real, contribuiriam para mascarar contradiesconstitutivas desse processo. Nesse sentido, esta anlise orienta-se pela tentativa de superar diagnsticos conclusivos e de evitarenfoques teleolgicos da dinmica social, considerando ainda quea apreenso do objeto em questo se d em tempos e espaosdiferenciados, da a necessidade de historiciz-los (Ferrante, 1992,p. 107).

    Para a realizao deste trabalho entrevistamos, durante os

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    anos de 1998 e 1999, agricultores assentados e lideranas do MST,num total de 61 entrevistas. Em cada um dos assentamentos (Vitriae Verdum) ou ocupaes (Boi Preto e Mitacor) realizamos 13entrevistas, incluindo homens e mulheres, totalizando 52entrevistas.

    Essas entrevistas foram organizadas com roteiro previamenteelaborado, envolvendo dois blocos de questes. O primeiro continhaquestes que visavam identificao dos entrevistados e ao resgatede suas trajetrias de vida e de trabalho e o segundo, questessobre a organizao da vida cotidiana e da produo desenvolvidaou em desenvolvimento nos locais selecionados para anlise. Aindautilizando o mesmo procedimento (entrevista com roteiropreviamente elaborado), entrevistamos nove lideranas do MST.Alm das entrevistas com lideranas e agricultores assentados,utilizamo-nos de diversos documentos do MST, entre eles cadernosde formao, memorial dos laboratrios organizacionais de campo,artigos produzidos por assessores do Movimento e atas deassemblias.

    Ao realizarmos as entrevistas junto aos agricultores da base,comprometemo-nos em no revelar suas identidades, por isso seusverdadeiros nomes foram omitidos e nos restringimos apenas aindicar, no decorrer deste trabalho, a idade dos depoentes.

    Como j afirmamos acima, os assentamentos ruraisconstituem-se em objetos de estudo complexos, no se limitandoa um campo especfico de estudo e tampouco comportando modelostericos unvocos. No caso especfico desta pesquisa, cujo recorteso as relaes de poder que operam no interior dos assentamentosrurais no processo de organizao da vida cotidiana,fundamentamo-nos nas contribuies de Michel Foucault(sobretudo em seus trabalhos sobre a genealogia do poder), nosestudos desenvolvidos sobre a sociologia da vida cotidiana principalmente nos que tratam da resistncia cotidiana (Cf. Certeau,1996), e nos estudos especficos, j anteriormente citados, sobre aorganizao nos assentamentos rurais desenvolvidos por ZanderNavarro, Ilse Scherer-Warrem, Maria DIncao e Grard Roy.

    As anlises de Foucault deslocam a questo do poder dombito to somente do Estado, para formas de exerccio do poderque se expandem por toda a sociedade, penetrando na vida cotidiana.

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    Se as anlises de Marx sobre o poder, grosso modo, tm como eixocentral a dominao de classe, que poderia ser superada a partirda extino da dominao de uma classe (burguesia) sobre a outra(proletariado), as de Foucault procuram demonstrar a insuficinciadessas anlises para a compreenso de como, de fato, o poder seexerce na sociedade. Na verdade, para Foucault, no existe o poder,mas relaes de poder, que no se reduzem somente opresso oudominao. Ou melhor, se o poder se reduzisse somente opresso,por certo no se sustentaria. Existem, como demonstra Foucault,outros mecanismos extremamente sutis e eficazes de controle esujeio.

    Ao buscar em Foucault elementos de compreenso para oestudo em questo, no se tem a pretenso de operar umatransposio dessas anlises, que tm suas especificidades, parauma outra tambm especfica, que so os estudos sobre osassentamentos rurais. Mas procura-se to somente buscar, no eixocentral de suas idias, elementos que contribuam para odesvendamento de como as relaes de poder se reproduzem, nos no nvel daquilo que se poderia considerar dos macropoderes,isto , nas relaes entre as classes sociais e destas com o Estado,mas, principalmente, no nvel dos micropoderes, ou seja, como asrelaes de poder se reproduzem, justamente entre os que lutampela superao da dominao a que historicamente estiveramsujeitos na sociedade capitalista. Em sntese, como as relaes depoder se reproduzem entre os sditos nas suas relaes recprocas.

    Em um de seus estudos mais importantes sobre a questodo poder, Michel Foucault (1987) demonstra como a reforma penaldo sculo XVIII, ocorrida num contexto de consolidao de umanova ordem social, institucionalizou o encarceramento,substituindo os antigos mtodos punitivos, que se centravam emexecues pblicas, para uma nova tecnologia do poder de punir.Para o autor, as mudanas ocorridas no se restringem institucionalizao da priso, com seus novos mtodos de controlee punio, mas estendem-se s demais instituies do sistemacapitalista: fbricas, escolas, escritrios, quartis, etc. Em todaselas estabelece-se uma relao intrnseca entre saber e poder e,mesmo que cada uma delas possua sua especificidade, assemelhanas nas suas engrenagens de funcionamento so maiores

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    que as diferenas.Embora a relao entre saber e poder j estivesse presente

    em seus trabalhos anteriores, no perodo que corresponde primeira fase de seus estudos, denominado arqueologia do saber, nos seus estudos genealgicos, que correspondem a uma segundafase, sobretudo aqueles desenvolvidos sobre a priso e a prpriaconstituio da sexualidade, que estas relaes sero melhorestabelecidas. Em seus estudos genealgicos, Foucault demonstracomo saber e poder se implicam mutuamente, pois, ao mesmotempo em que se exerce um poder, acumula-se um saber. nestesentido que, para ele, o poder produz saber.

    Na relao estabelecida entre saber e poder, Foucault introduza idia do corpo enquanto superfcie sobre o qual o poder atua. Opoder que se exerce sobre os corpos visa sua conformao eadestramento, com vistas a torn-los dceis e teis.

    Este processo de adestramento dos corpos, com vistas obteno de sua docilidade e mxima utilidade, assenta-se sobredois pilares fundamentais: o da disciplina e o da vigilncia. Noprocesso disciplinar operado nas instituies, cada detalhe temsua importncia, ou melhor, Foucault no os trata como merosdetalhes. Para ele, a disciplina a anatomia do detalhe. Naverdade, os detalhes so mecanismos de poder, muitas vezesinfinitesimais, mas que atingem os indivduos no seu mago, noseu ntimo, ou na sua alma, como diria Foucault, alterando seusgestos e comportamentos, adequando-o nos mnimos detalhesao que dele se deseja. Em sntese:

    O momento histrico das disciplinas e o momento em que nasceuma arte do corpo humano que visa no unicamente o aumento desuas habilidades, nem tampouco aprofundar a sujeio, mas aformao de uma relao que no mesmo mecanismo o torna tantomais obediente quanto mais til, e inversamente. Forma-se entouma poltica das coeres que so um trabalho sobre o corpo umamanipulao calculada de seus elementos, de seus gestos, de seuscomportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poderque o esquadrinha o desarticula e o recompe. Uma anatomiapoltica que tambm uma mecnica do poder, est nascendo;ela define como se pode ter domnio sobre o corpo dos outros, nosimplesmente para que faam o que se quer, mas para que operemcomo se quer, com as tcnicas, segundo a rapidez e a eficcia quese determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos eexercitados, corpos dceis (Foucault, 1987, p. 119).

