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performatus.net 1 Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017 ISSN 2316-8102 Elogio ao Breu: A Potência do Segredo na Arte da Performance Luisa Marinho O vento desarruma alguns poucos fios de cabelo. Mas é impossível afastá-los do rosto – as mãos estão atadas às costas. A escuridão que a faixa de pano negro traz para os olhos. O não saber para onde se está indo. Amarrado, vendado e com protetores de ouvido que lhe tiram a audição, Vito Acconci aparece, na imagem da sua performance Security Zone (1971), em posição vulnerável. Privado dos seus sentidos, a poucos passos de cair no rio. E não está só. Figura 01: Vito Acconci, Security Zone . Píer 18, Nova York, Fevereiro de 1971. Fotografia de Shunk-Kender. © Roy Lichtenstein Foundation

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Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017

ISSN 2316-8102

Elogio ao Breu:

A Potência do Segredo na Arte da Performance

Luisa Marinho

O vento desarruma alguns poucos fios de cabelo. Mas é impossível

afastá-los do rosto – as mãos estão atadas às costas. A escuridão que a faixa de

pano negro traz para os olhos. O não saber para onde se está indo. Amarrado,

vendado e com protetores de ouvido que lhe tiram a audição, Vito Acconci

aparece, na imagem da sua performance Security Zone (1971), em posição

vulnerável. Privado dos seus sentidos, a poucos passos de cair no rio. E não está

só.

Figura 01: Vito Acconci, Security Zone. Píer 18, Nova York, Fevereiro de 1971.

Fotografia de Shunk-Kender. © Roy Lichtenstein Foundation

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Para guiá-lo nesse jogo de risco cego, o artista marcou um encontro, no

píer 18 da cidade de Nova York, com uma pessoa que ele conhece, mas não

confia. O píer, aquele visto tantas vezes em filmes noir1. O local das reuniões

fortuitas, onde o caminhante se esgueira pelas sombras. Aquele lugar que se

vai, sem ter a certeza do retorno para casa. A cidade não sabe o que acontece

nos abismos das águas turvas que a margeiam.

Como muitas obras performáticas, Security Zone é apresentada ao

público através do seu registro. Por dentro da moldura escura que cerca um

quadro negro com escritos e uma fotografia em preto e branco, se conhecerá a

peça (Figura 01). Refletindo sobre os diversos modos possíveis de criação,

recepção e engajamento formal, Phillip Auslander cria uma separação entre

duas categorias de registro das ações de performance: a documental e a teatral.

Na primeira, estão as obras que foram feitas para uma audiência presente, em

que os artistas criam documentos que assumem caráter de evidência de que os

atos realmente aconteceram e de que modo se deram. A performance, nesse

caso, é autônoma à sua produção documental que, além de função

comprobatória e descritiva, dá indicações através das quais a peça possa ser,

ainda que de maneira incompleta, reconstruída por quem venha a observar seus

resíduos em momento posterior ao ato. Já na segunda, e é nessa categoria que o

encontro do píer está inserido, o trabalho não é criado para uma plateia que

testemunha o ocorrido ao vivo, mas, ao contrário, são casos em que a

performance se dá para a câmera fotográfica, de vídeo, para gravadores de áudio

etc. A audiência irá encontrar-se com a obra somente através do fruto material,

dentre os quais se destacam produtos imagéticos, sonoros e textuais da

experiência.2

Assim como diversas outras peças de Vito Acconci, essa performance só

pôde acontecer sem a presença de observadores, e ser conhecida por meio dos

documentos gerados na experiência do encontro com a pessoa de quem ele

1 Vito Acconci, Security Zone, 1971. Whitney Museum of American Art. Ver em <https://youtu.be/Mu3rSdo-2oA>. Acesso em: 12 de julho de 2016. 2 Cf. Philip Auslander, “A Performatividade da Documentação de Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 7, nov. 2013. Ver em: <http://performatus.net/traducoes/perf-doc-perf/>. Acesso em: 08 de julho de 2016.

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próprio desconfia. Na teatralidade do registro, os eventos decorridos da

negociação tácita entre o corpo vulnerável do artista e aquela única pessoa que

pôde salvá-lo da beira da água escura são parcialmente mostrados para, então,

seus efeitos permanecerem em misteriosos matizes cinzentos.

À sua frente, o homem que não tem a confiança de Acconci o toca, pela

cintura. As mãos espalmadas e a posição dos corpos, no momento congelado

pelo ato fotográfico, reforçam o caráter dúbio da proposição de Security Zone. O

fatiamento do tempo, o corte nesse instante da fotografia deixa, a quem olha, o

abandono à condição do não saber. A ideia de Instante Decisivo, de Henri

Cartier-Bresson, se enquadra bem dentro da perspectiva dessa ambiguidade. O

fotógrafo moderno ressalta a importância do uso do dispositivo para a captação

de um momento fugidio, em que aquele que pressiona o botão da câmera

aguarda a melhor situação para fazer com que a imagem aconteça. A cortina do

obturador deverá abrir caminho para a queima do negativo em um tempo

preciso, em que a imagem irá encontrar todos os elementos de que necessita

para estar em perfeito equilíbrio, de composição e narrativa.3

Na fotografia, o movimento do homem pode ser interpretado como um

apoio a Acconci, para que este não caia para trás, atingindo as águas, ou como

um ataque, um empurrão ou uma ameaça de jogá-lo para longe, em situação de

extremo risco. Angela Materno, comentando a relação entre o pensamento de

Walter Benjamin e o teatro de Bertold Brecht, destaca que o método do corte,

tão presente na obra brechtiana, é matéria prima para a reflexão do filósofo

sobre a questão do gesto. Para Benjamin, o gesto seria um ínfimo momento,

separado do fluxo contínuo das ações, que possui corpo próprio dificilmente

passível de falsificações e que apresenta um começo e um fim determinados.4 A

imagem eleita por Acconci está repleta desta materialidade da interrupção,

gestual e fotográfica, do ato performativo. O gesto cria tensão. Sobra ao

observador o arrebatamento frente à potência dramatúrgica desse instante

congelado. 3 Cf. Henri-Cartier Bresson, O Imaginário Segundo a Natureza, p. 15-37. 4 Angela Materno, "Releituras de 'O Autor como Produtor': Walter Benjamin, O Teatro e A Técnica". Em Flora Süssekind; Tânia Dias (orgs.), A Historiografia Literária e As Técnicas de Escrita: Do Manuscrito ao Hipertexto, p. 313-328.

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Ainda que o emoldurado se apresente, por conter em si o elemento

fotográfico, como índice 5 do ocorrido, estamos impossibilitados de saber

detalhes do evento. A imagem, em conjunto ao texto, cria um enquadramento

narrativo muito particular, distante de um relato objetivo e esclarecedor. Acconci

se utiliza de interessante estratégia de escrita para manter a característica

sigilosa dos acontecimentos passados no píer. Ao descrever a sua ação, não a

faz ao público. Dirige suas palavras ao homem do encontro, a única pessoa6 que

sabia exatamente o que houve naquela tarde de 1971. Essa decisão opera de

maneira dupla, instaurando um enigma e tensionando a atmosfera da peça.

A natureza conflituosa da relação entre as duas pessoas envolvidas na

performance fica, no texto, explícita. “You know I don’t trust you.” [Eu não

confio em você. E você sabe disso.] Acconci coloca a problemática da confiança,

e da falta dela, ao outro. O homem sabe que não tem credibilidade junto ao

artista, e justamente por isso é o escolhido para ser seu guia durante a privação

dos sentidos que acontece no píer. O convite é audacioso e coloca essa relação

com a alteridade de maneira frontal e direta, salientando o potencial

desconforto da situação soturna que o indefeso vendado se encontra.

O texto serve não apenas como uma provocação ao seu opositor, mas,

principalmente, como estabelecimento de uma estranha cumplicidade com ele.

Ao descrever a ação a uma pessoa que lá estava e tudo viveu, Acconci se furta de

entrar em detalhes. Escreve que uma confiança foi construída, mas deixa claro

que não sabe se a nova relação irá se estender para além da performance,

mantendo o motivo dessa oscilação nas sombras. Ao negar ao público o

conhecimento da minúcia das trocas que aconteceram entre aqueles dois

sujeitos, cria conivência entre eles, excluindo a todos os demais. O Stimmung,

as atmosferas e ambiências inerentes à escrita que “afetam os ‘estados de

espírito’ dos leitores”7, do texto de Security Zone, é o segredo entre os homens,

5 Rosalind Krauss, “Notes on the Index: Seventies Art in America”. October, The MIT Press, volume 3, primavera de 1977, p. 68-81. Ver em: <http://www.jstor.org/stable/778437>. Acesso em: 10 de julho de 2016. 6 É possível perceber, através da observação do enquadramento e ângulo da imagem, que o fotógrafo está posicionado a uma significativa distância de Vito Acconci e seu antagonista. 7 Hans Ulrich Gumbrecht, Atmosfera, Ambiência, Stimmung : Sobre Um Potencial Oculto da Literatura, p. 14.