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    Os mecanismos disciplinares visam, portanto, obteno daobedincia e da docilidade. A disciplina, por sua vez, obedece a umritual e a determinados alinhamentos obrigatrios. Nesseprocesso, o controle do tempo torna-se mecanismo central deadestramento e conformao dos corpos e nesse sentido que, nointerior das instituies da era moderna, estabelece-se uma novamaneira de gerir o tempo e torn-lo til. O controle do tempo torna-se, portanto, mecanismo de controle do corpo com vistas obtenode um gesto eficiente:

    A modalidade enfim: implica numa coero ininterrupta, constante,que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seuresultado e se exerce de acordo com uma codificao queesquadrinha ao mximo o tempo, o espao, os movimentos. Essesmtodos que permitem o controle minucioso das operaes do corpoque realizam a sujeio constante de suas foras e lhe impemuma relao docilidade-utilidade, so o que podemos chamar asdisciplinas (Foucault, 1987, p. 118).

    Se, por um lado, a disciplina a tcnica de um poder quetorna os indivduos ao mesmo tempo objeto e instrumento de seuexerccio, e consiste no mais absoluto controle sobre todas asoperaes do corpo, por outro lado, para que este controle seconstitua enquanto tal, necessita-se de determinados instrumentosque possibilitem a vigilncia permanente. Nesse sentido, aarquitetura, o confinamento, e a cerca, como demonstrouFoucault, constituem-se em fatores inerentes a esse processo. Opanptico de Benthan, com sua torre central, demonstra como aarquitetura, a organizao espacial, permite, ao mesmo tempo, avigilncia, o registro permanente e o mais absoluto controle. Aoproceder-se distribuio dos indivduos dentro de um espao, eao se estabelecerem mecanismos de vigilncia que permitamcontrole detalhado sobre este espao (tornando visveis os que nelese encontram, permitindo a sua localizao imediata e o registrodo que fazem), associado s demais tcnicas de controle, fecha-seo crculo do poder disciplinar, ou seja, a vigilncia, possibilitadapela organizao do espao, torna-se engrenagem constitutiva dopoder disciplinar.

    Enfim, Foucault desloca a questo do poder do mbito do Estado

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    para formas de exerccio do poder que perpassa toda a sociedade, apartir das instituies que a compem. No interior dessasinstituies operam mecanismos extremamente sutis de controle,incluindo a organizao do espao, a vigilncia, o controle do tempo,a regularizao e a padronizao dos comportamentos. Essesmecanismos de controle, por sua vez, penetram na vida cotidianaenvolvendo todos os indivduos, ou seja, deles ningum escapa etodos ns nos tornamos, ao mesmo tempo, sujeitos e agentes dopoder. Em vista disto, as anlises de Foucault nos oferecemelementos para a compreenso de como se reproduzem as relaesde poder no cotidiano dos assentamentos rurais face ao modeloorganizativo que tem sido desenvolvido nestes locais.

    Sem a pretenso de entrar na polmica em torno da afirmaode Foucault sobre a morte do sujeito, contida em seus primeirosestudos (Cf. Bruni, 1986), partimos do princpio inerente s suasanlises, embora nem sempre explicitado, de que os indivduosno so meramente sujeitos passivos ou receptculos sobre os quaiso poder incide. Pelo contrrio, se onde h poder h resistncia,as relaes de poder trazem em si prprias o espao da resistncia.A este respeito, Foucault afirma:

    Esta resistncia de que falo no uma substncia. Ela no anteriorao poder que ela enfrenta. Ela co-extensiva a ele e absolutamentecontempornea (...) No coloco uma substncia da resistncia facea uma substncia do poder. Digo simplesmente: a partir do momentoem que h uma relao de poder, h uma possibilidade deresistncia. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempremodificar sua dominao em condies determinadas e segundouma estratgia precisa (Foucault, 1979, p. 241).

    Partindo, por um lado, da compreenso de que as anlisesmacrossociolgicas, calcadas nos grandes dispositivos sociais,tomadas isoladamente, no do conta de explicar a complexidadedas relaes sociais, e tendo, de outro lado, por referncia asanlises de Foucault sobre as relaes de poder que, por sua vez,trazem em si mesmas a possibilidade da resistncia, este trabalho,de forma complementar, orienta-se ainda pelos estudos dasociologia da vida cotidiana, com nfase para aquelas anlises quese ocuparam da resistncia cotidiana.

    A sociologia da vida cotidiana opera um recorte no todo social

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    a fim de investig-lo nos seus pormenores, naquilo que escapa sanlises ditas estruturais. Nesse sentido, os estudos do cotidianocentram-se no detalhe, conferindo-lhe relevncia na compreensodas relaes sociais. O cotidiano visto, ento, como aquele espaosingular em que se do as vivncias pessoais, em que ocorrem osprocessos de socializao e em que operam as diferentes trocas,constituindo-se por isso num espao sui generis para a investigaosociolgica. A sociologia da vida cotidiana volta seu olhar einterrogao para as relaes prximas e regulares empreendidaspelos sujeitos individuais e centra-se nas prticas e representaescom as quais esses mesmos sujeitos negociam cotidianamente suainsero social (Balandier, 1983, p. 06), ou seja, volta seu olharpara as prticas ou criaes empreendidas por esses sujeitos nasua vida cotidiana (Cf. Maffesoli, 1979, p. 49).

    Portanto, o cotidiano tanto se constitui naquele espao dasatividades regulares, rotineiras, do dia-a-dia, como tambm naqueleespao em que ocorre o inesperado, o acontecimento, o excepcional.Lado a lado convivem rotina e rupturas, e nesse campo aberto dodia-a-dia e tambm do inusitado que so construdas e semanifestam as mais diversas formas de resistncia.

    Outro fator a ser considerado, ao lanarmos mo desseinstrumental de anlise, o fato de que se deve levar em contatanto o tempo presente, imediato, temporal e espacialmente definidoe que, pela proximidade, pode ser manipulado, tocado,constituindo-se naquilo que Alfred Schutz denominou zona deoperao (Cf. Schutz, 1972), como tambm se devem levar emconsiderao as descontinuidades que lhe so intrnsecas.

    Diversas correntes sociolgicas, entre elas marxistas,fenomenolgicas, interacionistas e etnometodolgicas, debruaram-se sobre o estudo do cotidiano, e cada uma delas, a seu turno,partindo de seus referenciais tericos, procurou lanar um olharprprio a esses estudos. No o caso de resgatar, neste espao, aspolmicas e divergncias existentes entre elas, e que, por sinal,so significativas, mas to somente esclarecer de que maneira asanlises feitas, principalmente pelos estruturalistas efenomenlogos, sem cair num ecletismo exacerbado, podem oferecercontribuies ao estudo do cotidiano.