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que desperta inquietudes aos que, cegos aos fatos, têm acesso apenas ao

quadro imagem-texto.

À pessoa que se depara com a obra através do seu registro, permanecem

incômodas perguntas. O que haveria feito o homem para ganhar o descrédito de

Acconci? O desconfiar é somente de Acconci em relação ao homem, ou será que

o homem também tem suas dúvidas sobre a idoneidade de Acconci? Teria o

artista se sentido verdadeiramente ameaçado em algum momento durante a

ação? O que realmente aconteceu com os corpos envolvidos naquele embate e

de que maneira saíram transformados da experiência? Na proposição de

Security Zone, os dois homens têm, no momento posterior à ação, mais do que

uma memória em comum: eles obtêm um pacto. Ficam com a lembrança e

todas as outras pessoas do mundo estão de fora, tentando espiar por trás da

muralha de estranhamento construída a partir da aura do segredo.

Quase quinze anos após o encontro no píer, a cidade de Nova York foi

palco de outro cruzamento de subjetividades que marcou a arte da performance.

Um homem, uma mulher. Um imigrante ilegal taiwanês, uma norte-americana

branca. Ele, com seu anseio por conhecer, com o corpo, os aspectos filosóficos

da experiência da vida. Ela, com a potência de moldura que têm as palavras,

transmutando o cotidiano em arte. Ele, a determinação do monge ateu. Ela,

cercada pelas imagens disciplinares da juventude imersa no espiritualismo

católico. Dois, que eram desconhecidos antes. Dois, que então passaram a

dividir os cômodos e as calçadas.8

O programa performativo9 de Rope Piece (Figura 02) de Tehching Hsieh e

Linda Montano determina que ambos deverão permanecer amarrados, um ao

outro, pela cintura durante um ano. A performance se iniciou em 4 de julho de

1983 e teve seu fim em 4 de julho de 1984. Cada um em sua mesa de trabalho,

cada um em sua cama. Um pouco mais de dois metros de corda os separavam.

Nunca portas.

8 Cf. Tehching Hsieh; Linda Montano, “One Year Art/Life Performance: Interview with Alex and Allyson Grey”. Em Kristine Stiles; Peter Selz (orgs.), Theories and Documents of Contemporary Art: A Sourcebook of Artists' Writ ings, p. 907-911. 9 Cf. Eleonora Fabião, “Programa Performativo: O Corpo-Em-Experiência”. Revista do Lume, n. 4, Dezembro de 2013.

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Figura 02: Tehching Hsieh e Linda Montano, Art/Life One Year Performance 1983-1984

Statement. © 1984 Tehching Hsieh, Linda Montano | Cortesia dos artistas e Sean Kelly Gallery, Nova York

Afirmando suas individualidades, seguiram sempre juntos. Na luta que é

aprender a lidar com a alteridade, ocuparam o mesmo espaço, dividindo um ano

inteiro. Não se tocaram, mas grunhiram, sussurraram lamúrias pelas

madrugadas, gesticularam com as mãos, mudaram um ao outro de direção com

bruscos puxões no cordão. E falaram. Os artistas produziram um acúmulo de

fitas cassetes com conversas que chegaram a ocupar até seis horas dos seus

dias.10 As intensas trocas entre a pessoa que precisa interromper o que está

fazendo para caminhar até a cozinha e o outro, que tem sede. A abstenção das

relações sexuais. Os problemas do cotidiano. A amizade construída. As

confissões trocadas. O que foi dito entre eles está gravado, compondo, em

conjunto aos textos e fotografias, o arquivo da performance.

Na teoria do arquivo, este não é apenas composto pela sua materialidade

e função de registro. Ele está repleto de uma “aura simbólica” própria, é um

10 Cf. Adrian Heathfield, “I Just Go In Life: Tehching Hsieh and Adrian Heathfield”. Em Adrian Heathfield; Amelia Jones (orgs.), Perform, Repeat, Record: Live Art in History, p. 457-467.

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lugar de memória onde reconstruímos acontecimentos e escrevemos história.11 O

arquivo tem a função de revelar uma ausência. Quando encontramos um

documento, se sabe que muitos outros registros sobre a coisa já não existem ou

estão em uma zona de inacessibilidade. Todas as informações, que se perderam

e permanecerão na obscurescência sobre um fato, se mostram pelo negativo. Se

essa característica do arquivo como “indício de uma falta”12 é corrente em

documentos abertos, onde a imaginação já trabalha a operação de sentido nos

meandros dos dados aparentes, um documento mantido em segredo é um

gatilho, ainda mais potente, para o devaneio de quem tenta conhecer e

desvendar a essência caliginosa dos acontecimentos.

Com o intuito de preservar a intimidade da intensa e delicada relação

construída na performance, Hsieh e Montano optaram por manter em sigilo o

conteúdo das gravações. Em entrevista a Adrian Heathfield, o artista afirmou

que as fitas, que foram seladas para impossibilitar sua escuta, estariam, para a

obra, como a caixa preta está para os aviões. Tirar o lacre, revelar seu conteúdo,

ouvir as palavras que ali estão gravadas, seria como abrir uma caixa de Pandora

para dentro da escuridão que a privacidade contém na sua essência. 13 No

entanto, marcando a impossibilidade de se acessar o real da obra de arte através

do seu registro, secreto ou não, Tehching Hsieh estimula à pessoa que tiver

contato com a documentação de suas obras para que esta entre com dimensões

da sua própria história, chegando a compôr, para si, uma ideia do que foram

suas peças. No caso do sigiloso registro de Rope Piece, o observador é ainda

mais instigado. Cabe à imaginação fabricar o conteúdo das conversas, forjar

mentalmente as frases, ruídos e afetos que preenchem os incontáveis metros

de segredo que foram deitados sobre as fitas magnéticas. O documento,

portanto, deve ser visto em si como performance pela audiência e não apenas

como uma comprovação indicial de que a peça aconteceu.14 O filósofo Jacques

Derrida muito refletiu sobre a importância do segredo na literatura,

11 Cf. Pierre Nora, “Entre a Memória e a História: A Problemática dos Lugares”. Projeto História, São Paulo, n. 10, dezembro de 1993, p. 7-28. 12 Henry Rousso, “O Arquivo ou O Indício de uma Falta”. Estudos Históricos, v. 9, n. 17, 1996. 13 Cf. Adrian Heathfield, op. cit. 14 Cf. Philip Auslander, op. cit.

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especialmente nos livros Paixões e Donner la Mort. Pesquisadora de sua obra,

Carla Rodrigues apresenta um olhar atento sobre o conceito do segredo em

Derrida, que pode ser um bom instrumento para pensar o potencial

dramatúrgico que o oculto traz para as obras Security Zone e Rope Piece.

A passagem bíblica que aponta o sacrifício de Abraão, ordenado por Deus

a imolar seu filho Isaque como demonstração da sua lealdade, é diversas vezes

retomada na tradição filosófica como disparador de questões do pensamento.

Um duplo segredo se dá nesse contexto: Abraão esconde de seus familiares o

comando da divindade, ao passo que Deus esconde de Abraão as suas

motivações para tal pedido. O abismo do segredo é a fonte do dilema ético na

qual o personagem do capítulo vinte e dois de Gênesis está encurralado. E é

neste momento do mysterium tremendum, quando Deus consegue enxergar o

sujeito mas este não é capaz de desvelá-lo, na sensação de ser retirado das

sombras para a vulnerabilidade de ser observado, no quando do “Ele me vê” ou

do “Ele tudo sabe”, que Derrida aponta que Abraão está tomado pelo imperativo

da responsabilidade infinita, que é o desengano trazido pelo reconhecimento da

heteronomia.15

Na medida desproporcional entre a visão divina, que a tudo alcança, e a

finitude obscura da experiência humana, ocorre um imediato confronto com o

desconhecido, com o externo. Derrida aponta que esse mysterium tremendum

está representado no cristianismo sob a égide da figura de Deus, mas que sua

forma estrutural é a mesma em todo o contato com qualquer outro ser. “Mesmo

que se tirasse Deus dessas frases – e se substituísse pela palavra alteridade –,

ainda nos restaria uma experiência de tremor.”16 O tremor é, portanto, aquilo

que acontece frente ao inacessível e ao que não podemos controlar. O outro é

abismo. Tudo é segredo.

A medida de responsabilidade estaria, portanto, em assumir eticamente

a dimensão do não saber. O sujeito, fadado a errar pelas sombras limítrofes do

conhecimento humano, deve incorporar outros paradigmas, que não o da

15 Carla Rodrigues, Rastros do Feminino: Sobre Ética e Polít ica em Jacques Derr ida, p. 170-173. 16 Ibidem.

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certeza, para o fruir de sua existência. Torna-se necessário enlaçar-se com a

natureza da dúvida, assumindo a estrutura do talvez e do como se17 na fundação

estrutural do seu modo de pensamento.