    Jos Pais procura demonstrar que a utilizao destes dois

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    referenciais, o macrossociolgico e o microssociolgico, podemoferecer importantes contribuies ao estudo sociolgico da vidacotidiana. Para ele, a utilizao de um deles no necessariamenteexclui o outro, ou seja, considera salutar que se lance mo de uminstrumental de anlise centrado no cotidiano, no detalhe, enfim,nos microprocessos da vida social, sem, contudo, perder de vista ocontexto histrico em que estes esto inseridos. Procurandodemonstrar as possibilidades de juno de determinados aspectosdestas duas vertentes e tambm que tipo de olhar cada uma delaslana sobre o cotidiano, o autor utiliza-se de uma metfora, decerta forma irnica, mas bastante pertinente: identifica o olharestruturalista como aquele olhar janeleiro, ou seja, aquele olharestruturado teoricamente, que toma certa distncia do observado,e pe-se janela a fim de enquadrar o observvel. O olharfenomenolgico, por outro lado, aquele olhar arruadeiro, aqueleolhar em que a experincia precede a teoria, mais intuitivo e quese imiscui entre a multido a fim de, o mais perto possvel, espreitaro observvel. Ou seja, para ele, estes dois olhares no se excluemmutuamente, na verdade, complementam-se:

    Ora, da mesma forma que a sociologia da vida quotidiana no devefazer abstraco completa da individualidade, tambm no devedesconsiderar aquelas proposies concernentes estrutura socialenvolvente das aces sociais individuais. Ou seja, o exame dasprticas quotidianas no implica um puro retorno aos indivduos,desenquadrados do contexto social em que se movem. Por outrolado, o insistente acento nos resduos quotidianos ou nosmicrossistemas sociais, ou ainda, o excessivo acento colocado sobrea omnipresente normatividade da vida social, podem levar infravalorao de elementos to importantes quanto a dimensotemporal, cuja presena indiscutvel na anlise dos processosmacroestruturais (Pais, 1986, p. 47-48).

    Para Jos de Souza Martins, as descobertas fenomenolgicasganham novo sentido quando esse olhar dirigido para as rupturasque podem ocorrer no cotidiano, e ressalta a importncia dasanlises de autores marxistas, como Heller e Lefebvre,principalmente no que se refere ao acento dado por estes autoress possibilidades de transformao social, gestadas no cotidiano,a partir das contradies inerentes ao prprio sistema capitalistade produo. Martins afirma:

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    a que o reencontro com as descobertas das orientaesfenomenolgicas ganha novo e diferente sentido. Pois, no instantedessas rupturas do cotidiano, nos instantes da inviabilidade dareproduo, que se instaura o momento da inveno, da ousadia,do atrevimento, da transgresso. E a a desordem outra, como outra a criao. J no se trata de remendar as fraturas do mundoda vida, para recri-lo. Mas dar voz ao silncio, de dar vida Histria(Martins, 1998, p. 06).

    No que se refere resistncia construda cotidianamente,esse estudo ampara-se ainda nas contribuies de Michel deCerteau, sobretudo nas interrogaes que este autor lana sobreas prticas culturais cotidianas, feitas de pequenas resistncias,nem sempre perceptveis, mas que impem mudanas. Emborasuas reflexes tenham como referncia as prticas dosconsumidores culturais, elas no se restringem a este campoespecfico e por isso nos do importantes pistas para pensar aresistncia nos assentamentos rurais. Certeau volta sua atenopara o que fazem os consumidores de produtos culturais, daquiloque lhes imposto pelo sistema social dominante. Demonstra comoos indivduos fazem uma espcie de bricolagem com e na economiacultural dominante, usando de inmeros e infinitesimaismetamorfoses de lei segundo seus interesses prprios e suasprprias regras. A ateno deste autor no recai, portanto, sobreas grandes transformaes, ou grandes movimentos de resistncia,mas nos pequenos, nas pequenas e astutas atitudes que ocorremno cotidiano e, por isso, nem sempre perceptveis. Certeau ocupa-se da resistncia que se d nos interstcios, nas brechas deixadaspelo sistema dominante. Nesse sentido, sua ateno dirige-se organizao de uma antidisciplina. Se a ateno de Foucault sedirigiu mais ao desvendamento dos dispositivos disciplinares, asde Certeau centram-se em averiguar como, nesse campo minadopelas microrrelaes de poder, operam microrresistncias e atransmutao do que tem sido imposto. A este respeito, o autorafirma:

    Se verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede davigilncia, mas urgente ainda descobrir como que umasociedade inteira no se reduz a ela: que procedimentos populares(tambm minsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos da

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    disciplina e no se conformam com ela a no ser para alter-los;enfim, que maneiras de fazer formam a contrapartida, do ladodos consumidores (ou dos dominados?), dos processos mudosque organizam a ordenao scio-poltica (Certeau, 1996, p. 41).

    As anlises de Certeau centram-se, sobretudo, nas formassub-reptcias utilizadas pelos indivduos no processo de subversoda ordem instituda, ou seja, longe do conformismo e de qualquerpassividade diante do que imposto, quais tticas e estratgiasso utilizadas pelos indivduos cotidianamente no processo desubverso da ordem social. Nesse sentido, seu estudo constitui-senuma antidisciplina, cuja nfase recai sobre o agir socialconstrudo cotidianamente.

    Em sntese, luz do que foi exposto acima, esta pesquisaorienta-se pela considerao de que a temporalidade do cotidianono se reduz rotina nem repetio pura e simplesmente dosacontecimentos, que a historicidade possui um lugar prprio nasanlises da vida cotidiana e de que o cotidiano tambm feito demudanas, rupturas e das mais diversas formas de resistncia.

    Os movimentos sociais e a organizao sindical ocupam umlugar privilegiado na manifestao da resistncia, pelo menos noque se refere sua parte visvel, porm no se constituem na suanica modalidade. Pelo contrrio, a resistncia ocorrecotidianamente, no dia-a-dia, e apresenta-se de diversas maneiras.Nesse sentido, at mesmo no interior dos prprios movimentos deresistncia ocorrem novas formas de resistncia, que colocam emcheque a hegemonia e a prtica poltica daqueles que se encarregamda direo das massas, como se ver no decorrer deste trabalho.

    A utilizao de aspectos de determinados referenciais tericos,de maneira criteriosa e seletiva, no implica em ecletismo, mas emflexibilidade. Se partirmos do pressuposto de que a realidade social complexa e multifacetada, e em especial o objeto de estudo emquesto, h de se lanar mo de diferentes teorias que auxiliem nacompreenso dessa realidade. Nesse processo, preciso orientar-se pela noo de complexidade tal como prope BoaventuraSantos e Edgar Morin3 e pela compreenso de que a restrio daanlise a um s campo do conhecimento tambm se constitui emelemento limitador ao processo de desvendamento do real. Por isso,a necessidade de sair dos limites estreitos impostos a cada cincia

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    pelo positivismo. Mesmo assim, preciso ainda ter-se em conta ahistoricidade, a parcialidade e a provisoriedade de todoconhecimento cientfico. No caso especfico deste trabalho, essanoo amplia-se tendo em vista tratar-se de um objeto em constantemudana, fator que se, por um lado, impe limites pesquisajustamente pela dificuldade que se tem de captar um objeto que semove, por outro, torna-se extremamente profcuo, por estarconstantemente a mostrar-nos que a realidade social dinmica,flexvel, mutvel, e, sobretudo, histrica.

    Entre as fontes documentais usualmente utilizadas para osestudos do cotidiano, ou seja, literrias, audiovisuais e biogrficas(Cf. Pais, 1984), utilizamo-nos, para este estudo, das fontesbiogrficas. As entrevistas realizadas nos assentamentos rurais eocupaes orientaram-se por resgatar as histrias de vida dosagricultores, suas vivncias pessoais, suas trajetrias, seus anseios,sonhos e expectativas. Enfim, este trabalho procurou orientar-sepor dar ouvido s vozes historicamente silenciadas, vozes quenem sempre so ouvidas, mas que no se fazem somente desujeio, pelo contrrio, so feitas tambm de ousadia, de luta,expressas nas diferentes formas de resistncia. Vozes que se, porvezes, no so ouvidas, se fazem ouvir.

    Como afirmamos anteriormente, as diversas pesquisas ereflexes produzidas nos ltimos anos sobre movimentos sociais eassentamentos rurais foram de fundamental importncia para odesenvolvimento deste trabalho. Entre elas, destacamos ostrabalhos de Scherer-Warren4, principalmente a discusso feita emAbrindo os marcos tericos para o entendimento das aescoletivas rurais, em que demonstra a insuficincia dosinstrumentos de anlise utilizados nos estudos sobre as aescoletivas rurais, ou seja, a autora procura demonstrar ainsuficincia dos marcos tericos fundamentados na lgica doscondicionantes estruturais para se apreender a complexidade doreal. Scherer-Warren prope para o estudo dos movimentos sociais,uma abordagem culturalista fundamentada na lgica damobilizao, nos microfundamentos socioculturais, em relaesespecficas e contingentes, em processos sociais de durao maiscurta, em territorialidades mais localizadas com conexes local-globais e transformaes pela resistncia democrtica. Nessa

    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    anlise, a autora demonstra os efeitos, na organizao da luta pelaterra, da hegemonia de concepes tericas estruturalistasrevolucionrias na mediao poltica, realizada por lideranas eassessores (Cf. Scherer-Warren, 1997).

    Este trabalho fundamenta-se, ainda, na importantecontribuio que tem sido dada por Zander Navarro compreensodos processos sociais rurais e em especial ao estudo dosassentamentos rurais5. Pesquisador comprometido com o processode democratizao nas relaes sociais no campo, Navarro tem sidoum dos pesquisadores que mais tem denunciado a prtica polticados dirigentes do MST. Seus estudos sobre assentamentos ruraisno Rio Grande do Sul so fundamentais para a compreenso dosprocessos sociais agrrios, sobretudo no que tange ao formatoorganizacional e escolhas tecnolgicas adotadas pelo MST para osassentamentos rurais e suas implicaes para o processo dedemocratizao em reas rurais. Seus trabalhos denunciam,sobretudo, a racionalidade terica e poltica que fundamenta asescolhas do MST. Em reflexes mais recentes, ancorado naspesquisas realizadas em assentamentos rurais durante todos essesanos, Navarro tem reiterado e ampliado, luz de novosacontecimentos polticos, as anlises crticas e extremamentepertinentes feitas anteriormente (Cf. Navarro, 2000).

    Outro trabalho especfico empreendido durante estes ltimosanos, e que tambm fundamenta esta pesquisa, o de Maria DIncaoe Gerard Roy. A anlise realizada em Ns cidados, aprendendo eensinando a democracia concentra-se na reproduo das relaesde dominao no interior de um assentamento rural localizado noEstado de So Paulo e busca estabelecer, entre pesquisadores eagricultores assentados e entre os prprios agricultores, uma novarelao, calcada na construo de relaes sociais maisdemocrticas (Cf. DIncao; Roy, 1995).

    Tendo por referncia os parmetros tericos e interpretativosexplicitados, bem como as reflexes e anlises sobre assentamentosrurais mencionadas acima, este trabalho foi organizado da seguintemaneira:

    No primeiro captulo, intitulado Emergncia e consolidaodo MST no cenrio poltico brasileiro, procuramos situar o processode (re)organizao da luta pela terra no final dos anos 1970, a

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    emergncia do MST e as mudanas pelas quais o Movimento passouao longo desses 20 anos de efetiva existncia, com destaque paraas especificidades da luta empreendida pelos agricultores sem-terrano Estado do Paran.

    No segundo captulo, intitulado A formao do SistemaCooperativista dos Assentados, procuramos indicar em queconsiste, bem como em quais pressupostos poltico-ideolgicos sefundamenta, o modelo cooperativista desenvolvido pelo MST.

    No terceiro captulo, intitulado Organizao social e daproduo no Assentamento Vitria, procuramos, por um lado,resgatar o processo histrico que originou o assentamento e, poroutro, os processos de organizao da vida cotidiana e da produo,com nfase na organizao dos grupos coletivos e associaes.

    No quarto captulo, intitulado A formao de uma CPA noassentamento Verdum, a anlise concentrou-se na experinciade formao de uma Cooperativa de Produo Agropecuria, naresistncia da base ao modelo proposto, nos conflitos e cises queocorreram e no processo de reorganizao da vida cotidiana.

    No quinto captulo, intitulado A organizao nos novosprojetos de assentamento: da resistncia s redefinies, emprimeiro lugar, procurou-se, utilizando-se do mesmo procedimentoanterior, estabelecer a relao entre os dois momentos da luta pelaterra, ou seja, entre movimento e assentamento, em seguida aanlise concentrou-se na proposta de organizao de cada um dosprojetos de assentamento em formao, na resistncia da base atas redefinies do projeto inicial.

    No sexto e ltimo captulo, intitulado Relaes de poder,dominao e resistncia, luz da pesquisa emprica e de umamaneira mais sistematizada, a abordagem enfatiza a reproduodas relaes de poder e dominao no interior dos assentamentosou ocupaes analisadas e a contraface desta relao, representadapela resistncia camponesa. Partindo, ainda, da compreenso deque as relaes estabelecidas no campo s podero sercompreendidas se inseridas no contexto histrico, procuramostambm, neste captulo, analisar como determinadas relaes dopassado, autoritrias e clientelsticas, continuam se reproduzindoentre aqueles que lutam pela superao dessas relaes no meiorural brasileiro. Finalizando o captulo, retomamos, com base nos

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    documentos do MST produzidos nos ltimos anos, a discussointerna no que se refere organizao cooperativista nosassentamentos rurais. Esses documentos apontam paradeterminadas alteraes na orientao at ento vigente.

    Notas

    1 Sobre o assunto consultar: WESTFALLEN, Ceclia et al. Nota prvia ao estudo daocupao da terra no Estado do Paran. Boletim da UFPR, n.7, p. 1-52, 1968;SPERANA, Alceu; SPERANA, Carlos. Pequena histria de Cascavel e do Oeste.Cascavel: J. S. Impressora Ltda., 1980.

    2 Entre estes trabalhos, foram de fundamental importncia as reflexesdesenvolvidas por: NAVARRO, Zander. Assentamentos rurais, formatosorganizacionais e desempenho produtivo: o caso do assentamento Nova Ramada.ANPOCS, out. 1994; NAVARRO, Zander. Polticas pblicas, agricultura familiar eos processos de democratizao em reas rurais brasileiras (com nfase para ocaso do Sul do Brasil). Anpocs, out. 1996; NAVARRO, Zander (Org.). Poltica,protesto e cidadania no campo. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS,1996. NAVARRO, Zander. Sete teses equivocadas sobre as lutas sociais no campo:o MST e a reforma agrria. So Paulo em perspectiva (Revista da Fundao Seade)v. 11, n. 2, 1997; DINCAO, Maria Conceio; ROY, Gerard. Ns cidados,aprendendo e ensinando democracia. So Paulo: Paz e Terra, 1995; PAULILO,Maria Ignes. Terra vista e ao longe. Florianpolis: UFSC, 1996; SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. So Paulo: Loyola/Centro Joo XXIII,1993; SCHERER-WARREN, Cidadania sem fronteiras: aes coletivas na era daglobalizao. So Paulo: Hucitec, 1999; SCHERER-WARREN. Abrindo os marcostericos para o entendimento das aes coletivas rurais. ANPOCS, 1997; FERRANTE,Vera Lcia S. B. A aventura de pesquisar assentamentos de trabalhadores Rurais.Universidade e Sociedade, ano II, n. 4, p. 105-111, 1992; BERGAMASCO, SoniaMaria P. P.; FERRANTE, Vera Lcia S. B. Os assentamentos rurais: caminhos edesafios de pesquisa. In: ROMEIRO, Ademar et al. (Orgs.) Reforma agrria. Apesquisa da FAO em debate. Rio de Janeiro: Vozes/IBASE/FAO, 1994.

    3 Sobre este tema, consultar: SANTOS, Boaventura de Sousa. A queda do ngelusnovus: fragmentos de uma nova teoria da histria. Novos Estudos CEBRAP. N.47, p. 103-126, 1997; SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduo a uma cinciaps-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. A obra de Edgar Morin sobre o assunto extremamente vasta, da qual destacamos: MORIN, Edgar. O mtodo IV Asidias: sua natureza, vida, hbitat e organizao. Portugal: Publicaes Europa-Amrica, 1991; MORIN, Edgar. Epistemologia da complexidade. In: SCHNITMAN,Dora Fried (Org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: ArtesMdicas, p. 274-286, 1996.

    4 Sobre este tema, consultar: SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentossociais. So Paulo: Edies Loyola/Centro Joo XXIII, 1993; SCHERER-WARREN,Ilse. Cidadania sem fronteiras: aes coletivas na era da globalizao. So Paulo:Hucitec, 1999; SCHERER-WARREN, Ilse. Abrindo os marcos tericos para oentendimento das aes coletivas rurais. ANPOCS, 1997.

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    5 Sobre este tema, consultar: NAVARRO, Zander. Assentamentos rurais,formatos organizacionais e desempenho produtivo: o caso do assentamentoNova Ramada. Anpocs, out. 1994; NAVARRO, Zander. Polticas pblicas,agricultura familiar e os processos de democratizao em reas ruraisbrasileiras (com nfase para o caso do sul do Brasil). Anpocs, out. 1996;NAVARRO, Zander (Org.). Poltica, protesto e cidadania no campo. Editorada Universidade/UFRGS, 1996; NAVARRO, Zander. Sete teses equivocadassobre as lutas sociais no campo: o MST e a reforma agrria. So Paulo emPerspectiva (Brasil Agrrio), v. 11, n. 2, 1997.

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    introduo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

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    CAPTULO I

    EMERGNCIA E CONSOLIDAO DO MSTNO CENRIO POLTICO BRASILEIRO

    O objetivo deste primeiro captulo o de proceder a um resgateda trajetria poltica e organizacional do Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ainda que de maneiraextremamente breve, uma vez que consideramos essa abordagemfundamental para compreender determinados aspectos dasmudanas ocorridas no Movimento, desde a sua emergncia atos dias atuais.

    Portanto, no nosso objetivo, neste captulo inicial, resgatarcronologicamente a evoluo do MST ao longo desses 20 anos deefetiva existncia (oficialmente so 17 anos de existncia, desde asua formao nacional em 1984), ou a origem e constituio dosassentamentos rurais instalados at o presente momento no Estadodo Paran, mesmo porque tal empreendimento demandaria umespao muito maior. Assim, nosso objetivo, neste captulo, apontar, com base na literatura disponvel, para alguns traosmarcantes na trajetria do Movimento, a partir de um breve resgateda (re)organizao da luta pela terra no Brasil, com nfase emaspectos da organizao e da trajetria do Movimento no Estadodo Paran.

    Da emergncia at os dias atuais, o Movimento compreendetrs fases bastante distintas, tanto em relao s estratgiasadotadas, como em relao s redefinies de papis dosmediadores. Procuraremos, aqui, apontar, em linhas gerais, ascaractersticas mais marcantes dessas fases, ou seja, a fase inicialque corresponde emergncia do Movimento, a fase intermediria,que vai de meados de 1986 ao ano de 1993 e, por fim, abordaremos

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    aspectos do Movimento na atualidade, ou seja, de 1994 aos diasatuais.

    1.1 A reorganizao da luta pela terra: a fase inicial

    O processo de (re)organizao da luta pela terra ocorreu nofinal dos anos 1970 e incio dos anos 1980, em contextos regionaisespecficos. Inicialmente, a organizao se deu no Rio Grande doSul, no ano de 1979, quando os agricultores, expulsos da reservaindgena de Nonoai, ocuparam as Fazendas Macali e Brilhante, naregio de Sarandi. As famlias expulsas passaram ento a pressionaro poder pblico para a realizao de assentamentos rurais. Umano depois, acamparam na Encruzilhada Natalino, no municpiode Ronda Alta, com o objetivo de pressionar o governo estadual nadesapropriao de terras ociosas e reassentamento das famlias.

    Paralelamente a este fato, em funo das desapropriaes deterras para construo de grandes complexos hidreltricos, e odesacordo entre o preo a ser pago pelo Estado por estas terras,somado a outros fatores, surgiram pelo Pas vrios movimentos deatingidos por barragens. Entre eles, destacamos o MovimentoJustia e Terra, no Oeste do Paran, organizado em 1978,reivindicando do governo federal a justa indenizao pelas terrasque seriam alagadas com a construo da Usina Hidreltrica Itaipu(Cf. Germani, 1981). Como um desdobramento deste, surgiu, noano de 1981, o Movimento dos Agricultores Sem Terra no OesteParanaense - Mastro (Cf. Brenneisen, 1994, p. 41-123). Estaorganizao especfica, at ento, estava desvinculada daorganizao dos agricultores de Ronda Alta e constituiu-se, comoj afirmamos, um desdobramento da luta iniciada em 1979,denominado Movimento Justia e Terra, que tinha, como principalobjetivo, questionar o valor das indenizaes, efetuadas pelo Estado,para a construo da Hidreltrica Itaipu.

    Aps obterem valores mais justos pelas terras desapropriadas,lideranas e mediadores do Movimento Justia e Terra constataramque muitos trabalhadores rurais, entre eles arrendatrios eposseiros, sem direito indenizao, ficariam desprovidos de seusmeios de trabalho, ficariam, portanto, sem terra (Cf. CPT, 1981). Apartir do cadastramento desses agricultores, cujo nmero de

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    inscritos superou a expectativa dos mediadores e lideranas, queteve incio a organizao regional do movimento dos sem-terra.Pouco tempo depois, outros movimentos organizaram-seregionalmente, como o caso do Movimento do Agricultor Sem Terrado Sudoeste do Paran - Mastes.

    Pelo menos trs fatores concorreram para a (re)organizaoda luta pela terra nesse perodo. Um deles foi o apoio dado organizao por setores progressistas das igrejas catlica e luterana.No Paran, tanto durante o Movimento Justia e Terra, como noperodo que corresponde formao do MST, a igreja progressista(alinhada teologia da libertao) esteve presente oferecendocolaborao por meio da CPT - Comisso Pastoral da Terra.1 Naverdade, a atuao da Igreja, neste momento inicial, foi muito almdo apoio ou assessoria. Coube a ela, naquela circunstnciahistrica, oferecer a direo poltica luta dos trabalhadores. Aforma como se deu esta atuao emprestou ao Movimentocaractersticas poltico-religiosas, elementos marcantes dosprimeiros anos de organizao.

    As prprias lideranas do Movimento, compostas de jovensna sua maioria, pertenciam, como leigos, aos quadros da Igreja. Aatuao da Igreja contribuiu ainda para a definio, nestes anosiniciais, de estratgias de luta pacfica e, juntamente com omovimento sindical rural, possibilitou, a partir de um eficientetrabalho de articulao poltica, a transformao do Movimento,antes restrito ao Sul do Pas, em um movimento de carter nacional.Outro fator que contribuiu para a emergncia do MST foi a prpriapoltica de modernizao agrcola adotada pelos governos militaresnas dcadas de 1960/1970, que concentrou ainda mais apropriedade da terra, expropriando milhares de proprietriosagrcolas, arrendatrios e assalariados do campo.

    E, por fim, outro fator fundamental a se considerar o prpriocontexto poltico da poca, de abertura poltica, que ofereceu ascondies objetivas para a organizao popular e a emergncia demovimentos sociais urbanos e rurais. Essas condies explicam,em parte, a emergncia, neste perodo, especificamente, da lutapela terra, porm, no seria o bastante, se no houvesse, entreesses agricultores, um profundo desejo de liberdade e justiaadormecido durante os anos de ditadura militar. As condies

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    objetivas para a organizao popular, associadas a uma memriadas lutas empreendidas no passado e busca de liberdade e justia,possibilitaram uma organizao nacional sem precedentes nahistria do Pas.

    No que diz respeito organizao da luta pela terra noSudoeste do Estado e formao do Mastes, cabe ainda destacar opapel desempenhado pela Associao de Estudos, Orientao eAssistncia Rural (Assessoar). Essa entidade foi fundada no anode 1966 por padres belgas, pertencentes ala progressista da igrejacatlica, e tinha como principal objetivo o desenvolvimento de umtrabalho de organizao dos pequenos produtores na regio,empenhando-se desde o incio na formao de lideranascomunitrias. Sua atuao foi decisiva na formao do sindicalismoautntico no Sudoeste do Estado. Lideranas rurais, com o apoioda Assessoar, mesmo no tendo conseguido registrar suas chapas,organizaram chapas de oposio, em duas eleies subseqentes(1972 e 1975) para o sindicato dos trabalhadores rurais de FranciscoBeltro. Nos anos seguintes, o trabalho de formao de oposiessindicais teve continuidade. No ano de 1978, finalmente, obtiveramo registro, vencendo as eleies no sindicato de Francisco Beltro.Na seqncia, outro sindicato foi conquistado, o de Dois Vizinhos.Sucessivamente novos sindicatos foram sendo conquistados,chegando-se assim, no ano de 1984, a 17 sindicatos detrabalhadores rurais conquistados pelas oposies sindicais. NoOeste do Estado, no ano de 1983, as oposies sindicais, a partirdo trabalho desenvolvido pela CPT, tambm venceram as eleiesem dois importantes sindicatos da regio: o de So Miguel do Iguaue o de Medianeira.

    Concomitante ao processo de formao das oposiessindicais, a situao no campo se agravou em virtude dos efeitosda modernizao conservadora da agricultura adotada pelosgovernos militares, principalmente nos anos 1970. A exemplo daestratgia adotada pelos sindicatos rurais de Medianeira e SoMiguel do Iguau, localizados no Oeste do Estado (onde o nmerode inscritos foi de 6.200 agricultores sem-terra), os sindicatos daregio Sudoeste tambm passaram a realizar cadastramento dosagricultores sem-terra, com o objetivo de fazer um levantamentoprvio da populao demandante de terra na regio. O nmero de

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    inscritos chegou a 12.000. A partir da que agentes da Assesoar,em conjunto com as lideranas sindicais e a CPT, deram incio aoprocesso de organizao dos trabalhadores sem-terra na regio.

    As estratgias empreendidas eram semelhantes s doMastro, ou seja, reunies nas comunidades, constituio dascomisses nos municpios, nas quais se discutia sobre a posse daterra e o prprio processo de organizao da luta pela terra queento se iniciava.

    Esses dois movimentos regionais, Mastro e Mastes,apresentavam caractersticas semelhantes como, por exemplo, aprpria composio de sua base social, formada por agricultoresexpropriados de seus meios de trabalho. Por outro lado, comoaponta J. C. Torrens, algumas particularidades os distinguiam:enquanto o Mastes se preocupava mais com o trabalho de base,nas comunidades do Oeste, o Mastro privilegiava um trabalho demassa, incentivando grandes manifestaes de protesto, conformeas orientaes da CPT na regio (Torrens, 1992, p. 98).

    As diferenas entre estes dois movimentos regionaisrelacionam-se s prprias especificidades dos dois processosorganizacionais empreendidos. No Oeste, como vimosanteriormente, o Movimento organizou-se a partir do MovimentoJustia e Terra, envolvendo um nmero expressivo de famlias queteriam suas terras alagadas pela Hidreltrica Itaipu, constituindo-se em um movimento de massa. No estamos, com isso, dizendoque no houvesse, por parte da CPT, uma preocupao com otrabalho de base. Na verdade, no Oeste tambm esse trabalho jvinha sendo desenvolvido pelas Comunidades Eclesiais de Base(Cebs) desde o ano de 1975,2 e foi esse trabalho que possibilitou aorganizao do Movimento Justia e Terra e, posteriormente, aorganizao do Mastro.

    No Sudoeste, o trabalho se deu de maneira diferenciada,fundamentado mais solidamente num trabalho de base, justamenteem funo da existncia, nessa regio, desde 1966, da Assessoar.Esta importante entidade de apoio organizao dos trabalhadoresna regio, ofereceu as condies necessrias conquista dossindicatos. No Sudoeste, primeiro ocorreu a conquista os sindicatos,depois ampliou-se a luta com a organizao do Mastes. No Oeste, aluta surgiu a partir, exclusivamente, da CPT, e durante o processo

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    que se foram organizando as oposies sindicais, sendoconquistados por fim, no ano de 1983, os sindicatos de Medianeirae de So Miguel do Iguau.

    Outro aspecto fundamental para se entender a luta pela terranesses anos iniciais, j apontado anteriormente, refere-se ao cenriopoltico da poca, de abertura poltica e de redemocratizao dasociedade brasileira. Especialmente no Paran, as eleiesestaduais de 1982 possibilitaram uma nova composio de foras,com reflexos diretos na organizao da luta pela terra no Estado.Com apoio de segmentos ligados luta pela terra e, de certa forma,comprometido com a reforma agrria, Jos Richa, candidato daoposio, elegeu-se governador pelo Movimento DemocrticoBrasileiro (MDB)3. Ao tomar posse, demonstrando a inteno decumprir os acordos feitos durante a campanha, nomeou cincosecretrios envolvidos com as causas populares, entre eles, NeltonFriedrich, a quem destinou a Secretaria do Interior e Claus Germer,a quem destinou a Secretaria da Agricultura. Claus Germer eraum agrnomo vinculado luta pela terra e j havia anteriormenteassessorado a CPT. No Estado do Paran, pela primeira vez,estabelecia-se assim um ambiente scio-poltico favorvel lutapela terra e a expectativa do estabelecimento de novas relaesentre os movimentos populares e, em especial, entre os movimentospela terra e o Estado (Cf. Torrens, 1992).

    importante lembrar que, embora coubesse ao governofederal a aplicao do Estatuto da Terra na realizao da reformaagrria, o Movimento tinha, pelo menos at meados de 1985, oEstado como principal interlocutor. Somente a partir da posse deJos Sarney que as questes relativas reforma agrria foramtransferidas, de fato, esfera do governo federal. Nesse perodo, noEstado do Paran, as lideranas dos movimentos regionais,principalmente do Mastro e do Mastes, e outros no to expressivos,que durante esses anos iniciais haviam surgido em outras regiesdo Estado, como o Movimento do Agricultor Sem Terra do Litoral(Mastel), Movimento do Agricultor Sem Terra do Centro Oeste(Mastreco) e Movimento do Agricultor Sem Terra do Norte do Paran(Masten), foram reconhecidos como interlocutores legtimos dessesegmento social rural. Se, por um lado, a Secretaria de Estado deAgricultura, tendo sua frente o agrnomo Claus Germer, procurava

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    tomar medidas posicionando-se ao lado dos interesses dosmovimentos populares, e demonstrava-se favorvel realizaoda reforma agrria, por outro, feria interesses de segmentos ruraisligados Faep - Federao da Agricultura do Estado do Paran. Essessetores, por meio de sua entidade de classe, passaram a exercerforte presso sobre a secretaria da agricultura. Os movimentosregionais de agricultores sem-terra, entendendo que a resistncia ofensiva dos interesses latifundistas s poderia ocorrer a partirde uma ampla mobilizao, passaram a realizar atos pblicos, aelaborar documentos contendo suas reivindicaes e a realizarencontros (Cf. Torrens, 1992). Alm disso, como uma das principaisestratgias utilizadas, decidiram por ocupar terras improdutivas.

    Em meados de 1983, um grupo do Mastes ocupa, primeiro, aFazenda Anoni, de 4.000 ha, localizada no municpio de Marmeleiroe, posteriormente, em setembro de 1983, a Fazenda Lagoa SantaCavernoso, de 300 ha, localizada no municpio de Guarapuava,regio Centro-Oeste do Estado. Nesse perodo, outra frente de lutatambm se organizou no Paran, a luta dos ilhus do Rio Paran,os quais, aps as grandes enchentes ocorridas no final de 1982 eincio de 1983, identificaram, como causa do problema, a construode duas hidreltricas, a de Ilha Solteira e Itaipu, e passaram areivindicar, do governo federal e tambm do governo estadual,assentamento das famlias que tiveram suas terras alagadas (Cf.Ipardes, 1992).

    Dessa organizao inicial, marcada por aes isoladas, oMovimento vai se consolidando e adotando novas estratgias. Umadelas foi a aglutinao das vrias lutas pela terra surgidas nosEstados do Sul numa s sigla e organizao (MST), transformandoas diversas organizaes regionais numa s organizao de mbitonacional. Isso ocorreu no ano de 1984, num encontro realizado nacidade de Cascavel, no Oeste paranaense. Nesse encontro, foramelaborados ainda os objetivos gerais do MST:

    - que a terra esteja nas mos de quem nela trabalha;- lutar por uma sociedade sem exploradores e sem explorados;- ser um movimento de massa autnomo dentro do movimentosindical para conquistar a reforma agrria;- organizar os trabalhadores rurais na base;- estruturar a participao dos trabalhadores rurais nosindicato e no partido poltico;

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    - dedicar-se formao de lideranas e construir uma direopoltica dos trabalhadores;- articular com os trabalhadores da cidade e da AmricaLatina.

    No ano seguinte sua formao oficial, em janeiro de 1985,o Movimento organizou o I Congresso Nacional dos TrabalhadoresSem Terra, na cidade de Curitiba, com a participao de,aproximadamente, um mil e quinhentos representantes. No quese refere s estratgias utilizadas ao longo desses anos, ocorreramsignificativas alteraes. No caso especfico da organizao doMastro e do Mastes, as estratgias iniciais resumiam-se organizao de uma relao de agricultores que ficariam sem terra,ou com pouca terra, e cobrana s autoridades estaduaisconstitudas, por meio de documentos escritos, ou cartas abertas populao. Como esta estratgia no surtiu o efeito esperado, osagricultores decidiram pela realizao de acampamentos beirada estrada.

    A utilizao dessa estratgia deu maior visibilidade lutados sem-terra, chamando a ateno da imprensa e da opiniopblica. Com essa estratgia, tornaram-se, portanto, visveis,mostrando, para a imprensa e para populao de um modo geral, aexistncia de uma situao concreta que estava a exigir, dos poderespblicos constitudos, uma soluo. No obstante, como vimos,somente com o uso desta estratgia tambm no foramsuficientemente atendidos pelo Estado nas suas reivindicaes.

    Durante os primeiros anos do Movimento, poucas fazendashaviam sido desapropriadas para fins de reforma agrria no Estadodo Paran, e no Oeste do Paran, bero do Movimento no Estado,at ento nenhum assentamento havia sido realizado. Foi em vistadisto que os agricultores sem-terra lanaram mo da mais eficaz epolmica estratgia empreendida: a ocupao de terrasimprodutivas. Os anos de 1985 e 1986 foram, particularmente,um perodo em que a luta pela terra no Brasil, e especialmente noEstado do Paran, desenvolveu-se de maneira mais intensa. Em1985, com a morte de Tancredo Neves, presidente eleito pelo colgioeleitoral, Jos Sarney assumiu a presidncia da Repblica eanunciou o I Plano Nacional de Reforma Agrria (I Pnra), apontandodessa forma para possveis solues dos problemas agrrios. Este

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    plano, com base no Estatuto da Terra, acenava para a resoluodos problemas no campo, o que provocou, nas elites agrrias esuas organizaes de classe uma forte reao no sentido de impedira realizao do I Pnra. Entre estas organizaes estavam a CNA -Confederao Nacional da Agricultura, a SRB - Sociedade RuralBrasileira, as Federaes da Agricultura e a recm-criada UDR -Unio Democrtica Ruralista, esta organizada justamente para lutarcontra a possibilidade de uma efetiva reforma agrria (Cf. Ramos,1994).

    No Estado do Paran, diante da presso exercida, de um lado,pelo Movimento e, do outro, por segmentos contrrios reformaagrria, o governo estadual tentou conter a luta pela terra no Estadoprocurando cooptar lideranas envolvidas com a organizao dostrabalhadores rurais como assessores e lideranas sindicais, sem,no entanto, conseguir seu intento. Por fim, o governador acaboucedendo aos interesses desses grupos, conduzindo a uma cisoentre movimentos populares e o poder pblico. Em 1985,impossibilitado de dar continuidade ao trabalho da maneira queat ento vinha desenvolvendo, Claus Germer renunciou ao cargode Secretrio de Estado da Agricultura.

    Por outro lado, o MST tambm reagiu, promovendo inmerosacampamentos beira da estrada, localizados estrategicamenteprximos a reas de terras passveis de desapropriao para reformaagrria. Nessa poca, o MST realizou 42 acampamentos em 11estados brasileiros, envolvendo 11.158 famlias. No Paran, foram13 acampamentos (Cf. CPT, 1985, p. 5-10). Paralelamente a estaestratgia, os agricultores do Oeste do Paran lanaram mo deoutro artifcio, o de acampar em frente sede do governo estadual,no ano de 1986. A presso exercida fez com que, no Oeste do Paran,o governo desapropriasse duas fazendas, hoje, Assentamento Svio-Dois Vizinhos, localizado entre os municpios de So Miguel doIguau e Medianeira e o Assentamento Vitria, localizado nomunicpio de Lindoeste.

    Portanto, como vimos, a estratgia inicial utilizada peloMovimento dos Sem Terra em vrios pontos do Pas foi oacampamento beira da estrada, o que se tornou um fato polticoimportante, medida que deu visibilidade luta dos trabalhadoressem-terra. Em seguida, na inteno de pressionar o Estado na

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    relaes de poder, dominao e resistncia

    realizao da reforma agrria e reassentamento das famlias sem-terra, os agricultores passaram a ocupar latifndios improdutivos,promover atos pblicos e, com o apoio da CPT, organizaram asRomarias da Terra4. Na verdade, durante esses anos iniciais, oMovimento foi criando novas estratgias de presso que foram sendoutilizadas concomitantemente, ou seja, as primeiras no foramabandonadas em funo de novas formas de presso, mas foram econtinuam sendo utilizadas simultaneamente.

    Com a adoo dessas novas estratgias, a ocupao defazendas improdutivas e o acampamento em frente a rgospblicos (utilizadas at os dias atuais), o Movimento consolidou-se, o que pode ser demonstrado com o nmero de assentamentosexistentes, na atualidade. Somente no Estado do Paran j foraminstalados aproximadamente 230 assentamentos, um nmeroexpressivo, mas ainda insuficiente, principalmente neste momentoem que retornam ao Estado agricultores que, nas dcadas de 1970e 1980 (seja pelas polticas agrcolas excludentes ou pelasdesapropriaes de terras para a construo de barragens), foramobrigados a atravessar a fronteira dirigindo-se ao pas vizinho, oParaguai, em busca de terra e de trabalho (os chamadosbrasiguaios)5. O que demonstra que, cedo ou tarde, o Estado terque acertar contas com seu passado excludente e no futuro, porcerto, com as aes cometidas no presente.

    Ao se realizarem investigaes histricas sobre a luta pelaterra no Sul do Pas e, especificamente, no Oeste e Sudoeste doParan, constata-se que o esprito de luta desses agricultoresremonta, no mnimo, ao incio do sculo. Mesmo com episdios toespaados no tempo, verifica-se que persiste, nas geraes que sesucedem, uma memria dessa luta, possivelmente um dos fatoresque impulsiona esses agricultores organizao sempre que seusdireitos esto sendo brutalmente usurpados.

    A pesquisa de campo realizada nos desvenda o esprito deluta desses agricultores, os quais demonstraram, a partir de seusdepoimentos, estarem dispostos a dar continuidade, sempre quenecessrio, infindvel luta pela preservao dos direitosduramente conquistados. Ao se engajarem na luta pela terra,puderam adquirir experincia organizacional, o que faz com que,sempre que necessrio, empreendam novas aes coletivas, como

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    tambm lhes possibilita exercer, sobre as geraes futuras, umaao educativa.

    Quando nos referimos a uma memria de luta, para ficar sno Oeste e Sudoeste do Paran (uma vez que a histria de lutadesses agricultores reporta-se ao Rio Grande do Sul, regio deorigem seno deles prprios, de seus familiares e historicamenterica em episdios contestatrios), referimo-nos mesmo amovimentos especficos que se sucedem no tempo, como a Guerrado Contestado de 1912-1916, na fronteira entre Paran e SantaCatarina, a Revolta de 57 no Sudoeste paranaense e, maisrecentemente, outras lutas que foram empreendidas, como a dossuinocultores no final das dcadas de 1970 e 1980, o movimentocontra barragens, e em especial o Movimento Justia e Terra, quepossibilitou a prpria organizao regional do Movimento dos SemTerra no incio dos anos 1980.

    Alm dessas grandes organizaes que ocuparam seu lugarna histria, outras aes isoladas foram, tambm, empreendidaspor esses agricultores contra grileiros e seus jagunos. Sucessivosepisdios de enfrentamento entre, de um lado, fazendeiros, grileirose empresas capitalistas de colonizao e explorao de madeiras e,do outro lado, posseiros, marcam a colonizao do Oeste do Paran,em passado bem recente (1940-1960) (Cf. Westphalen et al., 1978).Esses enfrentamentos tiveram, sempre, como caracterstica aviolncia com que se desenrolaram, redundando na expulso eassassinato de inmeros posseiros que ousaram resistir ao poderdos latifundirios ou dos grileiros que se diziam, de maneirafraudulenta, donos das terras ocupadas por eles. Esses episdiostm, na sua origem, a expanso e contradies do prprio sistemacapitalista de produo, nas diversas formas em que se apresenta.

    A luta contra a expropriao e as atrocidades cometidas porjagunos e grileiros nesta regio constitui-se em uma das facetasdessa lgica perversa de desenvolvimento, que inclui a expropriao(seja pela violncia fsica ou pelas polticas agrcolas excludentes),de milhares de trabalhadores rurais. As questes postas levam necessidade de se compreender a formao do MST no Sul do Pase, em especial, na regio em que se desenvolve este estudo, nocomo episdio isolado, mas vinculado prpria histria de lutadas geraes passadas. Estas tm desempenhado um papel

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    educativo junto aos agricultores da regio, levando-os aempreenderem lutas, conjuntas ou isoladas, pela conquista denovos direitos e contra a usurpao de direitos duramenteconquistados.

    1.2 A fase intermediria (1986-1993)

    A partir desta fase inicial, de formao e consolidao da lutapela terra, o Movimento entrou numa segunda fase, que vai demeados de 1986, quando surgiram os primeiros assentamentos,at meados de 1993, quando, paralelas s atuaes voltadas conquista da terra, desenvolveram-se estratgias produtivas comvistas aos novos assentamentos instalados.

    Tanto durante essa fase, como ainda hoje, as desapropriaesde terras e os assentamentos de famlias de agricultores sem-terracontinuaram a ocorrer exclusivamente em funo das pressesexercidas pelo Movimento, uma vez que inexiste uma clara edefinida poltica de reforma agrria por parte do governo federal.Esses anos correspondem ainda formao de uma estruturaespecfica para o Movimento. A partir da formao oficial do MSTem 1984, deu-se incio a esse processo com vistas aodesenvolvimento de uma estrutura organizativa prpria, sustentadapela formao de uma coordenao nacional, de coordenaesestaduais e coordenaes regionais.

    Esta fase tambm especialmente marcada pela delimitaodos campos de atuao dos mediadores, processo que j vinhasendo gestado nos anos anteriores, principalmente a partir de 1984com a formao oficial do MST e, como afirmamos acima, com acriao de uma estrutura organizativa definida no I CongressoNacional dos Trabalhadores Rurais, ocorrido no ano de 1985, nacidade de Curitiba. Durante os anos iniciais do Movimento, o queexistia, na verdade, era uma rede de relaes entre os diversosagentes envolvidos na luta pela terra, ou seja, CPT, sindicatos edemais organismos de assessoria, como a Assesoar (no casoespecfico do Sudoeste do Paran). Esses mediadores eram, atento, juntamente com as lideranas do Movimento, responsveispelas decises e definies acerca do Movimento.

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    O Movimento, estando organizado formalmente