Essa responsabilidade infinita está diretamente vinculada, na filosofia

de Derrida, ao campo do secreto. O que se esconde está sempre presente na

relação com a alteridade e é necessário para que o sujeito mantenha-se fora da

tradução daquele real, que aparece metaforizado na imposição divina, para a

linguagem. Há uma violência na demanda por uma quebra desse segredo

fundamental, conclamada por Kant através do seu chamado constante de trazer

tudo à luz, de apresentar justificativas a todos os atos e gestos do ser humano.18

Abraão estaria, se revelasse a natureza de seu segredo para os familiares,

tirando de si a responsabilidade da decisão e a passando para o outro. A escolha

do patriarca pelo sacrifício deveria se manter silenciosa para evitar que se

rarefizesse a singularidade do real dentro dos meandros do sistema de

enunciados, que aconteceria no momento do discurso. Falar sobre uma

experiência é uma tradução. Traduzir é torcer, modificar a realidade para que

esta se adéque aos paradigmas próprios da linguagem.

É nesse dilema ético, apresentado na passagem bíblica, que Derrida

sintetiza sua forma de operar a conceituação do segredo na literatura. Em

oposição à filosofia racionalista, o literário, que tem na sua ontologia a condição

da ficcionalidade, seria então o espaço de habitar para todos os segredos. Esse

modo do querer dizer particular da literatura abraça a condição enigmática do

seu próprio modo de fazer que, sem compromisso com uma busca pela verdade,

foge à objetividade e está sempre em negociação com a alteridade.19

Security Zone e Rope Piece têm a vibração do tremor da experiência que

é o contato com o outro. Ambas as peças apresentam uma “desconstrução da

representação”, característica da arte da performance, que se dá no

posicionamento objetivo de enunciados que desencadeiam atos de

17 Jacques Derrida, Papel-máquina. 18 Carla Rodrigues, op. cit. 19 Ibidem, “Paixões da Literatura: Ética e Alteridade em Derrida”. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 47-59. Ver em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/5473>. Acesso em: 18 de julho de 2016.

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experimentação. 20 São propostas de fazer acontecer coisas no mundo,

diretamente e sem qualquer conotação alegórica. No entanto, ambas as obras

possuem muito de literário em sua constituição. Este não reside apenas nas

possibilidades de inscrições de sentido feitas por um observador, que tem o

potencial de deslocar quaisquer práticas para um lugar de instauração de uma

teatralidade, a partir de um determinado tipo de enquadramento intencional do

olhar, criando uma ruptura no cotidiano.21 Mas, para além do significativo dado

da teatralidade, o literário se faz efetivamente presente na constituição

dramatúrgica das peças, que está permeada pela atmosfera do segredo.

Trazendo o secreto para os registros das obras performáticas, os artistas

instauram nestas um potencial de fábula inerente à literatura, ramificando

possibilidades de criação semântica por aquele que entra em contato com as

narrativas disparadas pela intangibilidade do enigma. Na performance que

guarda seus segredos, esse lugar de memória do arquivo pode ser um espaço do

literário, uma faísca de criação, um dado aberto que propicia a fabricação de

sentidos e uma maneira de manter a obra viva, para além da temporalidade da

sua realização.

Se a performance ao vivo crava na memória como uma espora, sabemos

que logo após o ato ela irá desaparecer e seus registros documentais não serão

nunca suficientes para dar conta da amplitude da experiência22; o segredo do

arquivo da performance lida e opera semanticamente com uma inquietação

semelhante, pois ressalta ao público as suas impotência e impossibilidade de

conhecer. Nós, público de Security Zone e Rope Piece, somos como Abraão,

condenados à cegueira de uma espera infinita, arrebatados por uma ânsia

constante de que a revelação surja, mesmo que já saibamos, de antemão, que

aquilo que tanto queremos saber permanecerá nas trevas. A certeza da

impossibilidade de desvendar o segredo faz com que o conhecimento da sua

20 Cf. Eleonora Fabião, op. cit. 21 Cf. Patrícia Leonardelli, “Teatralidade e Performatividade: Espaços em Devir, Espaços do Devir”. Revista Cena, n. 10, 2011. Ver em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/cena/article/view/20891/15303>. Acesso em: 12 de julho de 2016. 22 Cf. PHELAN, Peggy. “A Ontologia da Performance: Representação sem Produção”. Em Revista de Comunicação e Linguagens.

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existência nos apareça intermitentemente, tocando na superfície da lembrança,

mas sem nunca fixar em nada. Na impossibilidade de agarrar a matéria-

pensamento do isso foi, ficamos reféns das imagens voláteis do que pode ter

sido, sempre vasculhando os fugidios cantos escuros do mistério.

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PARA CITAR ESTE TEXTO

MARINHO, Luisa. “Elogio ao Breu: A Potência do Segredo na Arte da

Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN:

2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora